A QUEM PERTENCE O TRABALHO DAS MULHERES? Nayara André Damião, mestranda em Serviço Social e Política Social na Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] Resumo: Com base na leitura sobre os escritos do jovem Marx e do questionamento, a partir dos estudos acerca da divisão sexual do trabalho e o uso do tempo das mulheres, apresentamos a reflexão sobre a dupla exploração da mulher enquanto classe social e enquanto “o segundo sexo” na sociedade patriarcal e capitalista, além da apropriação desta sobre seu trabalho não remunerado para se reproduzir socialmente. Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, questiona a quem pertence o produto do trabalho produzido pelo trabalhador: questionamos, então, a quem pertence o produto do trabalho não remunerado e invisível desempenhado pelas mulheres. Além dos estudos do jovem Marx, consideramos na análise as ideias defendidas por Kergoat (2000), que afirma a divisão e hierarquização do trabalho de acordo com o sexo, bem como de Aguirre (2007) sobre a instrumentalização do trabalho não remunerado da mulher. Assim, acreditamos ser possível estabelecer uma relação entre a exploração de classe, explícita no capital, e a de gênero, exercida pelo patriarcado, sob as quais as mulheres estão submetidas. Nesse cenário de intensa exploração da mulher, como é possível que alcancemos a emancipação, no sentido mais verdadeiro e real? Palavras-chave: divisão sexual do trabalho; patriarcado; trabalho não remunerado; marxismo. INTRODUÇÃO O tema proposto para essa reflexão surgiu da leitura sobre os escritos do jovem Marx e do questionamento, a partir dos estudos acerca da divisão sexual do trabalho e o uso do tempo das mulheres, sobre a dupla exploração da mulher enquanto classe social e enquanto “o segundo sexo” na sociedade patriarcal e capitalista. O objetivo deste artigo, então, é refletir sobre a dupla exploração da mulher no regime patriarcal capitalista e a apropriação deste sobre seu trabalho não remunerado – derivado de sua socialização feminina e decorrentes estereótipos e papeis sociais historicamente imputados à mulher – para se reproduzir socialmente. Marx, em dado momento nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, reflete sobre o pertencimento do produto do trabalho daquele que trabalha. Nesse sentido, questionamos: a quem pertence, então, o trabalho das mulheres? Se o produto do trabalho estranhado desempenhado pelos trabalhadores e cuja consequência é o salário pertence a outro homem alheio a ele, ao não-trabalhador, então a quem pertence o trabalho estranhado e não remunerado das mulheres? Para refletir sobre esse aspecto, serão utilizados como base os textos de Marx, além de estudos acerca da divisão sexual do trabalho, patriarcado, uso do tempo das mulheres e trabalho não remunerado, sob a ótica feminista. A contribuição de Marx para o entendimento da emancipação humana, bem como da relação entre trabalho e exploração é de extrema importância para compreendermos as relações sociais estabelecidas no sistema capitalista. Da mesma forma, quando falamos da situação da mulher, a obra de Marx se torna essencial para que entendamos a forte ligação entre patriarcado e capitalismo. Essa relação profunda forma um sistema no qual mulheres são exploradas e dominadas não apenas enquanto classe, mas enquanto mulher, ou seja, enquanto o segundo sexo: hierarquizada e inferiorizada em relação ao homem. Nesse cenário, no qual as mulheres têm seu trabalho não remunerado explorado em esfera microssocial pelo homem e em esfera macrossocial pelo sistema capitalista, é necessário entender a correlação entre a busca pela emancipação das mulheres e a busca pela emancipação humana. Quando notamos que, para manter o sistema capitalista, as mulheres são utilizadas como ferramenta para reprodução social na esfera doméstica e tem sua carga de trabalho não remunerado e considerado “feminino” instrumentalizado pelo Estado para possibilitar essa reprodução, é imprescindível que a teoria de Marx seja base para a compreensão desse sistema, iluminada pelas obras que dão atenção a situação específica das mulheres, norteadas pelo conceito feminista de patriarcado. Nesse sentido, apesar da visão romântica cunhada por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (2008) sobre as relações familiares proletárias, especialmente entre homens e mulheres, é necessário refletir sobre qual a verdadeira posição das mulheres nesse sistema. Por isso, é feita a utilização conceito feminista de patriarcado. Segundo Wendy Goldman, As mulheres foram a primeira forma de propriedade privada: elas pertenciam aos homens. A opressão às mulheres estava ancorada na maternidade. [...] Se a opressão às mulheres precedia qualquer forma de produção, tendo como origem diferenças biológicas imutáveis, um determinante crucial das relações e dos papéis de gênero transcendia as forças produtivas. A confusão teórica de Marx e Engels nessa questão resultava, em grande medida, de sua ignorância acerca da família na sociedade tribal. Ao mesmo tempo que reconheciam a existência de história humana anterior ao desenvolvimento da propriedade privada, foram incapazes de conceituar uma forma de família que se diferenciasse da unidade de casal dominada pelo homem. Argumentavam que a opressão às mulheres e a família patriarcal acompanharam as primeiras formas de propriedade comunal. Dessa forma, a opressão às mulheres pelos homens existiu em todos os estágios, inclusive na sociedade tribal, antedatando até mesmo o desenvolvimento da propriedade privada (GOLDMAN, 2014, p. 52). A partir dessas considerações, questionamos a seguir: a quem pertence o trabalho das mulheres? A quem pertence o trabalho das mulheres? Em seu texto Trabalho Estranhado e Propriedade Privada, parte da obra Manuscritos econômico-filosóficos, Karl Marx (2014) aponta várias questões dignas de nota sobre a condição do trabalhador na sociedade capitalista. Brilhantemente, Marx pontua dois fatores extremamente importantes: o trabalhador é forçado7 a trabalhar e o produto do seu trabalho não é pertence a ele8, mas a outro homem estranho a ele. Quando Marx menciona “trabalho”, está se referindo ao trabalho remunerado: àquele que o trabalhador produz, estranhado, e que lhe rende a consequência desse estranhamento, o salário9, para que este subsista e seja capaz de existir fisicamente a fim de continuar escravo do sistema produtivo. De acordo com o autor: [...] o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu objeto. [...] Portanto, para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico. O auge dessa servidão é que somente como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador (MARX, 2004, p. 82). As carências do trabalhador são, assim, para ela, apenas a necessidade de conservá-lo durante o trabalho, a fim de que a raça dos trabalhadores não desapareça. O salário possui, por conseguinte, exatamente o mesmo significado de conservação na manutenção de qualquer outro instrumento produtivo, tal qual o consumo do capital em geral, de modo a poder reproduzir-se com juros. Como o óleo que se põe na roda para mantê-la em movimento. O salário pertence, pois, aos custos obrigatórios do capital e do capitalista, e não deve ultrapassar a necessidade desta obrigação. (MARX, 2004, p. 92). Essas reflexões são igualmente importantes quando, hoje, refletimos sobre a relação entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, transversionalizando as categorias classe e gênero10, analisando o profundo imbricamento entre capitalismo e patriarcado. Ressaltamos a importância dos estudos de Marx para a análise da situação da mulher, já que esta é duplamente explorada, pelo capitalismo e pelo patriarcado, sendo essencial a análise do autor para a compreensão dessa correlação. O trabalho não remunerado considerado aqui é aquele desempenhado pelas mulheres como dever designado a si pela sua condição de “ser mulher”: envolve cuidados na esfera doméstica e familiar e é tarefa historicamente feminina (AGUIRRE, 2007). Essas tarefas não são remuneradas, já que são imputadas à mulher como seu dever por ser mulher e por se tratar de atividades dentro do âmbito privado. Estas tarefas, do mesmo modo, não são valorizadas enquanto trabalho: são pensadas como deveres, atividades que as mulheres precisam desempenhar pois é isso que mulheres têm, naturalmente, que fazer. Esse trabalho é invisível, visto que é entendido como independente da trabalhadora e da atividade do trabalho: é invisível pois não é trabalho, e é “instantânea” e “magicamente” produzido, independente da trabalhadora, sem alguém que o produza. Conforme Marx (2004, p. 80) coloca, “[...] o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor”. 7 Segundo Marx, “O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer suas necessidades fora dele” (MARX, 2004, p. 83). 8 Marx pontua que: “Se o produto do trabalho me é estranho, [se ele] defronta-se comigo como poder estranho, a quem ele pertence, então” (MARX, 2004, p. 86)? 9 Para Marx, o salário “é somente uma consequência necessária do estranhamento do trabalho, assim como no salário também o trabalho aparece não como fim em si, mas como o servidor do salário” (MARX, 2004, p. 88). 10 Sobre a categoria gênero, Carloto discorre que: “[...] vai ser desenvolvida pelas teóricas do feminismo contemporâneo sob a perspectiva de compreender e responder, dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações sociais.” (CARLOTO, 2001) Nesse sentido, a categoria gênero diz respeito à organização social da desigualdade entre os sexos. Contanto, esse trabalho produzido pela mulher – e invisível enquanto trabalho – não é para si. Ele é imposto pela socialização que resigna às mulheres o espaço doméstico/privado. Além de ser imposto, é apropriado pelo “sujeito11”– neste caso, o sujeito é o homem, já que este é o não-trabalhador que se beneficia do trabalho imposto e não remunerado da mulher: o sujeito se beneficia da condição de opressão da mulher, mesmo este também sendo oprimido pelo sistema capitalista. Nesse sentido, o imbricamento entre capitalismo e patriarcado12 vem explorando e dominando duplamente a mulher para se manter enquanto regime político: o que possibilita, assim, garantir a reprodução social sem agregar custos. A mulher, que trabalha sem remuneração na ordem da reprodução social, é responsável por cuidar dos membros da família e do ambiente doméstico, para que o capital não precise garantir esse mínimo na ordem da reprodução da força de trabalho: a mulher o faz como dever por ser mulher, sem custos para o capital, reforçando a sua condição dominada no patriarcado. Esse imbricamento entre capitalismo e patriarcado produziu a divisão sexual do trabalho que, segundo Kergoat (2000), destina prioritariamente aos homens a esfera produtiva e às mulheres a esfera reprodutiva, além da detenção pelos homens de funções de grande valor social agregado, como acontece na política, religião, forças armadas, etc. A divisão sexual do trabalho é organizada pelo princípio de separação, o qual determina que existem trabalhos para mulheres e trabalhos para homens, e o princípio da hierarquização, o qual define que o trabalho do homem vale mais que o trabalho da mulher (KERGOAT, 2000). Às mulheres são destinados trabalhos na esfera doméstica/privada e, quando esta é inserida no mercado de trabalho, sua atividade é, normalmente, uma extensão daquilo que exerce no ambiente privado/doméstico (CISNE, 2012). Isso resulta no aprisionamento da mulher à esfera de sobrevivência enquanto ao homem é destinada a esfera de transcendência – que é possível no espaço público (IZQUIERDO, 1990). Nesta direção, precisamos lembrar também que mesmo a inserção da mulher no mercado de trabalho não as livrou da exploração no ambiente doméstico: é a mulher, unidirecionalmente, a responsável pelo cuidado com a família (que inclui os filhos, companheiro e demais parentes) e com o ambiente doméstico/privado. Mesmo que esta mulher “compre” esses cuidados (por meio das escolas, creches, empregadas 11 Nesse caso, utilizamos a mesma nomenclatura de Simone de Beauvoir: o homem é o sujeito, e a mulher é o outro. (O Segundo Sexo, 2009, Nova Fronteira) 12 Segundo Alda Facio, patriarcado “[...] se trata de un sistema que justifica la dominación sobre la base de una supuesta inferioridad biológica de las mujeres. Tienes u origen histórico en la familia, cuya jefatura ejerce el padre y se proyecta a todo el orden social. Existen también un conjunto de instituciones de la sociedad política y civil que se articulan para mantener y reforzar el consenso expresado en un orden social, económico, cultural, religioso y político, que determina que las mujeres como categoría social siempre estarán subordinadas a los hombres, aun que pueda ser que una o varias mujeres tengan poder, hasta mucho poder, o que todas las mujeres ejerzan cierto tipo de poder como lo es el poder que ejercen las madres sobre los y las hijas” (FACIO, 1999). domésticas, babás), ela ainda será responsabilizada pelos resultados e falhas destes, que serão atividades desempenhadas por outras mulheres. O que nos leva à percepção de que a emancipação da mulher das atividades de cuidado não é individual, mas sim coletiva. Se para desempenhar outros papeis senão os de cuidado na ordem da reprodução social uma mulher se utiliza do trabalho de outra mulher, logo essa emancipação não existe. Quando falamos em trabalho não remunerado e invisível das mulheres, uma categoria importante de análise é o uso do tempo. Segundo Carloto (2012, p. 125), “o uso do tempo nas atividades que envolvem os cuidados domésticos familiares é um bom indicador para aferir autonomia e empoderamento13 das mulheres”, o que significa dar visibilidade ao trabalho invisível e não remunerado exercido pelas mulheres no ambiente doméstico, além daquele que exercem fora de casa e que é remunerado – e visível, apesar de inferiorizado. Esse trabalho não remunerado que é imposto às mulheres por serem mulheres e apropriado pelos homens e pelo capital, segundo a autora, é explorado pelo Estado também à medida em que as políticas sociais são majoritariamente centralizadas na mulher e a instrumentalizam para obter resultados positivos – o que impossibilita o exercício de sua autonomia e a sua emancipação, alimentando o ciclo de permanência na sua condição subjugada. Podemos, então, relacionar nesse contexto a categoria emancipação em Marx. O autor diferencia a emancipação política de emancipação humana em Sobre A Questão Judaica (2010), o que traz para nós a reflexão sobre o que é, de fato, essa emancipação e sobre o que esperados dela e estamos dispostos para alcança-la. Segundo Marx, quando um grupo específico dentro da sociedade – como no caso do livro, que exemplifica segundo os judeus – alcança participação social e política, esta é caracterizada conforme uma emancipação política, já que é alcançada por aquele grupo específico, naquela sociedade, sem que suas estruturas sejam modificadas. Essa emancipação não confere a sociedade como um todo a liberdade, mas garante àquele grupo certo nível de emancipação – uma emancipação dentro da ordem vigente. Segundo Marx: A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro de uma ordem vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática (2010, p. 41). Quando se refere a emancipação humana, Marx assinala que esta é a emancipação do todo genérico, do homem enquanto ser genérico dentro da sociedade: a emancipação de todos, enquanto humanos, dentro da sociedade. Ora, se vivemos em uma sociedade 13 Sobre a utilização do termo, a autora discorre que: “em sua origem, nos movimentos sociais feministas, o termo empoderamento era usado para chamar a atenção para as relações de poder e do poder como relação social. As relações de poder podem tanto significar dominação, como também desafio e resistência. O termo vincula-se, conforme Leon (2000), com uma nova noção de poder, baseada em relações sociais mais democráticas e de poder compartilhado” (CARLOTO, 2012, p. 125). Essa visão é compartilhada por Saffioti: “empoderar-se equivale, num nível bem expressivo do combate, a possuir alternativa(s), sempre na condição de categoria social” (2004, p. 114). capitalista na qual os trabalhadores são explorados pelos burgueses, pelos não trabalhadores, e essa ordem capitalista dita a maneira como as relações sociais se dão, então a emancipação humana significa o rompimento com esse sistema: significa a destruição da sociedade de classes, a superação do capitalismo. É importante ressaltar, nesse momento, que Marx afirma que o comunismo é o caminho para essa emancipação humana, do ser genérico. Toda emancipação é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral. Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política. (MARX, 2010, p. 54) (grifos do autor). Nesse sentido, quando falamos da luta específica das mulheres dentro da sociedade, não falamos apenas de emancipação política, já que esta não traz, verdadeiramente, a emancipação da mulher: há de se lembrar que o profundo imbricamento entre capitalismo e patriarcado impossibilita que a mulher seja livre, emancipada, apenas com a sua inserção enquanto “cidadã” na sociedade burguesa. Não é apenas poder político que as mulheres buscam para que sua emancipação seja alcançada: se o capitalismo se apropria do patriarcado e reafirma os papéis sociais e estereótipos “femininos” deste, intensificando a dominação exploração da mulher a fim se manter e reproduzir enquanto sistema, a mulher só será emancipada quando esse capitalismo for abolido, e também quando os mecanismos sexistas de exploração da mulher criados pelo patriarcado forem destruídos. Portanto, quando falamos de emancipação das mulheres, não falamos apenas em emancipação política pois isso por si só não nos emancipa: não há emancipação nem liberdade para as mulheres enquanto todas as mulheres não forem livres, e isso considerando todas as opressões a que estão expostas: de classe, de gênero e de raça/etnia. Sendo assim, a reflexão acerca da emancipação das mulheres se encontra com a destruição da sociedade de classes, e, portanto, com a emancipação do todo genérico falada por Marx. Nessa direção, partindo do profundo imbricamento entre patriarcado e capitalismo, podemos então refletir sobre o trabalho da mulher. Marx, quando questiona a quem pertence o produto do trabalho realizado pelo trabalhador afirma que: Se o produto do trabalho me é estranho, [se ele] defronta-se comigo como poder estranho, a quem ele pertence, então? A outro ser que não eu. [...] O ser estranho ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, para o qual o trabalho está a serviço e para a fruição do qual [está] o produto do trabalho, só pode ser o homem mesmo. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho [que] está diante dele, então isto só é possível pelo fato de [o produto do trabalho] pertencer a um outro homem fora o trabalhador. Se sua atividade lhe é martírio, então ela tem de ser fruição para um outro e alegria de viver para um outro. Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem (MARX, 2004, p. 86). O autor pontua que esse “outro homem” é o capitalista, o trabalhador proprietário, o não-trabalhador: o homem que não trabalha possui o produto do trabalho daquele que trabalha. Ainda nessa direção, nós questionamos: a quem pertence o trabalho da mulher? A mulher, que não vende sua força de trabalho em troca de salário, mas que exerce um trabalho não remunerado na ordem da reprodução social, da reprodução do sistema capitalista e patriarcal, um trabalho que é apropriado por esse sistema para se manter enquanto regime político, mas que beneficia diretamente àqueles que “não trabalham”: aqueles que não trabalham na esfera doméstica/privada, mas que se apropriam do trabalho daquelas que trabalham nesta esfera. O trabalho da mulher, não remunerado e invisível, no âmbito doméstico, aquele que possibilita ao homem que ocupe o espaço público, os papéis de transcendência14. Considere-se ainda a proposição colocada antes, de que a relação do homem consigo mesmo lhe é primeiramente objetiva, efetiva, pela sua relação com o outro homem. Se ele se relaciona, portanto, com o produto do seu trabalho, com o seu trabalho objetivado, enquanto objeto estranho, hostil, poderoso, independente dele, então se relaciona com ele de forma tal que um outro homem estranho a ele, inimigo, poderoso, independente dele, é o senhor deste objeto, se ele se relaciona com a sua própria atividade como uma [atividade] não-livre, então ele se relaciona com ela como a atividade e serviço de, sob o domínio, a violência e o jugo de um outro homem (MARX, 2004, p. 86-87) (grifos do autor). A atividade da mulher é uma atividade “não-livre”, já que imposta pela socialização que destina obrigatoriamente à ela não apenas estereótipos, mas deveres na sociedade, e “está a serviço, sob o domínio, a violência e o jugo” não apenas do capital ou do capitalista: mas do patriarcado, do homem. A mulher é a proletária do proletariado. A revolução falada por Marx, no sentido da emancipação humana, leva em consideração a emancipação do ser humano enquanto ser genérico, da humanidade como todo. Entretanto, quando esse todo é, dentro de si, desigual, a emancipação humana, universal, do todo não poderá acontecer se as peculiaridades da opressão dos grupos existentes dentro do todo não forem levadas em consideração. Esse é o caso das mulheres: que são exploradas não apenas enquanto classe social na ordem capitalista, mas enquanto mulher no sistema patriarcal, subjugada ao homem. A emancipação das mulheres se dará quando os mecanismos de opressão forem abolidos. Por um lado, quando o capitalismo e o sistema de classes forem superados, já que o capitalismo intensifica a exploração da mulher para se manter enquanto sistema, utilizando seu trabalho não remunerado e invisível. Nesse sentido, a luta pela emancipação humana proposta por Marx se encontra com a busca pela emancipação das mulheres. Por outro lado, essa luta, por si só, não resulta na plena emancipação das mulheres, já que estas são duplamente exploradas: pelo capitalismo e pelo patriarcado. 14 Segundo Izquierdo (1990), às mulheres são atribuídos o espaço privado, resultando em papéis de sobrevivência, enquanto aos homens são atribuídos o espaço público, possibilitando que este exerça os papéis de transcendência. Nessa direção, a emancipação das mulheres se dá pela abolição do sistema capitalista, mas também pela abolição do patriarcado. Podemos perceber essa questão em Saffioti, quando a autora afirma que: A base econômica do patriarcado não consiste apenas na intensa discriminação salarial das trabalhadoras, em sua segregação ocupacional e em sua marginalização de importantes papéis econômicos e políticosdeliberativos, mas também no controle de sua sexualidade e, por conseguinte, de sua capacidade reprodutiva. Seja para induzir as mulheres a ter grande número de filhos, seja para convencê-las a controlar a quantidade de nascimentos e o espaço de tempo entre os filhos, o controle sempre está em mãos masculinas, embora elementos femininos possam intermediar e mesmo implementar estes projetos (SAFFIOTI, 2004, p. 106). A compreensão de que o patriarcado não foi abolido apenas com a inserção das mulheres no mercado de trabalho é essencial para analisarmos a emancipação das mulheres. Quando Saffioti afirma que o patriarcado “ancora-se em uma maneira de os homens assegurarem, para si mesmos e para seus dependentes, os meios necessários à produção diária e à reprodução da vida” (2004, p. 105) e que “a base material do patriarcado não foi destruída, não obstante os avanços femininos, quer na área profissional, quer na representação no parlamento brasileiro e demais postos eletivos políticos” (2004, p. 106) é possível desconstruir a ideia de “igualdade” já atingida pelas mulheres, assim como a falsa impressão de que o rompimento com o capitalismo e a sociedade de classes originaria a emancipação das mulheres. Quando Marx afirma que superar o capitalismo e chegar no comunismo é o caminho para atingir a emancipação humana, compreendemos que a questão da mulher não se encerra na abolição das classes: o comunismo e a abolição das classes consiste em um caminho para que as mulheres sejam emancipadas. O começo de um longo caminho. Um caminho que inclui também a destruição do patriarcado. Considerações Finais As reflexões de Karl Marx acerca da exploração do trabalhador no sistema capitalista, bem como os apontamentos sobre a relação entre emancipação política e emancipação humana são de extrema importância quando falamos sobre a situação da mulher atualmente. Apesar da questão da mulher não ter sido desenvolvida por Marx em seus estudos de forma profunda e da romantização das relações proletárias entre homens e mulheres – resultado também do tempo histórico em que o autor estava inserido – seus apontamentos são pertinentes na construção dos estudos feministas a fim de refletir da maneira mais profunda sobre a libertação das mulheres. Não por acaso, as teorias feministas reforçam a existência do imbricamento entre capitalismo e patriarcado e a necessidade de destruição de ambos para que a mulher seja de fato livre das suas correntes. Decorrente desta perspectiva, é necessária a compreensão de que a dupla exploração a que estão expostas as mulheres não permite que elas exerçam sua autonomia, seu papel enquanto ser humano, nem que sejam inseridas em instâncias de decisão política – ou quando são inseridas, suas demandas são consideradas secundárias – o que configura um ciclo de aprisionamento da mulher na sua condição subjugada. Essa mulher não é vista enquanto humana, mas como um objeto a ser explorado: pelo capital para se reproduzir sem gerar custos mas, também, pelo homem, para que este possa exercer seu papel de humano, de cidadão, de ser que transcende, de portador do direito ao espaço público, de autoridade entre mulheres, jovens e crianças. Compreendendo esse cenário, é importante ressaltar que o questionamento sobre a participação dos homens na condição superexplorada da mulher é essencial. Do mesmo modo, afirma-se o entendimento que, para a mulher, a luta de classes é essencial, porém não é única: ela caminha em conjunto com a luta pela emancipação enquanto mulher numa sociedade que a inferioriza e hierarquiza em detrimento do homem, que usa sua existência, enquanto – e por ser – mulher, para garantir a perpetuação desse sistema: capitalista e patriarcal. REFERÊNCIAS AGUIRRE, Rosario. Las famílias como proveedoras de servicios de cuidados. In ASTELARRA, Judith. Género y Cohesión Social. Fundación Carolina: Madrid, 2007. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. CARLOTO, Cassia Maria. Condicionalidades nos Programas de Transferência de Renda e autonomia das mulheres. Revista Sociedade em Debate, v. 18, n. 2, Universidade Católica de Pelotas, 2012. CARLOTO, Cassia Maria. O conceito de gênero e sua importancia para análise das relações sociais. Serviço Social em Revista, v. 3, n. 2, p. 201-213. Londrina: Ed. UEL, 2001. CISNE, Mirla. 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