SUSTENTABILIDADE COMO PROJETO PARA A VIDA ASSOCIADA. Oklinger Mantovaneli Jr. Doutor em Sociologia UNESP Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau (FURB) Rua Antônio da Veiga, 140 - CP 1507 - 89010-971 Blumenau (SC) Tel.: (47) 321-0507 email.: [email protected] Este ensaio procura abordar argumentos capazes de aproximar a ideia de sustentabilidade ao debate sobre gestão cidadã de políticas. A principal preocupação é apresentá-los em favor de uma perspectiva de projeto civilizacional apoiado não apenas em premissas normativas. O que caracteriza fortemente o debate sobre o ecodesenvolvimento, desde sua origem, e do mesmo modo a apresentação da questão da sustentabilidade desde o relatório Brundtland e suas repercussões propositivas. Por fim, o artigo procura contribuir para a superação das abordagens que sugerem um reducionismo modelístico que vem demarcando parte da literatura e dos estudos sobre o tema, retomando os parâmetros éticos que sempre presidiram este tipo de preocupação na vida associada e apontando para uma perspectiva mais ecocêntrica e vivencial. Palavras-Chave: sustentabilidade, ecodesenvolvimento, projeto, vida associada, gestão de políticas públicas. Área Temática: Ciências Sociais e Desenvolvimento. Formatado: Fonte: Não Negrito Formatado: Fonte: Não Negrito SUSTENTABILIDADE COMO PROJETO PARA A VIDA ASSOCIADA. Ecologia, Governabilidade Ecológica e Desenvolvimento Sustentável “...é no “meio ambiente” que todos vivemos; ‘desenvolvimento’ é o que todos fazemos ao tentar melhorar o que nos cabe neste lugar que ocupamos. Os dois são inseparáveis”. (Gro Harlem Brundtland, 1992). Neste capítulo são desenvolvidos argumentos sociológicos capazes de aproximar a idéia de sustentabilidade do debate sobre gestão cidadã de políticas. Este início de século representa um momento de grande definição histórica para a humanidade, diante da consciência crescente de que o impacto da ação humana sobre o ambiente biofísico, social e psicocultural vem afetando a saúde e mesmo a sobrevivência no planeta. Difunde-se, cada vez mais, “a idéia de que é preciso refazer os elos entre a pessoa e o planeta ameaçados por inimigos comuns[...]”. Esta idéia “[...] serve então, hoje em dia, como elemento de união a inúmeros componentes da sensibilidade ecológica no mundo” (ALPHANDERY; BITOUN & DUPONT, 1992, p. 34), embora a ecologia não seja e não deva ser vista como uma disciplina ou um modo unívoco de compreender o mundo. Os impasses que contemporaneamente vêm caracterizando uma grande crise ambiental rever o originam-se de, e propagam-se por, um padrão de conduta humana que marcou a modernidade no campo da ciência, da moral, da tecnologia e da política. São, ao mesmo tempo, causa e efeito de um jogo de domínio antropocêntrico sobre o homem e a natureza; onde o darwinismo social, o materialismo e uma ética menor, como diria Freire (1997), a ética do lucro, delimitam os parâmetros de desenvolvimento dos países ricos e pobres, ou chamados subdesenvolvidos. Estes últimos países incorporam o ônus da miséria e submissão colonialista ao sistema econômico, ou a estrutura de poder internacional dos últimos séculos. Em última instância, uma aposta na anomia social, no sentido durkheimeano do termo, como se a já antiga “mão invisível”, de Adam Smith e tantos liberais, fosse capaz de substituir o julgamento humano sobre as questões que afetam o próprio homem, suas regras de conduta e o meio em que vive. Este quadro ganha especiais características no contexto globalizado deste fim de milênio, sobretudo onde as grandes corporações transnacionais constituem um poder à parte, e onde os Estados Nacionais, diante do novo contexto da “acumulação flexível” do capital prostram-se incapazes de formular políticas que respondam aos efeitos negativos da globalização. Assim, ao lado de um Estado em crise, flui a tentativa de se legitimar um campo delimitado pela não-política em favor do “laissez faire”, em favor do mercado. Amstalden (1996) sintetiza este panorama: “A situação é complexa. De um lado existe uma crise ambiental grave, que demonstra o esgotamento de um sistema produtivo em termos ambientais e a necessidade de sua substituição por uma outra forma de organização produtiva, sócio-econômica, tecnológica e cultural. Para atingir essa outra forma é preciso, como vimos, além de se alterar profundamente as formas falidas de produção, fortalecer o Estado e a sociedade civil, criando-se a solidariedade, a cidadania ou o terceiro poder. Do outro lado, porém, o capitalismo com sua configuração atual, que desarticula a sociedade civil e o Estado; ‘flexibiliza’ a produção e elimina postos de trabalho, além de criar uma produção e uma cultura compostas de signos, bens e imagens voláteis, atua fortemente, por estas razões, no sentido de bloquear o fortalecimento estatal, a cidadania e a solidariedade necessária para tal cidadania, para não falar da cultura que lhe acompanha e inviabiliza as teorias de nível macro, dificultando projetos comuns que levem a articulação de grupos sociais que buscam o desenvolvimento sustentável” (p.65). É possível compreender, portanto, que são muitas as dúvidas e os dilemas que se apresentam. Rattner (1995, p.116) em um de seus artigos, ilustra tal contexto, acrescendo-lhes observações e questionamentos, da seguinte maneira: “Entre o paroquialismo local primitivo e a acumulação poderosa em escala global, não existiram outros valores capazes de mobilizar e motivar os membros da sociedade - elites e massas - para humanizar as condições de existência para todos e, assim, restaurar a dignidade e o sentido da vida, na superação do antagonismo entre cooperação e competição; entre o nacionalismo e capitalismo, instituições que garantem e ameaçam ao mesmo tempo, a sobrevivência da espécie humana? Nas sociedades contemporâneas, votos e preços constituem condições necessárias mas não suficientes para um convívio democrático sustentáveli, quando acompanhadas por desregulação e competição extremas que deixam o poder público impotente diante os lances e investidas de poderosos interesses privados e corporativos. Em outras palavras, seremos capazes de construir formas de organização e de relacionamento social que comportem, ao mesmo tempo, um mínimo de planejamento, orientação e coordenação com o máximo de espaço para a criatividade de indivíduos, solidários e responsáveis? Estas dúvidas e conseqüências, expressas em linhas gerais pelos dois autores, se originam da presunção de uma governabilidade ecológica onde esta não somente inexiste, mas se vale de parâmetros incapazes de criá-la ou reproduzi-la, já que a mesma se fundamenta na própria complexidade do ecossistema face ao “modelo de desenvolvimento econômico dominante (capitalista industrialista)” (LEIS, 1995). Entretanto, a busca deste capital, qual seja, a capitalização humana diante de suas incertezas e incapacidades tem levado as nações modernas a investirem contemporaneamente, em iniciativas que tragam à tona essas problemáticas. Por esta razão se realizaram e ainda se realizam tantas conferências internacionais. Acredita-se que a mais importante preocupação presente nas discussões sobre o pensamento ecológico mundial seja com a postura ética e a base epistemológica, que fazem do homem moderno um ser postado diante da natureza, como um observador, um utilitarista, e nunca como parte integrante e indissolúvel de um ecossistema. Para efeito deste trabalho, entende-se que a ecologia, em linhas gerais, pode ser organizada em dois grandes discursos a seguir delineados. Classifica-se o primeiro como o da continuidade da vertente racionalista, cujos impactos sobre a política, os mecanismos de gestão e as políticas públicas já foram demonstrados. A este discurso poder-se-ia agregar, com suas devidas peculiaridades, a visão empresarial que compreende o meio ambiente como um novo diferencial competitivo e aposta na racionalidade de mercado como ente capaz de promover o desenvolvimento sustentável. Sem dúvida, um conceito de sustentabilidade bastante questionável, e tentar-se-á demonstrar, aqui, o porquê. A este discurso agrega-se, também a leitura cientificista, ou aquela que Alphandéry, Bitoun & Dupont (op. cit., p. 20) denominaram de “utopia científica”. Esta compreende a crise ambiental oriunda da ação humana sobre o ambiente biofísico e, em certo sentido, sobre a própria organização social; entende, portanto, que cabe à ação humana a resolução desta crise. Aceita o “advento da civilização pós-industrial” por meio de “uma visão futurista da natureza, ecossistêmica, cuja gestão exigiria sempre mais ciência e tecnologia”, de “manipulações genéticas” e da “artificialização do vivo”. Nesta primeira vertente, o que impera é a racionalidade formal, funcional ou instrumental, ou ainda o primado da ciência em ato na condução das alternativas. O segundo discurso contém aquela vertente que seria aqui denominada substantiva ou substantivista; ou seja, que se espelha justamente na crítica ao mecanicismo cientificista e ao reducinismo de mercado, buscando a recuperação da noção clássica de racionalidade (RAMOS, 1989) para construir alternativas. A esta vertente agregar-se-á, em primeiro lugar e com algumas restrições, a visão biocêntrica, sobre a qual se constrói o ecologismo radical, amparado, segundo Alphandéry, Bitoun & Dupont, pelo debate em torno de uma “utopia restauradora”; em segundo lugar, a visão ecocêntrica, sobre a qual se inscreve a vertente ecodesenvolvimentista de Sachs e o desenvolvimento sustentável proposto pela ONU. Ver síntese na figura a seguir: Figura 1 – Organização do Discurso Ecológico Visão Empresarial Racionalista/Utilitarista Leitura Cientificista Duas Vertentes Visão biocêntrica (em parte) Substantiva Ecodesenvolvimento Visão Ecocêntrica Desenvolvimento Sustentável Fonte: síntese sobre os autores trabalhados neste ensaio. As restrições ao biocentrismo inserem-se na impossibilidade de resolver a questão humana, propondo-se apenas o preservacionismo dos recursos biofísicos, por ser uma linha de conduta que desconsidera a realidade histórica e o desenvolvimento civilizacional como ponto de partida, caindo no niilismo. Quanto à “utopia restauradora”, esta perspectiva apregoa uma outra via histórica, que se vale da “tradição, da sacralização da natureza e da naturalização dos vínculos sociais, as particularidades de identidade e territoriais” (ALPHANDÉRY, BITOUN & DUPONT, 1992, p. 11). A ecologia seria, pois, uma alternativa à exclusão e ao desespero da sociedade pós-industrial. Não obstante, entende-se ser esta uma proposta que pode degenerar-se, caso não seja capaz de incorporar a noção de “comunidade humana universal” (RAMOS, 1965), e inclusive oferecer novo fôlego aos ideários nazi-facistas, xenófobos e racistas, como já se observa em parte da Europa e dos EUA. A sociedade industrial (POLANYI, 1947) delimitou a relação homem-homem e homem-natureza pelo princípio do utilitarismo. A sociedade moderna construiu e vem aprofundando o princípio maior de sua de visão de mundo, qual seja, o economicismo; este, o grande parâmetro para a ação e a produção humana. Tudo quanto existir no planeta se traduz em recursos a serem apropriados e explorados, inclusive o próprio homem. A Filosofia e as ciências, enquanto criação humana, não escaparam desta tentativa de apropriação. À luz desse ideário, a noção ocidental moderna da idéia de desenvolvimento caminha ao lado ou a reboque da idéia de progresso, e esta última, após a revolução industrial do século XIX, passou a estar intimamente associada à produção ilimitada de mercadorias. A noção do que seria a qualidade de vida, seguindo este modo de compreender as coisas, estaria intrinsecamente relacionada à satisfação material dos indivíduos. Esses fatores conduziram a um conceito específico de desenvolvimento, tendo enquanto postulado a: “onipotência da técnica, a racionalidade dos mecanismos econômicos” e a perspectiva evolucionista de que “tanto o homem quanto a sociedade estão naturalmente predestinados ao progresso, ao crescimento, e que ambos podem ser manipulados de diversas maneiras para serem conduzidos até este ponto” e por fim “a ilusão do conhecimento científico em saber-se próximo à verdade absoluta”(MIOTTO, 1996, p. 77). As nações vistas sob essa perspectiva como não desenvolvidas, ou em vias de desenvolvimento, deveriam passar por uma profunda transformação cultural, social e política para que pudessem alcançar o apregoado nível de progresso dos países desenvolvidos. O caminho seria o da busca de um desenvolvimento sustentado ou auto-sustentado. De fato, os tais vínculos tradicionais vêm sendo desafiados a todo instante, como pode-se observar. Entretanto a autonomia econômica das nações, sobretudo daquelas em desenvolvimento, nunca foi tão questionada como hoje. A velocidade com que as mudanças acontecem na vida dos indivíduos tem deixado um vácuo de referências, e, por conseguinte, o acompanhamento cognitivo e psicológico, individual e social, que determina a capacidade de absorção das transformações tem sido deixado para trás. Há, portanto, uma franca diferença, historicamente amparada, entre os tão difundidos conceitos de desenvolvimento sustentado ou autosustentado e o desenvolvimento sustentável. Este último será discutido mais adiante. Assim, o meio ambiente tem sido tratado pelo homem moderno como um mero negócio de mão única. O referencial elaborado nos últimos séculos e sobretudo na segunda metade do século XX, com a expansão urbana e a destruição de vínculos importantes de solidariedade secularmente constituídos, tem feito do homem um ser distante de si, da natureza e dos seus iguais. Os fatores acima narrados remetem ao conceito de "ecologia de dividendos" -'dividend ecology'trabalhado por Grange (1977). Para este autor, um dos problemas cruciantes de nosso tempo tem sido o modo como o homem se posiciona diante do ecossistema; um posicionamento exógeno, de quem não se insere nas questões da ecologia e muito menos se responsabilizaii por elas. Seria o posicionamento ou a linha de análise tantas vezes observada, inclusive em pessoas que se dizem militantes ecológicos do tipo: “aquilo é a natureza, isso é o homem”; sem dúvida, uma perspectiva coerente com a vertente racionalista. Aproveitando as idéias de Grange, pode-se afirmar que a ecologia de dividendos tem sido o mote maior dos modelos de desenvolvimento das nações da era moderna. Por outro lado, o mesmo autor demonstra a necessidade de um posicionamento renovado, ao qual denomina ‘foudational ecology’ ou "ecologia profunda". Este novo parâmetro incorpora o homem como parte indissociável deste macrocosmo. Falar do homem é falar do seu ambiente, da natureza; acabar com a natureza é exterminar a própria espécie humana. É um discurso dramático e para muitos desinformados, panfletário, mas real. Não é sem razão que o atual contexto da miséria e da exclusão ocupa importante centralidade nesse debate. Portanto, a rigor, política social e política ambiental são conceitos indissociáveis, o que confere mais uma contribuição à discussão contemporânea sobre políticas públicas e análise política. Como fundamento de toda esta problemática cada vez mais insurgente, revela-se a seguinte constatação: "A causa profunda da crise não é [tecnológica] nem científica, é cultural, filosófica" e também "civilizacional e espiritual" (UNGER, 1992, p. 11). Leis ressalta ser fundamental a construção de um processo e uma ação política em sentido renovado, que dê conta destas questões tão complexas e globais que ora se apresentam, para que um dia se possa falar em governabilidade ecológica. Em sentido mais acadêmico, fala-se em: “um apelo para uma nova teoria da ação social, para uma nova fundação da ordem política”. “ ...a governabilidade ecológica global demanda a emergência de uma visão consensual do passado e do futuro para poder realizar os complexos “trade-offs” necessários entre a produção econômica, o consumo, o crescimento populacional e a qualidade ambiental, e assim tornar-se viável a transição do modelo de desenvolvimento atual para um outro que seja sustentável. Por esta razão, a política ambiental, entendida em sentido amplo, não pode ser separada de uma discussão dos valores mais profundos que regem a sociedade humana” (LEIS, 1995, p.17). A Questão da Sustentabilidade As incongruências anteriormente apontadas se verificam não somente no nível interno da política dos países, mas na própria prática política internacional. O processo de elaboração da Agenda 21 na ECO 92, no Rio de Janeiro, deixou isto bastante evidenciado. O discurso da globalização apenas ressoa com a força desejada, quando as questões tratadas são de fundo econômico e de interesse das grandes potências (Estados e/ou empresas). Quando o fundamento é interdisciplinar, ou seja, quando se insere a discussão no terreno dos necessários trade-offs, as limitações se multiplicam. Em outras palavras, embora a construção de uma ordem transnacional globalizada seja uma face inegável do presente, a verdade é que “os atores políticos continuam agindo e pensando na perspectiva de uma ordem internacional” (acreditando, portanto, na soberania nacional) como o único imperativo absoluto (LEIS, 1995, p.19), e do mesmo modo são conduzidas as análises que balizam as políticas. Dessa realidade se depreende a seguinte lição. A construção e/ou o desenvolvimento de uma sociedade mais justa sem formar indivíduos para este projeto, parece algo desconexo e impraticável. Um mundo melhor, a partir de parâmetros tão contraditórios, sem uma postura séria e senhora de seu tempo (senhora no sentido do real engajamento) é praticamente impossível construir. Nestes termos, não há a menor possibilidade de que a ação social ou administrativa, condutora do processo de desenvolvimento ou da mudança social se fundamente em uma análise política, capaz de considerar criticamente o fato social que a deveria referenciar. Isto justifica o contexto de atraso e dependência em que as nações em desenvolvimento se encontram submersas. Complementarmente, a opção industrial assumida alimentou um modelo de urbanização forçada, em escala internacional, onde o camponês fora expulso de suas terras pelas mesmas proposições gananciosas (LUTZEMBERGER, 1986). Surgiram cidades como verdadeiros expurgos sociais, carentes de saneamento, moradias, escolas e empregos humanamente dignos. Como afirma Löwy (1995), tudo se estabelece como fruto de uma visão de mundo onde a economia devora a moral e a capacidade psicossocial de apreensão ética da realidade. Falar sobre desenvolvimento sustentável é, portanto, inevitavelmente discutir ética. Para muitos autores, o momento presente revela uma espécie de crise de alternativas que acompanha as insuficiências das proposituras nacional desenvolvimentista, neo-liberal e socialista para o desenvolvimento (LEITÃO, 1994). Como afirma Castoriadis (apud Miotto, 1996, p. 77): “a crise do desenvolvimento é, na realidade, a expressão da crise que fundamenta os seus postulados”. Por isso mesmo, talvez exista agora, mais do que nunca, espaço para a formulação de um projeto de vida associada onde tais perspectivas possam ser realisticamente incorporadas. Mesmo porque, há uma questão chave para a cidadania que pode ser expressa na seguinte frase: “(...) até o momento não existe nenhuma comprovação empírica de que a alocação de recursos que os indivíduos preferem como cidadãos coincida com a alocação que lhes chegam por intermédio do mercado. Do mesmo modo, não existe nenhuma garantia de que a ‘paz perpétua’ possa ser alcançada por meio da auto-regulação do mercado” (LEIS, 1995, p.23). Justamente para se pensar fórmulas de desenvolvimento em novas bases conceituais, com freios, com noções claras de limites e de medidas é que se discute o ecodesenvolvimento e/ou o desenvolvimento sustentável. Estes partem da tentativa de construção de uma nova moral de respeito e associação com a natureza, ao invés do sentido predatório e sem limites. A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), sob a presidência de Gro Harlem Brundtland, reuniu, de 1983 até 1987, inúmeros estudiosos do tema e realizou um enorme trabalho em âmbito internacional sobre a questão. O documento apresentado ficou conhecido como Relatório Brudtland, e é considerado, na literatura internacional, um clássico na definição do conceito de desenvolvimento sustentável. Embora possua também os seus limites, sua conclusão fundamental foi a compreensão conceitual de que “o desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades” (CCMAD, 1991, p. 46), o que remete novamente à noção de responsabilidade. De acordo com este documento, esta modalidade de desenvolvimento fundamenta-se em dois conceitos-chave, quais sejam, necessidade e limitação: “O conceito de ‘necessidades’, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras”(CMMAD, 1991:46). A concepção de desenvolvimento hoje hegemônica fundamenta-se na repetição sociológica (RAMOS, 1965), em grande medida expressa pela visão evolucionista e antropocêntrica de mundo. O evolucionismo pressupõe a idéia de atraso e progresso, situando este segundo, em geral distante da realidade histórica em questão, mais objetivamente em um locus ditado aprioristicamente, segundo parâmetros economicistas e etnocêntricos. Sem dúvida, sob a perspectiva das nações em desenvolvimento é um conceito arraigado a um modo colonial e dependente de compreender a questão. Por sua vez, o antropocentrismo tem sido combatido por uma outra visão, tão radical quanto a primeira, qual seja, a do já citado biocentrismo, que propõe a necessidade de manter a natureza intocada. Ambas as visões são equivocadas. A primeira é a autodestruição do homem e do mundo em que vive; a segunda é a desconsideração de que o ser humano para sobreviver, como qualquer outro ser do planeta, precisa servir-se, inteligentemente, dos recursos da natureza. A grande questão do desenvolvimento é justamente pensar o que viria a ser o modo de servir-se com inteligência da natureza e, de acordo com os propósitos deste estudo, fazer isto democraticamente; portanto, formando a cidadania para este desafio. Partindo da compreensão de que o não desenvolvimento não soluciona o mau desenvolvimento, a visão ecodesenvolvimentista, ou sustentável, vem preencher a lacuna entre as duas proposições anteriores. Ela contém um não ao ecologismo radical, e uma, ainda mais rotunda, negativa à manutenção da atual desagregação de nossa maior fonte de vida, pela ética do lucro e da ganância, sem “capitalização” e governabilidade ecológica. O desafio da superação desse impasse sinaliza um novo caminho, onde, mais do que nunca as políticas públicas, o Estado e a sociedade organizada possuem e demonstram um renovado e fundamental papel no sentido de delimitarem o espaço que as clivagens econômicas ocuparão na vida social. Por esta razão, se nas últimas décadas o mundo se deparou com uma crise a novas alternativas para o desenvolvimento, o presente ensaio parte da compreensão de que, hoje, a perspectiva da sustentabilidade vem descortinando proposituras cada vez mais claras e sólidas, ainda que esta perspectiva não se proponha como uma solução única, hermética e completa. E mais do que isso, proposituras que permitem um diálogo com práticas sociais presentes que permitem uma gama diversa de aprofundamentos temáticos. Acredita-se que a satisfação das necessidades do homem pela gestão, em seu sentido mais profundo, enquanto visão de mundo renovada e renovadora, tenha condições de contribuir para uma compreensão mais ecocêntrica de inúmeras questões fundamentais ao desenvolvimento civilizacional (SAFIATTI NETO, 1992). Isto significa que sob o signo deste projeto, que aos poucos desponta, as estratégias de gestão e planejamento de políticas públicas para o desenvolvimento econômico e social necessitam passar pelo conhecimento do sujeito desta ação e pela sua capacidade cognoscitiva, em real consonância com as dimensões, social, econômica, ecológica, espacial e cultural de sustentabilidade (SACHS, 1994). Esse sujeito, como afirma Santos (1996), ainda ocupa um lugar, política, temporal e espacialmente, bastante disperso tanto no Relatório Brundtland quanto nos demais documentos produzidos para e pela Eco-92. Um sujeito ainda tratado em sentido genérico, como “todos os homens”, o “Estado”, a “sociedade”, ou as “instituições sociais e políticas”. Cabe, portanto, à academia uma contribuição para oferecer maior objetividade e concretude a estes sujeitos. Mesmo reconhecendo-se que, indubitavelmente, sobre este aspecto há muito a dizer, acredita-se que as discussões acerca do conceito de ecodesenvolvimento são uma franca contribuição à complementação destes elementos “faltantes”. Desenvolvimento Sustentável e Ecodesenvolvimento Para Vieira (1995, p. 50), o conceito de ecodesenvolvimento surgiu em um momento intelectual demarcado pela presença das “primeiras análises sistêmicas sobre os ‘limites externos do crescimento material’e dos trabalhos de preparação da Conferência de Estocolmo”, em 1972. Contexto este que demarcava o auge da crise do “Fordismo Keynesiano” enquanto modelo de organização social e econômica. O referido conceito foi utilizado pela primeira vez por Maurice Strong, então Diretor Executivo do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, apropriado e desenvolvido, entre outros pesquisadores, por Ignacy Sachs, hoje seu grande expoente. Segundo o próprio Strong, um conceito normativo fundamentado em três critérios simultâneos: ”equidade social, prudência ecológica e eficiência econômica” (STRONG, apud SACHS, 1993, p. 07). Esta abordagem, posteriormente redenominada “desenvolvimento sustentável”, vem amadurecendo e sendo aprimorada a cada estudo e incorporando preocupações mais globais sobre a questão da interface homem versus biosfera. O debate travado em torno da elaboração do conceito de ecodesenvolvimento revelou-se um esforço renovado sobre as finalidades, critérios e estratégias de planejamento sobre a reversão dos custos socioambientais, provenientes de uma “gestão social e ambientalmente destrutiva de ecossistemas”, aliado à “perda de controle social dos rumos da evolução tecnológica, marginalização sócio-econômica e políticocultural de amplos segmentos sociais, alterações nos grandes equilíbrios biosféricos etc” (VIEIRA, 1995, p. 51). A construção do conceito de ecodesenvolvimento tem na solidariedade diacrônica e sincrônica para com as gerações presentes e futuras, ao lado da perspectiva participativa, e plural contextualmente adaptadas, os pilares fundamentais. Do ponto de vista prático, ele propugna um caminho onde “a identificação de problemas e alternativas de solução é feita com base no registro de percepções, atitudes e valores dos segmentos sociais envolvidos: empresas públicas e privadas, agências governamentais, organizações da sociedade civil, partidos políticos, grupos informais” (ibid p. 64). Trabalha, portanto, este conceito com a prospecção sistêmica de estratégias alternativas, mas seu processo de fundamentação sistêmica ainda está em construção dada a própria crise do planejamento (MANTOVANELI JR., 2001, p. 74), e, pode-se ainda afirmar, das ciências sociais. Para o momento, acredita-se que a seguinte citação daria conta do conceito: “...o termo ‘ecodesenvolvimento’ designa um enfoque sistêmico de análise e planejamentoiii de um novo ‘estilo’ de desenvolvimento regional e local endógenoiv e orientado para a satisfação de necessidades básicas (materiais e psicossociais) das populações envolvidas” (VIEIRA, 1995, p.10). Em obra clássica sobre o tema, Sachs (1986, p. 15) destaca oito importantes características para a busca do ecodesenvolvimento a seguir elencadas: 1) A idéia de ecorregião, que permite a valorização dos recursos específicos em cada uma delas como fonte realista e autônoma de satisfação das necessidades humanas; 2) A realização humana deve estar, em primeiro lugar, em conformidade com a diversidade cultural presente; 3) A solidariedade diacrônica [e sincrônica] preside a identificação, a exploração e a gestão dos recursos; 4) A Redução dos impactos negativos da atividade humana, por meio do aproveitamento das complementariedades; 5) A aposta de que todas as regiões têm capacidade de viabilizar suas próprias fontes energéticas; 6) Um estilo tecnológico apropriado ou ecotécnicas; 7) A definição de um quadro institucional capaz de considerar a realidade caso a caso, valendo-se de: a) estabelecimento de uma autoridade horizontal que supere os setorialismos e considere a totalidade e as complementariedades das ações; b) participação das populações locais como estratégia de eficácia, definição e harmonização de necessidades; c) formas de evitar que somente elementos intermediários, presentes entre a população local e o mercado nacional e internacional, se beneficiem dos resultados; 8) A educação formal e informal, como “complemento necessário das estruturas participativas de planejamento e gestão”, influindo diretamente no sistema de valores; Assim sendo, em que se diferenciam e se aproximam os conceitos de ecodesenvolvimento e de desenvolvimento sustentável? Pode-se visualizar, ao menos para efeito didático, que a discussão do conceito de desenvolvimento sustentável, nos termos do Relatório Brundtland, se dá em um caráter sociológico mais global, embora traga, como fundamento, as mesmas preocupações do ecodesenvolvimento. O debate acerca do conceito de desenvolvimento sustentável perpassa, portanto, sinalizações sintéticas sobre a complexidade e amplitude da questão ambiental, enquanto o debate sobre o ecodesenvolvimento, ainda que não despreze as complexidades vigentes, originariamente aproxima-se de questões mais locais e operativas. O conceito de ecodesenvolvimento antecede, cerca de quinze anos, o Relatório Brundtland. As obras mais contemporâneas de Sachs refletem o debate travado em tantas conferências internacionais sobre o meio ambiente e demonstram o amadurecimento das proposições ecodesenvolvimentistas frente às preocupações globais que amparam o conceito de sustentabilidade. O ecodesenvolvimento hoje, portanto, é uma proposta mais completa que incorpora os preceitos da sustentabilidade, procurando travar um debate em moldes sistêmicos, capaz de sinalizar o horizonte da viabilidade político-administrativa de suas proposituras. Nas palavras de Sachs (1986, p. 26): “o conceito de ecodesenvolvimento tem que ser operacional. Constitui uma diretiva de ação (ou melhor, uma filosofia de desenvolvimento) cujo valor só pode ser julgado à luz da prática”. Por esta razão Ignacy Sachs os considera conceitos harmônicos e que encerram o mesmo sentido, embora existam autores que considerem controversa tal afirmação. Todavia, neste estudo entende-se que o amadurecimento das discussões que permeiam aos dois conceitos possibilitam a rearticulação temporal-espacial apregoada por Santos (1996). Caso contrário, seria um conceito sujeito às armadilhas de sua polissemia, tal qual o conceito de desenvolvimento. Mesmo que busque mais objetivamente a viabilidade político-administrativa, pode-se observar, especificamente reportando-se à última citação de Vieiraque o debate sobre ecodesenvolvimento ainda detém sua maior concretude em torno dos conceitos de análise de realidades e planejamento de alternativas. A síntese de alternativas estratégicas, nos termos tratados por Mintzberg (1994), ainda não foi aprofundada. Portanto, o debate sobre ecodesenvolvimento não considera, enfaticamente, os aspectos administrativos [formulação, implementação (alocação/implantação), avaliação (controle, transparência, prestação de contas)], mas gira em torno da lógica do planejamento (sobretudo formulação de políticas). Conclui-se que este debate, ainda que nele se reconheça a necessidade do estabelecimento de um mecanismo de gestão, oferece um amplo espaço para se falar sobre fórmulas de implantação e controle, ou avaliação democrática, das políticas democraticamente propostas para a satisfação das necessidades das populações em foco. Cumpre, entretanto, assinalar que embora não tenha sido focada satisfatoriamente a dimensão administrativa do debate, este propiciou visibilidade a importantes aspectos estratégicos, como demonstram as oito características anteriormente expostas. O que não significa que o debate não caminhe a passos salutares, tanto sinalizando para o lado operativo quanto a seus imperativos. Feitas essas ressalvas, entende-se, ao analisar os argumentos de Sachs, que todo processo de qualificação da vida humana sob o ponto de vista sistêmico deve ser capaz de transitar por múltiplas dimensões de sustentabilidade, sendo estas facetas fundamentais e qualificadoras de qualquer abordagem de planejamento, ou gestão de políticas para o desenvolvimento. Em síntese, o autor expõe cinco dimensões de sustentabilidade vastamente relatadas na literatura, e aqui apenas apresentadas: 1) A sustentabilidade social expressaria uma visão renovada do que vem a ser uma sociedade igualitária e democrática, onde seriam realmente inaceitáveis, em termos teóricos e práticos, a miséria, a exclusão e/ou o apartheid social; 2) A sustentabilidade econômica buscaria a superação da desigualdade e da exploração colonial economicista, nacional e internacional, com medidas eficientes e eficazes, mas onde o parâmetro econômico fosse adequado aos imperativos sociais e morais, e não o inverso como hoje; 3) A sustentabilidade ecológica se alimentaria da potencialização e renovação dos recursos naturais disponíveis, da limitação da exploração e do consumo predatórios, da drástica diminuição da emissão de resíduos tóxicos de todos os tipos, do avanço em pesquisas tecnológicas apropriadas e de normas rígidas de administração e proteção institucionalmente criativas e coerentes; 4) Já a sustentabilidade espacial se fundamentaria no equilíbrio da equação rural-urbana, em temos populacionais, habitacionais e de aparelhamento público, agrícolas, industriais, criando reservas capazes de proteger a biodiversidade; 5) A sustentabilidade cultural envolveria, “(...) a procura de raízes endógenas de processos de modernização e de sistemas agrícolas integrados, processos que busquem mudanças dentro da continuidade cultural e que traduzam o conceito normativo de ecodesenvolvimento em um conjunto de soluções específicas para o local, o ecossistema, a cultura e a área” (SACHS, 1994, p. 38 & 1993, p. 24). Pode-se observar que não são dimensões estanques, mas se auto-alimentam reciprocamente de sentido e capacidade explicativa e interventiva, em especial quando se fala de gestão, e se harmonizam com as principais conclusões da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; elas demonstram também que no contexto internacional deste final de século a busca do desenvolvimento sustentável requer: “um sistema políticov que assegure a efetiva participação dos cidadãos no processo decisório; um sistema econômico capaz de gerar excedentes e know-how técnico em bases confiáveis e constantes; um sistema social que possa resolver as tensões causadas por um desenvolvimento nãoequilibrado; um sistema de produção que respeite a obrigação de preservar a base ecológica do desenvolvimento; um sistema tecnológico que busque constantemente novas soluções; um sistema internacional que estimule padrões sustentáveis de comércio e financiamento; um sistema administrativo flexível e capaz de autocorrigir-se.” (CMMAD, 1991:70) Para que se viabilize a formulação de um projeto racionalmente convergente com a idéia de cidadania planetária (como vida associada), é importante que os processos de gestão de políticas para o ecodesenvolvimento contemplem, ao lado da perspectiva global, espaços menores (DOWBOR, 1994) de agregação, convivência e construção simbólica do mundo, dando nome e identidade aos sujeitos, absorvendo e desenvolvendo, apropriadamente, as técnicas de sobrevivência e "recriação" do espaço em que vivem. Em síntese, um novo projeto precisa gestar-se enquanto territorialidade (HAESBAERT, 2004) e seus sujeitos. E justamente ao falar em sujeitos, uma indagação se apresenta: qual o principal desafio do homem diante da complexidade de uma proposta sustentabilista? Em certo sentido, a resposta a esta questão perpassa uma preocupação existencial, que gira em torno da idéia da responsabilidade diante dos limites e possibilidades que se abrem como decorrência do projeto de ação do homem sobre os ambientes natural e construído, e o que tal projeto o torna enquanto ser. Consiste, portanto, em um desafio ético existencial sobre o qual, doravante efetuamse algumas breves, porém, suficientes observações, para que em um próximo instante se alinhe tal debate às questões formativas e administrativas. A RECRIAÇÃO DO MUNDO POR MEIO DA IDÉIA DE PROJETO Pretende-se, doravante, apresentar argumentos que exemplifiquem o desafio ético para a sustentabilidade, alinhando, a seguir, tal debate, às questões educativa e administrativa. Para os existencialistas, "o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo" (Sartre, a, 1987 p. 06), ou ainda o que ele faz daquilo que o tornaram. Autores que beberam desta fonte, que comungam deste ponto de reflexão e visão de mundo, como Merleau-Ponty e Sartre, remetem ao homem a belíssima capacidade de construir a si e aos seus iguais. Uma doutrina que abre francos horizontes para a criação de perspectivas otimistas em relação ao próprio homem. O ponto definidor e diferenciador da doutrina existencialista é a afirmação de que a existência precede a essência. Porém cumpre aqui esclarecer no que consistiria tal assertiva e, mais adiante suas implicações com sustentabilidade. Objetivamente, durante longo tempo, muitas doutrinas defenderam o seguinte ponto de vista, que ainda hoje elas o defendem: toda ou qualquer criação observável parece incutir uma certa essencialidade que tornaria possível sua existência. Ou seja, qualquer criação ou objeto manufaturado pelo homem, por exemplo, pressupõe sua capacidade técnico-intelectiva e o uso de um acervo de conhecimentos acessados no sentido da realização da manufatura. Assim o é na construção de uma mesa ou de um automóvel, na escrita de um livro ou na confecção de um tecido, ou mesmo o desenvolvimento quando visto como somatório de criações materiais. Essa perspectiva ou "visão técnica de mundo" (SARTRE, 1987ª, p.05), transferida para as ciências humanas, construiu o perfil de um homem com os mesmos parâmetrosvi. A existência humana sob tal ponto de vista, pressupõe uma inteligência ou inteligibilidade que torna o homem possível enquanto ser ou criaturavii. Tal compreensão, ao considerar esta inteligência anterior, pressupõe a anterioridade de um conceito de homem, determinante do que seria a essência humana. Segundo alguns filósofos, este conceito estabeleceria a natureza encontrada universalmente em todos os seres humanos. O homem, assim como tantos objetos, manufaturas, animais, vegetais e minerais seria, portanto, a materialização de uma inteligência superior, tal qual o é a mesa em relação ao carpinteiro. Seguindo esse ponto de vista, se há de convir que qualquer ação humana que venha contrariar a sua própria natureza, mesmo sendo esta uma abstração, certamente poderia ser considerada improvável. Mais do que isso, uma situação como esta detém certa previsibilidade histórica, prenunciada pelas condições da essencialidade do homem. Para os existencialistas, no entanto, a natureza humana não existe e é justamente aí que reside a coragem e a riqueza de suas idéias. Embora haja controvérsias entre as visões cristã e atéia, parece haver concordância no sentido de que há um ser cuja existência precede a essência, e este ser é o homem. O esforço por estabelecer tal tese busca exatamente resgatar a dignidade do homem diante dos animais e das coisas e, por que não dizer, afirmar a particularidade das ciências sociais frente às ciências da natureza. Nas palavras de Sartre, "o homem, antes de mais nada, existeviii, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando no futuro" (SARTRE, 1987ª, p.03). Ou seja, o homem é o único ser capaz de, conscientemente, se dar conta da construção de sua própria história. Para os existencialistas, a noção de subjetividade se engendra exatamente aqui, onde intimamente, acontece a conformação destes horizontes. É desta compreensão que nasce a idéia sartreana de projeto, fundada em uma ética da liberdade (CRASTON, 1966, p.177), com preceitos de engajamento e responsabilidade, que veio se refinando, amadurecendo ao longo dos anos. O homem é, antes de qualquer coisa, uma página a ser escrita, "um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo ou podridão" dizia Sartre (1987ª, p.06). O homem é um projeto! Embora muito se questione a existência ou não de alguma inteligibilidade anterior à humanidade, a tese existencialista vem se sustentando ancorada na compreensão de que quaisquer que sejam os pontos deterministicamente apresentados ao homem, ainda assim reside no ser humano a responsabilidade pela forma com que estes pontos se manifestam à sua consciência e/ou à sua interpretação. Raciocínio este que coloca os homens frente a frente com a política e com as apologias, por exemplo, da globalização. O existencialismo coloca o homem em suas próprias mãos, e a partir de suas ações e da consolidação destas ao longo de sua vida, virá a ser aquilo que se tornará em sentido individual ou universalizante. O conceito de homem é e será determinado pelo próprio homem. Aqui Kierkegaard oferece no existencialismo uma valiosa contribuição à investigação filosófica quando insere “os conceitos de possibilidade, de escolha, de alternativa e de existência como modo de ser do próprio homem” (apud ABAGNANO, 1970, p.38). Conceitos quase que abolidos pelas teorias deterministas e insustentáveis que presidem o conceito ortodoxo de desenvolvimento. Existencialista, fenomenólogo, marxista, enfim para Sartre o homem é um ser que faz a sua história, porém em um “meio dado que os condiciona” (SARTRE, 1987b, 149). Ou seja, se de um lado ele faz a história, por outro, esta o faz, o que o torna, “ao mesmo tempo, o produto de seu próprio produto e um agente histórico que não pode, em caso algum, passar por um produto”. O homem não está, portanto, abandonado a si mesmo e muito menos é um escravo do determinismo, como parece impor a lógica racionalista moderna. Logo, o homem não pode referenciar-se à sua natureza para justificar ou compreender os seus atos, mas à própria condição em que se encontra mergulhado. É exatamente isto que se procura demonstrar nos momentos contextuais deste estudo. Desse modo, o conceito de história ganha um novo sentido. Historicizar, mais do que um ato contemplativo ou exógeno, passa a ser o envolvimento com uma atitude responsável e inevitavelmente engajada, com a manutenção ou a transformação da condição humana. Por isso a ação administrativa é vista como ação histórica e o desenvolvimento como resultado desta ação. Assim, embora ainda existam determinantes condicionais, longe de qualquer linearidade previsível, fazer história passa a ser um ato de escolha e de busca das possibilidades, favoráveis ou nãoix, diretamente relacionadas com a ação individual. Entende-se que este debate é de grande relevância aos que propósitos aqui considerados, pois a leitura que se opera sobre a política e a sociologia sob tal concepção, tem condições de adquirir um particular relevo, capaz de qualificar os parâmetros analíticos que condicionam a ação administrativa enquanto prática voltada ao desenvolvimento. Sartre (1987ª) entendia, assim, que o homem se define, não por atitudes parciais, mas pelos atos engajados que pratica. Diante disso, o que se pode abstrair do homem moderno? O engajamento na busca pelo progresso e pelo desenvolvimento nos termos que vem se estabelecendo, como já se viu anteriormente, transforma o homem em quê? Parte desses questionamentos talvez possam ser satisfeitos quando Sartre afirma, em Questão de Método, que nem sempre o homem possui a capacidade de se dar conta do alcance e das conseqüências daquilo que faz. Na verdade, para o autor parece existir um descompasso de escolhas e encaminhamentos, traduzido em suas palavras: “se a história me escapa, isto não decorre do fato de que não a faço: decorre do fato de que o outro também a faz” (idem, 1987b, p.150). O cerne do debate ético para a construção de uma sociedade sustentável talvez esteja na busca de mecanismos que tornem o homem, ao mesmo tempo, consciente do que a postura dele, diante de seu tempo, tem construído. Acredita-se ser isto possível, como afirma Merleau-Ponty ao analisar a obra de Husserl: “...do ponto de vista do psicólogo, do sociólogo ou do historiadorx, é possível conceber uma crítica que consistirá em estabelecer uma dependência entre o pensamento examinado e seu condicionante exterior”. Ou seja, rompendo as posturas deterministas em busca de uma forma de reflexão que “transforme o condicionamento sofrido em condicionamento consciente, sem jamais negar sua existência e sua constância”. A alternativa apontada pela fenomenologia de Husserl implica, pois, em uma atitude de conscientização propiciada pela “redução fenomenológica”. Conceito este que traduz a ação de suspender o vínculo para com o “mundo físico, social e cultural” (Ibid p.08), ou colocá-lo entre parênteses, sem negá-lo, e portanto tornar-se consciente do mesmo, possibilitando uma ruptura com a condição de vida estabelecida, sem cair na presunção da lógica ou do pensamento puro, ou, pode-se dizer ainda, da ciência em ato. Sem dúvida, um desafio. Seriam esses caminhos, em um sentido crítico progressista diante da modernidade, que poderiam fazer do homem um ser capaz de desvendar as condições econômicas, sociais, físicas, políticas e por que não dizer ecológicas, que o produzem enquanto indivíduo, e mais do que nunca engajá-lo na superação da má féxi desresponsabilizante e dos devaneios praticados. Torna-se, assim, importante a formação de um novo homemxii por meio de um novo projeto histórico, ou uma nova inserção humana no planeta, fazendo-o assumir sua responsabilidade, e em que termos, por sua existência, dos seus iguais e de todas as espécies. Aspectos intimamente relacionáveis a toda discussão sobre sustentabilidade, já exposta, e francamente ligados a todo debate atual sobre o conceito de cidadania planetária GUTIERRES; PRADO, 1999), a ser explanado mais adiante. Um projeto transformador remete, portanto, à necessidade da consciência engajada, da ação responsável e da visão global dos atos e conseqüências inevitavelmente presentes. Talvez, a ecologia em toda a sua semântica (Alphandéry, Bitoun e Dupont, 1992) já esboce este projeto. A Construção e o Projeto : em busca de uma cidadania planetária. “Ser livre não é ter o poder de fazer não importa o que, é poder ultrapassar o dado para um futuro aberto”(Simone de Beauvoir). Talvez seja este o momento, neste estudo, em que os leitores mais atentos devam estar se perguntando: será possível trabalhar com um autor tão complexo como Sartre, ou com uma escola tão audaz como a fenomenológica e uma ideologia tão instigante como a existencialista, para se dizer algo mais sobre políticas e desenvolvimento sustentável? O projeto de construção de novos parâmetros e a dimensão dialética homem-homem/homemmundo pode ser objetivada em que termos? Tais encaminhamentos teóricos dariam conta desta propositura? Enfim, a base disto tudo seria uma aventura transcendental ou metafísica, um romance de ficção, ou algo instigante perfeitamente coadunado com as críticas sobre os valores da modernidade, da sociedade racional aos avanços da biogenética, ou ao reducionismo de mercado e tantos outros, à existência ou não de uma pósmodernidade? Poder-se-ia apresentar um indício de resposta às indagações acima, afirmando que este trabalho não se pretende um estudo filosófico das questões que inevitavelmente se é obrigado a aferir em qualquer trabalho que verse, mesmo que indiretamente, sobre tais indagações. O que se pretende, na realidade, é não fugir à responsabilidade de trabalhar com questões de fundo que realmente possuam fôlego epistêmico, ainda que não ofereçam respostas prontas. Na ciência política e na administração poder-se-ia fazer o seguinte questionamento: que tipo de postura administrativa seria adequada para pensar a inserção total (ou multidimensional) e consciente do homem na organização da sociedade? O caminho passa por uma nova postura científico-metodológica? Como reconceituá-la? Tem-se, no entanto, um ponto de partida. Acredita-se que os questionamentos até agora apresentados sinalizem para indagações e ponderações que indicam o caminho da visão crítica da modernidade, desvendando alguns eixos desta lógica. Entende-se que a maioria dos autores trabalhados neste estudo expressam o que Stein denomina de a “modernidade se dando conta de si mesma” ou “ a modernidade se tornando crítica e, de certo modo, portanto, trazendo em si mesma o conceito de crítica da modernidade” (STEIN, 1991, p.13). Não há neste trabalho a pretensão de trazer verdades absolutas. Cabe, entretanto, um singelo esforço por estabelecer interrogações e/ou insights que possam guiar o caminhar de novas pesquisas e proposituras de intervenção no campo da administração das políticas públicas. Ou seja, havendo tanto por compreender, dizer e fazer, entende-se que talvez, este estudo possa vir a ser mais uma pequena contribuição, compartilhada, para a construção de um projeto racionalmente convergente com a idéia de cidadania planetária, ancorado em uma ética menos antropocêntrica. Aqui novamente emergem algumas contradições. Não seria, para muitos, a obra de Sartre (1987ª), a tentativa de fazer vencer um projeto de homem moderno? De fazer vencer, portanto, a perspectiva racional por meio de uma nova discussão sobre o homem e a liberdade? Como afinar o individualismo com uma perspectiva crítica aos parâmetros absolutos do racionalismo instrumental, que teima em imperar desde o século XIX? Em síntese, este homem existencialista “abandonado a si mesmo e escravo da própria subjetividade” (BORHEIM, 1971, p. 298) não ofereceria, ao contrário, um novo fôlego ao antropocentrismo que ora se critica? Sem incorrer na presunção de responder a essas questões, arriscam-se alguns comentários. A crítica da modernidade se viabiliza a partir de uma situação de crise; crise de posturas e de valores que traduzem as heteronomias que aprisionam a humanidade desde o princípio desta era (STEIN, 1991), as quais, acredita-se, redundaram também na crise ecológica, como já foi discutido. É possível, portanto, ao se buscar no homem um caminho capaz de torná-lo sujeito de sua própria história, o rompimento de uma postura de neutralidade diante dos acontecimentos. Para autores, como Mannheim (1962) e Marcuse (1973), a humanidade, com seus saltos tecnológicos, teria excedido os seus limites. Estaria perplexa diante da magnitude da violência praticada e das possibilidades de destruição material, cultural e simbólica que o ser humano descobriu. Mais do que isso, estarse-ia diante de um tempo onde o homem revela-se incapaz de, psicologicamente, se inteirar e estabelecer um posicionamento seguro diante das transformações tecnológicas de sua era. Em busca de uma verdade científica, portanto, absoluta e por conseguinte “em ato”, o ser humano esvazia esta verdade de toda possibilidade de interpretação e relacionamento direto com o universo que o compreende (JAPIASSU, 1981). As políticas públicas parecem não ter ficado fora desta fórmula básica; um tipo de atitude humana que ainda perdura. Sartre (1987ª) buscou um homem angustiado, porém solidário e engajado na compreensão e superação da condição concreta que vivencia, pensando a liberdade como uma situação de comprometimento e não como um fato imaginário. Este homem seria relevante na construção de um projeto para uma sociedade sustentável. Por outro lado, o homem exógeno, baseado em uma compreensão de mundo cuja verdade é um fato, ancorado em uma realidade em-sixiii, criou um mundo diante do qual, inevitavelmente, se aliena. E assim: “Uma vez arrancado de seu microssistema integrado, global e globalizante, tendo perdido seus elementos de apoio e sustentação - afetiva, moral, econômica, política - portanto, seus valores éticos, e sem ter nada para pôr no lugar que lhe proporcionasse o mesmo suporte, o homem da sociedade industrializada teria perdido os valores e princípios constitutivos / ordenadores de sua vida (SCHRAMM et alii, p.212). Esse homem depara-se com o seu próprio reflexo e reluta em reconhecê-lo. Já a perspectiva existencial-fenomenológica recria a interpretação de um mundo para-si. Ou seja, um mundo revelado pela consciênciaxiv e esta pelo ato inacabável de um conhecer que extrapola a mera intelectualização (MERLEAUPONTY, 1953), buscando em intencionalidades cognitivas, afetivas e práticas um mundo que, ao mesmo tempo, é interpretado, experienciado, percebido, julgado, amado, temido etc.. A crítica progressista explicita e deixa de lado a fina camada ornamental da racionalidade, há tanto tempo valorizada e mergulha em busca da substantividade. Para estes progressistas exite a compreensão de que “são as condições econômico, sociais e políticas que produzem aqueles indivíduos e que, portanto, a moral [ao contrário da visão conservadora] é uma função dependente [e não condicionante suprema], de certo modo, das estruturas em que funciona a sociedade” (STEIN, 1981, p. 22). Portanto, neste momento, há que se esclarecer alguns conceitos. Entende-se, neste estudo, que: a) Moral ” ‘é a estruturação ontogênica do ser [pelo] outro, relação que obriga [o sujeito] a ser responsável por si mas enquanto representante de todos os outros, fato que torna possível a moral e a política, as normas codificadas do ser social” (Schramm, 1991:6). b) “A ética é, portanto, a possibilidade de estruturação do sujeito no mundo e não pode ser confundida com as suas manifestações práticas - a moral e a política - embora aquela não se dê senão encarnada nesta em cada momento histórico. Dito de outra maneira, embora inseparáveis praticamente, ética e moral são distinguíveis teoricamente, da mesma forma como destinguimos a fundamentação e a finalidade das suas manifestações. A ética questiona, também, em cada época, os fundamentos e as finalidades da moral e pode então ser considerada como a ‘teoria ou a crítica do agir’ ” (id., ibid., p.211). Por conseguinte uma teoria, ou uma prática torna-se não ética quando é incapaz de questionar seus fundamentos e sua moralidade e antiética quando gera obstáculos à isso; é imoral quando não dá conta de seu caráter ontogenético redundando, inevitavelmente, na má fé. Esta reflexão direciona-se, neste trabalho, primordialmente à prática político-administrativa. Essa mesma crise é citada por Stein e enunciada por Lutzenberger e Unger quando discutem a questão ambiental, a vida no planeta e a sua qualidade. O primeiro autor vai mais longe e afirma que: “(...) sem dúvida nenhuma, a questão da modernidade pode ser entendida como a tentativa de autonomia, a tentativa de ruptura com as heteronomias [já citadas] em que a humanidade estava constantemente, de certo modo, atolada. Estas heteronomias não são tanto as heteronomias explícitas que se manifestam em nível da organização social, em nível de equilíbrio do poder. Mas são heteronomias que surgem em níveis muito mais sutis, que se projetam desde a religião, desde a organização de questões no universo artístico, que se apresentam com relação a costumes, aos comportamentos morais, etc” (Stein, 1991:23). Portanto, quando se fala em projeto, inevitavelmente faz-se alusão à determinada moral e determinada política, já expostas. Fala-se também em afirmação e negação de valores, e em processos que conduzam a tal empreitada. Fala-se na construção e desconstrução de alternativas; de um homem que se projeta, consciente e subjetivamente no futuro, como requer o existencialismo. Fala-se de uma nova ética da liberdade que conduz a uma forma renovada de compreender a cidadania, revelada por facetas da história recente da humanidade (em boa medida já descritas), mais presentes nas últimas décadas deste século; elas poderão enunciar um projeto para o próximo século, diametralmente alternativo à lógica economicista e mecanicista ainda imperantes. Vieira & Bredariol (1998) descrevem a construção dos direitos de cidadania por meio de quatro gerações dos mesmos. Retomam Marshall para descrever os direitos civis e políticos como primeira geração e os direitos sociais como segunda geração. Daí em diante, os autores realmente inovam e procuram demonstrar a emergência de direitos de terceira geração. O advento desta geração, cronologicamente falando, coincide com o processo de aprofundamento da urbanização, do desenvolvimento econômico, do Estado de bem-estar-social, do fetiche tecnológico etc. São aqueles direitos que surgem a partir da segunda metade deste século e relativos não aos indivíduos, mas aos grupos sociais e interesses, por vezes vistos como difusos, onde se inscrevem conceitos como "povo, nação, coletividades étnicas ou a própria humanidade" (p.23). Nesta categoria inseremse os direitos das minorias, os étnicos, os de consumidor, autodoterminação, ao meio ambiente, paz, desenvolvimento e outros. Pode-se afirmar que foi no contexto dessa terceira geração, incorporando obviamente as duas gerações anteriores, que se tornou possível a visualização da necessidade de trabalhar os interesses ambientais de modo indissociável às demandas sociais. Indissociabilidade que se aprofunda diante do que é descrito como quarta geração de direitos, que são os "relativos à bioética para impedir a destruição da vida e regular a criação de novas formas de vida em laboratório pela engenharia genética". É, portanto, em um contexto onde as demandas, tais quais os problemas que afetam a humanidade, começam a transcender à lógica territorial, nacional e individual, e os direitos e deveres a elas subjacentes tornam-se transnacionais, passando a fazer referência à humanidade e ao planeta, que surge uma nova modalidade de cidadão e, por meio dele, aquilo que se apregoou como projeto, no sentido sartreano. Trata-se do surgimento da idéia de cidadão do mundo e do conceito de cidadania planetária; uma forma de cidadania "que vem sendo paulatinamente construída pela sociedade civil de todos os países em contraposição ao poder político do Estado e ao poder econômico do mercado"(VIEIRA; BREDARIOL, 1998, p.21). E é no bojo da construção de uma cidadania planetária que se pode citar, como exemplo de esforço global, os trabalhos em favor da construção da “Carta da Terra” xv, cuja primeira versão fora aprovada na Conferência do Rio de Janeiro, em 1992. A terceira e quarta gerações de direitos e deveres procuram preencher um imenso vazio deixado pelas profundas mudanças sociais ocorridas ao longo dos últimos 50 anos, às quais o homem luta por se ajustar e compreendê-las. Procura-se resgatar a capacidade do homem edificar o mundo para ele em detrimento dele, valendo-se da política, em seu sentido mais amplo, para tal. Trata-se de conquistas que expressam a recuperação de um conjunto de valores capazes de situar o homem diante de si, seu espaço (agora planetário) e seu tempo, tornando esta realidade concreta parte de seu cotidiano, impregnando-a de sentido, um sentido; amparado pela solidariedade diacrônica e sincrônica ao invés da competitividade absoluta. Considerações Finais Sob o ângulo de análise aqui demonstrado, a realidade deste final de século se afigura como um novo fato administrativo, que requer um padrão alternativo de ação administrativa sobre as políticas que determinam a vida associada. Este contexto se ampara não prerrogativas da cidadania planetária: "um conjunto de princípios, valores, atitudes e comportamentos [que] demonstra uma nova percepção da terra como única comunidade. [...] Uma nova racionalidade de cidadania planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetariedade, isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente" (GADOTTI, 1999, p.23)xvi. Vale lembrar que, enquanto projeto, por mais que haja sujeitos a ele engajados, "a construção de uma cidadania planetária tem ainda um longo caminho a percorrer no interior da globalização capitalista. A cidadania planetária deverá ter como foco a superação da desigualdade, a eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração da diversidade cultural da humanidade. Não se pode falar em cidadania planetária ou global sem uma efetiva cidadania na esfera local e nacionalxvii. Ela é essencialmente uma cidadania integral, portanto, uma cidadania ativa e plena não apenas nos direitos sociais, políticos, culturais e institucionais, mas também econômicos" (Ibid., p.23). Por conseguinte, essa cidadania precisa ser objetivada como algo desejável e pelo qual vale a pena lutar, o que se fará possível à medida que efetivamente, e não no sentido meramente declaratório, se construa uma democracia planetária amparada por uma cultura de sustentabilidade, como parte inexorável de um projeto de humanidade. Esse projeto, como é visto neste estudo, não é e nem será "mera conseqüência ou um subproduto da tecnologia ou da globalização econômica" (Ibidem). Entende-se que este projeto planetário, pode ser constatado ou construído, por meio de dois grandes movimentos eminentemente históricos. O primeiro, visto como expressão da espontaneidade do sujeito humano na condução dos seus desejos e do seu próprio destino, mas sem a conexão intencional com um projeto universalizante, como é o caso, por exemplo, de tantos movimentos comunitários (GOHN, 1994). O segundo movimento leva como eixo constitutivo a lógica que torna vivo o primeiro (a espontaneidade), lançando mão, entretanto, de um aprofundamento do seu caráter transformador multicêntrico, para o qual são imprenscindíveis a ação intencional de um sujeito individual, ou coletivo, e um norte reflexivo. Ou seja, este segundo movimento busca a construção de processos eminente, declarada, consciente ou intencionalmente educativos, por meio do que Gutiérrez & Prado (1999) chamam de ecopedagogia. Trata-se de um caminho pedagógico voltado ao desenvolvimento da cultura de sustentabilidade, que prima por conciliar a "ecologia do eu" (transformações subjetivas de caráter mais profundo, no plano do indivíduo) com a "ecologia sócio-ambiental" (transformações sociais, políticas e tecnológicas no sentido da desconstrução das heteronomias já descritas). E é nesse duplo sentido que se propõe, aqui, o uso do termo “sustentabilidade educativa”, em seu caráter “não-formal”. Esta flui de processos formativos, ou fatos educativos, alimentadores de novos processos com características bastante específicas, ou diferenciadas de outros fatos sócio-educativos, justamente por privilegiar a dimensão ecopedagógica vivencial. Ecopedagógica também por qualificar-se pelo vetor planetário, ou voltado à construção de uma cultura de sustentabilidade, que respeite o caráter espontâneo do sujeito humano, sem deixar de avançar rumo a uma atitude intencional engajada. Portanto, nesses termos este estudo se vale da educação como caminho para a superação dos impasses que condicionam a insustentabilidade do projeto utilitarista, da modernidade de mercado, buscando alternativas na prática da ação social de caráter administrativo. Por fim, procurou-se neste ensaio explorar caminhos e reflexões para além de uma perspectiva normativa. Como aquela vastamente considerada em boa parte da literatura sobre a questão. Pensar o desenvolvimento, a modernização, as mudanças requeridas em nosso tempo para o que se avizinha, por um caminho ecocentricamente (não egocentricamente) virtuoso requer, mais que exclamações enfáticas, uma abordagem crítica sim, mas vivencial. Em outras palavras, um projeto de vida realmente associada. Referências Bibliográficas AGENDA 21 (1997). Conferência das nações unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Brasília: MMA (internet). ALPHANDÉRY, P.; BITOUN, P. & DUPONT, Yves (1992). O equívoco ecológico: riscos políticos. São Paulo: Brasiliense. AMSTALDEN, Luis F. F. (1996). Desenvolvimento sustentável e pós-modernidade. In: RODRIGUES, Arlete M. (org.). Textos Didáticos. Desenvolvimento sustentável: teorias, debates e aplicabilidades. Campinas (SP): IFCH/UNICAMP. No 23 - maio, 49-72. BRÜSEKE, Franz J. (1996). Desestruturação e desenvolvimento. In: FERREIRA, Leila da C. & VIOLA, Eduardo (orgs.) (1996). Incertezas de sustentabilidade na globalização. 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Isto é verdadeiro sobretudo quando se fala em democracia participativa, já que não se pode conceber um conceito absoluto de democracia. ii A idéia de responsabilidade é uma noção fundamental para se discutir a questão ambiental. iii Grifos meus. iv Este caráter endógeno ou a questão da endogeneidade voltada às políticas públicas, é descrito por Sachs, em outra de suas obr as sob o termo self-reliance (Sachs, p.23 in Vieira & Guerra, 1995.) v Grifos meus. vi O que torna perfeitamente aceitável a comparação, sem quaisquer distinções substantivas, entre a criação de uma tecnologia de produção de um bem de consumo e a técnica que tornaria possível, por exemplo, o aprendizado humano e sua produção de conhecimento e cultura, ou a administração de uma empresa ou de políticas governamentais. vii Uma espécie de receita, bastante complexa, tornada possível: na perspectiva cristã pela inteligência divina; sob o ponto de vista ateu por uma intelegibilidade a ser esclarecida pela ciência e pela filosofia. viii Grifos meus. ix Enquanto Kant privilegiara a possibilidade enquanto “promessa de realização”, Kierkegaard tem como importante contribuição a contemplação do “aspecto negativo de toda a possibilidade que entra na constituição da existência humana. Com efeito, todas as possibilidades além de serem possibilidades-de-sim, são também possibilidades-de-não: implicam a nulidade possível daquilo que é possível, por conseguinte a ameaça do nada” (Abbagnano, 1970:11). x Acrescentar-se-ia, sob o ponto de vista do cientista político e do administrador. xi O conceito de má fé em Sartre é importante ao traduzir o descompromisso do homem em relação às atitudes para com seus iguais (falta de solidariedade diacrônica e sincrônica), as quais, se estendidas ou multiplicadas, enquanto práticas sociais ou grupais, podem desencadear efeitos absolutamente negativos. Por exemplo, é de má fé o ato de desmatar as florestas ciliares face à realidade de que, se todos os homens o fizerem, os efeitos podem ser nefastos à ecologia como um todo. Uma atitude, portanto, de má fé é eticamente condenável. xii Se é que, em algum lugar, ele não exista ou tenha existido. Assim, o termo novo deve ser compreendido sempre com a devida cautela. xiii O conceito de em si e para si são fundamentais na fenomenologia. Para os fenomenólogos, não existe um objeto em si, já que só seria possível conceber um objeto enquanto o mesmo se volta para o sujeito que lhe confere significado. O que remete, fundamentalmente, ao postulado básico da escola fenomenológica, que é a intencionalidade, explicada na próxima nota, e por conseguinte abre maiores horizontes para as discussões efetuadas, neste estudo, sobre o conceito de análise política e análise de políticas, e para a ad +ministração. xiv O conceito de consciência, na fenomenologia, parte da intencionalidade como precondição, ou seja, toda consciência é intencional. Neste sentido, não há uma consciência pura, como afirmam os racionalistas e muito menos um objeto em si como afirmam os empiristas. Porém, “toda consciência tende para o mundo; toda consciência é consciência de alguma coisa” e os objetos tendem para os sujeitos que lhes conferem significado (Aranha e Martins, 1986, p.324). xv Documento que se equivalerá, indissociavelmente, à Declaração Universal de Direitos Humanos. xvi Trata-se de um projeto; algo que se descortina como padrão de conduta universalizável e, ao mesmo tempo, realidade concreta e incompleta. Mostra-se presente por meio de uma multiplicidade de dimensões de sustentabilidade que transparecem na prática política dos sistemas sociais. A título de exemplos tem-se, de um lado, as declarações e tratados assinados no âmbito internacional (Founex, Cocoyoc, Eco-92 e outras), constituídos por meio de pedagogias meramente declaratórias. E de outro, multiplicam-se exemplos de práticas locais (movimentos, comunidades, municípios, ONGs, redes diversas etc), com variáveis endógenas de relevância, sem, no entanto, deixar de responder a uma lógica universal, ou planetariedade. Estas últimas, constróem-se, prevalecentemente, a partir de um padrão de conduta visto como uma pedagogia da cotidianeidade, vivencial, ou da demanda (Gutiérres & Prado, 1999). É este o padrão pedagógico que interessa. xvii Grifo do autor.