AMAZÔNIA LEGAL

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Revista
AMAZÔNIA LEGAL
de estudos sócio-jurídico-ambientais
2
Jul./Dez. – 2007
Ministério da Educação
Universidade Federal de Mato Grosso
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revista jurídica
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Drª Cássia Virgínia Coelho de Souza
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Valerio de Oliveira Mazzuoli
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Conselho Editorial
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Prof. MSc. Valerio de Oliveira Mazzuoli – UFMT
ISSN 1981-6774
Revista
AMAZÔNIA LEGAL
de estudos sócio-jurídico-ambientais
2
Jul./Dez. – 2007
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 1-198
jul.-dez. 2007
© 2007 Faculdade de Direito da UFMT.
Revista Amazônia legal: de estudos sócio-jurídico-ambientais / Universidade Federal de Mato
Grosso, Ano 1, n. 2 ( jul/dez – 2007) – Cuiabá: EdUFMT, 2007.
Semestral
198 p.
ISSN 1981-6774
1. Amazônia – Estudos sócio-jurídicos-ambientais. 2. Universidade Federal de Mato Grosso
– Periódicos .
CDU – 908(811A)
Revisão e Normalização: Eliete Hugueney de Figueiredo | Maria Auxiliadora Silva Pereira
Capa, Projeto Gráfico e Editoração: Candida Bitencourt Haesbaert | Sérgio Puga
Impressão: Gráfica Bartira - São Paulo, SP
Editora da Universidade Federal de Mato Grosso
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Sumário
Editorial........................................................................................................9
Parte 1 – Amazônia legal...............................................................................11
1. Variabilidade climática em áreas da Amazônia mato-grossense.........................13
Gizelle Prado da Silva Fonseca
Suzethe Costa Souza
Cleusa Aparecida Gonçalves Pereira Zamparoni
2. Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin
às dependências da cvrd em outubro de 2006............................................27
Alessandra Marchioni
3. Um cenário estratégico para a amazônia brasileira.........................................45
Adherbal Meira Mattos
4. Amazônia e racionalidades: conhecimento e/ou reconhecimento.....................55
Noli Bernardo Hahn
Parte II – Direito Ambiental Brasileiro..........................................................65
1. Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício.............................................67
Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray
2. Algumas reflexões sobre o meio ambiente e a necessidade
de uma conjugação de esforços para a sua proteção.....................................103
Florisbal de Souza Del’Olmo
3. O estado democrático de direito e o meio ambiente..................................117
Jacson Roberto Cervi
4. Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01........131
Astrid Heringer
Parte III – Direito Internacional do Meio Ambiente...................................149
1. A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente
no ordenamento jurídico brasileiro............................................................151
Valerio de Oliveira Mazzuoli
2. A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir
do tratado da comunidade européia e perspectivas com o advento
da constituição européia.........................................................................171
Adriane Cláudia Melo Lorentz
3. Comunidades indígenas e bioprospecção: o desafio da formulação
de consensos internacionais......................................................................185
Taciana Marconatto Damo Cerv
Sumary
Editorial.....................................................................................................................................9
Parte 1 – Legal Amazon........................................................................................................ 11
1. Climatic variability in the Amazon mato-grossense areas.......................................... 13
Gizelle Prado da Silva Fonseca
Suzethe Costa Souza
Cleusa Aparecida Gonçalves Pereira Zamparoni
2. Dinamyc of an evil logic: the case of the xikrin invasion to the
dependence of the cvrd in october 2006................................................................. 27
Alessandra Marchioni
3. A strategic scenery for the brazilian amazon................................................................ 45
Adherbal Meira Mattos
4. Amazon and rationalities: knowledge and/or acknowledgement............................. 55
Noli Bernardo Hahn
Parte II – Brazilian Environmental Law......................................................................... 53
1. From the state of war to the state of environmental well-being; indigenous
contribution to the armistice contract ......................................................................... 67
Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray
2. Some reflections about the environment and the necessity
of a union of efforts for its protection ..................................................................... 103
Florisbal de Souza Del’Olmo
3. The democratic rule of law and the environment ............................................... 117
Jacson Roberto Cervi
4. The traditional knowledge associated and the access to the genetic resources:
a study about the regulation of the provisional measure number 2.186-16/01... 131
Astrid Heringer
Parte III – International Law of the Environment.................................................. 121
1. The incorporation of the international treaties about environment
in the brazilian legal system.......................................................................................... 151
Valerio de Oliveira Mazzuoli
2. Protection to the environment in the european union: considerations
from the european community treaty and perspectives with the advent
of the european constitution .................................................................................... 171
Adriane Cláudia Melo Lorentz
3. Indian communities and bioprospection:
the formulation challange of international consensus............................................. 185
Taciana Marconatto Damo Cerv
Editorial
É com imensa satisfação que trazemos a público o segundo volume da Revista
Amazônia Legal, que pretende ser um novo fôro de discussões sócio-jurídico-ambientais sobre as questões amazônicas e agroambientais no Brasil e nos Estados
da região amazônica.
A publicação da Revista Amazônia Legal é fruto dos resultados alcançados pelo
grupo de estudos em Direito Agroambiental da UFMT, que conta com pesquisadores da Faculdade de Direito, bem assim de outras instituições nacionais e
internacionais parceiras de nossa Universidade.
Este segundo volume da revista traz as colaborações de Gizelle Prado da Silva
Fonseca, Suzethe Costa Souza, Cleusa Aparecida Gonçalves Pereira Zamparoni,
Alessandra Marchioni, Adherbal Meira Mattos, Noli Bernardo Hahn, Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray, Florisbal de Souza Del’Olmo, Jacson Roberto Cervi,
Astrid Heringer, Valerio de Oliveira Mazzuoli, Adriane Cláudia Melo Lorentz e
Taciana Marconatto Damo Cervi.
Esperamos que este segundo volume da Revista Amazônia Legal possa continuar
no propósito de ser o incentivo para o estudo cada vez mais crescente das questões
amazônicas e agroambientais em nosso país.
Registramos nosso agradecimento à Fundação Moore e à Universidade da Flórida, pelo apoio, e especialmente a Robert Buschbacher, coordenador do Amazon
Conservation Leadership Initiative.
Um agradecimento especial deve ser feito à Editora da UFMT, na pessoa da
Prof.ª Elizabeth Madureira Siqueira, cujo profissionalismo e dedicação constantes
fizeram desta publicação uma realidade.
Cuiabá, 1° de junho de 2007.
Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray
(Coordenador Geral)
Valerio de Oliveira Mazzuoli
(Diretor da Revista)
Parte I
AMAZÔNIA LEGAL
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 11-63
jul.-dez. 2007
Variabilidade climática em áreas
da amazônia mato-grossense
Gizelle Prado da Silva Fonseca; Suzethe Costa Souza1
Cleusa Aparecida Gonçalves Pereira Zamparoni2
Resumo
Abstract
O trabalho versa sobre a variação do clima nas
áreas da Amazônia mato-grossense. Para tanto,
faz uma análise geográfica da área traçando um
perfil latitudinal da temperatura e umidade do
ar na região. O estudo mostra a variabilidade
climática na área de estudo desde setembro de
2003, associando tais mudanças climáticas aos
desmatamentos, urbanização e outras ações
antrópicas.
The study is about the climate variation in the
Amazônia mato-grossense areas. For such, it
makes a geographic analysis of the area, designing a latitudinal profile of the temperature and
humidity of the air in the region. The study
shows the climatic variability in the area of study
since September 2003, associating such changes
to the climatic changes, deforestation and other
anthropic actions.
Palavras-chave: variabilidade climática. Amazônia mato-grossense. Temperatura. Umidade.
Desmatamento.
Keywords: Climatic variability. Amazônia
mato-grossense. Temperature. Humidity. Deforestation.
1 Mestres pelo PPG/GEO/ICHS/GEO, professores da UNEMAT/Cáceres/MT. [email protected]
2 Professora Doutora do PPG/GEO/ICHS/UFMT – Departamento de Geografia [email protected]
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 13-25
jul.-dez. 2007
14 – Parte I: Amazônia Legal
Introdução
Desde a formação do planeta e da constituição da atmosfera terrestre, o clima tem sofrido alterações ao longo das eras geológicas. Como o clima é muito
dinâmico, torna-se necessária a observação de seus principais elementos, como a
temperatura, a umidade e as chuvas, por um longo período de tempo, para se verificar se as variações de seu comportamento são realmente permanentes, portanto,
fatores de mudança climática, ou se são ciclos periódicos que tendem a se repetir
de tempos em tempos, tratando-se apenas de variabilidade do clima.
O fato é que o clima está em constante e permanente transformação, assim
como todos os demais sistemas da natureza. Entretanto, devem-se distinguir as
mudanças climáticas, que ocorrem na escala geológica do tempo (em milhares
ou milhões de anos) da variabilidade climática, de curta duração, que ocorre num
período de tempo perceptível na escala humana (em anos ou décadas).
Nesse sentido, Conti (2000) esclarece que a OMM – Organização Mundial
de Meteorologia, no ano de 1966, propôs um quadro de definições para designar
cada modalidade de variação nos estudos climáticos. Dessa forma, uma das diferenças entre mudança e variabilidade climática, é que a primeira é toda e qualquer
manifestação de inconstância climática, independente de sua natureza estatística,
escala temporal ou causas físicas e, a segunda, é a maneira pela qual os parâmetros
climáticos variam no interior de um determinado período de registro, expressos
através de desvio-padrão ou coeficiente de variação.
De acordo com Santos (2000), a variabilidade do clima a prazo mais curto
está adquirindo cada vez maior importância, como conseqüência das crescentes
demandas sobre os limitados recursos naturais e que tem sido manifestada pelas
desastrosas secas e por valores meteorológicos extremos registrados em muitas
partes do mundo. Portanto, a variabilidade se verifica através de valores climáticos extremos registrados nas mais diferentes regiões geográficas e que persistem
durante semanas, meses e, inclusive, anos.
A autora aborda que já há a conscientização de que o homem nunca poderá
deter as ocorrências de mudanças climáticas, porém, poderá atenuar as causas
que lhe são conferidas como desencadeadoras no processo através das principais
atividades humanas como urbanização, industrialização, agricultura, mineração,
pastoreio, irrigação, drenagem de pântanos, construção de lagos artificiais e represamento de rios.
Este fato é discutido por Abreu (2000) que diz que não se pode estimar com
precisão o quanto a atuação antrópica já pode ser apontada como causadora de
variabilidade climática e que é natural se pensar que essa atuação possa ser melhor
percebida próximo à fonte que a produz. Assim, o autor enfatiza que é possível que
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
Variabilidade climática em áreas da amazônia mato-grossense – 15
mudanças climáticas locais possam ser ocasionadas pela formação de aglomerados
urbanos ou pela modificação do meio ambiente, mas, contudo, ainda não se pode
conclusivamente avaliar os efeitos globais da ação antrópica.
Zamparoni (2000) reconhece que, na medida em que as sociedades, no percurso
do processo histórico vão desencadeando significativas alterações no ambiente e
por conseguinte no clima, recebem como resposta o enfrentamento de situações
adversas, tornado-se vítimas de suas próprias ações. Como o clima não possui
espaço de atuação com fronteira definida, esses dividendos poderão ser socializados
em escalas em nível local, regional e global.
Segundo Sudo (2000), os prognósticos sobre a mudança do clima em nível
mundial são alarmantes e, que embora apresente um forte conteúdo de incerteza,
a gravidade dessas incertezas aumenta muito nos níveis local e regional, tendo em
vista que o desequilíbrio atinge rapidamente esses níveis em virtude de mudanças
intencionadas introduzidas no sistema terrestre, como o desmatamento da Amazônia, aporte artificial de CO2 na atmosfera por queima de combustível fóssil, a
redistribuição de substâncias químicas no ar, na água, no solo.
Sendo assim, Lombardo (1994) enfatiza que há que se levar em consideração
todo o processo industrial e a exploração dos recursos naturais e o conseqüente
lançamento de gases e partículas poluidoras na atmosfera e seus efeitos no clima,
quando se tratar de mudanças climáticas provocadas pela ação antrópica.
Tarifa (1994) ressalta que as alterações climáticas resultantes das atividades
humanas devem ser avaliadas em função da magnitude e abrangência dos impactos
e modificações no clima tornando, dessa forma, necessário a caracterização dos
controles climáticos de macro escala, bem como suas interações com os ambientes
biogeo-físicos. Assim sendo, continua o autor, a realidade climática deve objetivamente, ser caracterizada por unidades com grandezas escalares diferenciadas, cujas
dimensões variam desde o nível zonal até o nível microclimático.
O autor explica que no nível zonal os principais controles climáticos são a
latitude, a altitude, a distância dos oceanos e a circulação geral da atmosfera e que
os climas zonais podem ser desdobrados em unidades menores (climas regionais)
onde outros parâmetros tais como o relevo, a freqüência, o regime e a sazonalidade
dos sistemas atmosféricos, estruturam unidades climáticas regionais.
Assim sendo, a latitude de um lugar, associada à altitude e ao relevo circundante,
determina a entrada de radiação solar e a duração e intensidade da iluminação e do
calor recebido do sol (Miller, 1976; Oke, 1987; Mcgregor & Nieuwolt, 1998).
O determinante fundamental do clima é a entrada de radiação solar que impulsiona os mecanismos da atmosfera. Todos os demais elementos do clima como: a
temperatura, os padrões de pressão, o vento e a precipitação são efeitos secundários
da diferença de aquecimento da atmosfera e da superfície da terra (Souza, 1997).
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
16 – Parte I: Amazônia Legal
Nas regiões tropicais, de baixas latitudes, os valores da radiação solar variam
pouco durante o ano e a diferença de duração dos dias e das noites é pequena,
quando comparada com as regiões de médias e altas latitudes (Ayoade, 1998).
Dessa forma, as variações térmicas e de umidade do ar que ocorrem nessas
regiões, estão, em grande parte, relacionadas aos efeitos da altitude e da circulação
atmosférica regional e às interações entre atmosfera e superfície. Portanto, ações
antrópicas, tais como, desmatamentos, modificações nos corpos de água, queimadas, implantação de atividades agro-pecuárias e de processos de urbanização,
podem produzir mudanças climáticas mais rápidas do que as originadas de outras
fontes internas ou externas do sistema climático.
Visando definir a influência da latitude, da altitude e do uso do solo nas variações
térmicas e de umidade em áreas da Amazônia Mato-grossense, o presente trabalho
pretende analisar o perfil latitudinal dessas variáveis, com medidas realizadas em
localidades do eixo da BR 163 e MT 320, desde Cuiabá até Alta Floresta, extremo
Norte do Estado.
A geografia da área
A Amazônia Mato-grossense, integrante da Amazônia Legal, compreende o
Centro Norte do estado de Mato Grosso, e estende-se na direção latitudinal, de
15º até 8º de Latitude Sul, localizando-se na zona tropical e interior do continente
sul-americano (Figura 1):
60°
52°
56°
8°
Alta Floresta
Itaúba
Sinop
Sorriso
Vera
12°
Lucas do Rio Verde
Diamantino
Rosário Oeste
Cuiabá
16°
1
130Km
LOCALIZAÇÃO
ESCALA
BR-163
MT-320
Hidrografia
Sede Municipal
Capital do estado
Municípios com experimentos
MT
N
Figura 1: Áreas de Estudo localizadas na Amazônia Mato-grossense
Fonte: Miranda e Amorim (2001)
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
Variabilidade climática em áreas da amazônia mato-grossense – 17
O relevo da região raramente ultrapassa 700 metros de altitude e tem como
principais acidentes o Planalto dos Parecís que se estende de Oeste para Leste e
a Chapada dos Guimarães, no Centro Leste do Estado. Na direção centro para
Norte, a vegetação de cerrado vai gradualmente dando lugar a Mata de Transição
que antecede a Floresta Amazônica presente no extremo Norte do Estado. A região
é drenada por rios pertencentes às Bacias Amazônica e Tocantins, nas direções
Norte e Nordeste e rios que correm para a Bacia do Paraguai, na direção Sul.
A região tem como característica marcante um clima tropical semi-úmido,
com temperaturas elevadas todo o ano e duas estações definidas pela distribuição
espacial e temporal das chuvas: uma estação seca (outono-inverno) e uma estação
chuvosa (primavera-verão). As condições térmicas regionais são modificadas de
forma significativa, quando recebe a influência das frentes frias originárias do Sul
do país. Nessas situações meteorológicas, a temperatura diminui bruscamente com
duração de alguns dias, caracterizando o fenômeno conhecido como “friagem”.
A região teve uma ocupação acelerada nos últimos anos e a vegetação nativa
foi retirada em grande parte, para a implantação de centros urbanos e atividades
tais como exploração da madeira, criação de gado e cultura de grãos (soja, milho,
arroz) além do cultivo do algodão. Dessa forma a cobertura vegetal, os solos, os
recursos hídricos sofreram alterações significativas que por sua vez, alteraram o
balanço de energia e o balanço hídrico da área, ocasionando mudanças nas interações entre a superfície e atmosfera, contribuindo para as mudanças climáticas.
Atualmente, o cultivo de grãos avança para o norte na direção de Alta Floresta,
nas bordas da Amazônia propriamente dita, onde tem sua presença anunciada pela
instalação de grandes armazéns preparados para estocagem de grãos.
É de fundamental importância destacar que estas mudanças na paisagem,
cobertura e uso do solo na Amazônia Mato-grossense, decorrentes da ocupação,
ocorreram sem estudos climáticos ou ambientais anteriores que mostrassem o
caminho de uso sustentável ou que observasse as relações entre ambiente e o
agronegócio (Bariou et al., 2002).
Uma vez que as características climáticas locais e regionais destas áreas são
pouco estudadas, bem como os efeitos que as transformações do espaço natural
podem ter nas características da atmosfera, o presente trabalho pretende contribuir com os estudos climáticos regionais analisando a variabilidade climática em
decorrência da latitude, altitude e mudanças no uso do solo.
Procedimentos metodológicos:
Para traçar o perfil latitudinal da temperatura e umidade do ar na área de estudo foram utilizados dados coletados em estações climatológicas convencionais
localizadas nos municípios de Diamantino e de Vera e dados coletados em abrigos
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
18 – Parte I: Amazônia Legal
meteorológicos instalados nos demais locais do experimento, uma vez que na
Amazônia Mato-grossense, a rede de estações climatológicas é insuficiente para
os estudos propostos.
As observações referentes à temperatura e umidade do ar foram realizadas em
área urbanizada das localidades de: Cuiabá, Rosário Oeste, Diamantino, Lucas do
Rio Verde, Sinop, Vera, Itaúba e Alta Floresta, que se localizam, de Sul para Norte,
desde o paralelo de 15º até 9º de Latitude Sul, no eixo da BR 163 e MT 320, em
locais com altitude média que varia de 150 metros a 450 metros, em relação ao
nível do mar. Tanto nos abrigos meteorológicos portáteis instalados contendo
psicrômetros convencionais (um termômetro de bulbo úmido e um termômetro
de bulbo seco), como nas estações climatológicas, as medidas foram tomadas diariamente, às 8h00, 14h00 e 20h00, no período de setembro de 2003 a setembro de
2004, pelos técnicos da EMPAER e do INMET. Os dados foram encaminhados
para o Laboratório de Climatologia, Depto. de Geografia/UFMT, onde foram
processados no software Excel para tratamento estatístico dos dados, elaboração
de planilhas, tabelas e gráficos com o intuito de melhor analisá-los.
Resultados e discussão
O período de observações teve início em setembro de 2003, final da estação
seca e início da estação chuvosa na região, sob condições de tempo meteorológico instável, com céu nublado, pancadas de chuvas, forte influência da Massa
Equatorial Continental, características que são típicas dessa estação na Amazônia
Mato-grossense.
As variações térmicas observadas no período de setembro de 2003 a junho
de 2004, no eixo Centro-Sul ao Norte mato-grossense, indicaram que a cidade
de Cuiabá, localizada a 15º de Latitude Sul e a 152 metros de altitude, era a mais
aquecida em relação às demais localidades. No mês de setembro de 2003, estação
chuvosa, em Cuiabá, foi registrado o valor térmico médio de 28.5ºC enquanto
que em Alta Floresta, situada a 9º de Latitude Sul e a 283 metros de altitude,
a temperatura média era de 27.1ºC; em contrapartida, durante a estação seca,
ocorreu o inverso, devido à entrada de frente fria nas áreas localizadas nas altas
latitudes; As menores médias de temperatura foram registradas, praticamente
durante todo o período, na cidade de Vera, situada a 12º de Latitude Sul e a 415
metros de altitude (Tabela 1):
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
Variabilidade climática em áreas da amazônia mato-grossense – 19
Tabela 1: Variações térmicas médias mensais observadas em áreas da Amazônia Matogrossense, no período de setembro de 2003 a junho de 2004
Municípios
Temp. Méd. Mens. (ºC)
Localização Geo.
Ano 2003
Ano 2004
Lat (º)
Alt (m)
Set.
Out.
Nov.
Dez.
Jan.
Fev.
Mar.
Abr.
Mai.
Jun.
Cbá
15º33’S
152
28,5
28,5
27,8
28,8
27,6
27,1
28,1
27,4
23,8
25,1
Rosário
14º43’S
174
-
-
-
29,3
27,2
27,3
28,6
27,6
23,7
24,1
Dtno
14º24’S
288
26,8
27,2
26,9
28,1
26,5
26,2
27,4
26,9
24,0
24,1
Lucas do
R ioVerde
13º04’S
380
27,0
-
-
-
-
-
-
-
-
-
Sinop
11º52’S
350
28,5
26,6
27,2
27,2
26,9
25,5
28,2
-
-
-
Vera
12º12’S
415
27,8
27,0
26,9
27,1
25,7
25,4
27,1
27,0
26,6
25,9
Itaúba
10º59’S
390
27,3
27,3
27,4
27,4
26,0
25,8
26,5
27,0
26,9
-
AltFlor
09º53’S
283
27,1
27,6
27,6
27,6
26,5
25,7
26,3
26,9
26,8
27,0
Fonte: Dados coletados nos abrigos instalados e nas estações climatológicas
As taxas médias mensais de umidade relativa do ar, em geral, variaram inversamente proporcional às temperaturas. Assim as localidades mais quentes eram
também as mais secas Entretanto, é provável que o uso do solo tenha influenciado
no teor da umidade do ar, pois as localidades de Vera, Itaúba e Alta Floresta são
circundadas por vegetação de floresta. As Figuras 2, 3, e 4 mostram relações entre
temperatura e umidade relativa.
Figura 2: Variações médias de temperatura e umidade, observadas em dezembro/2003
30
90
84
Temperatura do ar (ºC)
Umidade relativa do ar (%)
29
78
28
72
27
26
Cbá
66
Ros ário
Dtno
Sinop
V era
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
Itaúba
60
A ltFlor
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
ºC
%
20 – Parte I: Amazônia Legal
Figura 3: Variações médias de temperatura e umidade, observadas em janeiro/2004
28
92
90
Umidade relativa do ar (%)
27
Temperatura do ar (ºC)
88
26
86
84
25
24
Cbá
ºC
%
82
Ros ário
Dtno
Sinop
V era
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
Itaúba
80
A ltFlor
Figura 4: Variações médias de temperatura e umidade, observadas em março/2004
29
96
92
Umidade relativa do ar (%)
28
Temperatura do ar (ºC)
88
27
84
80
26
25
Cbá
ºC
%
76
Ros ário
Dtno
Sinop
V era
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
Itaúba
72
A ltFlor
Quanto às médias horárias da temperatura do ar, a localidade de Alta Floresta
mantinha-se sempre menos aquecida no horário das 20h00, e registrava os maiores
valores de temperatura nos horários das 14h, isto pode ser atribuído ao fato de
que no horário das 20h00, o uso do solo de Alta Floresta, com presença significativa de cobertura vegetal, influencia nos valores de temperatura amenizando-os,
enquanto que às 14h00, em geral, horário de mais intensa radiação solar, a influência da latitude é mais evidente, indicando os maiores valores de temperatura em
comparação com as demais localidades.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
Variabilidade climática em áreas da amazônia mato-grossense – 21
As Figuras 5, e 6 mostram variações térmicas médias horárias observadas em
localidades da Amazônia Mato-grossense:
Figura 5: Variações de temperaturas médias horárias mensais observadas em outubro/2003
34º C
32º C
Temperatura do ar (ºC)
30º C
28º C
08:00
14:00
20:00
26º C
24º C
22º C
Cbá
Dtno
V era
Sinop
Itaúba
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
A ltFlor
Figura 6: Variações de temperaturas médias horárias mensais observadas em janeiro/2004
32º C
Temperatura do ar (ºC)
30º C
28º C
26º C
08:00
14:00
20:00
24º C
22º C
20º C
Cbá
Ros ário
Dtno
Sinop
V era
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
Itaúba
A ltFlor
Na estação seca, as áreas localizadas nas altas latitudes como Cuiabá, Rosário
Oeste e Diamantino apresentaram os menores valores de temperatura (Figuras 7 e
8) devido à entrada de uma frente fria fazendo com que ocorresse quedas bruscas
na temperatura do ar (Figura 9):
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22 – Parte I: Amazônia Legal
Figura 7: Variações médias de temperatura e umidade, observadas em maio/2004
28
87
Temperatura do ar (ºC)
Umidade relativa do ar (%)
84
26
81
24
78
22
20
Cbá
75
Ros ário
Dtno
V era
Itaúba
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
ºC
%
72
A ltFlor
Figura 8: Variações médias de temperatura e umidade, observadas em junho/2004
27
77
74
Temperatura do ar (ºC)
Umidade relativa do ar (%)
26
71
25
68
24
23
Cbá
65
Ros ário
Dtno
V era
M u n icíp io s co m e xp e r im e n to
62
A ltFlor
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
ºC
%
Variabilidade climática em áreas da amazônia mato-grossense – 23
Figura 9: Imagens do Satélite GOES mostrando a entrada
de uma frente fria na região
A análise dos resultados evidenciou que a influência das baixas latitudes nas
condições térmicas da Amazônia Mato-grossense é, muitas vezes, superada pelas
condições da urbanização e presença da vegetação nativa. Além disso, embora as
variações de altitude sejam modestas, estas podem exercer influência na ventilação
e assim nas condições térmicas.
Estes fatos podem ser exemplificados comparando Cuiabá, cidade mais aquecida, localizada em maior latitude, com tecido urbano construído mais abrangente,
com as cidades de Vera, Itaúba e Alta Floresta, que embora se localizem em latitudes mais baixas, possuem temperaturas mais amenas garantidas pela urbanização
menos intensa e pela vegetação de floresta que circunda as áreas.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 13-25, jul.-dez. 2007
24 – Parte I: Amazônia Legal
Considerações finais
A avaliação da influência da posição geográfica de uma região, latitude e altitude,
nas suas condições térmicas e de umidade, permite conhecer outras fontes que
interferem no clima local e regional. Estes estudos mostraram que, nas regiões
tropicais, de baixas altitudes, as ações antrópicas são importantes na análise de
agentes modificadores do clima. Entretanto, outras variáveis climatológicas, além da
temperatura e da umidade relativa do ar, tais como, ventos, precipitações, entrada
de radiação solar, nebulosidade, balanço de radiação e balanço hídrico devem ser
avaliadas e associadas aos desmatamentos, urbanização e outras ações antrópicas,
para compreender as interações entre a superfície e a atmosfera e suas implicações
nas mudanças climáticas.
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o clima e a variabilidade climática. In: NETO, João Lima Sant’Anna; ZAVATINI, João
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Dinâmica de uma lógica perversa:
o caso da invasão xikrin às
dependências da cvrd em
outubro de 2006
Alessandra Marchioni*
Resumo
Abstract
Este trabalho analisa, com base nessa estrutura
de pensamento, um conjunto de fenômenos
pertencentes tanto ao plano concreto, sob
forma de normativas sociais e seus modos de
sanção, quanto ao plano abstrato, sob forma de
comportamentos e condutas manifestas entre
classes dominantes e comunidades indígenas.
Para tanto, toma como exemplo a invasão de 150
índios da etnia Xikrin às dependências do Núcleo
Urbano Carajás de propriedade da Companhia
Vale do Rio Doce, no Pará. Esse caso, e suas
repercussões jurídicas, apesar de aparentemente
isolado, porque ocorrido em terras adjacentes às
terras indígenas, escamoteia uma lógica capitalista perversa que se contrapõe aos interesses de
natureza sócio-ambientais.
This study, analyzes, based on this thought
structure, a set of phenomena belonging both
to the concrete plan, as social normative and
how sanction is applied, and to the abstract
plan, as behaviors and manifest conducts
between dominant groups and Indian communities. For this, there is the example of the
invasion of 150 Indians of the Xikrin ethnos to
the dependence of the Carajás Urban Nucleus
belonging to Vale do Rio Doce Company, in
Pará. This case, and its legal repercussions,
although apparently isolated, because it occurred next to the Indian lands, pilfers an evil
capitalist logic which opposes to the interests
of the socio-environmental nature.
Palavras-chave: Etnia Xikrin. Companhia Vale
do Rio Doce. Núcleo Urbano Carajás.
Keywords: Xikrin ethnos. Vale do Rio Doce
Company. Carajás Urban Nucleus.
* Doutoranda no Centro de Pós-Graduação em Direito da UFSC, bolsista CNPq.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 27-43
jul.-dez. 2007
28 – Parte I: Amazônia Legal
1 Introdução
A realidade social é tanto a realidade propriamente dita, quanto a definição de
dita realidade. Por isso, a realidade-real e a realidade simbólica coexistem inseparavelmente em uma relação de confirmação e reforço, de substituição e suplantação.
No espaço da realidade-real, grupos de interesse disputam o poder sobre o Estado,
que concentra o monopólio da construção da realidade simbólica.
Definir a realidade simbólica significa dizer como são e devem ser as coisas,
os objetos que são e serão conhecidos da/pela sociedade, denota selecionar o
que existe e não existe no mundo, ao mesmo tempo em que faz produzir efeitos
sociais.
Frente a uma realidade-real que é percebida pelos interesses hegemônicos
capitalistas como caótica, confusa e contraditória, o Estado contribui para a fabricação de uma realidade alternativa, clara e ordenada, baseada no princípio da
segurança jurídica.
O objetivo desse trabalho é analisar, com base nessa estrutura de pensamento,
um conjunto de fenômenos pertencentes tanto ao plano concreto, sob forma de
normativas sociais e seus modos de sanção, quanto ao plano abstrato, sob forma
de comportamentos e condutas manifestas entre classes dominantes e comunidades indígenas.
Para tanto, tomar-se-á o exemplo da invasão de 150 índios da etnia xikrin às
dependências do Núcleo Urbano Carajás de propriedade da Companhia Vale do
Rio Doce, no Pará. Esse caso, e suas repercussões jurídicas, apesar de aparentemente isolado, porque ocorrido em terras adjacentes às terras indígenas, escamoteia uma lógica capitalista perversa que se contrapõe aos interesses de natureza
sócio-ambientais.
Inicialmente serão apresentados dados sobre o caso concreto e as conseqüências jurídicas daí decorrentes. Em seguida, serão analisadas as relações de poder
subjacentes à sociedade moderna e suas formas de manifestação normativa e
discursiva. Por último, e a partir da identificação do objetivo principal da lógica
hegemônica capitalista, qual seja a expropriação das terras com fins econômicos,
serão detalhados os interesses em jogo tomando por base o caso concreto.
2 A invasão Xikrin às dependências da CVRD:
exemplo de uma lógica perversa?
Em notícia de 18/10/06 (Folha de São Paulo), a Companhia Vale do Rio Doce
(CVRD) informava que 150 índios Xikrin, da Terra Indígena Cateté, localizada nas
adjacências da área industrial da companhia, haviam invadido o Núcleo Urbano
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 29
de Carajás (PA), região onde se encontra uma das principais minas de minério
de ferro da empresa. Segundo o comunicado da empresa, a invasão que foi classificada como “violenta”, tinha razões desconhecidas. Segundo as informações
veiculadas pela imprensa:
Não é a primeira vez que os Xikrin ocupam o chamado ‘Núcleo Urbano de
Carajás’ para pressionar a companhia. Em novembro de 2005, cerca de 280
índios da comunidade invadiram essa instalação para pedir pelo aumento
dos benefícios que a companhia repassava para a tribo (p. B-7).
Em outro órgão de imprensa (O Estado de São Paulo), ao mesmo conjunto
de informações são acrescentadas as seguintes declarações da empresa:
A CVRD não compactua com tais métodos ilegais e não cederá às chantagens
de qualquer espécie reiteradamente usadas pela comunidade Xikrin; a CVRD
utilizará todos os meios legais para defender os seus direitos especialmente,
a integridade de seus empregados e o patrimônio da empresa (p. A-14).
A empresa alega que vem cumprindo o acordo celebrado com a comunidade, em junho de 2006, destinando à tribo cerca de R$ 9 milhões de reais
anuais. Ao mesmo tempo, face à invasão, a empresa teve um prejuízo orçado
em 500 mil toneladas de minério de ferro que deixaram de ser exportadas
(Radiobrás, 21/10/06).
À Agência Brasil - Radiobrás (21/10/06), em entrevista com o administrador
da FUNAI em Marabá (PA), apresenta a versão da Fundação: “O termo de compromisso firmado em maio deste ano, entre índios Xikrin e a Companhia Vale
do Rio Doce (CVRD), não previa a recusa de negociações sobre reajuste dos
repasses financeiros que a empresa faz mensalmente aos índios.” A FUNAI ainda
afirma que o documento previa a data de 11 de setembro como data limite para
a discussão de um índice de reajuste desses valores, não reajustados desde 2004,
mas a empresa teria se recusado a receber os índios.
Em 31/10/06, a Radiobrás noticia o cancelamento do repasse (verba de R$
569 mil reais) feito pela empresa aos índios (cerca de um mil indígenas) devido à
ocupação realizada pelos índios nos dias 17 e 18 de outubro. A nota da empresa
ainda destacava:
É importante destacar que é responsabilidade do Estado a garantia de recursos financeiros para atender às necessidades destas comunidades, atuando
através da FUNAI e de outras entidades governamentais1.
1 Fonte: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/10/31/materia.2006-10-31.0342803059/view em 12/03/07.
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30 – Parte I: Amazônia Legal
O conteúdo dessa justificativa assume as vezes de uma representação contra
o Estado brasileiro junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos (OEA), em nota à imprensa a empresa
resume a denúncia:
(....) b) o relato dos fatos demonstra como vem evoluindo a participação
financeira da Vale na assistência de inúmeras comunidades indígenas e,
ainda, de forma sucinta, descreve como ocorrem as últimas invasões às
instalações da empresa no Pará (índios Xicrin), no Maranhão (Guajara), e
em Minas Gerais (Krenak); c) a petição deixa claro que as invasões decorrem
da ausência de políticas públicas efetivas de proteção dos povos indígenas.
A ineficácia do Estado faz com que os índios, sem quaisquer projetos estruturantes dependam cada vez mais das verbas repassadas por empresas
privadas (...) (Agência Brasil – Radiobrás 13/11/06)2.
Diante do cancelamento da verba de custeio, a FUNAI e o Ministério Público
Federal decidiram entrar com Ação de Cautelar Inominada com a finalidade de
ver mantida a assistência ao povo indígena, que deve continuar a ser feita através
do repasse da verba.
As instituições federais defendem que, contrariamente ao vinculado na imprensa
pelos representantes da CVRD, o repasse da verba não se trata de um ato de mera
liberalidade, um “dever de consciência”, mas uma obrigação acessória decorrente
de um contrato administrativo de concessão de direito real de uso sobre a gleba
explorada pela companhia.
A Resolução 331 do Senado Federal, 05/12/86, art. 3°, alínea “e”3, o Decreto
presidencial, de 6 de março de 1997, que autoriza a concessão de direito real de
uso resolúvel de uma gleba de terras do domínio da União adjacente a província
mineral de Carajás, situada no município de Paraupebas, Estado do Pará4, e o
Convênio 453/89, firmado entre as comunidades indígenas, assistidas pela FUNAI, e a companhia, pelo qual esta última é obrigada a prestar vários benefícios
às comunidades, foram os dispositivos legais que embasaram a ação judicial do
procurador e do membro do Ministério Público Federal.
Os autores ainda fundamentaram a medida cautelar nos seguintes dispositivos
constitucionais: 1) art. 20, inc. XI, estipula que são bens da União as terras
2 Fonte: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2006/11/13/materia.2006-11-13.0622963908/viewem em 12/03/07.
3 “Art. 3º a concessão do direito real de uso sobre a gleba referida nesta resolução é por tempo indeterminado e tem validade a
partir da inscrição do ato concessivo que explicitará os direitos e deveres da concessionária, no registro de imóveis competentes,
contendo cláusulas obrigacionais de: (...) e) amparo das populações indígenas existentes às proximidades da área concedida
e na forma do que dispuser o convênio com a Fundação Nacional do Índio – FUNAI ou quem suas vezes fizer”.
4 O Decreto estabelece nos termos do art. 2º, V o seguinte: “Art. 2º A concessão é realizada por tempo indeterminado, destinando-se
a gleba à pesquisa, extração, beneficiamento, transporte e comercialização de recursos minerais, hídricos e florestais, constituindo
obrigações da concessionária.(...) V – o amparo das populações indígenas existentes nas proximidades da área concedida, na
forma do convênio realizado com a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, ou quem sua vezes fizer”.
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Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 31
tradicionalmente ocupadas pelos índios; 2) art. 231, reconhece aos indígenas
os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, independentemente de demarcação legal5; 3) art. 231 § 2°6, aos índios são garantidos
o usufruto exclusivo de riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nessas terras, outro seja, qualquer permanência de não-índios no território indígena
contraria a Constituição (íntegra dos artigos).
Em 04/12/06, a Justiça Federal, Seção Judiciária do Pará, manifesta-se favorável ao pedido da comunidade indígena, determinando que a CVRD promova o
restabelecimento do repasse dos recursos que vinha transferindo, utilizando, entre
outros, os seguintes fundamentos:
[...] A CVRD utiliza gratuitamente a gleba de terras adjacente à Província
Mineral de Carajás e a concessão é válida [...]. Diante desse quadro, a
coerência determina [...] o reconhecimento do direito de uso, em face da
autorização do Senado e do Poder Executivo, bem como das obrigações,
direitos e deveres a ele inerentes, arrolados no decreto presidencial. [...] A
rescisão contratual (em represália à invasão do complexo minerador),
independentemente de sua legitimidade, não exime a CVRD da obrigação
jurídica de fornecer amparo às comunidades indígenas, mormente se ainda
goza do direito real de uso sobre a gleba pertencente à União, concedida
em março de 1997. [...] O descumprimento da obrigação pode trazer danos
irreparáveis à Comunidade Indígena Xikrin, sobretudo porque os recursos
repassados são aplicados na saúde, educação e na própria subsistência dos
silvícolas integrantes da referida comunidade. Importa registrar, ainda, que
os valores repassados pela CVRD são reduzidos se comparados com o
crescimento e conseqüente lucro que a empresa está obtendo anualmente
com a exploração mineral. [...] (complemento nosso). (autos da AC n.
2006.39.01.001068-0 Justiça Federal-Seção Judiciária do Pará. Juiz Federal
Carlos Haddad).
Esse conjunto de fatos, e suas repercussões jurídicas, apesar de aparentemente
isolado, porque ocorrido em terras adjacentes às terras indígenas, escamoteia uma
lógica capitalista perversa que se contrapõe aos interesses de natureza sócio-ambientais. Esse tema reflete a co-relação de forças que disputam a possibilidade de
exercer atividades de mineração nas terras indígenas e o direito de propriedade, não
só de usufruto exclusivo para explorá-los, dos povos indígenas, respectivamente,
interesses da CVRD e da comunidade indígena Xikrin.
5 Art. 17, I da Lei Federal 6001/73: Reputam-se terras indígenas: I) as terras ocupadas ou habitadas por silvícolas, a que se
referem os art. 4, IV e 198, da Constituição.
6 Essa matéria já era assim disposta no Estatuto do Índio, Lei Federal 6.001/73, art. 22.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
32 – Parte I: Amazônia Legal
No “espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital lutam particulamente pelo poder sobre o Estado” (Bourdieu, 2004), a Constituição Federal parece
representar uma solução compatível entre ambos os campos (art. 231 § 2 e 3).
No entanto, o que se observa é uma completa distorção quando da análise dos
fatos concretos. Apesar de ter sido definido constitucionalmente que aos índios
caberiam o “usufruto exclusivo das riquezas do solo” em suas terras (art 231§2),
a ressalva sobre a possibilidade de efetivação da atividade mineraria, ou do aproveitamento “das riquezas minerais em terras indígenas”, contidas no subsolo (§3),
mesmo que sobre certas condições, vem se tornando a regra, haja vista a ausência
de regulamentação em lei especial (Baptista, 2005).
3 As relações de poder e suas formas
de externalização
Segundo Ribeiro (1978, p. 12), o conceito de poder se refere a uma ampla ordem de fenômenos, imbricados uns com os outros de uma forma tão estreita que
permeiam todas as dimensões da vida social, as quais só podem ser compreendidas
através de sucessivas aproximações realizadas em diferentes níveis de análise.
Entre esses níveis de análise, o conceito de poder encontra-se associado ao corpo
de instituições e normas jurídicas que regulam e sancionam o sistema econômico,
político, militar e ideológico fixando e garantindo os direitos, deveres e competências de seus membros (legalidade) dentro de uma ordenação sócio-econômica
específica, e de exercício legal da autoridade (legitimidade) através de um aparato
político-administrativo que coordena, articula e dirige todo o sistema social.
Num plano abstrato é identificado como sendo a capacidade que têm as classes
dominantes de ordenar a vida social como um sistema político que impõe sua
supremacia em várias esferas. Esta capacidade é alcançada graças à combinação
de distintos mecanismos de exploração econômica, de controle político, militar e
de doutrinação ideológica.
A partir dessa estrutura de realidade social, definir-se-á o objeto de análise
desse trabalho, ou seja, um conjunto de fenômenos pertencentes tanto ao plano
concreto, sob forma de normativas sociais e seus modos de sanção, quanto ao
plano abstrato, sob forma de comportamentos e condutas manifestas entre classes
dominantes e comunidades indígenas.
3.1 Mens legis e externalização normativa
Segundo Dussel (1993, p. 63), esses comportamentos e práticas dominantes
caracterizam-se pela mesma origem. A sociedade latino-americana como um todo
tende a tomar o “senso comum” europeu como parâmetro e critério para consRevista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 33
truir a sua racionalidade ou humanidade, enquanto que os indígenas não possuem
nenhum significado histórico.
Para o autor, a conquista luso-hispânica da América, em 1492, impôs a primeira “Vontade-de-poder” moderna sobre o índio americano, conferindo-lhe uma
“imaturidade culpável”. Desse modo, a dominação violenta imposta pelo Europeu
e exercida contra este Outro era vista como emancipação útil que desenvolve e
civiliza.
A esta definição social de realidade, seguiu-se a naturalização das práticas
das classes dominantes latino-americanas, de filhos de espanhóis e portugueses
(de “alma branca”), em relação aos índios e outros grupos oprimidos (Dussel,
1993).
Historicamente, nem o estado português, nem o estado brasileiro tiveram o
interesse de garantir os diretos às populações indígenas, mas apenas em normatizar
e regularizar as relações de exploração do colonizador em relação aos colonizados
(Colaço, 2003).
A gênese do conceito de tutela orfanológica aparece na transição do trabalho
escravo indígena para trabalho assalariado. A Carta Régia de 1798 determinava
que a tutela seria um privilégio e uma proteção para aquele índio que se tornaria
livre porque comprometido com o trabalho. Ao mesmo tempo, a Carta Régia que
declarava a guerra oficial aos indígenas e a sua escravização continuava em vigor
e seria revogada apenas em 1831. Segundo a autora:
[...] para evitar a evasão dos índios libertos e residentes nas povoações coloniais, e retorno ao seu estágio de “barbárie”, o governo colonial resolveu
inseri-los no Regime de Órfãos, para que se “desenvolvessem o amor ao
trabalho” (p. 79).
A Lei da Terra (1850) e o incentivo ao processo de imigração européia (a partir
de 1886) transformam a antiga relação de posse em propriedade. Paulatinamente,
os indígenas foram expropriados de suas terras que passaram a ser ocupadas pelos
colonos e pelas frentes pioneiras extrativas e agropastoris (Colaço, 2003).
Essa relação de dominação é adensada e reforçada pelo Código Civil de 19167,
que através da linguagem jurídica, incorpora e sofistica o velho atributo da “imaturidade culpável”, atribuindo ao indígena a proteção da tutela plena (abrangidos
os direitos de expressão política, acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho e à propriedade). Para tanto, os indígenas são classificados como relativamente
7 O Novo Código Civil reveste-se do aparente avanço no sentido de não mais classificar os silvícolas como relativamente
incapazes (incisos do caput do art. 4), porém continua a sujeitá-los ao sistema de legislação especial (§ único do art. 4). Isto
quer dizer que a omissão legislativa, na verdade, reproduz os mesmos efeitos normativos anteriores ao não incluir os indígenas
entre aqueles que detêm capacidade plena.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
34 – Parte I: Amazônia Legal
incapazes até que estejam adaptados à sociedade do país, quando a tutela estatal
cessará (art. 6, inc. III § único Lei 3071/1916).
Mesmo a atual Constituição Federal titubeia quando se trata da proteção integral
às terras indígenas. Se pela primeira vez na história das constituições nacionais ficam
suprimidas do texto as expressões assimilacionistas e integracionistas8, e assim o
índio passa a adquirir o direito à alteridade, respeitado em sua especificidade étnicocultural (art. 231 caput e § 1), por outro lado, fica mantido o direito de usufruto exclusivo
sobre os recursos naturais existentes nas terras tradicionalmente ocupadas (§ 2).
No entanto, tão grave quanto continuar a manter as terras (solo) indígenas sob
o regime de tutela (domínio) da União (art. 20, inc. XI), já que só a ela compete
demarcar, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (art. 231 caput), é fazer
remeter a gestão do subsolo9 em terras indígenas à forma que dispuser a lei especial (art. 231§ 3).
A mens legis constitucional, parte da premissa de que a mineração, apesar de
permitir o desenvolvimento econômico nacional, é uma atividade impactante e
deve ser realizada sob cuidados e restrições, podendo ser vedada, dependendo
das circunstâncias do caso concreto. Essas circunstâncias deverão estar previstas
em regulamentação ordinária que ainda não existe10.
De qualquer forma, o Projeto-Lei de Romero Jucá, caso venha a ser aprovado,
encontrará limitações explícitas, como por exemplo: a) torna exigível o processo
de consulta aos povos afetados sem detalhar como se dará, nem o alcance de
suas decisões; b) não condiciona a proposta de atividade mineradora ao Estudo
de Impacto Ambiental e respectivo Relatório; c) fixa a participação dos povos
indígenas nos resultados da lavra mineral no percentual mínimo de 2% incidente
sobre o “faturamento bruto resultante da comercialização do produto, obtido após
a última etapa do processo de beneficiamento adotado”, mas não define em que
condições os povos indígenas poderão monitorar esses faturamentos. d) restringe
o uso dos resultados da lavra mineral pelos povos indígenas aos seus dividendos,
enquanto o “principal”, depositado em caderneta de poupança, fica sob a tutela
da FUNAI e do Ministério Público Federal (Baptista, 2005).
Após o exposto, pelo menos duas reflexões sobre esse conjunto de normativas
são necessárias:
8 Constituição Federal de 1934, Projeto Constitucional de 1967 e Constituição de 1969, AI n.1, art. 8, inc. XVIII: Compete à
União legislar sobre: o) nacionalidade, cidadania e naturalização; incorporação dos silvícolas à comunhão nacional (Colaço,
2003, p. 86).
9 A gestão do subsolo que não se localize em terras indígenas é definida pelo art. 176 e § da CF.
10O governo retomou as discussões sobre a mineração em terras indígenas tendo como referência o Projeto de Lei (PL) do
Senador Romero Jucá, ignorando os debates já realizados desde 1989 e da proposta do Estatuto das Sociedades Indígenas
(Projeto de Lei 2057/91). Esse Projeto de Lei (1610-A/96) regulamenta o art. 176 §1 e art. 231 § 3 CF encontra-se em
tramitação na Câmara Federal. (Mesa da Câmara de Deputados: aguardando constituição de Comissão Temporária; CCP:
Aguardando Encaminhamento em 14/03/07).
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 35
1) elas não só configuram e conformam uma realidade social, como
respondem a determinados interesses sociais que terminam por articularse em visões operativas de mundo;
2) elas definem como são e devem ser as coisas, os objetos de conhecimento,
selecionam o que existe e não existe no mundo e se impõem ao conjunto
da sociedade como um conjunto de formulações de “sentido comum”,
como se fossem dadas naturalmente.
Na medida em que a realidade-real é ou pode ser confusa e contraditória, em
relação aos interesses hegemônicos, se faz necessário delimitar uma realidade
artificial que responda às necessidades de segurança desses sujeitos coletivos e
institucionais (Beltrán, 2003).
A reivindicação das nações indígenas a favor de território único e contínuo é
contemporânea ao período em que não havia contato com a sociedade ocidental.
Essas nações11 tinham um território definido e limitado por acidentes geográficos.
O conceito de “terra” apresenta-se com um bem material, espiritual e ilimitável.
Já o conceito de “território” é uma evolução do conceito de terra que adquiriu
os sentidos de limites e de planejamento atuais, mas que permanece associado às
representações cosmológicas inerentes às suas culturas. Os conceitos de “nação”,
“terra” e “território” estão interligados e são frutos do mesmo processo histórico
dos povos indígenas (Faria, 2003).
Nas palavras de Ivani de Faria, o conceito de “território” é para o Estado um
“suporte material onde se encontra a nação forjada a partir dos ideais burgueses
da revolução francesa” (2003, p. 125). Os conceitos de “nação”, “território” e
“autodeterminação” estão vinculados ao conceito de Estado Moderno, em que a
“terra” é um bem dotado de valor econômico.
Assim, o não reconhecimento do território indígena ou da propriedade indígena é uma postura ideológica conservadora e colonialista que recebe guarida
nas normativas estatais. Ao induzir a confusão entre unidade nacional e integridade
territorial, escamoteia intenções desenvolvimentistas para a Região Amazônica. A
competência exclusiva quanto à demarcação de terras indígenas reflete a “tese
da segurança nacional”, enquanto os atos omissivos e contraditórios de natureza
procedimental, que reduzem em número e em extensão aquelas terras12, evidenciam
uma estratégia para a expropriação.
11 Nação consiste em um povo que tem seu território, sua história e o poder de decidir sobre o seu destino (Faria, 2003, p.
124).
12 Exemplos de tentativas de fragmentação e redução de terras indígenas podem ser identificados no caso da demarcação
das terras das nações indígenas do Alto do Rio Negro, uma querela que perdurou de 1970 a 1996, quando as terras foram
delimitadas de forma contínua e única (Faria, 2003, p. 115).
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36 – Parte I: Amazônia Legal
3.2 “Truques de argumentação” e a externalização discursiva
Os textos jurídicos nacionais reforçam a vigência do pensamento europeu
sobre a inferioridade dos povos latino-americanos e africanos, ao mesmo tempo
em que reproduzem, no interior da própria sociedade brasileira, a mesma relação
de dominação, exercida pelas elites locais.
A obra Lições sobre a Filosofia da História Universal (apud Dussel, 1993) de Hegel
(1770-1831) representou, de forma pioneira, essa definição social de realidade
referentemente à América Latina:
Da América Latina e seu grau de civilização [...]. A inferioridade destes indivíduos é em tudo, inteiramente evidente. [...] (p. 171) No que diz respeito
aos seus elementos (físico-químicos e biológicos), a América ainda não
terminou sua formação (p. 179) (complemento nosso).
O sucesso da construção da realidade hegeliana não consistiu somente na
sua capacidade de definição das coisas do mundo, mas na recepção desse discurso
por instituições e sujeitos sociais capazes de conformá-la e retransmiti-la como
verdadeira.
Neste contexto, o Estado surge como o detentor de todo o monopólio do
uso legítimo da violência física (uso da força) e simbólica em um território determinado
sobre um conjunto de população correspondente (Bourdieu, 2004).
Para Bourdieu (2004, p. 100), dizer que as forças de coerção se concentram, é dizer
que certas instituições, com mandato para garantir a ordem, são progressivamente
separadas do mundo social, e que a concentração da força física passa pela instauração de um capital simbólico de reconhecimento e de legitimidade desse corpo de
agentes. Para tanto, o Estado (e seu instrumento de coerção externa: as Forças
Armadas) conta com uma cultura unificadora, que molda as estruturas mentais e
impõe princípios de visão e de divisão comuns, contribuindo para forjar o que se
chama de identidade nacional.
Assim, é capital simbólico o conjunto de crenças relativas à “pretensão indígena
em demarcar terras contínuas e alcançar uma nacionalidade própria e independente,
bem como a ocupação indígena em áreas muito extensas que impedem a integração
do índio à comunhão nacional”. Tais propriedades são percebidas e reconhecidas
pela sociedade que lhes atribui um valor (seja verdadeiro ou falso).
Ocorre que essa percepção e esse reconhecimento são influenciados por técnicas ou “truques de argumentação” que impedem a análise clara e obscurecem
as questões reais que merecem atenção (Carraher, 1983).
Um desses “truques” é a falácia da petição do princípio, em que o falante tem
interesse em convencer o ouvinte de que a sua proposição é a mais importante.
Essa suposição força a conclusões artificiais, que não conduzem necessariamente
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Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 37
ao resultado desejado, ou seja, à importância da questão proposta, isso ocorre
nos exemplos:
A questão indígena da Amazônia é a mais importante e perigosa ameaça à
soberania nacional naquela região. A região amazônica concentra cerca de
62% das populações indígenas do Brasil. A Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) estima que na Amazônia eles sejam cerca de 136.000 índios. [...]
Segundo outras fontes, como as Forças Armadas e Governos Estaduais
estes números estariam superdimensionados. [...] Há no país, cerca de 250
áreas indígenas demarcadas aproximadamente 40.000.000 de hectares,
equivalente a mais de 10% do território brasileiro. Cada índio brasileiro
tem em média, direito ao uso de 400 hectares. Nos Estados Unidos, essa
relação chega apenas a 18 hectares (Pires, 1999, p. 113).
Por meio de uma multiplicidade de processos, a Amazônia está sendo submetida a acelerada desnacionalização, em que se conjugam ameaçadores
projetos por parte de grandes potências para sua formal internacionalização com insensatas concessões de áreas gigantescas -correspondentes, no
conjunto, a cerca de 13% do território nacional a uma ínfima população
de algo como 200 mil índios (Jaguaribe, Folha de São Paulo, 19/02/2007,
Tendências e Debates, p. A3).
Em ambos os casos, a possibilidade de encontrar argumentos diferentes dos
que se deseja ver confirmados é necessariamente eliminada (v.g. números superdimensionados da FUNAI).
A metodologia força a validação da suposição, impossibilitando a descoberta
de novas informações sobre os mesmos valores (v.g. dados sobre a população indígena
de outros órgãos públicos ou organizações não-governamentais especializadas como o Instituto
Socioambiental).
Ao mesmo tempo, evidencia-se o uso do apelo à autoridade que consiste
em aceitar como verdadeira uma idéia, porque uma autoridade renomada a defende
(v.g. Forças Armadas e Governos Estaduais)
Essas estratégias de persuasão não fugiram à observação do jornalista M. Leite,
quando se refere ao artigo de Jaguaribe:
[...] Sem citar um só exemplo concreto, Jaguaribe dá curso a uma teoria
conspiratória de fundo militar-nacionalista. [...] De um intelectual de seu
porte no campo das humanidades, seria de esperar que citasse também
algum colega antropólogo em apoio à tese, não só o “Jornal do Brasil” e a
Abin, Agência Brasileira de Inteligência (que não se perca pelo nome). [...]
Jaguaribe se rebaixa até o nível do senso comum quando compara os 13% do
território nacional reconhecidos como terras indígenas (TIs) a “uma ínfima
população de algo como 200 mil índios” (na realidade, são 480 mil almas
nas TIs, segundo cômputo do Instituto Socioambiental-ISA publicado no
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
38 – Parte I: Amazônia Legal
volume “Povos Indígenas no Brasil 2001/2005”) (Leite, Folha de São Paulo,
Caderno Mais! 25/02/07).
Por outro lado, as nações indígenas são freqüentemente vítimas do chamado
apelo popular. No caso da invasão Xikrin às dependências da CVRD, os indígenas
foram estereotipados como seres reincidentemente “violentos”, foras-da-lei, que
utilizam métodos “vis”, como chantagens. A veiculação dessas idéias pode ser
observada na manchete e no conteúdo das notícias de jornal:
Índios invadem área da Vale do Rio Doce em Carajás, no Pará
Invasão do Núcleo Urbano de Carajás foi classificada pela Vale como
“violenta”
[...] A CVRD não compactua com tais métodos ilegais e não cederá a
chantagens de qualquer espécie. [...]
(O Estado de São Paulo, 18/10/06, A-14)
[...] Não é a primeira vez que os Xikrin ocupam o chamado “Núcleo Urbano
de Carajás” para pressionar a companhia. [...]
(Folha de São Paulo, 19/10/06, B-7)
A CVRD, em contrapartida, é associada a projetos de desenvolvimento nacional
e à boa conduta social, tendo a “lei” a seu favor (vg. Quebra de contrato, cláusula de
cancelamento do acordo de repasse de verbas):
[...] Segundo a empresa aproximadamente 500 mil toneladas de minério de
ferro deixaram de ser exportadas devido a ocupação. [...] A empresa é uma
das maiores mineradoras do mundo e repassa R$ 9 milhões, anualmente, à
comunidade indígena (Radiobrás, 21/10/06).
Como foi exposto, esses “truques de argumentação” obscurecem o debate
sobre a questão central, qual seja a possibilidade de exercer atividade mineradora
nas terras indígenas.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 39
4 Expropriação para quem?
Determinando interesses em jogo
Segundo Fernando Baptista (2005, p. 125) existem forças sociais antagônicas
que disputam a possibilidade da mineração em Áreas Indígenas (AI), desde antes
da Constituição de 1988.
Na lógica do mercado especulativo de prioridades de pesquisa de lavra, a perspectiva de uma norma constitucional permissiva no sentido de afastar o princípio
da restritividade (art 231§ 3), causou uma avalanche de requerimentos de pesquisa
que lotearam o subsolo das AI.
A maior parte dessas empresas de mineração almeja garantir uma valiosa reserva
de mercado, prioridade que se consubstanciará com uma favorável regulamentação ordinária. Segundo os dados do Instituto SocioAmbiental (ISA) aos 1.835
requerimentos de pesquisa de antes da Constituição, juntaram-se outros 2.792
protocolos. Por certo, esses interesses minerários não geram qualquer “direito
adquirido” individual ao interessado, mas apenas uma “expectativa de direito”.
No entanto, valem como “moeda de troca” num mercado que define prioridades
de futuros investimentos.
O Projeto-Lei de Romero Jucá, tomado como base para as discussões sobre a
regulamentação, assegura a prioridade aos requerimentos de pesquisa protocolados
antes da Constituição, deixando a salvo do novo regime legal, que prevê a exigência
de uma licitação, todos os 1.835 requerimentos protocolados.
Neste contexto, a Área Indígena (AI) dos Xikrins (439.151 ha.) está localizada
nas proximidades do núcleo do Projeto Ferro-Carajás, epicentro do programa de
desenvolvimento denominado Grande Carajás. Trata-se de uma área extremamente
cobiçada por garimpeiros e empresas de mineração, em virtude das legendárias
riquezas que existiriam no subsolo.
Essa área esta cercada de grandes projetos de colonização particular e oficial,
de projetos agropecuários, de empresas de extração de madeira que freqüentemente realizam incursões no seu interior, além de grandes áreas de pretensão da
CVRD.
A pluralidade de interesses envolvidos nos limites da AI Xikrin do Cateté
pode ser assim exemplificada: 1) a extremo Norte limita-se com a Gleba Aquiri
(140.000 ha) e encontra-se na área de jurisdição da Unidade Executiva de Tucuruí; 2) a Nordeste, confronta-se com uma das glebas que constituem a área de
pretensão da CVRD (Gleba Águas Brancas- 217.000 ha); 3) o limite à Leste, a AI
é confinada pela Gleba Paraupebas (180.000 há) que, como a anterior, localizase integralmente no polígono de interesse da CVRD; 4) a Oeste, a AI limita-se
com a Gleba Carapanã (400.000 ha), em que se encontra o Projeto Tucumã da
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
40 – Parte I: Amazônia Legal
empresa Andrade Gutierrez; 5) enquanto que no limite Sul, procedeu-se ao
assentamento de colonos que localizam-se entre este limite e a rodovia PA- 279
(Ricardo, 1985, p. 38).
Apesar das evidências, essas informações são raramente divulgadas nos meios
de comunicação, o que não contribui para uma análise crítica pela sociedade.
Ainda com relação a delimitação definitiva da AI, finalizada em 1977, concluiuse que foram subtraídos 13.000 ha. no limite Oeste, em relação à proposta apresentada pela antropóloga Lux Vidal durante o processo de demarcação. A exclusão
das cabeceiras do Rio Bepkamrekti, área tradicional e efetiva de caça, é parte da
Serra do Puma onde a empresa mineradora Serras do Sul (à época subsidiária da
INCO) já havia realizado pesquisas de lavras entre 75/77. (Ricardo, 1985:142)
Ressalta-se que em dia 11 de agosto de 2006 a diretoria da CVRD anunciou a
compra da Canadá INCO Limited, líder do mercado mundial de níquel, por cerca
de 17 bilhões de dólares.
Ao fim, os interesses minerários -incluídos os requerimentos de pesquisa e os
requerimentos de lavra garimpeira-, e os títulos minerários -abrangidas as autorizações de pesquisa, os requerimentos de lavra -que pressupõem o processo de
pesquisa já terminado - as concessões de lavra e os licenciamentos-, incidentes na
Terra Indígena Cateté somam 128, correspondendo a uma área de 431.918 ha. ou
99% da área da AI dos Xikrins (Instituto Socioambiental, 2005, p. 49).
Segundo os dados do ISA sobre Mineração em Terras Indígenas na Amazônia
(2005), a CVRD possui o único título minerário de concessão de lavra em terras
Xikrin, e nenhum interesse minerário direto na área. Mas, um observador atento, que
se debruça sobre esses dados, concluirá que dos 7 (sete) títulos restantes incidentes
sobre a área, 2 (dois) pertencem a subsidiárias da CVRD (Mineração Jarauçu Ltda.
e Mineração Onça-Puma Ltda.), e entre as 8 (oito) empresas que protocolaram requerimentos de pesquisa, 6 (seis) são subsidiárias da CVRD (Mineração Guimarães
Ltda., Mineração Guariba Ltda. Mineração Araguaia Ltda., Rio Doce Geologia e
Mineração S. A., Mineração Andirá Ltda. e Mineração Jarauçu Ltda.). Entretanto,
esses dados não aparecem no sítio oficial da empresa (www.cvrd.com.br).
Em contra-partida, na página oficial da CVRD, são encontrados dados sobre
o seu investimento social. Conforme a empresa, “faz parte da política de desenvolvimento social da Companhia Vale do Rio Doce a promoção da melhoria da
qualidade de vida das comunidades com as quais interage”.
A utilização de chavões estereotipados, do tipo “respeito aos costumes e culturas
locais”, é associada à prática “transparente e ética” dos programas que beneficiam
cerca de “7 mil índios, em oito comunidades” normalmente apoiando “grupos
indígenas que vivem no entorno das minas de Carajás e ao longo da Estrada de
Ferro Carajás”.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 41
Também neste caso, não deverá haver dúvidas quanto à ambigüidade no significado dos termos “transparência” e “ética”. Com certeza eles não se aplicam
para os casos concretos que envolvem a empresa, como na fixação unilateral dos
termos de compromisso ns. 02 e 03/2006, impostos à comunidade sem o reconhecimento da FUNAI; ou na negligência com que atuou diante do descumprimento
das próprias propostas de revisão do reajuste.
Junto à mídia internacional o processo de influência é mais sutil, baseando-se na
identificação do telespectador com a empresa e suas aspirações sociais e materiais,
a exemplo do “apoio voluntário de R$ 25 milhões ao ano a 3.500 índios”13.
Associando-se à imagem da responsabilidade social junto a “500 municípios
brasileiros, beneficiando três milhões de pessoas”14, a empresa tenta afastar-se
das suspeitas que ainda pairam sobre a sua privatização. Passados quase dez anos,
muitos críticos insistem que a CVRD teria sido vendida abaixo de seu valor real.
A “crise de confiabilidade” quanto à legalidade do processo de privatização em
1997 refletiu-se nas mais de 100 ações judiciais propostas e ainda não julgadas15.
Em meio às complicações judiciárias e aos compromissos financeiros ainda
por saldar16, a CVRD denuncia, junto à Organização dos Estados Americanos,
o governo brasileiro por descumprimento de uma “política pública efetiva de
proteção aos povos indígenas” (item 1, p. 2).
A frase de H. Bicudo, procurador da CVRD junto às instâncias internacionais:
“Quem deve dar assistência aos índios é o Estado Brasileiro”17, mais parece representar a tentativa desesperada da empresa em retomar o rumo de sua política
econômica expansionista. Numa perspectiva de realidade caótica, repassar o ônus
a um terceiro, que de fato, só lhe beneficia, talvez ajude a amenizar os ânimos!
13 Fonte: http://www.publico.clix.pt/shownews.asp?id=1273921&idCanal=10 em 12/03/07.
14 Fonte: www.dw-world.de/dw/article/0,2144,2229953,00.html em 12/03/07.
15 Idem.
16 Em artigo denominado Companhia Vale do Rio Doce (1), 27/02/07, Paula Beiguelman atenta para o fato de que a compra
da INCO eleva o passivo da empresa para 23 bilhões de dólares. Fonte: http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=13944
em 12/03/07.
17Idem.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
42 – Parte I: Amazônia Legal
5 Considerações finais
Apesar do tema da proteção dos direitos indígenas, especificamente direito
ao aproveitamento dos recursos da lavra e riquezas minerais em terras tradicionalmente ocupada pelos índios, ter sido objeto de discussões na Comissão de
Assuntos Sociais da Assembléia Constituinte (Subcomissão das Minorias), vindo
a incorporar-se no texto constitucional em definitivo, seus resultados podem ser
questionados.
O direito constitucional brasileiro, em especial na disciplina dessa matéria,
reflete as contradições internas enfrentadas pelo Estado Moderno. Na medida
em que define como bens da União (art. 20) as terras (o solo) tradicionalmente
ocupadas pelos índios (inc. XI) e os recursos minerais, inclusive os do subsolo
(inc. IX), mas possibilita a pesquisa e o aproveitamento desses recursos através
do contrato de concessão (art. 176), inclusive em terras indígenas (art 231 § 3)
reprisa as convicções do Estado Moderno Clássico. Nesse Estado de Direito, o
conceito de “território” é um suporte material onde se encontra a nação, que é
forjada a partir dos ideais burgueses da revolução francesa, enquanto a “terra” é
um bem dotado de valor econômico e, portanto, comercializável.
Essa lógica, aparentemente esquisofrênica, escamoteia uma realidade artificialmente construída por interesses hegemônicos capitalistas que se contrapõe aos
de natureza sócio-ambientais. Essa co-relação de forças disputam a possibilidade
de exercer o monopólio do poder, que se impõe seja sob a forma normativa ou
coercitva, e simbólica.
No caso concreto da invasão Xikrin às dependências da CVRD e seus efeitos,
a iniciativa da companhia em opor uma justificativa baseada numa “desobrigação
contratual”, classificando o compromisso de assistência às comunidades como um
mero “dever de consciência”, combinada à instrução da denúncia do Governo
brasileiro perante uma organização internacional, objetivando transferir o ônus
obrigacional da proteção indígena ao Estado, demonstram a incapacidade das elites
locais em superar os limites de sua própria definição segura de mundo.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Dinâmica de uma lógica perversa: o caso da invasão Xikrin às
dependências da cvrd em outubro de 2006 – 43
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Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 27-43, jul.-dez. 2007
Um cenário estratégico para
a Amazônia brasileira
Adherbal Meira Mattos1
Resumo
Abstract
O artigo analisa vários aspectos da Amazônia
brasileira ligados a questões estratégicas, como
o avanço acelerado de ciência e tecnologia em
escala internacional, com destaque para a biotecnologia, a retomada do crescimento da economia
brasileira, o reequilíbrio do Estado, com base
na recuperação da capacidade de investimento
e o crescente desenvolvimento da consciência
ecológica mundial.
The article analyzes several aspects of the Brazilian Amazon linked to strategic issues, such as
the accelerated advance of science and technology in international scale, giving emphasis to
the biotechnology, the retaking of the Brazilian
Economy, the re-balance of the State, based
on the recovery of the investment skill and the
increasing development of the world ecological
awareness.
Palavras-chave: Amazônia brasileira. Estratégias. Biotecnolocia. Economia brasileira.
Keywords: Brazilian Amazon. Strategies. Biotechnology. Brazilian economy.
1 Titular de Direito Internacional da UFPA.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 45-54
jul.-dez. 2007
46 – Parte I: Amazônia Legal
1 Introdução
A Amazônia tem sido objeto de inúmeras pressões internacionais, a exemplo
do Instituto da Hiléia Amazônica/48 ou do Projeto dos Grandes Lagos/60, do
Hudson Institute. O Tratado de Cooperação Amazônica/78 normatizou os aspectos materiais, formais e organizacionais da Pan-Amazônica – zelando pelo meio
ambiente, soberania e desenvolvimento – mas não conseguiu desenvolver uma
estratégia efetiva para a Região, como um todo, ou para a Amazônia Brasileira, o
que ora integra os objetivos da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica).
O Projeto Calha Norte/85 procurou complementar, como norma nacional,
aquele pacto intra-regional, analisando os fatores adversos (vazio demográfico,
contrabando), as necessidades fundamentais (marcos limítrofes, política indigenista), os espaços diferenciados (Faixa de Fronteira, Núcleo Regional e Zonas
Ribeirinhas) e projetos especiais (consulados) da Amazônia Brasileira. Também
não atingiu seus objetivos fundamentais. Falta, também, a total implantação do
SIVAM/SIPAM. E as pressões internacionais continuaram, vindas do BIRD, do
BID, das ONG’s, de países integrantes do G-7, e de conferências e convenções
internacionais, procurando atingir a soberania nacional através de noções de patrimônio comum da humanidade, e de soberania relativa para a Amazônia.
Diversos Programas foram elaborados, sem chegar, contudo, a uma real efetivação, sendo que, muitos, não saíram, sequer, do papel: Programa Regional de
Reforma Agrária; Programa Regional de Levantamentos Básicos; Programa de
Apoio às Migrações Internas e Programa Regional de Crédito Rural e Industrial;
Programa Nossa Natureza, destinado a rever a legislação ambiental do País, a
criar novas reservas florestais e um plano de educação ambiental e Programa
FLORAM – de caráter mais amplo – tratado do reflorestamento para reversão
do efeito estufa, do uso energético da madeira.
A ex-SUDAM traçou uma estratégia de desenvolvimento regional nos “Macrocenários da Amazônia – 2010”, através de uma Política Regional, fortalecimento dos
órgãos de planejamento e desenvolvimento regional, articulação dos instrumentos
financeiros existentes e atração de novos investimentos, de uma Política Ambiental
(ZEE, novas reservas biológicas e extrativistas e controle do desmatamento) e de
uma Política de Ciência e Tecnologia (centros de pesquisa e recursos humanos). Tal
estratégia continua atual e capaz de criar um Plano de Desenvolvimento, através
de Diretrizes Globais (preservação e conservação do meio ambiente, integração
nacional e crescimento econômico, de Políticas Centrais (ambiental, espacial e
sócio-antropológica) e de Programas Prioritários (emprego, investimentos e elevação da renda). Trata-se de Projetos Estratégicos que envolvem regulamentação
ambiental, desenvolvimento científico e tecnológico, infra-estrutura econômica e
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
Um cenário estratégico para a amazônia brasileira – 47
setores produtivos, exigindo gestão ambiental nacional, hidrovias, portos fluviais,
estradas (Br-163, Br-364, Br-317 e Br-369), matrizes energéticas, hidrelétricas e
termoelétricas, turismo ecológico etc.
2 Cenários
Para a Amazônia Brasileira, o cenário desejado baseia-se em quatro grandes
hipóteses: 1- Avanço acelerado de ciência e tecnologia em escala internacional,
com destaque para a biotecnologia; 2- Retomada do crescimento da economia
brasileira; 3- Reequilíbrio do Estado, com base na recuperação da capacidade de
investimento, e 4- Crescente consciência ecológica mundial.
No contexto desse Cenário podemos incluir os seguintes itens: Modelo de
desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente auto-sustentado; Zoneamento econômico-ecológico, compreendendo áreas demarcadas (atividade extraída,
empresas, garimpeiros, indígenas e reservas ecológicas); exploração mineral controlada pelo Estado; e tecnologias que não degradem a natureza; Amplo sistema
de comercialização, para o escoamento da produção regional dentro e fora do país.
O Pacto Amazônico jamais atingiu tal desideratum, pois não ensejou a criação
de um MERCONORTE, detendo-se, apenas, num pequeno comércio a varejo
de produtos locais.
Esse sistema ampliado de comercialização, contudo, poderá trazer grandes
benefícios à Amazônia e ao Brasil, através de negociações com o NAFTA, ALCA,
UE e Grupo Andino; articulação da Amazônia com o resto do País, gerando maior
equilíbrio econômico-social, mudando o quadro da Região de mera exportadora de
matérias-primas e de importadora de produtos industrializados e parque industrial
dinâmico, com o aproveitamento de matérias-primas regionais, adotando modernas
tecnologias, sem agressão ao meio ambiente, gerando emprego, desenvolvendo o
comércio, um sistema de transporte multimodal e mais energia, através de hidrelétricas sem impacto ambiental.
O Cenário Normativo (ou desejado) é um cenário estratégico, um projeto
articulado e viável para a Amazônia. Um desejo tecnicamente plausível e politicamente sustentável pelos atores da Região, a qual, no ano 2010 – segundo os
Macrocenários elaborados pela ex-SUDAM – será definida como uma sociedade
coerente com a sua base sócio-cultural e ecológica, moderna e aberta mundialmente, “com um espaço garantido de autonomia e de assimilação dos avanços da
ciência e tecnologia mundiais para o seu próprio desenvolvimento, centrado no
seu grande potencial de recursos naturais, especialmente na biodiversidade”. Sua
trajetória denota positivas modificações nas variáveis População, PIB, Processo
Tecnológico, Exploração de Recursos Naturais e Controle Ambiental, Situação
Indígena, Situação Social, Qualidade do Meio Ambiente etc. Por exemplo, quanto à
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48 – Parte I: Amazônia Legal
Situação Indígena, passando-se de conflitos para a autonomia das nações indígenas,
e quanto ao Processo Tecnológico, passando-se de uma modesta transferência
para uma elevada transferência de tecnologia (de produção e de projetos), com
alta capacitação e inovação endógena seletiva.
O Cenário Normativo (Desejável) exige ainda, justa distribuição de renda,
um sistema de saúde descentralizado, um sistema de educação ampliado, novos
pólos agropecuários, desenvolvimento integrado e, logicamente, segurança. Isto
envolve aumento de emprego, melhores salários, maior renda per capita, erradicação do analfabetismo, ampliação do ensino profissionalizante, universalização do
ensino básico, unidades sanitárias móveis no interior, saneamento na cidade e no
campo, superação de déficits habitacionais, planejamento, coordenação, controle,
cooperação e integração.
O Cenário Normativo (Desejado) enfatiza, ainda, a atividade de mineração.
O mapeamento do subsolo da Amazônia revela importantes Projetos de diversas
substâncias minerais: Cia. Brasileira de Bauxita (bauxita refratária); Caulim da
Amazônia (caulim); Mineração Rio do Norte (bauxita); Salobo Metais (cobre);
Ferro Carajás (ferro); Itamaguari (gipsita); Rio Capim (caulim); Calcário de Aveio
(calcário para cimento e calcário dolomítico); Manganês/Carajás (manganês); e
Mineração Sta. Elina (ouro). No plano da exploração mineral, a rápida expansão
do garimpo trouxe, todavia, conseqüências negativas, tais como degradação ambiental; conflitos com as populações indígenas e, no caso da mineração organizada,
condições precárias de trabalho; descaminho do ouro; depredação dos depósitos;
emissão de mercúrio para o meio ambiente; assoreamento dos rios, lagos e igarapés
etc. A maior degradação, porém, é a que ocorre no meio social, pois o garimpo
não tem relação de emprego, não tem moradia, não tem saneamento básico, está
sujeito a toda a espécie de doenças, com destaque para a contaminação mercurial.
Na indústria extrativa mineral (mineração organizada) as agressões sociais são
menores, em face do controle das leis trabalhistas. O problema se agrava pelos
impactos ambientais causados pela exploração madeireira, tais como na qualidade
do solo, na alteração na flora, na fauna e na socioeconomia, com destaque para
os conflitos com as populações indígenas.
Daí emana a necessidade de novas tecnologias para permitir a exploração de
recursos naturais, sem agressão ao meio ambiente, que compreendem fatores
endógenos potencializadores da penetração do capital na Região (minérios, terra,
água, gás natural, petróleo e toda a biodiversidade tornam a Amazônia disponível
para a capital); o sistema produtivo regional gerador de economias (exploração
de recursos já conhecidos e descobertas de novas reservas gerando um novo potencial de recursos); e necessidade de novas tecnologias e de um novo modelo de
desenvolvimento. A Amazônia carece da incorporação tecnológica ao seu processo
produtivo, contando o sistema regional de C & T com poucas instituições voltaRevista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
Um cenário estratégico para a amazônia brasileira – 49
das e pesquisas. Urge um novo modelo de desenvolvimento com mudanças na
estrutura produtiva, no padrão tecnológico e na distribuição espacial e social dos
custos e benefícios do crescimento econômico, para promover o desenvolvimento
regional, com equidade social e conservação dos recursos naturais.
A estratégia adotada combina a vocação natural da Região com as mais avançadas fronteiras do conhecimento, regulando o acesso internacional ao banco
genético da Área, através de um sistema de controle das pesquisas sobre a biodiversidade amazônica, dominando os conhecimentos gerados na própria Região,
utilizando-os, produtivamente, para transformar, na própria Região, o material
biótico em produtos de alto valor agregado e elevada demanda internacional. Daí,
a necessidade de um programa coerente de pesquisa em C & T e de extensão de
serviço à comunicação, para o que é indispensável a participação das Universidades da Região. Os reflexos sociais dessa parceria são positivos, não apenas para
prestar contas à sociedade dos investimentos realizados, mas, também, para servir
de orientação na correção de distorções e na definição de novas estratégias de atuação. Além disso, novas profissões técnicas surgirão, com larga oferta de emprego,
inaugurando um sistema realista de ensino para o desenvolvimento.
Para a implantação desse Cenário, temos, em primeiro lugar, o problema de
ciência e tecnologia, que envolve investimentos diretos, nossa infra-estrutura, a
questão do emprego (inclusive o emprego informal que ora ocorre em Belém),
trabalho escravo (hoje condenado pelo Estatuto de Roma, que criou o Tribunal
Penal Internacional – TPI), fato negativo que ora estamos vivenciando na Amazônia Brasileira.
Em segundo lugar, a criação e manutenção de um amplo sistema de comercialização para o escoamento da produção regional, o que leva em conta a revisão do
Pacto Amazônico, principalmente agora, com o estabelecimento da Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Lembro também, o desenvolvimento
comercial da Região Amazônica junto ao MERCOSUL e futuramente dentro da
própria ALCA, mas de uma ALCA democraticamente planejada e não esse draft
norte-americano ora em discussão, sem falar no CARICOM e Grupo Andino.
Em todos esses setores, deve o Pará incluir, de modo mais enérgico, sua produção,
porque, lá no Sul e no Sudeste, quando se fala em MERCOSUL, parece que se está
falando do comércio da Argentina com o Rio Grande do Sul, como se o Norte não
fosse, também, Brasil e parte do MERCOSUL (por isso, aliás, sempre propugnei
pelo estabelecimento de um MERCONORTE...), devendo nossas exportações ser
feitas com valor agregado para que não sejamos simples exportadores de matérias
primas. Paralelamente, deve a Região patentear suas riquezas (cunani, urucum,
couro vegetal, veneno de cobra), já que o Brasil é parte do Acordo TRIPS, da
OMC, sobre a matéria, elidindo biopirataria e desenvolvendo serviços médicos
regionais, ao invés de importar médicos de Cuba para a Amazônia.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
50 – Parte I: Amazônia Legal
Em terceiro lugar, alavancar os eixos dinâmicos da Amazônia, como a mineração, desenvolvimento de nossos projetos de bauxita, caulim, cobre, ferro, calcário,
ouro, manganês, estanho, nióbio etc., garantindo, inclusive, nossa Soberania e a
segurança da Região. Acredito que todos esses projetos precisam de novos investimentos diretos para a produção e de pesquisas geológicas, além de um diálogo
mais energético com certos países do G-7. É o caso da França, que acusa o Brasil
de permitir o uso de mercúrio nos rios da Amazônia, mas que ostensivamente
vende mercúrio para o País. É, também, o caso do Reino Unido, que acusa o
Brasil de esgotar o estoque de mogno, mas que o compra dos Caiopós, sem pagar
impostos ao Brasil.
Outro eixo dinâmico é o da pesca, mas o orçamento federal de 2004, por
exemplo, só dedicou setenta e cinco milhões de reais para a pesca em todo o
território nacional, quantia que equivale mais ou menos à metade do preço do
avião presidencial que foi recentemente comprado. Sabe-se, porém, que o Pará é o
maior produtor de pescado do Brasil, com 17% do total do País e 60% da região
Norte. Urge maior investimento no setor, para desenvolver a criação do pirarucu
em cativeiro, para combater a exportação ilegal de pescado e para amparar e socorrer nossos pescadores, de frágil perfil e em geral, analfabetos, por isso mesmo
alvo de atravessadores. Espera-se que o CEPNOR, ligado ao IBAMA e o Projeto
Beira-Ribeirinha ligado á EMBRAPA e à ENASA tragam positiva contribuição
para solucionar o impasse.
Outro setor visceral é o madeireiro, sendo paradoxal que, com toda a madeira da
Amazônia, o Brasil só ocupa 2% do mercado mundial de madeira. Nesse contexto,
dedico algumas palavras ao problema do desmatamento, lembrando que existe um
desmatamento ilegal (objeto de desrespeito e de corrupção) e um desmatamento
legal (para auto-sustento, criação e expansão de cidades), valendo salientar que, ás
vezes, a própria legislação interna propicia o aumento do desmatamento, como
ocorreu com a alteração do Código Florestal Brasileiro, que aumentou de 65% para
80% o percentual de áreas que podem ser devastadas. Esse desmatamento acaba
propiciando uma pecuária extensiva predatória, afirmando o IBAMA não possuir
meios de fiscalização, exemplificando com a recente Operação Feliz Ano Velho, em
que autorizações de transportes para produtos florestais foram falsificadas. O setor
madeireiro envolve, também, a questão da infra-estrutura dos portos, das rodovias
e das hidrovias. O porto Cargil, de Santarém, por exemplo, necessita, urgentemente,
de ampliação e o mesmo acontece com Belterra, Alenquer e Monte Alegre. Por
outro lado, merecem revisão as hidrovias Araguaia-Tocantins e Teles Pires-Tapajós,
as rodovias Guiabá-Santarém (BR 163) e a Transamazônica (BR 320).
Por último, os recursos hídricos precisam ser objeto de maior controle por
parte da União, a quem está afeto seu gerenciamento, nos termos da Constituição
Federal, principalmente agora, que a OMC declarou que a água é uma commodity
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
Um cenário estratégico para a amazônia brasileira – 51
e, portanto, tem preço. A Amazônia detém um terço dos recursos mundiais de
água doce e possui rios de água clara que são tremendamente piscosos, além de
rios navegáveis que vão até à Guiana e o Suriname, motivo por que o problema
da água adquire inúmeras facetas, tanto no plano econômico, como no plano
estratégico.
A última observação que faço é sobre o Programa de Zoneamento Econômico
Ecológico (ZEE). Considero válida a realização de zoneamentos regionais (Pará,
Rondônia etc.), mas creio que todos eles deverão constar de um zoneamento
nacional, a nível federal, para permitir novos investimentos, novas tecnologias e
novas medidas técnicas, políticas e estratégicas. A razão está em que esse zoneamento trata da racionalização da ocupação de espaços, estando subordinado a
várias normas internas, inclusive, ao próprio Código Florestal, levando em consideração variáveis que envolvem território, população, governo, PIB e até mesmo
as Forças Armadas. Claro que tal visão global não deve elidir visões regionais, mas
equilibrá-las, até para evitar determinadas falácias, como a de Novembro/03, em
que o G-7 criou um mecanismo internacional para prevenção de desmatamento
com 90% de pesquisadores dos EUA e apenas 10% de pesquisadores do Brasil.
O absurdo está não apenas nessa desigualdade percentual, como no fato de que
o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), vinculado ao Protocolo de
Kioto – que o Brasil ratificou, mas que os EUA nem sequer assinaram – trata de
poluição, enchentes, aquecimento global e desertificação.
O ZEE é fundamental ao desenvolvimento do privilegiado bioma amazônico,
levando-se em conta, inter alia, recursos energéticos, o potencial hidrelétrico, a
piscicultura, a cobertura vegetal, agricultura, pecuária e direitos humanos, através
de coleta de dados ambientais e da definição de critérios, sintetizados em um mapa
geral. O Estado do Pará, por exemplo, dentro da segunda etapa de seu zoneamento
econômico ecológico,criou Unidades de Conservação compreendendo 15 milhões
de hectares, através do estabelecimento de 4 florestas estaduais, áreas públicas que
admitem cessão para exploração sustentável somente para atividades manejadas,
respeitados os direitos de ocupação das populações tradicionais, detalhe que a
Lei nº 11.284, de Gestão de Florestas Públicas, simplesmente ignorou. As referidas Unidades de Conservação incluem, ainda, uma Área de Proteção Ambiental
(APA), uma Estação Ecológica e uma Reserva Biológica. Elas, porém, não estão
tendo boa acolhida pelo Governo Federal, certamente, porque conflitam com a
citada Lei nº 11.284.
A esse respeito, observa, em primeiro lugar, a Pesquisa do IMAZON (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), de 2007, que revela, em Mapa
de Rede Rodoviária, estradas de devastação na Amazônia Brasileira, na Região
de Santarém, nos Ramais da Transamazônica, na BR-163, no Mato Grosso, em
Rondônia e no Parque Indígena do Xingu e, em segundo ligar, o Plano do Banco
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52 – Parte I: Amazônia Legal
Mundial, através de sua Corporação Financeira Internacional, para financiamento
de gado na Amazônia Brasileira, o que será causa de maior devastação.
Dessa forma, creio que o Cenário Desejado (estratégico e desejável) para a
Amazônia Brasileira está no somatório dessas observações, resguardando nossa
Soberania e cuidando de nosso Desenvolvimento, através de um processo dialógico e estrutural. Daí decorrem preciosos itens, tais como saneamento básico,
emprego e incentivos fiscais que incidem, VG, sobre o problema do emprego
informal do Pará, com a perda de mais de sete mil postos de trabalho, o que está
influindo, inclusive, na nossa produção de castanha, que, de 22 mil toneladas,
passou para, apenas, mil toneladas. Portaria do IBAMA contribuiu muito para
isso, quando autorizou a retirada de castanheiras mortas e, com isso, propiciou a
venda de castanheiras não-mortas e nada constou do recente Seminário Macro e
Micro da Economia, realizado no Rio de Janeiro, cuidando-se, apenas, de medidas
para o Nordeste, para os cerrados, para a soja e para a transposição das águas do
São Francisco.
Recentemente, o Plano Amazônia Sustentável (PAS) constituiu uma esperança
de defesa dos interesses da Amazônia Brasileira, tanto em seu Diagnóstico, como
em sua Estratégia. Quanto ao Diagnóstico, por defender os patrimônios biológico,
hidrológico e geológico da Região, sua produção florestal, e sua infraestrutura,
além da própria dinâmica Regional, com fundamento na soberania territorial
da Área e do País. Quanto à Estratégia, ao apresentar soluções nacionais para
problemas infraestruturais, ao tratar da coordenação institucional da Região e do
financiamento do desenvolvimento Regional, inclusive, através da Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica, (OTCA) o que envolve Amazônia Brasileira
e Pan-Amazônia.
Logo a seguir, porém, o Projeto de Lei nº 4776, do Executivo, hoje, Lei nº
11.284, de 02.03.06 sobre Gestão de Florestas Públicas, fez tabula rasa de tudo
isso, ao dispor sobre ocupação onerosa, até 40 anos, de cerca de 40% do território nacional, envolvendo áreas estratégicas de fronteira e desrespeitando direitos
adquiridos a comunidades indígenas e não-indigenas. Criou Órgãos atípicos como
o Serviço Florestal Brasileiro (com amplos poderes fiscalizadores) e o Fundo Nacional do Desenvolvimento Florestal (a quem é vedada à prestação de Garantias),
num esquema de flagrante inconstitucionalidade e ilegalidade.
Com efeito, o referido Projeto de Lei feriu os artigos 49 (competência do
Congresso Nacional) e 91 (competência do Conselho de Defesa Nacional) da
Constituição Federal, além da Lei nº 6938/81 (SISNAMA) e da Lei nº 9985/00
(SNUC), incidindo a citada gestão sobre a ação de representantes de organismos
não nomeados, através de convênios com terceiros ignorados. Além disso, as
licitações obedecerão ao critério da melhor tecnologia, o que, obviamente, tende
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
Um cenário estratégico para a amazônia brasileira – 53
a afastar empresas nacionais e regionais, acrescido do fato de que a comercialização de produtos florestais ficará nas mãos de grandes corporações financeiras
internacionais, com flagrante prejuízo ás empresas locais, numa linha de arriscada privatização de florestas (e das próprias funções do Estado) e de inelutável
cessão de soberania territorial, o que é inconstitucional, ilegal, ilegítimo, ilícito,
aético e imoral.
A Nova Ordem Mundial convive com a Soberania e com a Supranacionalidade, repudiando pressões internas e externas, razão por que merece repúdio a
Lei sobre Gestão de Florestas Públicas, em face dos riscos que traz em termos
de ingerência e intervenção, o que violenta a autodeterminação do País e conflita
com a Constituição da República federativa do Brasil. E mais:
1 A Lei fere não somente o conceito de Soberania (institucional e territorial),
como o Princípio de Precaução (impacto ambiental proveniente das
TNC’s), o conceito de Sustentabilidade (que não é apenas ambiental,
mas também política, econômica, social e cultural), o conceito de
Desenvolvimento, ao confundir preservação com conservação, na
Amazônia Brasileira, ao mesmo tempo Verde (floresta) e Azul (água).
2 A Lei prejudica comunidades locais e populações indígenas, indo, pois,
de encontro aos termos da Convenção sobre Biodiversidade (ECO/92),
de que o Brasil é parte (pois a negociou, assinou, ratificou, registrou e
publicou), em termos de direitos soberanos sobre recursos biológicos,
conservação in situ e ex situ, utilização sustentável, identificação e
monitoramento de ecossistemas e habitats e cooperação técnicocientífica, ao mesmo tempo em que deixa de aproveitar o comércio de
crédito de carbono emanado da Convenção sobre Mudanças Climáticas,
também da ECO/92, para desenvolvimento nacional.
3 A Lei favorece – direta ou indiretamente – as empresas transnacionais, ao
dispor sobre melhor tecnologia, empresas essas (TNC’s) expressamente
mencionadas na Nova Lei de Falências do País (Lei nº 11101, de 09-0205), isentas, em geral, do pagamento de impostos pela Lei Kandir, no
setor de exportação, o que pode acarretar indescritíveis e perniciosos
problemas à Região e à Nação.
4 A Lei conflita com o Mapa Integrado do Zoneamento Econômico
Ecológico (ZEE) da Amazônia Brasileira, do próprio Ministério do Meio
Ambiente, ao dispor sobre a flexibilização do uso do solo, financiamento,
definição da área destinada à reserva legal da Região e consenso sobre
a utilização do território amazônida. Talvez por esse motivo, o COP 8
(8ª Conferência sobre Biodiversidade), de março/06, em Curitiba, tenha
questionado a eficácia da própria Convenção sobre Biodiversidade.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
54 – Parte I: Amazônia Legal
3 Conclusão
Acredito que um Cenário Estratégico para a Amazônia Brasileira está na fusão
dos elementos normativos constantes do Tratado de Cooperação Amazônica (Pacto
Amazônico) – hoje convertido em Organização Regional: OTCA – do Projeto Calha
Norte, do Projeto SIVAM/SIPAM, do ZEE e de projetos pontuais a exemplo dos
Macro-Cenários da Amazônia (SUDAM/1994) para gerar uma Política Regional
(investimentos), uma Política Ambiental (controle da biodiversidade) e uma Política
de Ciência e Tecnologia (recursos humanos e pesquisas). Todas enriquecidas das
soluções racionais do PAS (Plano da Amazônia Sustentável), com reflexos sociais
(educação, saúde, emprego), articulando a Amazônia Brasileira com o restante do
País, com a Pan-Amazônia e com o Mundo, no intuito de fazer da Área não mais uma
Região-Problema, mas uma Região-Solução para o desenvolvimento nacional.
Trata-se de meios válidos para impedir eventual internacionalização da Amazônia (tanto Brasileira, como Global), com ênfase no Social, detendo-se não apenas
em problemas de desmatamento e de mudanças climáticas, mas abandando idéias
espúrias tipo “patrimônio comum da humanidade” e visando remédios efetivos
contra trabalho escravo, trabalho infantil, indigência, pobreza e pauperismo, ao
lado de endemias, violência rural e urbana, assassinatos, desentendimentos entre
proprietários, posseiros e grileiros etc. Nada justifica, contudo, a perda (ou diminuição) da soberania territorial ou a ingerência (inclusive humanitária), que contraria
a Lei (interna e internacional), a lógica, a ética e o bom senso. Daí emana a necessidade de proposição e de efetivação de Diretrizes Globais, de Políticas Centrais
e de Programas Prioritários para a Região Amazônica Brasileira, aproximando-a
do mundo integrado e globalizado dos dias atuais – o que a citada Lei nº 11.284
– dificilmente poderá concretizar.
Com efeito, a despeito das emendas sofridas pelo Projeto da Lei nº 4.776/05
e dos princípios contidos nos cinco Títulos da Lei nº 11.284/06, os elementos
normativos supra estão mais categorizados para defender florestas públicas dos
diversos biomas do País e para proteger ecossistemas, solo, água e a própria biodiversidade. Algo semelhante ocorre, aliás, na Lei de Gestão Florestal da Alemanha,
com vistas ao uso racional de florestas, pesquisa, investimentos, desenvolvimento
tecnológico e respeito às comunidades locais. Tudo, sem agressão à Constituição e
à Lei, em termos de desenvolvimento e de segurança, no contexto de uma política
essencialmente regional e de uma estratégia exclusivamente nacional.
Dentro dessa Estratégia, o aproveitamento dos Planos e Programas retro mencionados, poderá efetivar a divisão inter-regional do trabalho, combater desigualdades
sociais, fortalecer a cidadania, respeitar reservas indígenas, gerar áreas de livre comércio, elevar a renda per capita, investimentos e poupanças, reduzir a mortalidade
infantil, vencer o analfabetismo e proteger o meio ambiente, tanto em termos de
preservação, como em termos de conservação, na exata linha de um desejado autêntico desenvolvimento sustentável, resguardada a Soberania Nacional.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 45-54, jul.-dez. 2007
Amazônia e racionalidades:
conhecimento e/ou reconhecimento
Noli Bernardo Hahn1
Resumo
Abstract
O enfoque deste texto consiste num olhar para a
Amazônia procurando entender a matriz teórica
subjacente às ações dos povos europeus que a
conquistaram e mantém-se predominante na
atualidade. Tal racionalidade se evidenciou ao
longo da história dos mais diferentes projetos
de desenvolvimento planejados pelos governos
brasileiros e continua conflitando com modelos
alternativos de racionalidade. O modelo racional
se configura, no entanto, não apenas em modos
de pensar projetos públicos, mas, sobretudo,
em formas de agir, em jeitos de se relacionar
e se comportar. A racionalidade mostra-se na
relação consigo mesmo e com o outro (pessoa,
nação). Ela impõe uma pré-compreensão de si e
do outro, e fundamenta o agir humano.
This text aims at looking at the Amazon trying
to understand the theoretical matrix underlying
the European people actions that conquered
it and maintain predominant nowadays. Such
rationality became evident through history from
the most different projects of development
planned by the Brazilian governments and is still
in conflict with alternative models of rationality.
However, the rational model configures itself,
not only in the way of thinking public projects,
but mainly in the way of acting, in the manner
of having a relationship and behaving. The
rationality is shown in its relation to itself and
to the other (person, nation). It imposes a preunderstanding of itself and of the other and is
based on human action.
Palavras-chave: Ações européias na Amazônia.
Desenvolvimento. Racionalidade.
Keywords: European actions in the Amazon.
Development. Rationality.
1 Graduado em Filosofia e Teologia. Doutor em Ciências da Religião, área de concentração Ciências Sociais e Religião, pela
UMESP. Professor do programa de pós-graduação em Direito – Mestrado, da Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões - URI – Campus de Santo Ângelo.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 55-63
jul.-dez. 2007
56 – Parte I: Amazônia Legal
1 Considerações iniciais
A Amazônia pode ser tematizada de várias formas e a partir de diferentes enfoques. Os múltiplos olhares sobre a Amazônia representam as mais diversificadas
abordagens. Cada abordagem representa, também, uma escolha, uma opção e uma
ótica. Pode-se falar da Amazônia a partir de suas riquezas naturais, de seus povos,
do narcotráfico, do processo de urbanização desordenado, da difícil sobrevivência
dos povos ribeirinhos, dos conflitos que envolvem a questão agrária, do desmatamento desordenado, da violência histórica que envolve a relação conquistadorconquistado, da ausência da justiça estatal, da escravidão, da organização dos povos
indígenas pela demarcação de suas terras, da presença histórica de igrejas e sua
atuação na atualidade, da organização dos diferentes movimentos sociais, da morte
de líderes sindicais e religiosos, do significado da presença atual de organizações
não-governamentais, das pesquisas sobre medicamentos financiados por países
estrangeiros, das experiências de organização dos povos da mata, dos conflitos
entre seringueiros e povos indígenas etc.
Este artigo não focaliza nenhum dos temas anteriormente citados. Todos eles,
indiretamente, integram-se na reflexão, a seguir. O enfoque deste texto consiste
num olhar para a Amazônia procurando entender a matriz teórica subjacente às
ações dos povos europeus que a conquistaram e mantém-se predominante na
atualidade. Tal racionalidade se evidenciou ao longo da história dos mais diferentes
projetos de desenvolvimento planejados pelos governos brasileiros e continua
conflitando com modelos alternativos de racionalidade. O modelo racional se
configura, no entanto, não apenas em modos de pensar projetos públicos, mas,
sobretudo, em formas de agir, em jeitos de se relacionar e se comportar. A racionalidade mostra-se na relação consigo mesmo e com o outro (pessoa, nação). Ela
impõe uma pré-compreensão de si e do outro, e fundamenta o agir humano.
Entender o que fundamenta as ações na Amazônia, tanto do ponto de vista
da sua conquista, como, também, de suas resistências e lutas, é o objetivo deste
artigo. O texto encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, procuro refletir
o que denomino paradigma conquista/conhecimento. Na segunda parte do estudo, elaboro uma reflexão sobre os fundamentos que modelam uma racionalidade
alternativa em relação à racionalidade instrumental. Cuidado, diálogo e reconhecimento são categorias centrais para a construção desse paradigma.
Explico, ainda, nessas considerações iniciais, o porquê da escolha da categoria
de compreensão “paradigma” nesse estudo. Paradigma é um grande instrumento
tanto de dominação, quanto de libertação. Um paradigma pode construir subjugação, conformismo, encobrimento do outro, dominação, repressão, destruição.
Paradigma pode criar, também, formas de resistência, defesas, críticas, inconformismo, movimentos de libertação. A construção do que denomino dominação, de
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um lado, e libertação, de outro, não deve ser compreendida como sendo de forma
dual. O conceito paradigma integra nele o sentido de um processo integrado de
duas forças que se repelem e interagem. Um paradigma constrói, ao mesmo tempo,
conformismo e inconformismo, resistência e resignação, morte e vida, descobrimento e encobrimento, dominação e libertação. Os movimentos de resistência
a uma dominação nascem e se desenvolvem a partir e de dentro do movimento
de dominação. Paradigma, por conseguinte, não pode ser compreendido apenas
no que manifesta explicitamente. Nem tudo o que integra um paradigma é visto
objetivamente. Há integrantes paradigmáticos que são implícitos e ocultos. Podese falar, por isso, de integrantes não manifestos.
Com esse entendimento, vou ao desenvolvimento do tema com o objetivo de
ligar Amazônia ao movimento integrado de conquistas e resistências, de instrumentalização e de cuidado, de conhecimento e de reconhecimento.
2 Paradigma conquista/conhecimento
Não há como negar que a modernidade representa um período histórico da
humanidade, de grandes descobertas científicas, de avanços na Ciência e na Tecnologia, de conquistas de direitos sociais, políticos e individuais não reconhecidos
nas sociedades antigas e medievais. Não há como negar o progresso econômico
que se verifica nos últimos 500 anos da história.
Como que se chegou a esse progresso? Como explicar que em tão pouco tempo
da história da humanidade se fizeram tantas conquistas?
Neste momento, cabem também estas perguntas: Por que num espaço de
tempo tão curto, inúmeras nações, com sua história milenar, foram dizimadas?
Que razões explicam as intervenções do ser humano na natureza da forma tão
destrutiva e agressiva como a que se verifica nos períodos moderno e contemporâneo? Por que as nações preocupam-se cada vez mais em proteger a natureza
através de uma legislação ambiental rigorosa? Conhecendo as conseqüências da
destruição da natureza, por que o homem continua a agredi-la?
O leitor, com certeza, poderá imaginar vários caminhos explicativos para questões como essas. Parto de uma definição de conhecimento que se encontra em
muitos livros didáticos de Filosofia e que representa uma compreensão moderna
do tema. Com poucas diferenças entre os que definem conhecimento na ótica
moderna, os autores afirmam que conhecimento é o pensamento que resulta da relação que se estabelece entre o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido.
Nessa linguagem transparece muito claramente o que entendo ser o paradigma
conquista/conhecimento. A relação fundamental que faz surgir o conhecimento
é a que se estabelece entre sujeito e objeto. Quem se entende sujeito e quem ou
o que é definido pelo sujeito como objeto? Ao se recorrer a esses conceitos para
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58 – Parte I: Amazônia Legal
definir conhecimento, relevante torna-se perguntar: o que é ser sujeito e o que
significa ser objeto?
Objeto, em princípio, não reage, não fala, não pensa, não sente, não ouve e não
vê. Objeto é coisa, não tem identidade. Objeto é manipulável, dominável e conquistável. Como coisa, o objeto pode ser usado e manipulado pelo sujeito para determinados fins. Aliás, objeto é meio, jamais um fim. Como o objeto sempre é coisa para
o sujeito, a relação que se estabelece é de conhecimento e não de reconhecimento.
O sujeito procura conhecer e jamais reconhecer. A relação estabelecida, no caso, é
de dominação, de conquista, de objetivação, de coisificação, de sujeição.
Tal entendimento representa a auto-compreensão que o europeu colonizador
teve quando da colonização das nações latino-americanas e africanas. O ser europeu, como compreensão-de-si, como consciência-de-si, autoentendia-se como
único sujeito, e especificamente sujeito-homem-branco. Essa matriz teórica impedia estabelecer relações de reconhecimento de culturas que não fossem a “minha
única cultura”, na ótica androcêntrica, branca e européia. A alteridade, nessa visão
centrista (porque Europa é centro e os povos conquistados são periferia) e única,
não pôde emergir e ser percebida, A relação sujeito-objeto exigia ocultamento e
encobrimento do outro. Os genocídios, os fratricídios, a escravidão e a violência
de gênero explicam-se a partir dessa racionalidade.
A relação sujeito-objeto explica, também, a relação homem europeu conquistador (sujeito) e a natureza conquistada (objeto). A natureza, nesse olhar, sempre
foi concebida e tratada como objeto. A racionalidade instrumental, aquela que
instrumentaliza o outro para um determinado fim, anulando-o, ocultando-o, encobrindo-o, é aplicada no contato com a natureza, através de uma prática destrutiva
e agressiva. Conquista-se a natureza (que não fala!, não sente!, não reage!) para,
através dela e nela, gerar o progresso.
A relação de conhecimento que, nos últimos séculos, o ser humano estabeleceu
com a natureza, num horizonte de compreensão que incide em objetivação, feriu
com inimaginável intensidade esse “objeto”. Num acordar das últimas décadas,
as nações deram-se conta que a natureza não é unicamente objeto e não pode
assim ser concebida e tratada. Nesse acordar de um sono profundo, as pessoas e
as nações perceberam que a natureza também reage, sente, tem e é vida. Notaram
que ela não é apenas objeto e, sim, também sujeito. Ao acordar, entenderam que
as lógicas dualistas, instrumentais, objetivistas os iludiram e enganaram durante
séculos. A ilusão e o engano foram de tal porte que, o que imaginavam gerar
progresso e vida leva-os à extinção.
Na Amazônia atual, a racionalidade não-dialogal, instrumental, conquistadora
continua fazendo história. A agressividade com a natureza e a relação intolerante
de pessoas, grupos e nações para com os povos autóctones continua existindo. A
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Amazônia e racionalidades: conhecimento e/ou reconhecimento – 59
violência em diferentes dimensões e nos mais variados espaços, posturas e práticas de não acolhimento e de não reconhecimento do outro podem ser vistos no
cotidiano da vida amazônica, tanto do ponto de vista da geografia espacial, como
da geografia humana.
Nessa mesma Amazônia, portanto, em meio a um cotidiano intolerante,
violento, constrói-se o acolhimento, o reconhecimento do outro, a subjetivação.
Subjacente a essas práticas distintas, verifica-se uma outra racionalidade.Vamos,
pois, ao entendimento do paradigma/cuidado/reconhecimento.
3 Paradigma cuidado/reconhecimento
O ser humano, para sobreviver, teve que aprender formas e fórmulas de sobrevivência. Pode-se afirmar que o homem pela capacidade e faculdade de ter e
desenvolver a inteligência abstrata - não apenas a concreta como os animais – sobrepôs-se aos demais seres exatamente por essa capacidade memorial. Desde os
tempos mais remotos, o ser humano descobriu que, para sobreviver, necessitava
de conhecimentos. Teve de ir à busca deles. Desde logo, porém, percebeu que
esses conhecimentos não se encontravam num lugar fora e para além dele. O
conhecimento teria de ser elaborado, construído, aprendido e apreendido a partir
de suas próprias experiências pessoais e coletivas.
A aprendizagem, a partir de experiências, foi e continua sendo dolorida.
Enquanto experiência, não se possui segurança. Nessa experiência de realizar
experiências para ver o que dá certo, ou não, o ser humano integrou duas dimensões constitutivas e constituintes do seu ser: a) conquistar a sobrevivência e os
conhecimentos; buscá-los; b) cuidar daquilo que já buscou, conquistou e aprendeu;
não perder a memória do que dolorosamente conseguiu apreender, descobrir,
elaborar e sistematizar.
Conquistar e cuidar são dois verbos que representam integrantes necessários
da própria constituição do ser humano, enquanto humano. Eles, no entanto, não
podem ser desconectados um do outro. Conquistar e cuidar, enquanto integrados,
possibilitam sentido humano, constroem o humano. O humano não é apenas
resultado de conquistas. Ele é também fruto de cuidados. O inverso também
pode ser dito: o humano não é resultado de cuidados, apenas, mas também de
conquistas.
O que se tem verificado, especialmente nos últimos cinco séculos, é a desintegração quase absoluta entre o cuidar e o conquistar. A racionalidade moderna
instrumental, objetivista, do conhecimento, de perspectiva dualista, rompeu a
integrada constituição originária entre cuidado e busca (conquista) e fundamentou
a ação humana exclusivamente a partir da perspectiva conquistadora, o que leva
o homem a sua autodestruição.
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60 – Parte I: Amazônia Legal
Uma racionalidade de perspectiva crítica em relação à instrumental tem como
ponto de partida a integração do cuidado e da busca. Não se podem construir
conhecimentos sem buscá-los, mas a busca, a conquista, não deve ser realizada
sem diálogo, sem reconhecimento e sem cuidado. O buscar e o cuidar enquanto
inter-relacionados, como constituintes da ação humana, de identidade integradora,
por isso controladora – o cuidar controla o buscar e vice-versa -, impedem desvios,
agressividades, violências. A tendência maior é a harmonia, o ajuste, a autolimitação,
a justa medida, quando há controle de um sobre o outro.
A relação dualista sujeito-objeto, da perspectiva moderna, vem sendo questionada e superada pela relação sujeito-sujeito. O objeto, aquele que historicamente e
modernamente foi assim nomeado e conhecido, vem dizendo que quer ser reconhecido como tendo identidade. A natureza faz-se entender como um organismo
vivo que responde às agressões e aos cuidados. As nações e grupos modernamente
instrumentalizados, objetivados, encobertos e ocultados – senão dizimados – resistem afirmando sua história, sua cultura, sua identidade. Na resistência recorre-se
ao cuidado para não perder o pouco que sobrou da agressividade instrumental. Na
resistência, enquanto busca, há diálogo para que haja o cuidado de não enquadrar
e aculturar. Na resistência, a tolerância tende a ser superada pela acolhida.
Na Amazônia verifica-se uma história de séculos de resistências, de lutas e
de cuidados. A resistência nasceu a partir da lógica da conquista, repudiando-a.
A consciência do cuidado emergiu como resposta à proposta agressiva do conquistador, que se movia a partir e inerentemente a uma racionalidade dualista e
instrumental.
Na atualidade, nas mais variadas formas de resistência que se articulam, há
a necessidade de uma vigilância para que estas não rompam e não desintegrem
a relação originária entre o cuidado e a busca. Nas considerações finais procuro
acenar a esse tema.
4 Considerações finais
O ser humano não sobrevive e não subsiste apenas cuidando ou somente
conquistando. A constituição originária da integração entre a necessidade de
conquistar a sobrevivência e o imprescindível cuidado de não extrapolar os limites
nessa constante busca de subsistência constitui-se num dos grandes desafios na
atualidade. Como já tenho afirmado anteriormente, nos últimos cinco séculos,
tem-se construído uma desintegração entre o cuidar e o conquistar. A racionalidade moderna dualista rompeu a integrada constituição originária entre cuidado
e busca (conquista) e fundamentou a ação humana exclusivamente a partir da
perspectiva conquistadora, o que leva o homem à intolerância, à guerra e a sua
autodestruição.
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Amazônia e racionalidades: conhecimento e/ou reconhecimento – 61
No século XX, chegamos a uma consciência de que não podemos mais continuar agredindo e destruindo a natureza, pois ela não é um objeto sem vida e,
sim, um organismo vivo e vital, do qual o futuro da espécie humana depende.
Vivemos num momento histórico em que se impõe o desafio de propor saídas e
iniciativas para salvar o planeta.
Duas propostas, para solucionar a crise ecológica, oriundas, especialmente, dos
países mais desenvolvidos, estão sendo muito questionadas pela sua deficiência e
insuficiência para abarcar as raízes do problema.
Uma das propostas vem dos conservacionistas ou ambientalistas (conservacionismo/ambientalismo). Para essa corrente, o segredo é conservar o que ainda
sobrou. A solução, conforme os conservacionistas, está em preservar as espécies
vegetais e animais que não foram totalmente dizimadas. Como se tem preservado
mais as espécies vegetais e animais nos países menos industrializados, a tendência
dos ambientalistas é propor soluções para a crise ecológica a partir dos países mais
pobres, sem incluir eficientemente os países mais desenvolvidos.
Uma outra corrente é a ecodesenvolvimentista (ecodesenvolvimento). Os seus
adeptos propõem inovações tecnológicas para solucionar o problema ecológico.
Em suas propostas estão a energia solar, a reciclagem e o controle de poluentes.
Os críticos a essas duas correntes afirmam que, tanto uma, quanto outra, não
apresentam propostas suficientes e eficientes para evitar a destruição da natureza.
Penso, entretanto, que os conservacionistas, como os ecodesenvolvimentistas,
não superaram a lógica dual da racionalidade instrumental. A natureza continua
sendo instrumentalizada a partir de uma tendência antropocêntrica não superada.
No meu entendimento, deseja-se salvar a natureza em função do homem, numa
concepção dualista, que projeta uma compreensão de que o homem e a natureza
são entes separados, apenas relacionados funcional e utilitariamente.
Para a superação do dualismo e da instrumentalização, a afirmação de um
paradigma que integre, com justa medida, o cuidado e a busca (conquista), parece-me imprescindível. Esse paradigma converge numa racionalidade em que a
relação fundamental se estabelece de sujeito para sujeito. Nessa matriz teórica, a
alteridade emerge e é reconhecida.
No momento em que a alteridade é reconhecida, as propostas, para solucionar
a crise ecológica, jamais poderão ser funcionais, utilitárias e antropocêntricas. Elas
terão de ser dialogadas, pelo menos, em dois níveis: diálogo com a natureza e o
diálogo com as distintas culturas. Vejo que este é um caminho para a defesa da
nossa Amazônia: a afirmação plena de uma racionalidade que integre conhecimento
e reconhecimento, busca (conquista) e cuidado.
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62 – Parte I: Amazônia Legal
Referências
Observação: Evitei, ao longo do texto, notas bibliográficas e notas explicativas. Vários
autores, como referencial teórico, ajudaram-me a construir o artigo. Lembro, especialmente,
Enrique Dussel, Jürgen Habermas, Leonardo Boff e Alain Touraine. A perspectiva
desconstrucionista de Jacques Derrida tem me ajudado como método de análise. Mesmo
que o artigo não tenha priorizado um tema específico sobre Amazônia, várias leituras em
relação a sua história e sua atualidade foram importantes para esboçar a reflexão feita. Nas
referências bibliográficas, cito alguns desses estudos.
BECKER, Bertha K. Organização e conflitos na sociedade civil da Amazônia. In: MATA,
Raimundo Possidônio C.; TADA, Cecília (Org.). Amazônia – Desafios e perspectivas. São
Paulo: Paulinas, 2005, p. 83-107.
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003.
___. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 6. ed. Petrópolis: Vozes,
2000.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
DIETRICH, Luís José. Pautas para uma hermenêutica ecológica: a solidariedade abarcando
todas as formas de vida. In: Encontros Teológicos – Revista do Instituto Teológico de Santa
Catarina – ITESC, ano 22, n. 1, vol. 46, p. 77-88, 2007.
DUSSEL, Enrique. O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis:
Vozes, 1993.
ESPOSITO, Mauro. Narcotráfico, biopirataria e militarização na Amazônia. In: MATA,
Raimundo Possidônio C.; TADA, Cecília (Org.). Amazônia – Desafios e perspectivas. São
Paulo: Paulinas, 2005, p. 175-183.
FERRARINI, Sebastião Antônio. Amazônia: o itinerário da economia. História de saques
e violências. In: Encontros Teológicos – Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina
– ITESC, ano 22, n. 1, v. 46, p. 63-76, 2007.
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la accion comunicativa I – Racionalidad de la accion y
raconalización social. Madrid: Taurus, 1987.
McCARTHY, Thomas. La teoría crítica de Jürgen Habermas. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1992.
SANTOS, Jessé Rodrigues dos. Processos socioculturais na Amazônia. In: MATA,
Raimundo Possidônio C.; TADA, Cecília (Org.). Amazônia – Desafios e perspectivas. São
Paulo: Paulinas, 2005, p. 109-132.
SILVA, Marina. Desafios e perspectivas para o desenvolvimento sustentável. In: MATA,
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SUESS, Paulo. Povos indígenas na Amazônia brasileira. In: Encontros Teológicos – Revista do
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, ano 22, n. 1, v. 46, p. 45-62, 2007.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 55-63, jul.-dez. 2007
Amazônia e racionalidades: conhecimento e/ou reconhecimento – 63
SUNG, Jung Mo; SILVA, Josué Cândido da. Conversando sobre ética e sociedade. 9. ed. Petrópolis:
Vozes, 2001.
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis:
Vozes, 2005.
VERGOLINO, Anaíza. Panorama religioso e cultural da Amazônia. In: MATA, Raimundo
Possidônio C.; TADA, Cecília (Org.). Amazônia – Desafios e perspectivas. São Paulo: Paulinas,
2005, p. 61-79.
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PARTE II
DIREITO AMBIENTAL
BRASILEIRO
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 65-148
jul.-dez. 2007
Do estado de guerra ao estado de
bem-estar ambiental: contribuição
indígena ao contrato de armistício
Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray1
Resumo
Abstract
O artigo aborda o quadro de policrise enfrentado pela humanidade como característico de
uma crise civilizatória, marcada pelo confronto
do homem com a natureza (“guerra de todos
contra tudo”). A ruptura desse paradigma passa
pela construção de uma política planetária que
nos leve ao Estado de bem-estar ambiental que
considere a contribuição dos povos indígenas
nesse momento de mutação, especialmente na
revisão ética, da relação homem-natureza.
The article is about the polycrisis situation faced
by humanity as characteristic of a civilizing crisis
marked by the confrontation of man with nature
(“a war of everybody against everything”). The
rupture of this paradigm goes through the construction of a planetary policy that takes us to the
State of environmental well-being and which
considers the contribution of the Indigenous
people in this moment of mutation, mainly in
the ethic review, of the relation man nature.
Palavras-chave: Amazônia. Policrise. Povos
Indígenas. Relação.
Keywords: Amazon. Polycrise situation. Indigenous people. Relation.
1 Procurador do Estado de Mato Grosso. Professor da UFMT. Doutor em Direito pela UFSC.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 67-101
jul.-dez. 2007
68 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
1 Considerações iniciais
A crise planetária atinge dimensão
de uma crise civilizatória
A promessa de progresso e paz, acenada pela modernidade, revelou-se retórica.
Os avanços tecnológicos, não nos afastaram da guerra; por outro lado, os perigos
da recente industrialização e a pressão sem precedentes sobre os recursos naturais,
defrontaram o homem moderno, com a potencialidade do auto-aniquilamento.
Estado de guerra, sociedade de risco, era atoquímica genética... Filósofos,
sociólogos, juristas, ecologistas, pensadores contemporâneos investigam as raízes
do atual modelo tecnocrático, e questionam o racionalismo unidimensional e
fragmentário, que coloca o homem em confronto com a natureza.
Quem é quem, nesse campo de batalha?
Propõe-se neste ensaio, apresentar um panorama desse quadro de policrise e da
potencialidade de uma cidadania global, para a efetiva construção de uma política
planetária que nos leve a um Estado de bem-estar ambiental.
Não se ignora que as limitações a essa tarefa são inúmeras; mesmo porque, em
síntese, o que se busca é a realização de um contrato de armistício, dos homens
entre si, e destes também com a natureza; o que implica necessariamente no surgimento de um novo paradigma.
A análise desse novo paradigma se complementa com a avaliação das possíveis contribuições que os povos indígenas podem oferecer à humanidade, nesse
momento de necessária mutação.
Certamente que não é possível, um aprofundamento na análise do acervo cultural das nações indígenas, que só no Brasil somam 220 povos. Todavia, o marco
dos 500 anos da chegada dos Europeus ao Brasil, convida a uma reflexão; afinal,
são cinco séculos de genocídio e destruição de culturas ricas e diversificadas e,
sobretudo, de resistência de alguns povos que, animados por crenças e valores
duramente agredidos, resistem e muito podem nos ensinar.
2 Guerra de todos contra tudo:
uma era de riscos
Entre os sociólogos que oferecem uma resposta da teoria social, à degradação
e à política ambiental, destaca-se Ulrich Beck. Sua obra se caracteriza por centrar
na modernidade as origens e conseqüências da degradação do ambiente. Beck vê
a modernidade como um comboio descontrolado, sem mecanismo de travagem,
nem sistemas de direção, que nos coloca impotentes sobre a permanente ameaça
de catástrofes.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 69
Em Risk Society, o autor analisa a equação de riscos e perigos a que a sociedade
está exposta com relação à degradação ambiental. Esses perigos passam a ser risco,
quando são conhecidos, previsíveis e cuja probabilidade pode ser calculada. Aponta
algumas características que diferenciam esses riscos, daqueles que ameaçavam a
sociedade industrial. Até meados do século XX, a poluição era um fenômeno
localizado, em termos de espaço, afetando diretamente apenas uma parcela da
população; hoje, além de estar ampliada a toxidade da poluição, ela é, atualmente
e em geral, irreversível, cumulativa, e portanto ultrapassa os limites espaciais e
temporais do risco puramente industrial, quando não assume claramente a feição
de riscos globais e catastróficos, como os decorrentes da manipulação genética,
ou de acidentes nucleares, o que, na visão de Beck, é suficiente, para caracterizar
a sociedade contemporânea, como uma sociedade de risco.
Morin refere-se à idade de ferro planetária, para definir esse quadro de crise
planetária, onde a escalada de ameaças globais mortais é uma das características.
Também Hobsbawm2 considerou o século passado como uma era de guerra.
“Não há como compreender o século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra.
Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se
calavam e as bombas não explodiam”. Ainda hoje, o quadro persiste e os gastos
militares mundiais representam mais de US$ 800 bilhões por ano.
Além das megamortes, que marcaram o século, na visão de Hobsbawm, a modernidade assiste a uma outra guerra surda e silenciosa. As perdas materiais, não
são contabilizadas e parecem pequenas diante dos danos causados ao mundo.
É o que Serres3 chama de guerra de todos contra tudo. “A terra se torna o
inimigo comum” e outrora vitoriosa, ela hoje é a grande vítima desse conflito.
Os riscos são potencializados e difusos: Todos corremos riscos nesse conflito
global; que, sem exagero, e por motivos óbvios, definimos como a última Grande
Guerra.
A magnitude desses riscos pode ser aferida através da análise dos problemas
que a utilização da energia nuclear, a corrida armamentista, o aquecimento global
suscitam na atualidade. Todos esses fatores se manifestam por meio de sinais,
recebidos como se aparentemente normais. O aumento da concentração de gás
carbônico na atmosfera, em conseqüência da utilização de combustíveis fósseis,
e de outros gazes que se acumulam, atingindo a camada de ozônio e provocando
o efeito estufa, são imperceptíveis ao leigo, mas as conseqüências preocupam
cientistas.
2 Hobsbawm, Eric Era dos extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 30.
3 Serres, Michel. O Contrato natural. Trad. Beatriz Sidoux; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 20.
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70 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Oportuno o alerta de Serres3:
O que está em risco é a Terra em sua totalidade, e os homens em seu
conjunto.
A história global entra na natureza, a natureza global entra na história: e
isto é inédito na filosofia.
A seqüência estável de dias quentes e secos que a Europa acaba de gozar
ou de se preocupar refere-se mais às nossas ações que às variáveis julgadas
naturais ? A enchente virá da primavera ou de uma agressão / Certamente
não o sabemos – ou melhor, todos os nossos saberes, de modelos difíceis
de interpretar, concorrem para essa indecisão.
Nesta duvida, nos absteremos? Seria uma imprudência, pois embarcamos
numa aventura irreversível de economia, ciência e técnica; podemos lamentálo, até com talento e profundidade, mas assim o é, e depende menos de nós
do que da nossa herança histórica.
A precaução foi elevada à categoria de princípio jurídico informador do novo
Direito Ambiental, mas continuam divergindo políticos e cientistas, quanto à
extensão dos riscos e das medidas necessárias.
Em um ponto convergem as análises: a diferença entre a natureza desses riscos,
ao longo da história.
Nas sociedades pré-industriais, a origem dos riscos era invariavelmente atribuídas a forças externas, sobrenaturais; situação que mudou com o advento das
sociedades industriais, nas quais os riscos passam a ser dependentes das ações,
sejam de indivíduos, sejam de forças sociais de âmbito mais vasto. Salienta, Ulrich
Beck, que os riscos que podiam ser calculados na sociedade industrial, tornaram-se
imprevisíveis e incalculáveis, deixando obsoletos os métodos de identificação dos
riscos e cálculos de indenizações, o que lança dúvidas sobre o funcionamento e
legitimidade das modernas burocracias, estados, economia e ciência.
Outro aspecto abordado por Beck, no paralelo que traça entre as sociedades
industriais e a sociedade moderna, é o da distribuição dos riscos; observando que
nas sociedades industriais, as principais frentes de conflito, relacionavam-se à forma como o bolo era dividido; concluindo que estando “envenenado” o bolo, há
uma mudança na dinâmica dessa política. Enquanto que na sociedade industrial as
posições de classe e posição de riscos estavam relacionadas, já que os ricos viviam
em zonas menos expostas aos efeitos da poluição; nas sociedades modernas
[...] os riscos e os perigos excedem os limites de espaço e tempo, a riqueza,
os privilégios, o estatuto e o poder econômico não oferecem quaisquer
3 Serres, Michel. Op. cit, p. 15.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 71
caminhos de fuga. A ameaça de envenenamento por pesticidas e acumulação
de gases tóxicos na cadeia de alimentos tanto afeta os subúrbios como o
centro da cidade; a fusão nuclear é de tal dimensão que ricos e pobres, Norte
e Sul, são ameaçados de igual modo. A posição de classes e dos grupos de
interesses econômicos definidos tradicionalmente e a relação entre eles não
ficam ilesas perante a emergência de novos riscos4.
Observa Beck, que o discurso e a prática da ciência está no centro da política
da sociedade de risco, primeiro porque os riscos modernos decorrem da aplicação
da ciência às tecnologias; segundo porque a identificação e avaliação dos riscos
expressam-se em termos científicos; terceiro porque a ciência pode oferecer as
alternativas para solução desses riscos, e ainda porque o progresso da ciência é
um exemplo claro de modernização reflectiva, ou seja, a ciência se vê confrontada
com um ambiente exterior que é reflexo de seu “avanço”.
Ocorre que a ciência reflete a ambivalência dos homens nessa guerra com o
mundo; se por um lado ela pode contribuir para a construção de uma relação não
parasitária entre o homem e a natureza; por outro lado, ela disponibiliza novas
armas ainda mais potentes para essa guerra e dissimula por meio de discussões
técnicas os efeitos letais dos engenhos que oferece.
Não é sem propósito que Morin5 sustenta que a civilização tecno-científica, embora sendo civilização, produz uma barbárie que lhe é própria; observando que,
[...] todas as ameaças para o conjunto da humanidade têm pelo menos
uma de suas causas no desenvolvimento das ciências e técnicas (ameaça
das armas de aniquilamento, ameaças ecológicas à biosfera, ameaça de
explosão demográfica).
A afirmação de Descartes de que o homem deve tornar-se mestre e senhor da
natureza, foi levada às últimas conseqüências, pelo modelo de desenvolvimento, que
nos colocou em beligerância com a Terra. Leonardo Boff6 observa que montou-se
uma máquina industrialista-produtivista verdadeiramente fantástica:
Agilizaram-se todas as forças produtivas para extrair da Terra tudo o que
ela pode fornecer. Ela foi submetida a uma verdadeira cama de Procusto,
investigada, torturada, perfurada para entregar todos os seus segredos.
Organizou-se um assalto sistemático a suas riquezas no solo, no subsolo,
nos ares, nos mares e na atmosfera exterior. A guerra foi levada em todas as
frentes. A produção de vítimas é inaudita: a classe operária mundialmente
oprimida, nações periféricas exploradas, a qualidade geral de vida deteriorada
e a natureza espoliada.
4 Beck, Ulrich. Apud Goldblatt, David. Teoria Social e Ambiente. Trad. Ana Maria André, Lisboa:Piaget, 1998, p. 235.
5 Morin, Edgar e Kern, Anne B. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995, p. 96.
6 Boff, Leonardo. Dignitas Terrae – Ecologia: Grito da terra, Grito dos Pobres. São Paulo: Ática, 1999, p. 104.
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72 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
É evidente que o desenvolvimento da tecnoburocracia contribuiu para que se
instalasse o reino dos “experts” em todos os domínios que dependiam de decisões políticas, o que esse processo implicou necessariamente no esvaziamento da
participação nas tomadas de decisão.
Serres7 é contundente ao rechaçar o caráter excludente do cientificismo: “Nocivas nas ciências e na filosofia, quase todas as palavras técnicas não tem outro
objetivo senão o de separar os adeptos da paróquia dos excluídos, cuja participação
na conversa pouco importa, o que mantém o poder de alguns”.
Como a propaganda da gravadora que exibia um obediente cachorrinho ouvindo um gramofone, tornamo-nos dóceis e passivos, ouvindo o tumulto dos
senhores. Sequer somos chamados a integrar o debate, “para proibir-nos disso, a
civilização faz uivarem motores e auto-falantes”8.
Certo é que os grupos científicos ocupam cada vez mais um lugar de proeminência em áreas antes reservadas à esfera política. Decisões tecnoburocráticas,
apresentadas como alternativas construídas sob o manto da neutralidade científica,
substituem os debates e inibem a participação pública; a sabedoria popular cede
à imbecilidade cognitiva do Homo sapiens demens.
Nesse quadro de beligerância, com amplas conseqüências políticas e sociais,
a sociedade assiste passivamente a redução de seu espaço de ação e convive com
riscos e problemas ambientais complexos, frente aos quais se sente impotente.
Se por um lado, os sistemas políticos e judicial tornam invisíveis as origens
e conseqüências sociais dos perigos ecológicos em grande escala; por outro
lado, em que pese a dimensão desses riscos, não dispomos de meios eficazes
para enfrentá-los a nível político e institucional, o que faz com que a aparente
tranqüilidade seja freqüentemente quebrada pela realidade bem dura de perigos
e ameaças inevitáveis.
Em Ecological Politics in an Age of Risk, Ulrich Beck9 denomina de “irresponsabilidade organizada”, o “encadeamento de mecanismos culturais e institucionais
pelos quais as elites políticas e econômicas encobrem efetivamente as origens e
conseqüências dos riscos e dos perigos catastróficos da recente industrialização.
Ao fazê-lo essas elites limitam, desviam e controlam os protestos que estes riscos
provocam”.
Para ele, não há falta de compromisso ou responsabilidade, mas sim “compromisso e irresponsabilidade simultâneos: mais precisamente, compromisso com
irresponsabilidade ou irresponsabilidade organizada”.
7 Serres, Michel. Op. cit. p. 18.
8 Idem, ibidem.
9 Idem, p. 241.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 73
Contraditoriamente, quanto maior a degradação, maior o peso das leis e normas
ambientais, contudo a impunidade continua sendo a regra e nenhum indivíduo é
efetivamente responsabilizados por alguma coisa. O problema, segundo o autor,
decorre do fato de que essas leis e instituições que estruturam a identificação e
avaliação dos problemas e riscos ecológicos, são incompatíveis com a natureza
dos riscos e perigos produzidos pelo recente industrialismo, há portanto, uma
inadequação das relações de definição, ou seja, da matriz legal, epistemológica e
cultural, segundo a qual se conduz a política de ambiente.
Os Estados e as burocracias podem esconder ou desvirtuar dados, mas lutam
para combater uma causa perdida, porque oferecem garantias de segurança incompatíveis com a natureza dos riscos na sociedade moderna. Para o autor, os
problemas enfrentados pela atualidade, colocaram em crise o estado segurança.
Como exemplo, cita o cenário de Chernobyl, cuja magnitude do desastre ambiental,
não só tornou redundante o princípio de segurança no sentido econômico, mas
também nos sentidos médico, psicológico, cultural e religioso.
Com efeito, o acidente nuclear ocorrido com a usina de Chernobyl, na Ucrância
é emblemático. Ao explodir, em 26 de abril de1986, um dos reatores da usina liberou
uma nuvem de substancias radioativas que se espalhou pela Europa Ocidental.
As conseqüências mais drásticas ocorreram na própria Ucrânia, onde estima-se
que 3,5 milhões de pessoas adoeceram por causa da radiação e houve um significativo aumento nos casos de câncer na população. Todavia, a contaminação não
respeitou fronteiras e alcançou até mesmo países distantes como a Inglaterra, que
ainda hoje mantém a proibição do consumo de carne de ovelhas criadas próximo
ao Mar do Norte.
Mais de 14 anos, passados, os níveis de radioatividade em certas regiões da
Escandinávia e dos países bálticos continuam elevados. Estima-se que a carne de
animais, como as ovelhas, que pastam nos campos contaminados por césio, devem
continuar proibidos por mais quinze anos.
Um outro aspecto político de relevância, está no fato de que a natureza das
ameaças e riscos contemporâneos podem conduzir a crises de insegurança que
levem a um alargamento do poder do Estado, deixando as definições e o controle
de riscos nas mãos de um pequeno grupo de especialistas.
Na sociedade de risco, ou “era atoquímica genética”, como define Wol Paul,
há um evidente perigo de que o ecofascismo substitua a democracia.
Oportuna a advertência com que Hobsbawm10 conclui uma densa análise do
século XX:
10 Hobsbawm, Eric. Op. cit. p. 562.
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74 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Vivemos um mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico
processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo,
que dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou pelo menos é
razoável supor, que ele não pode prosseguir ad infinitum. O futuro não pode
ser uma continuação do passado, e há sinais, tanto externamente, quanto
internamente, de que chegamos a um ponto de crise histórica. As forças
geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente grandes
para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana. As próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo mesmo
algumas das fundações sociais da economia capitalista, estão na eminência
de ser destruídas pela erosão do que herdamos do passado humano. Nosso
mundo corre o risco de explosão e implosão. Tem de mudar.
Hobsbawm reconhece também que nesse século, vivemos intensas mudanças, e
que essas mudanças se aceleraram com a mundialização do mercado. Compreender
os efeitos desse processo pode oferecer-nos a chave para sua superação.
3 A idade de ferro planetária:
efeitos do globalitarismo
A sociedade de risco é uma sociedade globalizada, marcada pelo signo da
guerra. Segundo Morin, essa idade de ferro planetária se inicia no final do século
XV com as primeiras interações microbianas e humanas, depois com as trocas
vegetais e animais entre velho e novo mundo. Essa idade de ferro, em que ainda
nos encontramos, se caracteriza pela violência, destruição, escravidão e exploração
feroz das Américas e da África.
São cinco séculos de conflitos e violentações. Nesse processo a mundialização
das idéias, as guerras de destruição maciça, ou megamortes (1º guerra: 8 milhões
de mortos; 2º guerra: 50 milhões), o triunfo aparente do modelo ocidental, a
mundialização da economia, colocou-nos, a todos, no círculo planetário.
São extensos e profundos os efeitos dessa mundialização da economia, no
meio ambiente, natural e cultural.
O mito da globalização nos colocou frente a um sistema perverso, que exclui
qualquer possibilidade de política econômica, que não se submeta aos dogmas do
neoliberalismo. Não é sem propósito, que o diretor do “Le Monde Diplomatique”
cunhou a expressão “regimes globalitários” para essa nova forma de totalitarismo,
que se assenta no dogma da globalização e do pensamento único.
À sua fantasiosa promessa de estabilidade, o globalitarismo contrapõe-nos
uma cruel instabalidade, que continua sendo o pão nosso de cada dia, na escala
mundial. Betinho11 resumiu com maestria a realidade global:
11 Souza, Hebert. Texto citado, p. A3.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 75
A riqueza de uma minoria está se transformando cada vez mais na miséria
de grandes massas humanas. A lógica fria da modernização está gerando
o desespero dos desempregados e dos marginalizados do mundo global.
Somos cada vez mais locais e globais ao mesmo tempo, as políticas protecionistas dos países desenvolvidos são cada vez mais fortes, as restrições
ao fluxo de pessoas e de bens são dramáticas, ao lado do caráter volátil e
incontrolável das operações financeiras em escala mundial, para pânico dos
analistas e apostadores da Bolsas. A fome é cada vez mais visível por toda
parte, ao lado de uma abundância sem precedente na História humana. O
narcotráfico navega na globalidade, desafiando todos os Estados nacionais e
os organismos internacionais. A violência também reivindica sua dimensão
global aproximando Washington do Rio de Janeiro.
No plano ambiental as conseqüências desse processo não são menos severas.
A globalização está se revelando uma ameaça crescente para o planeta e seus
habitantes. De acordo com um recente relatório do Worldwatch Institute, uma
organização sediada em Washington,
As florestas encolhem à medida que floresce o comércio global
de produtos florestais, de US$ 29 bilhões em 1961 para US$ 139
bilhões em 1995. Os pesqueiros entram em colapso, à medida que
aumentam as exportações de peixe, quase que quintuplicando de valor
desde 1970, para alcançar US$ 52 bilhões em 1997. A saúde humana
também está ameaçada, com as exportações de agrotóxicos subindo
quase nove vezes desde 1961, para US$ 11,4 bilhões em 199812.
Com efeito, o aumento nas exportações mundiais de bens está sendo acompanhado também por um record na extinção de espécies; essa verdadeira implosão
biológica se relaciona com o incremento no comércio e investimentos em recursos
naturais.
Nesse sentido, o relatório do Worldwatch Institute observa que:
O comércio internacional também é um mecanismo possante através do qual
produtos e tecnologias nocivas se movem em torno do planeta. Durante as
últimas décadas, o mundo em desenvolvimento tornou-se um abrigo para
uma parcela cada vez maior de uma indústria petroquímica carregada de
perigo. Aproximadamente 41 porcento dos investimentos externos diretos
dos Estados Unidos nas Filipinas em 1998 foi em produtos químicos, como
também 22 porcento o foram na Colômbia. Indústrias de alta tecnologia,
como as de computadores e eletrônica, também se globalizaram nos anos
recentes. A despeito de sua reputação inicial relativamente “limpa”, essas
indústrias hoje aplicam um custo extremamente pesado ao meio ambiente.
12 A globalização pressiona a saúde do planeta. Texto extraído do site: http://www.worldwatch.org.br/
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76 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
O setor de semicondutores utiliza centenas de produtos químicos, inclusive
arsênico, benzeno e cromo, todos e conhecidamente cancerígenos. Mais
da metade de toda o setor de manufatura e montagem de computadores
– processos intensivos no uso de ácidos, solventes e gases tóxicos - está
hoje localizado em países em desenvolvimento, conforme a Coalizão de
Tóxicos do Vale do Silício, sediada em San José, na Califórnia13.
A exportação de produto tóxico, a transferência de indústrias absoletas para
países pobres, são fatos de pouca significância econômica no mundo globalizado;
na esteira da globalização, assistimos a um significativo aumento da pobreza e da
degradação ambiental: as mudanças climáticas, a contaminação da água potável
e dos mares, o desflorestamento, a desertificação, a perda de biodiversidade e de
diversidade cultural, são sintomas de uma crise civilizacional, e levam-nos à conclusão de que nossa geração assiste a agonia planetária.
Como evidencia dessa agonia, Morin aponta alguns dos problemas que podem ser facilmente identificáveis: Associado ao fenômeno da globalização cita
o desregramento econômico mundial e seus efeitos civilizacionais, destacando a
mercantilização de todas as coisas; o desregramento demográfico, que comporta
uma imprevisibilidade; a crise ecológica e as grandes catástrofes, que caracterizam
uma verdadeira deterioração da biosfera: efeito estufa, aquecimento global; e ainda
a crise do desenvolvimento, assinalando que a idéia de desenvolvimento continua
ainda tragicamente subdesenvolvida.
Além desses problemas, facilmente perceptíveis, o autor, relaciona ainda outra
série de problemas, que classifica como de segunda evidência, entre esses o processo de proliferação de novas nações, que define como balcanização do planeta.
Sem tempo histórico para integrar suas etnias e premidas por crise econômica,
redundam na histeria nacionalista, ditaduras e conflitos étnicos, o que inibe a
constituição de instâncias de solidariedade metanacionais. “Passa-se facilmente do
humanismo ao nacionalismo e do nacionalismo ao bestialismo. (...) Os Estados
dominam a cena mundial como titãs brutais e bêbados, poderosos e impotentes.
Como ultrapassar sua era bárbara ?”14
Morin aponta ainda a crise universal do futuro, que corroeu o núcleo da fé
no progresso científico; para ele, a ciência revela sua ambivalência: se o domínio
da fusão nuclear, trouxe benefícios para a humanidade, trouxe também consigo a
possibilidade de seu aniquilamento. “O futuro chama-se doravante: incerteza”.
Destaca também a monetarização como uma tragédia do “desenvolvimento”,
observando que o melhor das culturas nativas desaparece em proveito do pior da
civilização ocidental.
13 Idem, ibidem.
14 Morin, Edgar e Kern, Anne B. Op. cit. p. 78/79.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 77
Para Morin, o desenvolvimento descontrolado da tecnociência, a Macdonaldização da sociedade, conduzem a uma nova barbárie e a um mal-estar de
civilização.
Esse quadro de policrise é reconhecido por inúmeros pensadores contemporâneos, embora, nem sempre seja fácil difícil reconhecer a verdadeira natureza desse
“mal de civilização”, dadas suas ambivalências e complexidades.
5 Contratando a Paz: por uma política planetária
Serres identifica no termo Declaração de Guerra, um contrato de direito que
precede as explosões violentas de conflitos. Recorde-se que no passado, uma
convenção internacional estabeleceu que as hostilidades de guerra “não devem
começar sem aviso prévio e explícito, sob a forma de uma arrazoada declaração
de guerra, ou de um ultimatum com declaração de guerra condicional”15; por isso
mesmo, o autor vê a guerra como um estado de direito.
Já Hobbes alertava que a guerra não se resume à batalha, mas compreende
também o período em que a vontade de disputar pela batalha é suficientemente
conhecida.
Para Hobbes, o ponto de partida da ação humana e, consequentemente da
ação moral e política é o conato, ou seja, o esforço ou desempenho. Sua visão
da vida, está centrada na competitividade (“ultrapassar continuamente quem está
adiante é felicidade”).
O grande filósofo considerava ainda que o homem procura a paz movido
pelo instinto de conservação. Para ele a introdução do homem em uma ordem
moral, regida por leis ditadas pela razão, decorre de um pacto, através do qual há
uma transferência mútua de direitos, em favor de um soberano. Somente com a
celebração desse pacto, se pode falar em justiça: “Porque sem um pacto anterior
não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas,
consequentemente nenhuma ação pode ser injusta. Mas depois de celebrado um
pacto, rompê-lo é injusto”16.
Considerava ainda, que no período que antecedeu esse contrato social, os homens viviam em estado de guerra permanente: “guerra de todos contra todos” e
que a partir do momento em que os membros do grupo concordam em renunciar
a seu direito a tudo e entregá-lo a um soberano, encarregado de promover a paz,
os homens são introduzidos em uma ordem moral, que tem como princípio o que
Hobbes identifica como “leis da natureza”, deduzidas da razão, pela necessidade de
15 Hobsbawm, Eric. Ob. cit. p. 22.
16 Hobbes, Thomas. Leviatã. Coleção Os Pensadores. Trad. João P. Monteiro e Maria Beatriz Silva. São Paulo: Abril Cultural e
Industrial, 1973, p. 86.
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78 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
conservação do homem e, que podem ser resumidas na máxima: “Faz aos outros
o que gostaria que te fizessem a ti”.
Serres discorda de Hobbes, quando este menciona o estado de guerra que
precedeu o contrato social, e pondera que se todos lutam contra todos, não há
um estado de guerra, mas apenas uma violência subjetiva, desenfreada, que ameaça de extinção, as pessoas que a ela se entregam; vê, na verdade, o contrato de
direito, como o momento em que se passa da violência para a guerra; é esta que
nos protege contra a reprodução indefinida da violência.
O autor opta por denominar guerras subjetivas, os conflitos clássicos, formalmente declarados, relações de direito, que envolveram nações em disputas por
dominações temporárias; em contraposição à violência objetiva que opõe todos
os inimigos, inconscientemente associados, a este mundo; uma violência que entra
nas vias de fato, sem contrato prévio.
O que alguns autores denominam crise civilizacional, ou crise de paradigma,
é para Serres, uma situação similar, à que marcou o surgimento do contrato social. Uma violência objetiva, contra a terra, ameaça-nos todos, coletivamente, de
destruição. Daí a necessidade de renunciarmos ao velho contrato social e assinar
um novo pacto com o mundo.
Outros autores também identificaram a falência desse contrato primitivo.
Boaventura Santos, alude a esse processo, observando que vivemos um contrato
social às avessas: excludente. Apenas uma minoria é beneficiária das cláusulas desse
contrato e uma parcela significativa está excluída e é gradativamente eliminada.
As repercussões sociais desse quadro de crise, são enormes e já foram amplamente ilustradas, todavia, interessa-nos neste momento examinar as alternativas
que possam contribuir para a superação dessa crise civilizacional, que nos coloca
em guerra com o mundo.
Para Serres a equação se resolve também pela via contratual. Assim como a
guerra, a paz é um estado de direito e se traduz em um pacto formal (contrato),
ratificando a ausência do animus beligerandi.
O pacto de armistício nessa guerra objetiva, travada entre a humanidade e o
mundo, tem as feições do que Serres denominou “contrato natural”; um contrato
de simbiose e reciprocidade.
A simbiose, diferentemente do parasitismo, admite o hospedeiro e este, numa
relação de reciprocidade, restitui o que recebeu a quem o hospeda.
Da mesma forma que o contrato social assinalou a saída do homem do estado
de natureza, e o início das sociedades, um contrato natural, pode assinalar uma
saída para a sociedade de crise, e o início de um novo momento nas relações entre
o homem e a Terra.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 79
O próprio autor questiona: “Em que linguagem falam as coisas do mundo, para
que possamos nos entender por elas com contrato ?” Ponderando:
Mas, afinal, o velho contrato social também permanecia não dito e não
escrito: ninguém jamais leu o original ou sequer uma cópia dele. É certo
que ignoramos a língua do mundo ou, pelo menos, conhecemos dela apenas as diversas versões animista, religiosa ou matemática. Quando a física
foi inventada, os filósofos iam dizendo que a natureza se escondia sob o
código dos números ou das letras da álgebra: esta palavra, código, vinha
do direito.
A Terra, na verdade nos fala em termos de forças, de ligações e de interações,
o que basta para fazer um contrato. Cada um parceiro em simbiose deve,
de direito, a vida ao outro, sob pena de morte117.
Alerta, contudo, o autor, que tudo permaneceria letra morta se não se inventasse um novo homem político, que dá a palavra à natureza e considera o ponto
de vista do mundo em sua totalidade, mas que sobretudo ama o elo que une sua
terra e a Terra.
Serres não ignora o papel do direito nesse novo contrato, pelo qual nos comprometemos a restituir pelo menos o tanto que recebemos. Assim por exemplo,
a água que usamos, por um princípio de equidade, devemos restituir à natureza,
como a recebemos.
Também Milaré18 reconhece o estado de guerra e vê o direito como uma
terapia ecológica:
Entre várias terapias ecológicas sugeridas para a prevenção e a cura da
doença ressalta o recurso ao Direito como elemento essencial para coibir,
com regras coercitivas, penalidades e imposições oficiais, a desordem e a
prepotência dos poderosos (poluidores, no caso). É que, como dissemos,
dado que o embate de interesses para a apropriação dos bens da natureza se
processa em autêntico clima de guerra, a ausência de postulados reguladores
de conduta poderia redundar numa luta permanente e desigual, com o mais
forte procurando sempre impor-se ao mais fraco. E é evidente que esse
estado de beligerância é extremamente inconveniente para a tranqüilidade
social, já que o homem não pode estarem paz consigo mesmo enquanto
estiver em guerra com a natureza.
Daí a necessidade de um regramento jurídico, para que esse jogo de interesses possa estabelecer-se com um mínimo de equilíbrio, pois onde há fortes
e fracos, a liberdade escraviza, a lei é que liberta.
17 Serres, Michel. Op. cit. p. 52.
18 Milaré, Édis. Direito do Ambiente: Doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 76.
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80 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Conquanto se festeje o fortalecimento do Direito Ambiental, tanto internamento como no plano internacional, como uma promessa de garantia de sobrevivência
para a humanidade, através da proteção real da natureza e dos processos ecológicos
essenciais, não podemos ignorar que o Direito é apenas um mecanismo formal
e operacional de que se serve poder público e o governo para a implementação
de desejáveis condições políticas, refletindo, portanto, os interesses e valores preponderantes na sociedade. Vale também lembrar Ulrich Back, que sustenta serem
as leis e instituições que estruturam a identificação e avaliação dos problemas e
riscos ecológicos, absolutamente incompatíveis com as modalidades de riscos e
perigos decorrentes do industrialismo, na sociedade de risco.
Por isso mesmo alerta Wolf Paul19, para o caráter simbólico do Direito Ambiental, advertindo que este “não possui capacidade nem potência, ou mesmo vontade,
para solucionar apenas alguns dos inumeráveis problemas da pós-moderna “ERA
atoquímica genética”.
Wolf Paul20 está convencido da gravidade dos perigos que ronda a humanidade,
presa na armadilha da civilização do progresso tecnológico, e considera que:
O Direito Ecológico ou Ambiental, criado pelo Estado Industrial ou Tecnológico para assegurar adequada administração e prevenção dos riscos e
conflitos típicos de nosso tempo, não cumpre essa função. Evidentemente,
segue sendo o portador de todos os sinais semânticos para prevenir, evitar
e sanear a destruição e degradação ambiental. Segue pretendendo ser a
contra-arma jurídica contra as forças contaminadoras, o contraveneno
jurídico contra o envenenamento químico da natureza, mas todas essas
insígnias semânticas enganaram.
Como pensar, um novo direito, sem um novo homem, ou mesmo uma nova
civilização? Na verdade, sem uma mudança de paradigma, não é possível contratar
a paz, nem superar as ameaças dessa idade de ferro planetária.
Morin vê, para isso, a necessidade de implementação de uma política de hominização da terra, o que implica no desenvolvimento de nossas potencialidades
psíquicas, espirituais, éticas, culturais e sociais. Esse é um desafio que pressupõe a
identificação de nossas finalidades terrestres, expressas em ações aparentemente
antagônicas: conservar/revolucionar, progredir/resistir.
A vida na terra deve ser conservada, e com ela, as diversidades culturais; tarefa
que pressupõe uma verdadeira revolução, ou mudança de paradigma.
Para Morin,21 sem um esforço de resistência contra o retorno à manifestações
da grande barbárie tecnocrática, não haverá progresso na tarefa de hominização,
19 Paul, Wolf. A Irresponsabilidade Organizada ? Comentários sobre a função simbólica doDireito Ambiental. In: Oliveira
Junior, José Alcebíades (Org.). O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1977, p. 178.
20 idem, ibidem.
21 Morin, Edgar e Kern, Anne B. Op. cit. p. 110.
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contribuição indígena ao contrato de armistício – 81
e o problemas chave da hominização está justamente, no subdesenvolvimento
mental, psíquico, afetivo e humano, inclusive dos desenvolvidos. A penúria afetiva e psíquica, o subdesenvolvimento do espírito humano, presentes em todas
as civilizações, “a miséria mental, a escassez de amor das sociedades de fartura,
a maledicência e a agressividade miserável dos intelectuais e universitários, a
proliferação das idéias gerais vazias e das visões mutiladas, a perda do global, do
fundamental” demonstram que a miséria aumenta com a abundância e o lazer,
num “subdesenvolvimento ético”.
No plano político, o autor aposta na regeneração da democracia, que padece de
regressões, causadas sobretudo pelo desenvolvimento da tecnoburocracia, pela redução do político ao econômico e ainda pelo enfraquecimento da participação.
Outra tarefa política, relevante, na superação do atual paradigma é, na visão de
Morin,22 Federar a Terra; pondera, o autor que a nação esgotou sua função histórica de emancipação dos povos colonizados e mostra-se cada vez mais capaz de
subjugar minorias. “A civilização da civilização requer a inter-comunicação entre
sociedades, e mais ainda: sua associação orgânica em escala planetária”.
Se nos falta ainda, a necessária “consciência cívica planetária” para realizar esse
projeto, e a globalização está aumentando a pressão sobre o planeta, resta-nos
colocá-la a nosso serviço.
Para Hilary French, autora de Vanishing Borders: Protecting the Planet in the
Age of Globalization, dirigir a globalização para proteger, ao invés de minar, os
sistemas naturais da Terra, é a chave para se construir uma sociedade ambientalmente estável no século XXI23.
French observa que novas tecnologias de informação e comunicação podem
ser controladas para forjarem alianças políticas fortes transfronteiras; cita como
indicativo dessa tendência o número de organizações não-governamentais com
atuação internacional, que disparou durante o século, elevando-se de apenas 176
em 1909 para mais de 23.000 em 1998. Capacitados através de e-mail e Internet, os
ativistas ambientais gradativamente se organizaram numa variedade de poderosas
redes internacionais.
A ampliação de redes de coalizão com atuação internacional, estão se revelando uma ferramenta eficaz para impedir iniciativas de grande impacto ambiental.
Exemplifica essa nova forma de ação política, a Coalisão Rios-Vivos24, que reúne
mais de uma centena de organizações ambientalistas e é responsável pela revisão
do projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, que ameaça o Pantanal mato-grossense;
22 Idem, p. 122.
23 French, Hilary. Como usar a globalização em favor do meio ambiente. Texto extraído do site do Worldwatch Institute: www.worldwatch.org.br.
24 Informações sobre a atuação da Coalisão podem ser obtidas no site: www.riosvivos.org.br.
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82 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
foi também esse tipo de ação, que mobilizou manifestantes por ocasião da reunião
da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle.
Também Lizt Vieira reconhece que a globalização está possibilitando o surgimento de uma sociedade civil global:
A globalização implica a importância crescente do nível supraterritorial, ou
aterritorial, das instâncias globais, e portanto, a possibilidade e necessidade
de desenvolvimento de uma sociedade civil global, o que significa uma esfera
que não seja capitalista/não-Estado ou anticompetitiva/anti-hierárquica
para os esforços democráticos. Daí as discussões sobre a reforma da ONU
e de instâncias Interestatais; sobre novos padrões, como o direito de comunicar-se; sobre o funcionamento dos movimentos sociais globais; sobre
a inter-relação das organizações interestatais, as ONGs e os movimentos
sociais globais, que vão além dos distritos eleitorais/territoriais25.
Além de revigorar os movimentos sociais internacionais, que representam, o
embrião de uma nova sociedade civil global, a globalização também pode contribuir para que o comércio dissemine produtos e tecnologias consideradas limpas,
ou ambientalmente benéficas, como o café cultivado à sombra ou a energia eólica
e solar.
As forças da globalização podem igualmente gerar ganhos ambientais, como
na ajuda aos países em desenvolvimento para que adotem tecnologias mais limpas.
French26 cita como exemplo a China que tornou-se o maior fabricante mundial
de lâmpadas fluorescentes compactas, economizadoras de energia, através, em
parte, de “joint ventures” com empresas de iluminação de Hong Kong, Japão,
Holanda e Taiwan. A Índia, também, tornou-se um grande fabricante de turbinas
eólicas avançadas, com a ajuda de tecnologia adquirida através de “joint ventures”
e contratos de licenciamento com empresas dinamarquesas, holandesas e alemãs.
Vários países estão se movimentando para dominar a economia global, mais voltadas à proteção do que à destruição da riqueza natural. A Costa Rica é hoje um
dos principais destinos de ecoturistas, capitalizando as suas florestas úmidas, praias
ensolaradas e florestas deciduais secas. E muitos outros países se movimentam para
participar do próspero mercado internacional de produtos orgânicos. O México
já dispõe de aproximadamente 10.000 fazendas orgânicas em 15.000 hectares de
terra, a maior parte dos quais administrados por pequenos fazendeiros. Enquanto
o café é sua base principal, os fazendeiros orgânicos do México também cultivam
maçãs, abacates, cocos, cardamomo, mel e batatas.
French salienta ainda que a reorientação da economia global, afastando-a das
atividades ambientalmente nocivas e na direção de outras mais sustentáveis, ne25 Vieira, Liszt. Cidadania e Globalização. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 112.
26 French, Hilary. Texto extraído do site citado.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 83
cessitará de uma estratégia de múltiplos enfoques, iniciando-se com a exigência
para as instituições econômicas darem mais atenção ao impacto ambiental dos
seus programas.
No plano internacional pondera que existem hoje mais de 230 tratados ambientais, com três quartos deles assinados durante os últimos trinta anos, salientando
que a eficácia desses acordos é freqüentemente minada por compromissos vagos
e aplicação fraca. Conclama os ambientalistas a seguirem o exemplo da OMC e
pressionar por compromissos ambientais internacionais que sejam tão específicos
e implementáveis como os acordos comerciais.
A despeito das ocorrências encorajadoras, que analisa, French reconhece que a
destruição ambiental continua a ultrapassar a ação coletiva da sociedade. “Durante
o decorrer do século, a economia global pressionou o planeta aos seus limites,
(...) Chegou a hora para a formação de políticas e instituições internacionais para
assegurar que a economia mundial do século XXI atenda às aspirações dos povos
de um futuro melhor, sem a destruição do tecido natural que sustenta a própria
vida”27.
Forçoso, porém, admitir que o projetado ideal do desenvolvimento sustentado,
não se sustenta, sem que se reveja as bases em que o modelo de desenvolvimento
está assentado. Como pensar em sustentabilidade, com o aumento da produtividade e da acumulação?
Não é sem propósito que Morin28 assinala: “A noção de desenvolvimento
deve tornar-se multidimensional, ultrapassar ou romper os esquemas não apenas
econômicos, mas também civilizacionais e culturais ocidentais, que pretendem
fixar seu sentido e suas normas”.
Ora, se estamos em guerra com o Mundo, se nosso conceito de desenvolvimento está subdesenvolvido, talvez, seja oportuno, elegermos um juízo arbitral que
nos forneça elementos para a mudança de paradigma e construção de um contrato
natural. Resta-nos investigar, em que medida, poderemos encontrar nas tradições
aborígenes, algumas pistas que nos levem a esse necessário armistício.
27 French, Hilary. Texto extraído do site citado.
28 Mor In:, Op. cit. p. 108.
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84 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
6 Contribuição da cultura indígena
para o contrato natural
Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros, da fonte de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das tecnologias,
Virá (...)
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico,
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido, o
óbvio”.
Caetano Veloso
Na guerra de todos contra tudo, índio é coisa.
Pode valer como peça de museu, ou de exposição comemorativa ao “Descobrimento do Brasil”; como um romântico exemplar histórico de um tempo remoto,
de civilizações perdidas, a ser preservado; ou como um estorvo ao progresso,
que deve ser eliminado, assim como o foram desde a chegada dos europeus:
anonimamente.
Com efeito, a história do Brasil oficial, ignora os assaltos praticados contra
as nações indígenas. Nem mesmo o massacre de guaranis, nos Sete Povos das
Missões, sul do país, é relatado. No período compreendido entre 1636 e 1646, os
bandeirantes destruíram a Missões Jesuíticas de Guaíra, Itatins, Tape e Uruguai,
matando covardemente 30.000 guaranis, incluindo mulheres e crianças, que lá
viviam e aprendiam ofícios.
Ainda que uma Encíclica Papal, de 1537, tenha reconhecido aos índios a
condição de seres humanos, e o direito a não ser escravizados ou eliminados; no
Brasil, o extermínio de indígenas prosseguiu durante todo o período colonial e foi
legalmente autorizado por Carta Régia, expedida em 1811, que estabelecia algumas
disposições sobre ações militares contra grupos indígenas:
Acontecendo, porém... que a nação Carajá continue nas suas correrias, será
indispensável usar contra ela, da força armada; sendo este também, o meio
de que deve lançar mão para conter e repelir nações Apinagé, Xavante e
Canoeiro; porquanto, suposto que os insultos que elas praticam tenham
origem no rancor que conservam pelos maus tratos que já experimentaram
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contribuição indígena ao contrato de armistício – 85
por parte dos Comandantes das Aldeias, não resta, presentemente, outro
partido a seguir, senão intimidá-los e até destruí-los, se necessário, para
evitar os danos que causam29.
Mudaram-se os métodos, mas os índios permanecem coisa; e a guerra que o
homem move contra o mundo, tem no índio uma presa fácil.
Estes foram e continuam sendo eliminados em todo mundo, vítimas de atentados, com armas convencionais, armas bacteriológicas, e ainda mediante a destruição
de suas condições materiais de sobrevivência ou a supressão de sua cultura.
Tudo sob o pálio da lei. O direito continua na retaguarda dos acontecimentos.
Em nosso país, os índios seguem sendo vítimas civis, ou quase civis, de uma
guerra onde não se contam os mortos. Considerados legalmente como relativamente incapazes, os silvícolas são “defendidos” pela burocracia e sobrevivem por
mera teimosia.
A lei penal tipifica como genocídio a exterminação em massa dos silvícolas,
mas também para os índios, a proteção jurídica é meramente simbólica. Estima-se
que milhões de indígenas habitavam o Brasil antes do descobrimento; dezenas de
nações foram exterminadas antes que se fizessem conhecidas.
Assim ocorreu em todo o Novo Mundo. Civilizações prósperas e extremamente
complexas como os Maias e Astecas, desapareceram levando consigo, uma cultura
milenar, de cuja riqueza restam apenas vestígios.
O mesmo se diga das inúmeras nações indígenas que ocupavam a região
posteriormente conhecida como América do Norte; vítimas de um genocídio
perpetrado pelo nascente Estados Unidos; as nações, Navajo, Sioux, Duwamish
entre outras, estão imortalizadas na iconografia que os retrata como facínoras,
traiçoeiros e animalescos.
Melhor sorte não assistiu aos Incas. Nos Andes, o Império Inca, formava um
reino de grande extensão geográfica, com cidades populosas e uma avançada organização social; dele restam apenas, relatos e ruínas arqueológicas. A colonização
espanhola dizimou o império, para apossar-se de suas ricas minas de ouro e prata,
ali instalando uma colônia com uma população pobre e dependente.
Uma interessante análise econômica escrita por François Quesnay, em 1767,
sobre o Governo dos Incas no Peru, embora pouco conhecida, ilustra com clareza,
os avanços na organização econômica do extenso Império Inca.
Quesnay observou que embora abundante em ouro e prata, esses mineiros só
serviam à ourivesaria; os incas não tinham moeda, nem comércio exterior, mas
ainda assim formaram um reinado próspero, onde inexistiam pobres, ociosos,
ladrões ou mendigos.
29 Fernandes, Joana. Índio – Esse nosso desconhecido. Cuiabá: EdUFMT, 1993, p. 33.
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86 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
“A lei natural ditou as leis do Estado; ela regulava os direitos e deveres do soberano e dos súditos: não se conhecia, no Peru, por verdadeiras riquezas senão as
produções da terra necessárias à subsistência dos homens”30. Quesnay ressalta ainda o
fato de inexistir hereditariedade no direito da terra, que era cultivada em comum:
Com essa divisão da terra ninguém ficava em estado de indigência; o estado
ou a fortuna de cada habitante era sempre assegurado por uma forma de
igualdade (...) Este governo de um povo poderoso e corajoso, cuja ruína foi
causada por um acontecimento funesto, existiu durante vários séculos, no
puro estado de natureza (...) Sua constituição encerra objetivos tão sábios
e profundos que encontramos nele (...) a ordem radical de um governo o
mais próspero e o mais eqüitativo31.
Que dizer dos índios que habitavam o Brasil antes da invasão européia? Quantos nações foram exterminadas? O que se perdeu, em termos de conhecimento
e cultura?
Segundo as estimativas oficiais, sobrevivem no Brasil, cerca de 350 mil índios
espalhados pelo território brasileiro; são 220 povos falando 180 línguas, com
costumes e tradições peculiares.
Como de praxe nas guerras inauguradas pela modernidade; os perdedores são
confinados em áreas de segurança, nas quais lhes é permitido reproduzir sua cultura,
sob constante pressão, de madereiros, garimpeiros, biopiratas e outros interesses
econômicos que lhes são estranhos; fora dos parques de concentração, o índio
deixa de ser índio, mas continua meio cidadão; um objeto cultural a ser apreciado
à distância, ou mera imagem construída com base em estereótipos.
Nesse contexto, é pertinente indagar, se a tradição indígena pode nos fornecer
elementos para uma revisão ética, da relação homem natureza.
Em princípio, resgatar na cultura e tradições indígena, elementos para essa
revisão ética, aparentemente representa uma opção política incapaz de despertar
controvérsias, mesmo porque, conforme contatado em pesquisa encomendada ao
IBOPE, pelo Instituto Sócio Ambiental, a população brasileira, em sua maioria,
possui uma visão edílica dos povos indígenas e defende uma ação mais consistente
do Poder Público na proteção dos remanescentes, inclusive com a demarcação
dos parques indígenas.
Todavia isso não significa que o brasileiro globalizado aceite rever seus padrões
éticos e ambientais, tomando como referência a cultura indígena. Nem mesmo a
imagem do índio convivendo em harmonia com a natureza, está incólume.
30Quesnay, François. Análise do Governo dos Incas no Peru. Apud: Cordeiro, Renato Caporali. Da Riqueza das Nações à Ciência
das Riquezas. São Paulo: Loyola, 1995, p. 79.
31 Idem, ibidem.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 87
Parece que o poeta profetizou ao afirmar que somente depois de exterminada a
última nação indígena, os homens terão ouvidos para o que o índio tem a dizer.
Não chega a surpreender, o destaque dado pela imprensa à campanha de “desmistificação” dos povos indígenas. Exemplos desse trabalho podem ser recolhidos
na grande imprensa dioturnamente.
Duas notícias veiculadas pela revista Veja, exemplificam, essa campanha: Em
plena Conferencia Rio-92, a citada revista circulou nacionalmente trazendo na capa
a foto do Cacique Paiacã, apresentado como “O Selvagem”, antes mesmo que se
apurassem os fatos de que este era acusado. Mais recentemente, a mesma revista
dedica uma página à divulgação de um polêmico trabalho intitulado “Bárbaros na
floresta: o mito do nobre selvagem”, no qual o sociólogo Robert Whelan alinha
fatos pouco conhecidos para tentar qualificar como uma mistificação, a idéia de que
os índios podem fornecer exemplos de convivência harmônica com a natureza.
A reportagem faz uma análise da pesquisa de Whelan, enfatizando que este
cita, em seu livro, alguns exemplos de práticas predatórias de povos indígenas,
como a de uma tribo do Estado americano do Wyoming que usava como técnica
de caça a estratégia de encaminhar, manadas de búfalos para precipícios. Whelan
menciona também exemplo dos Yuquis, na Bolívia, como indígenas sem consciência ecológica, observando que o mito de que os índios eram amantes da natureza
se difunde a partir do séc. XVI, quando os europeus atribuíram a exuberância
das matas americanas ao fato de que os nativos não se relacionavam com ela de
forma predatória. Segundo Whelan, essa idealização alimentou vários filósofos
como Montaigne e Rousseau, concluindo que “não há nada de mais em gostar dos
índios, o problema é quando as utopias dos ambientalistas influenciam políticas
desastradas”32.
Na verdade, há um nítido componente ideológico, tanto na reportagem, como
na obra que esta difunde. Com discutíveis exemplos, que podem ser considerados
pouco expressivos, Whelan polemiza, lançando dúvidas sobre as políticas indígena
e ambiental; alimentando, dessa forma, o preconceito contra os “selvagens” e
“ambientalistas sonhadores”.
Estrategistas denominam campanha, as operações de guerra. Estamos diante
de uma campanha, ou apenas de uma investigação científica realizada com todo
o rigor cartesiano? Afinal, os parcos exemplos citados por Robert Whelan, extraídos de um amplo universo que compreende milhares de etnias, permitem-nos
concluir, como o autor, que não há “selvagem” nobre? Se a tese de Whelan é uma
falácia, que interesses políticos e econômicos a motivaram e quais justificam sua
propaganda?
32 O Mau Selvagem. Revista Veja. 24.05.2000, p. 149.
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88 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Talvez a resposta para essas perguntas só possa ser obtida, com recurso à
lógica da guerra, onde ataques e recuos servem para minar o campo do adversário. Afinal, nem sempre a imprensa trata como selvagens, os povos indígenas; e
principalmente, o mundo não está em guerra contra eles; a guerra, como lembra
Serres, é de todos contra tudo.
Vale observar que, é sempre bem vinda, a investigação científica, que traga
luzes à história da humanidade e forneça bases sólidas para políticas públicas
eficazes; contudo, nenhuma análise da questão indígena, será consistente, se ignorar, a insuficiência dos registros históricos disponíveis, a variedade e riqueza das
etnias que já povoaram a terra e sobretudo o genocídio implacável a que foram e
continuam sendo submetidas.
Postas as limitações, voltemos ao cerne da reflexão proposta, temos algo a
aprender com os índios?
Oportuno lembrar que a identificação de nossas finalidades terrestres implica,
como salientou Morin, em um reencontro da relação passado-presente-futuro, e
é uma das finalidades da política de hominização. Para ele, o retorno às fontes do
passado pode ser estabelecido através do reconhecimento ao direito à vida para
todas as culturas, além do necessário, “reinvestimento na arqué antropológica/
biológica/terrestre, que sendo comum a todos os humanos, de maneira nenhuma
impede retornos a fontes singulares. O passado não é apenas o passado singular
de uma etnia ou de uma nação, é o passado telúrico, hominizante, humano que
deve ser apropriado e integrado em nós”33.
Certamente, que um aspecto importante que rege a relação homem/meio
ambiente, para os indígenas, está na sua relação com a terra. Ainda hoje, para as
sociedades indígenas, o conceito corrente de terra, é insuficiente para designar o
seu habitat, resultando mais adequado o conceito ‘território indígena’.
Observa Joana Fernandes que:
O território indígena tem uma particularidade: o de ser coletivo e pertencer
igualmente a todo o grupo. Não existe propriedade privada entre os índios.
Todos tem acesso à terra, e esse acesso é efetivado através do trabalho e de
ocupação de fato de uma determinada porção do território tribal34.
Não se ignora que interesses econômicos estão na base da geopolítica, definindo as armas, as regras, e os movimentos da última Grande Guerra; pois justamente nesse aspecto a tradição indígena, oferece importantes elementos para
uma revisão crítica das regras aceitas como dogmas intangíveis; mesmo porque,
33 Morin, Edgar e Kern, Anne B. Op. cit. p. 115.
34 Fernandes, Joana. Op. Cit. p. 81.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 89
conforme salienta Morin35, “a economia, que é a ciência social matematicamente
mais avançada, é a ciência social humanamente mais atrasada, pois se abstraiu das
condições sociais, históricas, polítricas, psicológicas e ecológicas inseparáveis das
atividades econômicas. (...) De repente, a incompetência econômica torna-se a
problemática principal da economia”.
Aqui voltamos a Quesnay36, mestre fisiocrata, que analisou o modelo econômico dos Incas.
No Peru havia ouro e prata em abundância, mas a sociedade se organizava
para produzir ‘riquezas verdadeiras” sem ter moeda ou escrita. A sociedade
era rica, organizava-se bem, sem viver em torno da obsessão monetária. Em
outro texto Quesnay havia notado que, antes da descoberta da América, a
Espanha extraía suas riquezas da agricultura e sua população era forte e numerosa. Com a descoberta das minas do Peru, a agricultura foi abandonada,
o reino se despovoou. Existe algo de fascinante nessa história: ela poderia
ser considerada como uma reedição da sátira de Midas, agora transformada
numa dupla tragédia histórica. Um povo obcecado pela ilusão monetária
chegou a destruir num só movimento duas nações prósperas na produção
de riquezas: a dos Incas e... a sua própria.
Nesse mesmo sentido, a conclusão de Robert Carneiro, que analisou a agricultura dos Kuikuro, tendo observado que estes poderiam produzir mais, mas
deliberadamente optavam por uma produção menor. Para Carneiro, “a economia
das sociedades indígenas transcende à relação sociedade X meio ambiente e à
produção. A economia está submetida a interesses e a pressões culturais e políticas. Produz-se pouca mandioca porque assim se deseja, porque as necessidades
são limitadas”37.
A despeito de despenderem, poucas horas do dia, para o trabalho38, os índios
se alimentam com fartura; não se permitindo a acumulação de excedentes, nem
a exploração do trabalho. Aparentemente, o modelo é o de uma economia de
subsistência, forjado pela preguiça e incapacidade dos índios; estereótipo bastante
difundido entre os brasileiros.
Todavia, como pondera Joana Fernandes,
Compreender a economia indígena não é tão simples quanto estudar
ecologia alimentar, meios de produção, divisão do trabalho etc. As sociedades indígenas têm um alto nível de integração em todos os níveis que as
compõem: o social, o religioso, o mitológico, o familiar, o econômico.
35 Morin, Edgar e Kern, Anne Brigitte. Op. cit. p. 160.
36 Cordeiro, Renato Caporali. Op. cit. p. 79.
37 Apud Fernandes, Joana. Op. cit. p. 94.
38 Os Yanomamo trabalham cerca de duas horas (mulheres) e três horas (homens), para se alimentarem com fartura.
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90 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Neste sentido, um trabalho sobre os Tukano, do Noroeste do Amazonas,
de autoria de Dolmatoff (1975) vem demonstrar que a economia indígena pode estar ligada a outros fatores que não dizem respeito apenas à
racionalidade para obtenção de recursos, à adaptação ao meio ambiente,
à ideologia econômica. O autor mostra que a cosmologia, os mitos e os
rituais representam um conjunto de princípios ecológicos que resultam
em um conjunto de regras sociais e econômicas que ao final garantem um
equilíbrio entre os recursos do meio e a demanda da sociedade39.
Nessa inter-relação entre os fatores econômicos, culturais e religiosos, mitos
e lendas preservam o encantamento da natureza e evitam práticas antiecológicas
e também antieconômicas.
Assim, por exemplo, os Bakairi Kura não praticam a sobrepesca tratam com
respeito os mananciais hídricos, transmitindo de geração à geração, a visão do rio
como a morada dos espíritos sobrenaturais.
Conta Apiaga, da tribo dos Bakairi Kura40:
Na aldeia era costume de um casal tomar banho no rio todos os dias.
Ao chegar na beira do rio os dois ficavam brincando, assim passavam o
tempo.
Um certo dia, chegando na beira do rio o marido jogou uns pingos d’água
em sua mulher e puxou-a para dentro do rio, ela deu um mergulho, depois
deu um mergulho longo e custou a aparecer; quando emergiu, já no meio
do rio, tornou a mergulhar, dessa vez bem mais longe, quando apareceu, já
se parecia com um jaú, com barba e tudo.
O marido desesperado gritou:
– Mulher, mulher, volte prá cá !
E ela não respondia, mergulhou nas profundezas do rio e não apareceu
mais.
O marido com muita tristeza voltou para casa e contou à sua sogra que sua
mulher desaparecera nas profundezas do rio.
Enquanto isso, no fundo do rio, a mulher que virou jaú, vivia feliz em sua
nova morada, com o jaú que a raptara.
Com o passar do tempo, a mulher que virou jaú teve vontade de voltar à
casa de seus pais, para contar como se vivia dentro de um rio.
Segundo narrou, lá ela viu que o rio não é apenas um rio, é a morada dos
peixes, dos espíritos sobrenaturais, que devem ser tratados com muito respeito. Cada peixe tinha e tem função específica, por exemplo, os pequenos
lambaris são coberturas de casas, a matrinchã é a mistura vermelha usada
39 Fernandes, Joana. Op. cit. p. 96.
40 História escrita na lingua Bakairi por Apolônio Apiaga e traduzida para o português por Reginaldo Ikaura, Vânia Ataiwalo e
Valdenor Aigore. Gentilmente cedida por Darlete Taukane (ainda não publicada).
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 91
para fazer comida, o peixe cachorro serve como espremedor de massa
(tipiti) de mandioca, e a arraia serve como panela de barro.
Ao ouvir a narrativa da mulher que virou jaú, sua irmã mais nova ficou
interessada e pediu para acompanha-la até o fundo do rio. Seu pedido foi
aceito com uma condição, a de se comportar respeitando o rio como uma
morada e não olhar os peixes apenas como alimentação.
Chegando lá, dentro do rio, a irmã mais nova da mulher, se esqueceu da recomendação e foi logo catando os lambaris, para assá-los, comendo também
as arraias, isso significava destelhar as casas e quebrar as panelas.
Envergonhada as mulher trouxe de volta a sua irmã e passou a morar para
sempre no fundo do rio.
A partir dessa narrativa, transmitida pela tradição oral, de geração para geração,
os Bakairi Kura, adotam algumas práticas ecológicas que são respeitadas pela tribo;
assim por exemplo a pesca do lambari é feita com critérios, para que não destelhem
as casas do reino das águas; as arraias são poupados, porque não se devem comer
as panelas; a pesca é feita sem agredir o meio ambiente.
O respeito pelos rios está na tradição da maioria das nações indígenas; desprovidos de lendas e mitos, o Homo sapiens demens sofre os dramáticos efeitos da
poluição e da escassez de água, um fenômeno, que mobiliza cientistas, políticos e
ecologistas em todo o mundo; ainda assim, se concentra em regiões onde a água
é escassa e lança sobre ela seus excrementos. Essa é, segundo Serres, a forma
extercoral com que o homem demarca o território e confirma sua propriedade.
Já os índios vivem às margens de rios e igarapés de águas abundantes e límpidas
e aprendem, ainda criança, a jamais urinarem dentro d’água.
Apenas uma lenda, separa duas práticas tão antagônicas?
Na verdade, o que denominamos lenda, constitui a forma peculiar com que
o índio conta a sua origem, a origem do mundo, do cosmo; reveladora de como
funciona o pensamento nativo.
O índio Jacupé observa que os antropólogos chamam de mitos e algumas
dessas histórias são denominadas lendas:
No entanto para o povo indígena é um jeito de narrar outras realidades ou
contrapartes do mundo em que vivemos. De maneira geral pode se dizer
que o índio classifica a realidade como uma pedra de cristal lapidado que
tem muitas faces. Nos vivemos em sua totalidade, porém só aprendemos
parte dela através dos olhos externos. Para serem descritas, é necessário
ativar o encanto para imaginarmos como são as faces que não podem ser
expressas por palavras41.
41 Jacupê, Kaka Werá. A Terra dos Mil Povos: História indígena brasileira contada por um indio. São Paulo: Fund. Petrópolis.
1988, p. 68.
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92 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Ativar o encanto da natureza; um ensinamento incognoscível, para o homem
moderno. Afinal, Weber nos convenceu a realizar o “desencantamento do mundo”;
assim nossa civilização incorporou em seu paradigma a afirmação cartesiana de
que o homem deve se tornar mestre e senhor da natureza; ou que esta deve ser
forçada a render seus segredos, como enfatizou Bacon.
Leonardo Boff42 aponta algumas conseqüências desse modelo de desenvolvimento, que se forjou:
Agilizaram-se todas as forças produtivas para extrair da Terra tudo o que
ela pode fornecer. Ela foi submetida a uma verdadeira cama de Procusto,
investigada, torturada, perfurada para entregar todos os seus segredos.
Organizou-se um assalto sistemático a suas riquezas no solo, no subsolo,
nos ares, nos mares e na atmosfera exterior. A guerra foi levada em todas as
frentes. A produção de vítimas é inaudita: a classe operária mundialmente
oprimida, nações periféricas exploradas, a qualidade geral de vida deteriorada
e a natureza espoliada.
Sobre a extensão desse processo, Nancy Mangabeira Unger, elucida:
“Para que uma floresta possa ser vista unicamente com o olhar daquele que
vê nesta floresta matéria-prima para a sua fábrica de celulose, é preciso realmente que esta floresta seja totalmente desprovida de encantos, é preciso que
esta floresta seja reduzida aos seus aspectos produtivos. Simultaneamente,
para que seres humanos aceitem sua própria redução à categoria de objeto,
de mercadoria, é necessário sufocar neles determinadas potencialidades
espirituais: a experiência do sagrado, a intuição, a capacidade visionária,
fazendo predominar uma racionalidade de tipo linear e instrumental”.43
Assinala, ainda, a autora:
A expulsão do sagrado para fora do Cosmos traz como conseqüência progressiva divisão entre ciência e sagrado, entre saber e sabedoria. Ora, um
mundo dessacralizado é um mundo passível de cálculo e manipulação pelo
sujeito humano, visto finalmente na modernidade como centro ontológico
do Universo.
Ao se tornar cada vez mais autocentrado e arrogante, o homem moderno
passa a entender sua humanidade na razão direta de sua capacidade de
dominar e manipular o mundo e os outros homens44.
Já alertara Morin que o núcleo da tragédia está também no pensamento, e que
reformá-lo é um problema antropológico e histórico-chave. A incapacidade do espírito tecno-burocrata de perceber o global, uma falsa racionalidade, ou racionalização
abstrata e unidimensional, levaram o homem a uma imbecilidade cognitiva:
42 Boff, Leonardo. Dignitas Terrae – Ecologia: Grito da terra, Grito dos Pobres. São Paulo: Ática, 1999, p. 104.
43 Unger, Nacy Mangabeira. O Encantamento do Humano: Ecologia e Espiritualidade.São Paulo: Loyola, 1991, p. 55.
44 Idem, ibidem.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 93
Por toda parte, e durante dezenas de anos, soluções pretensamente racionais, apresentadas por experts convencidos de agir em nome da razão e
do progresso e de encontrar apenas supertições nos costumes e temores
das populações, empobreceram ao enriquecer, destruíram ao criar. (...) A
verdadeira racionalidade está aberta e dialoga com o real que lhe resiste.
Ela opera uma ligação incessante entre a lógica e o empírico; ela é fruto de
um debate argumentado de idéias, e não a propriedade de um sistema de
idéias. A razão que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade, a vida é
irracional. É preciso levar em conta o mito, o afeto, o amor, a mágoa, que
devem ser considerados racionalmente45.
O pensamento do contexto e do complexo, é radical, multidimensional, sistêmico e ecologizado; negocia com a incerteza e não despreza os mitos e lendas
que forjaram culturas ricas que muito podem contribuir para a necessária reforma
do pensamento.
A polêmica reunião da OMC em Seattle bem poderia ser precedida da releitura da Carta do Cacique Seatlle, lida ao então Governador do território de
Washington em 1856, em resposta à consulta, na qual propunha a compra das
terras indígenas.
No histórico discurso do Cacique dos Duwamish, confrontam-se dois paradigmas; nela está também “o segredo da nova aliança que deve ser inaugurada
entre o ser humano e o seu belo e grandioso planeta Terra”46; a essência da
contribuição indígena ao contrato natural; uma visão do mundo que reconhece
a inter-dependência e a re-ligação de todos os seres; a sacralidade da natureza; a
perplexidade diante da crueldade humana e o reconhecimento de que temos um
destino comum.
Dada a sua extensão, transcrevemos apenas alguns tópicos do citado discurso47:
O Grande Chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar nossa
terra.
O Grande Chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência.
Isto é gentil de sua parte, pois bem sabemos que ele não precisa de nossa
amizade.
Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos,
o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O Grande Chefe de
Washington pode confiar no que o chefe Seattle diz, com a mesma certeza
com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações
do ano. Minha palavra é como as estrelas. Elas não empalidecem.
45 Morin, Edgar e Kern, Anne B. Op. cit. p. 166.
46 Boff, Leonardo. Dignitas Terrae – Ecologia: Grito da terra, Grito dos Pobres. São Paulo: Ática, 1999, p. 336.
47 A íntegra do discurso pode ser encontrada nas seguintes obras: Boff, Leonardo. Op. cit. p..336-341; e Araújo, J. Estamos
desaparecendo da Terra. São Paulo: Bahá-i do Brasil, 1991, p. 39-45.
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94 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Como podes comprar e vender o céu e o calor da terra? Tal idéia é estranha
para nós. Se não somos dono da pureza do ar ou do resplendor da água,
como então podes comprá-los ?
Cada torrão desta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente de
pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada
clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do
meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações
do homem vermelho.
O homem branco esquece a sua terra natal, quando, depois de morto, vai
vagar por entres as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta famosa
terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é
parte de nós (...)
Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim
o sangue dos nossos ancestrais. (...) Os rios são nossos irmãos. Eles saciam
nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos.
Se te vendermos nossas terras, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos
que os rios são irmãos nossos e teus e terás de dispensar aos rio a mesma
afabilidade que darias a um irmão.
Sabemos que homem branco não compreende o nosso modo de viver.
Para ele um lote de terra é igual ao outro, porque ele é um forasteiro que
chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é
sua irmã, mas sim sua inimiga. (...) Ele trata sua mãe, a terra, e seu irmão,
o céu, como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como
ovelhas ou quinquilharias brilhantes. (...) Sua voracidade arruinará a terra,
deixando para trás apenas um deserto. (...)
O ar é precioso para o homem vermelho, por que todas as criaturas participam da mesma respiração, os animais, as árvores, e os seres humanos.
Todos participam da mesma respiração. O homem branco não parece
perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele
é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de lembrar
que o ar é precioso para nós, que o ar reparte o espírito com toda a vida
que ele sustenta. (...)
Assim, pois, vamos considerar tua oferta de compra de nossa terra. Se
decidirmos aceitar, farei uma condição: o homem branco deve tratar os
animais desta terra como se fossem seus irmãos.
Sou um selvagem e não consigo pensar em outro modo. Tenho visto
milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem
branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um
selvagem e não entendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser
mais importante que o bisão que nós, os índios, matamos apenas para o
sustento de nossas vidas.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 95
O que é o homem sem os animal ? Se todos os animais se acabassem, o
homem morreria de solidão de espírito, por que tudo que acontece aos
animais, logo acontece também ao homem. Tudo esta relacionado entre
si. (...)
Tudo quanto fere a terra, fere os filhos e as filhas da terra. Se os homens
cospem no chão, cospem sobre eles próprios. (...)
De uma coisa sabemos: a terra não pertence ao homem.
É o homem que pertence a terra. disso temos certezas. Todas as coisas estão
interligadas como o sangue que une uma família. Tudo esta relacionado
entre si. O que fere a terra fere também os filhos e filhas da terra. Não foi
o homem que teceu a trama da vida: Ele é meramente um fio da mesma.
Tudo que fizer á trama. a si mesmo fará. (...)
Nem o homem branco com seu Deus, com quem anda e conversa de amigo
para amigo, está fora do destino comum. Podíamos ser irmãos apesar de
tudo. Vamos ver. De uma coisa sabemos, que o homem branco venha talvez,
um dia, descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez julgues que O
podes possuir do mesmo jeito como desejas possuir nossa terra. Mas não
o podes. Ele é Deus da humanidade inteira. Ele tem a mesma piedade para
com o homem vermelho e para com o homem branco. Esta Terra é preciosa
para Ele. Causar dano à terra é desprezar o seu Criador.
Os brancos também vão acabar um dia. Talvez mais cedo do que todas
as demais raças. Continuem! Poluam sua cama! Numa noite, irão morrer
sufocados nos próprios dejetos! (...)
Deus vos deu, por algum desígnio especial, o domínio sobre os animais, as
florestas e sobre o homem vermelho. Mas este desígnio é para nós um enigma.
Compreendê-lo-íamos talvez se conhecêssemos os sonhos do homem branco,
se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos e filhas nas
longas noites de inverno e quais as visões de futuro que oferece às suas mentes
para que possam formular desejos para o dia de amanhã. (...)
Se te vendermos nossa terra, ama-a como nós a amamos. Protege-a como
protegeríamos. Nunca esqueças de como era essa terra quando dela tomaste
posse. E com toda sua força, o seu poder e todo o seu coração conserva-a
para teus filhos e filhas e ama-a como Deus nos ama a todos.
De uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é sagrada. Nem mesmo o homem branco pode esquivar-se do destino comum
a todos nós.
Quase dois séculos passados, a mensagem do Cacique Seattle, permanece
atual. No Brasil a Constituição garante aos indígenas os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam; contudo essa garantia também é apenas
simbólica. Resta aos índios resistir e lutar pela demarcação e respeito aos limites
de suas reservas; enquanto isso, o homem branco, em sua voracidade, apropria-se
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96 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
dos últimos santuários e pressiona os ecossistemas preservados, planejando lançar
sobre eles a marca de sua civilização.
Oportuno lembrar Serres48, que considera a poluição um fenômeno essencialmente humano:
[...] a imundície imprime no mundo a marca da humanidade”. Para ele,
assim como alguns animais delimitam seu território, com os próprios excrementos, também os homens sujam os objetos como forma de indicar
sua apropriação. “Essa origem estercoral ou excremental do direito de
propriedade me parece uma fonte cultural do que chamamos de poluição
que, longe de resultar em atos involuntários, como por acidente, revela
intenções profundas e uma motivação primordial.
Estamos embarcados e temos responsabilidades na condução do barco. Ouçamos os índios que navegam conosco; eles nos falam o óbvio.
Com a palavra Ailton Krenar49:
É assim que vemos as coisas; é como se estivéssemos todos numa canoa a
viajar pelo tempo. Se alguém começar a fazer uma fogueira na sua parte da
canoa e outro começar a deitar água dentro da canoa e uma outra começar
a urinar para a canoa, tudo isso vai afetar-nos a todos. É responsabilidade
de cada pessoa na canoa garantir que ela não será destruída.
48 Serres, Michel. Op. cit. p. 45.
49 Apud: Heinberg, Richard. Um novo pacto com a natureza. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 259.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 97
6 Considerações finais
Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva.
Hördelin
Vivemos o apogeu da idade de ferro planetária. Uma era atoquímica genética;
sobretudo uma era de guerras, com magamortes, onde todos estamos expostos
a riscos.
A barbárie da civilização tecnocrática, nos colocou em guerra com o mundo,
provocando uma verdadeira implosão biológica que ameaça o futuro do planeta.
Mudanças climáticas, camada de ozônio, contaminação radioativa, mutações
genéticas, já são expressões de domínio popular. Acontecimentos como as enchentes no rio Yang-Tsé, na China, provocada pelo desmatamento, e que deixaram
14 milhões de desabrigados, já não nos surpreende. As tragédias se repetem em
todos os continentes. Só na América Latina, chuvas anormais mataram, em 1999,
cerca de 30.00 pessoas.
Comprometidas com um projeto de desenvolvimento tecnocrático as elites
ignoram os sinais da agonia planetária.
Como bem salienta Ulrich Back, elas estão comprometidas e atuam irresponsavelmente, manipulando dados e informações científicas, escamoteando a origem
e conseqüências dos riscos.
Um frenético processo legislativo, transfere ao Direito a responsabilidade pela
restauração do equilíbrio ecológico e melhoria da qualidade de vida; a par de novas
leis ambientais, inúmeros tratados internacionais são assinados; contudo, além de
incompatíveis com a natureza dos riscos e perigos do industrialismo contemporâneo, estes possuem apenas uma função simbólica, e servem como mera promessa
de controle e responsabilização.
O Direito pode realmente se transformar em uma terapia ecológica, mas isso
só será possível se perder sua função simbólica e criar mecanismos que garantam
efetividade à proteção prometida. É improvável, que possa exercer essa função
real, num quadro de globalitarismo, onde o projeto neoliberal exige a redução do
Estado e do espaço político.
Oportuno lembrar que o processo de globalização não se restringe à mundialização da economia, com suas perversas conseqüências sociais e ambientais;
mas estende-se a outras áreas e trás também consigo, o germe da destruição do
neoliberalismo.
A entrada em cena, no final do século XX dos Novos Movimentos Sociais, “que
pautam suas reivindicações para além das simples demandas econômicas e querem
uma transformação não só da sociedade em seus aspectos econômicos e sociais mas
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98 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
também uma nova relação homem-mulher-natureza” 50, constitui-se em importante
fator que pode levar à regeneração da democracia, ou mesmo sua geração em alguns
países, “sob os auspícios de um outro modelo de desenvolvimento que leve em
consideração justiça social, equilíbrio ecológico e viabilidade econômica”.51
Como bem enfatiza Lizt Vieira:
O desenvolvimento de uma sociedade civil global depende e, ao mesmo
tempo, estimula a democratização, a desconcentração e a descentralização das organizações interestatais e instituições capitalistas globais. Uma
sociedade civil global requer a noção de cidadania planetária, que já não
pode ser simplesmente o universalista religioso, o cosmopolita liberal ou
o internacionalista socialista. A transição gradual do capitalismo industrial
ao de informação, as múltiplas crises de crescimento e uma propagação
da consciência ecológica impõem a necessidade de busca de uma política
eticamente informada e consciente52.
Acredita também, José Rubens Morato Leite53, que a partir da tomada de consciência global da crise ambiental, uma cidadania moderna e participativa nos levará
à concretização de um Estado de direito ambiental, que será também um Estado
de Justiça ou Eqüidade Ambiental, tendo como âncora, uma carta de respeito à
natureza, que implicará na remodelação do mercado e do consumo existentes na
sociedade contemporânea.
O processo de consciência global está em curso. Por uma lado, catástrofes
antes tidas como natural são hoje reconhecidas como induzidas pelo homem. Por
outro lado, o individualismo, a pobreza e a intolerância, exacerbados pelo modelo
neoliberal, pressionam o cotidiano da população, que agora reivindica também,
paz e solidariedade.
Reverter este mal-estar de civilização, envolve uma mudança de paradigma e a
constituição de uma nova ética, que nos possibilite sair do estado de beligerância
e celebrar com o mundo armistício.
É possível, e também uma esperança, que Hobbes estivesse correto ao afirmar
que o homem, movido pelo instinto de conservação, procura a paz e com isso é
introduzidos em uma ordem moral, tendo como princípios as leis da natureza.
Algumas dessas leis da natureza, que levam o homem a fazer com os outros,
apenas o que gostaria que fizessem consigo, integram, o que Serres pensou como
50 Portanova, Rogério. Qual o papel do Estado no século XXI? Rumo ao Estado de bem estar ambiental. In: LEITE, José
Rubens Morato (Org.). Op. cit. p. 240.
51 Portanova, Rogério. Op. cit. p. 241.
52 Vieira, Liszt. Op. cit. p. 113.
53 Leite, José Rubens Morato. Estado de Direito do Ambiente: Uma Difícil Tarefa. In: LEITE, José Rubens Morato (Org.).
Inovações em Direito Ambiental. Florianópolis: Fund. José Arthur Boiteux, 2000, p. 13-40.
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Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 99
contrato natural: uma verdadeira revolução para a humanidade, que implica em
uma nova visão de mundo, em cuja construção, certamente, poderemos colher
bons subsídios nas tradições aborígenes.
Frederico Mayor e Jérome Bindé54, partilham da visão de Serres, mas pensam
que a reformulação da sociedade planetária, deve se basear em quatro contratos,
que constituirão os pilares de uma nova democracia internacional”; são eles:
Primeiro: um novo contrato social que resolva o problema da exclusão e contribua para a construção de uma sociedade igualitária, redistribuindo os dividendos
da globalização;
Segundo: o contrato natural, que alie ciência, desenvolvimento e preservação;
Terceiro: o contrato cultural, que assegure a educação a todos, respeitando as
diferenças culturais;
Quarto: o contrato ético, que encoraje o impulso de uma cultura de paz e um
desenvolvimento inteligente e, sobretudo que considere a solidariedade como
uma opção política nova55.
Algumas ações já indicam a existência de um esforço coletivo, para a construção
de uma nova ética pautada na solidariedade e orientada para a realização da paz
– “Quem quer a paz, faz”.
Nessa sintonia, um grupo de laureados do Prêmio Nobel da Paz, que se reuniu
em Paris para o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
esboçou um documento que está sendo utilizado ONU em uma campanha mundial,
visando inspirar a tolerância e a solidariedade em nosso cotidiano. Todos estão
sendo convidados a divulgar e assinar o “Manifesto 2000”. No Manifesto cada
signatários reconhece a parte de sua responsabilidade ante o futuro da humanidade
e se compromete a:
1 Respeitar a vida. Respeitar a vida e a dignidade de cada ser humano sem
discriminação nem preconceito
2 Rejeitar a violência. Praticar a não-violência ativa, rejeitando a violência
em todas as suas formas;
3 Ser generoso. Cultivar a generosidade, a fim de terminar com a exclusão,
a injustiça e a opressão política e econômica.
4 Ouvir para compreender. Defender a liberdade de expressão e a
diversidade cultural;
54 Século 21: um mundo melhor. Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, em 10/10/99, fls. A 3.
55 Ver também A solidariedade como nova opção ético-política. Texto de Augusto de Franco, divulgado pelo INESC em Subsídios
IV. Outubro de 1993.
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100 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
5 Preservar o planeta. Promover o consumo responsável e modos de
desenvolvimento que respeitem todas as formas de vida e que preservem
o equilíbrio dos recursos naturais do planeta.
6 Redescobrir a solidariedade, criando novas formas de convivência, com
ética e amor.
Tratam-se de práticas aparentemente simples, mas imprescindíveis a construção
de uma cultura de paz. É preciso reconhecer que nossa civilização falhou nessa tarefa; cabe-nos, com humildade, buscar nas tradições indígenas, algumas referências
que nos harmonizem com a terra e consequentemente, com nós mesmo.
O médido e historiador paraguaio, Moisés Santiago Bertoni, em sua obra “A
Civilização Guarani” escrita no final do século XIX, analisou a contribuição, que
os índios guaranis, legaram à humanidade, ressaltando o desenvolvimento ético
como parte dessa cultura: “A prática da filosofia guarani ensinada nas aldeias é a
arte do domínio sobre si mesmo. O desenvolvimento da capacidade de lidar com
suas dores físicas e morais invocando sempre o espírito da sabedoria”56.
O índio Kaka Werá Jacupé complementa:
A maior contribuição que os povos das floresta podem deixar ao homem
branco é a prática de ser uno com a natureza interna de si. A tradição do
Sol, da Lua e da Grande Mãe ensinam que tudo se desdobra de uma fonte
única, formando uma trama sagrada de relações e inter-relações, de modo
que tudo se conecta a tudo. O pulsar de uma estrela na noite é o mesmo
do coração. Homens, árvores, serras, rios e mares são um corpo, com
ações interdependentes. Esse conceito só pode ser compreendido através
do coração, ou seja, da natureza interna de cada um. Quando o humano
das cidades petrificadas largarem as armas do intelecto essa contribuição
será compreendida. Nesse momento entraremos no ciclo da unicidade, e
a Terra sem Males se manifestará no reino humano57.
Resta-nos abandonar radicalmente o projeto conquistador formulado por
Descartes, Buffon, Marx. Como salienta Morin, a tarefa primordial não é dominar
a Terra, mas cuidar da terra doente, habitá-la, arrumá-la, cultivá-la; assumindo
uma cidadania terrestre e reconhecendo nossa comunidade de destino. Tomar
consciência do perigo e transformar a sociedade de risco rompendo com a agonia
planetária e com a guerra de todos contra tudo.
56 Apud: Jacupê, Kaka Werá. Op. cit. p. 93.
57 Jacupê, Kaka Werá. Op. cit. p. 61.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 67-101, jul.-dez. 2007
Do estado de guerra ao estado de bem-estar ambiental:
contribuição indígena ao contrato de armistício – 101
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Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 67-101, jul.-dez. 2007
Algumas reflexões sobre
o meio ambiente e a necessidade
de uma conjugação de esforços
para a sua proteção
Florisbal de Souza Del’Olmo1
Resumo
Abstract
Este estudo visa oferecer algumas reflexões
sobre os problemas ambientais, que, nesta primeira década do milênio, inquietam a humanidade, com perspectivas desalentadoras que
colocam em alerta todos os países. O texto
se ocupa principalmente do alerta gerado, em
escala mundial, pelo problema ambiental; da
abordagem do meio ambiente como direito
humano fundamental; do problema ambiental
no Brasil; da conscientização do dano ambiental; da ingerência da sociedade internacional em
favor do meio ambiente; e, por fim, procedemse referências aos documentos dos organismos
internacionais em favor do meio ambiente.
This study aims at offering some reflections
about the environmental problems that, in this
first decade of the millennium, worry humanity, with discouraged perspectives, which put
all the countries into alert. The text addresses
mainly the generated alert, in a world scale, for
the environmental problem, of the approach
of the environment as a fundamental human
right of the environment problem in Brazil; of
the awareness of the environmental damage;
of the interference of the international society
in behalf of the environment and finally, are
referred to the documents of the national organisms in behalf of the environment.
Palavras-chave: Problemas ambientais. Proteção ambiental. Debates internacionais. Dano
ambiental.
Keywords: Environmental problems. Environmental protection. International damage.
1 Mestre (UFSC) e Doutor em Direito (UFRGS). Professor na Graduação e no Curso de Mestrado em Direito da URI, Santo
Ângelo, RS. Professor convidado da UFAM, Manaus, AM, e da UFRGS. Autor de Direito Internacional Privado – Abordagens
Fundamentais, Legislação, Jurisprudência, 6. ed., 2006, O Mercosul e a Nacionalidade: Estudo à Luz do Direito Internacional,
2001, e Curso de Direito Internacional Público, 2. ed., 2006, todos pela Editora Forense; e de A Extradição no Alvorecer do Século
XXI, 2007, pela Editora Renovar. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 103-115
jul.-dez. 2007
104 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
1 Introdução
Pretendemos oferecer algumas reflexões sobre os problemas ambientais, que,
nesta primeira década do milênio, inquietam a humanidade, com perspectivas
desalentadoras que colocam em alerta todos os países. Entendemos ser premente
o engajamento de todo ser humano, em qualquer lugar do globo, na busca de
alternativas para o descalabro ambiental, que previnam danos ainda maiores e
minimizem as conseqüências do que não mais pode ser sanado.
Embora o estudo siga uma seqüência natural, visando a torná-lo mais agradável
ao leitor foi distribuído em seis itens. Ocupam-se os mesmos, respectivamente, do
alerta gerado, em escala mundial, pelo problema ambiental; da abordagem do meio
ambiente como direito humano fundamental; do problema ambiental no Brasil; da
conscientização do dano ambiental; da ingerência da sociedade internacional em
favor do meio ambiente; e, por fim, procedem-se referências aos documentos dos
organismos internacionais em favor do meio ambiente. A conclusão, alicerçada no
estudo, tece reflexões sobre o tema, partindo do princípio de que o ser humano
sempre pode reparar seus erros e minimizar o mal feito.
2 O problema ambiental assusta o mundo
O equilíbrio ambiental começou a ser alterado no momento em que os primeiros seres humanos saíram das cavernas em busca de alimento. Os frutos separados
da árvore e os animais abatidos na caça eram, contudo, substituídos pela natureza,
sem maiores danos, até porque essa ação humana, então limitada pelo pequeno
número de habitantes do planeta, destinava-se à sobrevivência das pessoas.
De forma gradativa, porém, a agressão à natureza foi transcendendo dessa
fase, em um processo jamais estancado. E, lamentável constatação, o homem tem
priorizado nas últimas décadas o bem-estar material, esquecendo uma vida em
harmonia com o meio ambiente. O espírito de ganância, o desenfreado desejo
do ter, sem estabelecer limites na satisfação de vantagens materiais, acabou por
se tornar uma constante e uma necessidade para a maior parte das pessoas. Os
meios de produção, visando ao lucro, são direcionados à acumulação de riquezas e
se alicerçam na especulação predatória dos recursos naturais. Essas nefastas ações
fizeram, por exemplo, com que em 2005 se tenha registrado o maior índice de
concentração de gás carbônico na atmosfera do último meio milhão de anos.2
Catástrofes ambientais proliferam por todo o planeta, elementos químicos
altamente poluentes não-recicláveis são introduzidos em muitas partes, inclusive na intimidade dos lares, a poluição transfronteiriça não encontra limites. Os
problemas gerados por esse estado de coisas devem causar preocupação a todos
2 Almanaque Abril 2006: Mundo. São Paulo: Abril, 2006, p. 16.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 103-115, jul.-dez. 2007
Algumas reflexões sobre o meio ambiente e a necessidade de
uma conjugação de esforços para a sua proteção – 105
nós, requerendo do jurista e do estudioso das demais áreas do conhecimento uma
integração de esforços. A sociedade internacional necessita, com urgência, encontrar caminhos que permitam o prosseguimento da vida, tanto dos seres humanos
como dos animais e vegetais. E isso só será possível com uma adequação das ações
humanas ao meio ambiente.
Enquanto ações de maior intensidade são postergadas indefinidamente, notícias
desalentadoras surgem a cada dia. E esses alertas, pela contundência dos danos
anunciados e pela credibilidade da fonte, produzem – ou deveriam produzir – inquietação e angústia na consciência de todos. A publicação, em fevereiro de 2007,
do IV Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC,3 na sigla em
inglês), confirmando que a responsabilidade do homem pelas mudanças de clima
no planeta contém noventa por cento de certeza, estarrece e produz generalizada
indignação. Esses dados desmentem, de forma enfática, afirmações de que o planeta
passa apenas por mais um ciclo natural e que a ação humana pouco interfere na
mudança climática. O relatório estima que as temperaturas devem aumentar entre
1,8 e 4,0 graus ainda neste século, afetando profundamente a qualidade de vida
atual. A tomada de consciência do problema ambiental torna-se urgente.
Observa-se também que os problemas ambientais, atualmente, além de colocar
em risco o equilíbrio dos ecossistemas, a qualidade de vida de todos os seres, põem
em cheque o próprio modelo de desenvolvimento. Isso se verifica à medida em
que o modo de produção capitalista, baseado no consumo exacerbado, sustentase nos recursos naturais que fornecem a matéria prima. Portanto, até mesmo por
questões econômicas, a relação do homem com o meio ambiente deve passar de
parasitária a um mutualismo sustentável.
3 O meio ambiente como direito humano
fundamental
O direito a um ambiente saudável alcançou definitivamente o status de direito
humano fundamental. Embora não haja uniformidade na classificação dos direitos do homem, verifica-se que os autores costumam colocar o direito ao meio
ambiente na quarta categoria ou geração, a dos direitos de solidariedade, ao lado
do direito ao patrimônio comum da humanidade, à autodeterminação dos povos,
ao desenvolvimento e à paz.
Nessa tessitura, o direito ao ambiente sadio, sem perder a sua condição de
direito individual, insere-se no rol dos direitos de interesse difuso. Assim, ele não
3 O IPCC, criado em 1998, é vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU). Seu objetivo é avaliar as informações
científicas, técnicas e socioeconômicas relevantes para a compreensão da mudança do clima, seus impactos e as opções para
mitigação e adaptação. A cada cinco anos, o IPCC lança um relatório baseado na revisão de pesquisas de mais de dois mil e
quinhentos cientistas de todo o mundo. Maiores informações no site: http://www.wwf.org.br/index.cfm?uNewsID=6200.
Acesso em 09.03.2007. O comitê do IPCC engloba centenas de cientistas e representantes de 113 países.
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106 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
se contém nos limites territoriais do Estado considerado, contrapondo-se inclusive
ao próprio conceito de soberania, sinalizando o engajamento conjugado dos países
alcançados pela agressão ambiental.
Um meio ambiente saudável, em que predomine o equilíbrio ecológico, deve
estar perfeitamente integrado no direito à vida, uma vez que sem ele os direitos
fundamentais em seu conjunto perdem sua eficácia e executoriedade. Entende Valerio Mazzuoli que o próprio conceito de vida humana “deve transcender os limites
de sua atuação física, para também abranger direito à sadia qualidade de vida em
todas as suas vertentes e formas”4. O século XXI, que deverá assistir à consolidação dos direitos humanos, seguindo as sementes plantadas nos últimos cinqüenta
anos, deverá por certo voltar-se ao meio ambiente, sem o qual o ser humano não
poderá viver ou, no mínimo, terá bastante dificultada uma existência digna.
4 O problema e o Brasil
Em matéria de capa, importante revista nacional mostrou o sombrio quadro
do meio ambiente no planeta.5 Evidenciando o aquecimento global, o degelo nas
regiões polares, os ciclones e a desertificação em diversos países, inclusive no
Brasil, e a ameaça dos mares a cidades litorâneas, a matéria leva o leitor a refletir
sobre posição a ser tomada.
Ambientalistas e outros estudiosos vêm alertando, há muito tempo, a iminente catástrofe gerada pelo aquecimento global. Mas eles próprios estão sendo
surpreendidos por desastres e acidentes ecológicos previstos para meados do
século XXI. A calota polar ártica, por exemplo, já perdeu vinte por cento de sua
superfície, limitando as condições de sobrevivência de espécies, como o urso polar,
que deverá desaparecer em duas décadas, se não houver uma reversão urgente e
eficaz do descalabro existente6.
Estudo da rede WWF, intitulado Planeta Vivo, comprova que a media anual
de emissão de gás carbônico no Brasil, por habitante, é de quase duas toneladas,
mesmo não consideradas as emissões provocadas pelo desmatamento de florestas.
Incluídos os efeitos do desmatamento, nosso país assume a indigesta posição de
quarto poluidor do planeta7, uma vez que os gases das queimadas representam
três quartos de toda a emissão brasileira.
4 Mazzuoli, Valerio de Oliveira. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional do Meio Ambiente.
In: Ferreira Júnior, Lier Pires e Araújo, Luís Ivani de Amorim (Coords.). Direito Internacional & as Novas Disciplinarizações.
Curitiba: Juruá, 2005, p. 347.
5 Aquecimento Global: os Sinais do Apocalipse. Veja, edição 1961, ano 39, n. 24, 21 de junho de 2006, p. 68-83. Várias
informações inseridas neste estudo têm essa matéria como fonte.
6 Aquecimento Global: os Sinais do Apocalipse, p. 68. Enfatiza a matéria aludida a necessidade de ação diante de cenário tão
adverso: “Os recursos para reduzir os efeitos colaterais do aquecimento são conhecidos. Basicamente, é necessário encontrar
um uso mais eficiente de energia e diminuir a emissão de gases que provocam o efeito estufa”. Idem, p. 80. Impõe-se, nesse
contexto, substituir o combustível fóssil, grande formador de gases, por outro gerado a partir do milho, da soja ou da cana,
por exemplo, este último já produzido no Brasil. Essa substituição tende a merecer mais atenção governamental, conforme
tratativas, incluindo colaboração brasileiro-norte-americana no tema, divulgadas pela imprensa no início de 2007.
7 Os três primeiros são os Estados Unidos, a China e a União Européia.
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Algumas reflexões sobre o meio ambiente e a necessidade de
uma conjugação de esforços para a sua proteção – 107
Nessa tessitura, impõe-se uma mudança de atitudes pelas pessoas, isentando-as
da responsabilidade nas mudanças climáticas, como o uso de eletrodomésticos que
consomem menos energia, a adoção de aquecimento solar da água e o plantio de
pelo menos três árvores por ano. A secretária-geral do WWF no Brasil, Denise
Hamú, alerta: “Mas não podemos deixar de lembrar que cada um precisa fazer
sua parte para combater o aumento de temperatura do planeta”8.
Ainda na esteira do mencionado relatório do IPCC, os danos provocados pelas
mudanças climáticas já estão sendo sentidos em todos os quadrantes do mundo,
de que é prova o significativo aumento das chuvas no Brasil e em outros países
da América do Sul. A duração e a intensidade das secas têm sido observadas em
grandes áreas, particularmente na região dos trópicos. E as previsões são sombrias:
confirma-se a probabilidade de os eventos climáticos extremos, como ondas de
calor, secas e furacões, tornarem-se cada vez mais freqüentes. Essas catástrofes
são consectários do desmatamento – e, pior ainda, das queimadas – da Amazônia,
da invasão do mar na zona costeira e das variações climáticas. Além do dióxido
de carbono há aumento de metano e de óxido nitroso, estes provenientes de
atividades agrícolas.
Outro estudo, divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente também em
fevereiro de 2007, sinaliza que cerca de 42 milhões de brasileiros, moradores da
zona costeira, podem ser afetados com o avanço de até meio metro do oceano
Atlântico durante este século. Tal diagnóstico provém do Centro de Previsão de
Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), órgão do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE)9. O relatório prevê as conseqüências do aquecimento, desmatamento e emissão de gases tóxicos, mostrando, em um cenário mais pessimista,
que a temperatura média do Brasil, hoje de 24,9º C, pode subir até quatro graus
centígrados antes de 2100. Esse acréscimo, no caso da Amazônia pode chegar a
8ºC, aumentando a incidência de doenças como malária, dengue, febre amarela
e encefalite10.
8 Site: http://www.wwf.org.br/index.cfm?uNewsID=6200. Acesso em 09.03.2007.
9 Site: http://www.ambientebrasil.com.br/noticias/index.php3?action=ler&id=29763. Acesso em 10.03.2007.
10 Ver ainda: Como o Calor vai Afetar o Brasil. Veja edição 1997, ano 40, n. 8, 28 de fevereiro de 2007, p. 84-85. O estudo do
INPE sinaliza as previsões climáticas para cada região brasileira. Para a Região Sul, por exemplo, o quadro é sombrio: “Os
dias ficarão mais quentes e os invernos serão mais curtos. Chuvas intensas, mas irregulares, provocarão colapso da agricultura
e perda de produtividade na pecuária. No Rio Grande do Sul, o plantio de trigo e soja se tornará inviável. No Paraná, se a
temperatura subir mais de três graus, a área propícia ao cultivo de soja poderá ser reduzida em 78%”. Idem, p. 84. Para a
Região Sudeste, a mais rica do país, o estudo traz estas conseqüências: “A área propícia ao cultivo do café em São Paulo se
reduzirá de 39% do território do estado para cerca de 1%. Fenômeno semelhante ocorrerá em Minas Gerais. O aumento do
nível do oceano Atlântico ameaçará construções à beira-mar no Rio de Janeiro”. Idem, p. 85.
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108 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
5 A conscientização do problema
A desertificação avança assustadoramente em diversas regiões do planeta,
atingindo dez mil quilômetros quadrados anuais apenas na China. Seis milhões
de pessoas, a cada ano, são vítimas de fome, pelas secas na Etiópia. A Turquia é
atingida, em grande extensão, pela erosão do solo.
A convicção da realidade da crise ambiental e de seus maléficos efeitos hoje
alcança até as pessoas mais céticas. A discussão passa a ser como fugir da armadilha
criada pelo próprio homem. Se em 1928, quando o número de habitantes do planeta era um terço do atual, a emissão de gás carbônico não passava de um bilhão
de toneladas, cifra que hoje é sete vezes maior. Ocorre que o número de veículos
automotores que trafegavam naquele ano, cerca de quinze milhões, aproxima-se
agora da exorbitante marca de um bilhão.
Os gases que a atividade humana joga na atmosfera – além do gás carbônico há,
como referido, o metano e o óxido nitroso, entre outros – produzem o denominado
efeito estufa, camada em redor do planeta que impede a radiação solar, refletida pela
superfície em forma de calor, de retornar ao espaço. É o efeito estufa que aumenta
a temperatura global, com funestas conseqüências para todos os seres vivos.
Nesse contexto, o calor torna mais provável a proliferação de queimadas,
diminuindo a cobertura vegetal e dificultando a reciclagem do gás carbônico
presente no ar aumentando a concentração de gases poluentes. Também o gelo,
que nos pólos e nas montanhas ajuda a refletir a radiação solar, é transformado
em água, expondo as rochas que jazem sob ele, com menor reflexão dos raios
solares e aumento do efeito estufa. O calor esquenta, ainda, o solo, acelerando a
decomposição da matéria orgânica na terra e nos oceanos, gerando mais emissão
de gases nocivos.
Entre as nefastas seqüelas do aquecimento global cabe mencionar o acréscimo,
em número e em intensidade, dos furacões, cujo exemplo bem presente é o Katrina,
que destruiu a cidade da Nova Orleans, no estado norte-americano da Louisiana,
em 2005, com milhares de mortos. Também o nível dos mares é conseqüência
do efeito estufa: a elevação já ocorrida preconiza que cidades à beira-mar, como
o Recife, necessitarão de diques de proteção no futuro.
Não é despiciendo recordar quanto o fator econômico atinge o homem no
seu dia-a-dia, sendo bem conhecido o adágio de que a “parte mais sensível do ser
humano é o bolso”. Um estudo do Banco Mundial alerta que a perda na economia
poderá atingir vinte por cento do produto bruto mundial, ou seja, cerca de US$ 8
trilhões. Para enfrentar esse problema, o jornalista Washington Novaes, em palestra
na Universidade São Marcos, em São Paulo, lembrou ser necessária a aplicação de
um por cento do produto bruto mundial, o que representa quatrocentos bilhões de
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uma conjugação de esforços para a sua proteção – 109
dólares norte-americanos anuais. Conforme previsão da Agência Internacional de
Energia os investimentos, nos próximos quinze anos, em novas fontes de energia
devem atingir a elevada soma de quinze trilhões de dólares11.
Outro grave problema apontado pelo ambientalista é a questão do hábito de
consumo, afirmando: “Estamos consumindo no mundo recursos naturais em
um ritmo superior à reposição pela biosfera terrestre”, aduzindo que “a pegada
ecológica da humanidade triplicou desde 1961”. Pegada ecológica é aquela que
mede o impacto dos hábitos humanos sobre o planeta, a área produtiva equivalente
de terra e mar necessária para produzir os recursos utilizados e para assimilar os
resíduos gerados por uma dada unidade de população12.
Os problemas citados já conscientizaram, em parte, a humanidade, levando
mais de uma centena e meia de países a assinarem o Protocolo de Quioto, estabelecendo metas de redução de poluição por esses Estados. Lamentavelmente, esse
tratado, surgido na cidade japonesa do mesmo nome em 1997, não conta com a
participação dos Estados Unidos, exatamente o país mais poluidor, responsável
por um quarto de todos os gases tóxicos emitidos na atmosfera global. Graças,
porém, à integração da Rússia, outro Estado com altíssimo índice de poluição
atmosférica, o importante instrumento entrou em vigor no dia 16 de fevereiro de
2005. De qualquer forma, o protocolo representa um grande passo na caminhada
humana contra o efeito estufa, até por seu significado simbólico.
6 O aporte da sociedade internacional em favor
do meio ambiente global
Os problemas ambientais interessam hoje à sociedade internacional como um
todo. Observa Leonilda Corrêa que a “evolução da questão do meio ambiente e
do ativismo dos grupos ambientais, bem como a tendência a uma nova organização produtiva nos países industrializados, pela busca de eficiência no consumo
de energia e de insumos, de minimização de resíduos e de criação de circuitos de
reutilização e reciclagem, deverão acentuar as implicações de medidas ambientais
para o comércio internacional”13.
Remi Soares vislumbra a salvação do planeta quando as potências contemporâneas “derem o primeiro passo no sentido de reduzir o protecionismo aos seus
11 Site: http://www.smarcos.br/novoportal/index.php?option=com_content&task. Acesso em 10.03.2007.
12 Estes dados podem ser constatados no relatório “Planeta Vivo 2006”, do WWF. Ver o mesmo site: http://www.smarcos.
br/novoportal/index.php?option=com_content&task. Acesso em 10.03.2007.
13 Corrêa, Leonilda Beatriz Campos Gonçalves Alves. Comércio e Meio Ambiente: Atuação Diplomática Brasileira em Relação
ao Selo Verde. Brasília: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão, 1998, p. 191. Acrescenta a diplomata: “A
preferência por instrumentos econômicos de mercado na estratégia desses países, no estímulo a mudanças nos padrões de
consumo e de produção, fará com que os programas de rotulagem ambiental continuem na agenda das relações internacionais
e passem também a ser adotados por diversos outros países”. Idem, ibidem.
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110 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
mercados, permitindo um maior crescimento econômico aos países em desenvolvimento”14. Verifica-se, nesses posicionamentos, quão necessária se apresenta
para a solução dos problemas ambientais a interação da iniciativa privada e do
setor público nacional e internacional.
Ocorre que a preocupação com o meio ambiente já atingiu quase todos os
povos, levando os países a reuniões na busca de instrumentos que consigam impedir ou diminuir a degradação ambiental. Lamenta Sidney Guerra que, apesar
desses esforços, “temos todos os dias notícias de que o homem vem degradando
o ambiente, ao mesmo tempo que países não conseguem barrar os excessos, nem
mesmo punir os culpados pelos danos ambientais”15. Adepto de uma economia
ecológica, Jacson Cervi fala dos benefícios de uma visão holística, que preserve a
natureza e leve ao desenvolvimento sustentável16, engajando-se nos postulados
de Fritjof Capra, que defende uma parceria entre economia e ecologia, buscando
superar a tensão entre a sustentabilidade ecológica e a maneira pela qual a sociedade
está atualmente estruturada: “A economia enfatiza a competição, a expansão e a
dominação; a ecologia enfatiza a cooperação, a conservação e a parceria”17.
Aludindo à indivisibilidade do meio ambiente, que, por sua própria natureza, “desconhece fronteiras de fixação de limites físicos entre o interno e o internacional,
a tendência dos assuntos relativos ao mesmo é tornar-se de pertinência concomitante da política interna e da diplomacia dos Estados”, como assevera Guido
Soares18.
14 Soares, Remi Aparecida de Araújo. Proteção Ambiental e Desenvolvimento Econômico: Conciliação. Curitiba: Juruá, 2005, p. 226.
Aduz a professora gaúcha: “Enquanto não houver um redirecionamento no modelo de desenvolvimento econômico vigente,
a degradação ambiental continuará ocorrendo, talvez apenas em escala menor, porque os recursos ecológicos continuam
sendo consumidos, uma enorme quantidade de produtos continua sendo lançada no mercado globalizado, e os resíduos
continuam sendo produzidos”. Idem, p. 227.
15 Guerra, Sidney. Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 212. Enfatiza o autor: “É certo que a
proteção ao meio ambiente ganhou amplitude mundial e passou a ser devidamente reconhecida a partir do momento em
que a degradação ambiental atingiu índices alarmantes e o homem tomou consciência de que a preservação de um ambiente
sadio está intimamente ligada à preservação da própria espécie humana”. Idem, ibidem.
16 Cervi, Jacson Roberto. Direito e Ecologia: Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável. In: Direito e Justiça: Reflexões
Sócio-Jurídicas – O Direito Ambiental. Santo Ângelo, ano III, nº 6, setembro 2004, p. 69. O mestre gaúcho explica seu pensamento: “Seja através de uma humanização do capitalismo ou com a instituição de um modelo de desenvolvimento totalmente
novo, diante da certeza da insustentabilidade do atual modelo de produção, tem-se também como cristalino e indiscutível
que tais mudanças requerem profundas modificações de posturas e comportamentos, especialmente de ordem político-institucional, tais como: modernização das instituições, educação ambiental, desenvolvimento de tecnologias limpas, cooperação
internacional e Estado democrático social que garanta o exercício pleno da cidadania e intervenha nas relações de mercado
para assegurar a execução de um plano de desenvolvimento sustentável”. Idem, ibidem.
17 Capra, Fritjof. A Teia da Vida. Tradução Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 234.
18 Soares, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades. São Paulo:
Atlas, 2001, p. 892. Adiciona o consagrado professor titular de Direito Internacional da USP, falecido em 2005: “Em conseqüência da globalidade dos assuntos relativos ao meio ambiente, as ações relativas a sua proteção passaram, nos dias atuais,
a ser necessariamente expressas em normas internacionais. Tal fato, conforme demonstrado, tem sido expresso por meio
da elaboração de um sem-número de normas convencionais multilaterais, criadas, seja nos foros especialmente concebidos
pelos Estados para assuntos tópicos (o exercício da diplomacia multilateral nos congressos e conferências), seja nos foros
das organizações internacionais intergovernamentais (o subtipo de diplomacia multilateral, denominada parlamentar), seja,
ainda, pela emergência de um direito costumeiro impositivo aos Estados”. Idem, p. 893. Em verdade a obra do professor
Soares se constitui em um dos clássicos brasileiros sobre a temática em estudo.
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Algumas reflexões sobre o meio ambiente e a necessidade de
uma conjugação de esforços para a sua proteção – 111
7 Os documentos dos organismos internacionais
Nesse contexto, a sociedade internacional efetivamente tem-se mostrado
sensível ao problema ambiental. Inúmeros são os tratados e convenções, multilaterais ou bilaterais, centrados na proteção ao meio ambiente. De modo especial,
a ONU possui diversos documentos direcionados ao tema, três deles, dentre os
mais importantes, já internalizados na ordem jurídica brasileira. São a ConvençãoQuadro sobre Mudança do Clima (Nova Iorque, 1992); a emblemática, para nós,
Convenção sobre Diversidade Biológica (Rio de Janeiro, 1992); e o antes referido
Protocolo de Quioto (1997). As duas Convenções foram ratificadas pelo Brasil
em 1998 e Quioto em 2002.
Evento marcante, verdadeiro divisor de águas na caminhada internacional pela
defesa ambiental foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, conhecida por ECO/92 ou Rio-92. Guido Soares destaca na
mesma três momentos de maior significado, quais sejam a coroação de esforços
diplomáticos, com a adoção das citadas Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima
e da Diversidade Biológica; a adoção de instrumentos menos solenes, mas gerados
pelos Governos, como a Declaração do Rio, a Agenda 21 e a Declaração sobre Florestas;
e a consagração da filosofia de integrar meio ambiente e desenvolvimento, consolidando o conceito de desenvolvimento sustentável, com nova dimensão humana19.
Cabe lembrar, nesse contexto, a Declaração de Joanesburgo, fruto da Conferência da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, ocorrida nessa cidade
da África do Sul em 200220. O princípio 32 do documento afirma textualmente:
“Reafirmamos nosso compromisso com os princípios e propósitos da Carta das
Nações Unidas e do Direito Internacional, bem como com o fortalecimento do
multilateralismo. Apoiamos o papel de liderança das Nações Unidas na condição
de mais universal e representativa organização do mundo, e a que melhor se presta
à promoção do desenvolvimento sustentável”21.
Conta, ademais, a ONU com o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA), que procura diminuir o abismo entre a conscientização
19 Soares, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades, p. 90. A
Conferência, realizada no Rio de Janeiro, de 01 a 12 de junho de 1992, teve a participação de 178 países e de mais de uma
centena de Chefes de Estado. Outro importante documento, surgido duas décadas antes, foi a Declaração de Estocolmo, fruto
da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada na capital sueca, de 5 a 16 de junho de 1972.
20 A cúpula, que reuniu 191 países, foi realizada de 26 de agosto a 4 de setembro de 2002, sendo conhecida por Rio + 10.
O oitavo item da Declaração afirma: “Trinta anos atrás, em Estocolmo, concordamos na necessidade urgente de reagir ao
problema da deterioração ambiental. Dez anos atrás, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, concordamos em que a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento
social e econômico são fundamentais para o desenvolvimento sustentável, com base nos Princípios do Rio. Para alcançar tal
desenvolvimento, adotamos o programa global Agenda 21 e a Declaração do Rio, aos quais reafirmamos nosso compromisso.
A Cúpula do Rio foi um marco significativo, que estabeleceu uma nova agenda para o desenvolvimento sustentável”.
21 Texto integral no site: http://www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/joanesburgo.doc. Acesso em 25 de junho
de 2006.
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112 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
ambiental e a implementação de ações concretas, “edificando novas relações
entre os cientistas e os detentores do poder de decisão, entre os industriais e os
ambientalistas, na busca de um equilíbrio entre os interesses nacionais e as vantagens comuns globais”22. A conjugação de esforços dos Estados e dos organismos
internacionais contribuíram para consolidar o Direito Internacional do Meio Ambiente, viés do Direito Internacional surgido em meados do século XX. Esse novo
segmento do mundo jurídico, nas palavras de Guido Fernando Silva Soares, um
dos expoentes brasileiros de seu estudo, é um ramo especialmente voltado para o
estabelecimento de regras de cooperação. O Brasil, com competência diplomática,
tem sabido adequar-se às realidades globais na regulamentação do meio ambiente:
“Quer em resposta aos desafios externos, quer por mandamento de suas normas
constitucionais, o quadro dos tratados e convenções internacionais subscritos pelo
país, e sobretudo sua atuação nos foros internacionais assim o demonstram”23.
Evidenciam-se louváveis esforços da sociedade internacional pela preservação
do meio ambiente, embora a eficácia dos instrumentos existentes seja limitada,
até porque limitada e discutível é a cogência das normas criadas. Talvez a razão
esteja com Gustavo Ferreira, que vislumbra maior influência na difusão de uma
cultura mundial pela preservação ambiental nos movimentos que visam compor
a necessidade de preservação sem ruptura com o sistema global dos meios de
produção24.
8 Conclusão
Foram procedidas, neste estudo, breves reflexões sobre o Direito Ambiental e
o Direito Internacional do Meio Ambiente, procurando enfatizar o caótico quadro
enfrentado pelo planeta e a necessidade (d)e engajamento de povo e governo, em
um âmbito global, para pôr um freio nesse quadro desolador.
Verifica-se a persistência, na sociedade internacional, do privilégio do econômico em detrimento do social e do político, permanecendo distante o ideal
da solidariedade entre os povos e o atendimento de suas aspirações morais e
psicológicas, para o que a existência de um meio ambiente saudável é condição
necessária e por vezes suficiente.
22 Silva, Solange Teles da. A ONU e a Proteção do Meio Ambiente. In: Mercadante, Araminta e Magalhães, José Carlos (Orgs.).
Reflexões Sobre os 60 Anos da ONU. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 464-465.
23 Soares, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: Emergência, Obrigações e Responsabilidades, p. 895. Sobre
a transcendência desse ramo do Direito Internacional acrescenta o saudoso professor da USP: “Na verdade, a prevalência
de suas fontes normativas, postadas nas relações multilaterais exercidas nas organizações internacionais intergovernamentais
ou nas conferências internacionais dirigidas à elaboração de grandes textos multilaterais, é uma prova da inserção do Direito
Internacional do Meio Ambiente na modernidade”. Idem, ibidem.
24 Ferreira, Gustavo Assed. Desenvolvimento Sustentável. In: Barral, Welber (Org.). Direito e Desenvolvimento: Análise da Ordem
Jurídica Brasileira sob a Ótica do Desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005, p. 76.
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Algumas reflexões sobre o meio ambiente e a necessidade de
uma conjugação de esforços para a sua proteção – 113
A agressão ao meio ambiente, que tem conduzido à degradação da natureza,
ocorre pela contaminação das águas, destruição da camada de ozônio, chuva ácida,
poluição do ar e esgotamento do solo, entre outros fatores. As florestas, inclusive
a Amazônia brasileira, sofrem a deletéria ação de madeireiros inescrupulosos, que
cooptam o próprio silvícola, destruindo seu meio em troca de bens materiais, por
vezes alimentadores de vícios trazidos por esse homem, dito civilizado. Com isso,
riquezas inestimáveis e insubstituíveis da natureza, como o mogno, são retiradas e
levadas clandestinamente para os chamados países desenvolvidos, deixando atrás
de si um rastro de agressão ao meio ambiente. Que o diga a destruição da camada
de ozônio, cujos reflexos negativos vêm de há muito sendo sentidos em várias
partes do planeta. A esses ultrajes a natureza tem respondido com terremotos,
tornados, enchentes e novos e sofisticados tipos de doenças.
Impõe-se o envolvimento da sociedade internacional na defesa do meio ambiente. Colocar essa proteção no centro da temática global dará um alento aos que
vêm enfrentando uma luta insana e desigual de tornar o planeta habitável e poderá
ser o caminho para tornar o mundo mais apto à convivência fraterna.
Urge que organismos especializados da ONU se voltem para a proteção do meio
ambiente, que é tarefa de todos. Importância deve ser dada à educação ambiental,
que necessita integrar os currículos escolares desde a primeira série do ensino
fundamental. O estudante, assim preparado, encontrará no curso universitário de
todas as carreiras, como disciplina obrigatória, ensinamentos que o transformarão
em agente de uma cruzada universal em favor do meio ambiente.
Os documentos internacionais existentes, lembrados neste estudo, são importantes e têm contribuído para uma conscientização do desafio ambiental. São
insuficientes, contudo, até pela dimensão do problema e dos diversificados vieses
de que se compõe. Ações diretas de instituições como a UNESCO, adequando
às necessidades de preservação do meio ambiente a educação, a ciência e a cultura; da FAO, implementando práticas sustentáveis na agricultura e na pesca; e
da OMS, conciliando saúde e meio ambiente e contribuindo para o saneamento
e acesso à água potável, são bem-vindas nessa caminhada. Cabe lembrar que a
OMC já conta com o Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente, voltado para a
construção de uma relação positiva entre esses temas, cujo parâmetro é promover
o desenvolvimento sustentável.
A conciliação, possível e desejável, entre desenvolvimento e preservação do
meio ambiente – dois direitos humanos fundamentais, integrados na quarta geração, a dos direitos de solidariedade – não pode tardar. A humanidade, embora
a persistência de ações bélicas em vários lugares, tem evitado uma terceira guerra
mundial, talvez alertada de que, ocorrendo tal hecatombe, uma imaginária quarta
guerra planetária teria como instrumentos de luta o arco e a flecha. Essa alegoria
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114 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
vem à tona quando assistimos à degradação da natureza em toda parte e por todos
os meios. A escassez de água potável, que se vem acentuando, já permite antever
que os milhões acumulados com a destruição da natureza podem ser insuficientes,
dentro de alguns anos, para saciar a própria sede.
Nunca é demais recordar que os problemas surgidos com a agressão ao meio
ambiente atingem os seres vivos em diversos aspectos, como o econômico, o
político, o cultural, o estético e o moral, sem falar que ela põe em risco a manutenção da própria da vida, humana, animal e vegetal, na superfície do planeta.
Não obstante consistir-se a mudança cultural no cerne da questão ambiental,
uma das medidas a ser ventilada pode residir na inserção do custo ambiental na
cadeia produtiva. Justifica-se, inclusive, essa assertiva pela necessidade de ações
imediatas em favor do meio ambiente, e a possibilidade de instituição de medidas
que onerem financeiramente os danos ambientais.
Referências
ALMANAQUE Abril 2006: Mundo. São Paulo: Abril, 2006.
AQUECIMENTO Global: os Sinais do Apocalipse. VEJA, edição 1961, ano 39, n. 24,
21 de junho de 2006, p. 68-83.
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade Civil por Dano ao Meio
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O estado democrático de direito
e o meio ambiente
Jacson Roberto Cervi1
Resumo
Abstract
O trabalho versa sobre a emergência dos problemas sócio-ambientais globais e sobre as
dimensões internacionais que o ambientalismo
adquiriu desde a Conferência de Estocolmo de
1972. Faz uma análise dos eventos ambientais
internacionais, discutindo a proteção do meio
ambiente na sociedade pós-moderna. Discute,
por fim, as novas tendências do Estado de
Democrático de Direito no século XXI.
The work is about the emergence of global
socio-environmental problems and about the
international dimensions that the environmentalism acquired since the 1972 Estocolmo
Conference. It makes an analysis of the international environmental events, discussing
the protection of the environment in the
post-modern society. It also discusses the new
tendencies of the Democratic Rule of Law in
the XXIth century.
Palavras-chave: Questão sócio-ambiental.
Dimensão internacional do ambientalismo.
Conferência de Estocolmo de 1972. Pósmodernidade.
Keywords: Social-environmental issue. International dimension of the environmentalism.
1972 Estocolmo Conference. Post-modernity.
1 Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Professor universitário. Pesquisador. Advogado. E-mail:
[email protected].
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 117-130
jul.-dez. 2007
118 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
1 Introdução
Ao longo da história da humanidade, percebemos que o homem tomou para
si os recursos naturais em detrimento das demais formas de vida e, através do
trabalho, transformou essa matéria-prima em bens úteis para sua sobrevivência e
conforto. Neste intuito, o homem organizou-se em sociedade e firmou um contrato social, o que exigiu uma mudança de paradigma do individual para o coletivo,
formando um corpo social e político ao qual se denominou Estado.
Atualmente, devido à emergência dos problemas sócio-ambientais globais, o
ambientalismo adquiriu dimensões internacionais, cujo marco foi a Conferência
de Estocolmo de 1972, seguindo-se a criação da Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, a qual elaborou o Relatório Brundtland e a Rio-92,
cujo principal documento foi a Agenda 21, revista na Conferência Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável de Johannesburgo em 2002, para citar apenas os
principais acontecimentos. Em todos esses eventos, percebe-se a preocupação
de garantir à todos os seres humanos o direito fundamental a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, cabendo aos Estados tomarem as medidas necessárias
para garantia de tal direito, bem como do uso sustentável dos recursos naturais
em benefício das gerações presentes e futuras.
Contudo, a falta de ações efetivas dos governos impediu que tais preceitos
saíssem do papel. Para se alcançar o ecodesenvolvimento em todas as suas dimensões, faz-se premente uma racionalização do desenvolvimento, não somente de
forma relativa e voltada para o plano econômico como ocorre no modelo atual,
mas, sim, absoluta, abarcando todos os setores. Assim, ante o colapso do socialismo real, a falência do estado social ou do bem-estar e o não cumprimento das
promessas neoliberais, é necessário que o atual contrato social no qual se baseia
a governabilidade de nossa sociedade, seja complementado com um contrato
natural, conforme proposto por Michel Serres2.
2 O Direito Ambiental na sociedade pós-moderna
Conforme afirmado alhures, a história da humanidade pode ser sintetizada na
relação entre o homem e o meio onde vive. A evolução do movimento ambientalista, de modo geral, consagrou inicialmente a visão biocentrista, preservacionista de retorno à natureza, em contraposição ao antropocentrismo utilitarista de
controle e degradação ambiental. Nos dias atuais, ambas as teorias encontram-se
superadas, devendo prevalecer a tese da utilização racional dos recursos naturais,
sem que isso represente o aniquilamento dos mesmos, ou seja, na adoção de uma
“economia ecológica”.
2 Serres, Michel. Contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 46-51.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 117-130, jul.-dez. 2007
O estado democrático de direito e o meio ambiente – 119
Esta expressão, utilizada pioneiramente por Joan Martinéz Alier, é conceituada
da seguinte forma: “Ë uma economia que usa os recursos renováveis (água, lenha
e madeira, produção agrícola) com um rítmo que não exceda sua taxa de renovação, e que usa os recursos não renováveis (petróleo, por exemplo) com um rítmo
não superior ao de sua substituição por recursos renováveis (energia fotovoltaica,
por exemplo). Uma Economia Ecológica conserva por si mesmo a diversidade
biológica, tanto silvestre como agrícola”3.
Surge com isso uma nova concepção de ecologia, não mais isolada e limitada ao
estudo da natureza, mas, associada aos demais ramos do conhecimento científico,
atendendo às novas demandas da sociedade contemporânea, na qual os problemas
estão todos interligados, numa relação sistêmica e onde as “únicas soluções viáveis
são as soluções sustentáveis”, nas palavras de Fritjof Capra. Segundo o mencionado autor, estamos diante de um novo paradigma que representa a superação
da ecologia antropocêntrica (ou rasa) para uma ecologia profunda, a qual possui
uma visão holística de mundo, representada na forma de “uma rede de fenômenos
que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia
profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres
humanos apenas como um fio particular na teia da vida”4.
Não obstante as discussões e inúmeras controvérsias a respeito da melhor forma
de implementação do desenvolvimento sustentável, pode-se concluir pela necessidade de abandonar aos velhos argumentos apaixonados e obsessivos de cunho
catastrófico em prol de uma retórica mais equilibrada. Isso porque, o crescimento
econômico consiste em uma condição indispensável para uma adequada proteção
do ambiente, bem como a implementação de políticas públicas que ditem regras
de utilização do meio ambiente e equilibrem os interesse em conflito5.
Esse modelo de desenvolvimento econômico e social, embora implique no
enfrentamento de grandes desafios para sua implementação, principalmente de
natureza político-institucional, pode representar uma oportunidade de modernização da civilização mundial de forma mais ética e homogênea, principalmente
para os países tropicais como o Brasil, onde se localizaram as maiores fontes de
biodiversidade do planeta6.
É preciso responder ao desafio de manter um nível de vida para a população
que assegure, no mínimo, alimentação saudável, moradia salubre, educação de
qualidade etc. Segundo o último Relatório sobre Desenvolvimento Humano da
ONU, o Brasil é hoje um dos países de maior desigualdade social do planeta,
ocupando a septuagésima terceira posição na ordem de classificação dos países
3
4
5
6
Alier, Joan Martinéz. De la economia ecologica al ecologismo popular. Barcelona: Içaria Editorial. 1992, p. 225-226.
Capra, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 24, 26.
Beckerman, Wilfred. Lo pequeño es estúpido: una llamada de atención a los verdes. Madrid: Debate S.A., 1996, p. 263-267.
Sachs, Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2000, p. 42.
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120 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
pelo índice de desenvolvimento humano, estando incluído entre as nações de
desenvolvimento médio, atrás de países como Argentina, México, Colômbia,
Venezuela e Arábia Saudita7.
Há que se observar, também, que o Brasil é o maior país tropical do mundo,
onde se estima que exista 10% de todas as espécies, representando assim uma
das regiões de maior biodiversidade do planeta. Rico em diversidade, o Brasil é,
também, o país dos contrastes. A corrida pelo desenvolvimento, alimentada pelas
necessidades de uma população que cresce em número (de cerca de 146 milhões
de pessoas em 1990 para uma estimativa atual de 175 milhões) e em pobreza (3,5%
em média, das famílias brasileiras não possuem qualquer rendimento e 27,6%
possuem renda familiar de até dois salários mínimos mensais)8, tem justificado a
exploração selvagem dos recursos naturais.
O Direito, enquanto “conjunto de leis que regula a conduta dos homens”9,
originário da moral, tem por finalidade viabilizar a vida em sociedade, cuja ordem é
constantemente ameaçada pela economia na qual prevalece o lema do homo homini
lupus (o homem para o homem é lobo), representando a busca do homem pelas
satisfações de suas individualidades em detrimento da coletividade. Este instinto
humano resultaria num incessante estado de guerra e caos que inviabilizaria a vida
em sociedade, não fosse a necessidade do homem viver em paz e em comunidade,
fatores que o levam a respeitar certas diretrizes, realizando assim um contrato
social baseado na moral10.
Neste contexto, Sérgio Ferraz, em estudo inovador no Brasil, conceituou o
Direito Ambiental como “o conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos
organicamente estruturados para assegurar um comportamento que não atente
contra a sanidade mínima do meio ambiente”.11 Este primeiro conceito, como se
pode notar, ao delegar ao Direito Ambiental a função de disciplinar as relações
entre o homem e o meio ambiente, não o limitou somente à melhoria da qualidade
de vida humana, ampliando-a para abarcar a tutela de todas as formas de vida. Essa
tendência biocentrista do Direito Ambiental brasileiro, desde as suas origens, foi
mantida à medida em que avançava o estudo, podendo-se atualmente considerar
o Direito ambiental como pertencente à categoria de direito fundamental difuso
ou de quarta geração, seguindo a classificação de Norberto Bobbio12.
7 ONU. Programa das Nações Unidas de Desenvolvimento. Relatório de desenvolvimento humano 2002. Disponível em: < http://
www.onuportugual.pt > Acesso em: 17 marc. 2007.
8 IBGE. Censos demográficos. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br >. Acesso em 15 mar. 2007.
9 Carnelutti, Francesco. Como nasce o Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Líder Cultura Jurídica, 2001, p. 7 e 16.
10 Malmesbury, Thomas Hobbes de. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril
Cultural, 1974. p. 79 (Os Pensadores).
11 Ferraz, Sérgio. Direito ecológico: perspectivas e sugestões. Revista da Procuradoria Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n.
4, p. 43-52, 1979, p. 44.
12 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6.
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O estado democrático de direito e o meio ambiente – 121
O direito ambiental contemporâneo, pertencente à categoria dos novos direitos,
visa proteger a qualidade do meio ambiente, tanto para a presente como para as
futuras gerações, estabelecendo normas de conduta e mecanismos para torná-las
efetivas. O desafio que se impõe é o de estabelecer uma política ambiental comprometida com a nova proposta social da doutrina ambientalista, de conservação
ambiental e adoção de uma economia do meio ambiente, a qual se apresenta como
ponto de equilíbrio entre as teorias extremas (antropocêntrica e biocêntrica).
Neste sentido, valiosos são os ensinamentos do sociólogo alemão Niklas Luhmann, sob a ótica da Matriz Pragmático-Sistêmica, mais especificamente a segunda
fase da sua teoria social, a qual é marcada por uma perspectiva epistemológica a
que se chamou autopoiese, expressão utilizada pela primeira vez pelos biólogos
chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, no início da década de 7013.
Inserido nesta teoria sistêmica da sociedade, Niklas Luhmann realiza uma leitura sociológica da questão ambiental, buscando investigar como a comunicação
ecológica, enquanto meio de solução das contingências, pode contribuir para a
solução dos crescentes problemas ambientais da sociedade contemporânea. Segundo o Autor, a sociedade encontra-se envolvida pelos efeitos que provoca no
meio, envolta pelo paradoxo de modificar seu próprio meio, porém, minando as
condições de sua ulterior existência.
Luhmann encara com certo pessimismo a possibilidade de superação dos
problemas ecológicos por entender que a sociedade não dispõe de instrumentos
cognitivos suficientes para mudar o atual modelo de sistema social, haja vista ter
se desenvolvido à margem dessas questões, vendo o meio ambiente como uma
estrutura auto-regulável, capaz de assimilar todo e qualquer tipo de interferência
e, portanto, sem necessidade de inserção nas preocupações sociológicas. No entanto, aponta como uma possibilidade para amenizar este problema a inclusão da
comunicação ecológica como subsistemas da sociedade democrática, deixando de
referir-se apenas como entorno do sistema social para fazer parte dele, ou seja: “o
objeto da sociologia não é, portanto, o sistema social, e sim a unidade da diferença
do sistema social e de seu ambiente”. Assim, amplia-se o objeto de estudo da sociologia, fazendo-se da diferenciação entre sistema social e o meio ambiente, não
somente um instrumento de separação, mas, sim, um meio de reflexão do sistema,
o que somente é possível vislumbrar num sistema autopoiético14.
Com sua obra, Luhmann não pretendeu oferecer uma solução para os problemas ambientais, tampouco defender a tese de um meio ambiente livre de qualquer
interferência humana, mas, sim, analisar com profundidade como a sociedade
13 Maturana, Humberto; Varela, Francisco. A árvore do conhecimento. São Paulo: Workshopsy, 1995, p. 39, 88, 148.
14 Luhmann, Niklas. Comunicazione ecológica: puó la societá moderna adattarsi alle minacce ecologiche?. 3. ed. Milano, 1992, p.
67-68.
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122 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
reage diante de tais problemas, convivendo com os riscos, podendo seus escritos
serem considerados uma crítica à teoria biocêntrica, identificando-se melhor com a
doutrina do desenvolvimento sustentável. Como conclusão, o autor entende que a
comunicação ecológica deve fundamentar-se na ética, mais especificamente, numa
ética ambiental, enquanto mecanismo de regulação necessária para transformar a
consciência social reinante15.
Logo, considerando que toda e qualquer decisão envolve algum tipo de risco
e que, na atual conjuntura social, é impossível a concepção de vida sem qualquer
interferência no meio natural, impõem-se ao Direito, juntamente com os demais
ramos da ciência, a árdua tarefa de orientar o comportamento dos indivíduos sob
a perspectiva do desenvolvimento sustentável.
Como se pode notar, a política ambiental brasileira privilegiou a prevenção dos
danos, podendo-se considerar nossa legislação de controle ambiental um aparato
moderno e eficiente, com instrumentos preventivos como o estudo prévio de
impacto ambiental, auditoria ambiental e zoneamento ambiental, por exemplo.
No entanto, diante da incapacidade do Poder Público em fiscalizar e implementar
efetivamente tais mecanismos, provocando uma proliferação desenfreada de danos
ambientais, é salutar e indispensável a participação de todos os setores sociais,
através do pleno exercício da cidadania.
2 As novas tendências do estado democrático
de direito no século XXI
Michel Serres, utilizando-se de uma linguagem metafórica e com base nos
estudos de Thomas Hobbes e Jean Jacques Rosseau, procura demonstrar a
necessidade de uma rediscussão do estado de natureza e a criação de um novo
contrato social que inclua as relações entre homem e natureza no âmago de suas
regulamentações. Neste novo modelo de civilização, o meio ambiente seria parte
integrante da sociedade global regida pelas leis da natureza, deixando o homem
sua posição central de senhor e possuidor do universo, para ocupar uma posição
periférica. A relação entre homem e natureza deixaria assim de ser uma relação
parasitária, de dominação do primeiro em relação à segunda, para passar a uma
relação de simbiose, de reciprocidade.
Dentre as contradições apontadas, destaca-se a necessidade de desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, de preservação dos recursos naturais, a qual
poderia ser solucionada através de um resgate, pela economia, de sua identidade
e propósitos nas suas raízes semânticas, coincidente com a ecologia enquanto
15 Ibid., p. 59, 231-243.
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O estado democrático de direito e o meio ambiente – 123
“estudo do abastecimento do lar humano (oikonomia)”16. Além disso, as proposições do desenvolvimento sustentável vão de encontro as ideologias do Estado
neoliberal de não intervenção no mercado, fazendo necessário a presença de um
Estado democrático social intervencionista, regulando as relações de mercado de
forma a garantir a execução de um planejamento estratégico de desenvolvimento
sustentável17.
Além da importância do Estado na adoção de medidas a nível nacional, o surgimento de novos fenômenos como a globalização e a regionalização, resultaram
na ampliação das funções estatais, também a nível internacional, com profunda
alteração dos conceitos de soberania nacional e cidadania. Tais fenômenos, inicialmente com intenções meramente econômicas e de dominação, travestidas de
integração e de mútua colaboração, tendem, ao menos deveriam, a uma globalização
social, cultural e, acima de tudo, ambiental.
Não obstante o entendimento de que a crise estrutural da civilização pós-moderna reside numa crise da razão que fundamentou o processo de constituição
da sociedade civil representada, por exemplo, na economia de mercado capitalista baseada exclusivamente no consumismo e no lucro, no uso irracional dos
recursos naturais, existem posicionamentos no sentido de que tal crise é causa de
uma racionalização parcial. Essa é a tese desenvolvida por Octavio Ianni, com
base na crítica de Habermas à teoria racionalista de Weber, quando afirma que:
“Habermas defende em relação aos elementos fundamentais da significação e do
vigor do racionalismo uma posição universalista. Ele acha que nas esferas culturais
– nas quais se desdobram as medidas abstratas de valores como verdade, exatidão
normativa e autenticidade – expressam-se estruturas de uma consciência universal. Sua crítica ao relativismo cultural do racionalismo em Weber considera que a
especificidade do racionalismo ocidental vem do padrão seletivo dos processos
de racionalização no capitalismo. Introduz o conceito de racionalização parcial,
partindo da constatação de que o capitalismo caminhou para uma racionalização
não-equilibrada da economia e da administração dos custos das outras esferas
vitais. A racionalidade administrativa e econômica ocupou as formas expressivas
e morais-práticas de racionalidade. Esta argumentação tem a vantagem de oferecer um instrumento para entender os desequilíbrios na sociedade global na base
de uma sustentação parcial de setores parciais. Não mais se confrontam ‘ratio’
e ‘irratio’, mas racionalizações parciais que criam certas ordens, causando assim
processos desequilibrados, que mostram todas as características de desestruturação
e do caos eco-socioeconômico”18.
16 Antunes, op. cit., p. 18.
17 Ibid., p. 43.
18 Iani, Octávio. Globalização e diversidade. In: Viola, Eduardo (Org.). Incertezas de sustentabilidade na globalização. São Paulo:
Unicamp, 1996. p. 113-114.
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124 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
O autor conclui argumentando que “o desenvolvimento sustentável se propõe
a nada menos do que resgatar uma racionalização completa, o que inclui o respeito
aos próprios limites da razão, buscando um equilíbrio entre as diferentes lógicas
do social, do econômico e do ecológico”19. Tal consciência universal possui nos
novos fenômenos da globalização e da regionalização, os instrumentos necessários
para sua implementação.
Neste contexto, função essencial possui o Estado moderno, enquanto “força
nascida da consciência coletiva e destinada simultaneamente a assegura-lhe a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele considera como coisa sua e
capaz, em tais circunstâncias, de impor aos membros a atitude requerida por esta
busca”20. Tal conceito encerra os elementos constitutivos do Estado moderno
tradicional, tais como: território, poder, nação e soberania, sendo este último o
poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de
estado de uma República”21. Contudo, embora esse conceito ainda seja utilizado
podendo-se considerar soberania como sinônimo de independência, é cada vez
mais nítida e acentuada a interferência de Estados mais desenvolvidos na política
e economia de Estados em desenvolvimento como o Brasil.
Além disso, movimentos como a “regionalização”, consistente na integração
política, econômica e jurídica de Estados, o cosmopolitanismo ético, visando a
instituição de um sistema universal de direitos humanos e a globalização econômica,
vêm provocando a necessidade de rearticulação do constitucionalismo contemporâneo e, por conseguinte, do conceito de soberania. Tal rearticulação deverá
enfrentar, contudo, o paradoxo da “internacionalização do direito constitucional”
e a “constitucionalização do direito regional o que, certamente, representará o fim
do Estado Constitucional como hoje o conhecemos. Neste particular, as opiniões se dividem, acreditando alguns que essa mutação implicará num “mal estar
da constituição” nas palavras de Canotilho enquanto, para outros, representa o
início do processo de instituição de um “constitucionalismo universal” ou “paz
perpétua”, conforme termo utilizado por Kant22.
Dentre as formas de exercício do poder político estatal, cabem ainda algumas
considerações sobre a democracia. Em síntese, segundo o pensamento de Alain
Touraine, o “espírito democrático” implica em limitar o poder político através da
efetivação das garantias constitucionais e jurídicas e responder as demandas da
maioria. Para tanto, entende o autor que a democracia deve ser vista de forma
19 Ibid., p. 114-115.
20 Burdeau, Georges. O Estado. São Paulo: Publicações Europa-América, 1977, p. 27, 28 e 35.
21 Apud, Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 65.
22 Sundfeld, Carlos Ari e Vieira, Oscar Vilhena. Direito Global. In: Vieira, Oscar Vilhena. Realinhamento Constitucional. São Paulo:
Max Limonad, 1999, p. 15-48.
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O estado democrático de direito e o meio ambiente – 125
tridimensional, cujas faces compreendam: “respeito pelos direitos fundamentais,
cidadania e representatividade dos dirigentes.” A garantia constitucional dos direitos
fundamentais representa uma forma de limitação do poder político do Estado,
enquanto a cidadania implica numa integração social dos homens entre si, com
consciência de coletivo e deste com o Estado e, à representatividade, consistente
na livre escolha dos governantes pelos governados, representando os agentes
políticos os interesses dos mais diversos setores sociais23.
Conforme Alain Touraine, durante quase um século a democracia ocupou-se
essencialmente com a atividade econômica e as relações de trabalho, realidade que
se encontra em mutação, haja vista que a opinião pública atual está preocupada
com questões relacionadas à sobrevivência da humanidade, tais como o meio ambiente e o desenvolvimento irracional provocado pelo capitalismo. A democracia,
enquanto “sistema de gestão política da mudança social” fundada na educação
e cultura do povo, detém os subsídios para implementação do desenvolvimento
auto-sustentável, desde que atendidas as seguintes condições: 1) destruição do
controle político e ideológico da economia; 2) existência de um Estado capaz de
tomar decisões; 3) dirigentes econômicos com desejo de investir e empreender; e,
4) agentes políticos comprometidos com a redistribuição da renda e diminuição
das desigualdades24.
Ao analisar a situação da democracia no caso específico dos países em desenvolvimento onde a “política puramente liberal só poderá produzir efeitos contrários
à democracia”, o autor conclui que: “A democratização impõe uma intervenção
política, uma gestão negociada das mudanças econômicas e sociais e, sobretudo,
uma vontade firme de dar a prioridade à luta contra as desigualdades que destroem
a sociedade nacional. É provavelmente no Brasil, país onde os atores sociais estão
bem mais constituídos, que esse movimento se consolidará com maior vigor, uma
vez que o país tiver saído de uma crise política e financeira, ligada à manutenção
parcial do antigo papel do Estado”25.
Por fim, José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, ao realizar um estudo a
respeito do Estado liberal, social e democrático de direito, com base no pensamento de autores como Thomas Hobbes (Direito como resultado de um pacto
entre indivíduos livres), Jean-Jacques Rousseau (Direito resulta da moral, vontade
coletiva), Immanuel Kant (moral como verdade inquestionável), Ronald Dworkin
(Direito como integridade) e Jünger Habermas (Direito se justifica nas idéias de
direitos humanos e soberania popular), conclui pela necessidade de reconstrução
do paradigma do Direito. Segundo Baracho Júnior, “o grau de complexidade a que
23 Touraine, Alan. O que é a democracia? 2.ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, p. 11, 23; 43-45 e 76.
24 Ibid, p. 155-156.
25 Ibid, p. 214 e 241.
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126 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
as sociedades modernas chegaram, não mais permite que o Direito seja justificado
a partir da autonomia privada, consoante o paradigma do Estado de Direito ou
Liberal, nem a partir de uma autonomia pública em nível do Estado, conforme
o Estado Social”.
Segundo o autor, o paradigma do Estado Democrático de Direito possui as
condições para resgatar a força integradora do Direito, considerando o caráter
público e o privado, não como elementos antagônicos, mas, como “esferas complementares e essenciais uma à outra para configuração do regime democrático”.26
Neste contexto, não cabe mais aos cidadãos a mera posição de administrados,
reivindicadores de serviços públicos, mas uma participação ativa na tomada das
decisões estatais através do exercício pleno de seus direitos e deveres para com a
sociedade, consagrados pela democracia.
3 Conclusão
Pelo exposto, juntamente com os dispositivos constitucionais enunciados nos
artigos 1.º ao 3.º da CF/88, conclui-se que o Estado Democrático de Direito
Brasileiro objetiva a realização da justiça social através da garantia da vigência
e eficácia dos direitos fundamentais e pela superação das desigualdades. Para
desempenhar tamanha função, o Estado deve nortear suas ações com base em
princípios constitucionais, dentre os quais cita-se, exemplificativamente: “princípio
da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, legalidade, finalidade,
razoabilidade, proporcionalidade, motivação, impessoalidade, publicidade, devido
processo legal e ampla defesa, moralidade, controle judicial dos atos administrativos, responsabilidade, eficiência e segurança jurídica”27.
O Estado, enquanto entidade responsável pela confecção das leis e garantidor
da efetivação das mesmas na manutenção da ordem social, ocupa lugar de destaque na preservação/conservação do meio ambiente. Além de estabelecer regras
dentro do seu próprio espaço territorial, o Estado, no atual mundo globalizado,
possui também a incumbência de zelar por um ambiente equilibrado ecologicamente a nível mundial, através das organizações internacionais na sua dimensão
de Estado-global, ou sociedade-mundial.
A CF/88 preocupou-se com a proteção ambiental, relegando-o à categoria de
direito fundamental do cidadão, como consta do art. 5.º, LXXIII. Sendo assim,
cabe ao Estado, enquanto órgão responsável com poderes para manter a ordem
social e fazer cumprir a Constituição, o dever de zelar por um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, visando garantir qualidade de vida a todos.
26Baracho Jr. José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 52, 120,
136 e 166-168.
27Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 95
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 117-130, jul.-dez. 2007
O estado democrático de direito e o meio ambiente – 127
Tendo em consideração a natureza de direito fundamental difuso do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como a função do Estado Democrático
de Direito, em especial o Brasileiro, visar a realização da justiça social através da
garantia da vigência e eficácia dos direitos fundamentais e superação das desigualdades, conclui-se ser impossível tratar-se de meio ambiente e desenvolvimento
sustentável à margem deste modelo de Estado responsável.
Para que isso seja viável, além da premência de uma relação horizontal entre
os Estados tomados pelo espírito de universalidade e de assistência mútua, faz-se
indispensável a participação dos demais setores sociais, iniciativa privada em geral
e, em especial, das universidades e do chamado terceiro setor das organizações
não governamentais. Essa participação massiva da sociedade, representaria, em
última análise, uma remodelação do conceito de cidadania, voltada para uma “nova
cidadania ecológica e planetária”28, também chamada “cidadania global”29.
Neste contexto, ocupa lugar de destaque o princípio da responsabilização dos
danos ambientais, o qual se encontra respaldado em praticamente todos os eventos
internacionais ou, ao menos, nos mais importantes, evidenciando o valor para a
preservação, da obrigação de todos em reparar os danos ambientais. Consiste no
“princípio pelo qual o poluidor deve responder por suas ações ou omissões em
prejuízo do meio ambiente, de maneira a mais ampla possível, de forma que se
possa repristinar a situação ambiental degradada e que a penalização aplicada tenha
efeitos pedagógicos, impedindo-se que os custos recaiam sobre a sociedade”30.
No Brasil, o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e saudável,
possui a natureza de direito difuso, objetivo e subjetivo, sendo obrigação de todos
protegê-lo. Assim, imprescindível é o papel do Estado, enquanto órgão vetor da
vida em sociedade, hoje visto como verdadeiro Estado do Ambiente. Ao Estado cabe
tomar as medidas preventivas e repressivas, sendo objetivamente responsável caso
não venha a desempenhar seu papel de garantidor da proteção ambiental, sob o
fundamento legal do artigo 225, § 3.º da CF/88 e que recepcionou a Lei 6.938/81
a qual, por sua vez, ao instituir a Política Nacional do meio ambiente, estabeleceu
no artigo 14, § 1.º, a responsabilidade do ente público.
Embora a globalização esteja colocando em “cheque” a figura do Estado soberano, na forma em que o conhecemos ainda é a organização de maior relevância
para uma nação, tanto nacional quanto internacionalmente, mesmo com todas as
limitações impostas aos Estados em desenvolvimento pela realidade macroeconô-
28Deleáge, Jean Paul. História de la ecologia: una ciencia del hombre y la naturaleza. Barcelona: Icaria Editorial, 1993, p. 342.
29Lobato, Anderson Orestes Cavalcante. Direitos fundamentais e cidadania: um estudo sobre as condições jurídico-constitucionais
de implementação dos direitos humanos no Brasil. Revista Trabalho e Ambiente, Caxias do Sul, v. 1, n. 1, p. 53-74, jan./jun.
2002, p. 70.
30Antunes, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 32.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 117-130, jul.-dez. 2007
128 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
mica global, tendo em vista o fato das entidades representativas da opinião pública
não se encontrarem suficientemente organizadas para imporem suas idéias.
Logo, acredita-se que a possibilidade de responsabilização objetiva do Estado
por danos ambientais, consiste em um instrumento eficaz para compelir nossos
governantes a adotarem políticas ambientais dirigidas ao desenvolvimento sustentável e que essa exigência legal não acarretará na derrocada econômica do Estado,
como pensam alguns, antes compelirá o Poder Público a exigir o cumprimento
das leis ambientais, fazendo-se necessário, também, a participação da sociedade a
qual, através dos meios disponíveis de pressão, exija uma postura mais ética dos
governos.
Em última análise, a importância de pesquisas sob esta temática se justifica na
medida em que se propõem a discutir questões controvertidas, de vital relevância
jurídica e social, enfrentando posicionamentos tradicionais que não mais condizem com a realidade atual. Logo, as novas tendências do Estado Democrático de
Direito, não consiste no retorno de um Estado mínimo, tampouco interventor,
nos moldes do passado, mas sim um Estado atuante, presente nas relações sociais,
políticas e econômica na exata proporção demandada pelo grau de complexidade
da sociedade contemporânea.
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Os conhecimentos tradicionais
associados e o acesso aos recursos
genéticos: um estudo sobre a
regulamentação da medida provisória
n° 2.186-16/01
Astrid Heringer1
Resumo
Abstract
O artigo analisa a aplicabilidade da Medida
Provisória n. 2.186-16/2001, que prevê a forma
de acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados, bem como a
eficácia da regulamentação do seu art. 31, consistente na obrigatoriedade de verificação da origem
desses conhecimentos que deram origem ao bem
patenteado, com o intuito de rastrear se houve
a devida socialização dos benefícios com quem
de direito. Dentro deste contexto procurou-se
elucidar os principais conceitos envolvendo o
assunto, a abordagem da legislação e também
verificar a eficácia da legislação no Brasil.
The article analyzes the applicability of the
Provisional Measure number. 2.186-16/2001
that expresses the way to reach the genetic
patrimony and the traditional knowledge
associated, as well as the efficacy of the regulation of its art. 31, which consists on the
obligatoriness of verifying the origin of these
knowledge that gave origin to the patented
goods aiming at investigating if there was the
due socialization of the benefits to whom they
belong. In this context, it was tried to elucidate
the main concepts involving the subject, the
legislation approach and check the efficacy of
the legislation in Brazil.
Palavras-chave: Medida Provisória 2.186/01.
Recursos genéticos. Patrimônio genético.
Patentes.
Keywords: Provisional Measure 2.186/01.
Genetic resources. Genetic patrimony. Patents.
1 Mestre em Integração Latino-americana pela Universidade Federal de Santa Maria; doutoranda em Nuevas Tendencias
del Derecho Constitucional, Universidad de Salamanca, Espanha; integrante do grupo de pesquisa Novos Direitos na
Sociedade Globalizada; professora do curso de Direito e do programa de pós-graduação Lato Sensu da URI, campus de
Santo Ângelo, RS.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 131-148
jul.-dez. 2007
132 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Introdução
O Brasil é um país megadiverso, com uma riqueza de flora e fauna invejável a
qualquer país desenvolvido uma vez que este patrimônio poderá ser utilizado para
diversas finalidades, especialmente no setor químico e farmacêutico. Contrapondo-se à exuberância de recursos naturais, o país ainda não detém uma legislação
rígida de combate à biopirataria, nem, tampouco, órgãos e agentes governamentais suficientes e aptos para proceder ao controle da extração da biodiversidade
nacional.
Em face deste paradoxo, o presente trabalho propõe-se a analisar a aplicabilidade da Medida Provisória n. 2.186-16/2001, que prevê a forma de acesso ao
patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados, bem como a
eficácia da regulamentação do seu art. 31, consistente na obrigatoriedade de verificação da origem desses conhecimentos que deram origem ao bem patenteado,
com o intuito de rastrear se houve a devida socialização dos benefícios com quem
de direito.
Dentro deste contexto procurar-se-á elucidar os principais conceitos envolvendo o assunto, a abordagem da legislação e também verificar a eficácia da legislação
no Brasil. O método de abordagem utilizado neste estudo foi o hermenêutico e
dedutivo.
1 A biodiversidade brasileira e a urgência
de sua proteção
O Brasil constitui-se no país mais rico do mundo em biodiversidade. Para comprovar isso, basta citar que possuímos 3,57 milhões de km2 de florestas tropicais,
o que representa 30% das florestas tropicais de todo o mundo, três vezes mais
do que o país segundo colocado, a Indonésia. Nosso país também detém a maior
riqueza de animais e vegetais do mundo, com um índice entre 10 a 20% de um
total de 1,5 milhões de espécies catalogadas. Somente as plantas com sementes
totalizam um montante de 55 mil espécies, o que corresponde a aproximadamente
22% do total mundial2.
A biodiversidade ou diversidade biológica origina-se do grego (bios: vida) e
significa a diversidade da natureza viva. O termo diversidade biológica foi criado
por Thomas Lovejoy em 1980, ao passo que a palavra “biodiversidade” foi usada
pela primeira vez pelo entomologista E. O. Wilson em 1986, num relatório apresentado ao primeiro Fórum Americano sobre a diversidade biológica, organizado
2 Capobianco, João Paulo Ribeiro et al apud Santini, Juliana. A proteção jurídica à biodiversidade e aos conhecimentos
jurídicos tradicionais. In: Annoni, Danielle (Coord.). Direitos humanos e poder econômico: conflitos e alianças. Curitiba:
Juruá, 2005. p. 278-279.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 131-148, jul.-dez. 2007
Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 133
pelo Conselho Nacional de Pesquisas dos EUA (National Research Council, NRC).
A palavra “Biodiversidade” foi sugerida a Wilson por técnicos do NRC a fim de
substituir diversidade biológica, expressão considerada menos eficaz em termos
de comunicação. Desde 1986 o termo vem ganhando repercussão cada vez maior,
pela crescente preocupação de biólogos, ambientalistas, políticos, especialistas e
toda a população mundial com a degradação ambiental e o risco de extinção de
muitas espécies, fato que se observou nas últimas décadas do século XX3.
A biodiversidade abrange a variedade de flora e de fauna existentes no planeta,
compreendendo também os fungos macroscópicos e microscópicos, a variedade
de funções ecológicas desempenhadas por estes organismos nos ecossistemas e a
variedade de comunidades, habitats e ecossistemas formados pelos organismos.
Sinônimo de “vida na Terra”, a biodiversidade é tão rica quanto desconhecida.
As estimativas do número total de espécies do planeta giram em torno de 5 a 100
milhões, sendo que apenas 1,7 milhões de espécies foram estudadas pela ciência.
Constatou-se que apenas 5% da flora mundial já foi pesquisada para a identificação de componente farmacológico. Sabe-se que um quarto dos medicamentos
existentes no mundo inteiro deriva de componentes vegetais. As espécies vivas
detém alto valor comercial, uma vez que podem ser fonte de alimentos, medicação,
fibras e matéria prima para produtos agrícolas, químicos e industriais, tais como
pesticidas, óleos industriais, celulose, têxteis etc4.
A criação do termo biodiversidade veio acompanhada pela ameaça de destruição
dela. São inúmeras as causas que ocasionam este perigo de destruição e risco de
extinção de espécies tão valiosas para todo o mundo, tais como a perda da camada
de ozônio, as chuvas ácidas, a erosão, a poluição do ar, do solo e das águas. Estes
fatores, combinados com a pressão do crescimento populacional nos países em
desenvolvimento, bem como o consumo desenfreado nos países desenvolvidos,
ameaça à conservação da biodiversidade.
Os fracassos do homem na tentativa de frear este avanço da destruição da
biodiversidade é grave e irreversível pois a impossibilidade de efetivar a preservação causará colapso dos ecossistemas e seus processos ecológicos, construídos de
forma tão singular por bilhões de anos. E não há medidas tecnológicas capazes
de refazer aquilo que foi destruído.
De toda a preocupação mundial com a destruição da biodiversidade, foi
realizada em 1992 a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (RIO-92), durante a qual foi assinada pelo Brasil e mais uma
3 Wikipedia. Biodiversidade. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Biodiversidade. Acesso em: 3 mar. 2007.
4 Hathawy, David apud Arnt, Ricardo. Perspectivas de futuro: biotecnologia e direitos indígenas. Texto apresentado no Encontro
Internacional Diversidade Eco-social e Estratégias de Cooperação entre ONGS na Amazônia, realizada em Belém, Pará, em
13 jun. 1994.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 131-148, jul.-dez. 2007
134 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
centena de países o documento mais importante para a proteção da biodiversidade,
a Convenção da Diversidade Biológica, ratificada pelo Congresso Nacional em maio
de 1994. A partir desse documento, inúmeros foram os avanços para evitar que
houvesse a continuidade da degradação ambiental, tais como o destino de verbas
públicas e privadas para fundos mundiais para a conservação das espécies.
A assinatura da convenção foi um marco para o início da proteção da megadiversidade de diversos países como Brasil, México, China, Colômbia, Indonésia,
Quênia, Peru, Venezuela, Equador, Índia, Costa Rica e África do Sul, que representam, conjuntamente, 70% da diversidade biológica do mundo. Uma das importantes vitórias daquele documento foi a estipulação de que os países signatários têm
respeitadas a sua soberania quanto ao acesso de recursos biológicos e genéticos,
que não mais são considerados “patrimônio da humanidade”, o que possibilitava
aos demais países exploradores o acesso direto a esses recursos, como os Estados
Unidos e o Japão, que até o momento não assinaram o tratado. Hoje, para se ter
acesso a esses recursos é necessário a autorização do país de origem.
A grande maioria dos países que possuem as reservas naturais de biodiversidade integra países do Terceiro Mundo - que foram e continuam sendo explorados
pelos monopólios farmacêuticos e biotecnológicos -, exige que haja agora, além
da autorização prévia para a exploração do seu território, que o resultado da
extração dos recursos naturais sejam compartilhados entre os povos que vivem
nos territórios explorados. A concessão de patentes às empresas multinacionais
geram vultosas somas que deverão ser divididas entre as populações de onde
foram retirados estes conhecimentos e a exploração da biodiversidade. Estima-se
que o mercado mundial de produtos biotecnológicos gere em torno de 470 a 780
bilhões de dólares ao ano5.
A Convenção da Diversidade Biológica previu que os conhecimentos oriundos
das populações indígenas, ribeirinhas, seringueiros, quilombolas, dentre outros, e
que possam ser úteis para o desenvolvimento de biotecnologias, sejam protegidos.
Por isso a Convenção diz que o acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito
ao “consentimento prévio e fundamentado” do país de origem, e os benefícios
derivados da sua utilização comercial ou de qualquer outra natureza, sejam compartilhados de forma “justa e eqüitativa”.
5 Santini, Juliana. A proteção jurídica à biodiversidade e aos conhecimentos jurídicos tradicionais. In: Annoni, Danielle (Coord.).
Direitos humanos e poder econômico: conflitos e alianças. Curitiba: Juruá, 2005. p. 278-279.
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Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 135
2 A obtenção do conhecimento através
da bioprospecção
Para localizar toda a biodiversidade que possa ser útil economicamente, é necessária uma série de conhecimento e formas de abordagem. Chama-se bioprospecção o método ou forma de localizar, avaliar e explorar sistemática e legalmente a
diversidade de vida existente em determinado local, tendo como objetivo principal
a busca de recursos genéticos e bioquímicos para fins comerciais.
São vários os setores em que se pode identificar a importância da utilização
da bioprospecção. Talvez a mais importante delas seja na elaboração de produtos
e processos farmacêuticos. Estima-se hoje que cerca de 25% dos medicamentos
existentes foram elaborados com ingredientes ativos extraídos de plantas. Além
disso, há uma relação de 119 substâncias químicas extraídas da flora e que são
regularmente utilizadas na medicina6. A mesma importância que se atribui aos
processos de bioprospecção são registrados na agricultura, especialmente na
reprodução de plantas e também na melhoria da produção animal, através da
utilização de genes da flora e da fauna.
Assim, a diversidade biológica passou a ser extremamente valorizada, com
maior valor de mercado e consequentemente despertando o interesse dos países
ricos para o grande manancial de reservas existentes e exploráveis, bem como dos
países pobres e detentores das reservas de biodiversidade, carentes de recursos
tecnológicos e suscetíveis à apropriação de seus recursos. Isso gerou a necessidade crescente de consciência da valoração da biodiversidade e também exigiu
medidas de criação de regras para a sua exploração. Assim, originou-se em âmbito
planetário uma nova forma de exploração de produtos através da utilização dos
recursos naturais biológicos, ou seja, a exploração da biodiversidade através da
bioprospecção. Na Costa Rica, pequeno país da América Central, desenvolve-se,
por exemplo, um projeto piloto de bioprospecção em convênio do Instituto Nacional de Biodiversidade (INBIO) com a Merck & Co., Ltda, com interessantes
resultados, conforme relatado por Reid et all (1993)7.
A bioprospecção, como nova atividade humana, necessita ser regulamentada
em termos mundiais para que possa seguir normas ou princípios garantidores de
sua execução.
Seu objetivo principal é a busca de recursos genéticos e bioquímicos para fins
comerciais. Porém, o processo de bioprospecção deve observar princípios para
6 Farnsworth (1997) apud Santos, Antônio Silveira R. dos. Biodiversidade, bioprospecção, conhecimento tradicional e o futuro da vida.
Disponível em: http://www.ccuec.unicamp.br/revista/infotec/artigos/silveira.html. Acesso em 4 abr. 2007.
7 Apud Santos, Antônio Silveira R. dos. Biodiversidade, bioprospecção, conhecimento tradicional e o futuro da vida. Disponível em: http://
www.ccuec.unicamp.br/revista/infotec/artigos/silveira.html. Acesso em 4 abr. 2007.
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136 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
que tenha credibilidade científica, política e econômica. Estes princípios incluem
o princípio da prevenção, que consiste na não realização de ações que podem
causar danos ambientais imprevisíveis; princípio da preservação que tem como
meta a preservação para que não haja o esgotamento dos recursos naturais disponíveis e a extinção das espécies; princípio da equidade distributiva cujo objetivo
fundamental é a partilha equânime dos resultados auferidos no país proprietário
da biodiversidade explorada; princípio da participação pública que visa garantir
a participação da população envolvida em todos os seus segmentos através de
entidades públicas ou particulares, bem como do próprio cidadão isoladamente;
princípio da publicidade pelo qual os atos desta atividade devem ter total transparência e com caráter público; princípio do controle público e privado que
consiste no controle das atividades pelos órgãos de fiscalização bem como pelas
entidades particulares; e ainda o princípio da compensação cujo objetivo é atribuir
à comunidade ou a pessoa fornecedora da matéria prima ou do conhecimento os
resultados das compensações das atividades em dinheiro ou em bens.
3 Os conhecimentos tradicionais associados
Segundo o art. 7º, II, da Medida Provisória 2186-16, de 2001, os conhecimentos tradicionais constituem-se na informação ou prática individual ou coletiva
de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial,
associada ao patrimônio genético.
O processo de bioprospecção também se vale da utilização dos conhecimentos tradicionais das culturas milenares dos povos. Dizendo de outra forma, esses
conhecimentos constituiem-se em práticas, conhecimentos empíricos e costumes
passados de pais para filhos e crenças das comunidades tradicionais que vivem em
contato direto com a natureza. A utilização do conhecimento das comunidades
tradicionais (povos indígenas, seringueiros, agricultores, ribeirinhos etc.) sobre
recursos naturais como ponto de partida para pesquisas que podem levar ao patenteamento de produtos e processos é uma das questões que compõe o quadro
das polêmicas sobre o tema. Os recursos biológicos, muitas vezes presentes em
terras indígenas, são coletados por pesquisadores ou laboratórios, que passam a
estudar o potencial farmacológico de determinada planta ou veneno de animal,
baseando-se no uso tradicional que se faz deles.
As comunidades tradicionais também têm entre si uma lógica do funcionamento e da manipulação dos recursos provenientes de sua flora e fauna. Segundo
Diegues:
As populações tradicionais não só convivem com a biodiversidade, mas
nomeiam e classificam as espécies vivas segundo suas próprias categorias e
nomes. Uma particularidade, no entanto, é que essa natureza diversa não é
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Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 137
vista pelas comunidades tradicionais como selvagem em sua totalidade; foi
e é domesticada, manipulada. Uma outra diferença é que essa diversidade
da vida não é tida como “recurso natural”, mas como um conjunto de seres
vivos detentor de um valor de uso e de um valor simbólico, integrado numa
complexa cosmologia8.
Percebe-se o respeito e a consideração destes povos com a interação no meio
em que vivem. Consideram-se parte do processo9, parte da “teia da vida”, no qual,
nenhum elemento pode faltar ou ser meramente explorado.
Então, conforme Santilli, “a biodiversidade pertence tanto ao domínio do
natural como do cultural, mas é a cultura, como conhecimento, que permite às
populações tradicionais entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la, retirar
suas espécies e colocar outras, enriquecendo-a, com freqüência”10.
Os conhecimentos tradicionais constituem-se, então, no patrimônio comum do
grupo social e que tem caráter difuso, pois não pertence a este ou aquele indivíduo
mas a toda a comunidade, de forma que todos devem receber os benefícios de
sua exploração. Porém, não é dessa maneira que tem sido explorada esta riqueza
comunitária através da bioprospecção.
Muitos destes recursos acabam sendo obtidos através da exploração dos
conhecimentos tradicionais, os quais servem como indicadores de material apropriado à pesquisa, encurtando a procura dos pesquisadores. Deve-se levar em
conta a necessidade de respeito aos princípios norteadores da atividade, como
vimos acima.
8 Diegues, Antônio Carlos; Arruda, Rinaldo. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente;
São Paulo: USP, 2001.
9 Assim como os povos indígenas primitivos, as populações tradicionais, tais como índios, seringueiros, entre outros, possuem
uma complexa organização para o manuseio dos recursos naturais, bem como uma engenhosa distribuição de tarefas entre
si. É rica a descrição contida na Enciclopédia da Floresta: o alto Juruá, citada por Santilli (2005, p. 281): “Os conhecimentos
que as populações têm da floresta que habitam é verdadeiramente enciclopédico, no sentido de cobrir áreas variadas desde
a madeira linheira que serve para a mão-de-for de uma casa; as enviras que se prestam para amarrá-la; as fruteiras que o
porquinho ou veado preferem e debaixo das quais é quase certo caçá-los; os solos ideais para plantar o milho, o tabaco,
o jerimum; a meneira de trançar as palhas de uricuri para fazer o telhado; as iscas preferidas do caparari, do mandim, do
pacu; os sonhos, os presságios, as maneiras de ter sorte na caçada. Os pés de seringa, cada um deles, e o modo adequado
de preparar as estradas, empausar, embandeirar, raspar, cortar a madeira. Modos de fazer, modos de pensar, modos de conhecer.
Não que cada um não saiba o mesmo que todos os outros: cada qual aprofunda conhecimentos em certas áreas. Já de saída,
homens e mulheres se especializam: seringa e caçada em princípio são assunto de homem; capoeira, horta, canteiro e parto,
assunto de mulher. Homens andam na mata, olhando em volta e para o alto, com a atenção na caça; as mulheres olham para
baixo, prestando atenção nas ervas. Embora haja pessoas, em geral, mais velhas, que dominam sozinhas um imenso cabedal
de conhecimentos – e essas são, cada uma, verdadeiras enciclopédias semomentes – o conhecimento que descrevemos ou
evocamos neste livro é o somatório de saberes mais individuais, e entendemos por saber formas de pensar, investigar, inovar,
tanto quanto conhecimentos e práticas estabelecidos. Esse cabedal pode não ser compartilhado por cada seringueiro em
particular, aliás, certamente não o é, mas constitui no seu conjunto patrimônio coletivo da população dos antigos seringais.”
Cunha, Manuela Carneiro da; Almeida, Mauro Barbosa de. apud Santilli, op. cit. 2005, p. 285.
10 Santilli, Juliana. Op. cit., p. 280.
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138 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
A Convenção sobre a Diversidade Biológica, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 2, de 1994, institui em seu Preâmbulo que as Partes Contratantes devem
reconhecer a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas
comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais, e que
é desejável repartir equitativamente os benefícios da utilização do conhecimento
tradicional. Ou seja, as comunidades locais (ribeirinhos, seringueiros etc.) e as populações indígenas que fornecerem seus “conhecimentos tradicionais” relevantes
para a conservação e exploração da biodiversidade devem receber benefícios, os
quais devem ser distribuídos equitativamente.
Isso leva a conclusão de que como aderente da citada Convenção, o país que
tiver acesso à exploração dos elementos de nossa biodiversidade através da utilização do “conhecimento tradicional” deve proceder ao processo de bioprospecção
observando os princípios supra elencados, em especial o princípio da repartição
de benefícios, conforme já previsto na regulamentação do art. 31 da Medida
Provisória n. 2.186/01.
4 Considerações sobre a biopirataria
A edição da Medida Provisória n. 2.168-16/01 objetivou regular o acesso à
biodiversidade. A medida tornou-se necessária em função da apropriação indevida
da fauna brasileira através de um processo chamado de biopirataria. A diversidade existente nos países pobres ou em desenvolvimento é tão grande quanto os
recursos tecnológicos existentes nos países ricos que podem ser utilizados para
a exploração da biodiversidade. Essa disparidade de recursos, associada a inexistência de normas claras de proteção ou até mesmo de polícias, fez com que se
multiplicassem os casos de biopirataria. Situações bastante conhecidos eclodiram
em diversos países do mundo, chamando a atenção para a necessidade de uma
legislação específica que protegesse os conhecimentos tradicionais, regulamentasse
o acesso dos países ricos em países em desenvolvimento, estabelecesse um sistema
de transferência de tecnologias e também socializasse os recursos advindos das
comunidades tradicionais.
Alguns casos de biopirataria tornaram-se bastante conhecidos, tais como o da
utilização do nim, árvore originária da Índia, da qual é extraída há séculos extratos
para confecção de medicamentos e pesticidas. A empresa norte-americana W. R.
Grace Corporation, juntamente com o Departamento de Agricultura dos Estados
Unidos obtiveram no Escritório Europeu de Patentes, seis patentes derivadas de
produtos e processos extraídos daquela árvore. Após cinco anos de batalhas judiciais, uma das patentes foi revogada, após a intervenção de um grupo de pessoas
e organizações, por se entender que ela não obedecia ao requisito da novidade,
um dos elementos imprescindíveis para a concessão da patente. Isso foi possível
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Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 139
graças a prova judicial de que um empresário indiano já utilizava o processo em
sua fábrica bem antes do requerimento da patente11.
Há ainda dois outros casos emblemáticos de ocorrência da biopirataria. O
primeiro deles, amplamente denunciado, foi o patenteamento de uma variedade
do ayahuasca (nome indígena que quer dizer “cipó da alma”). Trata-se de uma
planta amazônica utilizada com finalidades curativas e medicinais, assim como
nos rituais xamânicos e cerimônias religiosas. Por fim, houve o cancelamento da
patente em 1996, após requerimento da organização não-governamental Center
for International Environmental Law (CIEL), por intervenção da Coordenação
das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e da Coalisão Amazônica (Amazon Coalition), dirigida contra o Patent and Trademark Office, órgão
norte-americano responsável pelo registro de marcas e patentes. A patente tinha
sido registrada pelo norte-americano Loren Miller. Apesar do cancelamento, a
patente foi restabelecida, continuando em vigor até 2003, ano que expirou seu
prazo de vigência12.
E, por último, cita-se o emblemático caso do cupuaçu. No ano de 2000 a
empresa japonesa Asahi Foods Co. Ltda requereu o patenteamento na Europa e
no Japão do método para a produção e uso da gordura de cupuaçu extraídos da
sua semente.
No dia 30 de outubro de 2001 a já referida empresa japonesa teve registrado no
Japão a sua primeira patente sobre o método para produção de gordura extraída do
cupuaçu e seu uso, com o seguinte número JP2001299278. No dia 18 de dezembro
de 2001 verificou-se outro registro de patente do Asahi Foods, também no Japão,
porém agora sobre o óleo e gordura, derivados da semente do cupuaçu13.
A Asahi Foods Co. Ltda. registrou a patente da produção e uso da gordura da
semente do cupuaçu na União Européia no dia 03 de julho de 2002, dia em que
também foi registrada a patente na OMPI (Organização Mundial de Propriedade
Industrial).
Existe ainda outro registro na OMPI em 17 de outubro de 2002 pela empresa
americana Cupuaçu Internacional Inc., cujo titular é. Nagasawa Makoto, ou seja, o
mesmo diretor da Asahi Foods Co. Ltda. e relacionado como inventor do processo
de extração de óleo e gordura de cupuaçu, assim como a produção do Cupulate.
O cupulate foi criado por pesquisadores brasileiros da EMBRAPA, na década
de 1980, sendo patenteado em 1990, e novamente patenteado depois de 1996 sob
a égide da lei 9.279/96. Além disso ocorreu a publicidade do invento através de
11 Santilli, op. cit.
12 Disponível em www.amazonlink.org e www.ciel.org.
13 Disponível em: http.www.amazonlink.org. Acesso em: 12 fev. 2005.
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140 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
revistas científicas, o que proporcionou o conhecimento do assunto por outras
pessoas e empresas.
Além destas patentes citadas, houve ainda o registro da marca cupuaçu e
cupulate pela Ashai Foods Co. Ltda, o que implicava em pagamento de royalties
para a empresa asiática, no caso de importação de produtos com estes nomes
por brasileiros.
O registro da patente da extração de óleo e gordura da semente do cupuaçu,
bem como o da produção do cupulate, já não são mais de propriedade da Ashai
Foods Co. Ltda., em favor da EMBRAPA, através de um longo processo que visava comprovar a titularidade da empresa brasileira sobre o produto patenteado.
Porém, esse fato apesar de já resolvido, só veio a provar o descuido que se tem
com o patrimônio nacional que é a Amazônia e sua biodiversidade.
Assim, “o caso do cupuaçu tornou-se um clássico nas campanhas contra a
biopirataria, uso monopolista de patrimônio vegetal e animal e de conhecimentos
tradicionais de comunidades de países pobres e em desenvolvimento por empresas
de países ricos, por meio de sistema de patentes internacionais”14.
A indignação causada pelo caso do cupuaçu na sociedade brasileira, e principalmente, nas ONG’s de proteção da biodiversidade, fez com que a população em
geral pensasse na questão da proteção das riquezas brasileiras e lutasse por ela.
Os exemplos acima citados têm em comum o fato de que houve a utilização
indevida (sem o consentimento prévio e fundamentado do país de origem) de
recursos provenientes dos países megadiversos. Esses recursos foram levados ao
exterior com a finalidade de identificação dos princípios ativos e, posteriormente, a
solicitação de registro de processos ou produtos cujos conhecimentos provenham
do saber milenar dos povos. Além do mais, o fruto dessa exploração não foi partilhado com os povos titulares da cultura e saberes e também da biodiversidade.
Essa atitude viola frontalmente a Convenção sobre a Biodiversidade Tecnológica,
na medida em que houve uma apropriação indevida e injusta de recursos pertencentes às comunidades locais do país de origem.
No entanto, percebe-se que a utilização da patente como forma de proteger
produtos e processos que tenham novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, oriundos dos conhecimentos tradicionais obedecem aos requisitos necessários
para a concessão da patente15. Portanto, pode-se afirmar categoricamente que
houve a utilização do meio legal apropriado para a defesa do direito. Porém, a
questão complexa é que o direito não é somente daquele que registra a invenção,
14 Disponível em: http://revistagloborural.globo.com/GloboRural/0,6993,EGS0-1482,00.html. Acesso em: 12 mar. 2006.
15 Conforme Santilli, os direitos de propriedade industrial, “concebidos para proteger inovações desenvolvidas pela ciência
ocidental e para atender principalmente às necessidades das sociedades industriais [...], têm permitido a apropriação privada
de produtos e processos gerados de forma coletiva” (2005, p. 288).
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Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 141
aparentemente o seu titular, pois quando ocorre a utilização de conhecimentos
tradicionais, existe uma coletividade anterior à patente que já é titular de direitos.
Por isso há necessidade de partilhar os dividendos resultantes da comercialização
dos produtos patenteados, solução apontada no Brasil pela Medida Provisória n.
2.186/01.
Mesmo com a importância e urgência do tema para as comunidades locais
dos países onde estão situadas as reservas de biodiversidade, ainda são tímidas as
iniciativas internacionais para a proteção dos conhecimentos tradicionais e das
comunidades locais. É evidente a marginalidade dessa discussão quando relacionado ao interesse dos países ricos, desenvolvidos e detentores de tecnologia e
que se apropriam desse conhecimento. O instrumento da patente até hoje representou a defesa de interesses monopolísticos de empresas multinacionais. Assim,
o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados
ao Comércio (ADPIC, ou, em inglês, TRIPS) ainda não foi compatibilizado com
as declarações da Convenção sobre a Diversidade Biológica. O TRIPS é um dos
pilares do comércio mundial, representando os interesses de 146 países que integram a Organização Mundial do Comércio, preocupados sempre com a geração
de lucros crescentes.
Existe, então, uma falta de compatibilização dos interesses vigentes no TRIPS e
da CDB, refletido no art. 27.3 do primeiro. Esse artigo diz que os países membros
devem excluir da proteção patentária os microorganismos e procedimentos nãobiológicos ou microbiológicos, além de dizer também que os membros devem
conferir proteção a todas as variedades de plantas mediante patentes, através de
um sistema próprio de patentes, um sistema sui generis, ou um misto de ambos.
Assim, enquanto que não houver uma regulamentação eficaz, que proíba a retirada de extratos vegetais pelos países ricos dos países detentores de biotecnologias,
não se terá avançado e a CDB será tão somente um pedaço de papel.
5 Proteção jurídica da biodiversidade
e o processo de bioprospecção
A Convenção sobre Diversidade Biológica teve a finalidade, entre outras,
de chamar a atenção dos países signatários e também de todo o mundo para a
importância da biodiversidade, dos valores ecológicos, sociais, econômicos, científicos, culturais, bem como reafirmou que os Estados são responsáveis pela sua
conservação para a obtenção de um desenvolvimento sustentável. Considerou
também que é de importância vital a conservação da biodiversidade para atender
as necessidades da população mundial. A referida convenção foi aprovada no
Brasil pelo Dec. Leg. nº 2, de 1994.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 131-148, jul.-dez. 2007
142 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
Há necessidade de proteção dos conhecimentos tradicionais que se constituem
em uma importante reserva estratégica e econômica para os países que detêm a
diversidade biológica, pois passaram a possuir valor extremamente elevado especialmente para a indústria farmacêutica e química. Segundo Vandana Shiva:
[...] dos 120 princípios ativos atualmente isolados de plantas superiores e
largamente utilizados na medicina moderna, 75% têm utilidade que foram
identificadas pelos sistemas tradicionais. Menos de doze são sintetizados por
modificações químicas simples; o resto é extraído diretamente de plantas e
depois purificado. Diz-se que o uso do conhecimento tradicional aumenta
a eficiência de reconhecer as propriedades medicinais de plantas em mais
de 400%, e o valor corrente no mercado mundial para plantas identificadas
graças às pistas dadas pelas comunidades nativas já teria sido estimado em
43 bilhões de dólares16.
A nossa Constituição Federal (1988), também protege a diversidade quando
diz que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225),
o que se pode interpretar que todos têm direito a que nenhuma espécie pereça
ou se extinga.
Quanto a preservação dos ecossistemas brasileiros e sua diversidade, o § 4º
do referido artigo protege a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do
Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira, considerando-os patrimônio nacional. Por sua vez, a Lei 6.938, de 31/08/81, (Política Nacional do Meio
Ambiente) tem como princípios a manutenção do equilíbrio ecológico (art. 2º, I)
e a proteção dos ecossistemas (art. IV), mostrando que a preservação da biodiversidade é essencial.
As leis de preservação florestal (Lei 4.771/65, Cód. Florestal) e dos Crimes
Ambientais (Lei 9.605/98), bem como a criação das unidades de conservação
também protege a diversidade, pois tentam manter os ecossistemas.
Quanto à proteção da diversidade do patrimônio genético vemos que está
expressa no inciso II do referido art. 225 da Constituição Federal de 1988, observando a existência da Lei 8.974, de 05/01/95 (Lei da Biossegurança), que regulamenta os incisos II e V do parágrafo 1º do citado artigo, estabelecendo normas de
segurança, fiscalização e comercialização, dentre outros. Há ainda a Lei nº 9.456,
de 28/04/97 (Lei de Cultivares) que disciplina o direito de propriedade sobre a
multiplicação e produção de cultivares e sementes de vegetais.
Portanto, a biodiversidade com os seus elementos e componentes integra assim
o meio ambiente, de forma que se constitui em um bem de uso comum do povo,
16 Shiva, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução Laura Cardellini Barbosa de Oliveira.
Petrópolis: Vozes, 2001.
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Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 143
conforme o art. 225 da Constituição Federal brasileira, devendo ser protegida e
fiscalizada por todos.
Dessa maneira, a Lei 7.347/85 que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, possibilita, entre outros, sejam
impedidos também atos degradatórios à biodiversidade. Por esta lei está capacitado o Ministério Público e as demais pessoas jurídicas elencadas em seu art. 5º a
defender o processo de bioprospecção, uma vez que este trata de exploração de
elementos da biodiversidade que possuem caráter difuso, como visto.
Há necessidade de proteção dos conhecimentos tradicionais que se constituem
em uma importante reserva estratégica e econômica para os países que detêm a
diversidade biológica, pois passaram a deter valor extremamente elevado especialmente para a indústria farmacêutica e química.
6 O conteúdo da Medida Provisória
n. 2.186-16/01
A biodiversidade é composta por elementos tangíveis e intangíveis, não sendo
possível dissociar o reconhecimento e a proteção dos conhecimentos tradicionais
de um sistema jurídico que proteja os direitos territoriais e culturais desses povos
e populações tradicionais.
Neste sentido a edição da Medida Provisória n. 2.186-16 de 2001, cuja primazia consiste em estabelecer as principais diretrizes para a proteção da diversidade
biológica no Brasil, a partir da Convenção da Biodiversidade assinada durante a
Rio 92. Visa especificamente dar proteção aos recursos genéticos, cuja informação
provenha dos conhecimentos tradicionais em face do risco constante de ocorrência
da biopirataria e, a partir disso partilhar os ganhos econômicos dessa exploração
com as populações locais. Constitui-se no principal documento existente no país
para a proteção da biodiversidade.
Vandana Shiva alerta para a necessidade de proteção dos direitos de propriedade
intelectual, que estão sendo utilizados como supedâneo para o furto dos conhecimentos tradicionais associados das comunidades detentoras, asseverando que
“negando-se a criatividade da natureza e de outras culturas, mesmo que quando
essa criatividade é explorada para se obter um ganho comercial, os direitos de
propriedade intelectual passam a ser outro nome para o roubo intelectual e a
biopirataria”17. Aduz ainda a autora que “os direitos de propriedade intelectual se
constituem em uma designação sofisticada para a pirataria moderna, pois estão
arraigados em uma monocultura do conhecimento que exclui outras tradições,
17 Idem, p. 32.
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144 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
de modo que a sua proteção sufoca as maneiras pluralistas de saber que tem enriquecido o mundo contemporâneo”18.
A biopirataria pode ser designada como “a atividade que envolve o acesso aos
recursos genéticos de um determinado país ou aos conhecimentos tradicionais
associados a tais recursos genéticos (ou a ambos) em desacordo com os princípios
estabelecidos na convenção sobre diversidade biológica”19.
O texto da medida provisória em estudo constitui-se em importante avanço
para a legislação nacional, na medida em que, além de tantas situações levantadas,
estabelece a necessidade de consentimento antecipado da comunidade de onde
são retirados os conhecimentos, além de haver a contraprestação financeira sobre
os lucros decorrentes de tal exploração.
A Medida Provisória regulamenta também sobre a utilização dos recursos
genéticos advindos de áreas habitadas por populações tradicionais, regulando as
disposições sobre tais bens, destacando a necessidade de consentimento prévio
e informado, além da previsão legal de pagamento de royalties e a partilha dos
recursos econômicos derivados, havendo também a obrigatoriedade de acesso a
tercnologia e capacitação de recursos humanos locais.
Destaca também o texto do decreto a necessidade de obter, além do consentimento prévio, a ouvida da Fundação Nacional do Índio – FUNAI quando este
acesso ocorrer em área estritamente indígena.
7 A regulamentação do art. 31
da MP 2.186-16/01
Com o objetivo de colocar em prática o texto da medida provisória de 2001, o
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) criou a resolução n. 134/2006,
assim como o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), a resolução
de n. 23/2006. Ambas medidas têm como meta fortalecer a participação do Brasil
em fóruns internacionais, mas, sobretudo, objetivam criar medidas para a obtenção
de patentes oriundas através de recursos genéticos. As medidas entraram em vigor
em 02 de janeiro deste ano.
O texto que foi objeto de regulamentação é o art. 31 da MP 2.186/01, in verbis:
Art. 31. A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos
competentes, sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de
componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância desta
Medida Provisória, devendo o requerente informar a origem do material
genético e do conhecimento tradicional associado, quando for o caso.
18 Idem, ibidem.
19 Santilli, Juliana. Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: novos avanços e impasses na criação de regimes
legais de proteção. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, v. 8, n. 29, p. 83, jan.-mar. 2003.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 131-148, jul.-dez. 2007
Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 145
Para regular este acesso, a Resolução do CGEN determina que o requerente
de pedido de patente de invenção de produto ou processo, resultante de acesso a
componente do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional, deve declarar ao INPI que cumpriu as obrigações constantes da MP 2.186/01, assim como
informar o número e a data da autorização de acesso correspondente.
A MP em estudo exige o certificado de procedência legal para a concessão de
patentes biotecnológicas pelo INPI. Este certificado constitui-se na exigência de
que o interessado em uma patente biotecnológica apresente ao INPI a autorização
de acesso a patrimônio genético expedido pelo CGEN para que o seu pedido seja
analisado. A autorização do CGEN deverá informar que o acesso que resultou
naquele pedido contou com o consentimento prévio informado do provedor do
patrimônio genético ou do conhecimento tradicional (os povos de onde se originam
os recursos) bem como a partilha dos benefícios resultantes da comercialização
do produto ou processo resultante.
Então, com estas duas medidas, ficam criados os principais mecanismos defendidos para Convenção da Diversidade Biodiversidade para obter um regime
internacional de repartição dos benefícios oriundos dos recursos genéticos ou
dos conhecimentos tradicionais. Constitui-se num mecanismo que visa impedir
a monopolização dos conhecimentos tradicionais pelas empresas multinacionais
de países desenvolvidos, uma vez que inexiste um órgão internacional que faça
obedecer a legislação dos países provedores.
8 Eficácia da Medida Provisória
Neste item procura-se discutir qual a eficácia da implementação da medida
provisória em estudo. Embora haja o entendimento de que a eficácia normativa
aplica-se tão somente às normas constitucionais, é possível aplicá-la analogamente
à legislação infraconstitucional. A classificação da eficácia das normas jurídicas
atinge normalmente três categorias. Assim, as normas de eficácia plena são aquelas
que produzem todos os seus efeitos imediatamente a partir da sua entrada em
vigor; normas de eficácia contida são aquelas que têm aplicação imediata e podem
produzir todos os efeitos, mas prevêem meios que permitem conter a sua eficácia
até certo ponto, em determinadas circunstâncias e; normas de eficácia limitada,
que não produzem efeito de imediato, dependendo, para isso, de uma norma
posterior que lhe dê eficácia.
Não há, todavia, uma classificação, expressa ou tácita, de que tipos de normas
teriam eficácia plena, contida ou limitada. Porém, existe um amplo entendimento
doutrinário de que normas que já nascem com um comando determinado, e para
a qual não há necessidade de edição de outra norma para tornar a primeira aplicá-
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146 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
vel, são normas de eficácia plena, assim como aquelas dirigidas aos destinatários
finais, os cidadãos20.
Outras espécies de normas, que delegam a sua execução para órgãos ou
autoridades específicas são normas de eficácia contida, pois que, mesmo nascendo completas, produzindo todos os efeitos, necessitam a intervenção de uma
autoridade. Normas de eficácia limitada, por sua vez, são geralmente as normas
de caráter programático, que precisam da construção de políticas públicas ou
princípios gerais de direito21.
Portanto, depreende-se da leitura do art. 31 da MP 2.186/01 (citado acima)
que este contém tanto eficácia plena quanto contida, na medida em que prevê um
mandamento dirigido ao cidadão, e outro destinado ao cumprimento do órgão
competente. Assim, o artigo, ao referir-se que “A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou produto obtido
a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à
observância desta Medida Provisória [...]”, está demonstrando que a norma tem
eficácia contida por remeter ao INPI a obrigatoriedade da observância da presente
medida provisória. O INPI, por sua vez, deverá exigir do CGEN o documento
de Autorização de Acesso, que é de competência desse órgão.
De outro lado, o artigo é complementado ao dizer que deve “[...] o requerente
informar a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado,
quando for o caso”. Nessa segunda parte do artigo, por sua vez, a norma é de
eficácia plena, podendo ser cumprida de imediato pelo cidadão a quem é dirigida.
Impõe a divulgação da origem do material genético sempre, e dos conhecimentos
tradicionais, quando estes forem consultados, por parte do requerente.
Deve-se analisar também a sua eficácia prática. Uma pesquisa recente realizada
pelo Instituto Socioambiental (ISA) (o trabalho faz parte da Iniciativa AndinoAmazônica para Prevenção da Biopirataria) junto ao banco de dados do INPI,
das amostras colhidas, menos de 10% indicam a origem do material genético ou
dos conhecimentos tradicionais acessados, assim como nenhum pedido de patente
analisado conta com a autorização do CGEN.
O objetivo do grupo de trabalho criado pelo CGEN foi discutir medidas
práticas que viabilizassem a criação de procedimentos conjuntos entre este órgão
e o INPI, com vistas a baixar o custo administrativo e estabelecer um regime de
controle de patentes que derivam de acesso a patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, com a meta de identificar se houve a divisão dos lucros
econômicos do produto ou processo derivado com a comunidade relacionada22.
20 Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
21 Ávila, Humberto. Eficácia dos princípios constitucionais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
22 Direitos socioambientais. In: Socioambiental. Disponível em: http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=2295. Acesso
em: 09 abr. 2007.
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Os conhecimentos tradicionais associados e o acesso aos recursos genéticos:
um estudo sobre a regulamentação da medida provisória n° 2.186-16/01 – 147
Vê-se, mais uma vez que, embora haja uma legislação bastante desenvolvida
para a identificação dos recursos genéticos oriundos da diversidade biológica
brasileira, o país fracassa quanto ao cumprimento das normas por ele mesmo
criadas. Assim, perde prestígio junto à comunidade internacional, eis que sua
posição de negociação frente a outros países fica fragilizada pela incapacidade de
implementação das medidas a nível interno.
Conclusão
O trabalho abordou a temática da exploração da biodiversidade e as iniciativas
legislativas empregadas para fazer cumprir a Convenção da Diversidade Biológica,
criada e assinada durante a Rio/92.
A riqueza da biodiversidade brasileira, aliada a dificuldade de controle sobre
ela é paradoxal. O Brasil é o país mais megadiverso do planeta, sendo detentor da
maioria de espécies da fauna e da flora que detém alguma aplicabilidade industrial,
e que, portanto, pode ser objeto de patente. De olho nessa aparente inesgotável
fonte de vida, de cura e de riquezas, estão os países desenvolvidos, com grande
capacidade tecnológica de captar os conhecimentos dos povos nativos, conhecedores das matas, utilizando-se dos extratos e dos conhecimentos tradicionais.
A evasão desses recursos genéticos, bem como a apropriação dos conhecimentos tradicionais, mobilizou centenas de países presentes e signatários da
Rio/92 para a urgência de mecanismos legais de proteção. Com vistas a regular
e normatizar estes anseios, surgiu a Medida Provisória n. 2.186-16/01. Mesmo
sendo o primeiro passo do Brasil para regular a retirada de recursos genéticos e
a utilização de conhecimentos tradicionais, a medida precisou ser regulamentada,
sobretudo o seu art. 31.
O artigo, que tem um misto de norma com eficácia plena, quando o seu cumprimento é dirigido diretamente aos cidadãos e, de outra parte, eficácia contida,
por delegar o controle de acesso ao CGEN (através do documento de Acesso
aos Recursos Genéticos) que deverá ser controlado pelo INPI, quando da solicitação da patente. Objetiva-se com a medida, também, identificar a utilização dos
conhecimentos tradicionais para propiciar no futuro a divisão dos lucros obtidos
com os conhecimentos disponibilizados pelas comunidades locais.
Em que pese terem sido tomadas todas as medidas legislativas necessárias ao
cumprimento da Medida Provisória pelo CGEN e pelo INPI, não há uma fiscalização
efetiva quanto ao respeito das normas. Pesquisas realizadas recentemente dão conta
de que não há até hoje nenhum pedido encaminhado para obter acesso aos conhecimentos tradicionais. Assim, além de haver a dilapidação da biodiversidade brasileira,
o país também perde em credibilidade no plano internacional ao cumprir, mais uma
vez, a sentença de que nesta terra, as leis existem mas não são cumpridas.
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148 – Parte ii: Direito Ambiental Brasileiro
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PARTE III
Direito Internacional
DO MEIO AMBIENTE
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jul.-dez. 2007
A incorporação dos tratados
internacionais sobre meio ambiente
no ordenamento jurídico brasileiro
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Resumo
Abstract
O estudo faz uma análise minuciosa do procedimento de celebração de tratados no Brasil, em
especial dos tratados internacionais de proteção
ao meio ambiente. Versa sobre a internalização
desses instrumentos internacionais no ordenamento jurídico pátrio e sobre a hierarquia de
tais normas no Direito brasileiro, de acordo
com as regras constitucionais que regulam a
incorporação de tratados no Brasil. O autor conclui pela hierarquia constitucional dos tratados
internacionais ambientais no âmbito do Direito
interno brasileiro.
The study makes a detailed anlysis of the celebration procedure of the treaties in Brazil, mainly
the international treaties for the protection of
the environment. It examines the internalization
of these internations instruments in the native
legal system and about the hierarchy of such
norms in the Brazilian Law, according to the
constitutional rules which regulate the incorporation of treaties in Brazil. The author concludes in favor of the constitutional hierarchy of
the environmental international treaties in the
sphere of the Brazilian domestic law.
Palavras-chave: Tratados internacionais. Tratados ambientais. Incorporação no Brasil. Processualística de celebração. Entrada em vigor no Brasil.
Keywords: International treaties. Environmental treaties. Incorporation in Brazil. Ccelebration
procedure. Being in effect in Brazil.
1 [Nota da edição brasileira] Este texto foi elaborado, atendendo ao convite do Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior, para ser originalmente publicado na Itália (com o título: “La Ricezione dei Trattati Internazionali in Materia di Ambiente nell’Ordinamento
Giuridico Brasiliano”), no livro coletivo Prospettive del Diritto Internazionale dell’Ambiente ad un Anno dal Vertice di Johannesburg,
por ele coordenado junto com Angela Del Vecchio. Explica-se, por isso, o caráter bastante descritivo de algumas passagens
do texto, que, para o leitor brasileiro, seria perfeitamente dispensável. Esta versão é fiel à versão original em italiano.
2 Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Franca.
Doutorando em Direito Internacional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Direito Internacional Público na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor de Direito Internacional Público e Direitos
Humanos no Instituto de Ensino Jurídico Professor Luiz Flávio Gomes (Curso LFG), em São Paulo. Professor dos cursos
de Especialização da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI), da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas
(ABCD) e coordenador jurídico da Revista de Derecho Internacional y del Mercosur (Buenos Aires).
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152 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
1 Introdução
O Direito Internacional do meio ambiente3, assim como a proteção internacional da pessoa humana, é uma conquista da humanidade, notadamente advinda
do pós-Segunda Guerra Mundial, momento em que a sociedade internacional
começou a esboçar a estrutura normativa do sistema internacional de proteção dos
direitos do homem4. Deste momento em diante, o mundo passou a presenciar uma
verdadeira proliferação de tratados internacionais protetivos dos direitos da pessoa
humana, tanto nos seus aspectos civis e políticos, como naqueles ligados às áreas
do domínio econômico, social e cultural. Com o desenvolvimento progressivo do
Direito Internacional dos direitos humanos, ênfase particular também foi dada, no
contexto das relações internacionais contemporâneas, à conclusão de inúmeros
tratados de proteção ao meio ambiente, em todas as suas vertentes5.
Tanto os direitos relativos à pessoa humana como os atinentes ao meio ambiente passaram, portanto, a ser prioridades inequívocas da agenda internacional
moderna, como atestaram a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992, e a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena,
em junho de 19936.
O Brasil é parte dos principais tratados internacionais sobre meio ambiente
concluídos sob os auspícios da Organização das Nações Unidas. Muito antes da
promulgação da atual Constituição brasileira, que data de 5 de outubro de 1988,
o Brasil já havia ratificado os mais importantes tratados internacionais relativos
3 Vide, no direito brasileiro, a obra clássica de Soares, Guido Fernando Silva, Direito Internacional do meio ambiente: emergência,
obrigações e responsabilidades, São Paulo: Atlas, 2001, onde são abordados, com profundidade, os temas centrais contemporâneos
ligados à proteção internacional do meio ambiente. Cf., também, Nascimento e Silva, Geraldo Eulálio do, Direito ambiental
internacional: meio ambiente, desenvolvimento sustentável e os desafios da nova ordem mundial, Rio de Janeiro: Thex, 1995, onde são tratados
os fundamentos do Direito Internacional, os impasses ambientais que marcaram a história recente e o sentido filosófico dos
desafios globais, no tocante ao desenvolvimento, à degradação da qualidade de vida e ao avanço técnico-científico das nações
industrializadas. Em relação à bibliografia européia, vide Romani, Carlos Fernandez de Casadevante, La protección del medio
ambiente en derecho internacional, derecho comunitario europeo y derecho español, Vitoria-Gasteiz: Servicio Central de Publicaciones del
Gobierno Vasco, 1991; Mathieu, Jean-Luc, La protection internationale de l’environnement, Paris: Presses Universitaraires de France,
1991; Badiali, Giorgio, La tutela internazionale dell’ambiente, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1995; e Kiss, Alexandre &
Shelton, Dinah, Traité de droit européen de l’environnement, Paris: Frison-Roche, 1995.
4 O sistema internacional de proteção dos direitos humanos foi arquitetado, desde a criação da Organização das Nações Unidas,
em 1945, em resposta às barbáries e às atrocidades cometidas pelos nazistas aos judeus no Holocausto, fato que marcou
profundamente a comunidade mundial como o mais abrupto e bestial dentre todos aqueles ligados às violações de direitos
do mundo contemporâneo. Cf., sobre o assunto, Lafer, Celso, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 117-166; e Rawls, John, O direito dos povos, Trad. Luís Carlos Borges,
São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 26-30.
5 Cf. Doc. ONU E/CN.4/Sub. 2/1994/9. Human rights and the environment: final report, § 1.º, 6 July 1994, p. 3.
6 Cf. Cançado Trindade, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 23-38; Lindgren Alves, José Augusto, Os direitos humanos como tema global, São
Paulo: Editora Perspectiva/Fundação Alexandre de Gusmão, 1994, p. 23-35; e Mazzuoli, Valerio de Oliveira, “A proteção
internacional dos direitos humanos e o Direito Internacional do meio ambiente”, in Revista de Derecho Internacional y del Mercosur,
año 8, n.º 1, Buenos Aires: La Ley, mar./2004, p. 18-41.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 151-170, jul.-dez. 2007
A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 153
ao Direito Internacional do Meio Ambiente, o que veio intensificar-se após sua
promulgação.7 Dentre todos eles, merecem destaque algumas convenções internacionais recentes, a exemplo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima (1992), adotada pelas Nações Unidas, em Nova York, em
09.05.1992, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 1, de 03.02.1994, e
promulgada pelo Decreto n.º 2.652, de 01.07.1998, e da Convenção sobre Diversidade Biológica (1992), adotada na cidade do Rio de Janeiro, em 05.06.1992,
7 Podem ser citados, em ordem cronológica, os seguintes tratados em matéria ambiental dos quais o Brasil é parte: 1) Convenção para a Regulamentação da Pesca da Baleia (1931), promulgada pelo Decreto n.º 23.456 de 14.11.1933; 2) Convenção
para a Proteção da Fauna e da Flora e das Belezas Cênicas Naturais dos Países da América (1940), promulgada pelo Decreto
n.º 58.054 de 23.08.1966; 3) Convenção para a Regulamentação da Pesca da Baleia (com emendas) (1946), promulgada
pelo Decreto n.º 28.524 de 18.08.1950; 4) Convenção Internacional para a Proteção dos Vegetais (1951), promulgada pelo
Decreto n.º 51.342 de 28.10.1961; 5) Tratado da Antártica (1959), promulgado pelo Decreto n.º 75.963 de 11.07.1975; 6)
Convenção Relativa à Proteção dos Trabalhadores contra Radiações Ionizantes (1960), promulgada pelo Decreto n.º 62.151
de 19.01.1968; 7) Convenção de Viena sobre Responsabilidade Civil por Danos Nucleares (1963), promulgada pelo Decreto
n.º 911 de 03.09.1993; 8) Tratado de Proscrição das Experiências com Armas Nucleares na Atmosfera, no Espaço Cósmico
e sob a Água (1963), promulgado pelo Decreto n.º 58.256 de 26.06.1966 (também conhecido por “Partial Test Ban”); 9)
Convenção Internacional para a Conservação do Atum e Afins, do Atlântico (1966), promulgada pelo Decreto n.º 412 de
09.01.1969; 10) Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico,
Inclusive a Lua e Demais Corpos Celestes (1967), promulgado pelo Decreto n.º 64.362 de 17.04.1969; 11) Tratado da Bacia
do Prata (1969), promulgado pelo Decreto n.º 81.351 de 17.02.1978; 12) Convenção Internacional sobre Responsabilidade
Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo (1969), também chamada de “Civil Liability Convention”, complementada
por 2 protocolos, promulgada pelo Decreto n.º 79.437 de 28.03.1977; 13) Convenção sobre Medidas a Serem Adotadas para
Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais (1970), promulgada
pelo Decreto n.º 72.312 de 31.05.1973; 14) Tratado sobre a Proibição da Colocação de Armas Nucleares e Outras Armas
de Destruição em Massa no Leito do Mar, e no Fundo do Oceano e em Seu Subsolo (1971), promulgado com reservas
pelo Decreto n.º 97.211 de 12.12.1988; 15) Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos Causados por
Objetos Espaciais (1972), promulgada pelo Decreto n.º 71.981 de 22.03.1972; 16) Convenção para a Conservação das Focas
Antárticas (1972), promulgada pelo Decreto n.º 66 de 18.03.1991; 17) Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento,
Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e de Toxinas, e Sua Destruição (1972), promulgada pelo
Decreto n.º 77.374 de 01.04.1976; 18) Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972),
promulgada pelo Decreto n.º 80.978 de 12.12.1977; 19) Convenção sobre Prevenção de Poluição Marinha por Alijamento
de Resíduos e Outras Matérias (com emendas) (1972), promulgada pelo Decreto n.º 87.566 de 16.09.1082; 20) Convenção
sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (1973), promulgada pelo
Decreto n.º 76.623 de 17.11.1975 (com as emendas votadas em Gaborone, em 1983, promulgadas pelo Decreto n.º 92.446.86,
e as emendas votadas em Bonn, em 1979, promulgadas pelo Decreto n.º 133 de 24.05.1991); 21) Convenção Internacional
para a Prevenção da Poluição Causada por Navios (1973), promulgada pelo Decreto n.º 2.508 de 04.05.1998, também com
a adoção dos Protocolos e de todos os Anexos; 22) Protocolo de 1978 relativo à Convenção Internacional para a Prevenção
da Poluição Causada por Navios (1973), promulgado pelo Decreto n.º 2.508.98 (conhecido como “Convenção MARPOL”);
23) Convenção sobre a Proibição do Uso Militar ou Hostil de Técnicas de Modificação Ambiental (1976), promulgada pelo
Decreto n.º 225 de 07.10.1991 (conhecida como “ENMOD Convention”); 24) Convenção sobre a Proteção dos Trabalhadores
contra Riscos Profissionais devidos à Contaminação do Ar, ao Ruído e às Vibrações no Local de Trabalho (1977), promulgada pelo Decreto n.º 93.413 de 15.10.1986; 25) Tratado de Cooperação Amazônica (1978), promulgado pelo Decreto n.º
85.050 de 18.08.1990; 26) Convenção sobre Proteção Física de Material Nuclear (1979), promulgada pelo Decreto n.º 95 de
16.04.1991; 27) Convenção sobre a Conservação de Recursos Vivos Marinhos Antárticos (1980), promulgada pelo Decreto
n.º 93.935 de 15.01.1987; 28) Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982), promulgada pelo Decreto n.º
99.165 de 12 de março de 1990, e declarada em vigor no Brasil pelo Decreto n.º 1530 de 22 de junho de 1995 (conhecida
como Convenção “Montego Bay”); 29) Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio (1985), promulgada pelo
Decreto n.º 99.280 de 06.06.1990; 30) Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem a Camada de Ozônio (1987),
promulgado pelo Decreto n.º 99.280 de 06.06.1990; 31) Ajustes do Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Destroem
a Camada de Ozônio, adotados em Helsinki a 29.06.1990, promulgados pelo Decreto n.º 181 de 25.07.1991; 32) Convenção
sobre Pronta Notificação de Acidentes Nucleares (1986), promulgada pelo Decreto n.º 9 de 15.01.1991; 33) Convenção sobre
Assistência no caso de Acidente Nuclear ou Emergência Radiológica (1986), promulgada pelo Decreto n.º 9 de 15.01.1991;
34) Convenção da Basiléia sobre Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e Seu Depósito (1989), promulgada
pelo Decreto n.º 875 de 19.07.1993; 35) Convênio entre Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, para a Constituição do
Comitê Regional de Sanidade Vegetal, COSAVE (1989), promulgado pelo Decreto n.º 161 de 02.07.1991; e 36) Convenção
Internacional sobre o Preparo, a Prevenção, Resposta e Cooperação em Caso de Poluição por Óleo (1990), promulgada pelo
Decreto n.º 2.870 de 10.12.1998.
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154 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n.º 2, de 03.02.1994, e promulgada
pelo Decreto n.º 2.519, de 06.03.19988.
Estes instrumentos internacionais, assim como todos os outros tratados internacionais solenes sobre quaisquer matérias celebrados pelo Brasil, antes de serem
integrados ao direito interno brasileiro, têm que passar pelos trâmites próprios do
Direito Internacional e do direito constitucional brasileiro, no que tange à processualística de sua celebração, para somente depois adquirirem eficácia jurídica e
executoriedade internas. Tais fases, pelas quais têm de passar os tratados solenes
até sua conclusão, podem ser basicamente divididas em quatro momentos distintos,
abstraídos da conjugação das regras próprias do Direito dos Tratados com as da
Constituição brasileira de 1988:
a) negociações preliminares (as quais normalmente ocorrem, tratando-se de
meio ambiente, numa conferência internacional especialmente destinada
para esta finalidade);
b) assinatura ou adoção pelo Executivo (nos termos da Constituição
brasileira de 1988, como expresso no seu art. 84, VIII, esta competência
é privativa, podendo haver delegação do Presidente da República a um
plenipotenciário seu, sendo normalmente feita ao Ministro das Relações
Exteriores ou aos chefes de missão diplomática);
c) aprovação parlamentar (referendum) por parte de cada Estado interessado
em se tornar parte no tratado (no Brasil, a matéria vem disciplinada pelo
art. 49, I, da Constituição, que diz competir exclusivamente ao Congresso
Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos
internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao
patrimônio nacional”); e,
d) ratificação ou adesão do texto convencional, concluída com a troca dos
instrumentos que a consubstanciam9.
No Brasil, após a sua ratificação, o tratado, ainda, é promulgado por decreto
do Presidente da República, e publicado no Diário Oficial da União. São etapas
complementares adotadas pelo Estado brasileiro para que os tratados possam ter
aplicabilidade e executoriedade internas. Trata-se de uma prática que vem sendo
seguida desde o primeiro tratado celebrado no Brasil, na época do Império.
8 Os textos integrais desses tratados, acompanhados de notas sobre sua celebração e entrada em vigor no Brasil, são encontrados em Mazzuoli, Valerio de Oliveira (Org.), Coletânea de Direito Internacional, 2.ª ed, ampl., São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2004, p. 639-690.
9 Para um estudo detalhado das fases de celebração de tratados no Brasil, vide Mazzuoli, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais:
com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2.ª ed., rev., ampl. e atual., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 71 e ss. Vide, ainda,
a obra de Cachapuz de Medeiros, Antônio Paulo, O poder de celebrar tratados: competência dos poderes constituídos para a celebração de
tratados, à luz do Direito Internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1995.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 155
Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, assim como os
de proteção do meio ambiente, como veremos, dispensam da sistemática de sua
incorporação esta fase suplementar adotada no Brasil, por terem aplicação imediata a
partir de suas respectivas ratificações, nos termos do art. 5.º, § 1.º, da Constituição
brasileira de 1988.
Os instrumentos internacionais de proteção ao meio ambiente, pelas regras da
Constituição brasileira de 1988 (art. 5.º, §§ 1.º e 2.º), têm uma forma própria de
incorporação no ordenamento jurídico brasileiro, pelo fato de eles fazerem parte
do rol dos chamados tratados internacionais de proteção dos direitos humanos
lato sensu, em relação aos quais a Constituição brasileira atribui uma forma própria
de incorporação e uma hierarquia diferenciada dos demais tratados (considerados
comuns ou tradicionais) ratificados pelo Brasil.
Como destaca Guido Fernando Silva Soares, as normas de proteção internacional do meio ambiente “têm sido consideradas como um complemento aos direitos
do homem, em particular o direito à vida e à saúde humana”, sendo bastante
expressiva “a parte da doutrina com semelhante posicionamento, especialmente
daqueles autores que se têm destacado como grandes ambientalistas”10.
Tal posicionamento é reafirmado pelos grandes textos do Direito Internacional
do meio ambiente, onde se encontram várias referências ao direito à vida e à saúde.
Como exemplo, pode ser citada a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, de 1992, que faz referência à “vida saudável” no seu Princípio 1.
Este estudo, portanto, tem a finalidade de demonstrar a forma por meio da
qual os tratados internacionais de proteção ao meio ambiente se incorporam ao
ordenamento jurídico brasileiro, bem como qual o status que tais instrumentos
detêm dentro da escala constitucional hierárquica das normas brasileiras. Para tanto,
pretendeu-se aqui dar um novo enfoque à questão das relações entre o Direito
Internacional e o direito interno, no que toca à proteção internacional do meio
ambiente e seu impacto no direito brasileiro.
2 O direito ao meio ambiente como
um direito humano fundamental
O primeiro passo a ser dado quando se deseja desvendar a natureza do direito
ao meio ambiente é verificar o seu âmbito de atuação, em conformidade com
as regras internacionais de proteção e com os seus princípios constitucionais
informadores.
10Soares, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente. Barueri: Manole, 2003, p. 173.
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156 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
A proteção do meio ambiente não é matéria reservada ao domínio exclusivo
da legislação doméstica dos Estados, mas dever de toda a sociedade internacional.
A proteção ambiental, abrangendo a preservação da natureza em todos os seus
aspectos relativos à vida humana, tem por finalidade tutelar o “meio ambiente”
em decorrência do direito à sadia qualidade de vida, em todos os seus desdobramentos, sendo ele considerado uma das vertentes dos direitos fundamentais da
pessoa humana11.
O direito fundamental ao meio ambiente foi reconhecido, no plano internacional, pela Declaração sobre o Meio Ambiente Humano12, adotada pela Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, de 5 a 16
de junho de 1972, cujos 26 princípios têm a mesma relevância para os Estados
que teve a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada em Paris, em
10 de dezembro de 1948, pela Resolução 217 da Assembléia Geral da ONU,
servindo de paradigma e referencial ético para toda a sociedade internacional, no
que tange à proteção internacional do meio ambiente como um direito humano
fundamental de todos13.
A Declaração de Estocolmo de 1972, como leciona José Afonso da Silva,
“abriu caminho para que as Constituições supervenientes reconhecessem o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano fundamental entre
os direitos sociais do Homem, com sua característica de direitos a serem realizados e
direitos a não serem perturbados”14.
No plano do direito interno brasileiro, sob influência da Declaração de Estocolmo, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado vem insculpido no
art. 225, caput, da Constituição brasileira de 1988, que assim dispõe:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações [grifo nosso].
Este dispositivo do texto constitucional brasileiro consagra o princípio segundo
o qual o meio ambiente é um direito humano fundamental, na medida em que visa
proteger o direito à vida com todos os seus desdobramentos. Trata-se de um direito
fundamental no sentido de que, sem ele, a pessoa humana não se realiza plenamente,
11Cf. Silva, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 58.
12Texto em Cançado Trindade, Antônio Augusto, Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional,
cit., p. 247-256.
13Cf. Soares, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do meio ambiente: emergência, obrigações e responsabilidades, cit., p. 55;
e Silva, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 3.ª ed., cit., p. 58-59.
14Silva, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 3.ª ed., cit., p. 67. Vide, a propósito, Prieur, Michel, “Protection of the
environment”, in Bedjaoui, Mohammed (Org.), International law: achievements and prospects, London: Martinus Nijhoff Publischers,
1991, p. 1017-1018.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 157
ou seja, não consegue desfrutá-lo sadiamente, para usar a terminologia empregada
pela Constituição brasileira.
No sentido empregado pelo art. 225, caput, do texto constitucional brasileiro, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um prius lógico do
direito à vida15, sem o qual esta não se desenvolve sadiamente em nenhum dos
seus desdobramentos. É dizer, o bem jurídico vida depende, para a sua integralidade, dentre outros fatores, da efetiva proteção do meio ambiente, sendo dever
do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.
Dentro dessa perspectiva, o direito a um meio ambiente sadio e equilibrado
configura-se como uma extensão ou corolário lógico do direito à vida, sem o qual
nenhum ser humano pode vindicar a proteção dos seus direitos fundamentais
violados.
A vida tutelada pela Constituição brasileira, portanto, transcende os estreitos
limites de sua simples atuação física, abrangendo também o direito à sadia qualidade de vida em todas as suas vertentes. E dessa forma, sendo a vida um direito
universalmente reconhecido como um direito humano básico ou fundamental, o
seu gozo passa a ser condição sine qua non para o gozo de todos os demais direitos
humanos, aqui incluso o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado16.
No plano infraconstitucional da legislação brasileira, a Lei n.° 6.938, de 31 de
agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, apresenta
o seguinte conceito de meio ambiente, a saber:
Art. 3.° […].
I – meio ambiente: o conjunto de condições, leis, influências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em
todas as suas formas” [grifo nosso].
Esta norma jurídica brasileira, considerada um marco na proteção jurídica do
meio ambiente no Brasil, editada à égide da Constituição de 1967, sob a Emenda n.° 1, de 1969, foi recepcionada pela atual Constituição brasileira, como que
num tipo de reforço ao entendimento segundo o qual a vida tutelada pela norma
constitucional tem um sentido amplo, abrangendo tanto a vida da pessoa humana
como todos os seus desdobramentos, a exemplo do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, essencial à sadia qualidade de seu gozo e fruição.
Aqueles importantes tratados internacionais de proteção ao meio ambiente, aos
quais já nos referimos (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança
15A Constituição brasileira de 1988 consagra, inicialmente, o direito à vida, no seu art. 5.º, caput. O art. 5.º da Constituição brasileira
em vigor, com os seus 77 incisos, é o rol mais completo e mais autorizado dos direitos humanos fundamentais no Brasil.
16Cf. Cançado Trindade, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. op.
cit., p. 71.
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158 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
do Clima e Convenção sobre Diversidade Biológica, ambas concluídas em 1992,
bem como todos os demais tratados sobre matéria ambiental já ratificados ou a
serem ratificados pelo Brasil), também visam expressamente proteger a “vida em
todas as suas formas”. Tais instrumentos internacionais, portanto, integram e
complementam a regra de proteção ao meio ambiente insculpida no art. 225, caput,
da Constituição brasileira de 1988, incorporando-se ao direito interno brasileiro
com um status diferenciado das demais normas internacionais tradicionais.
É importante, então, que nós verifiquemos as regras constitucionais brasileiras
de incorporação dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,
onde indubitavelmente se incluem (como já explicamos) as normas internacionais
de proteção do meio ambiente.
3 A abertura da Constituição brasileira aos
tratados internacionais de direitos humanos
A Constituição brasileira de 1988, alcunhada de “cidadã”, foi o marco fundamental para o processo da institucionalização dos direitos humanos no Brasil.
Erigindo a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental, pelo qual a República
Federativa do Brasil deve se reger no cenário internacional, instituiu a Carta brasileira de 1988 um novo valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico
brasileiro e que deve ser sempre levado em conta quando se trata de interpretar
quaisquer das normas constantes do ordenamento jurídico pátrio.
Nessa esteira, a Carta de 1988, seguindo a tendência do constitucionalismo
contemporâneo de se igualar hierarquicamente os tratados de proteção dos direitos
humanos às normas constitucionais, deu um grande passo rumo a abertura do
sistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando,
no § 2.º do seu art. 5.º, deixou estatuído que:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte [grifo nosso]17.
A inovação, em relação às Constituições brasileiras anteriores, diz respeito à
referência aos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte. Nas Constituições anteriores, em dispositivos semelhantes, não constava a
referência aos “tratados internacionais” como consta na atual Constituição. Tal
modificação, referente a estes instrumentos internacionais, além de ampliar os
17Para um estudo detalhado deste dispositivo, vide Mazzuoli, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Costituzione e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 233-325;
e ainda, Mazzuoli, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, op. cit., p.
357-395.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 159
mecanismos de proteção da dignidade da pessoa humana, veio também reforçar
e engrandecer o princípio da prevalência dos direitos humanos, consagrado pela
Carta de 1988 como um dos princípios pelo qual a República Federativa do Brasil
deve se reger em suas relações internacionais (CF, art. 4.º, II). E isto fez com que se
modificasse sensivelmente, no Brasil, a interpretação relativa às relações do Direito
Internacional com o direito interno, no que toca à proteção dos direitos fundamentais, coletivos e sociais. Basta pensar que a inserção dos Estados em um sistema
supraestatal de proteção de direitos, com seus organismos de controle internacional,
fortalece a tendência constitucional em limitar o Estado (e seu poder) em prol da
proteção e salvaguarda dos direitos humanos universalmente reconhecidos18.
O processo de internacionalização dos direitos humanos, assim, teve fundamental importância para a abertura democrática do Estado brasileiro, que passou a afinar-se
com os novos ditames da nova ordem mundial a partir de então estabelecida. Essa
abertura, por sua vez, contribuiu enormemente para a inserção automática dos
tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira e para a
redefinição da cidadania no âmbito do direito brasileiro.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que também faz parte
do rol dos direitos humanos fundamentais, é um direito que se encontra expresso
na Constituição brasileira de 1988. Nos termos do art. 225, caput, da Constituição
brasileira: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Assim sendo, na medida em que, nos termos do art.
5.º § 2.º, da Constituição, os direitos e garantias nela expressos (“expressos nesta
Constituição…”) não excluem outros decorrentes “dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte”, a conclusão que se chega é
que os tratados internacionais de proteção ao meio ambiente enquadram-se perfeitamente nesta disposição constitucional. Assim, esse direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, expresso no art. 225, caput, da Constituição, pode ser
complementado por outros direitos provenientes de tratados internacionais de
proteção ao meio ambiente em que o Brasil seja parte.
Os tratados internacionais em matéria de meio ambiente, tiveram sua importância
reconhecida pelo Princípio 24 da Declaração de Estocolmo de 1972, segundo o qual
“a cooperação através de convênios multilaterais ou bilaterais, ou de outros meios
apropriados, é essencial para efetivamente controlar, prevenir, reduzir e eliminar os
efeitos desfavoráveis ao meio ambiente, resultantes de atividades conduzidas em todas as esferas, levando-se em conta a soberania e interesses de todos os Estados”.
18Vide Bidart Campos, German J. El derecho de la Constitucion y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima Editora,
1995, p. 457-458.
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160 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
Em suma, tais tratados internacionais de proteção ao meio ambiente têm, dentro
do ordenamento jurídico brasileiro, uma forma própria e especial de incorporação,
como veremos a seguir.
4 Incorporação dos tratados internacionais
de proteção ao meio ambiente no ordenamento
jurídico brasileiro
Da análise do § 2.º, do art. 5.º, da Carta brasileira de 1988, percebe-se que
três são as vertentes, no texto constitucional brasileiro, dos direitos e garantias
individuais: a) direitos e garantias expressos na Constituição, a exemplo dos elencados nos incisos I ao LXXVII do seu art. 5.º, bem como outros fora do chamado
“rol de direitos” mas dentro da Constituição, como o direito de todos ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no citado art. 225, da Constituição; b) direitos e garantias implícitos, subentendidos nas regras de garantias, bem
como os decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados, e c)
direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte.
A Carta de 1988, com a disposição do § 2.º do seu art. 5.º, de forma inédita,
passou a reconhecer, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla
fonte normativa: a) aquela advinda do direito interno (direitos expressos e implícitos na
Constituição, estes últimos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados), e; b) aquela outra advinda do Direito Internacional (decorrente dos tratados
internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja
parte). De forma expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos tratados internacionais
de proteção dos direitos humanos devidamente ratificados pelo Estado brasileiro
a condição de fonte do sistema constitucional de proteção de direitos e garantias.
É dizer, tais tratados passam a ser fonte do sistema constitucional de proteção
de direitos no mesmo plano de eficácia e igualdade daqueles direitos, expressa ou
implicitamente, consagrados pelo texto constitucional, o que justifica o status de
norma constitucional que detêm tais instrumentos internacionais no ordenamento
jurídico brasileiro; e esta dualidade de fontes, que alimenta a completude do sistema,
significa que, em caso de conflito, deve o intérprete optar preferencialmente pela
fonte que proporciona a norma mais favorável à pessoa protegida, pois o que se
visa é a otimização e a maximização do sistema (interno e internacional) de direitos
e garantias individuais19.
19Cf. Bidart Campos, German J. Tratado elemental de derecho constitucional argentino, Tomo III. Buenos Aires: Ediar Sociedad
Anónima, 1995, p. 282.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 161
A cláusula aberta do § 2.º do art. 5.º da Carta da República de 1988, assim,
está a admitir visivelmente que os tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos ratificados pelo governo ingressam no ordenamento jurídico brasileiro
no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais, e não em outro âmbito
de hierarquia normativa. Não haveria coerência lógica destinar aos tratados internacionais de direitos humanos o mesmo tratamento jurídico atribuído a um
compromisso internacional prosaico de somenos importância, pois é evidente o
caráter especial dos tratados de direitos humanos, que têm que receber da Constituição um tratamento diferenciado dos demais20.
Ora, se a Constituição brasileira estabelece que os direitos e garantias nela elencados “não excluem” outros provenientes “dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”, é porque ela própria está a autorizar
que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil “se incluem” no nosso ordenamento jurídico interno,
passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem. É dizer,
se os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluem” outros
provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela
lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar certos direitos
e garantias, a Constituição “os inclui” no seu catálogo dos direitos protegidos,
ampliando, assim, o seu “bloco de constitucionalidade”21.
Na medida em que a Constituição deixa de prever determinados direitos e
garantias, e encontrando-se tal previsão nos tratados internacionais de proteção
dos direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte, tem-se
que tais instrumentos sobrepõem-se a toda legislação infraconstitucional interna
por ter a Carta Magna equiparado, no mesmo grau de hierarquia normativa, os
direitos e garantias nela constantes àqueles advindos de tratados internacionais
de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro.
Como bem sustenta Flávia Piovesan, quando a Carta da 1988 em seu art. 5.º, §
2.º, dispõe que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais”, é porque a contrario sensu, está
ela “a incluir, no catálogo dos direitos constitucionalmente protegidos, os direitos
enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo
de inclusão implica na incorporação pelo texto constitucional destes direitos”22.
20Cf. Cançado Trindade, Antônio Augusto. O Direito Internacional em um mundo em transformação (ensaios, 1976-2001). Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 713-714.
21Cf. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do
tratado na ordem jurídica brasileira. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 233-252. Pelo status constitucional dos tratados de
direitos humanos, vide também: Cançado Trindade, Antônio Augusto, “A interação entre o Direito Internacional e o direito
interno na proteção dos direitos humanos”, in A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito
brasileiro, 2.ª ed., San José, Costa Rica.Brasília: IIDH (et al.), 1996, p. 210 e ss; Piovesan, Flávia, Direitos humanos e o direito
constitucional internacional, 4.ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 73-94, e Temas de direitos humanos, São Paulo: Max Limonad,
1998, p. 34-38; Silva, José Afonso da, Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição, São Paulo: Malheiros, 2000, p.
195-196; e Magalhães, José Carlos de, O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional: uma análise crítica, Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2000, p. 64 e ss.
22Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, op. cit., p. 73.
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162 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
E isto significa, na inteligência do art. 5.º, § 2.º, da Constituição brasileira,
que o status do produto normativo convencional, no que tange à proteção dos
direitos humanos, não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional. Diz-se “materialmente constitucional”, tendo em vista não
integrarem tais tratados, formalmente, a Carta Política, o que demandaria um
procedimento de emenda à Constituição, previsto no art. 60, § 2.º, o qual prevê
que tal proposta de emenda “será discutida e votada em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três
quintos dos votos dos respectivos membros”. Os tratados de proteção dos direitos
humanos, entretanto, integram o conteúdo material da Constituição, o seu “bloco
de constitucionalidade”23.
Esta também é a opinião do Prof. Celso Lafer, manifestada em substancioso
parecer proferido no Habeas Corpus n.º 82.424-RS, do Supremo Tribunal Federal
brasileiro, cujo caso ligava-se à prática do crime de racismo (que é imprescritível
nos termos do art. 5.º, inc. XLII, da Constituição brasileira de 1988), cometido por
sujeito propagador de idéias nazistas e anti-semitas por meio de livros publicados
por editora de sua propriedade. Ao tratar da integração da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, no ordenamento
jurídico brasileiro, o Prof. Lafer assim leciona:
O § 2.º do art. 5.º da Constituição de 1988 determina, em matéria de direitos
e garantias, a recepção, pelo Direito brasileiro, do que estipulam os Tratados
Internacionais em que a República Federativa do Brasil é parte. No caso
da Convenção de 1965, sua vigência e aplicação em nosso país antecede
a Constituição de 1988 e o seu regime é inteiramente compatível com o
texto constitucional e a sua correspondente legislação infra-constitucional.
Neste sentido, pode se dizer que a Convenção de 1965 integra o ‘bloco de
constitucionalidade’ à maneira do que observa Valerio de Oliveira Mazzuoli
invocando Bidart Campos. Esta integração da Convenção de 1965 ao ‘bloco
de constitucionalidade’ não é problemática, pois não suscita nem o problema
das antinomias nem a discussão sobre a mudança da Constituição, de forma
distinta da prevista para as emendas constitucionais, temas com os quais se
preocuparam os Ministros Moreira Alves e Gilmar Mendes e também, no
campo doutrinário, o Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho24.
Note-se que a Constituição, no § 2.º do seu art. 5.º, não se refere à lei, mas tãosomente aos direitos por ela, Constituição, assegurados, ou inscritos nos tratados
22Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. op. cit., p. 73.
24Lafer, Celso. Parecer. “O caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da prática do racismo”, In: Revista de Informação Legislativa, ano 41, n. 162, Brasília: Senado Federal/Subsecretaria de Edições Técnicas, abr./jun./2004, p. 78 (edição especial de
estudos em homenagem a Anna Maria Villela). Este Parecer foi apresentado e aceito pelo STF na condição de amicus curiae, no
julgamento do Habeas Corpus n.º 82.424-RS do STF (indeferido por maioria), rel. orig. Min. Moreira Alves, rel. para acórdão
Min. Maurício Corrêa, julg. em 17.09.2003.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 163
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. De modo que
se uma lei contemplar outro direito ou garantia que não esteja previsto no corpo
da Constituição, esta lei, sem ferir o texto constitucional, poderá ser revogada por
outra que lhe seja posterior. Entretanto, se tal direito ou garantia vier expresso
em tratado de direitos humanos ratificado pelo Estado brasileiro, a lei interna não
poderá revogá-lo, diante do status de norma constitucional que detêm os dispositivos desses tratados.25
Gozando tais instrumentos internacionais de hierarquia constitucional, e ingressando, conseqüentemente, no chamado “bloco de constitucionalidade”, ou seja,
no catálogo constitucional dos direitos e garantias fundamentais protegidos, fica
também impedida, por parte do Supremo Tribunal Federal brasileiro, qualquer
declaração de inconstitucionalidade, no que diz respeito aos direitos e garantias
contidos nesses tratados.
O art. 102, III, b, da Constituição brasileira de 1988, confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas
decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”. De acordo com o nosso entendimento, este dispositivo não pode ser aplicado no caso dos tratados internacionais
de proteção dos direitos humanos, onde também se enquadram os tratados internacionais de proteção do meio ambiente, posto que não se declara a inconstitucionalidade de direitos e garantias fundamentais. Tais direitos e garantias fundamentais
são cláusulas pétreas no direito brasileiro, não podendo ser abolidos nem mesmo pela
via de emenda à Constituição. As cláusulas pétreas impõem limites materialmente
explícitos de reforma constitucional. Essas limitações materiais explícitas constantes
do § 4.º do art. 60 da Constituição impedem, na via de emenda constitucional,
qualquer proposta tendente a abolir: (I) a forma federativa do Estado; (II) o voto
direto, secreto, universal e periódico; (III) a separação dos Poderes; e (IV) os direitos
e garantias individuais. Portanto, na medida em que tais tratados detêm o mesmo
status das normas constitucionais, dá-se por desprezado qualquer argumento que
possa sustentar o seu não-cumprimento ou a sua não-aplicação26.
Em suma, tanto os direitos como as garantias constantes dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos de que o Brasil seja parte, passam,
com a ratificação desses instrumentos, a integrar o rol dos direitos e garantias
constitucionalmente protegidos, ampliando consideravelmente o núcleo mínimo
dos direitos consagrados pelo texto constitucional27.
25Cf. Magalhães, José Carlos de. O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional… op. cit., p. 64-65.
26Cf. Bidart Campos, German J. Tratado elemental de derecho constitucional argentino, Tomo III. op. cit., p. 287-288.
27Sobre o impacto jurídico de tais tratados no ordenamento brasileiro, vide Mazzuoli, Valerio de Oliveira, Direitos humanos,
Constituição e os tratados internacionais… op. cit., p. 265-271; para o impacto dos tratados de direitos humanos na ordem internacional, cf. especialmente p. 323-325.
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164 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
Há que se enfatizar, porém, que os demais tratados internacionais que não
versem sobre direitos humanos, não têm natureza de norma constitucional; terão
sim, natureza de norma infraconstitucional (mas supra-legal, não podendo, contudo, ser revogados por lei posterior), extraída justamente do citado art. 102,
III, b, da Carta Magna, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência
para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou
última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade
de tratado ou lei federal”. No caso da incorporação dos tratados internacionais
comuns, como se percebe com facilidade, é perfeitamente válida a declaração de
inconstitucionalidade dos instrumentos internacionais tradicionais ou comuns pelo
Supremo Tribunal Federal brasileiro.
Dessa forma, mais do que vigorar como lei interna, os direitos e garantias
fundamentais proclamados nas convenções ratificadas pelo Brasil, por força do
mencionado art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal, passam a ter, por vontade da
própria Carta Magna, o status de “norma constitucional”. A isto se acrescenta o
argumento, sustentado por boa parte da doutrina publicista, de que os tratados de
direitos humanos têm superioridade hierárquica em relação aos demais acordos
internacionais de caráter mais técnico, pois formam todo um universo de princípios não convencionais imperativos, chamados de jus cogens, que não podem ser
derrogados por tratados internacionais, por deterem uma força obrigatória anterior
a todo o direito positivo. Tais regras de jus cogens, a exemplo dos direitos humanos
fundamentais, assim, têm o caráter de serem normas imperativas de Direito Internacional
geral, sendo consideradas aceitas e reconhecidas pela sociedade internacional dos
Estados, em seu conjunto, como normas que não admitem acordo em contrário
(é direito imperativo para os Estados) e que somente podem ser modificadas por
uma norma ulterior de Direito Internacional geral que tenha, ademais, o mesmo
caráter. Dessa forma, somente surgindo nova norma de Direito Internacional geral
(jus cogens) é que os tratados existentes que estejam em oposição com esta norma
se tornarão nulos e terminarão28.
A hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos,
não serve apenas de complemento à parte dogmática da Constituição, implicando,
ainda, no exercício necessário de todo o poder público – aí incluso o judiciário –,
em respeitar e garantir a plena vigência desses instrumentos. Disto decorre que
a violação de tais tratados constitui não só em responsabilidade internacional do
Estado, mas também na violação da própria Constituição que os erigiu à categoria
de normas constitucionais.
28Sobre as normas internacionais de jus cogens, veja-se Mazzuoli, Valerio de Oliveira, Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969, 2.ª ed., cit., p. 162-183; e Fiorati, Jete Jane, Jus cogens: as normas imperativas de Direito Internacional público
como modalidade extintiva dos tratados internacionais, Franca: Ed. UNESP, 2002, 155p.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 165
Aqueles que resistem a esta solução – tanto no Brasil, como em outros países
que elegeram os tratados de proteção dos direitos humanos como normas prevalentes – apelam, na maioria das vezes, para a tão antiga doutrina da soberania
estatal absoluta – que a seus juízos ficaria desvirtuada ou prejudicada – bem como
para o dogma da supremacia da Constituição. Não falta também a invocação ao
poder constituinte, sob a infundada alegação de que, admitir que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos têm status de norma constitucional
(ou supraconstitucional, se levarmos em conta a tendência mundial de proteção
de direitos), seria o mesmo que anular, de vez, a participação dos órgãos do poder
constituído no processo de formação das leis.
Tais argumentos, nas palavras de German J. Bidart Campos, traduzem “uma
escassíssima capacidade de absorção das tendências que, aos fins de nosso século,
exibem o Direito Internacional e o direito constitucional comparado”. Ademais,
ainda segundo Bidart Campos, não revisar os conceitos e os modelos tradicionais
do poder constituinte e da supremacia constitucional a fim de introduzir-lhes os
reajustes que o ritmo histórico do tempo e as circunstâncias mundiais reclamam,
significa, certamente, paralisar a doutrina constitucional com “congelamentos”
que eqüivalem a atraso29.
No que diz respeito aos tratados internacionais de proteção do meio ambiente, existe ainda um outro forte argumento que justifica o seu caráter especial e o
tratamento jurídico privilegiado que lhes foi atribuído pelo texto constitucional
brasileiro, que é a consideração de ser o meio ambiente um direito de natureza
difusa, que transcende os limites territoriais da soberania dos Estados, ultrapassando as suas fronteiras físicas30, passando a ser matéria afeta à proteção do Direito
Internacional e objeto próprio de sua regulamentação, o que se pode notar pelo o
advento dos inúmeros tratados internacionais concluídos, nos últimos anos, para
essa específica finalidade. Ademais, o processo de internacionalização da proteção
do meio ambiente, que tem acompanhado a internacionalização dos direitos humanos no plano global, fortalece e intensifica a tese da erosão do chamado domínio
reservado dos Estados, segundo a qual o tratamento que o Estado confere aos seus
nacionais e ao seu meio ambiente é matéria afeta à sua jurisdição exclusiva31.
Matérias das mais relevantes para o meio ambiente, cuja proteção se encontra
assegurada por tratados internacionais, como as questões sempre atuais atinen29.Cf. Bidart Campos, German J. El derecho de la Constitucion y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar Sociedad Anónima Editora,
1995, p. 455-456.
30Veja-se, por exemplo, a questão da poluição e dos vários desastres atômicos já sofridos pelo planeta nos últimos anos, que chegam
a afetar regiões inteiras do globo terrestre, desconhecendo fronteiras e limites físicos. Veja-se, ainda, a situação das espécies
animais e vegetais em perigo de extinção, a situação dos rios transfronteiriços e dos lagos internacionais, bem como a questão
da camada de ozônio, responsável pela filtragem dos raios solares prejudiciais ao homem. Cf., nesse sentido, Soares, Guido
Fernando Silva, Curso de Direito Internacional público, vol. 1. São Paulo: Atlas, 2002, p. 407-408.
31Cf., a respeito, Cançado Trindade, Antônio Augusto, Direitos humanos e meio-ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional, op. cit., p. 39-51.
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166 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
tes à mudança do clima e à diversidade biológica32, portanto, passam a integrar
o direito brasileiro com índole e nível de normas constitucionais, ampliando e
fortalecendo o rol dos direitos fundamentais do homem protegidos pelo texto
constitucional brasileiro.
Como se já não bastasse o status constitucional atribuído pela Carta de 1988
aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, é ainda de se ressaltar que tais tratados, por disposição também expressa da Constituição, passam
a incorporar-se automaticamente no ordenamento jurídico brasileiro, a partir de suas
respectivas ratificações. É a conclusão que se extrai do mandamento do o § 1.º do
art. 5.º da Carta Magna de 1988, que assim dispõe: “As normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
A inserção desta norma no Título correspondente aos “direitos e garantias
fundamentais” na Constituição brasileira de 1988, fora influenciada, por certo,
pelo anteprojeto elaborado pela “Comissão Afonso Arinos”, que, em seu art. 10,
continha preceito semelhante, o qual estabelecia que “os direitos e garantias desta
Constituição têm aplicação imediata”.
Frise-se que o § 1.º do art. 5.º da Constituição de 1988, dá aplicação imediata
a todos os direitos e garantias fundamentais, sejam estes expressos no texto da
Constituição, ou provenientes de tratados, vinculando-se todo o judiciário nacional
a esta aplicação, e obrigando, por conseguinte, também o legislador, aí incluído o
legislador constitucional. É dizer, seu âmbito material de aplicação transcende o
catálogo dos direitos individuais e coletivos insculpidos nos arts. 5.º a 17 da Carta
da República, para abranger ainda outros direitos e garantias expressos na mesma
Constituição (mas fora do catálogo), bem como aqueles decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte, tudo, consoante a regra do § 2.º do seu art. 5.º.
Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos,
uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e
garantias fundamentais, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica
aplicação imediata. Da mesma forma que são imediatamente aplicáveis aquelas
normas expressas nos arts. 5.º a 17 da Constituição da República, o são, de igual
maneira, as normas contidas nos tratados internacionais de direitos humanos de
que o Brasil seja parte.
Os tratados internacionais de proteção do meio ambiente, pelo mandamento
do citado § 1.º do art. 5º, da Constituição, não fogem à regra e também passam
32Sobre tais assuntos vide Mello, Celso D. de Albuquerque, Curso de Direito Internacional público, 2.º vol., 13.ª ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1290-1293; Soares, Guido Fernando Silva, Direito Internacional do meio ambiente… op. cit., p. 70-93
e 127-129; e Clabot, Dino Bellorio, Tratado de derecho ambiental, Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 500-503.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 167
a ter aplicabilidade imediata, dispensando-se, desta forma, a edição de decreto de
execução para que irradiem seus efeitos tanto no plano interno como no plano
internacional. Já nos casos de tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos, este decreto, materializando-os internamente, faz-se necessário. Em
outra palavras, com relação aos tratados internacionais de proteção dos direitos
humanos, foi adotado no Brasil o monismo internacionalista kelseniano, dispensando-se
da sistemática da incorporação, o decreto executivo presidencial para seu efetivo
cumprimento na ordem interna brasileira, de forma que a simples ratificação do
tratado pelo Estado importa na incorporação automática de suas normas à respectiva legislação doméstica.
É ainda de se ressaltar que todos os direitos inseridos nos referidos tratados,
incorporando-se imediatamente no ordenamento interno brasileiro (CF, art. 5.º, §
1.º), por serem normas também definidoras dos direitos e garantias fundamentais, passam a
ser cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendo ser suprimidos nem mesmo
por emenda à Constituição (CF, art. 60, § 1.º, IV). É o que se extrai do resultado
da interpretação dos §§ 1.º e 2.º, do art. 5.º da Constituição, em cotejo com o art.
60, § 4.º, IV, da mesma Carta. Isto porque, o §1.º, do art. 5.º, da Constituição da
República, como se viu, dispõe expressamente que “as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Os tratados internacionais em matéria de meio ambiente poderão também ser
formalmente constitucionais no Brasil, se forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respectivos
membros, nos termos do disposto no § 3.º do art. 5.º da Constituição, parágrafo
este introduzido pela Emenda n.º 45/2004. Neste caso, para além do status de
norma materialmente constitucional, tais tratados terão ainda os efeitos jurídicos
próprios das emendas constitucionais, passando a serem insuscetíveis de denúncia
neste caso33. Segundo a nossa concepção doutrinária a mudança constitucional
de 2004 não retirou o status constitucional que os tratados de direitos humanos
em geral (como são os de matéria ambiental) já têm no sistema constitucional
brasileiro.
Enfim, aceitar o ingresso dos tratados internacionais de proteção do meio
ambiente com hierarquia igual ou superior a das normas constitucionais significa,
ao contrário do que pensam os autores adeptos da velha doutrina da soberania
estatal absoluta, deixar a Constituição mais intensa e com melhor aptidão para
operar com o Direito Internacional público, de modo geral, e em particular com
o Direito Internacional do meio ambiente.
33Cf. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. “Reforma do judiciário e direitos humanos”, In: Tribuna do Direito, ano 12, n.º 142, São
Paulo, fev./2005, p. 12.
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168 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
5 Conclusões
Ao cabo desta exposição teórica podem ser tiradas algumas conclusões sobre
a recepção dos tratados internacionais em matéria ambiental pela ordem jurídica
brasileira.
Se, nos termos do art. 5.º, § 2.º, da Constituição brasileira de 1988, os direitos
expressos no texto constitucional “não excluem” outros provenientes dos “tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, na medida em
que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é também um direito
expresso na Constituição brasileira (constante o seu art. 225, caput), isto significa que,
a contrario sensu, os tratados internacionais de proteção ao meio ambiente passam a
incluir-se no rol dos direitos ambientais constitucionalmente protegidos, ampliando
o “bloco de constitucionalidade” referente a esses mesmos direitos.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, quando interpretado
à luz do art. 5.º, § 2.º, da Constituição brasileira de 1988, deve ser entendido no
sentido de que nele se incluem todas as normas de proteção ao meio ambiente
provenientes dos tratados internacionais ambientais ratificados pelo Brasil. Tais
tratados, assim como todos os outros instrumentos de proteção de direitos humanos ratificados pelo Brasil (tratados internacionais sobre direitos civis e políticos e
sobre direitos econômicos, sociais e culturais etc.), passam a deter o status de normas constitucionais, incorporando-se automaticamente no ordenamento jurídico
brasileiro. Além disso, tais tratados passam a ser fonte do sistema constitucional
de proteção de direitos, por ingressarem na ordem jurídica brasileira com índole e
nível constitucionais.
Além de tudo isso, os direitos e garantias advindos desses instrumentos internacionais, uma vez integrados ao ordenamento brasileiro, passam a ser cláusulas
pétreas do texto constitucional, não podendo ser abolidos sequer por emenda à
Constituição. Conseqüentemente, os tratados internacionais de proteção do meio
ambiente em que a República Federativa do Brasil seja parte são insusceptíveis
de denúncia.
Enfim, a Constituição brasileira de 1988 está perfeitamente apta a operar com
o Direito Internacional, bastando que os operadores do direito percebam o grande
passo dado pelo legislador constituinte no que tange à incorporação dos tratados
de proteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. É o que se
deseja e se espera. Mais nada.
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A incorporação dos tratados internacionais sobre meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro – 169
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A proteção ao meio ambiente na
união européia: considerações a
partir do tratado da comunidade
européia e perspectivas com o
advento da constituição européia
Adriane Cláudia Melo Lorentz1
Resumo
Abstract
O artigo versa sobre a proteção do meio
ambienta na União Européia. O trabalho cuida
mais especificamente da competência da Comunidade Européia na conclusão dos acordos
internacionais do meio ambiente. Questiona-se
se a Comunidade Européia possui ou não competência para concluir acordos internacionais
do meio ambiente, e caso a possua, se essa
competência é expressa ou implícita, exclusiva
ou compartilhada
The article is about the environment protection in the European Union. The work
addresses more specifically the competence of
the European Union in the conclusion of the
international agreements of the environment.
The question is if the European Community
has competence or not to conclude environmental international agreements, and in case it
has, if this competence is expressed or implicit,
exclusive or shared.
Palavras-chave: Comunidade Européia. Proteção ambiental. Acordos internacionais ambientais. Competência.
Keywords: European Community. Environmental protection. Environmental international agreements. Competence.
1 Doutoranda em Direito na Universidade de Genebra, na Suíça. Mestre (DEA) em Direito Europeu e em Direito Internacional
Econômico pelas Universidades de Fribourg - Genebra - Lausanne e Neuchâtel, na Suíça. Mestre em Integração LatinoAmericana pela UFSM-RS. Graduada em Direito pela UFSM-RS. Email: [email protected].
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 171-184
jul.-dez. 2007
172 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
1 Considerações iniciais
A proteção ao meio ambiente requer a definição de valores a proteger e de medidas a serem tomadas em nível transnacional, eis que, das ações humanas nocivas
ao meio ambiente, resultam danos que não conhecem fronteiras. As repercussões
dessas catástrofes se estendem além-fronteira, em nível continental e mundial.
Nessa esteira, a União Européia reconhece a importância da proteção ao meio
ambiente no continente europeu e disciplina algumas questões nesse domínio. O
artigo 2° do Tratado da Comunidade Européia fala das missões da Comunidade
Européia e, dentre elas, salienta que a mesma almeja “um nível elevado de proteção
e de melhoria na qualidade do meio ambiente”. O artigo 6° do mesmo diz que “as
exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser integradas na definição
e na execução das políticas e ações da Comunidade previstas no artigo 3°, em
especial com o objetivo de promover um desenvolvimento sustentável”. Assim,
veremos que esse tratado apresenta instrumentos jurídicos e, também, políticos
que têm por intuito viabilizar a concretização desses objetivos.
Dentre os instrumentos jurídicos, ressaltamos a realização de acordos internacionais do meio ambiente. O Tratado da Comunidade Européia permite que essa
Comunidade realize acordos com Estados terceiros e organizações internacionais
nos domínios do meio ambiente. Mas nem sempre foi assim, pois esse Tratado,
na sua origem, em 1957, não regulava satisfatoriamente as questões ligadas ao
meio ambiente.
Este trabalho tem por objetivo principal abordar a competência da Comunidade Européia na conclusão dos acordos internacionais do meio ambiente.2 Nisso,
nos questionamos: a) a Comunidade Européia possui competência para concluir
acordos internacionais do meio ambiente? b) se possui essa competência, ela é
expressa ou implícita, exclusiva ou compartilhada?
2 A proteção do meio ambiente nos tratados
europeus e na Constituição Européia
O Tratado da Comunidade Européia, na sua origem, em 1957, nada dispunha
sobre a responsabilidade da Comunidade Européia relacionada ao meio ambiente.
Mas, em 1971, a Comissão Européia teve a iniciativa de adotar uma Comunicação
tratando da necessidade de se fazer uma política comum de proteção ao meio
ambiente. Em 1972, tendo em vista essa Comunicação da Comissão Européia,
2 Não abordaremos, neste trabalho, a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, a Comunidade Européia da Energia Atômica,
tampouco, a União Européia propriamente dita. Apenas, faremos referência à Comunidade Européia, cujo tratado de 1957
foi complementado por tratados posteriores nas matérias pertinentes ao meio ambiente.
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A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir do tratado
da comunidade européia e perspectivas com o advento da constituição européia – 173
o Conselho Europeu convidou as instituições européias a adotar um programa de
ação. Então, uma série de programas foi colocada em prática. Na seqüência, vários
dispositivos sobre o meio ambiente foram inseridos no Tratado da Comunidade
Européia. Os Tratados da União Européia (em 1992), de Amsterdam (em 1997),
de Nice (2001) contribuíram nesse sentido. Aqui, damos destaque aos principais
artigos do Tratado da Comunidade Européia relacionados ao meio ambiente,
que são: o artigo 2° que trata dos valores e objetivos da Comunidade Européia;
o artigo 3° parágrafo 1 letra l que trata das ações dessa Comunidade; o artigo 6°
que fala das exigências de proteção ao meio ambiente nas políticas européias; os
artigos 174 a 176 que tratam da política e dos instrumentos de ação na proteção
ao meio ambiente3.
O Tratado que estabelece uma constituição para a Europa, de 2004, também
traz dispositivos pertinentes à proteção do meio ambiente. Dentre eles, citamos
os seguintes artigos: o artigo I-3 que trata dos objetivos da União, retomando o
artigo 2° do Tratado da Comunidade Européia, e que menciona, dentre eles, um nível
elevado de proteção e de melhoria na qualidade do meio ambiente; o artigo I-14 parágrafo 2
letra e) que é uma inovação da Constituição Européia e que trata dos domínios de
competência compartilhada da União; o artigo II-97 que trata da proteção ao meio
ambiente e que é parte integrante da Carta dos Direitos Fundamentais; os artigos
III-233 a III-234 que tratam da política comum nos domínios do meio ambiente.
3 A política européia do meio ambiente
O Tratado da Comunidade Européia, no artigo 3° parágrafo 1 letra l, fala que a
Comunidade Européia deve conduzir uma política em matéria de meio ambiente. Nessa
esteira, os objetivos dessa política, são: a) a preservação, a proteção e a melhoria da
qualidade do meio ambiente; b) a proteção da saúde das pessoas; c) a utilização
prudente e racional dos recursos naturais; d) a promoção, no plano internacional,
de medidas destinadas a fazer face aos problemas regionais ou planetários do meio
ambiente (artigo 174 parágrafo 1).
Essa política visa um nível de proteção elevado, levando em consideração a
diversidade das situações nas diferentes regiões da Comunidade Européia, e é
fundada nos princípios da precaução, da prevenção, da correção na fonte, do
poluidor-pagador (artigo 174 parágrafo 2).
Na elaboração dessa política, a Comunidade Européia deve levar em consideração: a) os dados científicos e técnicos disponíveis; b) as condições do meio
ambiente nas diversas regiões da Comunidade Européia; c) o custo-benefício
resultante da ação; d) o desenvolvimento econômico e social da Comunidade
3 Bieber, Roland ; Maiani, Francesco. Précis de droit européen. Berne: Stämpfli, 2004, p. 277-278.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 171-184, jul.-dez. 2007
174 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
Européia no seu conjunto e o desenvolvimento equilibrado das regiões (artigo
174 parágrafo 3).
Em se tratando de organismos, destacamos a criação da Agência européia do
meio ambiente (AEE), com sede em Copenhague. Essa Agência não é mencionada expressamente nos tratados, mas foi criada por via legislativa. Trata-se de
um órgão da União Européia dotado de uma missão específica ligada ao meio
ambiente. Essa Agência, mesmo sendo um órgão europeu, é aberta, igualmente,
a países não-membros. Atualmente, 32 países fazem parte da mesma, sendo os
27 Estados membros da União Européia e, ainda, a Islândia, o Liechtenstein, a
Noruega, a Suíça e a Turquia4.
O Tratado que estabelece uma constituição para a Europa, no artigo III-233
parágrafo 1, retoma os mesmos objetivos do artigo 174 parágrafo 1 do Tratado
da Comunidade Européia visto acima. Do mesmo modo, retoma o artigo 174
parágrafos 2 e 3 vistos acima no artigo III-233 parágrafos 2 e 3. Poderíamos dizer
que, em relação aos objetivos da política européia de proteção ao meio ambiente,
a Constituição Européia não trouxe mudanças significativas.
4 Instrumentos jurídicos e políticos de proteção
ao meio ambiente
A Comunidade Européia, na busca do objetivo de proteger o meio ambiente,
pode se servir de diversos instrumentos jurídicos e políticos. Em se tratando de
instrumentos jurídicos internos, citamos os Regulamentos, as Diretivas, as Decisões, etc, conforme previsto no artigo 249 do Tratado da Comunidade Européia.
Quanto aos instrumentos jurídicos externos, citamos os acordos internacionais,
cujo estudo se constitui em objeto principal deste estudo, e é disciplinado no
artigo 174 parágrafo 4 do mesmo Tratado, conforme veremos no item 5 deste
trabalho. No que tange aos instrumentos políticos, salientamos as declarações e
os programas de ação. Essas medidas, em geral, são executadas e financiadas pelos
Estados membros5.
Os Estados membros podem, individualmente, estabelecer e manter medidas
de proteção reforçadas em relação ao meio ambiente, mas desde que sejam compatíveis com as medidas comunitárias (artigo 176).
No âmbito político, em se tratando de programas de ação, ressaltamos o sexto
programa de ação relativo ao ambiente onde a União Européia define as prioridades
e os objetivos da política ambiental européia até 2010 e para além desta data, e
enumera as medidas a serem tomadas no sentido de contribuir para a aplicação
4 Veja o site oficial da Agência européia do meio ambiente (AEE): http://www.eea.europa.eu/.
5 Bieber, Roland ; Maiani, Francesco. Précis de droit européen. Berne: Stämpfli, 2004, p. 280.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 171-184, jul.-dez. 2007
A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir do tratado
da comunidade européia e perspectivas com o advento da constituição européia – 175
da sua estratégia em matéria de desenvolvimento sustentável. Nisso, também,
salientamos a Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao
Comitê Econômico e Social e ao Comitê das Regiões, de 24 de janeiro de 2001,
relativa ao sexto programa comunitário de ação em matéria de ambiente, intitulado
“Ambiente 2010: o nosso futuro, a nossa escolha”6 e a Decisão n° 1600/2002/CE
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de julho de 2002, que estabelece o
sexto programa comunitário de ação em matéria de meio ambiente.7 Ainda, em
relação aos programas de ação, ressaltamos, também, a Decisão n.° 466/2002/
CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 1° de março de 2002 (modificada
pela Decisão 786/2004/CE), que estabelece um Programa Comunitário de Ação
para a promoção das organizações não-governamentais dedicadas principalmente
à proteção do ambiente. Este programa comunitário visa encorajar a atividade
das organizações não-governamentais (ONG) européias que têm como objetivo
principal a proteção do ambiente e que contribuem para desenvolver e aplicar a
política e a legislação européias no domínio do meio ambiente8.
Como objetivos políticos transversais, mencionamos, também, o Livro Verde, de 7 de fevereiro de 2001, sobre a política integrada relativa aos produtos,
apresentado pela Comissão, onde essa apresenta uma estratégia de reforço e de
reorientação das políticas ambientais em matéria de produtos, com vista a fomentar o desenvolvimento de um mercado favorável à comercialização de produtos
mais ecológicos e, por fim, a promover um debate público sobre este tema. E,
também, destacamos a Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento
Europeu, de 18 de junho de 2003, intitulada de “Política integrada de produtos
- Desenvolvimento de uma reflexão ambiental centrada no ciclo de vida”9.
Em relação aos instrumentos jurídicos internos proferidos pela Comunidade
Européia nos domínios do meio ambiente, destacamos alguns, a título de exemplo,
tais como: a) a Diretiva concernente à avaliação dos incidentes de certos projetos
públicos e privados sobre o meio ambiente (Diretiva n° 97/11); b) o Regulamento
permitindo a participação voluntária das empresas do setor industrial a um sistema
comunitário de gerenciamento ambiental (Regulamento n° 1836/93); c) a Diretiva
pertinente à liberdade de acesso à informação em matéria de meio ambiente (Di6 Essa Comunicação apresenta o sexto programa comunitário de ação em matéria de ambiente, intitulado “Ambiente 2010: o
nosso futuro, a nossa escolha”, que abrange o período compreendido entre 1° de janeiro de 2001 e 31 de dezembro de 2010.
Este programa inspira-se no Quinto Programa-Quadro de Ação em matéria de Ambiente, que abrangia o período compreendido
entre 1992 e 2000, e na Decisão relativa à sua revisão (http://www.europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/l28027.htm).
7 Esta Decisão estabelece o sexto programa comunitário de ação em matéria de meio ambiente, definindo objetivos, prazos
e prioridades, os eixos prioritários da abordagem estratégica e os quatro domínios de ação descritos na comunicação “Ambiente 2010: o nosso futuro, a nossa escolha”, relativa ao sexto programa comunitário de ação em matéria de ambiente. No
prazo máximo de quatro anos a contar da adoção desta Decisão, deverão ser postas em prática iniciativas no âmbito de cada
domínio de ação. A Comissão apresenta relatórios de avaliação ao Parlamento Europeu e ao Conselho, durante o quarto ano
de execução do programa e no seu final (http://www.europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/l28027.htm).
8 Veja mais detalhes sobre esse programa no site: http://www.europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/l28041.htm.
9 http://www.europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/l28011.htm
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 171-184, jul.-dez. 2007
176 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
retiva n° 2003/4); d) o Regulamento relativo à criação da Agência européia para
o meio ambiente (AEE) e da rede européia de informação e de observação para
o meio ambiente (Regulamento n° 1210/90); e) a Diretiva relativa à prevenção e à
redução integradas da poluição (Diretiva n° 96/61); f) as Diretivas n° 80/779, n°
82/884 e n° 85/203 que trazem regras que definem o padrão mínimo de qualidade
do ar em relação a certas matérias nocivas à saúde, como o anidrido sulfuroso, o
chumbo e o dióxido de nitrogênio; g) a Diretiva n° 84/360 pertinente aos limites
de emissão de produtos nocivos, como a poluição atmosférica proveniente de instalações industriais; h) a Diretiva n° 98/83 que trata da proteção da água destinada
ao consumo; i) a Diretiva n° 76/160 que regula a proteção da água para o banho;
j) a Diretiva n° 79/409 que trata da proteção dos pássaros selvagens; l) a Diretiva
n° 92/43 que favoriza a manutenção da biodiversidade pela conservação do habitat natural; m) a Diretiva n° 96/82 (“Diretiva Seveso”) concernente a acidentes
industriais; n) a Diretiva n° 90/219 e a Diretiva 90/220 relativas à utilização dos
microorganismos geneticamente modificáveis10.
Salientamos, ainda, a Diretiva 2004/35/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 21 de abril de 2004, que entrou em vigor em 30.04.2004 e que tem
prazo de transposição nos Estados-Membros até 30.04.2007, relativa à responsabilidade ambiental em termos de prevenção e reparação de danos ambientais, que
vem a ser o primeiro ato de direito comunitário que conta, entre os seus objetivos
principais, a aplicação do princípio do «poluidor-pagador». Esta Diretiva estabelece
um quadro comum de responsabilidade, com vista a prevenir e reparar os danos
causados aos animais, plantas, habitat natural e recursos hídricos, assim como ao
solo. O mecanismo de responsabilidade aplica-se, por um lado, a certas atividades ocupacionais explicitamente enunciadas e, por outro, às restantes atividades
ocupacionais quando houver culpa ou negligência do operador. Compete, além
disso, às autoridades públicas velar para que os operadores responsáveis tomem
diretamente ou financiem as necessárias medidas de prevenção ou reparação. E,
ainda, destacamos a Diretiva 2006/21/CE que modificou a Diretiva 2004/35/CE,
e que entrou em vigor em 01.05.2006 e tem prazo de transposição nos EstadosMembros até 01.05.200811.
Quanto aos instrumentos jurídicos externos, quer dizer, os acordos internacionais, citamos a Convenção de 12 de abril de 1999 para a proteção do Rhin firmada
pela Comunidade Européia e Suíça. Trata-se de um acordo internacional eis que
a Suíça não é membro da União Européia. Também, citamos o acordo sobre o
meio ambiente constante nos acordos bilaterais II entre a Comunidade Européia e
a Suíça. Trata-se de um acordo entre a Suíça e a Comunidade Européia pertinente
10 Bieber, Roland ; Maiani, Francesco. Précis de droit européen. Berne: Stämpfli, 2004, p. 281-282.
11 http://www.europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/l28120.htm.
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A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir do tratado
da comunidade européia e perspectivas com o advento da constituição européia – 177
à participação da Suíça na Agência européia para o meio ambiente (AEE) e na
rede européia de informação e de observação para o meio ambiente12. Citamos,
ainda, o Acordo entre a Comunidade Européia e a República do Chipre pertinente
à participação dessa República na Agência Européia do Ambiente (AEE) e na
rede européia de informação e de observação do ambiente. Ainda, nessa esteira,
salientamos os vários Acordos concluídos pela Comunidade Européia e outros
países (Bulgária, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia, República Checa, República
Eslovaca, República da Estônia, Romênia, Turquia) concernente à participação
desses na Agência Européia do Ambiente (AEE) e na rede européia de informação
e de observação do ambiente13.
O Tribunal de Justiça e o Tribunal de Primeira Instância vêm se manifestando
em questões relativas ao meio ambiente em inúmeras decisões, dentre as quais,
salientamos, a título de exemplo: a) o Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda
Seção) de 1° de fevereiro de 2007, cuja parte demandante foi a Comissão das Comunidades Européias e a parte demandada foi o Reino Unido da Grã-Bretanha e
da Irlanda do Norte (Processo C-199/04: “Incumprimento de Estado - Diretivas
85/337/CEE e 97/11/CE - Avaliação dos efeitos de determinados projetos no
ambiente - Alteração importante da utilização de uma construção ou de um terreno
- Inadmissibilidade da ação”) no qual o Tribunal decidiu pela inadmissibilidade
da ação; b) o Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Seção) de 11 de janeiro de
2007, tendo como parte demandante a Comissão das Comunidades Européias e
como parte demandada a Irlanda (Processo C-183/05: “Incumprimento de Estado
- Diretiva 92/43/CEE - Artigos 12, n° 1 e 2, 13, n° 1, alínea b), e 16 - Preservação
do habitat natural e da fauna e da flora selvagens - Proteção das espécies”) cuja
decisão do Tribunal foi de dizer que não tendo adotado todas as medidas específicas necessárias para implementar eficazmente o sistema de proteção rigorosa
previsto no artigo 12°, n° 1, da Diretiva 92/43/CEE do Conselho, de 21 de maio
de 1992, relativa à preservação do habitat natural e da fauna e da flora, ao manter
em vigor as disposições da seção 23(7)(a) a (c) da Lei sobre a fauna e a flora selvagens (Wildlife Act) de 1976, na versão resultante da Lei de alteração [Wildlife
(Amendment) Act] de 2000, que não são compatíveis com as dos artigos 12°, n° 1,
e 16° da Diretiva 92/43, a Irlanda não cumpriu os referidos artigos desta Diretiva
nem, portanto, as obrigações que lhe incumbem por força da mesma; c) o Acórdão
do Tribunal de Justiça (Quarta Seção) de 26 de outubro de 2006, tendo como parte
demandante a Comissão das Comunidades Européias e como parte demandada a
República da Finlândia (Processo C-152/06: “Incumprimento de Estado - Diretiva 2002/95/CE - Substâncias perigosas -Equipamentos elétricos e eletrônicos
- Não transposição no prazo previsto”) sendo que o Tribunal decidiu que ao não
12 Veja a íntegra do acordo no site: http://www.europa.admin.ch/nbv/off/abkommen/f/envi_1.pdf.
13 Veja esses acordos internacionais em http://eur-lex.europa.eu/pt/repert/1510.htm.
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178 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
adotar, relativamente às ilhas Åland, as disposições legislativas, regulamentares e
administrativas necessárias para transpor a Diretiva 2002/95/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 27 de janeiro de 2003, relativa à restrição do uso de
determinadas substâncias perigosas em equipamentos elétricos e eletrônicos, a
República da Finlândia não cumpriu as obrigações que lhe incumbiam por força
da referida Diretiva; d) o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Seção) de 14
de dezembro de 2006, tendo como demandante a Comissão das Comunidades
Européias e como demandada o Grão Ducado do Luxemburgo (Processo C198/06: “Incumprimento de Estado - Diretiva 1999/94/CE - Automóveis novos
de passageiros - Informações sobre a economia de combustível e as emissões de
CO2”) onde o Tribunal entendeu que ao não comunicar o relatório previsto no
artigo 9º da Diretiva 1999/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13
de dezembro de 1999, relativa às informações sobre a economia de combustível
e as emissões de CO2 disponíveis para o consumidor na comercialização de automóveis novos de passageiros, o Grão-Ducado do Luxemburgo não cumpriu as
obrigações que lhe incumbem por força da referida Diretiva14.
O Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa também apresenta
instrumentos jurídicos e políticos capazes de fazer face à proteção do meio ambiente. A lei européia (chamada de Regulamento pelo Tratado da Comunidade Européia) e a lei-quadro européia (chamada de Diretiva pelo Tratado da Comunidade
Européia) são exemplos de instrumentos jurídicos em nível interno (artigo III-234
parágrafo 1). Em nível externo, os acordos internacionais também desempenham
papel nesse sentido (artigo III-233 parágrafo 4).
Como instrumentos políticos, os programas de ação são, também, mencionados
no artigo III-234 parágrafo 3 da Constituição Européia.
5 Competência para concluir acordos
internacionais do meio ambiente
A competência da Comunidade Européia para realizar acordos internacionais
deve ser conferida pelo tratado da Comunidade Européia. Para que a Comunidade
Européia possa firmar acordos internacionais, em se tratando de certas matérias,
como o meio ambiente, é preciso que o seu Tratado constitutivo lhe atribua competências dentro das matérias. Se o tratado atribui expressamente essa competência,
chama-se de competência expressa. Precisamos saber se nos domínios do meio
ambiente, a Comunidade Européia tem competência expressa na conclusão dos
acordos internacionais.
14Veja cerca de uma centena de decisões do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância em http://www.curia.
europa.eu/jurisp/cgi-bin/form.pl?lang=pt&Submit=Rechercher&docrequire=alldocs&numaff=&datefs=&datefe=&nom
usuel=&domaine=ENVC&mots=&resmax=100.
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A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir do tratado
da comunidade européia e perspectivas com o advento da constituição européia – 179
Em se tratando de acordos internacionais, o Tratado da Comunidade Européia
regula essa situação no artigo 174 parágrafo 4 e o Tratado que estabelece uma
constituição para a Europa, por sua vez, regula essa matéria no artigo III-233
parágrafo 4, como veremos adiante.
Do mesmo modo, após saber da competência expressa ou implícita para
concluir o acordo, precisamos saber se esse acordo deve ser concluído somente
pela Comunidade Européia, do lado comunitário, ou ainda precisa da presença
dos Estados membros. Nisso, nos perquirimos: a competência da Comunidade
Européia para concluir acordos internacionais do meio ambiente é expressa ou
implícita, exclusiva ou compartilhada?
5.1 Competência expressa
Dizemos que a Comunidade Européia possui, ou não, competência expressa na
conclusão dos acordos internacionais quando encontramos no tratado constitutivo
da mesma, de maneira clara e expressa, a possibilidade de realização de acordo
internacional em certo domínio (Ex.: domínio do meio ambiente).
Mas, há outros casos em que o tratado da Comunidade Européia peca na
apresentação de forma clara e expressa das matérias de competência da Comunidade Européia na conclusão de acordos internacionais. Isso se deu em relação
aos domínios dos transportes e dos recursos biológicos do mar. Nisso, a Corte
de justiça teve e tem papel fundamental, pois, quando acionada, precisa dirimir
os problemas decorrentes dessa ausência de clareza. Foi aí que, em um dos casos
por ela analisados, desenvolveu a teoria da competência implícita da Comunidade
Européia na conclusão de acordos internacionais. Encontramos o desenvolvimento dessa teoria nos casos AETR (Comissão versus Conselho), Kramer e no
Parecer 1/76.
Todavia, os acordos internacionais do meio ambiente possuem competência
expressa bem declarada no artigo 174 parágrafo 4 do tratado da Comunidade
Européia. Esse diz que, em se tratando dos domínios do “meio ambiente, a Comunidade Européia e os Estados membros cooperam com os Estados terceiros
e as organizações internacionais. As modalidades da cooperação por parte da Comunidade Européia podem ser os acordos entre a mesma e as terceiras partes”.
O Tratado que estabelece uma constituição para a Europa segue na linha do
Tratado da Comunidade Européia no sentido de dizer claramente que acordos
internacionais podem ser firmados pela União nos domínios do meio ambiente
(III-233 parágrafo 4). Esse artigo retoma o mesmo entendimento do artigo 174
parágrafo 4 do Tratado da Comunidade Européia, visto acima.
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180 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
5.2 Competência exclusiva ou compartilhada
Dizemos que a Comunidade Européia possui competência exclusiva na conclusão de acordos internacionais quando, em se tratando de certas matérias, a participação dos Estados membros não é necessária (Ex.: domínios da política comercial
comum). Chamamos esses acordos de acordos puramente comunitários.
Os acordos puramente comunitários são aqueles acordos realizados sem a
necessidade da presença dos Estados membros, isso porque a matéria do acordo
é de competência exclusiva da Comunidade Européia. Assim, do lado comunitário, tanto para a negociação quanto para a conclusão do acordo não é preciso a
interferência dos Estados membros.
Os acordos puramente comunitários são firmados, do lado comunitário, pela
Comunidade Européia, e, do outro lado, por Estados terceiros ou organizações
internacionais. Como exemplos de acordos puramente comunitários temos os
acordos GATT e GATS (com exceções).
Todavia, existem domínios em que é necessária a presença dos Estados membros na conclusão do acordo, como os acordos sobre o meio ambiente. Então,
nesse caso, dizemos que a Comunidade Européia tem competência compartilhada.
Chamamos esses acordos de acordos mistos.
Os acordos mistos devem ser realizados com a presença (obrigatória) dos
Estados membros, pois a matéria do acordo é de competência tanto comunitária
quanto dos Estados membros. Assim, do lado comunitário, tanto para a negociação, quanto para a conclusão do acordo, é necessária a interferência dos Estados
membros.
Os acordos mistos são firmados, do lado comunitário, pela Comunidade Européia e Estados membros, e, do outro lado, por terceiros Estados ou organizações
internacionais. Como exemplo de acordo misto temos o acordo TRIPs.
A maioria dos acordos sobre o meio ambiente concluídos pela Comunidade
Européia são de competência compartilhada, quer dizer, trata-se de acordos
mistos15. E esse entendimento foi uma construção da jurisprudência da Corte de
Justiça européia, pois o Tratado da Comunidade Européia nunca regulou essa
questão claramente. Nunca trouxe um rol definido das matérias de competência
exclusiva ou compartilhada da Comunidade Européia.
Todavia, felizmente, o Tratado que estabelece uma constituição para a Europa,
no artigo I-14 parágrafo 2 letra e), é mais claro quanto à competência da União
na realização de acordos internacionais do meio ambiente, em comparação ao
15Kaddous, Christine. Le droit des relations extérieures dans la jurisprudence de la Cour de justice des communautés européennes. Bâle/Bruxelles/Genève: Helbing & Lichtenhahn/Bruylant, 1998, p. 233.
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A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir do tratado
da comunidade européia e perspectivas com o advento da constituição européia – 181
Tratado da Comunidade Européia. E, assim, esse artigo fala claramente que o
meio ambiente é matéria de competência compartilhada da União com os Estados
membros, do lado comunitário, o que quer dizer que se trata de acordos mistos,
como já vinha entendendo a jurisprudência.
6 O procedimento de conclusão dos acordos
internacionais do meio ambiente
O procedimento geral de conclusão dos acordos internacionais firmados pela
Comunidade Européia encontra-se no artigo 300 do Tratado da Comunidade
Européia.
Enquanto o artigo 300 apresenta um procedimento geral, outros artigos do
Tratado da Comunidade Européia trazem outros procedimentos, mais específicos, dependendo da matéria envolvida. O artigo 111 apresenta um procedimento
específico para a realização de acordos internacionais no que concerne à política
monetária. O artigo 133 trata do procedimento específico em se tratando de política
comercial comum. O artigo 170, por sua vez, aborda o procedimento envolvendo
a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. O artigo 181, sobre a cooperação e
desenvolvimento. O artigo 310, para os acordos de associação, dentre outros.
Os acordos internacionais do meio ambiente seguem o procedimento do artigo
300 do Tratado da Comunidade Européia. Esse apresenta um procedimento geral
de negociação e conclusão dos acordos internacionais firmados pela Comunidade
Européia nas matérias constantes no Tratado da Comunidade Européia16. O artigo
300 do tratado da Comunidade Européia apresenta três fases: a) negociação; b) assinatura; c) conclusão. Dizemos que se trata de um procedimento geral, e que serve,
portanto, para todas as matérias que não possuem procedimento específico.
Segundo o procedimento do artigo 300, a iniciativa de proposição de um acordo
internacional vem da parte da Comissão. No fundo, para chegarmos a essa fase
de recomendação/proposição de acordo, há evidentemente um trabalho prévio,
de contatos informais entre a Comissão e terceiros Estados ou organizações
internacionais, no sentido de saber quais os domínios de interesse das partes
acordantes, quer dizer, quais as matérias interessantes tanto para a Comunidade
Européia quanto para os terceiros Estados ou organizações internacionais para a
conclusão de acordos entre eles.
16Nisso, aproveitamos para lembrar as fases de conclusão (lato sensu) do acordo internacional em Direito Internacional Público,
que são: a) negociação; b) assinatura; c) ratificação; d) promulgação; e) publicação; f) registro. Essas fases são muito bem
desenvolvidas por Del’olmo, Florisbal na Souza na obra Curso de Direito Internacional público. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.
42. O autor salienta que a negociação do acordo é realizada pelo Poder Executivo; a assinatura é o ato que autentica o acordo;
a ratificação, apesar de ter muita importância histórica, é, hoje, muitas vezes, suprimida pela assinatura; com a promulgação o
tratado torna-se executável no plano internacional; a publicação serve para o ato jurídico que contém o acordo ser conhecido;
o registro evita que os tratados secretos e aqueles que não são registrados na ONU sejam invocados perante a mesma.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 171-184, jul.-dez. 2007
182 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
Somente após esta fase exploratória é que a Comissão apresenta a sua recomendação de acordo ao Conselho para que o mesmo autorize a abertura das negociações. Assim, é o Conselho quem autoriza, por maioria qualificada, a abertura
de negociações do acordo, através de uma Diretiva17.
No momento em que a Comissão apresenta a recomendação ao Conselho, ela
pode melhor determinar os limites da negociação, porque o Conselho diz aquilo
que entra e aquilo que fica de fora da negociação.
Se o Conselho autoriza a abertura das negociações, a Comissão é a responsável
pelo andamento das mesmas, que é feita em nome da Comunidade Européia. A
Comissão é a instituição que representa a Comunidade Européia nas suas relações
exteriores. No caso de um acordo misto, os Estados membros também participam
das negociações ou, então, podem fornecer um mandato à Comissão para que
essa os represente nas negociações.
De um modo geral, a questão envolvendo a assinatura do acordo é de competência do Conselho. Quando as negociações terminam, cabe ao Conselho autorizar
a assinatura do acordo internacional. O ato da assinatura pode ser feito tanto pela
Comissão quanto pela presidência do Conselho, ou mesmo pelos dois conjuntamente, desde que autorizados pelo Conselho18.
O Tratado que estabelece uma constituição para a Europa estabelece o procedimento geral de conclusão dos acordos internacionais no artigo III-325. Esse
retoma o procedimento geral do artigo 300 do Tratado da Comunidade Européia,
visto acima, e regula o procedimento de conclusão dos acordos internacionais do
meio ambiente.
O artigo III-325 da Constituição Européia começa falando da participação do
Conselho no procedimento geral de conclusão dos acordos internacionais, afirmando que o Conselho autoriza a abertura das negociações, expede as Diretivas
pertinentes à negociação, autoriza a assinatura e conclui os acordos. Segue observando que o Conselho pode dirigir Diretivas ao negociador e designar um comitê
especial, e que as negociações devendo ser conduzidas com a consulta a esse comitê.
Em seguida, o Conselho, mediante proposição do negociador, adota uma Decisão
européia autorizando a assinatura do acordo e, dependendo do caso, a sua aplicação
provisória antes da entrada em vigor. Após isso, o Conselho mediante proposição
do negociador, adota uma Decisão européia a respeito da conclusão do acordo.
17Segundo o artigo 300 parágrafo 1 alínea 2: “Dans l’exercice des compétences qui lui sont attribuées par le présent paragraphe, le Conseil,
statue à la majorité qualifiée, sauf dans les cas où le paragraphe 2, premier alinéa, prévoit que le Conseil statue à l’unanimité ». idem. Em
relação às Diretivas de negociação do Conselho endereçadas à Comissão e a observância, ou não, das mesmas pela Comissão
Jacqué, Jean-Paul fala que « lorsque le Conseil autorise l’ouverture de négociations, il peut également adresser à la Commission des directives de
négociation. La Commission négocie dans le cadre de ces directives. Juridiquement celles-ci ne sont pas contraignantes, mais si la Commission s’en
écarte, elle court le risque de voir le Conseil refuser la signature de l’accord ». Droit institutionnel de l’Union européenne. Paris: Dalloz, 2004,
p. 462.
18Jacqué, Jean-Paul. Droit institutionnel de l’Union européenne. Paris: Dalloz, 2004, p. 464.
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A proteção ao meio ambiente na união européia: considerações a partir do tratado
da comunidade européia e perspectivas com o advento da constituição européia – 183
No artigo III-325, alínea 6, letra a, V, da Constituição Européia encontramos
o alargamento do papel do Parlamento na conclusão dos acordos internacionais,
notadamente, nas questões submetidas ao procedimento de codecisão (artigo
251 do tratado da Comunidade Européia) ou nos casos em que a aprovação do
Parlamento é requerida. Também, encontramos a queda do monopólio da Comissão na negociação dos acordos internacionais, como é o caso da PESC (artigo
III-325 alínea 3).
7 Considerações finais
Este trabalho teve por intuito principal tratar dos instrumentos jurídicos externos, ou seja, abordar os acordos internacionais de proteção ao meio ambiente na
União Européia, a partir do Tratado da Comunidade Européia e da Constituição
Européia. Notamos, assim, uma cooperação internacional na proteção do meio
ambiente no continente europeu. Nisso, nos perquirimos, inicialmente, se a Comunidade Européia teria competência para firmá-los e se, essa competência, seria
expressa ou implícita, exclusiva ou compartilhada. No estudo dessas questões,
vimos que além de instrumentos jurídicos externos, a Comunidade Européia
dispõe de instrumentos jurídicos internos (os Regulamentos, as Diretivas, as
Decisões etc) e de instrumentos políticos (os programas de ação) para proteger
o meio ambiente.
Por fim, podemos afirmar que a Comunidade Européia possui competência
para estabelecer acordos internacionais do meio ambiente com Estados terceiros
ou organizações internacionais. E essa competência lhe é dada de maneira expressa
no Tratado da Comunidade Européia. Essa competência é compartilhada com
os Estados membros, do lado comunitário, fazendo com que os acordos sejam
denominados de acordos mistos. A Constituição Européia inova ao falar claramente
sobre essa competência compartilhada.
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184 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
8 Referências
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Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 171-184, jul.-dez. 2007
Comunidades indígenas
e bioprospecção: o desafio
da formulação de consensos
internacionais
Taciana Marconatto Damo Cervi1
Resumo
Abstract
O trabalho versa sobre as relações entre as
comunidades indígenas e a bioprospecção, notadamente após a influência dos efeitos da globalização, das mudanças urbanas e das transformações impostas pelos avanços biotecnológicos.
Frente a isso, a discussão sobre a proteção do
patrimônio genético humano busca questionar a
legitimidade da apropriação e patenteamento de
genes humanos por meio da análise da legislação
pátria vigente e das declarações internacionais,
e se com isso, não estaria a dignidade da pessoa
humana sendo aviltada face à total desconsideração do valor fundamental e intrínseco da pessoa,
princípio amplamente reconhecido pelo Estado
Democrático de Direito e pela comunidade
internacional.
This work is about the relationship between
Indian communities and the bioprospection,
after the influence of the globalization effects,
of the urban changes and of the modifications
imposed by the biotechnological advances.
So, the discussion about the protection of
the human genetic patrimony questions the
legitimacy of the appropriation and patent of
human genes through the analysis of the home
legislation in force and of the international
declarations, and if with this, the person’s
dignity would not be vilified due to the total
disrespect of the fundamental and intrinsic
value of the person, a principle broadly recognized by the Democratic Rule of Law and by
the international community.
Palavras-chave: Comunidades indígenas. Bioprospecção. Consenso internacionais. Avanços
biotecnológicos.
Keywords: Indian communities. Bioprospection. International consensus. Biotechnological
advances.
1 Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul –UCS. Professora universitária. Pesquisadora. E-mail: taciana@urisan.
tche.br
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais
Cuiabá
Ano 1
n. 2
p. 185-198
jul.-dez. 2007
186 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
1 Introdução
A biotecnologia teve desenvolvimento acelerado nos últimos vinte anos,
apresentando novos desafios e oportunidades. Os efeitos da globalização, das
mudanças urbanas e das transformações impostas pelos avanços biotecnológicos
têm influenciado decisivamente a crença no progresso científico e em novas formas
de relacionamento do homem com a natureza e com ele próprio. Frente a isso, a
discussão sobre a proteção do patrimônio genético humano busca questionar a
legitimidade da apropriação e patenteamento de genes humanos através da análise
da legislação pátria vigente e das declarações internacionais, e se com isso, não
estaria a dignidade da pessoa humana sendo aviltada face à total desconsideração
do valor fundamental e intrínseco da pessoa, princípio amplamente reconhecido
pelo Estado Democrático de Direito e pela comunidade internacional.
2 Genoma humano e patente de genes
A partir do descobrimento DNA em 1953, a ciência ganhou forte impulso
desenvolvendo-se com uma velocidade inédita e aliando ao conhecimento a tecnologia de ponta. Estas condições permitiram ao homem o discernimento e a
intervenção não apenas no mistério da vida da espécie humana, mas também no
mistério da vida individual.
A corrida tecnológica implementada por grandes empresas e países desenvolvidos capazes de promover grandes investimentos econômicos impulsionaram o
desenvolvimento de pesquisas científicas no campo da genética humana. O cenário
definido tornou imperiosa a reflexão sobre o processo de coisificação e apropriação
privada de elementos do corpo humano, e da possibilidade de proteção das informações genéticas contidas no DNA humano como bens de interesse difuso.
A discussão urge em razão da possibilidade de patenteamento de genes, levantada pela primeira vez por norte-americanos, em 1988, quando ainda o Projeto
Genoma Humano – PGH, não existia oficialmente. Conforme o artigo 8.º da Lei
9.279/96, a patente é um título outorgado pelo Poder Público a um inventor para
que este tenha exclusividade na exploração de sua invenção, impedindo que outro a
explore sem sua anuência. Três são os requisitos essenciais para a patenteabilidade:
novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.
Com efeito, além de promover o progresso tecnocientífico pela divulgação
do invento, a patente concede o direito de exploração econômica exclusiva ao
inventor. Por outro viés, ao garantir o monopólio institucionalizado, a sistemática de patentes constitui-se em instrumento por meio do qual os conhecimentos
científico e tecnológico são transformados em bens econômicos, pois seu objeto
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 185-198, jul.-dez. 2007
Comunidades indígenas e bioprospecção: o desafio da formulação de consensos internacionais – 187
passa a ser tutelado, passível de proteção e apropriação privada e, portanto, de
transações mercantis2.
No Brasil, a Lei de Propriedade Industrial proíbe a concessão de patentes para
“o todo ou parte de seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos requisitos de patenteabilidade”3. Entretanto, as pesquisas biotecnológicas
iniciadas nas universidades e instituições públicas são atualmente, lideradas por
empresas transnacionais que efetivamente impulsionaram as tentativas de patentear
as formas vitais. Note-se que, para tais atores é interessante assegurar a proteção da
propriedade privada sobre os produtos que desenvolvem, controlando os mercados
e garantindo que seus investimentos proporcionem benefícios4.
Isso porque o tratado internacional que regula a questão determinou direitos
exclusivos aos titulares de patentes, tanto para os produtos quanto para os processos. Quanto aos produtos, a patente assegura ao titular o direito de evitar que
terceiros sem seu consentimento produzam, usem, coloquem a venda, vendam
ou importem os bens protegidos; quanto aos processos, o titular da patente pode
evitar que terceiros usem o processo, coloquem-no à venda, ou importem procedimentos patenteados5.
O problema reside em que, os seres vivos não se encaixam nos requisitos de
patenteabilidade, nascidos para atender as invenções relativas a produtos industriais
inanimados. Conforme lembra Del Nero, para ser patenteável o invento deve
ser novo, não pode ser óbvio para um especialista e deve ser útil, ter aplicações
industriais. As patentes assim, são concedidas para produtos, técnicas e usos específicos de produtos6.
Por esta razão, em diversas partes do mundo são excluídas do patenteamento,
variedades vegetais, animais e processos biológicos. Entretanto, o grupo favorável ao patenteamento dos organismos vivos conseguiu êxito em 1980, quando o
Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu que os organismos vivos eram
patenteáveis. A partir deste marco, numerosas patentes foram concedidas por
autoridades norte-americanas7.
Ainda assim, do ponto de vista jurídico, Casabona menciona que a natureza da
patente é pouco compatível com meras descobertas, pois os genes enquanto tais, e
as seqüências de DNA já existem na natureza, não se constituindo em invenções
ou algo novo. Prossegue o autor, referindo que o direito de patentes seria mais
2
3
4
5
6
7
Del Nero, Patrícia Aurélia. Propriedade intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
Lei 9.279/96, art. 18, III.
Pessini, Leo; Barchifontaine, Christian de Paul de. Problemas atuais de bioética. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 213.
Del Nero, op. cit., p. 123 e 124.
Id.
Pessini, Barchifontaine, op. cit., p. 213.
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188 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
adequado para a proteção de procedimentos, técnicas e métodos, relacionados ao
genoma humano do que para produtos como os genes ou seqüências de DNA8.
Contudo, o uso do direito de patente para cobrir moléculas do DNA pressupõe algumas estranhas interpretações das normas que governam o direito de
propriedade. Para essa corrente, o passo decisivo seria a declaração de igualdade
das moléculas de DNA e as moléculas químicas, como forma de consecução de
patenteamento. De fato, o DNA é uma molécula química formada por genes. As
patentes do genoma cobrem o gene em si, mas as informações genéticas devem
ser consideradas conhecimento do que existe no mundo natural e não artifício
sujeito a patente 9.
A título de esclarecimento, Bergel elucida que a criação de um remédio constitui-se em uma dupla invenção porque se realiza na molécula em si e no uso terapêutico. No âmbito dos estudos genômicos, esse raciocínio é inaplicável porque
o isolamento de um gene equivalente à criação de uma molécula química, não é
uma atividade de invenção. Para o autor, “os critérios empregados para a proteção
de uma molécula química não são aplicáveis ao gene humano”10.
Contudo, observa-se que os requisitos de patenteamento no caso dos genes
humanos têm sido verificados parcialmente, correspondendo aos interesses comerciais. Como observa o mesmo autor, a temática reveste-se de especial preocupação
dado que a patente reserva ao proprietário direitos exclusivos sobre a seqüência,
restringindo a liberdade de investigação e enfraquecendo a capacidade de desenvolvimento na área pois, a concessão de patentes em matéria e métodos que se
constituem em ferramentas de pesquisa produzem efeitos negativos na dinâmica da
pesquisa e nas inovações médicas porque as patentes cobrem a seqüência genética
e suas aplicações potenciais como diagnóstico, tratamento etc...
São duas tendências que se definem diante da concessão de patentes: na hipótese
de não haver concessão de patentes, o financiamento das pesquisas por empresas
particulares se reduz, atrasando o avanço da tecnologia, por outro lado, as patentes
provocam retenção de informações, porque a empresa favorecida fica sozinha no
campo, desestimula a pesquisa nos países em desenvolvimento e facilita preços
abusivos dos produtos, pela falta de concorrência11.
Ademais, cumpre destacar que a problemática não se restringe somente aos
aspectos jurídico-técnicos, que poderiam ser superados. Trata-se, sobretudo, de
8 Casabona, Carlos Maria Romeo. Genética e Direito. p. 23-49. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo. Biotecnologia, Direito e
Bioética: perspectivas em direito comparado. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
9 Bergel, Salvador Darío. Genoma humano e patentes. In: Garrafa, Volnei; Pessini, Leo. Bioética – Poder e Injustiça. São Paulo:
Loyola, 2003.
10Id, p. 140.
11Frota-Pessoa, Oswaldo. Fronteiras do Biopoder. Disponível em: www.octopus.furg.br/cibio/opi/fronteirasbiopoder.htm.
Acessado em 04/02/2007.
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Comunidades indígenas e bioprospecção: o desafio da formulação de consensos internacionais – 189
interesses econômicos contrapostos que aludem a necessidade de os laboratórios
recuperarem grandes somas investidas, o que lhes permite continuar custeando
a pesquisa. Assim, o patenteamento permitiria ainda, assegurar aos próprios pesquisadores o apoio e a continuidade do trabalho12.
Desta forma, a indústria das patentes tem sua área de atuação determinada pela
infinidade de recursos genéticos oferecidos pela natureza, conforme poderemos
analisar a seguir.
3 Bioprospecção e biopoder na sociedade
globalizada
Em razão da necessidade de vultosas somas de capital para o financiamento
das pesquisas, constata-se a formação de um monopólio das atividades científicas
biotecnológicas, patrocinadas por instituições privadas e por grandes empresas,
constituindo o chamado biopoder. Esta força poderosa é identificada por Frota-Pessoa, como decorrência do conhecimento operacional da biotecnologia, e
surge da bioprospecção, a atividade exploratória que visa identificar genes úteis e
potenciais à implementação industrial para a geração de proventos.
Desta forma, conhecer e operar a biotecnologia confere poder porque a sociedade precisa dela usufruir. A pessoa ou instituição detentora do biopoder é importante, porque os outros dependem dele, o que gera riqueza e regalias. Entretanto,
ocorre que nem todos os paises do mundo possuem as mesmas oportunidades de
desenvolvimento científico e tecnológico, o que implica na distribuição desigual
dos benefícios dos experimentos biotecnológicos. O biopoder gera excluídos do
progresso tecnológico em razão do próprio sistema de propriedade intelectual
que exige retribuição pecuniária pelo acesso aos frutos do progresso tecnológico.
Assim, estão privados dos benefícios biotecnológicos aqueles que não podem
pagar os direitos autorais13.
Contudo, o monopólio institucionalizado pelos registros de patente é resultado
do cenário de globalização econômica que acentuou as desigualdades entre norte e
sul, e é neste âmbito de relações que o impacto da biotecnologia mais se faz sentir.
O uso de patentes visa criar rendas transferidas do sul para o norte e assim, os
recursos genéticos estão sendo espoliados pelas grandes empresas multinacionais,
o que é caracterizado por Kloppenburg como um “imperialismo biológico”14.
Diante de questões como estas, definem-se duas posturas que se digladiam e
induzem muito biopoder. Primeiro, pessoas, cientistas, tendem a achar que seres
12 Casabona, op. cit.
13 Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
14 Apud Santos, op. cit.
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190 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
vivos, transformados ou não por engenharia genética, e os produtos de seus
corpos não devem ser patenteáveis. Segundo, as grandes empresas e instituições
de pesquisa orientadas por seus interesses econômicos defendem o contrário,
demonstrando com freqüência que o biopoder é o melhor meio de produzir mais
biopoder15.
Assim, os países desenvolvidos esforçaram-se para criar obstáculos e regular o
acesso à biotecnologia garantindo com isso, acessibilidade ao patrimônio genético.
A partir disso instaurou-se uma batalha entre o Norte e o Sul para estabelecer as
bases da relação entre os detentores de recursos genéticos e os detentores da biotecnologia, quadro que foi determinado a partir da institucionalização do monopólio
das patentes, o marco de divisão dos Estados conforme seu perfil tecnológico,
constituindo-se em Estados desenvolvidos e em desenvolvimento16.
Assim, os primeiros buscaram proteger sua indústria da pirataria enquanto
que, os países em desenvolvimento buscaram provisões que possibilitassem o seu
progresso tecnológico. Como esclarece Santos “...a riqueza gerada [...] passa pela
questão do controle do domínio da informação [...] da qual é preciso se apropriar
– o que tem sido promovido por meio dos chamados sistemas de propriedade
intelectual”17.
Embora o biopoder seja em geral benéfico, pois melhores condições de vida
são alcançadas com a implementação de biotecnologias, o que preocupa é a já
mencionada, dependência externa, responsável por grande parte da riqueza e das
regalias advindas da do emprego da biotecnologia. No entendimento de Fernandez, os valores e interesses que prevalecem no desenvolvimento da biotecnologia,
podem converter-se em nova causa de colonialismo do mundo tecnicamente
desenvolvido sobre os países pobres18.
Nessa esteira, Frota-Pessoa alerta que o biopoder distorcido conduz lucro
excessivo ou induz procedimentos sem indicação justa, no intuito de produzir
proventos19. A perspectiva é comprovada por Rifkin ao demonstrar que os esforços de instituições de pesquisa biotecnológica e de empresas preocupadas com
a comercialização do domínio genético têm se confrontado com um crescente
número de países e de organizações não-governamentais do hemisfério Sul que
se reúnem para marcar forte resistência e exigir uma parcela justa dos frutos desta
revolução. Isso porque, segundo o mesmo autor, enquanto os recursos tecnológicos
15 Frota-Pessoa, op. cit.
16 Basso, Maristela. Direito Internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
17 Santos, Laymert Garcia dos. A difícil questão do acesso aos recursos genéticos. In: Philippi Jr., Arlindo. et. al. Meio ambiente,
direito e cidadania. São Paulo: Signus, 2002. p. 82.
18 Fernandez, Javier Gafo. Ética y manipulación genética. In: Palacios, Marcelo. Bioética 2000. Llanera (Asturias): Nobel,
2000.
19 Frota-Pessoa, op. cit.
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encontram-se nos laboratórios do hemisfério norte, a maior parte dos recursos
genéticos essenciais de fomento da indústria biotecnológica encontram-se nos
ecossistemas tropicais do sul20.
Assim, o fortalecimento do biopoder tem sido alimentado pela diversidade
genética de países em desenvolvimento, notadamente países tropicais, por meio
da biopirataria ou bioprospecção, revelada como a principal disputa econômica
e política deste século.
Com efeito, exploradores, missionários, funcionários das embaixadas e cientistas devotam grande parte de seu tempo à exploração biológica com vistas a um
comércio lucrativo. Nesse sentido, soou como alerta à comunidade internacional
o surgimento de um crescente número de relatórios de pesquisas realizadas por
instituições científicas envolvendo o genoma humano em regiões remotas do
mundo. Os piratas recolhiam amostras de sangue de populações indígenas para
pesquisar traços geneticamente singulares capazes de propiciar o aprimoramento
da composição genética da raça humana. O projeto se justificava pela possibilidade
de extinção de tais agrupamentos e pela miscigenação21.
Segundo pesquisas biológicas, somente as diferenças genéticas contribuem para
distinguir raças, e a divergência genética entre populações é intensificada dentre
outros fatores, pelo aumento do tempo de isolamento. Por isso, se fala em raças
puras, como a dos índios, que não passaram por miscigenação recente possuindo
um bloco de traços hereditários, físicos e psicológicos que não se encontram em
outra raça. Assim, as raças são categorias dinâmicas em evolução, diferenciando-se
gradativamente por isolamento e desfazendo-se por miscigenação22.
Por razões desta monta, há tempos a riqueza genética das populações indígenas
é reconhecida cientificamente e investigada. Em meados dos anos de 1980, é que
se definiram planos para sua efetiva exploração por grandes instituições de pesquisa biotecnológica. Neste intuito, surgiu o Projeto da Diversidade do Genoma
Humano – HGDP, em 1991, que buscava a catalogação exaustiva da variabilidade
genética humana.
No Brasil, o povo Karitiana habitante do norte do estado de Rondônia foi alvo
da exploração científica e comercial do geneticista Francis Black, ligado ao HGDP.
Entre 1986 e 1987, o geneticista visitou a aldeia recolhendo amostras de sangue,
o que já em 1991 lhe rendeu a publicação de artigos relacionados às pesquisas
sobre o material coletado23.
20rifkin, op. cit.
21Rifkin, 1999.
22Frota-Pessoa, Oswaldo. Temas incandescentes. p. 135-160. In: De Boni, L. A. et. al. Ética e genética. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1998. (Filosofia).
23Velden, Felipe Ferreira Vander. Quando o sangue se torna mercadoria. Disponível em http:/www.comciencia.br/reportagens.
Acesso em 03/02/2007.
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192 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
Posteriormente, em meados de 1996 as amostras de sangue Karitiana e outras
dos Suruí, acabaram sendo depositadas no banco de células e DNA da Coriell Cell
Repositories - CCR, instituição norte-americana vinculada ao National Institute
of Health, a agência de pesquisas biomédicas dos Estados Unidos. As amostras
foram disponibilizadas a pesquisadores do mundo todo, podendo adquiri-las via
internet mediante pagamento24.
Outro caso aconteceu em 1993 quando a organização não-governamental
Fundação Internacional para o Avanço Rural, descobriu que os Estados Unidos
haviam solicitado patente internacional e norte-americana para um vírus derivado
da linhagem celular dos índios Guaymi do Panamá. Um pesquisador havia retirado
uma amostra de sangue de uma índia porque os membros dessa comunidade são
portadores de um vírus exclusivo que estimula a produção de anticorpos, potencialmente úteis em pesquisas relacionadas à aids e leucemia25.
Logo que tomaram conhecimento da solicitação de patente, os representantes
do Congresso Geral dos Guaymi promoveram um protesto público. A população e
o governo estavam chocados com o fato de um órgão científico tão respeitável ter
violado a intimidade genética da tribo tirando proveito comercial de sua herança
biológica. Por fim, os Estados Unidos retiraram sua solicitação de patentes.
Caso semelhante aconteceu em 1995 quando nos Estados Unidos foi concedida
patente para o vírus humano T-linfotrófico – HTLV-I, obtido de uma indígena
em Papua-Nova Guiné. Em fins de 1995, o caso culminou em uma declaração
assinada pelos cientistas presentes na Terceira Conferência Norte –Sul da Unesco sobre genoma humano, que expressou o interesse e compromisso dos países
do terceiro mundo na difusão e informação dos benefícios médicos decorrentes
do conhecimento do genoma humano, exigindo a contrapartida de participação
nos benefícios econômicos e comerciais decorrentes da investigação médica do
material biológico de seus integrantes26.
Estes são apenas alguns casos trazidos à colação para a elucidação da temática
demonstrando que, no intuito de gerar proventos a ciência e a indústria biotecnológica têm relegado o sentido da própria humanidade face o processo de coisificação dos seres humanos. Entretanto, ainda que alguns processos de concessão
de patentes tenham sido revertidos não sendo patenteados internacionalmente,
nota-se que a informação obtida através do material genético possibilita a pesquisa e a criação de drogas que podem ser patenteadas. Assim, ainda que não seja
reconhecido o patenteamento de dados genéticos humanos permanece carente
24 Id.
25 Rifkin, op. cit., p. 60.
26 Grisolía, Santiago. A biotecnologia no terceiro milênio. p. 16-22. In: Casabona, Carlos Maria Romeo (Org.). Biotecnologia,
Direito e Bioética. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
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Comunidades indígenas e bioprospecção: o desafio da formulação de consensos internacionais – 193
de tutela todo o processo de utilização da diversidade genética para a obtenção
de produtos. Nesta medida, urge a construção de parâmetros internacionais que
regulem o uso da genética humana, principalmente de comunidades vulneráveis
para a pesquisa biotecnológica.
4 A construção de consensos internacionais
para a proteção do patrimônio genético
A análise dos apontamentos relativos à apropriação e patenteamento de genes
humanos e do biopoder que fomenta a indústria da biopirataria, conduzem a afirmação de que a vida não é uma mercadoria. A extensão dos direitos de propriedade
intelectual sobre a vida reflete uma relação entre humanidade e natureza sumamente
questionável, segundo Pessini e Barchifontaine. Para eles, “a possibilidade de patentear o material genético nos conduz a um conceito reducionista e materialista
da vida, tomada como um mero agregado de substâncias químicas, que são casualmente capazes de se reproduzir e podem ser manipuladas e possuídas”27.
O debate ético em torno da genética humana, caracterizada pela proximidade
entre o genoma e a pessoa, desempenha papel essencial no respeito pela dignidade
do homem. Inicialmente, compreende-se dignidade da pessoa humana como a vida
bem sucedida, também pode referir-se ao sujeito individual, a pessoa enquanto
indivíduo; e ainda, pode estar relacionada à própria natureza genérica, ou seja, a
dignidade da espécie humana28.
Partindo do pressuposto de que o sujeito individual tem seu fim em si mesmo,
toda sujeição do homem para fins heterogêneos deve ser vista como uma violação
fundamental da sua dignidade. A referência de dignidade está ligada à individualidade e identidade do sujeito e toda anulação dessa individualidade deverá ser
vista como infração da dignidade.
A partir da premissa de que todo ser humano possui uma identidade genética
própria, compreende-se que o genoma humano, a série de genes da espécie humana como propriedade inalienável da pessoa, constituindo-se como componente
fundamental do patrimônio comum da humanidade29. Assim, o genoma humano
constitui um valor em si próprio que comporta a dignidade do ser humano como
indivíduo singular e a dignidade da própria espécie como um todo.
Essa ótica foi reconhecida na Constituição Federal de 1988, na Declaração
Ibero-latino-americana sobre ética e genética elaborada em Manzanillo, revisada
27 Pessini e Barchifontaine, op. cit. p. 215.
28 Honnefelder, Ludger. Genética humana e dignidade do homem. In: Ética e genética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. (Filosofia).
29 Clotet, Joaquim. Bioética como ética aplicada e genética. In: Ética e genética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. (Filosofia).
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194 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
em 1998, e na Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos da Unesco, de 1997. Ambas enfatizam a necessidade de garantir o respeito
à dignidade, à identidade e à integridade humanas e aos Direitos Humanos30,
impedindo que os indivíduos sejam reduzidos a suas características genéticas nas
pesquisas, respeitando a singularidade das comunidades e a diversidade do genoma
humano em sua totalidade31.
Cumpre destacar que a Declaração Universal do Genoma Humano e dos
Direitos Humanos da Unesco, reconhece tanto a soberania do Estado quanto
autonomia individual, através do controle estatal e do controle individual sobre a
amostra de DNA compreendido como patrimônio comum da humanidade. Assim,
defende a distribuição dos benefícios decorrentes das pesquisas científicas junto
à população a partir do acompanhamento do Estado32.
No âmbito nacional, menciona-se a Medida Provisória 2.186-16/2001 que
tece considerações sobre a proteção do conhecimento tradicional e do patrimônio
genético, identificando o sistema de responsabilidade. Neste particular, estabelece
que a remessa de patrimônio genético é de responsabilidade do destinatário e o
transporte do referido material é de responsabilidade do remetente.
Outro documento legal relacionado à temática é a própria Carta Magna Brasileira que, em seu artigo 225, parágrafo 1.º, inciso II, incumbe ao legislador a
proteção do meio ambiente, em face das possibilidades de manipulação do patrimônio genético do país. Segundo Diaféria, a previsão não faz nenhuma distinção
específica ao tipo de patrimônio genético que está sendo protegido neste dispositivo, tornando viável a interpretação de que o legislador tenha assumido uma
postura inovadora ao reconhecer o homem como parte integrante da natureza e
em pé de igualdade com os demais seres vivos33.
Para a autora, “a informação genética alcançada através de uma determinada
tecnologia é um bem de interesse difuso porque o interesse em ser beneficiado
pelos resultados científicos e tecnológicos é pertencente a um número indeterminado de pessoas”34. Com efeito, a natureza jurídica das informações resultantes da
investigação do genoma humano é compreendida como de interesse difuso, ou
seja, é interesse pertencente a um número indeterminado de pessoas que querem
preservar sua dignidade e receber os benefícios das descobertas biotecnológicas.
30Brauner, Maria Cláudia Crespo. Os dilemas do avanço biotecnológico e a função do biodireito. Revista Trabalho e Ambiente. v.
1, n. 1, jan.-jun./2002. Caxias do Sul: EDUCS, 2002.
31Diaféria, Adriana. Princípios estruturadores do direito à proteção do patrimônio genético humano e as informações genéticas
contidas no genoma humano como bens de interesses difusos. In: Limites: a ética e o debate jurídico sobre o acesso e o uso
do genoma humano. Rio de Janeiro, 2000, p. 172.
32Brauner, Maria Cláudia Crespo. Reprodução humana e clonagem: perspectivas éticas e jurídicas. p. 39 – 54. In: Vieira, Tereza
Rodrigues (Org.). Bioética e sexualidade. São Paulo: Jurídica brasileira, 2004.
33Diaféria, op. cit.
34Ibid. p. 177.
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Comunidades indígenas e bioprospecção: o desafio da formulação de consensos internacionais – 195
Esta noção é importante, porque cria a oportunidade de estabelecer um controle social para a preservação da dignidade da pessoa através de órgãos públicos
competentes e dos instrumentos previstos constitucionalmente para a tutela jurídica
desses interesses, como a ação civil pública e a ação popular.
A sensibilização sobre a efetividade de proteção do patrimônio genético é cada
vez mais oportuna, pois o desenvolvimento da ciência, cognitivo e manipulador,
obriga uma redefinição da noção de pessoa. Segundo Morin, a ciência não pode
ser mantida apenas no âmbito de discussão dos cientistas, e prossegue: “...é um
processo sério demais para ser deixado só nas mãos dos cientistas, dos estadistas
e do Estado. A ciência passou a ser um problema do cidadão, que deve justamente
levantar o debate, formular contradições e propor a moral provisória”35.
Ademais, os interesses em torno do material genético humano fazem convergir
três importantes áreas, quais sejam, a econômica, a científica e a social. Para que
possa haver certo grau de consenso entre elas é necessário que aconteça a assinatura de um acordo internacional sobre a apropriação do genoma humano e de
suas partes, definindo claramente as restrições relativas à apropriação do genoma
humano com a separação das patentes do que seja somente o descobrimento de
dados genéticos, com a permanência obrigatória no domínio público das seqüências totais e parciais de genes36.
Além disso, no âmbito nacional torna-se urgente o desenvolvimento de uma
lei específica que possibilite a consolidação de todos os aspectos relacionados às
atividades envolvendo genes humanos e as informações genéticas neles contidas,
evitando dessa forma, o conflito de disposições normativas que possam causar
lesões aos direitos da pessoa humana e, ao mesmo tempo, impedir a continuidade
do desenvolvimento científico e tecnológico nestes novos campos37.
A temática da utilização de informações constantes no Genoma Humano e
o patenteamento de genes deve ser composta em um âmbito de complexidade
onde tudo está contextualizado. É tempo de dedicar especial atenção à esfera
humana.
35 Morin, Edgar. Ciência com consciência. Primeira parte – itens 6-7. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 133.
36Bergel, op. cit.
37Diaféria, Adriana. Uma contribuição para os debates acerca do acesso, uso e remessa de material genético humano: indicativos
para regulamentação no Brasil. Oficina de trabalho do Projeto Ghente. Disponível em: www.ghente.org/entrevistas/Acesso, Uso
e Remessa de Material Genético Humano_diaféria.ppt. Acesso em 20/02/2007.
Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 1, n. 2, p. 185-198, jul.-dez. 2007
196 – Parte III: Direito Internacional do Meio Ambiente
5 Conclusão
Os problemas ambientais globais juntamente com a revolução da informação
e o crescimento da indústria biotecnológica que tem suas ações facilitadas pela
globalização econômica, contribuíram para alterar de maneira significativa as
relações internacionais nas últimas décadas.
O quadro delineado por tais fatores exige um sistema de atores misto integrado
por ONGs, corporações econômicas, Estados e a própria sociedade civil, reunidos
para a realização de um regime ambiental que estabeleça regras comprometidas
com a dinâmica real do mundo contemporâneo38.
A regulação efetiva de questões relacionadas a toda a humanidade deve buscar
a realização de um meio-termo, pois não pode permitir e nem proibir tudo. Para
isso, a participação social e o debate mais amplo são importantes, principalmente
para tentar viabilizar um controle eficaz. Uma das maneiras de controlar a difusão
da tecnologia é identificada por acordos internacionais, consensos mínimos, que
imponham regras para esse fim, os quais são de negociação e imposição extremamente difíceis39.
Nesse diapasão, o grande desafio para as próximas décadas consiste em elencar
como parâmetro determinante do desenvolvimento o valor de cada ser humano
nos modelos globais. Sob esta ótica, as estratégias deverão centrar-se na qualidade,
na viabilidade, no consenso, na observância de limites com a finalidade de respeitar
as novas tecnologias e, sobretudo a dignidade da pessoa humana, assim como a
solidariedade entre os países. De outra forma, os modelos econômicos contribuirão
somente para aumentar as disparidades e a desumanização do homem, pois o mercado deve integrar o crescimento econômico com o desenvolvimento humano.
Outra questão relevante diz respeito à busca de maior transparência da ciência, proporcionando maior circulação dos conhecimentos alcançados através
das pesquisas científicas, observando uma relação de reciprocidade entre países
desenvolvidos e países em desenvolvimento, para que as descobertas feitas a partir
da utilização de material biológico dos últimos, sejam disponibilizadas a esses,
sem custo adicional40.
Diante de tudo isso, conclui-se que a governabilidade global exige a orientação
dos atores numa direção mais cosmopolita que nacional. Ainda que, países tropicais
como o Brasil devam primar pela proteção do patrimônio genético que abrigam
38Viola, Eduardo. Relações internacionais: as complexas negociações internacionais para atenuar as mudanças climáticas. p.
182-197. In: Trigueiro, André. Meio ambiente no século XXI: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de
conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
39Fukuyama, Francis. Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução biotecnológica. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p.
196.
40Brauner, op. cit., 2002, p. 103.
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Comunidades indígenas e bioprospecção: o desafio da formulação de consensos internacionais – 197
investindo em suas capacidades tecnológicas nacionais, devem também compartilhar a riqueza genética com a comunidade internacional para que seus próprios
cidadãos possam participar dos benefícios auferidos pela pesquisa científica. Assim
como, os países desenvolvidos detentores do know-how técnico devem conduzir a
pesquisa no intuito de partilhá-la com as comunidades fornecedoras do substrato
genético, em uma completa relação de reciprocidade.
Para tanto, necessário faz-se promover e apoiar a participação efetiva de todos
os países interessados nos processos de negociação, revisão e administração dos
acordos internacionais; promover por meio de uma abordagem gradual padrões
internacionais de proteção ao meio ambiente; assegurar implementação efetiva,
plena e rápida dos instrumentos com força legal e facilitar as revisões e os ajustes
oportunos dos acordos internacionais pelas partes interessadas; e ainda, evitar
conflitos entre os acordos ambientais e os sócio-econômicos.
Assim, a realização de tais objetivos depende da participação efetiva de todos
os países, em particular os não desenvolvidos, pois as medidas ambientais voltadas
para os problemas globais devem basear-se tanto quanto for possível em consenso
internacional.
6 Referências
ADIERS, Cláudia Marins. A Propriedade Intelectual e a Proteção da Biodiversidade e dos
Conhecimentos Tradicionais. Revista da ABPI. n. 56, p. 45-65, jan./fev. - 2002.
BASSO, Maristela. Direito Internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000.
BERGEL, Salvador Darío. Genoma humano e patentes. In: Garrafa, Volnei; Pessini, Leo.
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