PALESTRA XVIII Simpósio de Mirmecologia BIOLOGIA DE ALGUMAS ESPÉCIES DE BLEPHARIDATTA P.R. da Silva Universidade São Marcos, R. Clóvis Bueno de Azevedo, 176, CEP 04266-040, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected] As formigas do gênero Blepharidatta têm distribuição exclusivamente Neotropical e eram até há alguns anos consideradas extremamente raras, sendo representadas por pouquíssimos espécimes em coleções de museus. O gênero pertence à Myrmicinae e em 1995 foi incluído por BOLTON na tribo Blepharidattini juntamente com o gênero Wasmannia. Análises filogenéticas feitas por SHULTZ & MEIER (1995) e trabalhos não publicados de DINIZ & MAYÉ NUNES (comunicação pessoal) consideram uma estreita relação entre Blepharidatta e atíneos. Em 2003, BOLTON publica que a tribo Blepharidattini apresenta sinapomorfias com Attini. Atualmente são reconhecidas sete espécies de Blepharidatta: - B. brasiliensis, descrita por WHEELER em 1915, com distribuição amazônica, registrada no Brasil e na Venezuela; - B. conops, descrita por KEMPF (em 1967), que ocorre na região central do Brasil (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e Maranhão); - uma espécie ainda não descrita registrada em matas pluviais do leste da Bahia, designada como Blepharidatta sp.; - uma espécie conhecida apenas por cinco exemplares de machos coletados em 1971 na caatinga de Pedra Azul (norte de Minas Gerais). Esta espécie foi indicada por DINIZ (1994) enquanto fazia a revisão do gênero. Este material foi depositado na coleção do Museu de Zoologia da USP; - uma espécie não descrita, coletada e registrada na Bahia por JACQUES DELABIE (comunicação pessoal em 2002), diferente de Blepharidatta sp. O material foi depositado na coleção do CEPLAC em Ilhéus, na Bahia; - uma espécie não descrita de matas da Amazônia boliviana, conhecida por exemplares de operárias coletadas em abril de 2003 por Fernando Fernandez. O material foi depositado na coleção da Fundación Humboldt na Colômbia; - em maio de 2003, Antônio Tavares trouxe para a coleção do Museu de Zoologia da USP duas operárias de mais uma espécie não descrita. Os exemplares foram coletados por Quinet na caatinga de Crateús, no Ceará. Até agora, apenas as três primeiras espécies foram estudadas. B. conops é a mais bem conhecida. Jorge Diniz, Carlos Roberto F. Brandão, Patricia Romano da Silva e Flávio Roces fizeram vários estudos sobre B. conops; Jorge Diniz, Patricia Romano da Silva, C. Rabeling, Manfred Verhaagh e Ulrich Mueller estudaram alguns aspectos de B. brasiliensis e um pouco da biologia de Blepharidatta sp. foi estudada por Jorge Diniz e Patricia Romano da Silva. As larvas de B. brasiliensis foram estudadas por George C. Wheller e Jeane Wheeler. B. conops habita os cerrados brasileiros. Formigas desta espécie escavam ninhos de arquitetura simples e freqüentemente acumulam carcaças de artrópodes ao redor do orifício de entrada de seus ninhos. As operárias forrageiras de B. conops coletam artrópodes vivos ou mortos para alimentarem suas larvas. Restos desse material são arranjados ao redor da entrada do ninho, formando um anel, e quando artrópodes que se alimentam de material em decomposição se aproximam do anel eles são emboscados, puxados e despedaçados pelas operárias-guardas que ficam escondidas sob a abertura do ninho. Depois de puxados pelas operárias até a boca do ninho cairiam em câmaras alargadas na base do ninho e seriam fragmentados. Há cooperação entre as forrageadoras durante o transporte de material grande e pesado. A distribuição regular dos ninhos de B. conops sugere competição intra-específica por recursos limitados e pelo controle de áreas para o estabelecimento de novos ninhos. O acompanhamento ao longo de seis meses de trinta e dois ninhos de B. conops em uma área de 100 m2 em Selvíria (Mato Grosso do Sul) revelou que quando a distância entre dois ninhos é maior do que duas vezes o raio de suas áreas de forrageamento, isto é, quando não há intersecção entre áreas de forrageamento, estes não migram. Ninhos mais próximos chegaram a migrar quatro vezes neste período. As migrações não seguiam direção preferencial como seria esperado caso o ambiente fosse o determinante. A direção de migração parece ser preferencialmente a oposta à direção onde está o ninho mais próximo, sugerindo que as migrações ajudem a evitar a competição pelas carcaças. As constantes migrações das colônias de B. conops para novos ninhos podem ser devidas à pressão da predação de larvas e pupas por coleópteros Histeridae. Este padrão de distribuição dinâmico também pode estar relacionado com o modo de fundação dos ni- Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.161-164, 2007 161 162 XVIII Simpósio de Mirmecologia nhos pela ergatóide, que consiste em fissões, onde um grupo de operárias e uma ergatóide jovem deixam o antigo ninho e formam outra colônia em novo ninho. Esta espécie apresenta uma forma de proteção contra predação única entre as formigas: As ergatóides de B. conops apresentam extraordinárias modificações na cabeça e na porção anterior do tronco, que formam uma estrutura com a forma de um disco. Quando os ninhos são invadidos por predadores como os besouros Histeridae, as formigas levam os imaturos a uma câmara subsidiária separada da câmara principal por uma parede construída pelas operárias com fragmentos de carcaças das presas capturadas. A ligação entre as duas câmaras é através de um pequeno túnel, que é fechado pela rainha com sua porção anterior modificada. Há construção do mesmo tipo de parede com a mesma localização no interior de vários ninhos de B. conops no campo, em diferentes localidades: Campinaçu (Goiás), Chapada dos Guimarães (Mato Gosso), Selvíria 51º25"W (Mato Grosso do Sul) e Três Lagoas (Mato Grosso do Sul). Uma colônia da Chapada dos Guimarães construiu parede similar em um ninho artificial mantido no Laboratório de Hymenoptera (MZ-USP). Há provavelmente ainda mais uma forma de proteção a predadores: o comportamento peculiar de operárias quando aparentemente parecem disputar seus próprios imaturos. Enquanto uma operária de B. conops carrega um imaturo dentro de seu ninho, segurando-o entre suas mandíbulas, uma ou mais operárias se aproximam, abrem suas mandíbulas e seguram o mesmo imaturo pela extremidade livre. Durante alguns segundos as operárias puxam o imaturo cada uma para o seu lado. A operária que ao fim da “disputa” consegue permanecer com o imaturo afasta-se rapidamente, caminhando para outra parte do ninho. Os imaturos jamais são feridos. Ao submeter algumas colônias a vibrações artificiais visando simular a presença de invasores, este comportamento sempre se desencadeava. Testes revelaram que não há relação com o processo de ecdise dos imaturos ou com o estabelecimento de uma hierarquia entre as operárias que exibem este comportamento. Um imaturo seguro por duas operárias é mais difícil de ser capturado do que quando é seguro apenas por uma. Não existe uma casta de rainhas verdadeiras nas colônias nas três espécies de Blepharidatta e a função reprodutiva é exercida por fêmeas sem asas, semelhantes às operárias e consideradas ergatóides. As colônias de B. conops são monogínicas. A ergatóide é relativamente maior que as operárias co-específicas e possui cicatrizes da asa anterior. Quando uma colônia de B. conops se torna órfã, em um período de 24 a 72 horas as operárias selecionam a maior larva pré-existente, mantém-na à parte e a superalimentam através de trofaláxis consecutivas durante um período de aproximadamente 24 horas. As larvas que originam ergatóides jamais são posicionadas pelas operárias e se alimentam diretamente das carcaças oferecidas. Portanto, a criação de uma ergatóide envolve aspectos nutricionais quantitativos transmitidos via trofaláxis. As observações da criação de uma nova ergatóide em uma colônia órfã levaram à hipótese de que a ergatóide controle a produção de novas reprodutoras na colônia e que talvez este controle esteja relacionado com alguma substância produzida pela glândula sob os poros citados acima. No local onde as asas são normalmente inseridas nas rainhas das formigas foi observado sob lupa estereoscópica com aumento de 100 vezes que existe nas ergatóides de B. conops uma mancha escura. Esta mancha corresponde ao microscópio eletrônico de varredura a dois brotos alares que não se desenvolvem e apresentam um poro na base comum semelhante ao que na literatura é descrito como se originando de glândulas epidérmicas. O acompanhamento de situações experimentais mostrou que colônias de B. conops com a rainha ergatóide com os poros da área dos brotos alares não vedados geralmente não produzem nova rainha enquanto a residente está presente, ou, se ocorrer, a jovem morre em poucos dias caso não migre. Colônias de B. conopscom a rainha ergatóide com os poros da área dos brotos alares (possivelmente) artificialmente vedados não produzem nova rainha enquanto a residente está presente. B. brasiliensis nidifica em serapilhera, entre as folhas, em cavidades de plantas vivas ou em caules cobertos por folhas, onde também acumulam carapaças de artrópodos. Em alguns ninhos foram encontradas câmaras com carcaças e fungos e, no lixo, insetos, aranhas, diplópodos e pequenos fragmentos de caules. Como B. conops, B. brasiliensis alimenta-se de carcaças, atacando imediatamente uma presa oferecida. Uma operária ou várias operárias se aproximam, tocam a presa e a ferroam. É muito comum um comportamento nunca observado em B. conops: As operárias de B. brasiliensis locomovemse com o gáster voltado para baixo e para frente. De modo diverso ao de B. conops, nas colônias de B. brasiliensis e de Blepharidatta sp. podem existir mais de uma ergatóide e as operárias não são muito menores que as ergatóides. Blepharidatta sp. nidifica em serapilhera, no espaço entre as folhas e acumula carcaças de artrópodes e outros restos dentro e ao redor das aberturas de entradas de seus ninhos. Assim como B. conops, as operárias de Blepharidatta sp. alimentam-se de invertebrados, sugando-os pelas áreas de articulações e pelas cavidades das regiões cortadas (nos casos de cabeças e pernas cortadas). Enquanto manipulam uma presa e se alimentam dela, algumas operárias ficam sobre a presa. Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.161-164, 2007 163 XVIII Simpósio de Mirmecologia Quadro 1 – Comparação de traços da biologia das três espécies estudadas. Característica Distribuição geográfica Habitat Ninho Número de reprodutoras ergatóides Ergatóide Postura de ovos Oofagia Número de operárias por colônia Tamanhos médios dos indivíduos de cada casta Presença de machos Carcaças Alimentação e tamanho das presas Interações Tanatose Operárias que “dormem” deitadas no chão Disputas pelos próprios imaturos Gota anal expelida pela larva Mortos Recrutamento Fusão de colônias em laboratório Inquilinos no ninho Blepharidatta sp. BA Floresta Tropical Úmida feito entre ou sob folhas e fragmentos de galhos secos. monogínicas (minhas obser vações); poligínicas (DINIZ, 1994): “produzem” uma nova quando retiramos a original. B. conops GO, MT, MS, MA e TO Cerrados construído no solo (cerca de 20 cm de profundidade). monogínica B. brasiliensis AM, PA, AC eVenezuela Floresta Tropical Úmida feito entre ou sob folhas e fragmentos de galhos secos. poligínica “produzem” uma nova quando retiramos a original. ergatóide e operárias ergatóide e operárias alimentam-se de ovos de operárias. 139, 96 + -73,30, N = 33 “produzem” uma nova quando retiramos a original. ergatóide e operárias ergatóide e operárias alimentam-se de ovos de operárias. 167,66+-67,64, N = 5 ergatóide: +-5 mm operária:+-3 mm macho:+-4 mm outubro a junho ergatóide:+-2 mm operária:+-1 mm macho: +-1,5 mm outubro a abril ao redor do orifício de entrada do ninho. artrópodos emboscados, injuriados ou mortos até 100 x o tamanho de uma operária. trofaláxis, limpeza pouco freqüente apresenta Não observado artrópodos emboscados, injuriados ou mortos menores até maiores que uma operária. trofaláxis, limpeza pouco freqüente Não apresenta ergatóide: +-2 mm operária: +-1 mm macho: +-1,5 mm não produziu machos no período de observação dispostas próximas as folhas secas onde estão os ninhos. artrópodos emboscados, injuriados ou mortos mesmo tamanho de uma operária ou menor. trofaláxis, limpeza muito freqüente não apresenta realizam Não realizam não realizam presente e operárias se alimentam da gota cemitério aparente observado (Diniz, 1994) possível ausente ausente Sem área preferencial observado possível sem área preferencial não observado não observado apresenta apresenta apresenta As operárias de B. brasiliensis e Blepharidatta sp. comportam-se de modo semelhante ao das operárias de B. co nops. Atos comportamentais como autolimpeza, limpeza de companheiras de ninho, cuidados com os imaturos (mantendo-os seguros entre as mandíbulas, lambendo-os e os alimentando através de trofaláxis ou os posicionando diretamente sobre as presas) são executados de forma semelhante por indivíduos nas três espécies. B. brasiliensis e B. conops também têm em comum o fato de que algumas de suas presas apresentam tama- ergatóide e operárias ergatóide e operárias alimentam-se de ovos de operárias. 112+-12,72, N = 2 nho bem maior que o dos indivíduos destas espécies de Blepharidatta (em alguns registros de até 100 vezes o tamanho). Uma vez que os indivíduos destas espécies não apresentam nenhuma estrutura que os capacita a serem grandes predadores, parece então provável que os indivíduos se alimentam de presas seriamente feridas ou de restos de presas que encontram durante o forrageamento ou ainda realizando emboscadas, registrado apenas em B. conops. Os fragmentos encontrados na pilha de restos alimentares de Blepharidatta sp. eram de organismos Biológico, São Paulo, v.69, suplemento 2, p.161-164, 2007 164 XVIII Simpósio de Mirmecologia do mesmo tamanho ou menores que as operárias desta espécie, mas pelo comportamento que estas formigas exibem frente ao oferecimento das iscas, comparado com o das espécies descritas, devem freqüentemente coletar animais seriamente feridos ou mortos, ou coletar restos destes seres, como B. conops e Blepharidatta sp. Observe Quadro 1. B. conops, B. brasiliensis e Blepharidatta sp. compartilham muitos tipos de comportamentos, mas somente B. conops apresenta ergatóide com cabeça e pronoto modificados formando uma placa única utilizada como estrutura fragmótica; operárias que “dormem”; e operárias que realizam aparentes disputas como forma de proteger seus próprios imaturos ao ataque de predadores. B. conops reúne maior número de caracteres derivados em relação às outras espécies conhecidas do gênero. 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