FÉRIAS NO SERVIÇO PÚBLICO: CONVERSÃO EM PECÚNIA E FÉRIAS PROPORCIONAIS NO EXEMPLO CEARENSE Raimilan Seneterri da Silva Rodrigues1 1. INTRODUÇÃO Elaboramos esta tese direcionada à apresentação no XXXIV Congresso de Procuradores do Estado do Ceará que, como evento científico direcionado à carreira, tem como propósito é suscitar o debate acerca de questões práticas que tocam o labor da advocacia pública. Daí a explicação para a objetividade e relativa concisão deste artigo. Trata-se de uma abordagem específica a respeito do direito à percepção de férias proporcionais e do recebimento em pecúnia pelo não gozo de férias no serviço público, tomando o exemplo do Estado do Ceará e a regulação deste ente federado a respeito da matéria. Embora adotemos um recorte bastante específico de um determinado ente federativo, tal se justifica porque se trata de tema cuja solução necessariamente passará por uma abordagem específica, sob a perspectiva do regramento de uma determinada esfera da federação, de modo que seria inviável tentar uma solução sob a regulação de todos os entes que existem no país. Entretanto, a contribuição a que este trabalho objetiva fornecer é, não somente apontar para uma solução concreta nos limites de um determinado Estado, mas também pensar uma solução a respeito de um tema bastante recorrente na atividade das Procuradorias Gerais dos Estados, que é o direito do servidor auferir férias proporcionais e de receber, em pecúnia, pelas férias não gozadas. Os parâmetros gizados aqui poderão interessar aos profissionais que tenham interesse em refletir sobre o assunto, considerando o fato de que, apesar de algumas nuances diferentes, arriscamos dizer que se trata de matéria cuja regulamentação pelos inúmeros Estados e Municípios não apresenta diferenças tão notáveis. 2. ABONO DE FÉRIAS NO SERVIÇO PÚBLICO: DISCIPLINA CONSTITUCIONAL Iniciaremos nosso estudo com uma breve abordagem acerca do direito ao abono de férias (o “terço de férias” constitucional). No que tange ao direito à percepção desse abono 1 Procurador do Estado do Ceará, mestrando pela Universidade Federal do Ceará. pelos servidores públicos, a sua regulação no âmbito de qualquer esfera da federação tornouse dispensável à vista da Constituição Federal de 1988, que estendeu tal direito social também aos servidores públicos através do art. 39, § 3º, combinado com o art. 7º, XVII2. Trata-se de norma que tem aplicação geral e cogente ao serviço público de todos os entes federativos. No âmbito estadual, a Constituição do Ceará de 1989 também atribuiu aos seus servidores o mesmo direito ao gozo de férias acompanhado do abono (terço), repetindo a regulação da CF/19883. Os direitos relativos às férias que foram outorgados aos servidores públicos pela Carta Magna apresentam-se da seguinte forma: como um direito de conteúdo extrapatrimonial que consiste no descanso necessário ao refazimento das suas energias; direito a que durante esse período de descanso, o servidor não sofra a perda da sua remuneração; e como um direito ao recebimento de um plus pecuniário de 1/3 (um terço) sobre os seus vencimentos. Estando previsto na Constituição, configurando um direito social atrelado ao próprio gozo das férias, o direito ao abono (terço) de férias tem aplicabilidade imediata e independe de regulação local. 3. DA IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS À ÓRBITA ESTADUAL Diferentemente do que ocorreu com o direito ao gozo das férias remuneradas acompanhada do abono, a CF/1988 não trouxe disciplina para a situação em que o servidor, tendo deixado de gozar as férias a que tinha direito, busca uma retribuição pecuniária substitutiva. Deve-se deixar claro que, apesar de serem aqueles os lindes do direito conferido diretamente pela Constituição (férias remuneradas e abono de um terço), verifica-se que ela 2 Assim encontram-se redigidos os dispositivos constitucionais: “Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).” “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:(...) XVII – gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; (...).” 3 O dispositivo da Constituição do Estado do Ceará de 1989 recebeu a seguinte redação: “Art. 167. São direitos do servidor público, entre outros: (...) VII – gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do salário normal.” não exclui, conquanto não obrigue, que porventura a legislação do ente público empregador confira aos seus servidores outros direitos, tais como um abono pecuniário superior ao terço constitucional, conversão de parte das férias não gozadas em pecúnia etc. Mas tudo isso de lege ferenda e respeitando-se a autonomia dos entes federativos para legislar sobre seus servidores. Exemplo de alargamento do direito constitucional foi promovido pela União através da Lei Federal n.º 8.216, de 13/08/1991, que alterou a Lei Federal n.º 8.112, de 11/12/1990 (Estatuto do Servidores Públicos Federais), no art. 78, § 3º4. Segundo este dispositivo, o servidor exonerado deve receber, em pecúnia, os valores referentes às férias a que tiver direito por haver completado o período aquisitivo (férias vencidas e não gozadas); e ao lado delas, as férias proporcionais à duração do período aquisitivo ainda incompleto. São direitos que não foram previstos na Constituição, mas que foram alargados pela Lei Federal. A situação que se apresenta aqui e para a qual voltamos o nosso estudo é a cearense, onde não existe regulação semelhante à adotada pela Lei Federal n.º 8.112, de 11/12/1990 (com alterações da Lei Federal n.º 8.216, de 13/08/1991). A título de esclarecimento inicial, é de se dizer que a principal lei que regula os direitos e deveres da generalidade dos servidores é o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado do Ceará, a Lei Estadual n.º 9.826, de 14/05/1974, a qual não traz dispositivo específico tratando do pagamento de remuneração pelo não gozo das férias cujo período aquisitivo já tenha se completado (férias não gozadas) ou esteja ainda em curso (férias proporcionais). Em verdade, a Lei Estadual limita-se a prever a aquisição do direito às férias e outras normas procedimentais para o seu gozo.5 Nesse contexto, não se pode pensar em aplicar à esfera estadual a Lei Federal n.º 8.112, de 11/12/1990, que tem vigência restrita à União, tendo sido promulgada por tal ente federativo no exercício da sua competência para organizar o seu próprio serviço público. 4 In literis:“Art. 78. O pagamento da remuneração das férias será efetuado até 2 (dois) dias antes do início do respectivo período, observando-se o disposto no § 1º deste artigo. § 1º (Revogado pela Lei 9.527/1997) § 2º (Revogado pela Lei 9.527/1997) § 3º O servidor exonerado do cargo efetivo ou em comissão, perceberá indenização relativa ao período das férias a que tiver direito e ao incompleto, na proporção de 1/12 (um doze avos) por mês de efetivo exercício, ou fração superior a 14 (quatorze) dias.” 5 A regulação completa das férias prevista no Estatuto, por sucinta, pode ser aqui transcrita: “Art. 78o – O funcionário gozará trinta dias consecutivos , ou não de férias por ano, de acordo com a escala organizada pelo dirigente da unidade Administrativa, na forma do regulamento. §1º - Se a escala não tiver sido organizada, ou houver alteração de exercício funcional, com a movimentação do funcionário, a este caberá requerer, ao superior hierárquico, o gozo das férias, podendo a autoridade, apenas, fixar a oportunidade de deferimento do pedido, dentro do ano a que se vincular o direito do servidor. §2º - O funcionário não poderá gozar, por ano, mais de dois períodos de férias. §3º - O funcionário terá direito a férias após cada ano de exercício no Sistema Administrativo.§4º - É vedado levar a conta de férias qualquer falta no serviço. §5º - Revogado pela Lei Estadual n.º 12.913/1999. É cediça a faceta do princípio da legalidade conforme se manifesta à Administração Pública obrigando-a a manter sua atuação sempre secundum legem, que assim revela conotação diferente daquela assumida para os particulares, que só estão adstritos a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei. Ao contrário, à Administração só cabe praticar seus atos se previstos em lei. Não é demais invocar as palavras de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, ao discorrer sobre o princípio da legalidade, senão vejamos: Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é , o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no direito brasileiro. Michel Stassinopoulos, em fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de não poder atuar contra legem ou praeter legem, a Administração só pode agir secundum legem. Aliás, no mesmo sentido é a observação de Alessi, ao averbar que a função administrativa se subordina à legislativa não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedação à Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza. Afonso Rodrigues Queiró afirma que a Adminsitração “é a longa manus do legislador” e que “a atividade administrativa é atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais.”6 Ademais, a necessidade de instituir legalmente a vantagem insere-se na autonomia de que é detentor o ente federativo que irá suportar o ônus, estando ele apenas obrigado a reconhecer os direitos mínimos outorgados diretamente pela Constituição. Quando não houver previsão legal adotada pelo ente federativo autônomo, de reconhecimento de outros direitos além dos que foram constitucionalmente instituídos, não poderá também o Administrador concedê-los. E mesmo o Poder Judiciário ao fazê-lo também estará malferindo gravemente os princípios federativo e da legalidade. Para as situações em que o ente federativo resolveu inovar em seu ordenamento implantando o direito à conversão das férias integrais ou proporcionais em valor pecuniário, observa-se uma tendência no STF de reconhecer a aplicabilidade dessas novas regras às situações pretéritas. Para tais casos, por reiteradas vezes, o STF tem se valido do instituto da analogia, como vem revelando em inúmeros julgamentos acerca do Estatuto dos Servidores Públicos Federais (art. 78, § 3º, da Lei Federal n.º 8.112, de 11/09/1990, alterado pela Lei Federal n.º 8.216, de 13/08/1991), aplicando a inovação legislativa aos casos anteriores à previsão legal do direito. Desse modo, vem admitindo o pagamento de férias proporcionais mesmo nas situações anteriores à regulação legal. Foi o que ficou decidido no longo julgamento do RE n.º 196.569-0/DF, que recebeu a seguinte ementa: 6 In MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 92. CONVERSÃO DE FÉRIAS EM ESPÉCIE. SERVIDOR APOSENTADO. FUNDAÇÃO EDUCACIONAL DO DISTRITO FEDERAL Não há falar em ofensa ao princípio da legalidade, se a decisão que condenou a Administração Pública ao pagamento de férias proporcionais ao servidor que se aposentou estribou-se em aplicação analógica de lei superveniente, em perfeita consonância com a norma do § 4º, segunda parte, do art. 40 da Constituição Federal, afrontando, no caso, o princípio do direito adquirido. Recurso não provido. (STF, RE n.º 196.569-0/DF, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, julg. Em 09/09/1998, DJ 29/11/2002) Com a devida vênia, dissentimos do entendimento do Pretório Excelso ao se utilizar do recurso da analogia para tomar de empréstimo lei superveniente e, a partir de seus termos, solucionar situação perfeita anteriormente à sua promulgação. Ora, anteriormente à existência da lei no ordenamento jurídico, não existia o direito como previsão abstrata; como, então, aplicá-lo a uma situação que já havia se consolidado sob os auspícios da legislação anterior? Decidindo nesse sentido, o STF conferiu ampla e perigosa extensão ao método da analogia, ultrapassando a sua função de integração do direito, haja vista que sob o pretexto de lançar mão de tal método de integração, criou direito novo. Em verdade, a analogia consiste na aplicação de lei que regula determinada situação a outra que, embora não se encontre legalmente regulada, àquela se assemelha em seus aspectos fundamentais. A esse respeito são esclarecedoras as lições de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR7, senão vejamos: Em geral, fala-se em analogia, quando uma norma, estabelecida com e para determinada facti species, é aplicável a conduta para a qual não há norma, havendo entre ambos os supostos fáticos uma semelhança. Define-se também como aplicação extensiva (gerando confusão entre analogia e interpretação extensiva) de princípios extraídos de uma lei a casos juridicamente semelhantes, isto é, que são essencialmente iguais nos aspectos importantes e desiguais nos secundários, tendo em vista uma decisão (Ennecerus-Nipperdey, 1960). O certo é que, na decisão do STF ora sob comento, não existia lei que regulasse qualquer das situações fáticas (e nesse ponto não se olvide que, no âmbito do Direito Administrativo, não existindo lei que outorgue determinada vantagem a quem quer que seja, presume-se a sua proibição). A despeito disso, o tribunal aplicou retroativamente a lei sob o argumento de lançar mão do instrumento da analogia. É iniludível como se operou no caso a total desconsideração ao ato jurídico perfeito sob a égide da legislação anterior. Na ocasião do julgamento, manifestou-se neste sentido, em favor da inaplicabilidade retroativa do direito à indenização pelas férias não gozadas, o então Ministro MAURÍCIO CORREA que foi voto vencido, a despeito dos seguintes lúcidos argumentos articulados: 7 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação, São Paulo, Atlas, 2003, p. 301. Ora, o Tribunal “a quo” deferiu a autora o direito à indenização das férias por ela não gozadas sem atentar que à época da sua inativação não havia previsão legal que alcançasse esse objetivo, quer em face da norma federal (Lei 8.112/90), quer em virtude do preceito local, que somente veio a lume em 16 de agosto de 1991, apenas previu a hipótese de pagamento das férias vencidas e não gozadas ao servidor que vier a se aposentar, direito esse conferido a partir da sua publicação. Assim sendo, não havia como estendê-lo às situações constituídas e acabadas anteriormente à vigência da lei, sob pena de violação do princípio da legalidade como se deu na espécie. Não há, pois, para o servidor em atividade, nenhuma vantagem ou benefício previsto na Lei GDF n.º 159/91, que determine o pagamento das férias não gozadas, por ocasião da aposentadoria. A norma é especificamente aos que foram exonerados ou aposentados sem terem usufruído do direito de férias, e isto somente a partir da vigência da lei. [...] Além do mais cuida-se in casu de situação fática ocorrida antes da vigência da lei distrital, o que acarreta a ausência de previsão legal para o deferimento do pleito da autora. Em tal hipótese – inexistência de lei – impossível a aplicação analógica autorizada pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, como entendera o Plenário desta Corte, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental na Petição n.º 1.140, relator Min. SIDNEY SANCHES (acórdão publicado no DJU de 31.5.96, Ementário n.º 1.830, pág. 001),[...]. (STF, Voto do Min. Maurício Correa no RE n.º 196.569-0/DF, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, julg. Em 09/09/1998, DJ 29/11/2002) Entrementes, casos idênticos têm sido julgados pela Excelsa Corte, os quais têm obtido a mesma solução que ora repugnamos, e assim tem sido reconhecida por reiteradas vezes a aplicação analógica de lei superveniente para integrar situação fática ocorrida anteriormente à criação do direito à indenização pelas férias não gozadas (integrais ou proporcionais), conforme se verifica em recente acórdão cuja ementa colacionamos: Servidor da Fundação Educacional do Distrito Federal: direito ao pagamento das férias proporcionais e do respectivo adicional de um terço previsto no art. 7º, XVII, da Constituição, quando da aposentadoria: precedentes (Tribunal Pleno, RREE 202.626, DJ 18.6.2001 e 196.569, DJ 29.11.2002, Galvão) (STF, RE 234.068-1/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 19.10.2004, DJ 03.12.2004) SERVIDOR. APOSENTADORIA. PAGAMENTO DE PROPORCIONAIS. ACRÉSCIMO DE 1/3. C.F., ART. 7º, XVII. FÉRIAS Ao conceder a servidor que se aposentou antes do implemento do tempo alusivo à aquisição do direito às férias a indenização de férias proporcionais, o acórdão recorrido não afrontou o art. 5º, II, da Constituição Federal, posto que se baseou na analogia, que constitui um dos instrumentos eficazes ao preenchimento da aparente lacuna do sistema jurídico (art. 4º, da LICC). Precedentes do Supremo Tribunal Federal: Recursos Extraordinários n.ºs 196.569 e 202.626 (Sessão de 09.09.98). Recurso Extraordinário não conhecido. (STF, RE 205.575-1/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgado em 24.08.1999, DJ 05.11.1999) Esclareça-se, contudo, que toda essa jurisprudência do STF colacionada diz respeito a uma situação bastante específica: a aplicabilidade de uma lei posterior a uma situação outrora não regulada por lei alguma. Assim se decidiu pela aplicação analógica de lei superveniente aos casos perfeitos sob a égide da regulação legal (ou falta dela) anterior. Volvendo-nos ao exemplo cearense, nele se observa uma peculiaridade: ainda hoje não existe regulação alguma vigente que preveja a vantagem pleiteada. Diante disso, portanto, não há que se falar de analogia, a menos que se reconhecesse a aplicabilidade cogente da norma contida no Estatuto dos Servidores Públicos Federais para conceder vantagem no âmbito do serviço público estadual, solução que reputamos inadmissível. 4. DA IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA Mas observamos que o STF, mesmo nestas situações, onde não é possível a aplicação analógica de legislação porquanto inexistente no ente federativo, invoca argumentos diversos para conceder o direito à indenização pelas férias não gozadas, quais sejam: primus, o da regra geral da responsabilidade civil; e, secundus, o de que não poderá o Estado se locupletar sem causa do trabalho do servidor. É o que se depreende da ementa de recente decisão, in literis: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO APOSENTADO. DIREITO A INDENIZAÇÃO POR FÉRIAS NÃO GOZADAS EM ATIVIDADE. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. Reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula n. 279 do STF. 2. O servidor público aposentado tem direito à indenização por férias e licençaprêmio não gozadas, com fundamento na vedação do enriquecimento sem causa da Administração e na responsabilidade civil do Estado. Agravo regimental a que se nega provimento. (sublinhamos) (STF, AI-AgR 594001/RJ, 2ª Turma, Relator Min. EROS GRAU, Julg. em 10/10/2006, Publ. DJ 06-11-2006) Entrementes, tais argumentos ainda carecem de subsistência se examinados rigorosamente sob os vieses da teoria da responsabilidade civil e da própria natureza jurídica do direito às férias. De início, deparamo-nos com um óbice teórico inarredável à aplicação da teoria da responsabilidade civil do Estado para que se conceda indenização ao servidor por não haver gozado suas férias por qualquer motivo, independentemente de ser o impedimento imputado à administração, ou quando imputado ao próprio servidor. É que a teoria da responsabilidade civil do Estado não é servível a solucionar os casos em que se outorga à Administração Pública a prerrogativa de sacrificar ou limitar o direito de outrem. Ou melhor, ao menos não se aplica tal teoria quando a atuação estatal envolva necessariamente o sacrifício do direito de outrem. Tal aspecto foi abordado com proficiência por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO8, trazendo à baila posicionamento esposado pelo jurista italiano RENATO ALESSI, senão vejamos: Renato Alessi, em sua clássica monografia sobre La responsbilità della Pubblica Amministrazione, assinala que só cabe falar em responsabilidade, propriamente dita, quando alguém viola um direito alheio. Se não há violação, mas apenas debilitamento, sacrifício de direito, previsto e autorizado pela ordenação jurídica, não está em pauta o tema responsabilidade do Estado. (...) Não há falar, pois, em responsabilidade, propriamente dita, quando o Estado debilita, enfraquece, sacrifica um direito de outrem, exercitar um poder que a ordem jurídica lhe confere, autorizando-o a praticar um ato cujo conteúdo jurídico intrínseco consiste precisa e exatamente em ingressar na esfera alheia para incidir sobre o direito de alguém. E arremata: Entendemos necessário discernir, e sacar para fora do campo da responsabilidade, apenas os casos em que o Direito confere à Administração poder jurídico diretamente preordenado ao sacrifício do direito de outrem. Diversamente, consideramos inclusos no tema responsabilidade os casos em que uma atividade lícita do Estado, orientada para certo fim não necessariamente entrechocante com direito de outrem, Vem todavia, a compor situação na qual este resulta transgredido, como conseqüência mediata do comportamento estatal lícito. Nas situações aqui estudadas em abstrato não parece haver dano a um bem jurídico do servidor como ocorre nos casos em que se reconhece a responsabilidade civil do poder público; no máximo poder-se-á dizer que há a imposição de uma limitação ao exercício de um direito. Explique-se: de acordo com a norma legal, em consonância com a norma constitucional, o direito a férias é adquirido pelo servidor após um ano de efetivo exercício. A limitação ao seu exercício consiste em que este poderá se dar, a critério da Administração, a qualquer tempo durante o ano subseqüente, podendo até mesmo ser interrompida por conveniência do serviço. Ou seja, esta limitação é ínsita à própria conformação do direito ao gozo das férias. Conseqüentemente, não há que se falar em dano a um direito subjetivo e, portanto, em indenização se, tendo escolhido a Administração, no exercício regular de direito seu, o período que lhe é melhor conveniente, o servidor não puder usufruir do afastamento (férias) por haver ele se desligado do serviço público durante o período concessivo. Em verdade, ao se conceber a indenização de férias por não haverem sido gozadas pelo servidor se está redundando em um grande equívoco que assola a mentalidade de grande parte dos pensadores acerca do instituto jurídico. O exato teor das férias, sua natureza mesma, 8 Op. cit., pp. 853 e 855. em verdade, não consiste nada mais e nada menos do que a concessão de um descanso ao servidor; durante esse descanso, o que não poderá haver é um decesso remuneratório que venha a frustrar este direito e, claro, o abono pecuniário (terço), que é coisa diversa do que estamos a tratar aqui. Além desse abono, não decorre naturalmente do direito ao gozo das férias outro direito consistente em auferir um acréscimo patrimonial, mas somente o de não haver decréscimo algum. Como dissemos alhures, nada impede que se preveja, de lege ferenda, a possibilidade de indenização das férias não gozadas ao trabalhador que se desligue das suas atividades sem que tenha usufruído do afastamento por ocasião das suas férias; mas tal possibilidade precisa estar prevista expressamente por lei, respeitando-se a competência legislativa para a matéria inerente ao ente federativo. Resumindo, é de se concluir que não existe necessariamente um direito a um acréscimo patrimonial além do abono constitucionalmente previsto. No que tange ao direito ao gozo das férias, o direito ao descanso a que faz jus o servidor, encontra-se naturalmente circunscrito às necessidades administrativas, contanto que se possibilite ao servidor o descanso durante o ano subseqüente ao período aquisitivo. Disso tudo decorre que, todas as vezes em que o servidor não tenha gozado as férias por haver se desligado do serviço público, o único dano patrimonial que se é possível reconhecer é aquele consistente no não recebimento do abono pecuniário de 1/3 (um terço) relativo às férias cujo direito se perfez completamente, e não se pode vislumbrar outro dano sofrido. Com mais razão, se o gozo do descanso tiver sido obstado por atuação do próprio servidor, como um pedido de exoneração ou de aposentadoria. Não concordamos com a idéia de que possa haver um prejuízo moral ao servidor por não ter usufruído do descanso necessário ao refazimento das suas energias, já que este poderia ser concedido a qualquer tempo pela Administração durante o período concessivo (exercício regular de direito), que apenas não poderá mais fazê-lo porque o servidor foi desligado das suas atividades, o que muitas vezes se dá justamente para que este servidor possa gozar deste direito ao descanso legalmente reconhecido (aposentadoria, por exemplo). Destarte, não havendo dano causado a direito do servidor, também não poderia haver responsabilidade civil do Estado em tal caso, mesmo porque a ausência de dano constitui excludente da responsabilidade do ente público. E conforme bem salienta CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO9, o dano deve corresponder a um direito da vítima, senão vejamos: 9 Op. cit., pp. 879 e 881. Para que nasça o dever público de indenizar é mister que o dano apresente certas características. (a) A primeira delas é que o dano corresponda a lesão a um direito da vítima. Quem não fere direito alheio não tem por que indenizar. Ou, dito pelo reverso: quem não sofreu gravame em direito não tem título jurídico para postular indenização. Isto é, importa, como disse Alessi, dantes citado, que o evento danoso implique, ademais de lesão econômica, lesão jurídica. (...) Há ainda outro traço necessário à qualificação do dano. (b) Para ser indenizável cumpre que odano, ademais de incidente sobre um direito, seja certo, vale dizer, não apenas eventual, possível. Tanto poderá ser atual como futuro, desde que certo, real. Não estamos aqui afirmando que a responsabilização do ente público apenas deverá ter lugar na ocorrência de atuação ilícita da Administração. Falar em ausência de dano a direito subjetivo é coisa absolutamente diversa. Mesmo porque é cediço que, para a moderna noção de responsabilidade civil objetiva do Estado, tanto o ato ilícito quanto o lícito poderão dar ensejo à indenização da vítima10. Ocorre que esta deverá ter sido lesada em direito seu, possuindo fundamental importância a consideração da licitude sob o aspecto passivo da relação, embora tal questão (acerca da licitude ou não) seja desimportante sob o prisma da conduta do sujeito ativo. Se não sofreu dano a direito algum, esta não poderá ser indenizada. E como já temos dito, a prerrogativa conferida ao ente público de conceder o exercício das férias quando lhe convier, contanto que dentro do período concessivo, faz parte da própria conformação do direito do requerente, de modo que não se poderá reconhecer dano algum a este direito quando as férias não foram concedidas ainda no curso do período concessivo e o servidor se desliga do serviço público. Mormente quando se verificar que o descanso a que faria jus o servidor apenas não foi usufruído por atuação a ele próprio imputada, qual seja, a sua exoneração a pedido ou aposentadoria voluntária, por exemplo. Sendo assim, ainda que fosse possível a aplicação das noções de responsabilidade civil ao caso que em verdade se trata de questão concernente a limitação de direitos, é sabido que a culpa da vítima é causa excludente da responsabilidade estatal.11 Tal causa faz desaparecer o nexo causal entra a ação do Estado e o resultado, excluindo a responsabilidade objetiva. 10 Encontramos em DI PIETRO definição bastante sintética e que exaure em poucas linhas tal aspecto da responsabilidade civil do Estado: “Pode-se, portanto, dizer que a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, São Paulo, Atlas, 2006, p. 618. 11 “São apontadas como causas excludentes da responsabilidade a força maior e a culpa da vítima. (...) Quando houver culpa da vítma, há que se distinguir se é sua culpa exclusiva ou concorrente com a do poder público; no primeiro caso, o Estado não responde; no segundo, atenua-se a sua responsabilidade, que se reparte com a da vítima(...)”DI PIETRO, Maria Sylvia, op. cit., pp. 624-625, Outrossim, o fato de não haver o servidor gozado as férias a que teria direito não repercute de forma alguma em enriquecimento sem causa em favor do Estado, a menos quanto ao abono pecuniário (terço), que deverá ser pago. É conhecido o quão este conceito vem servindo qual uma panacéia a um sem número de propósitos. Parece-nos, contudo, inadequado, uma vez que durante o período em que o servidor se mantém em atividade recebe contraprestação para tanto. Considerando o servidor ter sido regularmente remunerado pelos seus serviços prestados durante um período em que era lícito ao Estado exigir sua prestação, encontra-se ilidida a possibilidade de se falar em locupletamento sem causa. O fato de não haver ocorrido o seu afastamento a título de férias anteriormente ao vencimento do prazo conferido à Administração para a concessão não implica locupletamento do Estado, tampouco lesão a direito de quem quer que seja. Pensamos que não se pode tratar os princípios e conceitos jurídicos como se caminhassem sem peias, mas sim devem ser compreendidos de modo concatenado a toda a ordem jurídica. No que tange ao recebimento de indenização pecuniária a titulo de férias proporcionais, é ainda mais patente a ausência de respaldo jurídico na órbita cearense. Quando se pleiteiam férias proporcionais está-se a pleitear a percepção de um direito que sequer perfez ainda para que possa ser incorporado ao patrimônio jurídico do servidor. Isso porque nos sistemas onde não se reconhece o direito a férias proporcionais, o direito a férias apenas se existe com o efetivo exercício pelo servidor durante um período de doze meses, que se denomina período aquisitivo. Sem isso, não se adquire o direito, a menos que exista disposição legal expressa reconhecendo o direito à percepção proporcional correspondente ao tempo de serviço incompleto. A ausência de disposição legal expressa torna aplicável tudo quanto se disse acerca do direito à percepção em pecúnia das férias integrais. Conceder o pagamento relativo a férias proporcionais seria, portanto, uma infração ao princípio da legalidade, estando igualmente descartada a aplicação analógica da Lei Federal. Acrescente-se a isso considerações outras quanto à aplicação da teoria da responsabilidade civil do Estado que, como se viu acima, constitui um tópico argumentativo bastante manejado para solução de casos referentes a indenização pelo não gozo de férias. Ora, se não houve sequer a aquisição do direito, menos ainda nesses casos será possível falar em dano quando não se operou a aquisição do direito às férias por completo, por não haver cumprido o período aquisitivo. O direito ao descanso só é reconhecido por haver o servidor sofrido o desgaste físico por lapso temporal contínuo significativo. Desse estado de coisas decorre que não se verifica a certeza de um dano indenizável a um direito do servidor, uma vez que esse direito às férias estaria condicionado ao eventual cumprimento integral do período aquisitivo. 5. CONCLUSÕES 1. O direito constitucional ao gozo das férias albergado pela CF/1988 consiste em um direito a um descanso remunerado como se o servidor em efetivo exercício estivesse, adicionado à percepção de um abono pecuniário (terço de férias). 2. A possibilidade de conversão das férias não gozadas depende de prévia e expressa lei do ente federativo competente, sendo inaplicável a Lei Federal (Estatuto dos Servidores Públicos Federais) à órbita de outro ente federativo por afronta ao princípio da legalidade e a divisão federativa de competências. 3. Também a percepção de valor monetário a título de férias proporcionais, relativa a período em que o direito à aquisição das férias ainda não se completou, depende de prévia e expressa lei do ente federativo competente. 3. A noção de responsabilidade civil por um dano causado pelo ente público não se aplica aos casos em que o servidor deixou de gozar as férias quando teve que se afastar durante o período concessivo, uma vez que é ínsito ao próprio direito às férias que esta seja concedida ao alvedrio da Administração Pública durante o período concessivo. 4. Quando o gozo das férias é obstaculizado por ação do próprio servidor (p. ex., exoneração a pedido e aposentadoria voluntária), há culpa exclusiva da vítima e, em muitos casos, ausência de dano (inativação, quando o servidor já estará no gozo do descanso). 5. O direito a férias não implica direito a acréscimo patrimonial além do abono (terço) de férias, de modo que o seu desligamento do serviço por si só não implicará dano patrimonial a ser indenizado, ainda que se tenha completado o período aquisitivo. 6. A percepção de férias proporcionais, quando não prevista em lei, não poderá ser concedida a título de responsabilidade civil, uma vez que não se poderá falar em lesão a um direito que não integrou o patrimônio jurídico do servidor. 7. A percepção de férias proporcionais não poderá ser fundamentada na noção da vedação ao enriquecimento sem causa, considerando haver o servidor vertido em favor da Administração sua mão-de-obra e ter sido efetivamente remunerado por isso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo, Malheiros, 2001. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo, Atlas, 2006. FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo, Atlas, 2003. FREITAS, Juarez. Estudos de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 1995. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo, Saraiva, 2005. MEIRELLES, Hely Lopes. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 15. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo, Malheiros, 2003.