Descobrir a Missão

Propaganda
CAPÍTULO UM
Descobrir a Missão
«A Primeira Guerra Mundial tornou Hitler possível.»
sir ian kershaw,
19981
Há meses que circulavam em Munique boatos de um putsch.
No outono de 1923, a palavra mágica nas cervejarias cheias de movi‑
mento e nas esplanadas à sombra das árvores dos cafés da capital
da Baviera era losschlagen.2 Em alemão, losschlagen significa atacar,
reagir, desencadear — fazer com que algo aconteça. Quando é que,
toda a gente queria saber, Adolf Hitler e os seus nazis iriam losschla‑
gen? Ou, já agora, quando é que os poderes estabelecidos na Baviera
— uma estranha mistura de liderança civil e militar encarnada num
triunvirato não oficial no poder — iriam losschlagen? Alguém tinha
de fazer alguma coisa. A esperança de Hitler era encenar uma marcha
sobre «aquele antro de iniquidade», Berlim, para derrubar o governo
da República de Weimar; parecia uma bela ideia à maior parte dos
habitantes da Baviera naquela altura, como observou Wilhelm
­Hoegner, um membro social­‑democrata do Parlamento da Baviera.
Num período de perturbação e incerteza, a probabi­lidade de um
putsch «transformara­‑se numa ideia fixa» na capital da Baviera, escre‑
veu.3 Hitler observou: «As pessoas gritavam­‑no aos quatro ventos.»4
Cinco anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial, a A
­ lemanha
estava a passar por um período conturbado, de desordem social e declí‑
nio constante. A guerra deslocara o planeta político no seu eixo. Monar‑
quias de há séculos tinham caído. Um mundo não significa­tivamente
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alterado desde o Congresso de Viena de 1815 dividira­‑se e apresentava
fissuras. Foram redefinidas fronteiras, populações deslocadas sob novas
soberanias. A Alemanha perdera as suas possessões ultramarinas e
fora expulsa do grande jogo da colonização. Na ­Rússia, uma revolu‑
ção comunista apoderara­‑se do país. E a República de Weimar — a
primeira tentativa da Alemanha de uma democracia plena — estava
assente em bases instáveis. Já passara por sete chanceleres (primeiros­
‑ministros) e por nove governos.5 A súbita mudança em 1918, no
pós­‑guerra, da monarquia dos Hohenzollern, com quatrocentos anos,
para um sistema parlamentar ainda sem provas dadas — uma revo‑
lução de cima para baixo — nunca fora completamente aceite pelos
nacionalistas da extrema­‑direita, por muitos dos militares e por partes
da elite política. Até mesmo o primeiro chefe de Estado da república,
o presidente Friedrich Ebert, se mostrara ambivalente: o líder do
Partido Social­‑Democrata pretendia uma monarquia constitucional
ao estilo britânico na sequência da abdicação do kaiser Guilherme II
em novembro de 1918; ele opunha­‑se a uma simples república sem
uma figura hereditária unificadora no topo. «Não tem o direito de
proclamar a república!», disse indignado a Philipp Scheidemann,
o político que fez precisamente isso de uma janela do Reichstag
(o Parlamento alemão) em 9 de novembro de 1918.6
Nos primeiros anos da década de 1920, uma economia em pro‑
funda crise fomentou entre alguns grupos o anseio pelo regresso de
um homem forte — talvez mesmo da própria monarquia. O ano
de 1923 foi o pior da Alemanha desde a derrota esmagadora na
guerra em 1918. A divisa hiperinflacionada do país atingiu os
4,2 biliões de marcos por dólar — um pão de forma custava 200 mil
milhões de marcos, um ovo cerca de 80 mil milhões de marcos7;
um bilhete de teatro, por vezes, podia obter­‑se não por dinheiro, mas
por dois ovos. O pior era que as poupanças das pessoas estavam des‑
truídas, e os agricultores, apesar de uma boa colheita, recusavam­‑se a
vender os seus produtos por preços que seriam quase insigni­ficantes
no dia seguinte. A escassez de alimentos desencadeou motins.
O governo alemão reagiu à espiral inflacionária simplesmente impri‑
mindo mais e mais dinheiro; por vezes, as pessoas levavam­‑no em
carrinhos de mão quando iam às compras.
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Internamente, a Alemanha encontrava­‑se dilacerada por pro‑
fundos e azedos antagonismos políticos. Os extremistas à esquerda
(comunistas) e à direita (nacionalistas e partidos com base racial,
chamados völkisch) competiam pelo espaço político, com numerosos
partidos entre os dois extremos. Em 1920, um golpe de Estado
de direita liderado por Walther von Lüttwitz e Wolfgang Kapp
­— tor­nou­‑se conhecido como o Putsch Kapp — tomou Berlim por
quatro dias, expulsando o governo da cidade, mas logo depois desmo­
ronou­‑se. Grassava a violência política, começando com o assassínio
em 1919 dos líderes comunistas (na altura chamados espartacistas)
Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Entre 1919 e 1922, alguns
grupos de direita cometeram mais de trezentos e cinquenta assas‑
sinatos políticos, acentuando um espírito de «indiferença moral
pela violência» que caracterizou os primeiros anos da República de
Weimar.8 Um esquadrão­da morte chamado Organisation Consul
reclamou a autoria dos assassinatos de Matthias Erzberger, o político
alemão que assinou o armistício da Primeira Guerra Mundial em
1918, e de Walther Rathenau, o ministro dos Negócios Estrangeiros
da Alemanha, um judeu.
O descontentamento era também alimentado pela posição incerta
da Alemanha no mundo. A perda da Alsácia­‑Lorena para a França
e de pontos­‑chave da Alta Silésia para a Polónia através do Tratado de
Versalhes de 1919 ofendia profundamente muitos alemães. Sentiam­
‑se ainda mais enraivecidos com a ocupação da Renânia em 1918 por
forças predominantemente francesas e, mais recentemente, do centro
industrial da Alemanha, a região do Rur. Em janeiro de 1923, tropas
belgas e francesas — seis divisões completas9, algumas com soldados
senegaleses das colónias africanas da França — ocuparam a zona do
Rur, onde se produzia carvão e aço, e a que pertenciam as importan‑
tes cidades de Düsseldorf, Duisburg e Essen. Embora oficialmente a
incursão fosse uma represália por a Alemanha não ter procedido ao
pagamento das reparações no pós­‑guerra, muitas pessoas acreditavam
que o primeiro­‑ministro francês, Raymond Poincaré, estava principal‑
mente à procura de uma desculpa conveniente para definir uma zona­
‑tampão ao longo da fronteira ocidental da Alemanha com a França,
a Bélgica e a Holanda e simultaneamente obter acesso aos campos
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de carvão da Alemanha. A Grã­‑Bretanha opunha­‑se a esta reorgani­
zação territorial agressiva. Como uma grande parte dos pagamentos de
reparação em falta deveria ser feita em carvão e postes telegráficos
de madeira, um político britânico resmungou: «Não se verificava um
uso mais prejudicial de madeira desde o cavalo de Troia.»10
De qualquer forma, as convulsões e as incertezas geraram um
ambiente propício à revolução, ao putsch e à violência. O governo de
Berlim apelou à resistência passiva aos invasores franceses; os traba‑
lhadores abandonaram os seus postos de trabalho. Alguns alemães
montaram uma resistência ativa e praticaram atos de sabotagem;
alguns foram apanhados, julgados e executados por pelotões de
fuzilamento franceses. Um sabotador de direita chamado Albert Leo
Schlageter, capturado e executado, tornou­‑se um mártir nacional e
um herói nazi. A atitude de desafio político satisfazia os Alemães,
mas teve resultados económicos desastrosos: a produção industrial,
da maior importância, abeirou­‑se da paragem total e o desemprego
grassava. Para cobrir salários e subsídios perdidos, o governo recorreu
à impressão de mais dinheiro, enfraquecendo desse modo ainda mais
a divisa hiperinflacionada. Eclodiram greves de fome em ­Berlim,
Hamburgo, Colónia e noutras cidades, forçando a polícia alemã
a disparar sobre alemães famintos.
A rápida desmobilização na sequência do final da Primeira Guerra
Mundial inundara o mercado de trabalho com mais de cinco milhões
de homens, muitos sem emprego nem perspetivas de emprego, mas
todos treinados numa competência: lutar. E tinham muitos motivos
para lutar. As pessoas sentiam que a sua cultura, a sua política e as
suas estruturas sociais se encontravam em risco, impelidas por forças
centrífugas que não conseguiam controlar. Na República de ­Weimar,
«o estado normal era de crise», escreveu o historiador G
­ ordon Craig.11
Insultados e humilhados pela cláusula de «única culpa da guerra» do
Tratado de Versalhes de 1919, os Alemães viam­‑se sobrecarregados
com uma dívida de 12,5 mil milhões de dólares em indemnizações,
que consideravam ruinosa. Mesmo o início dos Anos Vinte de Ouro
— um florescimento de cultura vanguardista, principalmente em
Berlim — era visto em muitas partes da Alemanha, especialmente na
Baviera, como uma prova da decadência e da desintegração na capital.
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Em nenhuma outra parte eram estes tópicos debatidos mais ace‑
samente do que na Baviera. Este estado, a sede dos nazis de Hitler e
de numerosos outros partidos e grupos amargamente nacionalistas,
era indisciplinado e renegado na federação alemã, constantemente
a fazer exigências especiais, a recusar­‑se a aceitar ordens nacionais e a
ameaçar com a separação ou uma secessão parcial através do estabele‑
cimento da sua própria divisa, do seu próprio sistema postal ou da sua
própria rede ferroviária. A Baviera, o segundo maior estado a seguir
à Prússia, era a ovelha negra da República de Weimar, a capital do
putsch na Alemanha. O Estado Livre, como se autoapelidava, sofria
com levantamentos e convulsões desde 1918, quando uma marcha de
esquerda liderada por um intelectual barbudo chamado Kurt Eisner
conseguiu expulsar o rei da Baviera do seu palácio da noite para o dia.
Ao fim de três meses, depois de uma tentativa falhada de constituir
um governo socialista, Eisner foi assassinado numa rua de Munique.
Seguiu­‑se um período de mais conturbação. Para horror da classe
média de Munique, uma República Soviética Bávara deteve o poder
durante três semanas, sendo deposta em mais um espasmo de violên‑
cia que envolveu tropas de direita do Freikorps enviadas de fora da
Baviera. Foram cometidas atrocidades por ambas as partes.
Desde essa altura, a Baviera inclinava­‑se acentuadamente para a
direita, atraindo um número cada vez mais elevado de nacionalistas
e de revolucionários potenciais, como Hitler e o seu Partido Nazi anti­
democrático. Os revolucionários eram também antirrevolucionários;
recusavam­‑se a aceitar a legitimidade da revolução republicana de
novembro de 1918. «Se estou aqui como revolucionário», observaria
Hitler posteriormente, «também estou aqui contra a revolução e o
crime [político].»12 Hitler, juntamente com muitos outros na direita
radical, chamava aos revolucionários de 1918 «os criminosos de novem‑
bro». Para os membros afrontados do F
­ rontgemeinschaft — a irmandade
da linha da frente que combatera durante tanto tempo nas trinchei‑
ras da Primeira Guerra Mundial —, eram os civis de Berlim que os
tinham apunhalado pelas costas. «Invictos no campo de batalha» era o
seu mote. Um dos seus principais heróis, o general Erich Ludendorff,
o grande estratego da Primeira Guerra Mundial, mudara­‑se também
de Berlim para a Baviera, onde se desviou para a política de linha dura
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com bases raciais. A Baviera acolheu até o capitão Hermann Ehrhardt,
um líder do Putsch Kapp, que era pro­curado para ser preso pelo
governo nacional em ­Berlim. Com os governos de Berlim frequente‑
mente dominados pelos sociais­‑democratas — considerados marxistas
pelos conserva­dores bávaros —, Munique tornou­‑se o terreno preferido
dos partidos völkisch, um movimento baseado num racismo pró­‑alemão
e antis­semítico.* Defendendo uma linha dura, um novo governo con‑
servador em 1920 anunciou que a Baviera se tornaria «um bastião da
ordem» — um enclave de paz e respeitabilidade, especialmente para
partidos de direita, no atoleiro de esquerdismo que parecia dominar
o resto da Alemanha. A Baviera era, como sempre, uma terra à parte.
Para Hitler, a Baviera era uma espécie de paraíso. Nascido na
Áustria, Hitler criara­‑se na cidade de província de Linz. Mas passou
cinco anos formativos, dos dezoito aos vinte e quatro anos, em Viena,
a capital austríaca. Aí viveu como um artista falhado e jovem sem
rumo. Rejeitado duas vezes pela Academia de Belas­‑Artes austríaca e
sem diploma do liceu, de 1908 a 1913 Hitler viu­‑se reduzido a ganhar
a vida a desenhar ou pintar cenas de postal para turistas, que vendia
nas ruas de Viena ou a pequenos negociantes de arte, principalmente
judeus.13 Foi de mal a pior, mudando de um quarto barato que par‑
tilhava para um quarto modesto e daí para dois albergues masculinos
(um deles parcialmente subsidiado por famílias judias abastadas).
No outono de 1909, aparentemente tornou­‑se um sem­‑abrigo, pas‑
sando pelo menos algumas horríveis noites em cafés abertos toda a
noite e em bancos de jardim e afirmando mais tarde que ficara com
«frieiras graves nos dedos das mãos e dos pés» em consequência dessa
situação.14 Em parte devido a essas privações, Hitler chamaria a Viena
«a mais dura, mas a mais completa escola da minha vida».15
*
A palavra völkisch é muito difícil de definir e quase intraduzível. Tem­‑se tradu‑
zido por popular, populista, do povo, racial, racista, étnico­‑chauvinista, nacionalista,
comunitário (apenas para os alemães), conservador, tradicional, nórdico, romântico —
e significa, de facto, tudo isso. A ideologia política völkisch abrangia desde um sentido
da superioridade alemã a uma resistência espiritual aos «males da industrialização e
da atomização do homem moderno», escreveu o estudioso David Jablonsky. Mas a
sua componente central, como Harold J. Gordon, Jr., observou, foi sempre o racismo.
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Politicamente, Hitler mergulhou na política nacionalista e antis‑
semítica ferrenha da Viena de antes da guerra — uma cidade com
uma elite judia próspera e bem estabelecida, além de uma enxurrada
mais recente de imigrantes judeus pobres em fuga dos pogroms no
Leste. Impressionado com o estilo político do presidente da câmara
de Viena, Karl Lueger, um antissemita radical, Hitler aderiu tam‑
bém ao movimento pan­‑alemão promovido anos antes pelo austríaco
Georg Ritter von Schönerer. Schönerer era um ferrenho nacionalista
e antissemita que acreditava que todos os povos falantes nativos de
alemão deveriam pertencer a uma só Alemanha alargada. Schönerer
sentia que os falantes nativos de alemão, embora fossem a classe
governante no Império Austro­‑Húngaro, estavam a ser margina­
lizados, porque eram ultrapassados em número por não­‑alemães —
checos, eslavos e magiares. Nesse mesmo espírito, Hitler deplo­
rava aquilo a que chamava a «eslavização da Áustria» pela casa real
de Habsburgo.16
O jovem Hitler, então com vinte anos, sentia­‑se horrorizado ao
assistir aos debates incompreensíveis, em várias línguas, com oca‑
sionais berros de culturas diferentes, no Parlamento poliglota em
Viena.17 Embrenhou­‑se na leitura dos muitos jornais nacionalistas
alemães da cidade, de panfletos propagandísticos e de jornais sen‑
sacionalistas extremistas como o Ostara, um periódico racista, que
Hitler quase com certeza comprava ou encontrava no «café barato
do povo» que dizia frequentar. Desenvolveu uma aversão militante
ao marxismo — «um instrumento para a destruição do estado­‑nação
e a criação da tirania mundial judaica»18, como lhe chamava — e ao
Partido Social­‑Democrata da Áustria. Rejeitava a importância exclu‑
siva que o partido atribuía às organizações laborais e à solidariedade
internacional da classe operária em vez de ao nacionalismo com base
racial, embora mais tarde viesse a afirmar que tinha aprendido a sua
própria combinação bem­‑sucedida de propaganda e força («terror»)
com os socialistas.19 Após um ano daquilo a que chamou «observação
tranquila», Hitler rejeitou a democracia parlamentar, considerando­‑a
uma forma de governo com falhas fatais que só poderia conduzir ao
poder das massas à esquerda. «Atualmente, a democracia ocidental
é a precursora do marxismo», escreveu.
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Hitler começou a considerar anátema todas as forças à esquerda,
e a associar os Judeus com o poder e o crescimento dessas forças.
Os seus primeiros sentimentos verdadeiramente antissemitas, afirma‑
ria, foram despertados ao reparar subitamente num judeu do Leste
numa rua de Viena — «uma aparição de cafetã preto e caracóis pre‑
tos».20 Como só uma pessoa cega poderia não ter reparado nos judeus
ortodoxos por toda a cidade de Viena naquela época, esta afirmação
parece representar um momento estilizado de súbita consciencia‑
lização com o objetivo de dramatizar a lenda do desenvolvimento
do pensamento de Hitler. No entanto, embora muitos historiado‑
res acreditem que esse episódio foi inventado ou é uma súmula de
numerosas experiências, muitos outros aceitam a asserção genérica
de Hitler de que o seu obsessivo antissemitismo político começou
em Viena21 — o ponto de vista que ele apresentaria em Mein Kampf
e durante o seu julgamento por traição em 1924. Outros ainda
argumentam que, por falta de provas corroborantes que sustentem a
versão de Hitler dos acontecimentos, o seu antissemitismo só se tor‑
nou «manifesto, radical e ativo», nas palavras do historiador O
­ thmar
Plöckinger, depois da Primeira Guerra Mundial em Munique.
Na sua abordagem, a elaborada descrição de Hitler da sua politi­
zação durante o período que passou em Viena foi criada para condizer
com a imagem inventada de um jovem ingénuo a reagir a condições
reais, não representando a realidade de um veterano da guerra sem
objetivos à procura de trabalho como político. Nesta interpretação,
Hitler só deitou mão ao antissemitismo «como o cavalo vencedor no
ambiente político existente», observa o historiador Roman Töppel.22
Mas esse é um salto na história.
Em maio de 1913, depois de cinco duros anos na capital austríaca
e de receber uma pequena herança aos vinte e quatro anos, Hitler
partiu de Viena para Munique — a concretização do seu sonho de
viver num ambiente exclusivamente alemão, rodeado por arquite‑
tura monumental e um espírito de criatividade artística. Munique
tornou­‑se o lugar ao qual Hitler se sentia «mais ligado... do que a
qualquer outro sítio no mundo», afirmava ele.23 «Este tempo anterior
[à Primeira Guerra Mundial] foi de longe o período mais feliz e de
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maior contentamento da minha vida.»24 Hitler viria mais tarde a
afirmar que se mudara para a Alemanha «principalmente por razões
políticas» — pelo facto de não gostar do Estado híbrido austro­
‑húngaro. Mas a mudança para Munique atraía Hitler por outra
razão: estava a tentar escapar às autoridades austríacas, que queriam
recrutá­‑lo para o seu exército, onde teria de prestar serviço militar
ativo durante três anos, seguidos de sete anos na reserva e mais dois
na guarda nacional.
Em Munique, a cidade que ele consideraria agora o seu verdadeiro
lar para o resto da sua vida, Hitler, um jovem sem grandes estudos,
encontrou­‑se mais uma vez sem um verdadeiro trabalho. Mais uma
vez, esboçava e pintava postais e cenas turísticas para vender nas
ruas e nas cervejarias animadas de Munique. Mais uma vez, vivia
sozinho num simples quarto barato subalugado. Mais uma vez, era
uma figura marginal sem perspetivas pessoais ou profissionais. Mas
então a sua sorte sofreu um revés ainda pior. Em janeiro de 1914,
a junta austríaca de recrutamento localizou Hitler e exigiu-lhe que
comparecesse em Linz para uma indução militar. Chegou até a ficar
detido por uma noite. Hitler tentou escapar à situação com pedidos
e cartas. Finalmente, obteve permissão para se apresentar junto à
fronteira austríaca, em Salzburgo. Ali, para seu imenso alívio, não
passou no exame físico. O pálido e débil Adolf Hitler, futuro pro‑
motor de uma guerra mundial e assassino de massas, foi considerado
«demasiado fraco» para ser paramédico e «inapto para o manuseio
de armas».25 Hitler, como aconteceu tantas vezes durante os seus
anos de desenvolvimento, escapou por pouco a um destino que pode‑
ria tê­‑lo mantido desconhecido e não temido por toda a sua vida.
Ironicamente, foi uma outra oportunidade para se alistar no
exército que modificou a vida de Hitler no sentido oposto. Em
junho de 1914, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando
nas ruas de Sarajevo, na Bósnia, preparou o palco para a guerra.
Em agosto de 191426, Hitler parece ter­‑se juntado à multidão de
milhares de pessoas com a febre da guerra que se reuniu na Praça
Odeon de Munique — o seu rosto jubilante viria a ser identificado
numa fotografia das massas nesse local, embora algumas pessoas acre‑
ditem que o seu rosto talvez tenha sido incluído posteriormente na
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imagem, para fins políticos e de propaganda.27 Seja como for, Hitler
seguiu milhões de jovens alemães para o serviço militar, deixando
para trás a sua vida de jovem pelintra sem rumo e trocando­‑a pela
de soldado. O alistamento de Hitler demorou um dia mais, porque,
como austríaco, necessitava de uma autorização especial da casa real
da Baviera para se alistar. Afirmou que escreveu uma carta ao rei e
que obteve uma resposta positiva da chancelaria real em menos de
vinte e quatro horas. «O gabinete de sua majestade funciona com
rapidez», observou Hitler.28 Embora também sobre este episódio
tenham sido lançadas dúvidas, de qualquer modo Hitler foi rapida‑
mente alistado no exército bávaro, parte das forças armadas alemãs
então a prepararem­‑se para a guerra. Dessa vez, ninguém o conside‑
rou inapto para o serviço militar. Mais uma vez, a vida de Hitler foi
alterada por um só acontecimento e uma só carta, que condiciona‑
riam o curso da história. «A Primeira Guerra Mundial tornou Hitler
possível», escreveu o historiador Ian Kershaw.29
Integrado no 16.o Regimento de Infantaria de Reserva Bávaro,
Hitler passaria quatro duros anos nas trincheiras enlameadas da frente
ocidental como peão mensageiro, levando ordens do quartel­‑general
para as linhas da frente e participando em numerosos recontros,
entre eles as brutais batalhas em Ypres, na Bélgica, e no Marne, em
França. Correr entre o quartel­‑general e as trincheiras era uma missão
extremamente perigosa, pontuada por momentos de rela­xamento nas
unidades de comando na retaguarda (os militares da linha da frente
insultavam os mensageiros chamando­‑lhes «porcos da zona da reta‑
guarda»). Durante esses intervalos, Hitler lia vorazmente — disse
ter na sua mochila um pequeno exemplar de O Mundo como Vontade
e Representação, de Arthur Schopenhauer — e era frequentemente
visto a consultar livros de história ou a memorizar datas históri‑
cas.30 Ocasionalmente, fazia também esboços de casas de quintas nas
imediações; os seus colegas mensageiros chamavam­‑lhe por vezes
«o artista», disse o seu sargento, Max Amann (mais tarde seu editor).
Era também algo desajeitado; um seu camarada disse a brincar que
ele morreria à fome numa fábrica de conservas, porque era o único
entre os mensageiros que nunca chegou a descobrir como abrir uma
lata de rações do exército com a baioneta.31 As fotografias do tempo
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da guerra mostram­‑nos Hitler como um jovem bem­‑parecido mas
nada sorridente; ostentava um bigode farfalhudo, por vezes torcido
nas pontas, e não a mancha crespa e facilmente ridicularizada por
Charlie Chaplin dos anos posteriores.32 No entanto, como observou
o historiador Thomas Weber, nas seis fotografias de grupo do tempo
da guerra ainda existentes, Hitler está de pé ou sentado nas extre‑
midades do grupo — uma metáfora do seu estatuto autoimposto
de pessoa que está de fora. A não ser um cão chamado Foxl, que
apanhou e adotou quando saltou para dentro de uma trincheira em
perseguição de uma ratazana, Hitler tinha poucos camaradas ínti‑
mos.33 Outros soldados recordavam­‑no como um homem solitário
e «esquisito», que enviava e recebia muito pouco correio. «Ele não
tinha ninguém que lhe enviasse uma encomenda», disse Amann.34
No entanto, Hitler era considerado um soldado valente e disposto
a combater. Sofreu ferimentos por duas vezes e foi condecorado duas
vezes com a Cruz de Ferro de Primeira e de Segunda Classe. Mesmo
assim, não chegou a ser promovido acima de cabo de primeira
classe — em parte porque não queria abandonar o aconchego da
sua unidade de transmissões, afirmaria um dos seus camaradas, e em
parte porque não ostentava nenhuma das qualidades de liderança
que seriam necessárias num oficial subalterno.35 (Depois de uma
das primeiras batalhas, com enormes baixas, muitos soldados foram
promovidos; Hitler tornou­‑se Gefreiter, que foi traduzido erronea‑
mente durante décadas por cabo. No entanto, o posto de Gefreiter
não inclui nenhuma das responsabilidades de comando de um oficial
subalterno, como um cabo. Era só um grau acima no posto de sol‑
dado — de soldado raso a soldado de primeira classe, como no exér­
cito americano.)36
Segundo os registos do exército, o soldado de primeira classe
Hitler passou os últimos dias da guerra, de outubro a novembro
de 1918, num hospital militar por «doença do gás», depois de um
ataque britânico de gás de mostarda. Mais tarde, diria que sofreu de
cegueira temporária, mas que chorou baba e ranho («pela primeira
vez desde a morte da minha mãe»37) quando a notícia da capitu­
lação da Alemanha chegou à enfermaria. «Então, foi tudo em vão!»,
gemeu.38 Menos crível é que, como também afirmou, tenha tomado
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a decisão, quando ainda estava de cama, ferido e cheio de ódio contra
o «gangue de miseráveis criminosos» que causou a derrota na guerra,
de se «tornar político».39 Embora posta em dúvida por alguns his‑
toriadores, esta afirmação soava bem e viria a tornar­‑se uma parte da
lenda de liderança cuidadosamente fabricada por Hitler. Em finais
de novembro de 1918, Hitler acabou por regressar a Munique, ainda
no exército40 e ainda sem grande objetivo. Não tinha emprego fora
do exército e nenhumas competências que lhe permitissem obtê­‑lo.
Nem sequer era um pseudoartista ou autor de postais ilustrados.
Quando milhões de outros soldados estavam a ser desmobilizados,
Hitler optou por permanecer na segurança do exército, o único ver‑
dadeiro lar que conhecia desde os dezoito anos, um lugar que lhe
garantia um teto e refeições. Deambulava pelo q­ uartel, assegurava o
posto de guarda na principal estação ferroviária e foi destacado tem‑
porariamente para um campo de prisioneiros de guerra que se esva‑
ziara rapidamente em Traunstein, perto da fronteira com a Áustria.
De volta à sua guarnição em Munique, na primavera de 1919, Hitler
foi eleito representante alternativo junto do «conselho de soldados»,
que, em teoria, assumiu o controlo da sua unidade durante a breve
e brutal experiência da Baviera como república soviética. Em junho
de 1919, os dias de ócio de Hitler tomaram um rumo decisivo,
mais uma vez impelido por um acaso externo mais do que por uma
convicção interior. O subutilizado soldado foi recrutado pelo capi‑
tão Karl Mayr, o comandante de uma unidade de serviços secretos
e de propaganda recentemente criada, para se tornar um operacional
de educação política e espião interno do exército (Vertrauensmann,
ou V­‑mann). A unidade de Mayr formara­‑se porque a chefia do exér‑
cito se sentia preocupada com o «vírus» crescente do marxismo entre
as tropas no ambiente político instável do pós­‑guerra. O exército
— agora chamado Reichswehr — pretendia «imunizar os soldados
contra ideias revolucionárias».41
Para preparar os seus novos operacionais para a tarefa de ata‑
car o marxismo e promover o nacionalismo alemão no exército, o
capitão Mayr mandou Hitler e vários outros soldados fazerem um
curso de uma semana sobre história e política na Universidade de
­Munique.42 Um dos professores da universidade era Gottfried Feder,
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um autointitulado especialista em economia que já falava a linguagem
que atraía Hitler, atribuindo as culpas dos problemas da Alemanha ao
«capital ganancioso», um eufemismo para se referir ao «capital finan‑
ceiro judeu». Feder denunciava a «escravatura do capital», afirmando
que a Alemanha estava escravizada ao «capitalismo do mercado de
valores» internacional (judeu). Essa ideia apelava simultaneamente ao
populismo e ao antissemitismo de Hitler. Outro palestrante era um
historiador conservador, o professor catedrático Karl Alexander von
Müller, que, depois da aula, reparou em Hitler a dirigir­‑se a outros
estudantes com os seus modos animados e a sua voz aguda. Müller
disse a Mayr que pensava que Hitler tinha talento para falar.43
De facto, o dom singular de Hitler para a oratória não tardaria a
revelar­‑se de um modo dramático, levando à epifania que, segundo
ele, alterou a sua vida. Se verdadeiro — e a maior parte dos histo‑
riadores acredita que o é —, esse foi o momento que transformou
o veterano de guerra sem rumo de soldado em orador público em
ascensão. Esse foi o momento que deu a Hitler uma visão da sua
futura vocação. Esse foi o momento que criou Adolf Hitler, o político.
A experiência que mudou a sua vida ocorreu em agosto de 1919,
dois meses depois das palestras sobre política na universidade. Hitler
e vários outros estudantes do curso foram enviados a um quartel do
Reichswehr chamado Camp Lechfeld, localizado a cerca de sessenta
e cinco quilómetros de Munique, para instilar pensamentos naciona‑
listas e antibolchevistas nas tropas. Aí, proferiram palestras durante
cinco dias, concebidas como «treino de cidadania» às tropas. Hitler
lançou­‑se na tarefa e, juntamente com o chefe do curso, encarregou­
‑se de uma grande parte das palestras. Os tópicos que abordou iam da
alegada culpa da guerra da Alemanha a «slogans sociais, económicos
e políticos». As suas palestras estavam inçadas de antissemitismo.
«Eu “nacionalizei” as tropas», viria a escrever.44 A paixão de Hitler,
conjugada com o seu domínio da história, abrangente, embora de
diletante e autodidata, tornou­‑o um êxito. «Herr Hitler é, se me é
permitido dizê­‑lo, um orador popular nato», escreveu um partici‑
pante na sua avaliação no final do curso. «O seu fanatismo e o seu
estilo popular... prendem a atenção e a cooperação da assistência.»
Um outro soldado observou que Hitler era «um excelente e animado
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orador... Uma vez, quando uma aula longa não acabou à hora, ele
perguntou [nos] se devia parar ou se concordaríamos em ouvir o
resto da sua palestra depois do fim da aula. Toda a gente concordou
imediatamente».45 Em Lechfeld, Hitler era a estrela do curso.
Aparentemente, a competência e o sucesso de Hitler foram uma
surpresa mesmo para ele. Sempre tivera tendência para ser autori‑
tário, insistindo em dirigir todos os jogos com os amiguinhos na
sua infância na Áustria. «Eu era um pequeno cabecilha e tive bons
resultados na escola ao princípio, mas era um pouco difícil de con‑
trolar», recordou ele.46 Hitler era um tagarela imparável e dominava
as conversas, disse August Kubizek, o seu amigo da adolescência.
Hitler «gostava de falar, e falava sem parar», mas as conversas com
ele, especialmente depois de irem assistir às óperas do seu amado
Richard Wagner, processavam­‑se sempre num só sentido, recordou
Kubizek.47 Que esses traços de personalidade pudessem ser traduzi‑
dos em vantagem profissional não tinha ainda ocorrido ao ex­‑peão
mensageiro. Agora, no Camp Lechfeld, Hitler capacitou­‑se do seu
poder sobre as pessoas. Descobriu aquele que se tornaria a força
definidora da sua vida política, a sua voz. «Eu sabia falar!», escre‑
veu, como se estivesse a descrever uma revelação na Estrada para
Damasco. Embora afirmasse ter tido a intuição dessa competência já
antes sem a reconhecer pelo que era, via agora a sua capacidade para
influenciar outros. Fora um zé­‑ninguém na agitada cena política de
Munique. Estava prestes a tornar­‑se alguém.48
Um mês depois, outra experiência fortuita fez Hitler aproximar­
‑se mais um passo da descoberta da sua vocação. O capitão Mayr
incumbiu Hitler, na sua missão de V­‑mann, ou espião do exército,
de recolher informações sobre um grupo político incipiente chamado
Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei). Fun‑
dado com o encorajamento da Sociedade Thule, uma espécie de culto
abastado de direita, o pequeno «partido» era realmente mais um
grupo de debate com um punhado de membros. Os seus primeiros
líderes foram um maquinista ferroviário descontente49, antimarxista
e antissemítico chamado Anton Drexler e Karl Harrer, um jornalista
desportivo politicamente ativo.
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Reunindo­‑se numa noite de setembro num bar modesto cha‑
mado Sterneckerbräu, na parte antiga de Munique, o Partido dos
Trabalhadores Alemães atraiu apenas quatro dúzias de assistentes.50
A impressão inicial de Hitler, no seu papel de agente secreto menor
(vestido à paisana, não com a sua farda do Reichswehr), não foi «nem
boa nem má — era só mais um grupo recém­‑formado numa altura
em que toda a gente se sentia compelida a formar um partido»,
escreveu.51 Perto do final da reunião, no entanto, quando um dos par‑
ticipantes se pôs de pé para defender a secessão bávara da federação
alemã, a ira de Hitler foi despertada; os seus instintos impetuosos
dominaram­‑no, como aconteceria com tanta frequência no futuro, e
abandonou o seu papel de observador incógnito para se transformar
num apaixonado interveniente no debate. Empregando o seu estilo
mordaz e os seus argumentos agora já ensaiados, Hitler lançou­‑se
num ataque aceso ao separatismo e numa defesa do conceito de uma
Grande Alemanha, uma união da Alemanha e da Áustria. Em dois
tempos, destruiu a posição do outro homem e — segundo ele pró‑
prio contou — levou o pobre sujeito a sair da reunião «como um
poodle molhado».52
Hitler não só provou que sabia falar, mas também revelou que era
capaz de se tornar num demagogo instantaneamente.53 O aspeto físico
pouco atraente e a estatura modesta de Hitler, juntamente com a sua
pele excecionalmente pálida e o que muitas pessoas recordam como
uns olhos azuis «luminosos», penetrantes, talvez tenham emprestado
uma intensidade especial aos seus argumentos apaixonados.54 Fosse
como fosse, Drexler, o cofundador do Partido dos Trabalhadores Ale‑
mães, ficou tão impressionado que abordou Hitler a seguir e meteu­
‑lhe nas mãos um exemplar do seu manifesto de quarenta páginas,
O Meu Despertar Político. Drexler convidou Hitler a regressar. A outro
membro da assistência, Drexler disse: «Aquele sujeito não tem papas
na língua! Ser­‑nos­‑ia realmente útil!»
Após a noite de confronto de Hitler em Sterneckerbräu, os acon‑
tecimentos sucederam­‑se rapidamente. Cedo na manhã seguinte,
sem conseguir dormir no seu quartel devido a alguns ratos rui‑
dosos, Hitler não encontrou nada de melhor para fazer do que ler
o pequeno panfleto de Drexler. Com a sua denúncia antissemítica
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da «influência destrutiva judaica» na vida alemã, o seu ataque ao
«Grande Capital» e a sua crença na abolição da divisão de classes
entre os trabalhadores e a classe média, a breve dissertação teve
imediatamente eco junto de Hitler. «Vi o meu próprio desenvol‑
vimento ganhar vida de novo diante dos meus olhos» enquanto lia
o panfleto, recordou.55 No entanto, antes de Hitler ter tempo de
decidir se aceitaria o convite de Drexler para regressar, recebeu um
postal a informá­‑lo de que era agora membro do Partido dos Traba­
lhadores Alemães.56 Hitler passou dois dias «torturantes» a pensar
no «ridículo» clubezinho, como lhe chamava, antes de decidir
aceitar. «Foi a decisão mais importante da minha vida», escreveu.
«Agora não havia como voltar para trás.» Hitler estava agora filiado
num partido e tinha uma tribuna pública e uma base política que
transformaria, daí a alguns anos, na força política mais poderosa da
Europa do século xx.
Por ter enviado Hitler à sua primeira reunião do partido, o capitão
Mayr viria a afirmar­‑se o padrinho espiritual de Hitler, o homem que
tornou tudo possível. Mas o verdadeiro papel de inspirador intelec‑
tual coube a outra pessoa, um intelectual de vida boémia e altamente
aclamado chamado Dietrich Eckart. Foi através do Partido dos
Trabalhadores Alemães que Hitler conheceu Eckart, cuja influência
sobre ele seria profunda. Considerado o cérebro do partido, Eckart
era um boémio, poeta e por vezes jornalista, cuja tradução e produção
da peça de Henrik Ibsen Peer Gynt na Alemanha o tornara famoso e
abastado. Antissemita convicto, Eckart editava um semanário contra
os Judeus intitulado Auf Gut Deutsch [Em Bom Alemão]. Com os seus
olhos azuis brilhantes, a sua testa alta e a sua cabeça completamente
calva, Eckart era uma figura que dava nas vistas na vida dos cafés da
zona artística e literária de Munique, Schwabing. Apesar da depen‑
dência do álcool e da morfina que levaria à sua morte aos cinquenta e
cinco anos, Eckart era considerado um oráculo do movimento völkisch
antissemítico. Disse uma vez sobre o novo partido político: «Precisa‑
mos de um líder que não se deixe incomodar pelo estrépito de uma
metralhadora... O melhor seria um operário que também saiba falar...
e que não fuja de alguém a arremessar­‑lhe uma cadeira. Tem de ser
solteiro — depois arranjamos as mulheres!»57 Parecia uma descrição
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quase perfeita do destemido ex­‑peão mensageiro que começava a
interessar­‑se pela política. Em Hitler, Eckart começou a pensar que
encontrara o seu homem.
Como Hitler comentaria mais tarde, Eckart tornou­‑se rapida‑
mente a «estrela polar» do seu desenvolvimento intelectual, refi‑
nando as suas crenças antissemíticas e apresentando­‑lhe os mundos
da boémia e da alta sociedade de Munique. Eckart arrastou Hitler
consigo na primeira viagem de avião do político em formação
— para Berlim — e levou o futuro ditador a conhecer, entre outros,
o famoso e abastado fabricante de pianos Edwin Bechstein e, mais
importante ainda, a sua esposa, Helene. Frau Bechstein tornou­‑se
uma entusiasta apoiante financeira de Hitler e mais tarde, quando
ele esteve na prisão de Landsberg, uma visita frequente («Gostaria
que fosse meu filho», disse ela uma vez).58 Também lhe ofereceu uma
chibata de couro para cães, uma das três que ele receberia de várias
admiradoras e levaria consigo nas suas andanças em Munique.
Enquanto Hitler dava os primeiros passos na política partidária,
teve outra oportunidade de exercitar por escrito os seus dotes retóri‑
cos recentemente descobertos. Em setembro de 1919, o capitão Mayr
recebeu uma carta de Adolf Gemlich, um antigo aluno do curso
na Universidade de Munique. Gemlich pedia orientação a Mayr na
«questão judaica». Mayr deu a carta a Hitler (ainda ao serviço do
exército como soldado) para ele lhe responder.
Hitler incluiu muito na sua resposta de quase mil palavras. Expri‑
miu o seu antissemitismo arreigado pela primeira vez por escrito
e expôs alguns dos elementos­‑chave que, ao longo de toda a sua
ascensão política, se tornariam a base das suas políticas antijudaicas,
do Terceiro Reich, do Holocausto e até do seu «testamento polí‑
tico», escrito em 1945, poucos dias antes do seu suicídio no bunker
de Berlim.
Recorrendo a estereótipos e a clichés do antissemitismo que estava
disseminado por toda a Europa — e especialmente no pensamento
völkisch na Baviera —, Hitler conferiu aos seus argumentos um
verniz analítico e um extremismo que tornaram a sua carta para
Gemlich um caso à parte. Hitler rejeitava um «antissemitismo
emocional», que, disse, era puramente pessoal, só conduzia a pogroms
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e, por consequência, não era politicamente útil, preferindo antes
um «antissemitismo da razão» com «base em factos» e destinado
a dar forma a medidas políticas. O judaísmo não era uma religião,
afirmava, mas uma raça. E a raça judaica operava como uma «san‑
guessuga» nas culturas maioritárias na qual vivia, já que toda a sua
razão de ser era a «dança à volta do bezerro de ouro» com o objetivo
de fazer fortuna. A liderança da República de Weimar, afirmava ele,
estava dependente do dinheiro dos Judeus, que financiava o combate
injusto contra «o movimento antissemítico», ou seja, os partidos
nacionalistas e völkisch (racistas). «O poder [do judeu] é o poder do
dinheiro, que nas suas mãos cresce constantemente sob a forma de
juros, forçando outros povos a submeter­‑se ao jugo mais perigoso.»
No primeiro registo escrito da sua tendência de equiparar os Judeus
a doenças e parasitas, Hitler descreveu o judaísmo como «uma tuber­
culose racial». Uma reação a essa ameaça com base na razão deveria
inevitavelmente levar a «uma luta sistemática e legal e ao cance­
lamento dos privilégios dos Judeus», escreveu.
A Alemanha, prosseguiu Hitler na sua longa carta, necessitava de
um «renascimento», mas não poderia avançar com uma «imprensa
irresponsável», com o que pretendia aludir aos jornais que fossem
propriedade de judeus. Só através dos esforços implacáveis de «uma
personalidade de liderança» a Alemanha voltaria a despertar, afir‑
mava Hitler, proporcionando um vislumbre do seu nascente com‑
plexo de Messias. Propunha uma solução simples para «a questão
judaica» que, arrepiantemente, prenunciava os acontecimentos que
ocorreriam daí a mais de duas décadas. «O objetivo final [do antis‑
semitismo] deve ser a remoção irrevogável e completa de todos
os Judeus.»
Na sua malevolência e cândida brutalidade, a carta a Gemlich
demonstra como o antissemitismo de Hitler se encontrava já com‑
pletamente desenvolvido em finais de 1919. Ainda antes de Hitler
ter uma tribuna política oficial, a sua carta apontava para as medi‑
das radicais que tinha em mente se alguma vez chegasse ao poder.
Na altura com quase trinta anos, Hitler estava pronto para embarcar
nessa demanda.
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