Mestrado em História e Filosofia das Ciências Filosofia das Ciências da Natureza A Termodinâmica de Estruturas Emergentes Fernando M.S. Silva Fernandes Email: [email protected] http://elixir.dqb.fc.ul.pt/~fsilva/home Centro de Ciências Moleculares e Materiais (CCMM) Departamento de Química e Bioquímica Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa Resumo Considerando a diversa formação dos mestrandos, o tema será tratado de forma mais qualitativa. Embora haja quantificações, não se ultrapassa as operações aritméticas elementares, a função logaritmo e o conceito intuitivo de probabilidade. Após uma breve introdução histórica, abordam-se conceitos fundamentais (energia, temperatura, entropia, etc.) a par das leis da Termodinâmica. Destaca-se a energética do metabolismo (de glúcidos, lípidos e proteínas) versus o crescimento da população mundial. Mostra-se que estruturas químicas emergentes, por exemplo as que suportam a Vida (estruturas dissipativas), são condicionadas pela 2ª lei da Temodinâmica. E que os respectivos processos podem ser compreendidos através de modelos simples, como os da máquina de Carnot e células de combustível. Finalmente, aborda-se a origem do Universo e da Vida sob um ponto de vista filosófico-científico. Bibliografia: "Order and Chaos. Laws of Energy and Entropy", S. A. Angrist; L.G. Hepler, Penguin Books, 1973. "The 2nd Law. Energy, Chaos and Form", P.W. Atkins, Freeman and Company, 1994. "The Grand Design", S. Hawking; L. Mlodinow, Bantam Press, 2010. População mundial Filosofia da Ciência • • • • • • • • Em última instância, questionar a essência das coisas, processos e ideias (modelos, teorias...) Conhecimento básico dos assuntos, através de modelos simples Um modelo simples é uma construção mental que capte a essência, não as tecnicalidades Os modelos simples podem definir classes de universalidade: aspectos aparentemente diferentes unificados como manifestações de princípios fundamentais e abrangentes A Termodinâmica trata das conversões e transferências de energia Tem implicações profundas na emergência de estruturas complexas como as que suportam a Vida, e em aplicações industriais variadas E, também, na evolução das visões sócio-económicas ao longo dos séculos Um modelo simples da Termodinâmica é a máquina a vapor de Carnot Aeolipile, Hero de Alexandria (século 1, AD) Máquinas a Vapor (Revolução Industrial) Máquinas a vapor Componentes de máquinas a vapor • • Um dos grandes impulsionadores da revolução industrial em Inglaterra, através da máquina a vapor: James Watt (1736 – 1819) O proponente da unidade de potência cavalo-vapor (horsepower, hp) Potência - Cavalo • • 1 foot = 12 inches = 30,48 cm; 1 lb (pound) = 0,454 kg; 1 horsepower = 750 W “Had James Watt been more scientist and less salesman, he might have chosen a laboratory animal such as the guinea-pig for his standard. Then advertisements for today´s automobiles might have been able to go to superlatives with statements like: 1.272.000 pigpower to keep you cruising at turnpike speeds all day! (without even a hint of odour) História da Termodinâmica (séculos 18 e 19) Antoine Lavoisier 1743 -1794 Sadi Carnot 1796 - 1832 Benjamim Thompson (Count Rumford) 1753 - 1814 Sadi Carnot (citação de P. Atkins) • • • • • • One cause of France’s defeat had been her industrial inferiority The contrast between France’s and England’s use of steam epitomized the difference Sadi Carnot saw that taking away England’s steam engine would remove the heart of her military power: Gone would be her coal, for the mines would no longer be pumped Gone would be her iron, for with wood in short supply, coal was essential to ironmaking Gone, then, would be her armaments História da Termodinâmica (séculos 18 e 19) Émile Clapeyron 1799 - 1864 Hermann von Helmholtz 1821 - 1894 Julius Mayer 1814 - 1878 James Joule 1818-1889 Julius Mayer (médico do barco Java, através dos trópicos) Hemoglobina História da Termodinâmica (séculos 19 e 20) Rudolf Clausius 1822 - 1888 Ludwig Boltzmann 1844 - 1906 William Thomson (Lord Kelvin) 1824 - 1907 Josiah Gibbs 1839 - 1903 Máquina e ciclo de Carnot A ausência de uma fonte fria impossibilita a obtenção de trabalho útil A dissimetria • • • • • O calor não pode ser completamente convertido em trabalho numa máquina cíclica: alguma quantidade tem de fluir para uma fonte fria A Natureza aceita a equivalência entre calor e trabalho, mas exige uma contribuição quando o calor é convertido em trabalho A Natureza não taxa a conversão de trabalho em calor: podemos desperdiçar completamente qualquer trabalho em calor por fricção, p.ex. É somente o calor que não pode ser completamente convertido em trabalho Eis a dissimetria: o calor é taxado; o trabalho não Sejamos rigorosos • • • • • • • Calor e trabalho designam métodos, não designam coisas Não pode engarrafar-se calor e derramá-lo de um objecto para outro. O mesmo quanto ao trabalho Ambos os termos identificam modos de tranferência de energia Aquecer um objecto significa tranferir energia para ele por um modo especial: usando a diferença de temperaturas entre uma fonte quente e o objecto. Arrefecer um objecto significa transferir energia do objecto, sob a influência da diferença de temperaturas entre ele e uma fonte fria O calor não é uma forma de energia: é o nome de um método para transferir energia Trabalho é o que se faz quando se quer alterar a energia dum objecto por um processo que não envolve diferença de temperaturas: levantar um peso do chão altera a sua energia e implica trabalho Tal como o calor, trabalho não é uma forma de energia: é o nome de um método para tranferir energia Relaxemos a linguagem • • • • • “Calor foi convertido em trabalho”, é uma expressão usual Rigorosamente, dever-se-ia dizer: “energia foi tranferida duma fonte por aquecimento e, então, transferida realizando trabalho” Tal conduz a uma verbosidade por vezes massiva! Assim, falando sobre calor e trabalho usaremos uma linguagem mais “relaxada”. Utilizaremos expressões como “calor flui para um sistema” No entanto, sempre que o fizermos, juntaremos um “sussuro”: “mas nós sabemos o que isso realmente significa”! Equivalência entre trabalho e calor (Joule) • • • • • Trabalho converte-se em calor Como métodos de transferência de energia são equivalentes Assim, exprimem-se nas mesmas unidades da energia: caloria, quilocaloria, Joule, quiloJoule... 1 J = 4,184 cal Veremos as características particulares do calor e trabalho sob o ponto de vista molecular Enunciados da 2ª Lei da Termodinâmica • Kelvin: um processo cíclico cujo único resultado seja a absorção de calor de um reservatório e a sua conversão completa em trabalho útil, é impossível • Clausius: um processo cíclico cujo único resultado seja a transferência de calor de uma fonte fria para uma fonte quente, é impossível Equivalência dos enunciados de Kelvin e de Clausius • • • A falsidade do enunciado de Kelvin implica a falsidade do enunciado de Clausius A falsidade do enunciado de Clausius implica a falsidade do enunciado de Kelvin Conclusão: os dois enunciados são equivalentes 1ª lei da Termodinâmica • • • • • 1ª lei: a energia total do universo é constante O universo é a união do sistema e da vizinhança De acordo com a lei os processos A→B→C→D são possíveis Os processos A→E e A→F são impossíveis A energia do universo surge assim como uma propriedade indicadora da possibilidade ou impossibilidade de processos (transformações, reacções...) Máquina perpétua de 1ª espécie: um sonho impossível • • • • O fluxo da água na base do tanque movimenta a roda A roda moe o trigo e opera uma bomba para que a água retorne ao tanque Infelizmente a bomba nunca pode retornar suficiente água de modo a que o moinho opere perpetuamente sem interferência externa De contrário a 1ª lei seria violada, pois parte da energia é sempre consumida na moagem do trigo. 2ª lei da Termodinâmica em acção • • • • De início o sistema está a temperatura mais alta do que a vizinhança Energia é transferida espontaneamente do sistema para a vizinhança até que se atinja o equilíbrio térmico (steady state) onde as temperaturas do sistema e vizinhança se igualam. A 1ª lei não é violada A temperatura surge assim como uma propriedade indicadora do equilíbrio térmico (lei zero da Termodinâmica) O processo inverso não é espontâneo, embora seja possível Entropia: uma propriedade indicadora de espontaneidade • • • • • Se a entropia dum estado B do universo for maior do que a dum estado A, então o estado B pode ser atingido, espontaneamente, a partir do estado A A entropia aumenta quando um sistema é aquecido e diminuí quando o sistema é arrefecido. Mantem-se invariável quando é realizado trabalho. Quanto maior for a temperatura à qual o calor entra num sistema menor será a sua variação de entropia Variação de entropia (dS) = Calor transferido (dQ) / Temperatura (T) dS(univ.) = dS (sist.) + dS (viz.) ; dQ > 0 – calor entra; dQ < 0 – calor sai A→B e A→C, são processos espontâneos A→D não é espontâneo Unificação dos enunciados de Kelvin e de Clausius • • • Ambos os processos, anti-Kelvin e anti-Clausius, implicam uma diminuição da entropia do universo. Portanto, não são espontâneos, são anti-naturais. Para a produção de trabalho útil requerem-se sempre processos naturalmente espontâneos 2ª Lei da Termodinâmica: processos naturais (espontâneos) aumentam a entropia do universo O Inevitável Algum calor obtido da fonte quente tem sempre de ser transferido para a fonte fria de modo a nela gerar suficiente entropia que compense a diminuição de entropia da fonte quente, aumentando assim a entropia do universo. Ou seja, num processo natural há sempre degradação de energia! Degradação • • • • A energia transferida para a fonte fria só estará disponível para produzir trabalho se tivermos uma outra fonte ainda mais fria Assim, a energia armazenada a altas temperaturas tem uma “qualidade” melhor: energia de alta qualidade está disponível para produzir trabalho; energia de baixa qualidade (energia degradada ou corrompida) está menos disponível A entropia identifica a maneira como a energia está armazenada: se a alta temperatura, a variação de entropia associada a qualquer transferência por calor é relativamente pequena e a energia tem qualidade elevada; se a mesma quantidade de energia está armazenada a baixa temperatura, a variação de entropia associada a qualquer tranferência por calor é relativamente alta e a sua qualidade é relativamente baixa Como o aumento de entropia do universo é o indicador de processos naturais (espontâneos) que correspondem à energia ser armazenada a cada vez mais baixas temperaturas, então: a direcção de processos naturais é a de causar um declínio da qualidade da energia, ou seja, os processos espontâneos da Natureza levam à degradação (corrupção) da qualidade da energia Um alerta • • • • • • • A 1ª lei estabelece que a energia do universo é constante. Quando se queimam combustíveis fósseis (carvão, petróleo, núcleos atómicos...) não se diminui a quantidade de energia. Assim, nunca poderá haver uma crise de energia, pois a energia do universo é sempre constante. Contudo, cada queima espontânea aumenta a entropia do universo, ou seja, diminui a qualidade da sua energia A sociedade tecnológica queima cada vez com maior intensidade os seus recursos, aumentando inexoravelmente a entropia do universo e a degradação do seu conteúdo energético Não estamos no meio duma crise energética, mas no patamar duma crise entrópica A civilização moderna vive da degradação dos armazéns de energia do universo Não é necessário conservar energia pois a Natureza fá-lo automaticamente. O que urge é cuidar da sua qualidade Temos de encontrar meios de projectar e manter a civilização com menores produções de entropia A conservação da qualidade da energia é a essência do problema e o nosso dever para o presente e futuro Eficiência • • • • • • • • • O valor mínimo de calor transferido para a fonte fria tem de ser sempre o suficiente para aumentar a sua entropia de modo a pelo menos igualar a diminuição de entropia da fonte quente dS (f.q.) = -dQ(f.q.) / T(f.q.) dS (f.f.) = +dQ(f.f.) / T(f.f.) Calor mínimo para a fonte fria = Calor da fonte quente x [ T(f.f.) / T(f.q.) ] Calor da f.q. – Calor mínimo para a f.f. = Trabalho máximo Eficiência = Trabalho máximo/Calor da f.q. = 1 – [ T(f.f.) / T(f.q.) ] A eficiência é independente da substância operacional utilizada na máquina, apenas depende das temperaturas das fontes Atenção: as temperaturas consideradas são expressas em graus Kelvin (temperaturas absolutas); T (K) = t (ºC) + 273,15 Quanto maior a T(f.q.) e menor a T(f.f.) maior será a eficiência a qual, contudo, não pode ser > 1, pois então a 1ª lei seria violada. Assim, T < 0 K não é admissível No entanto, se T(f.f.) = 0 K a eficiência é 1. Será possível atingir o zero absoluto? 3ª lei da Termodinâmica • • • • Descendo sucessivamente a temperatura da fonte fria numa máquina de Carnot aumentaria, certamente, a sua eficiência Contudo, para obter todo o trabalho útil implicaria máquinas cada vez maiores O zero absoluto exigiria uma máquina de dimensões infinitas! 3ª lei da Termodinâmica: o zero absoluto é inatingível num número finito de passos Átomos, moléculas e iões em ação • • • • • • • A matéria é constituída por átomos, moléculas e iões em constante movimento e interação Dum modo geral, designamos esses constituintes por partículas A energia das partículas é, essencilamente, de dois tipos: cinética e potencial A energia cinética corresponde ao movimento: quanto maior a rapidez do movimento maior será a energia cinética A energia potencial está relacionada com as localizações espaciais. Uma partícula no campo gravitacional da Terra tem energia potencial que depende da altura (distância da partícula à Terra) a que se encontra: quanto maior a altura maior será a energia potencial. Tal como a energia potencial de duas partículas depende da distância entre elas. Qualquer sistema macroscópico tem um nº de partículas da ordem de 1023 (nº de Avogadro) A energia total dum sistema termodinâmico, tal como os nºs de Avogadro de moléculas de água num copo, é a soma das energias cinéticas e energias potenciais de todas as partículas Conservação de energia • • • A soma das energias cinéticas e potencial dum sistema isolado (i.e.não sujeito a interferências externas) é constante (1ª lei) Por exemplo, num pêndulo: no máximo de amplitude a energia potencial da partícula é máxima e a energia cinética é mínima; no mínimo de amplitude a energia cinética é máxima e a energia potencial é mínima No entanto, ao longo do movimento, a soma das duas energias tem sempre o mesmo valor: energia cinética converte-se em energia potencial e viceversa Modos de movimento: coerente e incoerente • • • Numa bola de ténis a mover-se como um todo, as moléculas têm movimentos coerentes: todas no mesmo sentido e direção Numa bola parada a temperatura finita, as moléculas têm movimentos incoerentes (caóticos): diferentes sentidos e direções; movimentos témicos Assim, uma bola a temperatura finita que se mova como um todo possui simultaneamente movimentos moleculares corentes e incoerentes Calor e trabalho em termos moleculares • • O trabalho estimula movimentos moleculares coerentes O calor estimula movimentos moleculares incoerentes Trabalho e Calor Trabalho: transferência de energia através de movimentos organizados. Calor: transferência de energia através de movimentos desorganizados (caóticos), i.e. movimentos térmicos. Um modelo do universo 1600 partículas Temperatura • • • • • As partículas têm energia ɛ (Non) ou energia 0 (Noff) Temperatura = A(ɛ) / ln (Noff / Non) Sistema: Noff = 60; Non= 40, donde T = 2,47 supondo A(ɛ) = 1 Vizinhança: Noff = 1500; Non = 0, donde T = 0 Este é um estado inicial do universo-modelo Evolução espontânea para o equilíbrio térmico (a) • • • • (b) Em (a) : Tsist = 0,72 ; Tviz = 0,23 Em (b) : Tsist = 0,27 ; Tviz = 0,27 No estado final as temperaturas são iguais, ou seja, atinge-se o espontaneamente o equilíbrio térmico Note-se que a energia da vizinhança é muito superior à energia do sistema Flutuações: simulação computacional • • • • Verde: flutuações da temperatura do sistema (100 átomos) Amarelo: flutuações da tempertura da vizinhança (1500 átomos) As duas temperaturas flutuam em torno do mesmo valor médio Em sistemas com nºs de Avogadro de átomos as flutuações serão insignificantes Processos Espontâneos são Irreversíveis Transformações Espontâneas Entropia, dispersão, caos, degradação Os processos espontâneos aumentam a entropia do universo. Nos estados finais, embora a energia do universo não tenha variado (é uma constante, 1ª lei) a energia encontra-se mais dispersa (caótica, degradada) do que nos estados iniciais. Probabilidade dos estados finais >>>> Probabilidade dos estados iniciais Calores de Combustão e Metabolismo Ciclos alimentares 300 trutas são necessárias para manter 1 homem durante 1 ano 1 truta deve consumir 90.000 rãs, as quais devem consumir 27 milhões de gafanhotos que se sustentam de 1.000 toneladas de erva. Metabolismo basal Taxa de consumo energético dum ser que não tenha comido recentemente, em repouso e acordado, num ambiente ameno. Num adulto: ~1.000 kcal/dia. Homem médio e saudável: ~75.000 kcal armazenadas Considerando os ciclos alimentares, energia proveniente do Sol, etc, estimase o máximo sustentável da população mundial : 15-30 biliões População mundial Aminoácidos e Proteínas Hemoglobina Acoplamento (a) (b) O acoplamento (b) permite naturalmente a inversão da direcção espontânea de um dos processos quando não acoplado (a) Síntese de Proteínas C6H12O6 + 6 O2 → 6 CO2 + 6 H2O, espontânea ADP → ATP, não-espontânea, induzida pela oxidação da glicose ATP → ADP, espontânea Aminoácidos → Proteínas, não-espontânea, induzida pela decomposição do ATP Estruturas do ATP e ADP em formas ionizadas Célula Animal Mais estruturas dissipativas Ilya Prigogine, 1917-2003 Reacção de Belousov-Zhabotinsky (BZ) Poesia e Literatura Demónio de Maxwell Negentropia em acção: paga-se! Questões!!! • O nosso conhecimento presente da física e da química é praticamente completo, e os seus conceitos permitem-nos explicar a Vida sem a intervenção de qualquer “life principle”. • Consideramos que a Vida obedece a todas as leis da física e da química, mas sentimos que é necessária “qualquer coisa” mais antes que possamos compreender plenamente a Vida. • Os organismos vivos comportam-se de modo completamente diferente da matéria inerte. O seu comportamento não pode ser compreendido sem referência a um “life principle”. A Vida é uma excepção à 2ª lei da Termodinâmica e o novo princípio terá de explicar fenómenos que são contrários à 2ª lei.