Tecnologia e design indígena: bases para uma antropologia

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Tecnologia e design indígena: bases para uma antropologia aplicada à arquitetura
Maria Fátima Roberto Machado / Antropóloga Profª. Dra. Dep. de Antropologia UFMT
José Afonso Botura Portocarrero / Arquiteto Prof. Dr. Dep. Arquitetura e Urbanismo UFMT
Dorcas Florentino de Araújo / Arquiteta Profª. MSc. Dep. Arquitetura e Urbanismo UFMT
Yara da Silva Nogueira Galdino / Arquiteta Profª. MSc. Dep. Arquitetura e Urbanismo UFMT
Resumo
O presente artigo pretende apresentar o projeto de extensão Tecnologia e design indígena: bases
para uma antropologia aplicada à arquitetura, que se apresenta como a concretização de vários
anos de experiência multidisciplinar na Universidade Federal de Mato Grosso, reunindo
pesquisadores das áreas de antropologia, arquitetura e engenharia civil. Este projeto pretende
oferecer espaço para a superação de visões tecnológicas e estéticas exógenas e hegemônicas
atualmente presentes em Mato Grosso, sensibilizando e envolvendo jovens estudantes de
arquitetura na construção de um espaço institucional de interlocução, de onde possam emergir
releituras do design e da arquitetura indígena que possam ser instrumento de intervenções
alternativas na cidade.
Abstract
This article aims to present the project: Indigenous design and technology: basis for an
anthropology applied to architecture, which presents itself as the realization of years of
multidisciplinary experience at Universidade Federal de Mato Grosso, bringing together
researchers from anthropology, architecture and civil engineering. This project aims to provide
space to overcome the exogenous and hegemonic technological and aesthetic visions currently
present in Mato Grosso, involving young students of architecture in building an institutional space
for dialogue, from which can emerge reinterpretations of indigenous design and architecture which
can be an instrument of alternative interventions in the city.
1. Introdução
Mato Grosso abriga a maior diversidade cultural indígena do Brasil. São 40 povos vivendo em
aproximadamente 12% do território estadual, nas mais diferentes situações de contato com nãoíndios, partilhando uma multiplicidade de línguas e de patrimônio cultural, expressos em uma
infinidade de símbolos e bens materiais ainda pouco conhecidos dos brasileiros e estrangeiros.
Quem visita hoje as cidades de Mato Grosso, desde as mais antigas até aquelas que cuja
existência não alcança mais de três décadas constata uma completa ausência de um diálogo
urbano com a cultura e as sociedades indígenas, apesar da presença viva de seus descendentes
nas feições e nos modos de vida dos moradores mais tradicionais.
Pesquisadores que têm domínio do acúmulo de conhecimento da etnologia mundial,
produzida por grandes nomes brasileiros e europeus, a partir de expedições no século XIX, em
particular entre os índios do Xingu, assim como nós da Universidade Federal de Mato Grosso, já
partilham há décadas o contato estreito com as aldeias da região. Desta relação vem sendo
gerada uma produção bibliográfica crescente, que ainda tem dificuldades de romper os limites da
academia. Deste modo temos muito que lamentar, a imensa perda que significa essa ausência de
diálogo cultural para os mais diferentes setores da nossa sociedade, índios ou não.
Certamente o preconceito decorrente da socialização que privilegia uma visão exógena entre
as crianças e jovens mato-grossenses, que desvaloriza nossos bens simbólicos, associados aos
mais variados interesses econômicos, explicam a incapacidade das nossas forças produtivas e
intelectuais em elaborar propostas criativas e inovadoras de intervenção cultural em nossas
cidades. Basta observar o setor da construção civil local, que impõe uma padronização da
estética arquitetônica própria de modos de vida de sociedades distantes da nossa.
Objetivando sanar esta imensa lacuna cultural foi fundado em 2007 o Grupo de Pesquisa
Tecnoíndia, que surge a partir da experiência acumulada através de projetos de pesquisa do
Departamento de Antropologia e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, integrando
professores arquitetos e antropólogos da Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente o
Grupo tem como uma de suas principais frentes de trabalho o projeto de extensão intitulado
“Tecnologia e design indígena: bases para uma antropologia aplicada à arquitetura”, que
pretende iniciar um debate necessário e urgente entre os alunos do curso de arquitetura e a
sociedade mato-grossense a respeito de nossa real identidade enquanto habitantes de Mato
Grosso. A perspectiva é estimular a reflexão e a ação em torno das nossas identidades diversas,
baseadas na promoção e integração de novos signos culturais urbanos, que possam alcançar os
mais variados campos de atuação profissional, tendo a arquitetura e o design indígena como
marcos iniciais de referência. Tal proposta pretende oferecer as culturas nativas um patamar de
maior respeitabilidade, valorização e de inserção na cidade.
2. Experiências precedentes
2.1. Museu Rondon
O departamento de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso, oferece a sociedade
desde 1972 um centro de indigenismo, pesquisa e divulgação das culturas indígenas. A
existência do Museu Rondon se consolidou através das pesquisas e estudos realizados por este
departamento nas inúmeras aldeias de Mato Grosso, e desta relação de proximidade com os
índios foi sendo formado um acervo de peças de uso tradicional, coletadas diretamente nas
aldeias. Atualmente o acervo do Museu Rondon ultrapassa mil peças, incluindo adornos
plumários, indumentárias, armas, artefatos de ritual mágico, cerâmicas, instrumentos musicais,
tecelagem, trançados, utensílios, além do material fotográfico retratando o cotidiano das aldeias.
Ao lado do Museu, foi construída uma casa indígena no modelo ovalado xinguano, que exigiu
dos índios Bakairi a recuperação de sua própria memória (MACHADO, 2009).
2.2. Estudos e pesquisas sobre tecnologias Indígenas
O Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Tecnologias Indígenas – Tecnoíndia teve início em
2002, com projeto de mesmo nome, que tinha como objetivo melhorar o atendimento à saúde dos
povos indígenas, a partir da construção e adaptação de unidades de saúde direcionadas ao
atendimento aos índios. O projeto foi realizado em parceria com a UFMT e a FUNASA entre os
anos de 2002 e 2006, tendo a Prof.ª Maria Fátima Roberto Machado como coordenadora e o
professor José Afonso Botura Portocarrero como principal pesquisador. A partir de 2007, a
experiência acumulada no primeiro projeto impulsionou a ampliação dos estudos para as outras
áreas, como habitação, tecnologia e design de peças e objetos utilizados pelos povos indígenas
que poderiam ser estudados, ampliando o acervo de pesquisa e troca de saberes entre as
culturas.
Através de ações continuadas o núcleo de estudos Tecnoíndia se propõe a organizar, manter
e ampliar o acervo documental de bens materiais e imateriais indígenas, constituindo fonte para
novos trabalhos de pesquisa, extensão e projeto, assim como constituindo rico acervo memorial
para os povos pesquisados.
O núcleo atualmente vem trabalhando de forma multidisciplinar com um projeto de extensão
que busca superar as visões tecnológicas e estéticas exógenas e hegemônicas atualmente
utilizadas em nossa região, sensibilizando os estudantes de arquitetura e a sociedade para leitura
e releitura das edificações, utensílios e ornamentos da cultura indígena, através da promoção de
um espaço institucional de interlocução entre estas culturas.
2.3. Arquitetura e tecnologia indígena
No campo da arquitetura e do design o Grupo de Pesquisa Tecnoíndia incorpora as
contribuições teóricas contemporâneas sobre tecnologias apropriadas, contidas principalmente
nos trabalhos do arquiteto José Afonso Botura Portocarrero – professor do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da UFMT, vice-líder do grupo de pesquisa Tecnoíndia e membro do
projeto de extensão “Tecnologia e design indígena”, o qual desenvolveu dissertação de mestrado
e tese de doutorado sobre a habitação e o manejo do espaço indígena. Seu desafio tem sido
demonstrar que as soluções e técnicas construtivas indígenas são viáveis de serem empregadas
nos sistemas construtivos de edificações e espaços urbanos. Seus projetos arquitetônicos
promovem uma associação entre as culturas nativas e as inovações tecnológicas, visando à
melhoria tanto das técnicas contemporâneas utilizadas em nossa sociedade quanto das técnicas
acumuladas pelo conhecimento empírico e tradicional, constituindo uma arquitetura igualmente
geradora de saber, ambientalmente adequada e formalmente expressiva.
Os estudos mencionados estão refletidos em projetos arquitetônicos executados em Mato
Grosso a partir do Campus Universitário da UFMT no Médio Araguaia, no Pontal do Araguaia
(1986); da sede da Associação dos Docentes da UFMT – ADUFMAT, em 1992; o Centro de
Estudos e Pesquisas do Pantanal (2004) e o Memorial Rondon (2002), ambos no Pantanal
(Figura 1); o projeto da Casa de Saúde Indígena – CASAI, para FUNASA (2006); do Núcleo de
Pesquisas Tecnoíndia (2006), no campus da UFMT em Cuiabá e o Espaço do Conhecimento,
para o SEBRAE (em construção). Esses e outros trabalhos com forte referência indígena foram
exibidos na 7ª Bienal Internacional de Arquitetura, em São Paulo (2007), onde o arquiteto foi
convidado em função da relevância e singularidade de sua obra.
Figura 1: Maquete do Memorial Rondon exposta na 7o Bienal Internacional de Arquitetura.
Arquiteto José Afonso Botura Portocarrero. Ano 2007.
O espaço onde hoje funciona o Grupo de Pesquisa Tecnoindia foi projetado como um
protótipo de uma construção que tem a casa indígena como arquétipo, mas pensada e
desenhada para ser utilizada na cidade. Este projeto traz em si aspectos da arquitetura
modernista e também da arquitetura indígena, principalmente em função da economia de meios,
pureza formal, e forte relação entre a estrutura e a forma (Figura 2). Os materiais construtivos
utilizados foram: estrutura metálica, telha termo-acústica, treliçado de madeira e vidro.
Figura 2: Núcleo de Estudos TECNOINDIA – Universidade Federal de Mato Grosso.
Arquiteto José Afonso Botura Portocarrero. Ano 2006.
Foto: Revista Ginco N. 2.
As pesquisas sobre arquitetura indígena permitiram evidenciar que algumas máximas da
arquitetura contemporânea, como integração de ambientes, pé direito duplo, e sustentabilidade já
são praticadas nos espaços indígenas há muito tempo (PORTOCARRERO, 2006).
Os materiais e formas utilizadas na arquitetura indígena contribuem para que a edificação
alcance um excelente desempenho em relação ao conforto ambiental, qualidade formal,
estabilidade e durabilidade. Segundo Portocarrero (2002) a casa indígena possui conforto térmico
por não ser hermeticamente fechada, permitindo que entre as frestas da palha haja um escape do
ar, além do próprio desenho da cobertura da casa indígena convencional conduzir o ar quente
para o ponto mais alto.
3. Construção de um novo cenário a partir da Extensão
O projeto de extensão “Tecnologia e design indígena: bases para uma antropologia aplicada à
arquitetura”, integra-se a uma larga experiência no ensino de arquitetura e antropologia na UFMT,
e a uma ampla trajetória de pesquisas envolvendo as duas áreas com trabalhos de campo entre
os povos Bororo, Paresi, Umutina, Iranxe, Myky, Xavante e grupos do Xingu.
O projeto intenta promover a criação e a efetivação de um espaço institucional na UFMT para
a proposição de novas perspectivas para projetos de arquitetura e design, voltados para a
valorização dos símbolos materiais e imateriais dos povos indígenas de Mato Gross, visando uma
intervenção concreta e alternativa no ambiente urbano regional e uma positivação nas relações
étnicas, geralmente marcadas por conflitos.
O projeto incorpora os ensinamentos da experiência canadense acerca do intenso diálogo
urbano com as culturas aborígines, expresso em monumentos tradicionais em parques, escolas,
museus, ambientes públicos e na mídia, apreciados a partir de uma missão técnica ao Canadá
em 2003. Esta missão técnica, realizada a convite do Governo do Canadá e coordenada pelo
Museu Rondon, contou com uma equipe composta por professores do curso de Antropologia e
representantes indígenas. A missão incluiu visitas a universidades, museus, e centros de tradição
de estudos aborígines, o que proporcionou rico acervo documental que será utilizado neste
projeto de extensão.
Os estudantes do curso de arquitetura e urbanismo da UFMT serão a sua base de
sustentação do projeto. Estes jovens serão preparados e estimulados a pesquisarem e se
apropriarem das informações, conhecimentos e imagens expostos no Museu Rondon e na
bibliografia relacionada ao tema, de modo que se constituam personagens ativos na criação
deste espaço institucional de sensibilização e envolvimento. Estes mesmos estudantes serão
também responsáveis pela elaboração de propostas de releituras urbanas a partir de códigos
culturais tradicionais, que poderão ser incorporados pelos órgãos públicos e pelos setores
produtivos da sociedade mato-grossense.
Os projetos de intervenção urbana, elaborados com base nos símbolos das culturas indígenas
de nossa região, elaborados pelos estudantes, terão a arquitetura como o marco inicial de
referência, mas poderão atingir também uma multiplicidade de setores produtivos nos quais se
aplica a noção ampla de design como criação de logos, totens, sites, vestimentas, coleção de
grafismos, monumentos, etc.
Os resultados do projeto serão incorporados tanto nos materiais didáticos que retornarão para
as salas de aula, quanto na produção de conhecimento científico, como artigos e ensaios. Além
de serem incorporados ao acervo do Museu Rondon virtual, para consulta de estudantes, turistas
e publico em geral.
4. Considerações finais
Motivado pelas mudanças ocorridas na sociedade mato-grossense, nas últimas décadas,
como resultado do intenso movimento migratório de pessoas oriundas do sul do país para região,
o presente projeto de extensão se consolida como um esforço de se estabelecer um diálogo
necessário entre a cultura indígena e não indígena.
Através do empenho em estabelecer novas bases de convivência entre as áreas de
conhecimento na UFMT, o projeto se constitui ainda como um laboratório de antropologia
aplicada, gerador de novas reflexões (teóricas e práticas) acerca das possibilidades de superação
dos estigmas de caráter étnico nas relações desta sociedade multifacetada, servindo como
exemplo de novas possibilidades para os próprios índios, na direção do desenvolvimento
sustentável de suas comunidades extremamente dependentes dos recursos públicos, vitimadas
pela visão preconceituosa instituída pela estrutura política local e regional.
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