Artigos - Claretiano

Propaganda
Artigos
DIMENSÃO CARISMÁTICA DA
IGREJA E IDENTIDADE DA VIDA
RELIGIOSA
florêncio Garcia Castro, CMf *
RESUMO: O artigo traz as conclusões mais significativas do estudo feito para a tese de Doutorado
apresentado no Instituto Teológico da Vida Consagrada – Claretianum de Roma – com o título
“Dimensão carismática da Igreja e identidade da Vida Religiosa” salientando o núcleo temático;
e o subtítulo, “Ensinamento do Concílio Vaticano II e a sua recepção na reflexão teológica pósconciliar” enquadra historicamente o assunto de nossa análise e investigação. Portanto, a finalidade
desta exposição é a de apresentar o que foi recolhido do ensinamento do Concílio Vaticano II sobre
os carismas na Igreja e a sua relação com a Vida Religiosa, de um lado, e de outro, apresentar
sistematicamente como foi acolhida esta doutrina na reflexão teológica posterior ao Concílio.
PALAVRAS CHAVE: Carimsa. Reflexão teológica. Dimensão institucional. Concilio. Vida religiosa.
Ecleseologia.
ABSTRACT: The article brings the conclusions most significant of the made study for the thesis of
Doctoral presented in the Theological Institute of the Life Consecrated - Claretianum of Rome - with
the heading “ Charismatic dimension of the Church and identity of the Religious Life”; pointing out
the thematic nucleus; e the sub-heading, “Teaching of Vatican Conciliation II and its reception in
the theological reflection after-conciliation” it historically fits the subject of our analysis and inquiry.
Therefore, the purpose of this exposition is to present what it was collected of the teaching of Vatican
Conciliate II on charisma in the Church and its relation with the Religious Life, from all points of view, to
present systematically as Conciliate was received this doctrine in the theological subsequent reflection.
KEY WORDS: Charisma. Theological reflection. Institutional dimension. I conciliate. Religious life.
Ecclesiology.
* Doutor em teologia, Superior do Instituto Teológico da Vida Consagrada “Claretianum”, Roma. falecido em
2005, aos 46 anos de idade, enquanto se preparava para assumir um novo encargo nas filipinas.
9
1. ORIGeM DeSTe TRAbAlhO
Por que fazer esta pesquisa? É a primeira pergunta que nos fazemos e aqui
explicamos a origem e causas do presente trabalho.
Gostaria de começar por uma impressão pessoal. Olhando a história da Igreja
e da Vida Religiosa, percebi algo que sempre me surpreendeu, deixando-me uma
certa perplexidade: tem-se a impressão de estar diante não de uma única história,
mas diante de duas histórias paralelas. A história da Igreja ao redor da hierarquia
e, quase à margem, a história da Vida Religiosa. Não aparece evidenciada nesta
história do passado a unidade e a edifi
da Igreja como fruto da colaboração
de todos os seus membros. Este fato tem repercussões concretas, uma delas é em
nível teológico e eclesiológico. Sirva como exemplo o quanto seja difícil encontrar
nos ensaios de eclesiologia um capítulo dedicado à Vida Religiosa.
Mesmo no interior da Vida Religiosa a história nos mostrou um caminho de
divisões entre as mesmas famílias religiosas, como alguma coisa que nos parece de
alguma forma “contra natura”.
10
Partindo desta observação, quando nos detemos nos trabalhos de pesquisa
sobre a Vida Religiosa, constatamos que a grande parte destes estudos no período
pós-conciliar foram marcados pelo retorno às origens das famílias religiosas,
registrando-se grande desenvolvimento e aprofundamento no conhecimento do
carisma dos fundadores e do próprio Instituto para realizar a adequada renovação
que o Vaticano II pedia à Vida Religiosa no documento conciliar “Perfectae Caritatis”.
Este fato nos levou a adquirir mais conhecimentos e maior clareza sobre o
carisma do fundador e sobre o carisma de cada Instituto e a sua missão na Igreja.
Mas outros aspectos foram muito menos freqüentados. Um destes aspectos foi, a
meu ver, a refl xão sobre a eclesialidade da Vida Religiosa desde uma perspectiva
histórica e, sobretudo, teológica. Correu-se o risco de sublinhar excessivamente o
estudo “ad intra” da Vida Religiosa, certamente necessário e positivo, mas que pode
impedir de ver o horizonte geral ao qual se pertence: a Igreja.
Como veremos, foi o próprio Concílio a favorecer esta necessária visão
eclesial quando dedicou um capítulo próprio aos religiosos na Constituição
Dogmática sobre a Igreja. Um fato sem precedentes. O Concílio recolocou as coisas
no seu lugar. Não é possível entender a Igreja sem apresentar todos os estilos de
vida que a compõem , um dos quais é a Vida Religiosa; nem mesmo é possível
entender a Vida Religiosa propriamente fora do âmbito onde nasceu: a Igreja.
Neste processo é que se situa a nossa refl xão. Nos propomos a um
aprofundamento teológico e eclesiológico da Vida Religiosa. Evidentemente, neste
artigo, não pretendemos esgotar as múltiplas possibilidades que esta perspectiva
nos oferece. Por isto, limitamos o nosso estudo a um aspecto particular, no qual
nos parece encontrar a origem e a identidade da Vida Religiosa: a sua realidade
carismática. O carisma a defi
de um carisma concreto.
e caracteriza porque cada Instituto é a encarnação
Portanto, o porquê deste trabalho encontra-se no desejo de aprofundar
a eclesialidade da Vida Religiosa apontando para o seu coração: a sua natureza
carismática.
2. MeTODOlOGIA
Com a metodologia utilizada respondemos à segunda pergunta: Como
desenvolvemosesteestudo?Onossométododetrabalhopoderiasercaracterizado
como histórico-indutivo. fizemos uma pesquisa e análise da palavra “carisma” no
processo de elaboração redacional dos diferentes documentos estudados, seja
nos textos apresentados assim como nas modificações e objeções feitas a eles
pelos Padres conciliares.
Num segundo momento, dedicado à reflexão teológica pós-conciliar
sobre os carismas, analisa-se como foi assumido o ensinamento do Concílio e o
seu desenvolvimento posterior em nível eclesiológico e teológico em relação à
Vida Religiosa.
Neste artigo o foco será apenas as questões referentes ao debate conciliar
e algumas consequências teológicas.
3 ATé OnDe leVA O eSPíRITO
A convocação de um Concílio na Igreja é um fato tão extraordinário que
nos faz entender, por si mesmo, como os temas escolhidos para serem tratados
respondem particularmente à situação da Igreja naquele momento histórico.1
Cada documento pressupõe uma realidade social e eclesial à qual quer dar uma
resposta.
Seguramente, as pessoas encarregadas de elaborar a redação do texto
sobre a Igreja, para ser apresentada no início dos trabalhos conciliares, na qual
aparecem pela primeira vez os carismas, não imaginavam a repercussão e a
transcendência que este fato teria na definição e compreensão da Igreja tal qual
nos apresenta a “Lumen Gentium” e a reflexão teológica posterior.
1 O dia 25 de janeiro de 1959 desde a Basílica de S.Paulo fora dos muros o Beato João XXIII fez o anúncio da
convocação do Concílio Vaticano II com estas palavras:“Pronunciamos diante de vós, certamente tremendo
um pouco de comoção, mas ao mesmo tempo com humilde decisão de propósito, o nome e a proposta
da dúplice celebração: de um Sínodo Diocesano para a Urbe, e de um Concílio Ecumênico para a Igreja
Universal”. ( cf. AD, series 1. vol. l. 5).
11
Podemos verificar toda a importância deste processo em duas frases. Uma
pertence ao primeiro esquema da Constituição sobre a Igreja e diz: “É falso dizer
que, as assim chamadas, Igreja hierárquica ou do direito e Igreja carismática ou do
amor, se diferenciem realmente.”2 A outra é de João Paulo II em sua mensagem ao
Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais celebrado no ano de 1998: “Outras
vezes tive a oportunidade de sublinhar como na Igreja não exista contraste ou
contraposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática, da qual
os movimentos são uma expressão significativa. Ambas são co-essenciais à
constituição divina da Igreja fundada por Jesus”.3
Entre uma frase e a outra existe um arco de tempo de quase 40 anos que
marcaram um caminho, longo e cansativo, para definir a relação entre a dimensão
institucional e a dimensão carismática da Igreja.
Ambas as expressões nos revelam que o tema dos carismas tinha uma
relação muito estreita com a eclesiologia e que havia uma base problemática a
ser superada: a Igreja hierárquica e a Igreja carismática vistas como realidades
contrapostas.
12
O documento conciliar que marcou o Concílio foi a Constituição Dogmática
“Lumen Gentium”. Na fase preparatória, através de dois esboços, houve uma
primeira redação do texto. Ela é de menor relevância porque o esquema foi
rejeitado.4
As causas que levaram a tal ação foram diversas. Uma delas podemos
dizer de caráter ambiental. Na aula conciliar, antes de analisar o esquema sobre
a Igreja foi debatido o esquema sobre “fontes da Revelação”. foi rejeitado. Em
tais circunstâncias podia se prever que também o esquema sobre a Igreja iria de
encontro ao mesmo fim.
Mas as causas diretas e determinantes foram as objeções dos Padres
conciliares, os quais depois de louvar todo o trabalho realizado apresentaram as
suas críticas. Para uma maioria o texto era abstrato e muito esquemático com falta
de coesão e síntese. Podemos recordar que DE SMEDT qualifica o documento de
“triunfalismo”, “clericalismo”e“juridicismo”.5 hUYGhE, diz que o esquema proposto
deve ser profundamente modificado e apresentar uma Igreja embebida pelo
espírito evangélico, isto é, por um espírito católico, missionário de humildade e
2
3
4
5
AD, series 11, vol. 11, pars 111, 988. “falso Ecclesia hierarchica seu iuris ab Ecclesia societas charismatica vel
amoris, quas vocant, re diferre dicuntur”.
JUAN PABLO II, Messaggio a! Congreso Afondiale dei Movimenti Ecclesiali: PONTIfICIUM CONSILIUM PRO
LAICIS ( ed.). Città del Vaticano 1999, 18.
No fim do primeiro período conciliar se falou sobre o esquema da Igreja: 1-7 de dezembro em seis
Congregações Gerais ( XXXI-XXXVI). falaram 77 Padres e deixaram por escrito as suas notas outros 85.
Mencionaram os carismas 16 deles ( 5 oralmente e 11 nos escritos).
AS. 1 (IV), 142-144.
serviço.6 CARLI o qualifica de militarista.7 idéia que repete também o Patriarca
antioqueno Maxirno IV SAIGh8.
Como conseqüência, foi elaborado um novo texto ( terceira redação)
para ser estudado em sucessivas sessões conciliares (1963-1964). Este itinerário
compreende o desenvolvimento de sucessivas redações até a sexta e definitiva.
O fato que a redação apresentada ao Concílio fosse rejeitada marca um
dos momentos mais importantes para a elaboração da Constituição “Lumen
Gentium”, porque mostra claramente a existência de duas correntes diferentes
no Concílio. A redação que chega ao primeiro período conciliar herdava e fazia
própria uma visão piramidal da Igreja, o ponto de referência era a hierarquia e
partindo dela se elaborava o discurso eclesiológico. Ao contrário, o novo texto
apresentado no segundo período conciliar concebia a Igreja como mistério de
salvação e povo de Deus, composto pelas diversas vocações e estados de vida
existentes em seu conjunto.
A prova evidente de tudo isto é o conteúdo e divisão dos capítulos do
novo esquema:9
Introdução
Capítulo I: Sobre o mistério da Igreja (De Ecclesiae mysterio)
Capítulo II: Sobre a constituição hierárquica da Igreja e de modo especial:
sobre o episcopado (De constitutione hierarchica Ecclesiae et in specie: de
episcopadu).
Capítulo III: Sobre o povo de Deus e de modo especial sobre os leigos (De
populo Dei et speciatem in de laicis)
Capítulo IV: Sobre a vocação à santidade na Igreja (De vocatione ad
sanctitatem in Ecclesia)
É neste momento chave quando se realiza o grande debate sobre os
carismas. Os grandes representantes das duas posições foram o Cardeal Ruffini e
o Cardeal Suenens. A maior parte dos Padres que participam da discussão fazem
referência a estas duas intervenções, manifestando conformidade ou desacordo.
6
7
8
9
Ibid. 196: “Optaremus etenim ut doctrina Ecclesiae quae in hoc Concilio determinda est. ipsam Ecclesiam
exhiberet quase imbutam spiritu evangélico, scilicet: spiritus apertus er reapse catholicus, spiritus
missionarius; spiritus humilis deditionis et servitii”.
Ibid. 160: “...quia id sapit militarismum”.
Ibid. 295:“La comparaison de l’Eglise avec `une armée serrée en bataille’...n’est pas ce qu’il ya de plus heureux...”
AS, II (I), 215-281.
13
O posicionamento do Cardeal Ruffïni10 é contrário ao reconhecimento
da existência de carismas na Igreja atual, fazendo exceção de casos raríssimos
e rejeitando que se encontrem nos leigos. Podemos resumir o seu pensamento
assim:
14
a.
Os carismas ocupam muito espaço no texto do esquema.
b.
Os carismas, abundantes no início da Igreja, diminuíram com o passar
do tempo até o seu quase desaparecimento.
c.
Atualmente os carismas são raríssimos e excepcionais.
d.
Não se pode confiar nos leigos carismáticos para o apostolado e o
crescimento da Igreja.
e.
Os carismas na Igreja primitiva eram ocasião de freqüentes desordens
nas comunidades.
O Cardeal Suenens11 sublinhou praticamente todo o contrário. Podemos
sintetizar a sua intervenção nestes termos:
a.
fala-se pouco dos carismas no texto, devem ser tratados mais
amplamente porque são muito importantes na vida da Igreja.
b.
O tempo da Igreja é a era do Espírito Santo. O Espírito Santo é recebido
por todos os cristãos, pastores e fiéis, pelo batismo. O Espírito se faz
presente na Igreja por meio de seus dons e carismas.
c.
Os carismas estiveram presentes ao longo de toda a história da Igreja,
das origens até os nossos dias.
d.
Na Igreja primitiva existiam não somente carismas extraordinários,
mas também ordinários (discernimento, governo,...)
e.
Na Igreja são necessários os pastores e os carismas porque a Igreja
não é uma estrutura administrativa, mas uma realidade viva. Ambos
devem concorrer para construir a Igreja com o diálogo aberto e
sincero. Uma Igreja sem um destes elementos cairia na desordem ou
na esterilidade.
f.
Pede uma maior presença dos leigos no Concílio e de modo especial
das mulheres e dos religiosos das Congregações laicais.
O debate foi mais favorável às teses do Cardeal Suenens, mas o fruto mais
importante dele foi a aceitação da nova eclesiologia que devia ser expressa na
redação do texto definitivo.
10 AS, II (II), 627-632.
11 AS, II (III), 175-178.
O forte debate sobre os carismas deixou manifestada uma tensão que
estava presente desde a primeira redação: a relação entre a Igreja hierárquica e a
Igreja carismática.
O texto definitivo mantém ainda como base este tema. Explica-se assim
que dos 6 textos (4; 7; 12; 25; 30; 50) nos quais se fala dos carismas, em três deles
(7; 12,30) se repita desde diferentes perspectivas, que os carismas devem ser
estudados e aprovados pela hierarquia.
Do conjunto de textos sobre os carismas presentes na “Lumen Gentium”,
podemos traçar as coordenadas para uma nova perspectiva teológica:
1. Contexto eclesiológico
Desde o primeiro momento, os carismas foram tratados no âmbito da
reflexão sobre a Igreja. Segundo a concepção eclesiológica, assim eram tratados
os carismas. Como conseqüência, os carismas são entendidos como elemento
importante da nova eclesiologia conciliar que define a Igreja como mistério e
povo de Deus no qual cada um tem a própria vocação com a qual contribui para
a edificação comum.
A doutrina conciliar define os carismas neste contexto eclesiológico como
graças especiais doadas pelo Espírito a todos os batizados para o bem da Igreja.
Estes carismas podem ser excelsos ou simples e corresponde à hierarquia o seu
discernimento e integração na vida da comunidade eclesial.
As linhas de força que emergem desta compreensão são:
a. Definição terminológica.
O texto conciliar não usa a palavra “carisma” para exprimir num sentido
geral as graças que o Espírito doa à sua Igreja, mas este significado se exprime com
a palavra “dons”. Por sua vez, estes dons podem ser hierárquicos e carismáticos.
b. Os carismas na Igreja como mistério.
A Igreja é assistida pelo Espírito Santo mediante os seus dons. Eles
têm a missão de governá-la, os dons hierárquicos; e de enriquecê-la, os dons
carismáticos. Portanto, os carismas estão presentes na Igreja, mas a sua missão
principal, exceto se estão associados aos dons hierárquicos, não é o governo dela
(LG 4; 7).
15
c. Os carismas e o povo de Deus.
O Espírito distribui os seus carismas a todos os fiéis para a edificação da
Igreja. Os leigos os recebem para contribuir à sua missão salvífica mediante o
apostolado. Estes carismas estão amplamente difundidos, mas não devem ser
desejados temerariamente e sempre devem estar submetidos ao discernimento
e integrados na vida e atividade da Igreja para a hierarquia (LG 12, 30).
d. Os carismas e a Hierarquia.
Não se fala explicitamente dos carismas em referência à hierarquia, salvo
no caso do carisma da infalibilidade (LG 25), irias de dons. Aparece, sim, delineada
a sua missão em relação a eles, como vimos antes.
16
Enfim, pode-se dizer que a reflexão teológica pós-conciliar continuou
fundamentalmente esta orientação para estabelecer a relação entre a dimensão
institucional e carismática da Igreja, aprofundando e trazendo novos aspectos
que ajudem a superar esta visão dualista, porque, de alguma forma, ela ainda
persiste na doutrina conciliar.
fruto deste perseverante empenho podem ser consideradas as palavras
de João Paulo II que assume a co-essencialidade da dimensão institucional e
carismática na construção da Igreja.
2. A Vida Religiosa
Em nossa pesquisa pretendíamos aprofundar o estudo da identidade da
Vida Religiosa em sua relação com a dimensão carismática da Igreja.
Nós nos rendemos conta que uma diversa eclesiologia configura uma
nova situação para a Vida Religiosa no contexto eclesial. Na eclesiologia anterior
ao Concílio, que considerava a Igreja como sociedade perfeita, a Vida Religiosa
era vista com uma orientação jurídica e ascética sem nenhuma referência à sua
natureza carismática. De fato, na primeira redação aparece com um capítulo
próprio intitulado “De statibus adquirendae perfectionis”.
Com a nova eclesiologia do Vaticano II não foi um empenho fácil designar
o lugar e a definição que correspondia à Vida Religiosa. Ao contrário, foi motivo de
numerosas controvérsias e dificuldades. Todo este trabalho teve como resultado a
redação de um capítulo próprio na “Lumes Gentium”, o que a princípio não estava
previsto no novo projeto da Constituição.
falava-se da Vida Religiosa no capítulo que tratava do chamado universal
à santidade, fazendo desaparecer o capítulo a ela dedicado no texto precedente. 12
Além disto, uma das coisas que mais chama a atenção no capítulo sobre os
religiosos na “Lumen Gentium”, é que a Vida Religiosa nunca é descrita com a
palavra “carisma”e por outro lado, não há quase nenhuma referência bíblica.
Quais os motivos destas lacunas? De um lado, as pessoas que propuseram
o texto base da nova eclesiologia, falavam da Vicia Religiosa no contexto amplo
do chamado de todos os cristãos à santidade. A Vida Religiosa é somente um
caminho para atingi-la dentro da Igreja. Desde esta perspectiva, procuravam
superar a concepção da Vida Religiosa com uma estado de vida “mais perfeito”,
mas se perdia a sua própria identidade carismática na Igreja.
A oposição de numerosos padres conciliares a esta orientação reducionista
fez que os religiosos tivessem um capítulo próprio na “Lumes Gentium”,13 mas
em grande parte permaneceu o texto já existente como parte final do capítulo
sobre o chamado universal à santidade. Agora passava a ser o capítulo IV sobre
os religiosos, porém nele predominava, bastante, uma visão ascética da Vida
Religiosa.
12 U. BETTI, Cronistoria della Costituzione, in G. BARAUNA ( ed.), La Chiesa dei Vaticano II, firenze 1965, 137.
Betti em seu estudo diz que para redigir o novo texto a Comissão Doutrinal nomeou uma sub-comissão
“De Ecclesia” que trabalhou com um esquema de origem belga dividido em quatro capítulos: O mistério da
Igreja, A hierarquia e em particular sobre o episcopado, os leigos e os estados de perfeição. O esquema foi
aprovado pela comissão Doutrinal; somente o capitulo 4 sobre os estados de perfeição não foi aprovado e
foi refeito por tinia nova sub-comissão nomeada para esta finalidade. Na nova redação o capítulo mudou
a orientação porque o seu tema específico não eram mais os estados de perfeição mas a vocação universal
à santidade, e este capítulo não foi estudado pela comissão Doutrinal, passando diretamente ao debate
conciliar.
13 Um exemplo destas reações encontramos no Abade Geral do Cisterciense, P.5. KLEINER. Para ele, a questão
a tratar não é sobre a igualdade ou desigualdade da santidade dos religiosos e a de todos os outros cristãos,
mas se o lugar de falar da Vida Religiosa é próprio neste capítulo sobre a vocação à santidade ou em outro
diferente, porque agora aparece como um tratado de teologia ascética, como um apêndice. Por isto, pensa
que o modo de apresentar o tema dos conselhos evangélicos no capítulo é completamente insuficiente e
restritivo; e, de outro lado, deve se tratar do estado religioso de uma maneira mais concreta e adequada.
Para ele é necessário falar dos religiosos não separados da Igreja, mas mostrando as suas profundas raízes
teológicas e eclesiológicas. Neste contexto e no final de sua exposição fala cios carismas em relação com os
fundadores.
Dos grandes tesouros que o nosso Senhor confiou à sua Igreja, cada um dos fundadores recebeu um dom
especial ou carisma que plasmou institucionalmente na sua família religiosa que, desta maneira, o faz_
perdurar. Os diferentes ofícios que a Igreja tem de adorar, evangelizar, etc. encontram em cada Instituto
a sua expressão peculiar, ainda que não exclusiva, assim a face da Igreja resplandece de maneiras diversas
nos diferentes Institutos religiosos. Os Institutos são a mesma Igreja que age neles segundo aquele dom
particular.
Nesta contribuição de KLEINER, encontramos os elementos fundamentais e constitutivos dos carismas e a
sua relação com a Vida Religiosa. A Vida Religiosa nasce na Igreja como um dom que Deus lhe dá através
de algumas pessoas, os fundadores, os quais recebem um carisma especial, que se faz vida da Igreja nas
diferentes famílias religiosas. ( cf. AS, II (IV), 231-233).
Outros Padres que falaram neste sentido foram: SILVA, DÖfNER, DESChÂTELETS, SChWEIGER. etc. Mas o
documento que teve mais força para fazer um capítulo especial para os religiosos foi aquele assinado por
679 Padres, os quais pediam expressamente tal capítulo especial. A decisão final foi tomada pelo próprio
concílio em uma votação para esta finalidade que teve o seguinte resultado: Padres votantes: 2.177; placet:
1.856; non placet: 698; placet iuxta modum: 4; suffragia nulla: 3. (cf. AS. Ill (111), 140.
17
Apesar disto, e aqui entramos em um outro aspecto muito interessante
do Concílio, a realidade carismática da Igreja, não aparece no Concílio somente
mediante o uso da palavra“carisma”mas também com as palavras“dom”e“graça”.
Denominamos esta realidade como “campos semânticos”. Em várias ocasiões,
traduzem ou fazem referência a textos bíblicos, sobretudo de São Paulo, nos
quais se fala expressamente dos carismas nas primeiras comunidades cristãs.
Por isto, especialmente no caso da Vida Religiosa, a sua identidade
carismática é afi mada pelo Concílio, não com a palavra “carisma” mas com
a palavra “dom”. Assim, a Vida Religiosa que se identifi com os conselhos
evangélicos, é considerada um dom do Espírito à sua Igreja. Ele sempre existiu
como testemunha a vida dos homens e das mulheres que abraçaram os
conselhos evangélicos ao longo da história da Igreja.
Este modo de existência cristã é considerado um estado de vida, que
não é intermediário entre a condição dos clérigos e a dos leigos, mas de ambas
as partes Deus chama alguns fi para possuir um dom particular na vida da
Igreja (LG 43).
18
O estado, portanto, constituído pela profi dos conselhos evangélicos,
mesmo não pertencendo à estrutura hierárquica da Igreja, pertence, todavia,
indiscutivelmente à sua vida e à sua santidade (LG 44).
Como conseqüência, a Vida Religiosa é vista na “Lumen Gentium” como
um carisma que implica a própria vida e santidade da Igreja. Assim, a índole
eclesial da Vida Religiosa se explica e se entende desde o elemento carismático
da Igreja, do qual ela é uma expressão concreta.
O Concílio apresenta com a “Lumen Gentium” a doutrina fundamental
sobre a dimensão carismática da Igreja e nela coloca a identidade da Vida
Religiosa. Com o decreto “Perfectae Caritatis” enfrenta este mesmo tema desde
outra perspectiva: a renovação que a Vida Religiosa era chamada a empreender.
O “Perfectae Caritatis” também seguiu um longo processo de formação
tendo necessidade de seis redações para chegar à sua forma defi a. foi,
sobretudo, um trabalho feito pelas comissões, porque o texto apresentado ao
debate do Concílio era já, de fato, a quinta redação.
No “Perfectae Caritatis” nem mesmo aparece o termo “carisma” em
referência à Vida Religiosa, porém, se manifesta a sua realidade carismática
com as palavras “donum” e “gratia”. Apesar disto, é preciso dizer que nas
muitas colaborações feitas ao texto discutido na aula conciliar, alguns Padres
falaram expressamente da necessidade de apresentar com clareza a sua
realidade carismática. Dois destes Padres foram o Cardeal BEA e o Cardeal SILVA
hENRIQUEZ.
O cardeal BEA14 na sua intervenção manifesta que o Decreto centraliza a
renovação da Vida Religiosa sob um aspecto muito jurídico, faltando princípios,
fundamentos e meios que o passam aviar.
O cardeal BEA, pelo contrário, lembra que a Vida Religiosa deve ser vista
no contexto da Igreja. O Decreto“Perfectae Caritatis” faz parte de todo o processo
de renovação que está acontecendo na Igreja. A renovação da Vida Religiosa não
deve centralizar-se somente no aspecto jurídico mas deve também atingir os seus
princípios fundamentais. Um dos quais é a sua realidade carismática. Considera
a Vida Religiosa como um dom carismático do Espírito à igreja tomando como
exemplo a vida da Igreja primitiva (1 Cor 12). Como o Espírito Santo distribuía
os seus carismas na Igreja primitiva, continuou a fazê-lo ao longo da história até
nossos dias. Assim, os fundadores são pessoas que receberam carismas especiais,
que transmitiram a outros, dando origem às diferentes e múltiplas Ordens e
Congregações, por meios das quais os carismas permanecem na Igreja.
O cardeal SILVA hENRIQUEZ15, crê, pelo contrário, que o esquema deve
ser refeito novamente porque é muito genérico e incompleto. Mas a coisa mais
interessante é que ele fala expressamente do carisma do fundador, “carisma
fundatoris”, e o define claramente. O carisma do fundador é uma força dinâmina
para promover a vida da Igreja peregrina segundo determinadas situações
históricas. Em tal carisma devem-se distinguir dois elementos: a) Uma força vital,
a qual é um dom especial do Espírito Santo em favor de toda a comunidade cristã,
que pode e é normalmente chamado “espírito do fundador”, e b) a forma externa
de encarnação deste dinamismo que se concretiza nas estruturas temporais e
segundo os costumes de cada cultura e organização humana.
Estas duas intervenções serão decisivas, sobretudo, para a redação da
introdução feita ao Decreto conciliar. Mas, sobre o trabalho redacional, não se
retomam as expressões concretas usadas por eles, evitando claramente o uso do
termo carisma, tão explícito, sobretudo, na intervenção do Cardeal SILVA.16
O texto definitívo do “Perfectae Caritatis” nos mostra as características
com as quais é considerada a natureza carismática da Vida Religiosa. Ela é um
chamado do Espírito para um estilo de vida, definido pela prática dos conselhos
evangélicos cuja finalidade é seguir Cristo mais de perto e mais livremente (PC 1).
Esta forma de vida existe na Igreja desde o seu início. Atrás do impulso do
Espírito, muitos fundadores e fundadoras deram origem às famílias religiosas, as
quais continuam a estar presentes na Igreja depois de serem por ela aprovadas.
14 AS, 111 (VII), 442-444
15 Ibid- 570-571
16 É interessante notar que, segundo alguns estudiosos, o primeiro a utilizar a expressão“carisma do fundador”
foi J. fAMRÉE. Le carisme de fondateur, Roma, 1966. ( cf. G. ROCCA, 11 carisma del fondatore, in Claretianum (
1994) 49 ). Pelo contrário, aqui se vê claramente que foi o Cardeal SILVA a usar com propriedade por primeiro
este termo “carisma fundatoris”e que depois se tornou uma expressão técnica.
19
Nas primeiras comunidades cristãs o Espírito concedia os seus carismas
para a edifi
da comunidade. Aos Institutos da vida apostólica é reconhecida
uma especial continuidade com a presença de tais dons na Igreja ( PC 8).
finalmente, encontramos outros documentos no Concílio Vaticano II
que também usam o termo “carisma”, que são: DV 8; PO 4, 9; AA 3, 30; AG 4,
23; 28. Em todos encontramos defi
os carismas como dons que o Espírito
Santo confere aos batizados para a missão recebida na construção da Igreja.
O Documento “Ad Gentes” é o único que fala da Vida Religiosa em
ligação com os carismas ( AG 23). Menciona os carismas no contexto da vocação
missionária, que defi como um chamado de Cristo àqueles que Ele quis entre
os seus discípulos, para que o acompanhem e para convidá-los a pregar aos
povos.
20
Este chamado o faz o Espírito Santo que concede os carismas segundo
o seu querer para a utilidade comum de todos. Um destes carismas é a vocação
missionária que suscita no coração dos fi e pela qual dá a vida na Igreja aos
Institutos que tomam como missão própria o dever da evangelização.
A Vida Religiosa, portanto, é suscitada na Igreja como um dom do
Espírito. Se esta Vida Religiosa surge dos carismas, a sua identidade se encontra
nesta dimensão, constitutiva e essencial da Igreja. É parte imprescindível de sua
vida e dinamismo.
Todo este trabalho e impulso dado pelo Concílio promoveu nos Institutos
uma renovação em todos os níveis, entre os quais emerge a refl xão teológica,
que retomando as linhas traçadas pelo Concílio realizou um notável esforço.
Ao seguir este caminho, as diversas Ordens e Congregações se
orientaram segundo a própria consciência carismática, mas podemos recolher
os seus frutos em alguns pontos essenciais:
a. O Carisma da Vida Religiosa
Se o Concílio não usa a palavra “carisma” para defi a Vida Religiosa tem
presente o seu signifi e atualmente esta expressão faz parte da linguagem
comum da teologia.
A refl xão teológica desenvolveu a identidade carismática da Vida
Religiosa partindo de duas perspectivas:
A primeira, compreendeu a Vida Religiosa, no seu conjunto, como
carisma. Por este caminho se reforçou o ensinamento do Concílio que caracteriza
a Vida Religiosa como um dom que nasce na Igreja pelo impulso do Espírito
Santo, e como um elemento essencial de seu componente carismático, já que
não pertence à estrutura hierárquica mas à vida e santidade eclesiais.
A segunda, desenvolve o estudo histórico-fenomenológico da Vida
Religiosa, para passar de uma concepção carismática da mesma para a
consideração, em cada Instituto, da realização concreta de um carisma.
b. O carisma dos fundadores e do Instituto.
O estudo de cada Instituto como realização concreta de um carisma
recebido do Espírito nos leva para quem se encontra nas suas origens: a figura
do fundador. Deste modo, se aviou uma ampla e profunda investigação sobre o
carisma do fundador. Procura-se individuar as notas essenciais que deram origem
ao novo Instituto e, como conseqüência, se analisa todo o processo interno que
se produz desde a experiência originária até a perdurabilidade do carisma na
dinâmica comunitária.
21
c. Elementos essenciais para uma teologia dos carismas da Vida Religiosa
Podemos concluir dizendo que o Concílio considera a Vida Religiosa como
um dom carismático do Espírito à sua Igreja, um chamado a um estilo de vida
segundo os conselhos evangélicos. Esta vivência tem a finalidade de favorecer a
santidade na Igreja.
Desde esta perspectiva, fala-se dos conselhos evangélicos como dons
recebidos na Igreja do Senhor, e, a Vida Religiosa se mostra como um caminho
para atingir a santidade. Não é definida como estado de vida mais perfeito, mas
por meio de uma essencial referência carismática.
Por tudo isto, podemos afirmar que a doutrina conciliar e a posterior
reflexão teológica, nos apresentam a Vida Religiosa como parte constitutiva da
dimensão carismática da Igreja: são carismas feitos vida na comunidade eclesial.
A dimensão carismática da Igreja explica a existência da Vida Religiosa
nela e a Vida Religiosa mostra de modo vivo e real o perfil carismático da Igreja.
Por isto, a eclesialidade da Vida Religiosa é entendida particularmente pelo seu
ser mais radical: a própria identidade carismática.
22
Download