Heterotopias: cartografia possível de uma heterossexualidade

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Heterotopias: cartografia possível de uma heterossexualidade feminista
Alice de Barros Gabriel
UnB
Heterossexualidade radical; diferença sexual; ficção científica feminista
ST 56 - Novas possibilidades de configuração heterossexual
Para fins explicativos começarei o texto opondo duas posições que serão importantes para
pensar a heterossexualidade: a crítica lesbiana de Monique Wittig e o feminismo da diferença de
Luce Irigaray. Confesso que não estou segura de que essa oposição que é evidente em um primeiro
momento possa manter-se depois de um escrutínio mais demorado1. Mas um contraste inicial se faz
necessário.
Para Monique Wittig2 a diferença sexual é um conceito oriundo do que chama de
mentalidade hétero. De uma perspectiva lesbiana e materialista, ela entende não só a oposição
homens/mulheres em termos de luta de classe, mas vai além, afirmando que a heterossexualidade é
um regime político que se funda na apropriação da classe de mulheres, coletiva e socialmente pela
classe de homens. Diferença sexual e heterossexualidade estão absolutamente ligadas e a serviço da
manutenção da hierarquia entre homens e mulheres.
Já Luce Irigaray3 é conhecida como a feminista da diferença, por seu projeto de radicalizar a
diferença sexual. No entanto, se a princípio parece que a crítica de Wittig se aplica à Irigaray (como
responde Rosi Braidotti a sua entrevista por Judith Butler4) num segundo momento me parece que
elas se aliam, para depois se afastar novamente. Seu ponto de partida, apesar dos lugares de fala
distintos é bem similar. Ambas partem de uma aproximação crítica à idéia de diferença sexual, e a
heterossexualidade como um dos lugares privilegiados da assimetria social (e simbólica) entre
homens e mulheres, mas dão respostas muito diversas ao problema que penso ser central para o
feminismo: como lidar politicamente com a diferença sexual, levando em conta que ela é o lugar (
topus ), o território da hierarquização social entre homens e mulheres (não apenas)?
Enquanto Wittig responde a essa questão propondo uma destruição das categorias de
oposição, uma fuga do território da diferença sexual, Irigaray chama a diferença sexual de Wittig de
(in) diferença sexual, uma noção “infectada pela metafísica falogocêntrica”. Podemos entender o
conceito de falogocentrismo como uma derivação da noção de logocentrismo explicada nos
seguintes termos por Elizabeth Grosz no glossário de seu livro Sexual Subversions:
2
designa a forma dominante da metafísica no pensamento ocidental (...) um sistema de pensamento
centrado na dominância de uma lógica da presença singular. Um sistema que procura, para além dos
signos e representações, o real e o verdadeiro, a presença do ser, do conhecimento e da realidade para
a mente – um acesso aos conceitos e coisas em sua forma pura e sem mediação. Sistemas
logocêntricos se apóiam numa lógica de identidade fundada na exclusão e polarização binária da
diferença.5
A noção de “falogocentrismo” acena para a estreita relação metafórica entre o logos e o
phallus, opostos ao mythos e a hystera. Centrada no masculino, a percepção ocidental de diferença
sexual está mais próxima a uma noção de dicotomia do que de diferença: no par
masculino/feminino o segundo é definido apenas por oposição ou falta de caracteres que estão
presentes no primeiro. Assim, problema da diferença sexual falogocêntrica, ou da indiferença
sexual é que ela é um monismo sexual disfarçado; todas as peculiaridades, singularidades,
especificidades estão postas em relação a uma mesmidade que é o masculino, a norma universal de
humanidade. Irigaray chama esse processo de especula(riza)ção fazendo um trocadilho com a
prática filosófica por excelência e a metáfora da mulher como espelho do narciso homem- que
remonta pelo menos à Simone de Beauvoir6.
Daí Irigaray dizer que a diferença sexual não existe propriamente no pensamento ocidental.
Só existe um sexo (um sexo enquanto anatomia sexual, uma vez que a genitália feminina é pensada
também como falta, mas também uma libido, e um desejo) para a metafísica – o sexo masculino. E
a organização social e econômica resultante do falogocentrismo é uma heterossexualidade que tem
uma homosociabilidade (ou homosexualidade?) como pano de fundo, como seu princípio
organizacional. Isso parece uma inversão dos termos da crítica de Gayle Rubin à antropologia de
Levi-Strauss. Segundo a autora de Traffic in Women, a homossexualidade seria um tabu anterior e
já pressuposto pelo tabu do incesto que funda a sociedade baseada em troca de mulheres. No
entanto Irigaray defende que a troca de mulheres é fruto de uma sociedade homossexual (hom(m)osexualidade), e o que ela quer salientar é o fato das mulheres estarem excluídas do processo de troca
enquanto sujeitos; aí elas só entram enquanto mercadoria, enquanto propriedade. E a troca funciona
para manter vínculos de afetividade e sociabilidade entre homens ou grupos de homens. Irigaray
defende essa posição em dois artigos curtos: “mulheres no mercado” e “as mercadorias entre elas
mesmas”, neles figuram a análise marxista dos sistemas econômicos lado a lado com a idéia da
troca de mulheres, afinal, “exogamia é um assunto econômico”. Para quem nunca teve a experiência
de ler um livro de Irigaray posso dizer que ela possui uma estratégia que eu considero especial:
insere textos pertencentes à tradição filosófica no meio de sua escrita não apenas para explicitar um
discurso falogocêntrico que paire como pano de fundo desses textos, mas também para dialogar ou
até mesmo deslocar seus conceitos, usando-os como ferramentas para falar de outras questões. Em
“as mulheres no mercado” ela usa Marx para falar sobre a troca de mulheres, elas, como as
3
mercadorias. Mas, Irigaray se pergunta no final desses dois artigos que se complementam, o que
aconteceria se as mercadorias se recusassem a ir ao mercado? Ou se estabelecessem algum tipo de
troca entre elas mesmas? Ou em outras palavras: o que acontece com um sistema baseado na
opressão sócio-econômica de mulheres, quando e se essa opressão for desarticulada? Isso requereria
uma nova forma de se relacionar com natureza, matéria, corpo, linguagem e desejo. Irigaray
entende que sua saída pode soar utópica, porque indica um caminho ainda não trilhado
completamente, aberto para a construção coletiva, apostando na experiência vivida que excede a
teoria. Eu proponho que a chamemos de heterotópica, tanto por estar centrada na idéia de diferença
(hétero), como por propor a criação de um outro lugar não hegemônico, de um espaço alternativo
para pensarmos a diferença sexual (e também a heterossexualidade).
A crítica à heterossexualidade – e a necessidade de pensar e de construir uma
heterossexualidade em outros termos – se faz necessária por representar o lugar privilegiado do
descompasso e da assimetria entre homens e mulheres. A não ser que exista uma aproximação ética
à diferença, vidas de mulheres, mas também outras vidas (as vidas LGBTT, ou vidas de pessoas
negras ou de populações precarizadas pelo capitalismo, etc) serão invivíveis. Colocando a questão
nesses termos, parece se aproximar muito da noção defendida por Butler em seu último livro sobre
questões de gênero e teoria queer7, no qual argumenta por uma ampliação da norma de
inteligibilidade dos corpos. Mas também acredito que possamos aproximar essa noção a destruição
das categorias de oposição proposta por Wittig, mesmo que pareça contra-intuitivo. Wittig defendia
que as lésbicas não eram mulheres porque não estariam em uma relação dialética de oposição
(heterossexual) aos homens; a idéia de re(ou des?)estruturação da diferença sexual de Irigaray é
justamente libertar definição de “mulheres” de uma oposição especular ao masculino, tentar
articular o inarticulável para uma economia centrada no falo.
Indo do macro ao micro, o projeto de diferença sexual é também uma tentativa de reconfigurar nossa sexualidade, pra fora da idéia de ser um instrumento para o prazer masculino (que
é altamente auto-centrado, auto-erótico, mas precisam de uma mediação para o prazer, a mão ou a
mulher, que é substituta da mão), uma vez que nós, mulheres, sob o jugo da mesmidade sexual
temos uma sexualidade satélite, que gira ao redor do desejo masculino. Re-significar a diferença é
também correr atrás de construir (construir e não resgatar) um desejo que seja nosso, algum tipo de
auto-erotismo. Essa emancipação erótica é um dos pilares para a construção de uma
heterossexualidade radical.
Acredito que a ficção escrita por mulheres tem sido um lugar importante de imaginação
política e de articulações de saídas possíveis (ou imaginadas) para problemas teóricos ou políticos
4
“reais”. Em Lilith’s Brood, de Octavia Butler8, a diferença aparece, como na saída utópica, ou
melhor heterotópica de Irigaray como o motor de uma nova economia de desejo que estaria baseada
não na propriedade, mas na proximidade. Esta trilogia de ficção cientifica, informada por debates
contemporâneos sobre diferença, relevante para discussões sobre feminismo, racismo, antiespecismo, narra o encontro entre seres humanas e seres extraterrestres chamados oankali. Sem
entrar nos pormenores da trama, devo explicitar que se trata de uma narrativa sobre o surgimento de
uma nova linhagem de indivíduos meio humanas, meio oankali, bem como alguns aspectos da
espécie oankali – que significa trocadoras, mas num sentido bastante diverso daquele de troca de
mulheres; oankali trocam a si mesmas, sua essência, seu material genético, sua comunidade – que
apresenta não dois mais três sexos: machos, fêmeas e oolois (esses últimos responsáveis pela troca
genética
entre
espécies
e
pela
saúde
de
suas
parceiras
sexuais)
Oankali funcionam numa economia de abundância, e não de falta, como é o caso entre humanas;
penso que podem ser relevantes para pensarmos em um outro tratamento da diferença por alguns
motivos: primeiramente, porque a diferença é o motor (sexual inclusive) que impulsiona as
conexões entre indivíduos e comunidades, a diferença é uma força de atração que arrasta um
oankali a outro ser, que os liga necessariamente; também a diferença é o fim esperado dessas
conexões, a conexão sexual com indivíduos diferentes gera diferenças tanto na prole (boa parte da
sexualidade oankali tem finalidade reprodutiva, se não imediatamente, ao menos com um horizonte
de reprodução em vista. Mas nenhuma relação sexual existe sem prazer) como nos próprios
indivíduos envolvidos. No último livro da trilogia conhecemos a história do primeiro ooloi
construto (ou seja mestiço de humanas e oankali), e é a primeira vez que uma narrativa do ponto de
vista de umx9 ooloi é feita no livro; elx nos conta dessa atração incrivelmente forte que humanas
(não só humanas, mas outros organismos em geral) especialmente humanas com algum distúrbio
genético ou alguma doença desconhecida exercem sobre ele, gerando uma compulsão por tocar e
curar – que é praticamente sinônimo de conhecer o problema e também o funcionamento do
organismo e poder aplicar em seu próprio corpo o que aprendeu – e também da habilidade que ele
desenvolveu (uma novidade na espécie) de modificar o seu corpo para ser mais atraente ou menos
assustador para outros indivíduos.
Donna Haraway10 já usou oankali como inspiração para seu mito político de origem
ciborgue, pelo caráter rizomático de sua conexão ou comunidade. Mais recentemente abandonou
seus ciborgues para falar das conexões trans-espécie entre mulheres e suas companhias de outras
espécies usando um conceito muito bonito de “alteridade significativa”11.Para mim importa a idéia
5
do toque que modifica; porque só de uma perspectiva falogocêntrica pode-se ficar indiferente à
diferença.
1
Esse texto faz parte de uma tentativa de aproximar mais e mais as duas posições que é parte substancial do meu
trabalho de mestrado intitulado, ao menos provisoriamente: A Casa da Diferença, em referência ao poema de Audre
Lorde.
2
WITTIG, Monique. The Straight Mind. 1992
3
IRIGARAY, Luce. Speculum of the Other Woman. Cornell University Press: New York,1974.
4
El feminismo com cualquier outro nombre: Judith Butler entrevista a Rosi Braidotti. In: BRAIDOTTI, Rosi.
Feminismo, Diferencia Sexual y Identidades Nómades. Barcelona: Gedisa, 2004.
5
GROSZ, Elizabeth. Sexual Subversions: three french feminists. Allen &Unin,1989. p. xx (minha tradução)
6
Se a mulher foi, muitas vezes, comparada à água, é entre outros motivos porque é o espelho em que o Narciso macho
se contempla; debruça-se sobre ela de boa ou de má-fé. Mas o que, em todo caso, ele lhe pede é que seja fora dele tudo
o que não pode apreender em si, pois a interioridade do existente não passa de nada e, para se atingir, ele precisa
projetar-se em um objeto. A mulher é para ele a suprema recompensa porque é sob uma forma exterior que ele pode
possuir, em sua carne, sua própria apoteose. (...) Tesouro, presa, jogo e risco, musa, guia, juiz, mediadora, espelho, a
mulher é o Outro em que o sujeito se supera sem ser limitado, que a ele se opõe sem o negar. Ela é o Outro que se
deixa anexar sem deixar de ser o Outro. E, desse modo, ela é tão necessária à alegria do homem e a seu triunfo, que se
pode dizer que, se ela não existisse, os homens a teriam inventado. (DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. 1980.
p.230)
7
BUTLER, Judith. Undoing Gender. Routledge: New York,2004
8
BUTLER, Octavia. Lilith’s Brood. Warner Books:New York, 1989
9
Nesse parágrafo tento usar uma linguagem neutra para falar do sexo neutro oankali. Por isso suprimi o uso das
marcações de gênero, como finalizar as palavras em “a” ou “o” substituindo por “x”. No resto do texto uso o feminino
genérico, ou palavras “neutras” para fugir de uma linguagem excludente do feminino.
10
11
HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. Routledge: New York, 1991
HARAWAY, Donna. A Companion Species Manifesto: Dogs, people and significant otherness. Prickly Paradigm
Press, 2003.
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