Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 Conflitos políticos do campesinato pernambucano: as ligas camponesas1 Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho2; Anne Anaíde de Oliveira Banja3 Resumo Este trabalho procura investigar, embora de forma sucinta, os conflitos do campesinato pernambucano nas décadas de 50 a 70 do século passado. Nossa preocupação foi de mapear os principais acontecimentos políticos e suas relações com o campo. Para isso, necessário tornou-se apresentarmos a importância das ligas camponesas, o golpe de estado de 1964 e a articulação política desenhada pela principal liderança do movimento pesquisado: Francisco Julião. Palavraschave: campesinato, ligas camponesas, movimentos sociais. Abstract This work looks for to investigate, even so of form sucinta, the conflicts in the pernambucano field in the decades of 50 the 70 of the last century. Our concern was of mapear the main events politicians and its relations with the field. For this, necessary one became to present the importance of the camponesas leagues, the coup d etat of 1964 and the joint politics drawn for the main leadership of the searched movement: Francisco Julião. Key words: Camponesas, Camponeses leagues, social movements. Introdução P ara que conheçamos em que contexto se passaram as lutas camponesas no Estado de Pernambuco, iremos apresentar como foram construídas nos anos 50 e como cidadãos foram perseguidos pós-64, por lutarem pela posse da terra, por seus direitos e por um mínimo de dignidade; também se faz necessário que conheçamos um pouco sobre a História das ligas camponesas e, concomitantemente, do nosso País. O governo de João Goulart (1961-1964) começa sob o regime parlamentarista, condição imposta para que ele tomasse posse como Presidente da República. Proposta aprovada pela Câmara dos Deputados com o intuito de limitar os poderes do Executivo. Não demorou muito, em 6 de janeiro de 1963, Jango convocou um plebiscito para decidir sobre a manutenção ou não do 45 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO sistema parlamentar: o resultado foi a volta do presidencialismo, que lhe devolvia os poderes retirados em 1961, quando Jango havia sucumbido pelo parlamentarismo. Foi nesse contexto que surgiu o Plano Trienal e o programa de Reformas de Base, que incluía a reforma agrária (visando à divisão dos latifúndios), a reforma eleitoral (voto dos analfabetos), a reforma universitária (ampliando as vagas das faculdades públicas), entre outras. Com a adoção de todas essas medidas, houve um descontentamento das elites e o acirramento da oposição, os movimentos populares cresceram e pressionaram para que essas medidas fossem postas em prática. No início de 1964, a crise já atingia todo o País. O caos realmente surgiu quando João Goulart decretou a nacionalização das refinarias particulares de petróleo e desapropriou terras à margem das ferrovias, rodovias e em zonas de irrigação dos açudes públicos. Logo após essa medida, os proprietários rurais, a burguesia, os grupos conservadores da Igreja Católica e do empresariado reagiram contra o seu governo, realizando “a marcha da família com Deus pela liberdade”. Esse movimento, no começo, estava sendo organizado por oficiais das Forças Armadas e por alguns setores civis mais conservadores. Com esse descontentamento das elites e o acirramento da oposição, surge o Golpe de Estado de 1964 e o fim do governo Jango, além do término do período democrático e o começo da República militar. Segundo Costa e Mello, uma das razões do golpe militar de 1964 foi o avanço das lutas operárias, com a unificação dos trabalhadores brasileiros numa única frente de luta sindical: o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Em 1961, ocorreram 180 greves, só em São Paulo; em 1962, foram 184, buscando, entre outras coisas, a unificação da data-base dos acordos salariais. Não foi só na zona urbana que surgiram esses movimentos; na zona rural, as lutas populares eram avançadas e com poder de expansão maior do que se imaginava. Em 1955, surgia a primeira liga camponesa, no engenho Galiléia, em Pernambuco; fortalecia-se também a UTAB - União dos Trabalhadores Brasileiros. Surgiam, assim, os sindicatos rurais, incentivados pela aprovação, no Congresso, do Estatuto do Trabalhador Rural, em 1962, levando o campesinato a lutar pelo fim 46 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 da arcaica estrutura latifundiária (Cf. 1999, p. 352). Para Jango, a única saída seria aplicar reformas estruturais, redistribuir a renda, objetivando abrandar as contradições inerentes ao Capitalismo e também impedir a estagnação das indústrias, expandindo o mercado interno. Entre as reformas de estrutura, a principal seria a agrária. Emfim, após o golpe militar, decretou-se o Ato Institucional nº 1 (AI –1), em 10 de abril de 1964, quando o alto comando militar preparava a eleição indireta do Marechal Castello Branco. O regime militar tinha o modelo econômico baseado na concentração de renda, na expansão dos créditos para as camadas médias e na abertura externa da economia brasileira, que durou de 1969 a 1973 (milagre econômico). O modelo político desse regime era: centralização do poder com o fortalecimento do executivo, controle da estrutura partidária, censura aos meios de comunicação e repressão política. Antes mesmo de entendermos como foram as lutas, os movimentos históricos das ligas camponesas e do meio rural como um todo, precisamos ter em mente algumas respostas para: o que são os camponeses, o que eram as ligas e o que seria o campesinato? Luna define camponês (lavrador, pequeno produtor) como: “todo aquele que detentor ou não da posse legal da terra, tem nesta a sua base de produção, destinando-a para o consumo” (1984, p. 15). Segundo Prado Júnior e Guimarães, apud Luna (1984, p. 16), essa camada intermediária, do meio rural brasileiro, os camponeses, estão entre os escravos e os pequenos proprietários. Camada esta que, depois da abolição, ficou também em uma posição intermediária entre os assalariados e os proprietários. Essa categoria formou o que Queiroz (1973, passim) denominou de “campesinato brasileiro”. Esses camponeses trabalhavam no sistema do plantation, detinham um pequeno pedaço de terra dentro da fazenda dos grandes proprietários, dos latifundiários. Estes cediam a terra para que eles plantassem uma espécie de roça, que iria servir para o seu sustento e o de toda sua família e, em troca, servia como mão-de-obra módica. Finalmente, surge, entre as décadas de 50 e 60, a liga camponesa, contribuindo para a luta nacional do campesinato. Esta representou a união dos foreiros, moradores, arrendatários, pequenos 47 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO proprietários e trabalhadores da Zona da Mata Pernambucana contra os grandes latifundiários. Essa expressão “Ligas Camponesas” está relacionada ao movimento de organização de horticultores da região do Recife, organizado pelo Partido Comunista Brasileiro – PCB, ainda quando legalizado nos anos 40. O motivo da mobilização dos horticultores foi a inconstitucionalidade dos sindicatos. A liga de Ipatinga, fundada em 3 de janeiro de 1946, em Pernambuco, foi uma das poucas que resistiu ao desaparecimento geral. O berço das lutas organizadas dos camponeses contra a má distribuição da terra, pela reforma agrária e contra os grandes proprietários de terra, canalizada pelas ligas camponesas, foi o Nordeste brasileiro. 1 O surgimento da luta Na segunda metade dos anos 50, eram os latifúndios que dominavam o campo pernambucano. Nessa década, consolidou-se no Estado um movimento que atraiu a atenção do Brasil: as ligas camponesas. Tornou-se sinônimo da luta pela terra, que, cada vez mais, ganhava dimensões políticas, à medida que buscava sua identidade. Estas foram algumas das formas de organização dos camponeses que resistiram à expropriação da terra, tendo origem na recusa pelo assalariamento. Tal movimento, completamente novo no Estado, arrebatou a imaginação de quem sonhava com transformações para o país, ao mesmo tempo que assustava os grandes proprietários de terras. As ligas camponesas tiveram uma acelerada expansão no início da década de 50, atingindo praticamente todo o Estado, embora suas lutas mais intensas fossem na Zona da Mata. Em 1961, chegou a ter 10 mil associados e 40 sedes municipais, das quais as mais fortes eram as dos municípios de Água Preta, Bom Jardim, Cabo e São Bento do Una. Em 1962, as ligas tornaram-se o maior movimento agrário do país. Os camponeses, que até então só tinham líderes de atuação geograficamente restrita, passaram a contar com o apoio do Deputado Federal Francisco Julião, que foi eleito pelo PST – Partido Social 48 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 Trabalhista, coligado com o PSB – Partido Socialista Brasileiro. A força das ligas lideradas pelo Deputado foi notória, sendo este chamado por Luís Carlos Prestes (maior líder comunista da época) para fundir as ligas camponesas com a ULTAB4. Prestes considerava que, com a junção das duas, o movimento agrário iria adquirir mais forças e condições de desenvolver-se nacionalmente. O Deputado pernambucano, que seria o novo líder da união, recusou a proposta, pois acreditava que o movimento acabaria sob o domínio do Partido Comunista Brasileiro. O lema do movimento das ligas camponesas era: Reforma agrária na lei ou na marra. Para criar uma liga, era necessário, apenas, reunir um grupo de cerca de 40 camponeses e, se todos concordassem com o estatuto, eleger a diretoria. Depois, preparar uma ata, que seria assinada por todos, e fazer a comunicação à justiça. A entidade surgia como uma sociedade civil de direito privado, bastando registrá-la em cartório. A CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas reconhecia a existência dos sindicatos, mas, devido à grande burocracia necessária para sua criação, era mais fácil serem formadas as ligas. As primeiras reivindicações delas enfocavam a abolição do cambão e do foro. O primeiro se refere aos dias de trabalho dados de graça para o proprietário da terra, como se fosse um escravo; enquanto o segundo consiste em uma espécie de aluguel pago pelo camponês ao dono da terra. Oficialmente, portanto, as ligas camponesas surgiram em 1º de janeiro de 1955, no engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, tornando-se o mais antigo símbolo das lutas pela terra, a luta por uma reforma agrária. Os próprios moradores do engenho fundaram as ligas, que, na época, tinham o nome de Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP). Com o movimento já estruturado, surge uma personalidade muito importante para a sua legalização: Francisco Julião5. Ele foi o defensor desses moradores, que estavam ameaçados de despejo por causa do movimento. Foi, também, o principal líder do movimento, bem como o responsável pela sua institucionalização. 49 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO Julião, em 1962, foi candidato a Deputado Federal. Uma música que surgiu durante a campanha bem caracteriza o mote das diretrizes que seriam encampadas pelo candidato: “operário sem pão/ camponês sem terra/ panela vazia/ tambor de revolução... / viva a reforma agrária radical/ com Francisco Julião” (CARVALHO, 1994, p. 94). Francisco Julião lutou juntamente com os camponeses pela reforma agrária e ajudava aos moradores a protegerem-se da reação. Orientados por ele, os camponeses soltavam um “foguetão” para avisar aos outros quanto à chegada de estranhos ao engenho e, à medida que eles eram avisados, armavam-se de foices, machados, facões e o que tivessem. A ajuda não veio só do Brasil, mas também do exterior, como do irmão do Presidente dos Estados Unidos da América, John Kennedy. Em 30 de julho de 1961, aconteceu uma visita histórica, o Diário de Pernambuco registrou o apoio de Eduard Kennedy. A manchete, em letras garrafais, assim expressava: Irmão de Kennedy visitou liga camponesa do engenho “Galiléia”. O mesmo prometeu ajudar os camponeses, porém não atendeu ao principal pedido feito, que foi a retirada das forças armadas do campo, da “polícia”, como eles a chamavam. A forma que Kennedy arrumou para ajudar essa população foi a doação de um gerador de energia, que era capaz de fornecer 100 watts. A situação dos camponeses no começo das ligas não era nada confortável, o trabalho diário no campo, segundo estudos feitos por Celso Furtado, economista, primeiro superintendente da SUDENE, não dava para comprar um quilo de farinha na feira. Outro pertinente comentário feito por Antônio Callado, escritor que, na época, redigiu reportagens sobre o tema, diz em um trecho: Se alguém chegasse, em plena Idade Média e em tempo de peste, a uma aldeola miserável de Portugal, não encontraria quadro mais fantástico do que o desses camponeses (apud FRANCISCO, 2004, p. 3). 50 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 2 O declínio das Ligas No Governo de João Goulart, os sindicatos obtiveram um grande crescimento. Goulart apoiou a criação dos sindicatos fazendo com que desaparecessem as amarras burocráticas. Em Pernambuco, essas entidades também foram beneficiadas com o estímulo dado pelo Governador do Estado, Miguel Arraes. Nessa trilha, aberta e guarnecida pelos governos Federal e Estadual, entraram o PCB e a Igreja Católica, que vivia um período de temor pela perda de fiéis para os comunistas. Era crescente o surgimento de sindicatos, estando o maior localizado na cidade de Palmares, congregando trabalhadores rurais de várias regiões. Ao passo que os sindicatos apoiados pelo governo e pela igreja estavam progredindo, as ligas camponesas, comandadas por Julião, estavam praticamente sozinhas, à margem do Estado, dos partidos e da igreja. Julião não era contra essas instituições, até defendia que se completassem com as ligas e que os associados a estas deviam filiarse a eles. Mas havia divergências políticas e ideológicas envolvidas na criação de novas entidades; na prática, havia um clima de disputa entre todos. Os sindicatos eram mais eficazes do que as ligas, no sentido de levar adiante as reivindicações mais imediatas de melhoria das condições de vida, uma batalha que, dia a dia, fazia as ligas declinarem. A reivindicação da organização, principalmente quanto à reforma agrária, implicava um exaustivo e longo combate contra os poderosos, e não havia garantia alguma de sucesso. Nessa época, surgiu, nos debates, a idéia de que as ligas não tinham mais motivo de existirem. Suas reivindicações poderiam ser incorporadas pelos sindicatos, aos quais todos poderiam unir-se. Elas enfrentavam então duas oposições: o latifúndio, que não queria a reforma agrária; e os sindicatos, que se interessavam, antes de tudo, pelo salário e pelas conquistas trabalhistas, ao passo que as ligas lutavam pela terra e pelo salário, mas sempre colocando a terra em primeiro plano, de maneira a não criar no campesinato a ilusão de que todo aquele que tenha salário terá terra. Nesse sentido, elas temiam 51 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO ainda que a luta pelo salário levasse os camponeses a desistirem da luta pela conquista da terra, que era o objetivo fundamental. No ano de 1963 e início de 1964, as ligas entraram em uma escalada de radicalização política e ideológica que a isolou ainda mais. Sofreu ataques do governo, violência dos proprietários de terras e entrou em combate com os parceiros democráticos pela hegemonia da organização dos camponeses. O cenário político e social estava em mudança acelerada, e, internamente, as ligas se debatiam em busca de uma linha de pensamento e ação que se adequasse ao novo momento. Os líderes lançavam as suas teses para serem discutidas e submetidas à votação, que se realizaria posteriormente em um encontro nacional. A mais radical das teses era a de Julião. Foi publicada no jornal A liga, pertencente à organização, com o título “unificar as forças revolucionárias em torno de um programa radical6”. Segundo Celso Furtado, A organização das ligas camponesas teve uma rápida propagação, que não encontra paralelo na história dos movimentos sociais no Brasil... Transmitindo suas mensagens através de símbolos, criando mártires ali onde uma população sem presente e sem destino aguardava uma mensagem qualquer que lhes dava sentido à vida, o movimento das ligas camponesas levou a massa camponesa nordestina a cumprir em prazo surpreendentemente curto uma evolução madura através de longos decênios (apud FRANCISCO, 2004, p. 3). Vale lembrar que, no plano internacional, um dos ícones do movimento foi Emiliano Zapata, líder campesino mexicano, que muito contribuiu no imaginário do movimento das ligas camponesas. Mesmo depois de quarenta anos da sua morte, foi esse revolucionário mexicano um camponês sem terra, líder da revolução de 1910 em seu país, que se tornou uma espécie de símbolo da reforma agrária no Brasil. Entre outros motivos, esse fato aconteceu graças ao filme Viva Zapata, projetado no Brasil na época das ligas, e graças, também, às analogias feitas pelos jornalistas pernambucanos que 52 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 comparavam a revolução de Zapata com as ligas. Ajudava-se, assim, tanto a publicação do movimento como a sua propagação. Em 31 de março de 1964, como já aludido, ocorre o golpe militar e a perseguição aos camponeses e seus líderes. Nessa época, entre outros acontecimentos, como movimento reativo, o líder comunista Gregório Bezerra levanta a proposta de distribuir armas para o povo e transferir a sede do governo para a combativa cidade de Palmares (VELHO, 1996, passim). Após o golpe, Julião tornou-se uma das lideranças mais perseguidas do Brasil, que lutava pela resistência democrática. Em 9 de abril de 1964, foi cassado pelo Ato institucional n° 1 (AI-1) e, sabendo o que iria acontecer-lhe, um dia antes da sua cassação, fugiu vestido de camponês por Belo Horizonte (assistiu de perto à classe média aplaudir Magalhães Pinto e o General Olímpio Mourão Filho), depois, seguiu para o interior de Minas e daí para Bauzinho, em Goiás. Foi obrigado a mudar de nome e passou a se chamar Antonio Ferreira da Silva, camponês e pastor protestante. Foi preso três meses depois. Houve uma denúncia por parte de um pernambucano que tinha trabalhado na campanha para governador em Pernambuco, de João Cleofas de Oliveira, derrotado por Arraes em 1962. A sua prisão ocorreu no dia 3 de junho de 1964, o casebre onde morava foi cercado por policiais e, no momento da emboscada, estava com alguns amigos. Segundo o próprio Julião, os policiais o reconheceram pelos pés, pois quando pediram para que os homens que ali estavam mostrassem as mãos, todas eram calejadas, mas quando pediram para retirar as botas logo identificaram quem era Julião, pois, segundo ele próprio, “as mãos eram de camponês, mas os pés eram de Deputado” (FRANCISCO, 2004, p. 4). Após a prisão, foi transferido para Brasília, em seguida para a Segunda Companhia de Guarda, no Recife, dividindo cela com o Ex-Governador Miguel Arraes e outros. Após dezoito meses preso, o Advogado Sobral Pinto impetrou um Habeas Corpus, libertandoo. Em 28 de dezembro de 1965, exilou-se no México, retornando ao Brasil em 4 de novembro de 1979. O golpe militar impediu que os planos de Julião, os quais estavam sendo traçados nos mínimos detalhes, fossem postos em 53 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO prática. Um deles era a incorporação dos seguidores do Padre Cícero Romão Batista às ligas camponesas. Julião já tinha encomendado uma estátua do padre ao escultor Abelardo da Hora. Ele gostaria de levar a homenagem onde o padre era venerado, Juazeiro do Norte, no Ceará. Embaixo da estátua, estaria escrito: “Ligas Camponesas do Nordeste: romaria ao Juazeiro do Padre Cícero” (FRANCISCO, 2004, p. 12). A publicidade dada a essas grandes personalidades da luta camponesa foi muito importante para expandir o movimento, porém, isso não bastava. Para que este tivesse uma maior expansão, fazia-se necessária não a sua regionalização, mas uma nacionalização, e foi o que aconteceu. O movimento, de fato, iniciou-se no Nordeste e logo se expandiu rapidamente, em 1954, no Estado de São Paulo. Surgiu a ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil). Tal movimento tinha o objetivo de coordenar as associações camponesas que já existiam, porém, logo, surgiram as controvérsias entre esses dois grupos, as ligas e a ULTAB, esta última, sempre em busca da sindicalização. As divergências surgiram pela forma radical da proposta de reforma agrária. Entretanto, a união desses dois grupos, em alguns momentos, foi muito importante para a propagação dos ideais das lutas camponesas. Com a proliferação desses grupos a favor dos camponeses, cresceu, também, o números dos que eram contra esses ideais, principalmente no tocante à reforma agrária. Entretanto não foram só as lutas por ideais que marcaram a história desses camponeses, mas também a violência: famílias inteiras foram mortas, líderes brutalmente assassinados e outros desapareceram. Essa violência sempre esteve presente na vida dos camponeses, principalmente na década de 60, quando houve um maior crescimento, precisamente no ano de 1964, com o regime militar. Um dos maiores motivos para o crescimento dela eram as greves que proliferavam à medida que o movimento se expandia, tornando-se cada vez mais em evidência e cada ano mais forte. Foram registradas algumas mortes das maiores lideranças desse movimento. Podemos mostrar a linha de crescimento da violência contra essas lideranças: 54 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 [...] entre 1954 e 1962 ocorre em Pernambuco apenas uma greve entre os trabalhadores rurais (cortadores de cana em um engenho em Goiana, em outubro de 1955), no ano de 63 assinala a ocorrência de 48 greves, sendo duas delas gerais (em nível estadual). Mas crescem também as ações repressivas: ocorreu em janeiro desse ano o assassinato de 5 camponeses na Usina Estreliana; entre agosto e setembro são assassinadas algumas lideranças como Jeremias (Paulo Roberto Pinho, líder trotskista) em També e Antonio Cícero em Bom Jardim, delegado sindical da Usina de Caxangá. Na Paraíba, além do assassinato de João Pedro Teixeira, em Sapé, ocorreram choques com várias mortes, ainda em Sapé e Mari (OLIVEIRA, 1990, p. 29). 3 A criação de um partido político Analisando com mais precisão, as ligas iniciaram, em 63, um processo para se transformarem em partido político: seria o primeiro partido agrário do Brasil. Foi na Conferência do Recife, reunindo as 64 ligas existentes no país, que ocorreu a primeira etapa do processo de transformação destas em partido. Aí foi criado um Conselho Nacional do movimento, ao qual todos ficariam subordinados. A criação de um núcleo chamado de organização política, embrião do partido, foi aprovado em janeiro de 1964. O problema político enfrentado pelas Ligas era o mesmo enfrentado hoje pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o de que os partidos têm dificuldades práticas, teóricas e doutrinárias para acompanhar e incorporar as tensões sociais e reivindicações camponesas (MARTINS, 1999, passim). Julião acreditava que, com a criação de um partido, seria possível incluir os camponeses no quadro político nacional. A fundação de um partido agrário, a votação das teses e outras questões internas seriam discutidas em um encontro nacional marcado para junho de 1964. Mas este não ocorreu, o Golpe Militar chegou antes, fechando as ligas, reprimindo violentamente os 55 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO camponeses e cassando e prendendo Francisco Julião. Com a implantação do Regime Militar, o Brasil mergulha em uma nova fase de sua história. O plano político é marcado pelo autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perseguição política, prisão e tortura dos opositores, e pela censura prévia aos meios de comunicação (COSTA, 1999, passim). Durante 21 anos, o país viveu sob tutela militar, que marcou seu povo e suas instituições. Foram duas décadas de confronto entre forças políticas e sociais. Nesse conflito, os donos do poder utilizaram diversos recursos: censura, tortura e arbítrio. Os militares, vale lembrar, tomaram o poder do país em uma aliança de que participaram diferentes setores da burguesia: latifundiários, empresários e banqueiros, todos contra a reforma agrária, todos contra os camponeses. Com o Golpe, foram destituídos de seus cargos importantes figuras políticas para as ligas, como o então Governador de Pernambuco, Miguel Arraes e o próprio Deputado Federal Francisco Julião7. 1964 significou um retrocesso para o país. O projeto de desenvolvimento implantado pelos militares levou ao aumento das desigualdades sociais. Sob a retórica da modernização, ampliaram-se os problemas políticos e econômicos do país, gerou-se o crescimento da concentração de renda, conduzindo a imensa maioria da população à miséria, intensificou-se a concentração fundiária e promoveu-se o maior êxodo rural da História do Brasil. O aumento do preço do açúcar fez com que os latifundiários da Zona da Mata pernambucana expulsassem de suas terras os camponeses que nelas viviam, para usar o espaço no plantio da cana de açúcar. Essa atitude, somada ao avanço do capitalismo, gerou um aumento na miséria e na concentração de riquezas. Tal processo, juntamente com a mecanização e a industrialização, simultaneamente com a modernização tecnológica de alguns setores da agricultura, transformou o meio rural. A expulsão dos trabalhadores rurais causou um crescimento do trabalho assalariado, produzindo um novo personagem na luta pela terra e pela reforma agrária: o bóia-fria. 56 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 Os militares e a burguesia tinham um modelo de desenvolvimento para o campo, que preconizava a agricultura capitalista em detrimento da agricultura camponesa. Era com esse modelo que pretendiam controlar a questão agrária, implantando-a por meio da violência. O governo da ditadura ofereceu aos empresários subsídios, incentivos e isenções fiscais, impulsionando o crescimento econômico da agricultura e da indústria, enquanto arrochava os salários, estimulava a expropriação e a expulsão, multiplicando os despejos das famílias camponesas e intensificando a concentração fundiária. Essas medidas adotadas na década de 60 pelo governo fizeram fez com que o Brasil se transformasse no paraíso dos latifundiários e agregou novos elementos à reforma agrária, aumentando e expandindo os conflitos, fazendo eclodir as lutas camponesas. Conclusão Devido à repressão sofrida pelos camponeses e pelas ligas, em razão do Golpe Militar e do novo regime político e econômico do país, as lutas camponesas desenvolveram-se por todo o território nacional. Os conflitos fundiários triplicaram e o governo, ainda na perspectiva de controlar a questão agrária, determinou a militarização do problema, proporcionando diferentes e combinadas formas de violência contra os trabalhadores. Durante todo o Regime Militar, o governo tentou acabar com os movimentos rurais. Mas, ao tentar reprimir a reforma agrária e a luta pela terra, apostou no fim do campesinato engajado e fez nascer, posteriormente, o mais recente e importante movimento da História do Brasil rural: o MST. Mesmo com as dificuldades impostas na época, esses movimentos rurais no Estado de Pernambuco foram-se fortalecendo. Com a ajuda da FETAPE8, os camponeses enfrentaram as milícias armadas dos latifundiários, dos usineiros e os porões do governo ditatorial. 57 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO Dos movimentos rurais realizados em Pernambuco, o de maior relevância ocorreu em 1979, ainda sob a batuta do Regime Militar, quando mais de 240 mil canavieiros do Estado entraram em greve por melhores condições de trabalho e maiores salários. Esse movimento representou a unidade da entidade sindical rural, sendo, junto com a greve dos metalúrgicos do ABC Paulista, a maior mobilização dos trabalhadores do Brasil. O ano de 1964 foi marcado por muita luta e violência: houve perseguição, morte, desaparecimento, prisão e tortura das lideranças das ligas camponesas. Nessa situação, como não poderia ser diferente, ocorreu a desarticulação desses grupos. Esse momento tanto foi um marco para as lutas camponesas, como um marco da violência e da extirpação dessa camada da população, além da decretação do fim da possibilidade da existência da reforma agrária. Porém, essa luta não foi em vão. As ligas camponesas conseguiram que a sociedade enxergasse o campo e as pessoas que ali viviam em condições sub-humanas. De uma forma bem diferente, estas agora eram vistas como quem precisava de ajuda e de grandes mudanças. Agora, a sociedade lutava, juntamente com os camponeses, para amenizar seus problemas, que não eram poucos. Mesmo com toda campanha que a ditadura fez para acabar com a classe dos camponeses, ela não teve êxito. Por um lado, uma parte da população se identificava com a luta desse povo; e, por outro lado, a luta que era especificamente do Nordeste brasileiro tinha tomado grandes proporções, era agora uma luta nacional, em que todos os camponeses e os que acreditavam nos seus ideais estavam juntos. Com isso o movimento crescera em todo o país. Tornava-se impossível à ditadura conter esse movimento. Como se sabe, a luta pela reforma agrária perdura até os dias atuais, com o MST, que se considera descendente das ligas camponesas, como de fato é. A luta campesina pela dignidade, por uma vida mais justa, por um pedaço de terra onde possam plantar para sustentar a própria família não parou e não vai parar até que se consiga fazer uma efetiva reforma agrária no Brasil. 58 Revista SymposiuM - Ano 10 • nº 2 •julho-dezembro/2006 Notas Investigação realizada no Núcleo de Pesquisa da AESO – Ensino Superior de Olinda/Faculdades Integradas Barros Melo no ano de 2004. 2 Prof. Dr. da AESO – Faculdades Integradas Barros Melo. 3 Bacharelanda em Direito pela AESO – Bolsista da Faculdades Integradas Barros Melo. 4 União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, entidade criada pelo PCB em 1954. 5 Conhecido Advogado das causas camponesas. 6 Publicada em 12 de Junho de 1963, defendia a criação de um Movimento Unificado da Revolução Brasileira – MURB, ao qual caberia lutar pela aplicação de uma série de reivindicações nitidamente revolucionárias. Não se contentava apenas com a reforma agrária radical, queria também reforma urbana radical, bem como a reforma industrial e bancária. De acordo com essas reformas radicais, os aluguéis seriam reduzidos em 50%, e cada inquilino adquiriria automaticamente a preferência para comprar o imóvel. As grandes indústrias instaladas no país seriam nacionalizadas, o mesmo ocorrendo com o sistema financeiro. As forças de segurança teriam os seus efetivos reduzidos e seriam criados núcleos voluntários de operários, camponeses e estudantes. A lei de Segurança Nacional seria revogada. O voto seria estendido ao analfabeto. Todos os Códigos de Direito Público e Privado seriam revistos. 7 Julião no dia do Golpe estava na Câmara dos Deputados, tendo feito no dia anterior (31 de Março) um discurso afirmando que os camponeses estavam prontos para resistir ao Golpe que se formava, exigiu a reforma agrária e criticou a movimentação militar. 8 Em 1962, Pernambuco fervilhava, eram as ligas camponesas, o surgimento dos primeiros Sindicatos de Trabalhadores Rurais, as lideranças ligadas à igreja, os partidos de esquerda, organizações populares, todos, enfim, lutando por melhores condições de vida e trabalho no campo. Nesta época, havia 08 Sindicatos de Trabalhadores Rurais organizados em Pernambuco, que criaram, no dia 06 de junho de 1962, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado de Pernambuco – FETAPE. 1 59 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO Referências CARVALHO, João Carlos Monteiro de. Camponeses no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1994. COSTA, Luis César Amad; MELLO, Leonel Itaussu A. História do Brasil. 11. ed., São Paulo: Scipione, 1999. FRANCISCO Julião. As ligas e o golpe de 1964. Diário de Pernambuco, Recife, 31 de mar 2004. Documento especial. LUNA, Regina Celi Miranda Reis. A terra era liberta: um estudo da luta dos posseiros no Vale do Pindaré. São Luís: UFMA, 1984. MARTINS, José de Souza, O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A geografia das lutas no campo. 3. Ed. São Paulo: Contexto, 1990. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O campesinato brasileiro: ensaios sobre a civilização. Petrópolis: Vozes, 1973. VELHO, Otávio Guilerme. O capitalismo autoritário e o campesinato. São Paulo: DIFEL, 1996. Endereço para correspondência: E-mail: [email protected] 60