Mesa Arte e Gênero

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PERETTI, Clélia (Org.) Congresso de Teologia da PUCPR, 10, 2011, Curitiba. Anais eletrônicos... Curitiba: Champagnat, 2011.
Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/congressoteologia/2011/
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Outras histórias: as mulheres re-escrevem a tradição
Other histories: women rewrite tradition
Regina Przybycien1
Resumo
Este trabalho apresenta algumas considerações sobre a ausência das mulheres como sujeitos
da história e da literatura e sobre a tendência de escritoras, em tempos recentes, de reescrever
narrativas consagradas sob novos ângulos que refletem o ponto de vista da mulher. Duas
poetas eslavas, Wisława Szymborska (Nobel 1996) e Anna Akhmatova ilustram essa
tendência em poemas que recontam a história bíblica da mulher de Lot (Gen19,26).
Palavras-chave: Gênero e literatura. Gênero e a Bíblia. “A mulher de Lot”. Wisława
Szymborska. Anna Akhmatova.
Abstract
This paper presents some thoughts about the absence of women as subjects in history and
literature and the recent tendency of women authors to rewrite traditional narratives under
new lights that reflect the women’s point of view. Two Slavic poets, Wisława Szymborska
(Nobel 1996) and Anna Akhmatova illustrate this tendency in poems that retell the Biblical
story of Lot’s wife (Gen19,26).
Keywords: Gender and literature. Gender and the Bible. “Lot’s wife”. Wisława Szymborska.
Anna Akhmatova.
Introdução
Começo com um esclarecimento sobre o conceito de gênero que utilizarei, já que nem
sempre o termo é claro para todos. Nos primórdios do movimento feminista nas décadas de
1960 e 1970, utilizava-se a categoria “mulher” para definir o objeto de conhecimento
produzido pelas feministas. Assim, iniciou-se uma história das mulheres, uma literatura das
mulheres, etc.. O termo, entretanto, apresenta problemas, dentre os quais talvez o mais
evidente seja o fato de englobar todas as mulheres em uma única categoria, definidas
essencialmente pela biologia (um ser do sexo feminino) sem respeitar as diferenças existentes
entre elas. A partir dos anos 1980 houve um refluxo do feminismo enquanto movimento
1
Professora aposentada da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atualmente é professora visitante de
Literatura Brasileira na Universidade Jaguielônica de Cracóvia, Polônia.
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político, mas consolidaram-se nas universidades de todo o mundo a produção de
conhecimento e a reflexão teórica sobre as mulheres. O conceito de “gênero” foi então
pensado para evitar a associação com o sexo biológico. Assim, enquanto o sexo masculino ou
feminino se refere à distinção entre machos e fêmeas da espécie humana, o gênero está
relacionado com os papéis que homens e mulheres desempenham nas sociedades e culturas.
De certo modo, quando nascemos já encontramos um “script”, preexistente na nossa cultura,
que define o que é ser homem ou mulher, um roteiro que a sociedade espera que sigamos e
que ela coloca numa infinidade de símbolos, imagens, gestos, performances. Esse “script”
naturalmente não é estanque. Varia no tempo na mesma medida em que mudam as sociedades
humanas. Outra questão importante em relação ao gênero é que ele é relacional. Isso quer
dizer que não se pode definir o gênero feminino sem pensá-lo em relação ao gênero masculino
e vice-versa. Um não tem significado sem o outro.2 Para Jane Flax as relações de gênero “são
divisões e atribuições diferenciadas e (por enquanto) assimétricas de traços e capacidades
humanos” (FLAX, 1992, p. 228).
O lugar das mulheres na História e na Literatura
Posta esta breve explicação, passo a algumas considerações sobre o lugar das mulheres
na história e também na religião e na literatura, para ficar mais próxima ao tema deste
encontro.
Até bem recentemente o gênero não era uma questão a ser pensada na escrita da
história. A historiadora Gerda Lerner (1981) afirma que as mulheres não foram deixadas fora
da história por uma espécie de conspiração masculina ou dos historiadores homens, mas
porque a história sempre foi centrada nas atividades dos homens. A história tradicional
privilegia atividades masculinas, como as guerras, as descobertas e conquistas de territórios.
Ela enaltece os protagonistas desses jogos pelo poder fazendo deles heróis cujos feitos
estudamos nos compêndios escolares. Mas enquanto os homens guerreavam e conquistavam
mundos, eram as mulheres que cuidavam da casa, dos filhos, dos negócios da família, eram
elas que mantinham a estrutura familiar e social. Só que suas atividades não foram registradas
porque não eram consideradas importantes para a história. Quando no século XX se produziu
uma diferença no modo de enfocar a história, constituindo-se como o seu objeto não mais os
grandes feitos e os grandes homens, mas as massas (na teoria marxista) ou grupos e
indivíduos comuns, comumente marginalizados, (na Nova História cultural, na história vista
2
Sobre essa questão ver: FLAX, 1992; LAURETIS, 1994. NICHOLSON, 1994.
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de baixo), ainda assim o gênero não foi considerado uma questão importante. Foram as
feministas que começaram a escrever a história das mulheres a partir de indícios, vestígios
que se pode entrever em documentos, imagens, diários, cartas, nos subtextos dos relatos
históricos e na literatura. A história das mulheres é uma tentativa de preencher lacunas, vazios
deixados por uma historiografia que excluiu as atividades de metade da humanidade.
Se há uma ausência das mulheres na história, o mesmo não se dá na literatura, na qual,
desde o início da escrita, a presença feminina é avassaladora, porém somente como objeto da
literatura escrita pelos homens. Elas constituem o assunto preferido de poetas, romancistas,
ensaístas, que ora as enaltecem como deusas ora as demonizam. Como observou Virginia
Woolf: “se a mulher só existisse na ficção escrita pelos homens, poder-se-ia imaginá-la como
uma pessoa da maior importância: muito versátil; heróica e mesquinha; admirável e sórdida;
infinitamente bela e medonha ao extremo; tão grande quanto o homem e até maior, para
alguns. Mas isso é a mulher na ficção. Na realidade [...] era trancafiada, surrada e atirada pelo
quarto”.3 Ela não tinha poder algum porque legalmente o pai ou o marido tinham poder
absoluto sobre ela. Era moeda de troca nas transações comerciais que constituíam os
casamentos por interesse. Não tinha direito à educação e raramente conseguia avançar para
além das primeiras letras. Não admira que ao longo da história literária, pelo menos até o
século XVIII (com raríssimas exceções), as mulheres não produzissem literatura (WOOLF,
1985, p. 57).
Quando no final do século XVIII a mulher burguesa começou a escrever literatura,
deparou-se com enormes dificuldades. Seu universo era restrito à esfera doméstica. Não tinha
as mesmas oportunidades dos homens de obter instrução. Não havia uma tradição literária
feminina na qual pudesse se inspirar. Além disso, os editores e o público leitor exerciam sobre
as mulheres escritoras uma censura muito maior do que sobre os escritores homens. Certos
temas eram considerados inapropriados para uma mulher. Assim, embora ao longo do século
XIX as mulheres tenham escrito copiosamente, a maior parte desses escritos é constituída de
cartas, diários e romances sentimentais (estes bastante populares, por sinal). Também eram
comuns os manuais de boa conduta, nos quais as escritoras ensinavam às jovens como se
comportar em sociedade. A literatura “séria” ainda era domínio dos homens. Algumas
escritoras talentosas adotaram pseudônimos masculinos para que os editores e leitores, ao ler
sua ficção, não a vissem com preconceito, caso, por exemplo, da romancista inglesa George
Elliot.
3
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.57.
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É só no século XX, portanto, que um número considerável de mulheres passou a
produzir literatura com qualidades estéticas inegáveis. Desde então escritoras de diversas
partes do mundo têm produzido obras que privilegiam um olhar feminino sobre os
acontecimentos, reescrevendo, de certa maneira, a história literária. Personagens literárias
femininas são re-apropriadas e suas histórias contadas sob outro ponto de vista. Uma das
personagens mais famosas da literatura brasileira é sem dúvida a Capitu de Machado de Assis.
Vários romances retomam a história da personagem machadiana de “olhos de cigana
dissimulada”, colocando sob suspeita a narração do marido, o ciumento e amargo Bentinho,
alcunhado de Dom Casmurro. Dentre os romances que reescrevem a história de Capitu,
destaca-se o de Ana Maria Machado, A audácia dessa mulher, no qual a personagem conta a
sua versão (MACHADO, 2011).
Essas novas formas de contar não se restringem ao gênero e certamente não ao gênero
feminino. Grupos marginalizados ao longo da história, como os gays, os negros, os
colonizados escrevem outras histórias daquelas construídas pela tradição. Assim, romances
gays abandonam os enredos centrados unicamente na relação amorosa entre um homem e uma
mulher. Escritores indígenas narram a história da chegada dos europeus não da perspectiva
dos que se encontravam nos navios, mas dos nativos que os olhavam da praia. Escritoras
negras procuram construir imaginativamente a vida das escravas, estupradas na puberdade
pelos seus senhores e utilizadas como objeto de luxúria, se eram belas, ou como mulas de
carga no eito, se eram feias. (MORRISON, 2007).
Também no estudo das religiões a perspectiva de gênero tem sido colocada por
teólogas feministas. Como essa não é minha área de estudo, não tenho competência para
enveredar por ela. Mas, como leiga, gostaria de fazer algumas observações que me parecem
pertinentes aos estudos de gênero. Um fato parece incontestável: as religiões monoteístas
patriarcais são muito duras com as mulheres. Entre os judeus o adultério feminino era punido
com o apedrejamento (punição que ainda vigora em alguns países muçulmanos). A história da
criação (Gen 2-3) narra como a Primeira Mulher foi tentada pela serpente a comer do fruto
proibido. A razão da escolha de Eva pela serpente é tradicionalmente interpretada de dois
modos: 1) ela caiu na armadilha tecida pela serpente devido à fraqueza do sexo feminino, que
o torna uma presa fácil ou 2) caiu por um ato deliberado de desobediência, por causa de sua
natureza rebelde. Seja como for, fraca ou rebelde, ela é culpada dos males da humanidade e é
assim que foi interpretada pelos teólogos e representada na literatura ocidental ao longo dos
séculos. Algumas teólogas feministas realizam outras leituras da queda, mas essas novas
leituras são problemáticas, ou por fazer uma inversão de papéis que não beneficia ninguém,
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(Na cena da tentação, Adão permanece em silêncio enquanto Eva argumenta com a serpente,
o que indicaria a superioridade intelectual de Eva) (TRIBLE 1999, p. 388-390), ou por uma
interpretação radical do texto bíblico, que considera a queda uma bênção e não uma maldição
(uma leitura difícil de sustentar em face do texto).
As mulheres da Bíblia, quando são representadas de forma positiva, o são por causa de
características como a submissão e a obediência. Mas um dos pilares do patriarcado é, sem
dúvida, a mulher como mãe. Ela é boa quando gera filhos homens que darão continuidade à
genealogia de Abraão. A maternidade da Virgem Maria redime a perdição de Eva e abre
caminho para a salvação. Como observou Simone de Beauvoir, em face da tremenda força
dessas construções culturais, a maternidade deixa de ser uma escolha. Torna-se o destino da
mulher (BEAUVOIR, 1980).
São raras as mulheres na Bíblia que têm um papel ativo nos negócios do Estado. Judite
e Ester, a quem são dedicados dois livros da Bíblia, são exemplos de mulheres fortes que
tomam a iniciativa de salvar o povo de Israel. Judite livra os judeus do cerco promovido por
Holofernes, general de Nabucodonosor, embriagando-o e depois decapitando-o. Ester
intercede pelo seu povo junto ao rei Assuero, mesmo correndo o risco de ser morta por
aparecer diante do rei sem ser chamada. Ambas são descritas como extremamente belas e é
por causa de sua beleza que logram o seu intento. Portanto, para solucionar questões políticas,
as mulheres se colocam como objeto do desejo, manipulando os homens com a beleza e a
sedução. A mesma beleza e sedução, quando não servem aos interesses do Estado judeu, são
negativas. Veja-se o caso de Salomé ou de Dalila, mulheres paradigmáticas da capacidade de
sedução para o mal.
A Bíblia tem sido uma das principais fontes de inspiração para a literatura. Ao longo
dos séculos poetas, prosadores, ensaístas apropriaram episódios e personagens bíblicos e os
recriaram nas suas produções. As personagens femininas da Bíblia, juntamente com as deusas
da mitologia greco-romana, inspiraram todas as artes ocidentais. Cada época representou
essas personagens de acordo com os valores culturais então vigentes, mas é fato que até o
século XX os homens eram quase totalmente os únicos agentes dessa representação.
Recentemente tem havido uma grande expansão da produção das mulheres em todas
as artes e também cresce consideravelmente a produção teórica e crítica feminina. Há uma
vertente dos estudos de gênero que postula a existência de uma linguagem feminina,
argumentando que essa linguagem é mais solta, mais lúdica, liberta das amarras da
racionalidade que caracteriza a arte produzida pelos homens. Acho essa teoria difícil de
sustentar. Não creio que haja, na produção artística das mulheres, uma linguagem própria que
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a distinga da produção masculina. Ao equacionar a linguagem feminina ao inconsciente e à
ausência de racionalidade, essa teoria acaba reforçando estereótipos do feminino,
frequentemente visto como irracional, intuitivo, caótico. Além disso, as vanguardas do início
do século XX pretenderam realizar esse rompimento com a racionalidade e a lógica e elas
eram constituídas, em sua maioria, por artistas homens. Portanto, o que caracteriza a arte das
mulheres não é uma linguagem especificamente feminina. É, talvez, um determinado ângulo
de visão que, por determinações históricas e culturais, é o lugar do feminino.
É com esse olhar diferenciado que as mulheres têm produzido literatura, tecendo
outras narrativas àquelas consagradas pela tradição. Para ilustrar esse olhar, escolhi dois
poemas escritos por duas grandes poetisas eslavas sobre uma personagem que na Bíblia tem
um papel insignificante: a mulher de Lot. O capítulo 19 do Gênesis narra a destruição de
Sodoma, punida por causa dos pecados de seus habitantes. Somente Lot, o justo, recebe dos
anjos a ordem de deixar a cidade com a sua família com a recomendação de que não olhassem
para trás. Embora somente um curto versículo da Bíblia seja dedicado à mulher de Lot (Gen
19,26), se lê: “A mulher de Lot, tendo olhado para trás, transformou-se numa coluna de sal.” o
senso comum a transformou no paradigma da insaciável curiosidade feminina. Os dois
poemas que apresento, (em tradução de minha autoria), contestam essa versão.
O primeiro poema é de Wisława Szymborska, poeta polonesa que ganhou o prêmio
Nobel em 1996.
Szymborska nasceu na Polônia em 1923, o que significa que presenciou eventos
dramáticos do século XX como a Segunda Guerra Mundial, o holocausto e a ditadura
comunista. Nenhum escritor da Europa Central e Oriental passou incólume por essas
catástrofes da história. Muitos emigraram para o Ocidente e passaram décadas sem
possibilidade de voltar à terra natal e proibidos de lá publicar. Szymborska permaneceu na
Polônia, o que representou às vezes complicados malabarismos para escapar da censura. Hoje
com 88 anos, Szymborska vive uma vida discreta em Cracóvia, longe das badalações literárias
e procurando se preservar do assédio da mídia, que sempre corteja os ganhadores do prêmio
Nobel.
Szymborska escreve numa linguagem simples, do cotidiano, que qualquer leitor pode
entender. Ela evita o tom trágico ou patético e o lirismo excessivo recorrendo ao humor e à
ironia, que provocam um distanciamento do eu lírico. Esse recurso, juntamente com uma
linguagem econômica, faz com que os temas mais dolorosos sejam tratados de forma contida,
sem lírica e sem retórica. O drama está posto, mas colocado a certa distância, exige do leitor
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sensibilidade para lê-lo nas entrelinhas, nos silêncios da fala, naquilo que a poeta não
explicita.
Sua poesia foi traduzida para dezenas de línguas e muitas personalidades famosas se
declaram admiradores da poetisa. Woody Allen afirmou a seu respeito: “Ela consegue
capturar e iluminar as asperezas e as tristezas da vida e mesmo assim ser positiva. Eu não
consigo.” (ALLEN, 2011).
Embora não se possa chamá-la de feminista, é inegável que vários de seus poemas
apresentam a perspectiva de uma mulher, como é o caso de “A mulher de Lot”, publicado
originalmente no volume Wielka liczba (Um grande número) de 1976. Eis o poema:
A mulher de Lot
Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração  amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Senti em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás por receio de onde pisar.
No meu caminho surgiram serpentes,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus  simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás de solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou foi só quando um vento bateu,
despenteou meu cabelo e levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam na risada, uma vez, outra vez.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
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e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade (SZYMBORSKA, 2011, p. 5657).
No poema de Szymborska é a mulher de Lot quem fala. A poetisa dá voz à
personagem transformada numa estátua de sal para que ela explique as suas razões para ter
olhado para trás. Os motivos da mulher podem ter sido muitos e até banais. Pode ter sido pena
por ter que deixar a tigela de prata, objeto de estimação, que na fuga apressada não pôde
carregar. Pode ter sido animosidade ao marido, que na sua estreita observância dos preceitos
divinos, era um justo, mas que não teria um gesto de amor ou bondade para com ela se por
acaso caísse. Pode ter sido simplesmente cansaço, fraqueza, sonolência, solidão, todas essas
coisas que tornam os seres humanos frágeis e vulneráveis. Ou talvez sentimentos
condenáveis, mas muito comuns: vergonha de fugir às escondidas, ou raiva dos que ficaram
em Sodoma, porque seus pecados causaram a destruição da cidade que ama.
Ao apresentar inúmeras razões para o gesto da mulher, o poema problematiza o
radicalismo, a tendência de apresentar uma única versão, comum tanto nas religiões
patriarcais quanto no materialismo histórico. Considerado de forma mais ampla,
filosoficamente, todo o pensamento ocidental se estrutura em dualismos (bom/mau,
certo/errado, justo/injusto), não permitindo um terceiro termo que forneça uma visão
matizada, mais generosa, mais tolerante: um pensamento que se abra para o par e/e ao invés
de ou/ou. As mulheres receberam um tratamento particularmente severo nas narrativas
patriarcais. Nos dualismos concernentes ao gênero, elas representam a irracionalidade, a
inconstância, a volubilidade, ou pior, encarnam as forças maléficas do universo.
É comum na literatura a visão do poeta como criador, demiurgo, alguém que fala pela
humanidade, a nação ou o povo. Nos poemas escritos por mulheres o eu que fala não
ambiciona representar a humanidade, não se esconde no anonimato transcendental. O eu
lírico (com ilustra bem o poema de Szymborska) é a voz de uma mulher que expõe as
dificuldades de sua condição.
O segundo poema que apresento é de Anna Akhmatova, pertencente a uma geração de
poetas russos que sofreu duramente a repressão política soviética. Seu ex-marido Nikolai
Gumilyov foi executado em 1921 e seu terceiro marido morreu num dos campos de
prisioneiros da Sibéria. Seu filho Lev foi preso várias vezes na onda de perseguições a
intelectuais dissidentes nos diversos expurgos stalinistas.
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Da perspectiva do ideário comunista, a poesia intimista de Akhmatova foi vista como
anacrônica, representante de uma estética burguesa, versando sobre temas femininos
considerados triviais e, portanto, em desacordo com os ideais revolucionários. Já nos anos
vinte ela foi perseguida pelo Estado e impedida de publicar. Em 1946 foi expulsa da União de
Escritores Soviéticos. Com pouco dinheiro para se manter, sobrevivia fazendo traduções e
escrevendo ensaios sobre escritores consagrados. No entanto, não deixou de escrever poemas,
que circulavam secretamente entre os dissidentes. Uma tática no grupo era decorar os poemas
e fazê-los circular oralmente. Grande parte dos poemas de Ossip Mandelstam, contemporâneo
e amigo de Akhmatova, foi confiscado e destruído pela censura stalinista. O que sobreviveu
foi graças à sua mulher Nadezhda que os decorou, transformando-se num livro vivo do
marido, que morreu num dos campos de prisioneiros da Sibéria.
Akhmatova sobreviveu aos expurgos e ao ostracismo e pode ver parte de sua obra
poética publicada antes de morrer, mas somente em 1987 sua obra completa veio a público na
Rússia, inclusive seu longo poema Requiem, no qual ela descreve o terror da era stalinista e o
destino trágico dos intelectuais e artistas russos, forçados a emigrar, mortos nos campos de
prisioneiros – os Gulags  ou levados ao suicídio.
Eis o seu poema, também intitulado “A mulher de Lot”:
Ora a mulher de Lot olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal.
- Gênesis
E o homem justo seguiu o enviado de Deus
alto e brilhante pelas negras montanhas
mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
“Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem bem amado”.
Ela olhou e – paralisada pela dor mortal
seus olhos nada mais puderam ver;
E converteu-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão se enraizaram.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar. (AKHMATOVA, 2009).
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As duas primeiras estrofes do poema de Akhmatova apresentam um contraste entre a
atitude do homem e da mulher: Lot é descrito como “o homem justo” que segue estritamente
o enviado de Deus, enquanto sua mulher é presa de sentimentos de angústia pelas coisas que
deixa para trás. Essas coisas são típicas do universo feminino: o apego ao lar, à memória de
atividades como tecer, fiar, gerar e criar os filhos. Os homens deixam mais facilmente a sua
casa, o seu lugar, porque no seu “script” estão impressos o desejo de aventura, a vontade de
explorar, conquistar, ou então o zelo missionário que faz com que larguem tudo para seguir
uma religião ou uma ideologia. Para as mulheres é mais difícil abandonar o espaço no qual
viveram toda a sua vida e onde estão depositadas todas as suas lembranças.
A terceira estrofe descreve o ato de transformação da mulher em estátua de sal como
um processo fulminante e doloroso. Os versos dramatizam a dor que sente na imobilização da
morte.
Conclusão
O poema de Akhmatova é mais lírico do que o de Szymborska. A dramaticidade é
explícita e intensa, sobretudo na última estrofe na qual há uma intromissão direta do eu lírico,
que coloca duas perguntas retóricas: “Quem há de chorar por essa mulher?/ Não é
insignificante demais para que a lamentem?”, fechando o poema com um sentimento de pena
e empatia pela sorte dessa mulher punida tão severamente por ter lançado um único olhar para
trás.
Ambos os poemas desconstroem a versão do senso comum que transformou a mulher
de Lot no paradigma da curiosidade feminina. As duas poetisas dão uma dimensão humana ao
mito, que é sempre redutor porque pretende ser exemplar. Os poemas dramatizam a
complexidade das motivações para as ações humanas, vistas aqui sob um ângulo
inequivocamente feminino. A estátua de sal rompe o silêncio de séculos e, pela voz das
poetisas, nos conta outra história, mais humana, mais plausível. “Quem há de chorar por essa
mulher?” pergunta o verso de Akhmatova. Quem há de contar as histórias dos silenciados, dos
esquecidos, dos quais a mulher de Lot é uma metáfora? Contar é preciso.
Referências
AKHMATOVA, A., Antologia poética. Tradução de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre:
L&PM, 2009.
81
ALLEN, Woody. Entrevistado no documentário Chwilami życie bywa znośne (O Wisławy
Szymborkiej). Disponível em: www.youtube.com/watch?=II_lz5NrCSM. Acesso em 02 set.
2011. (Minha tradução).
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