Método Científico no Séc. XVII - fflch-usp

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Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2014
Capítulo XV
Método Científico no Séc. XVII
1. Francis Bacon
O inglês Francis Bacon (1561-1626) foi um dos arautos do novo espírito científico,
apesar de não ter sido um cientista importante. Era um escritor muito eloquente, como mostra
uma de seus aforismos: “A natureza não se vence, se não quando se lhe obedece” (N.O. I, § III).
Sua obra mais importante foi o Novum organon (1620)75, em que defende uma versão
do empirismo: o cientista deve eliminar predisposições e preconceitos e observar a natureza
como faz uma criança. Adverte para os quatro “ídolos” que bloqueiam a mente humana (os
eidolon, para Epicuro, são emanações materiais, formadas por átomos sutis, que são emitidas
pelas coisas e impressionam nossos órgãos dos sentidos).
Os “ídolos da tribo” são fruto da própria natureza humana. Tendemos a postular uma
maior regularidade na natureza do que a que é de fato observada. Envolvem os atos de
generalizar apressadamente e de superestimar os casos que confirmam uma hipótese (ver
Novum organon, livro I, § XLI, XLV e LI).
Os “ídolos da caverna” são atitudes diante da experiência que resultam da educação de
cada homem individual, de suas peculiaridades, de seus traumas. Como exemplo, Bacon
menciona William Gilbert (que vimos na seção XIII.2), que observou corretamente as
propriedades dos imãs, mas devido ao seu modo de ver o mundo, desenvolveu explicações
distorcidas (ver N.O. I, § XLII, LVII).
Os “ídolos do foro” são distorções que surgem quando os significados das palavras são
usados em sentido vulgar ou ambíguo (N.O. I, § XLIII, LX). Por fim, os “ídolos do teatro”
incluem os dogmas e métodos recebidos de sistemas filosóficos.
Bacon refere-se a três diferentes escolas filosóficas que contribuiriam para a distorção
de nossa visão objetiva do mundo. A escola “racional” ou sofística seria representada por
Aristóteles e os aristotélicos em geral, que tendem a desprezar a experiência. A escola que
Bacon chama de “empirista” seria representada por Gilbert e pelos alquimistas, e se
caracterizaria pela realização de experimentos esparsos e muita especulação. A terceira escola
envolveria superstição e uma mescla com a teologia, sendo representada por Pitágoras, Platão
e os neoplatonistas.
Bacon critica Aristóteles, apesar de aceitar as linhas gerais de sua metodologia
científica, baseada na indução e dedução (o método de composição e resolução dos
medievais). Com relação ao estágio indutivo, Bacon critica a coleta de dados ao léu e a
precipitação de Aristóteles em fazer generalizações para primeiros princípios (N.O. I, § XIX,
XXII). Afirma que a indução por simples enumeração pode levar a conclusões falsas. Com
relação ao estágio dedutivo, Aristóteles não teria defendido adequadamente os conceitos
usados em suas deduções (conceitos como atração, geração, elemento, pesado, úmido).
Notando que uma dedução só tem valor científico se as premissas tiverem bom suporte
indutivo, acusou injustamente a Aristóteles de não se preocupar com esta questão.
Francis Bacon partilhava a ênfase de Roger Bacon com relação à importância da
experimentação sistemática. Salientava também a importância dos instrumentos científicos.
Seu método defendia induções graduais e progressivas, a partir da coleta sistemática de
observações. Propunha a compilação de três tábuas para auxiliar a indução (N.O. II, § XI-XIII):
75
BACON, F. (1979), “Novum organon”, trad. J.A.R. de Andrade, in Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo,
pp. 1-231 (orig. em latim: 1620). Além dos livros de LOSEE (1979) e OLDROYD (1986), op. cit. (notas 17 e 16),
um bom relato sobre Bacon é dado por DIJKSTERHUIS, E.J. (1986), The mechanization of the world picture, trad.
C. Dikshoorn, Princeton U. Press (orig. em holandês: 1950), pp. 396-403.
75
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Tábua de Presença
Casos positivos do
fenômeno investigado.
Cap. XV – Método Científico no Séc. XVII
Tábua de Ausência
Casos em que o fenômeno
não ocorreu.
Tábua de Graus
Lista das variações de
grau de um fenômeno.
Exemplo: O fenômeno do calor, que dá origem à sensação de quente.
Raios do Sol,
Fogo,
Termas,
Atrito entre pedras,
Água em cal viva, etc.
Raios da Lua
Água,
Ventos Frios,
Ar no sótão no verão, etc.
Calor animal aumenta
com exercício, com
febre, com dor , ao beber
vinho...
Calor do Sol depende de
sua distância...
Bacon infere, então, a partir dessas listas, que a natureza do calor é o “movimento
expansivo restringido de pequenas partículas de um corpo”. Tal concepção é bastante próxima
de nossa visão atual, mas certamente ela não foi obtida apenas por indução a partir das tábuas,
ao contrário do que pretendia Bacon. Essa concepção “cinética” do calor tornar-se-ia aceita
por Boyle e Newton, para depois ser suplantada pela teoria do “calórico”, o fluido do calor.
Em geral, reconheceu Bacon, essas tábuas podem não ser suficientes para se tirar uma
conclusão, de forma que se devem buscar “instâncias prerrogativas”, que exibam o fenômeno
de maneira especial. Ele listou 27 dessas instâncias; uma delas, por exemplo, são as instâncias
cruciais (N.O. II, § XXXVI), que envolvem um experimento que consegue decidir entre duas
explicações competidoras.
O crescimento da ciência, segundo Bacon, se dá por ascensão indutiva: parte-se de
fatos observados, a partir deles obtêm-se correlações de fatos, a partir destas correlações mais
abrangentes, e por fim as leis gerais (que chamou de “formas”). A finalidade da ciência,
encapsulada em sua máxima “saber é poder”, é de ordem prática, visa melhorar o padrão de
vida dos seres humanos, aliviar suas dores e ansiedades. Assim, dedicou especial atenção à
organização social da pesquisa científica.
No aforismo XCV (N.O. I), Bacon faz uma analogia entre os métodos científicos e os
insetos. O empirista ingênuo seria uma formiga, que apenas coleta as coisas e as utiliza; o
racionalista seria uma aranha, que produz a teia do conhecimento a partir de sua própria
matéria; já o verdadeiro cientista seria como a abelha, que coleta material das flores distribuídas
por uma vasta área e o digere por meio de seus próprios recursos, gerando mel (posição próxima
ao construtivismo, da seção XI.5).
A visão de ciência de Francis Bacon tinha suas limitações, o que gerou o desprezo de
alguns comentadores, como Koyré. O inglês não deu a devida atenção à matemática, o que
reflete o fato de não ter conhecido o trabalho em mecânica de Galileo. Bacon também não
percebeu a importância de Copérnico.
A proposta metodológica de Bacon foi desenvolvida na Inglaterra até 1690,
aproximadamente, quando a metodologia experimental-matemática de Newton ganhou a cena.
Os maiores defensores de sua abordagem foram Robert Boyle e Robert Hooke, no que é
chamado da filosofia experimental de Bacon-Boyle-Hooke.76
76
ANSTEY, P. (2014), “Philosophy of experiment in early modern England: the case of Bacon, Boyle and
Hooke”, Early Science and Medicine 19: 103-32.
76
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Cap. XV – Método Científico no Séc. XVII
2.. Há Observações Neutras?
Vimos como Francis Bacon salientava a importância, para a ciência, de se observarem
os fenômenos naturais “como uma criança”, sem a imposição de concepções teóricas. Afinal,
há vários exemplos de como a concepção teórica pode “contaminar” as observações, tanto
positivamente, como nas evidências levantadas na antiga China a respeito da existência de
capilares entre as artérias e as veias, fruto de sua teoria de que o sangue deveria circular no
corpo humano (dentro da concepção taoísta de que, em geral, tudo circula), quanto
negativamente, como na não--observação das manchas solares no Ocidente, devido à teoria
aristotélica de que os céus são imutáveis (tais manchas foram observadas na China em torno
do séc. I d.C.).
A tese de que há observações neutras, não impregnadas de teoria, é uma das teses
centrais do empirismo moderno,
modern , desenvolvido especialmente nas ilhas britânicas a partir do
séc. XVII. Ela seria incorporada pelas correntes positivistas do séc. XIX e XX, mas seria
atacada por diversos autores, especialmente a partir de 1950.
Norwood Russell Hanson (1924-67)
(1924
dividia seu tempo entre aulas de filosofia da
ciência e a pilotagem de seu avião de acrobacia, quando publicou em 1958 o livro Padrões de
descoberta.77 Ele inicia sua análise do conceito de “observação” com a seguinte situação
imaginária envolvendo os dois maiores astrônomos em 1600:
“Consideremos Johannes Kepler: imaginemos que ele esteja em um morro assistindo
ao alvorecer. Com ele está Tycho Brahe. Kepler considerava que o Sol estaria fixo: seria a
Terra que se move. Mas Tycho seguia Ptolomeu e Aristóteles pelo menos quanto a isso: a
Terra estaria fixa e todos os outros corpos celestes se moveriam ao seu redor. Kepler e Tycho
vêem a mesma coisa a leste no alvorecer?” (H
( ANSON, p. 5)
Poder-se-ia
ia argumentar que sim: os dados sensoriais recebidos por suas retinas seriam
ser
quase idênticos, e o que mudaria seria só a interpretação dada para a sensação.
sensação Assim,
ambos veriam a mesma cena, mas Tycho interpretaria os dados como mostrando o Sol se
movendo, ao passo que Kepler os interpretaria como mostrando o movimento da Terra.
Terra
Hanson
anson passa a atacar esta “teoria dos dados
sensoriais” (sense-data
data theory),
theory e considera aquelas figuras
que podem ser vistas de dois modos, como o “pato-lebre”
“pato
apresentado por Wittgenstein (Fig. XV.1). Para ele, esta
figura pode ser vista de duas maneiras
mane
diferentes, assim
como Kepler e Tycho “veriam” duas cenas diferentes. A
defesa empirista seria que, no caso da figura ao lado, a
aparência de pato ou de lebre seriam diferentes
Fig. XV.1:: Figura de perspectiva
“interpretações” de uma mesma coisa vista. A isto, Hanson
reversível: pato ou lebre?
retruca que “interpretar”
nterpretar” é uma ação do pensamento, ao
passo que o que ocorre aqui são “estados de experiência” diferentes; tanto é assim, que a
mudança de pato para lebre pode ocorrer espontaneamente. Se, para Hanson, a diferença entre
as duas situações não é de natureza interpretativa, de que natureza é ela? Sua resposta é que ela
é de natureza linguística.
ística. Ao “ver”, nós na verdade estamos “vendo que ...”, onde as reticências
77
HANSON, N.R. (1958), Patterns of discovery, Cambridge University Press. Em português,
po
há o artigo:
HANSON, N.R. (1972), “Observação e interpretação”, in Morgenbesser, S. (org.), Filosofia da ciência, trad. L.
Hegenberg & O. S. da Mota, Cultrix, São Paulo, pp. 125-38.
125
Uma análise famosa do positivismo
itivismo lógico e de seus
críticos
íticos é fornecida pela longa introdução de SUPPE, F. (org.) (1977), The structure of scientific
cientific theories. 2a ed.
a
Urbana: University of Illinois Press, pp. 1-241
1
(1 ed.; 1973), que esclarecee Hanson nas pp. 151-66.
151
Há um
“resumão” em português do texto de Suppe, na internet. A Fig. XV.1 é apresentada por WITTGENSTEIN, L. (1979
[1953]), Investigações filosóficas, Abril Cultural, São Paulo, p. 189.
77
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Cap. XV – Método Científico no Séc. XVII
exprimem o fato de que a observação é carregada de teoria, exprimem o fato de que algo pode
ser dito sobre o que é visto.
Em suma, Hanson admite que Tycho e Kepler compartilham os mesmos dados do
sentido, mas tais dados são como uma representação pictórica, ou um estado físico da retina, e
não estabelecem uma referência linguística. Ora, como Hanson argumentou anteriormente que
toda observação tem uma dimensão linguística (pois é sempre “observação de que...”), ele
conclui que a teoria empirista dos dados sensoriais é incorreta, que toda observação é
carregada de teoria (theory-laden), e que Tycho e Kepler viram diferentes alvoradas.
Como o leitor vê isso?
3. Método Científico em Descartes
Em oposição a Bacon, Descartes78 compreendia bem a importância da matemática
para a ciência natural. Este admirava o filósofo inglês, mas inverteu seu método científico. Ao
invés de defender uma ascensão indutiva a partir de observações, Descartes partiu do
conhecimento claro (imediatamente presente ao espírito) e distinto (não condicionado) de
princípios gerais, como o da conservação da quantidade de movimento, e buscou deduzir leis
gerais da mecânica, como as leis do choque. De fato, em alguns momentos, Descartes parece
sugerir a possibilidade de deduzir toda a física a partir de primeiros princípios (Le monde, XI,
47).
No entanto, nos momentos em que Descartes busca realizar este projeto, e nos
momentos em que empreende investigações sobre fenômenos naturais, fica clara a
importância da experiência. Ele se interessou pelo polimento de lentes, fez experimentos com
arco-íris artificiais, mediu a densidade do ar, fez observações sobre a circulação sanguínea e
realizou observações meteorológicas bastante precisas. Ao buscar derivar uma lei empírica,
como a da refração da luz, era obviamente necessário realizar experimentos. Uma vez
conhecida a lei empírica, Descartes buscava derivá-la de princípios gerais, mas para tanto era
preciso levar em conta condições particulares aos fenômenos estudados. Com relação ao
estudo da circulação sanguínea, para dar outro exemplo, precisava considerar a disposição
anatômica dos órgãos para poder aplicar as leis da mecânica. Além disso, como argumenta
nos Princípios de filosofia (III, 4), uma infinidade de efeitos poderiam ser deduzidos das
causas primeiras. Para estipular quais de fato foram realizadas, é preciso descrever os
fenômenos observados.
4. Gassendi: Atomismo e Método
Pode-se dizer que em meados do séc. XVII coexistiam quatro visões sobre a natureza
e estrutura da matéria: i) a noção dos quatro elementos: terra, água, ar e fogo; ii) a concepção
alquímica dos três princípios: sal, enxofre e mercúrio; iii) a visão cartesiana de que matéria é
igual à extensão, existindo em três tipos: a estelar, a etérea e a planetária. iv) o atomismo.
O grande divulgador da antiga doutrina atomista foi o padre Pierre Gassendi (15921655), chamado de “o Bacon da França”, cuja concepção mecânica distinguia-se da de
Descartes por defender a existência de átomos indivisíveis e do vazio, ao passo que o pleno de
Descartes envolvia partículas que seriam sempre divisíveis. Gassendi foi o responsável pela
reabilitação da filosofia de Epicuro no contexto cristão, construindo um sistema tão detalhado
78
Sobre o método científico em Descartes, consultamos LOSEE (1979), op. cit. (nota 16), pp. 82-90, DIJKSTERHUIS
(1986), op. cit. (nota 75), pp. 407, 415, e o relato de BLAKE, DUCASSE & MADDEN (1960), op. cit. (nota 65), pp.
75-103.
78
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quanto o de Descartes. Sua estratégia de conciliação entre atomismo e catolicismo foi
semelhante à adaptação tomista da concepção aristotélica, modificando partes inaceitáveis da
teoria pagã. Na visão de Gassendi, Deus criou os átomos e seus movimentos, e o número de
átomos é finito (enquanto que o vazio é infinito). Os movimentos não seriam governados por
necessidade, já que estavam sujeitos à intervenção de Deus. Os átomos seriam imbuídos de
solidez e impenetrabilidade, caracterizando-se por seu tamanho, forma e peso, e se arranjando
segundo sua orientação (situs) e ordenação (ordo: LAURUS - URSULA). Haveria também
átomos de calor (como em Galileu) e de frio. Reconheceu, porém, que permanecia um
mistério porque percebemos movimentos atômicos como qualidades “ocultas” (secundárias),
ligadas às sensações.
No Livro II da “Lógica”, de sua obra póstuma Syntagma philosophicum (1658)79,
Gassendi examina a questão do “critério de verdade”, partindo dos argumentos céticos contra
a existência de tal critério. Dentre os que aceitam um critério de verdade, faz uma divisão
entre aqueles que defendem que os sentidos são o único critério (representado pelo médico
Asclepíades, seção VI.4), aqueles que defendem que só o intelecto fornece tal critério (como
Parmênides, Platão etc.) e aqueles que consideram tanto os sentidos quanto o intelecto
(Aristóteles, Epicuro, Galeno etc.). Gassendi adota esta última posição, salientando a
existência de “sinais” que permite ao intelecto ir além das observações. O “sinal empírico” é
um sinal, como fumaça, que sugere fortemente a presença de fogo, já que observamos muitas
vezes a associação de fogo e fumaça; o sinal empírico, assim, é fruto da indução por
enumeração. Por outro lado, o “sinal indicativo” é resultado do que chamamos anteriormente
(seção III.3) de abdução: o suor é um sinal indicativo de que existem poros na pele, poros
estes que nunca são observados. Assim, “algo escondido, ou uma verdade oculta, pode ser
conhecida por um sinal” (SP, p. 333).
79
O Livro II do Syntagma philosophicum (Compêndio filosófico) se encontra nas pp. 281-365 de: GASSENDI, P.
(1972), The selected works of Pierre Gassendi, org. e trad. por C.B. Brush, Johnson Reprint Co., Nova Iorque.
Para um relato geral sobre Gassendi, ver: WESTFALL (1971), op. cit. (nota 65), pp. 30-42; sua física é examinada
por DIJKSTERHUIS (1986), op. cit. (nota 75), pp. 425-31.
79
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Capítulo XVI
Filosofia Mecânica
1. Origens da Filosofia Mecânica
Os trabalhos de Copérnico e Galileu abriram o caminho para o ressurgimento da
antiga tradição “materialista”, representada pelos atomistas, resultando no que viria a ser
chamado de filosofia mecânica (termo usado por Boyle), em que os princípios explicativos
envolviam apenas matéria e movimento, com causas eficientes atuando através de colisões (e
sem causas finais). Curiosamente, esta visão de mundo surgiu no seio do cristianismo, como
uma reação contra o naturalismo animista, a partir do padre Marin Mersenne (1623)80. No
naturalismo renascentista (seção XIII.2), matéria e espírito estavam unidos, e eram regidos
por princípios ativos de simpatia e antipatia, por estados anímicos, espontaneidade intrínseca
e propósito. Para Mersenne, a ameaça das doutrinas naturalistas estava na concepção de que a
matéria seria “ativa”, o que retiraria de Deus e dos próprios seres humanos a responsabilidade
pelas questões humanas. Se não houvesse atividade alguma na matéria, como queria
Mersenne, Deus teria que ser invocado para explicar essa atividade.
Na filosofia mecânica, portanto, matéria e espírito estavam separados. A matéria seria
regida apenas por causas eficientes externas, provenientes de choques, e seria “inerte”, sem
atividade ou potência internas, o que seria expresso no “princípio de inércia” da mecânica
clássica. Acabava-se com o “mistério do mundo” do naturalismo animista, e salientava-se a
transparência do mundo à razão. Deus teria criado o Universo de uma só vez, pondo a matéria
em movimento de uma vez por todas. Este movimento se conservaria, seria indestrutível. O
mundo material mover-se-ia apenas em consequência dos choques entre os corpos, como o
mecanismo de um relógio, seguindo a necessidade das leis da física.
Na física, a concepção mecanicista tornou-se hegemônica durante uns oitenta anos a
partir de 1644, sendo compartilhada por cientistas (Descartes, Huygens, Hooke, Boyle, o
jovem Newton) e filósofos (Gassendi, Mersenne, Hobbes). Esta visão de mundo seria
lentamente destruída pela ascensão da física de Newton e da astronomia de Kepler no
continente europeu, a partir de 1720. Com isso, a noção de força gravitacional passou a ser
aceita sem que se postulasse um mecanismo subjacente.
2. A Filosofia Mecânica de Descartes
René Descartes (1596-1650) ganhou fama com seu Discurso do método (1637), que
continha um apêndice, A geometria, no qual mostrou como escrever curvas geométricas em
termos de equações algébricas, e vice-versa (Pierre de Fermat também estava desenvolvendo
isso, de maneira independente). Em 1644 publicou o Princípios de filosofia, que buscou
explicar todos os fenômenos físicos (incluindo químicos, geológicos e astronômicos) em
termos de matéria em movimento.81
A matemática tinha um papel central na concepção cartesiana. A geometria, que lidava
com formas no espaço, podia ser deduzida a partir das ideias claras e distintas do intelecto. A
física tratava de matéria em movimento. Um engenhoso passo de Descartes foi identificar a
80
Ver GAUKROGER, S. (1999), Descartes: uma biografia intelectual, Contraponto, Rio, pp. 191-8.
81
DESCARTES, R. (2005), Princípios de filosofia, trad. Heloísa Burati, Rideel, São Paulo, pp. 189-93 (orig. em
latim: 1644). As Figs. XVI.1 e 2 são retiradas deste livro. Sobre a filosofia mecânica em Descartes, pode-se
também consultar DIJKSTERHUIS, op. cit. (nota 75), pp. 403-18, e WESTFALL (1971), op. cit. (nota 65), pp. 30-42.
80
TCFC I (2014)
Cap. XVI – Filosofia Mecânica
matéria com a extensão, de tal maneira que a física passaria a ser uma geometria de figuras
em movimento (“extensão” significa espaço, volume). Identificando matéria e extensão,
quatro consequências eram imediatamente tiradas: i) Como o espaço é infinito, também o
seria a matéria. ii) Como o espaço é homogêneo, haveria a mesma matéria por toda parte.
iii) Como o espaço é infinitamente divisível, assim também seria a matéria, o que negava o
atomismo. iv) Como não faria sentido pensar num espaço sem extensão, não haveria espaço
sem matéria: o vácuo seria impossível.
Descartes partiu de um princípio a priori (anterior à experiência) para derivar as leis
gerais da física: a perfeição de Deus, e sua consequente invariabilidade. Porém, observamos
mudança no mundo, significando que Deus quis que o mundo estivesse em movimento. Há
portanto variação, mas tal variabilidade deve ser a mais simples possível, a mais “invariável”
possível. Isso equivaleria a um ato contínuo de conservação da quantidade de movimento
(quantitas motus) total do Universo. Tal quantidade, segundo Descartes, seria medida pelo
produto da quantidade de matéria (massa) do corpo pela velocidade do mesmo corpo: m·v. O
princípio de conservação de quantidade de movimento diz então que a soma da quantidade de
movimento (m·v) de todos os corpos do Universo é sempre a mesma. É um princípio que
ainda se aceita hoje em dia, e quem o formulou pela primeira vez foi Descartes e, segundo ele,
a partir da ideia clara e distinta de Deus. Na verdade, o princípio hoje aceito tem uma
diferença importante, que é que a velocidade precisa ser tomada como um “vetor” (com
direção), e não simplesmente como um “escalar” (um número simples, sem direção).
Com isso, passa a enunciar três leis da natureza. A primeira é uma lei de inércia geral:
cada coisa permanece no estado em que está, enquanto não encontra outras causas exteriores.
Assim, um objeto tem a tendência natural de manter sua forma, por exemplo. A segunda lei é
a da inércia linear: todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta,
com a mesma velocidade. Essa ideia surgiu com Galileu, mas para o cientista italiano o
movimento inercial acabava sendo um movimento circular em torno da Terra. Para Descartes,
em contrapartida, o movimento inercial (livre de causas) é sempre linear. Assim, um corpo
que gira em uma corda (uma funda, Fig. XVI.1), se for liberado durante o movimento,
escapará em linha reta. E essa tendência é permanente, conforme podemos sentir pela força
com a qual a pedra girante puxa, tensiona, a corda. A terceira lei envolve um conjunto de sete
regras para descrever o choque entre os corpos, mas os filósofos naturais da época mostrariam
que essas leis estavam erradas, levando Huygens, Wallis e Wren a formularem
independentemente as leis corretas, em torno da década de 1660.
A cosmologia de Descartes baseava-se na noção de que cada estrela tinha em torno de
si um grande vórtice, que giraria da maneira como faz o nosso sistema solar (Fig. XVI.2). Ou
seja, o Sol é uma dentre as várias estrelas, e os planetas orbitam à sua volta porque são
carregados por uma espécie de redemoinho de matéria. Descartes fez observações de
redemoinhos em tonéis de vinho, e pode-se observar que objetos flutuantes giram em torno de
si mesmos no mesmo sentido que a rotação do líquido: ora, é exatamente isso que acontece
com os planetas do Sistema Solar!
Haveria três tipos de matéria. O 1o elemento, chamado também de “matéria sutil”, seria
constituído de lascas minúsculas que teriam se separado do choque entre a matéria dos outros
tipos. Elas teriam um movimento muito rápido, seriam luminosas e formariam a matéria do Sol e
das outras estrelas. Teriam migrado para o centro do vórtice por causa da tendência da matéria
mais grossa de se afastar do centro. O 2o elemento seria constituído por partículas arredondadas
que preencheriam os céus. Seria a matéria transparente que carregaria os planetas em órbita
circular. O 3o elemento seria a matéria mais grossa que constitui a Terra, os planetas e os cometas.
Ela seria opaca, apesar de o ar ser tão fino que aparece transparente. A “matéria celeste”, que a
tudo permeia, seria constituída principalmente do 2o elemento, mas também conteria a matéria
sutil e fragmentos do 3o elemento, incluindo ar (Princípios de filosofia, IV, § 25).
81
TCFC I (2014)
Cap. XVI – Filosofia Mecânica
O 3o tipo de matéria, que nos cerca, é cheio de interstícios, como uma esponja, e essas
fendas estão sempre preenchidas pela matéria celeste, já que o vácuo é impossível. Da mesma
maneira que uma esponja aumenta de tamanho quando ela é embebida em água, a matéria
terciária expande quando é aquecida e preenchida pela matéria celeste.
A quantidade de matéria (o que viria a ser chamada “massa”) é dada pelo volume
ocupado pela matéria terciária. Sendo assim, por que dois objetos de igual volume (digamos
1 litro), um de chumbo e outro de cera, têm pesos diferentes? A explicação de Descartes é que
o chumbo tem poucos interstícios, ao passo que a cera tem muitos. Assim, o volume
efetivamente ocupado pela matéria celeste é bem maior na cera do que no chumbo.
Figura
XVI.2.
Vórtices
associados
a
diferentes
estrelas. O Sol (S) está
cercado pelas trajetórias
circulares de seus planetas.
Vê-se também a trajetória de
um cometa por entre as
células de cada vórtice.
Figura XVI.1. Pedra em movimento
circular que é solta de uma funda
segue a trajetória retilínea ACG.
3. A Explicação Mecânica da Gravidade
Por que sentimos que o chumbo é mais pesado do que a cera? Qual a origem da
gravidade? Duas explicações tradicionais eram: (i) que um corpo grave busca seu lugar
natural no centro do cosmos (Aristóteles); e (ii) que um corpo sempre busca se unir ao todo
maior, da mesma forma que o filho é atraído pela mãe (naturalismo renascentista). Tais
explicações teleológicas não tinham lugar na filosofia mecânica.
Para explicar a gravidade, Descartes considerava que a Terra gira em torno de seu eixo
movido pelo vórtice de matéria celeste. Na superfície da Terra, tal matéria se move mais
rapidamente do que os corpos grossos, como se fosse um vento. Sua tendência para sair para
fora (em movimento “centrífugo”, assim como a funda mencionada acima) seria maior do que
os corpos de matéria terciária, mais lentos. Essa saída da matéria celeste (que se daria
inclusive por entre os interstícios dos corpos mais grossos) tende a criar um vácuo em baixo
da matéria terciária, de forma que esta tem uma tendência a preencher este (quase) vácuo,
descendo verticalmente (a mesma explicação era também dada em termos de diferenças de
pressão da matéria celeste). Assim, os corpos caem, devido à rotação da matéria celeste em
torno da Terra, para preencher o espaço deixado por essa matéria celeste. A explicação para a
órbita da Lua em torno da Terra é a mesma: matéria celeste se afasta da Terra, devido ao
movimento do vórtice em torno de nosso planeta, e a Lua é obrigada a preencher o vácuo que
se formaria, desviando assim de seu trajeto retilíneo natural.
82
TCFC I (2014)
Cap. XVI – Filosofia Mecânica
Mas por que um corpo mais pesado que cai em nossa mão gera uma sensação mais
intensa de força? Ora, os corpos que caem da mesma altura têm, a cada instante, praticamente
a mesma velocidade, como demonstrara Galileu (desprezando-se, é claro, o efeito retardador
do ar). Pelas leis do choque, um corpo com mais matéria terciária (como o litro de chumbo)
transmite mais quantidade de movimento (velocidade) para a nossa mão do que o corpo com
menos matéria terciária (como o litro de cera). Assim, o chumbo que cai em nossa mão é mais
difícil de segurar.
E se os dois corpos estiverem parados em nossa mão? Neste caso, por que o litro de
chumbo é mais difícil de segurar do que o de cera? Aí eu não sei, pergunte ao René!
Com aperfeiçoamentos introduzidos pelo holandês Christiaan Huygens (1629-95), a
teoria mecânica dos vórtices planetários explicava bem o fato de os planetas se moverem no
mesmo plano em torno do Sol, em movimento aparentemente circular, e de suas rotações e
revoluções se darem no mesmo sentido. Nas palavras de Huygens (1686): “Os planetas nadam
em matéria. Pois, se não o fizessem, o que impediria os planetas de se afastarem, o que os
moveria? Kepler quer, erroneamente, que seja o Sol.”
A teoria da gravitação de Newton (1687) foi a primeira a explicar as leis de Kepler, e a
evidência experimental a favor de órbitas elípticas levou tanto Huygens quanto Leibniz a tentar
formular uma explicação mecânica para elas, em 1690 (até Newton tentou fazer isso, como
aparece na Questão 21 de seu livro Opticks). O primeiro efeito da obra de Newton foi então,
paradoxalmente, o fortalecimento da teoria mecânica dos vórtices planetários. Mas a partir de
1720, a nova geração de físicos no Continente Europeu se convenceu da superioridade do
programa newtoniano.82
4. A Ciência Mecânica
A ciência mecânica tinha como únicos princípios explicativos a matéria e o
movimento, e concebia que a única influência possível entre os corpos era o contato direto.
O ponto culminante da filosofia mecânica na física foi o trabalho do Huygens, que forneceu
mecanismos detalhados para a ação da gravidade e para propagação da luz (que concebia
como um impulso que se propaga no éter).
A filosofia mecânica teve grande influência em várias áreas da ciência, e os sucessos
dessas áreas fortaleceram, por sua vez, a filosofia mecânica.
O primeiro exemplo é a área da pneumática, ou seja, a investigação dos fenômenos
envolvidos com bombas d’água e pressão atmosférica. Em 1643, Evangelista Torricelli (160847) havia construído um tubo de mercúrio que contrabalançava o peso da atmosfera (o que
posteriormente se chamaria “barômetro”). Este instrumento levantava a questão de se, sobre a
coluna de mercúrio, havia vácuo (Fig. XVI.3), algo negado pela tradição aristotélica e
também por Descartes. Quem investigou essa questão de maneira experimental, a partir de
1646, foi Blaise Pascal (1623-62), que concluiu que, apesar da natureza ter horror ao vácuo,
este podia ser produzido. Comprovou também a ideia de que a atmosfera exerce uma pressão,
que é menor no topo das montanhas. Pascal selou assim a explicação mecânica para o
comportamento do barômetro.83
82
BAIGREE, B.S. (1988), “The vortex theory of motion, 1687-1713: empirical difficulties and guiding
assumptions”, em Donovan, A.; Laudan, L. & Laudan, R. (orgs.), Scrutinizing science, (Synthese Library 193).
Kluwer, Dordrecht, pp. 85-102.
83
Com relação a esta e a próxima seção, ver: WESTFALL (1971), op. cit. (nota 65), pp. 43-50, 120-59, de onde
retirou-se a Fig. XVI.3, e especialmente DIJKSTERHUIS (1986), op. cit. (nota 75), pp. 444-91.
83
TCFC I (2014)
Cap. XVI – Filosofia Mecânica
Na década de 1650, o holandês Otto von Guericke inventou a bomba de ar, o que
levou Robert Boyle (1627-91) a sugerir que o ar seria um fluido elástico que se expande
quando as restrições externas são removidas. Seria esta elasticidade do ar que explicaria a
pressão do ar. Ele imaginava cada partícula de ar como uma molinha que se comprimia
quando uma pressão externa era exercida.
Figura XVI.3. Experimento de Pascal, mostrando que
a altura da coluna de mercúrio é constante. Acima do
mercúrio, dentro dos recipientes invertidos, haveria
vácuo.
Outro grande sucesso da filosofia mecânica foi o trabalho do médico inglês William
Harvey (1578-1657), que trabalhando em Pádua demonstrou em 1628 que o sangue circula no
corpo humano, sendo bombeado pelo coração.
84
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