Física da Radiação Mestrado Integrado em ENGENHARIA BIOMÉDICA 5o Ano, 1o Semestre 2010/2011 Monografia Final Tecnécio João Marques* *Mestrado Integrado em Engenharia Biomédica no : 58513 email: [email protected] 2 de Junho de 2011 Palavras-chave: Tecnécio, Ciclotrão, Segrè, Perrier, Radioactividade, Radiação γ, Radiação β, Medicina Nuclear Resumo: O Tecnécio, de número atómico 43, foi um elemento que tardou a ser descoberto, muito pelo facto de não ocorrer naturalmente na Natureza. A sua descoberta deveu-se a Emilio Segrè e Carlo Perrier, investigadores italianos de Palermo, aproveitando materiais utilizados por Orlando Lawrence na construção do ciclotrão por ele inventado. No entanto, já muitos antes dele haviam incorrectamente afirmado a descoberta do elemento 43. Mendeleev chegou mesmo a prever a maioria das propriedades deste elemento mesmo antes da sua descoberta. O Tecnécio apresenta actividade radioactiva em todos os seus isótopos, o que significa que nenhuma das suas formas é estável. No entanto, de entre os seus isótopos, existem alguns com tempos de semi-vida de milhões de anos, ou seja, com baixa radioactividade. O Tecnécio tem também vários metaestados, isómeros de certos estados em que o núcleo se encontra excitado, mas que ainda assim apresentam tempos de semi-vida apreciáveis. De entre todos os isótopos do Tecnécio, destacam-se o 99 Tc e o 99m Tc por vários motivos. Em primeiro lugar, pela facilidade na sua obtenção. Depois, pela sua aplicabilidade em vários ramos da indústria. O 99 Tc tem aplicação na indústria química, como catalisador, ou como emissor de radiação β. Por outro lado, o 99m Tc é utilizado como radionuclido em Medicina Nuclear, para exames de imagiologia. Contudo, é sempre necessário ter em conta as questões de segurança quando se utiliza este tipo de materiais, dado que a radioactividade pode ter efeitos nefastos para a Natureza, e para o Homem em particular. 1 Tecnécio 1 1.1 João Marques História da descoberta do Tecnécio A busca pelo elemento 43 O elemento 43 sempre intrigou os investigadores e físicos da segunda metade do século XIX. Já desde as primeiras formas da tabela periódica proposta por Dimitrii Mendeleev que existia um gap entre o Molibdénio (número atómico 42) e o Ruténio (número atómico 44). Mendeleev chegou mesmo a prever a existência de um elemento com o número atómico 43, e que este teria propriedades químicas semelhantes ao Manganês (já que se encontrava debaixo deste na tabela periódica), dando-lhe na época o nome de etamanganês [1]. Esta lacuna motivou os investigadores da época na procura deste elemento. A sua localização na tabela indicava que este elemento seria provavelmente mais fácil de encontrar que outros ainda por descobrir. Houveram várias alturas em que se pensou ter descoberto o elemento 43. Em 1828, foi confundido com irídio impuro em cristais de platina [2], e em 1846 foi confundido com nióbio impuro [3]. Depois, em 1877, Serge Kern afirmou ter descoberto o elemento 43 em cristais de platina, dando-lhe o nome davyum. No entanto, mais tarde apurou-se que este elemento não passava de uma mistura de irídio, ródio e ferro [4]. 1.2 Os passos na descoberta do Tecnécio Muitas outras “falsas” descobertas foram feitas até ao ano de 1937, quando a descoberta do elemento 43 foi confirmada numa experiência realizada na Universidade de Palermo, na Sicília, conduzida por Carlo Perrier e Emilio Segrè. Para tal, contribuíram três enormes avanços na Física Nuclear, em 1932. Primeiro, a descoberta do neutrão, por James Chadwick, com base no trabalho de Frédéric Joliot e Irène Curie, tornando óbvia a constituição do núcleo por Z protões e N neutrões, rodeados por Z electrões [5]. Depois, a descoberta do positrão em raios cósmicos por Carl Anderson, que se revelaria muito importante no desenvolvimento da radiação artificial [6]. Por fim, Harold Urey descobriu o deutério [7], que desempenhou um papel de grande relevo em aceleradores, actuando como partícula bombardeadora em reacções nucleares. Ainda durante 1932, foi desenvolvido em Cambridge, num laboratório chefiado por Rutherford, um circuito multiplicador que permitiu obter voltagens suficientes para acelerar partículas o suficiente para simular a desintegração nuclear [2]. Esta experiência foi depois reproduzida por Orlando Lawrence em Berkeley, California, recorrendo a um acelerador de ressonância magnética, mais tarde (1935) denominado ciclotrão [8]. O princípio do ciclotrão baseia-se na utilização de uma diferença de potencial alterna de alta frequência. Um campo magnético perpendicular faz com que as partículas tenham uma trajectória em espiral (quase circular) por forma a que sintam a diferença de potencial múltiplas vezes. Em 1934, Lawrence conseguiu acelerar deutério a uma energia de 3MeV, e em 1936 conseguiu que este elemento atingisse os 6.2MeV. Para além disto, quando a radiação artificial foi descoberta, Lawrence começou também a bombardear 2 Tecnécio João Marques carbono com deutério, e a observar ele próprio este fenómeno. Seguindo Enrico Fermi (que afirmava que a utilização neutrões em transmutação seria melhor que partículas alfa por estes não serem repelidos pelo núcleo), Lawrence percebeu também que o ciclotrão poderia ser utilizado como fonte de neutrões, através do bombardeamento de berílio com um feixe de deutério. O ciclotrão de Lawrence assumia assim uma nova funcionalidade que se veio a revelar de extrema importância. No entanto, o grande passo para a descoberta do elemento 43 foi dado quando Emilio Segrè, que fazia parte da equipa de Enrico Fermi, conhece Lawrence, no Verão de 1936. Numa visita ao laboratório de Lawrence, Segrè viu potencialidade em materiais radioactivos, que já não tinham qualquer uso para o laboratório, para o desenvolvimento do seu próprio trabalho. Desta forma, Lawrence concordou em enviar para a Universidade de Palermo, na Sicília, por carta, materiais que já não utilizasse para serem utilizados em investigação. Foi numa destas encomendas que foi enviada uma tira de Molibdénio que havia integrado o ciclotrão, que Segré reconheceu imediatamente como podendo conter vestígios do elemento 43. Esta possibilidade foi explorada mostrando que a radioactividade presente não poderia ser atribuída a nenhum radioisótopo de qualquer outro elemento conhecido até então. Isto foi conseguido com a ajuda de Carlo Perrier, do Departamento de Mineralogia [2]. Tendo em conta que seria de esperar reacções, devido ao bombardeamento de neutrões ou a neutrões secundários gerados no ciclotrão, na fita de Molibdénio, a actividade identificada poderia ocorrer devido a 3 fenómenos. Primeiro, devido a isótopos de Molibdénio e Nióbio derivados de reacções com neutrões ou deutério. Segundo, devido a isótopos de Zircónio derivados de reacções com neutrões rápidos. Terceiro, devido a isótopos de elemento 43 derivados de reacções com deutério do tipo (d,n). No entanto, a face da fita de Molibdénio onde incidia o feixe do ciclotrão exibia muito mais radioactividade do que outra face, sugerindo que esta actividade induzida seria devido a uma partícula carregada e não devido a neutrões. Para uma análise mais aprofundada, a fita foi dissolvida numa solução de HNO3 + HCl. A análise química revelou que a actividade induzida era separável da do Zircónio, Nióbio e Molibdénio. No entanto, não foi possível confirmar a existência de elemento 43, já que não existia nenhum isótopo estável deste elemento presente na amostra. A radioactividade identificada apresentava um comportamento semelhante ao rénio, o que era de esperar para o elemento 43. Contudo, a evidente falta de volatilização da actividade do elemento 43 em corrente de ácido clorídrico permitiu distinguir esta actividade da do rénio. Foram ainda identificados tempos de semi-vida de 90, 80 e 50 dias, o que indicava a presença de mais do que um isótopo deste elemento, embora os investigadores tivessem poucas certezas nos últimos dois tempos de semi-vida. Experiências mais recentes, em 1938, identificaram tempos de semi-vida de 90 e 62 dias. Em notação moderna, os resultados desta experiência indicam que o elemento 43 foi descoberto como 97m Tc (tempo de meia vida de 90 dias), que resulta da reacção de tipo (d,n) do 96 Mo, e possivelmente também na forma de 95m Tc (tempo de meia vida estimado actualmente em 60 dias), que resulta da reacção de tipo (d,n) do 94 Mo. Em ambos os casos, a condição metaestável dos isótopos não foi reconhecida [2]. A publicação dos resultados foi feita em Julho de 1937. Com esta experiência foram 3 Tecnécio João Marques conseguidos dois feitos históricos: a identificação do elemento 43, e a obtenção de um elemento de forma artificial. Foi por esta razão que, em 1949, o elemento 43 foi denominado Tecnécio (do grego τ χνητ óς, que significa artificial), por sugestão de Perrier e Segrè [2]. 2 2.1 Características do Tecnécio Propriedades Físicas O Tecnécio é um material radioactivo prateado com uma massa atómica média de 98gmol−1 , com uma aparência semelhante à platina. A sua estrutura cristalina é hexagonal compacta, com um parâmetro de rede de 2.74Å. O Tecnécio atómico tem linhas de emissão características para os comprimentos de onda de 363.3nm, 403.1nm, 426.2nm, 429.7nm, e 485.3nm [9]. A forma metálica do Tecnécio é paramagnética, e torna-se um supercondutor de tipo II a temperaturas abaixo de 7.46K. A sua temperatura de fusão é de 2430K, a sua temperatura de ebulição é de 4538K, e a sua densidade é de aproximadamente 11gcm−3 . Para além disto, o Tecnécio tem ainda um raio atómico de 136pm e um raio covalente de 127pm [10, 11]. 2.2 Propriedades Químicas O Tecnécio está localizado no sétimo grupo da tabela periódica, entre o Rénio e o Manganês, sendo o Tecnécio mais parecido quimicamente ao rénio, principalmente no que diz respeito à formação de ligações covalentes. Os estados de oxidação do Tecnécio mais comuns são o +4, +5 e +7. O Tecnécio é solúvel em água, ácido nítrico e sulfúrico, mas não o é em nenhuma gama de concentrações de ácido clorídrico. A sua primeira energia de ionização é de 702kJmol−1 , a segunda 1470kJmol−1 e a terceira 2850kJmol−1 . Apresenta uma entalpia de fusão de 33.29kJmol−1 , e uma entalpia de vaporização de 585.2kJmol−1 , e ainda um calor específico de 24.27Jmol−1 K−1 , a uma temperatura de 298K [12]. 3 Isotopos do Tecnécio O Tecnécio é o elemento de mais baixo número atómico que não tem qualquer isótopo estável. Até à presente data, já foram identificados e caracterizados 22 radioisótopos do Tecnécio, com massas atómicas a variar entre os 87.933u (88 Tc) e os 112.931u (113 Tc) [13]. A razão pela qual o Tecnécio não tem nenhum isótopo estável não é de todo simples, principalmente devido ao facto deste elemento ser relativamente leve. A explicação para este facto pode basear-se no modelo da gota líquida, através do qual é possível derivar uma fórmula semi-empírica (fórmula de Weizsäcker) que permite aproximar várias propriedades dos núcleos, como seja a sua massa ou energia de ligação. Esta fórmula afirma que a energia de ligação dos núcleos é dada pela soma de 5 termos (energia de volume, de superfície, de Coulomb, assimétrica e de emparelhamento), e prevê um vale de estabilidade, no qual os nuclídeos não decaem. Os nuclídeos que se afastem deste vale de estabilidade 4 Tecnécio João Marques tenderão a sofrer decaimento em direcção ao centro do vale (quer seja por emissão de um electrão, positrão ou captura electrónica). Se se fixar o número de nucleões A, a energia de ligação localiza-se em uma ou mais parábolas, sendo que o nuclídeo mais estável se localiza no fundo das parábolas. A razão pela qual é possível existir mais do que uma parábola prende-se com o facto de que os isótopos com um número par de protões e neutrões são mais estáveis do que isótopos com número ímpar de protões e neutrões (princípio de exclusão de Pauli). Quando há apenas uma parábola (ou seja, quando A é ímpar), só pode haver um isótopo estável nessa parábola. Quando há duas (ou seja, quando A é par), pode acontecer, ainda que raramente, que exista um núcleo estável com um número ímpar de protões e neutrões. No entanto, se este for o caso, não poderá existir nenhum isótopo estável com um número par de protões e neutrões. No caso do Tecnécio, elemento 43, o vale de estabilidade está centrado, segundo a fórmula descrita acima, para A=98 nucleões. Contudo, para todos os valores de A entre 95 e 102 já existe pelo menos um nuclídeo estável para o Molibdénio ou Ruténio. Para isótopos com número ímpar de nucleões, isto elimina imediatamente qualquer hipótese de um isótopo estável para o Tecnécio, visto que apenas pode haver um isótopo estável para A ímpar. Para isótopos com número par de nucleões, visto que o Tecnécio tem número ímpar de protões, também terá de ter um número ímpar de neutrões. Assim, a presença de um nuclídeo estável com o mesmo número de nucleões mas com número par de protões acaba com qualquer possibilidade de existência de um núcleo estável para o Tecnécio [14]. Na Tabela 1 encontram-se sumariados os principais isótopos do Tecnécio e os seus modos de decaimento. Nuclídeo 91 Tc 92 Tc 93 Tc 94 Tc 95 Tc 96 Tc 97 Tc 98 Tc 99 Tc 100 Tc 101 Tc 104 Tc 105 Tc T1/2 3.14 min 4.23 min 2.75 h 4.88 h 20 h 4.28 dias 2600000 anos 4200000 anos 211100 anos 15.8 s 15.8 s 14.22 min 18.3 min 7.6 min Decaimento β− β− β− β− β− β− Resultado 91 Mo 92 Mo 93 Mo 94 Mo 95 Mo 96 Mo 97 Mo 98 Ru 99 Ru 100 Mo 100 Ru 101 Ru 104 Ru 105 Ru Energia (MeV) 6.22 7.87 3.201 4.256 1.691 2.973 0.32 1.796 0.294 0.168 3.202 1.614 5.6 3.64 Tabela 1: Principais isótopos do Tecnécio, seus tempos de semi-vida, modos de decaimento (onde representa a captura electrónica) e energias de decaimento [13]. 5 Tecnécio João Marques Analisando a Tabela 1, verifica-se que apesar de nenhum dos isótopos do Tecnécio ser estável, existem alguns com tempos de semi-vida bastante elevados. São eles o 98 Tc (tempo de semi-vida de 4.2 milhões de anos), o 97 Tc (tempo de semi-vida de 2.6 milhões de anos) e o 99 Tc (tempo de semi-vida de 211.1 mil anos). Quanto ao modo de decaimento dos vários isótopos, este varia bastante. No entanto, para isótopos mais leves que o isótopo mais estável (98 Tc), o modo primário de decaimento é por captura electrónica, originando Molibdénio. Elementos mais pesados tendem a decair com emissão β − , originando Ruténio (a excepção é o 100 Tc que tem ambos os modos de decaimento). No entanto, para além destes isótopos, o Tecnécio tem também vários metaestados. Diz-se que um determinado estado é metaestável quando corresponde a uma isomeria de outro estado (mais estável) mas tem ainda assim um tempo de semi-vida várias ordens de grandeza acima de outros estados que decaem por emissão γ. Na Tabela 2 encontram-se representados alguns dos metaestados do Tecnécio mais relevantes. Nuclídeo T1/2 91m Tc 3.3 min 93m Tc 43.5 min 94m Tc 52 min 95m Tc 61 dias 96m Tc 51.5 min 97m Tc 90.1 dias 99m Tc 6.01 h 102m Tc 4.35 min Decaimento TI (<0.01) (>0.99) TI (0.766) (0.234) TI (<0.001) (>0.999) TI (0.0388) (0.9612) TI (0.98) (0.02) TI (0.9966) (0.0034) TI (0.9963) β − (0.0037) TI (0.02) β − (0.98) Resultado 91 Tc 91 Mo 93 Tc 93 Mo 94 Tc 94 Mo 95 Tc 95 Mo 96 Tc 96 Mo 97 Tc 97 Mo 99 Tc 99 Ru 102 Tc 102 Ru Energia (MeV) 0.35 6.57 0.392 3.593 0.075 4.331 0.039 1.73 0.034 3.007 0.097 0.417 0.143 0.437 0.000 4.530 Tabela 2: Principais metaestados de isótopos do Tecnécio, seus tempos de semi-vida, modos de decaimento (onde representa a captura electrónica e TI transição isomérica) e energias de decaimento [13]. Analisando a Tabela 2, verifica-se que os metaestados mais estáveis são o 97m Tc (tempo de semi-vida de 90.1 dias), o 95m Tc (tempo de semi-vida de 61 dias), e o 99m Tc (tempo de semi-vida de 6.01 horas). Verifica-se ainda que o decaimento do isótopo metaestável genérico com A nucleões Am Tc se pode dar de duas formas: de forma directa, por captura electrónica (originando A Mo) se A<98 ou por emissão de um β − (originando A Ru) se A≥98, ou indirectamente, através de uma transição isomérica (por emissão de um γ ou 6 Tecnécio João Marques por conversão interna), dando origem a A Tc, que irá depois decair conforme a Tabela 1. É possível também chegar à conclusão que para todos os metaestados (à excepção do 93m Tc), uma das formas de decaimento prevalece de forma quase absoluta sobre a outra. Por exemplo, para o 99m Tc, o decaimento dá-se com 99.63% de probabilidade por transição isomérica (no caso, por emissão de um γ). Estas duas formas de decaimento são descritas por (1), para A<98 e (2), para A≥98. Am Am TI A Tc −→ A Mo TI A Tc −→ β− A Ru Tc −→ Tc −→ Am Tc −→ Am Tc −→ β− A A Mo Ru (1) (2) No que diz respeito às energias envolvidas nestes decaimentos, pode verificar-se através da análise das Tabelas 1 e 2 que a energia do decaimento total de Am Tc para A Mo ou A Ru é igual à soma das energias do decaimentos de Am Tc para A Tc e do decaimento de A Tc para A Mo ou A Ru. Isto faz todo o sentido, já que o decaimento total não é mais do que a soma dos dois decaimentos parciais, e portanto as energias envolvidas por ambos os processos têm de ser equivalentes. 4 Tecnécio-99 e Tecnécio-99m Sendo o Tecnécio um elemento instável, não existem na natureza grandes quantidades deste elemento disponíveis. Até à data, apenas foi possível identificar Tecnécio na crosta terrestre, em minério de urânio. No entanto, 1kg de urânio contém apenas 1ng de Tecnécio, tornando esta fonte pouco viável do ponto de vista de obtenção deste elemento. Fora do planeta, já foram identificadas estrelas que possuem Tecnécio na sua constituição, através da análise dos seus espectros. Estas estrelas são conhecidas como estrelas de Tecnécio. Ainda assim, o Tecnécio, e em particular o 99 Tc e 99m Tc são produzidos e utilizados em larga escala a nível mundial, sendo que o primeiro tem aplicação na Indústria Física e Química, enquanto que o último é utilizado principalmente em Medicina Nuclear. 4.1 4.1.1 Tecnécio-99 Ocorrência e Produção O 99 Tc é o isótopo de Tecnécio mais comum e mais produzido à escala mundial. Isto tem uma explicação relativamente simples. Os isótopos de Tecnécio leves quase nunca são produzidos em fissão dado que os produtos iniciais da fissão têm normalmente um rácio neutrões/protões demasiado elevado para que sejam estáveis nesta gama de massas (e portanto decaem muito rapidamente). Os decaimentos de produtos de fissão para elementos com 95 a 98 nucleões param nos isótopos de Molibdénio respectivos e não chegam a atingir o Tecnécio. Para 100 ou mais nucleões, os isótopos de Tecnécio têm 7 Tecnécio João Marques tempos de semi-vida demasiado curtos, e portanto decaem rapidamente para isótopos de Ruténio. Portanto, o único isótopo de Tecnécio que é viável de produzir para aplicações industriais/comerciais é o 99 Tc. Este isótopo é obtido como produto de fissão de alguns actinídeos, como o urânio ou plutónio. Em termos relativos, é um dos produtos de fissão mais abundantes o que tem maior tempo de semi-vida. A fissão de 1g de 235 U origina 27mg de 99 Tc, o que resulta num rendimento de 6.1%. No caso de 233 U, o rendimento é de 4.9%, e no caso de 239 Pu vale 6.21%. Actualmente, cerca de dois terços da produção mundial provém de dois laboratórios: o National Research Universal Reactor, dos Chalk River Laboratories, e o Petten Nuclear Reactor, na Holanda [15]. 4.1.2 Aplicações As aplicações do 99 Tc são várias. Como este isótopo emite apenas partículas β com baixas energias (ver Tabela 1) e sem emissão de quaisquer outras partículas, acrescido ao facto do seu longo tempo de semi-vida, é considerado um emissor β standard pela NIST 1 , e é portanto utilizado em calibração de aparelhos. Pela mesma razão, está neste momento a considerar-se o uso do 99 Tc para aparelhos na área da optoelectrónica e baterias nucleares à escala nanométrica [16]. Para além disto, o 99 Tc é também utilizado como catalisador, para reacções como a desidrogenação do álcool isopropílico, sendo muito mais eficaz que outros catalisadores utilizados, como é o caso do Rénio ou do Paládio. No entanto, a sua actividade radioactiva torna a sua aplicabilidade bastante limitada a reacções catalíticas onde seja seguro a utilização de elementos radioactivos [16]. Por fim, o 99 Tc tem também potencial para evitar a corrosão do aço. Quando o aço está imerso em água, a adição de uma pequena concentração (55ppm) de pertecnato de potássio (KTcO4 ) à água protege o aço da corrosão, mesmo para temperaturas elevadas. O mecanismo exacto ainda não é completamente conhecido, mas pensa-se que o pertecnato reage com a superfície do metal, formando uma fina camada de dióxido de Tecnécio, que actua como filme protector. No entanto, a radioactividade deste elemento coloca alguns entraves à sua utilização para este fim, sendo que um isótopo com maior tempo de semivida (97 Tc ou 98 Tc) seria o ideal. Ainda assim, é o 99 Tc o mais utilizado devido à sua disponibilidade e facilidade de obtenção [15]. 4.1.3 Segurança O 99 Tc, apesar do seu relativamente longo período de semi-vida (211100 anos), não é um isótopo estável, e portanto o seu manuseamento e utilização requer cuidados de segurança. De acordo com a Tabela 1, este isótopo emite radiação β com relativamente baixa energia (294keV), dando origem ao 99 Ru, que é estável. O esquema de decaimento do isótopo 99 Tc encontra-se representado na Figura 1. 1 National Institute of Standards and Technology 8 Tecnécio João Marques Figura 1: Esquema de decaimento do 99 Tc [17]. Como se pode observar, não existe apenas um, mas dois decaimentos β. No entanto, dado que um deles ocorre com 99.9984% de probabilidade, é usual dizer que o 99 Tc tem apenas um decaimento β, de 294keV. Isto é reforçado ainda pelo facto de, no caso do decaimento se dar com emissão de um β de 204keV, há logo decaimento (com tempo de semi-vida de 20.5ns) para o estado estável do 99 Ru. Dada a baixa energia da radiação emitida neste decaimento, os raios β são imediatamente travados dentro do laboratório de trabalho pelas paredes ou vidros. Neste ponto, não é necessário ter cuidados acrescidos. No entanto, quando estas partículas são travadas, pode haver a emissão de raios-X de baixa energia. Ainda assim, a não ser que o laboratório seja de dimensões muito reduzidas, este facto não implica maiores riscos. A principal preocupação aquando da manipulação de 99 Tc deve sempre ser a inalação de poeiras, que podem conter partículas radioactivas. A entrada de pó de 99 Tc para os pulmões tem riscos significativos a nível de cancro do pulmão. Desta forma, a manipulação de 99 Tc deve ser feita, sempre que possível, dentro de uma hotte com ventilação apropriada [16]. 4.2 4.2.1 Tecnécio-99m Ocorrência e Produção O 99m Tc é um isómero metaestável do 99 Tc. Como em todos os metaestados, sofre uma transição isomérica (neste caso por emissão γ) para dar origem ao 99 Tc. Isto significa que não há qualquer transmutação durante o decaimento, mas apenas uma diminuição da energia do núcleo. O seu tempo de semi-vida (aproximadamente 6 horas) faz com que este isótopo tenha um tempo de semi-vida bastante longo quando comparado com outro isótopos emissores de raios γ, mas curto quando comparado com isótopos com outros tipos de emissão. Este isótopo é obtido por decaimento do 99 Mo. Actualmente, devido ao seu uso abundante a nível mundial e ao seu curto tempo de semi-vida, torna-se necessária a possibilidade de produzir este isótopo no local e altura em que irá ser utilizado, já que o transporte do 99m Tc resulta em que quando este chega ao seu destino já praticamente não existe. Desta forma surgem os geradores de 99m Tc, que permitem extrair 99m Tc a partir de 99 Mo. Este elemento tem um tempo de vida de 66 horas, e pode portanto ser 9 Tecnécio João Marques facilmente transportado mesmo em longas distâncias [18]. O decaimento do 99m Tc é traduzido pela equação (3) e pela Figura 2. 99 Mo −→ 99m Tc + β − + νe Figura 2: Esquema de decaimento do s 0.0000 −0.0014 −0.0241 −0.7547 d −0.0002 0.9992 −0.0388 0.0008 β 1.0000 0.0002 0.0000 0.0000 µ 0.0000 0.0354 0.9297 0.2230 k 0.0000 −0.0001 −0.0021 0.0094 0.0159 0.3655 −0.6170 c 0.0000 99 Mo 99 Mo para (3) [17]. −0.6557 0.0035 −0.0017 0.0000 0.0000 0.0000 −0.2910 −0.0017 −0.0054 0.9999 0.6967 0.0103 (4) Analisando este esquema de decaimento, verifica-se que a grande maioria (82.4%) do 99 Mo decai directamente para 99m Tc, e mesmo os restantes decaimentos têm uma probabilidade relevante de passarem por este estádio, o que torna o 99 Mo uma boa fonte de 99m Tc. A grande maioria dos geradores de 99m Tc utilizam cromatografia em coluna, onde o 99 Mo se encontra na forma de MoO42− adsorvido em alumina ácida (Al2 O3 ). Quando se dá o decaimento, forma-se pertecnato, que pela sua única carga negativa fica menos preso à alumina. Desta forma, a passagem de uma solução salina pela coluna é suficiente para soltar o 99m Tc, resultando numa solução salina contendo este isótopo [18]. 10 Tecnécio João Marques Depois, o 99m Tc decai, com emissão de um fotão, para 99 Tc, tal como representado em (5) e na Figura 3. 99m Tc −→ 99 Tc + γ Figura 3: Esquema de decaimento do (5) 99m Tc [17]. Por análise deste decaimento, verifica-se que a maior probabilidade cai na emissão de um γ de 141keV (89%), e que a emissão de um γ de 143keV é muito menos provável (1.9%). Isto faz todo o sentido, já que há uma transição de spin muito brusca de -1/2 para +9/2, e que pode assim ser atenuada passando por este estádio intermédio com spin de +7/2. No entanto, e visto que a soma destas duas probabilidades não é igual a 100%, existem ainda outras formas de decaimento. Nestas incluem-se não só o decaimento β (Tabela 1), mas também a conversão interna (com uma probabilidade ainda considerável). Concluindo, o mais importante a reter deste decaimento é de facto a emissão de um fotão em 89% das vezes com cerca de 141keV. Este facto é da máxima importância no que diz respeito à aplicabilidade deste isótopo na Medicina, como se mostra de seguida. 4.2.2 Aplicações O 99m Tc tem um vasto campo de aplicações na área da Medicina Nuclear, actuando como um agente radioactivo dentro do corpo cuja actividade pode ser detectada no exterior. A sua aplicabilidade deve-se ao seu tempo de semi-vida, qua não é demasiado curto que não permita a execução do exame nem demasiado longo que permaneça no corpo durante muito tempo, e ao facto de emitir fotões de aproximadamente 140keV, que os equipamentos actualmente existentes para raios-X têm a capacidade de detectar. Para além disto, o facto de o produto de decaimento do 99m Tc, o 99 Tc, ter um tempo de semivida bastante elevado, faz com que a exposição do corpo à radiação β seja muito baixa. Por fim, o facto de ser facilmente produzível recorrendo a geradores de 99m Tc torna a sua utilização muito facilitada a nível hospitalar. Actualmente, cerca de 85% dos procedimentos de imagiologia em Medicina Nuclear utilizam este isótopo, o que perfaz cerca de 20 milhões de procedimentos anuais nos quais 11 Tecnécio João Marques se utiliza o 99m Tc. A administração deste isótopo é precedida pela sua ligação a um fármaco que o transporte até à localização pretendida. Por exemplo, se a ligação for feita à exametazima, pode fazer-se um exame aos vasos sanguíneos do cérebro para avaliar o fluxo sanguíneo. A ligação pode também ser feita a glóbulos brancos para visualização de locais de infecção, ou recorrendo ao Sestamibi se se pretender uma imagem de perfusão do miocárdio. As aplicações do 99m Tc na Medicina Nuclear são muito variadas, encontrando-se listadas de seguida as mais relevantes [18]: • Cintigrafia Óssea: Esta técnica permite avaliar a actividade óssea, uma vez que o fármaco administrado (que se encontra ligado ao 99m Tc) é incorporado pelos osteoblastos, responsáveis pela formação óssea. Esta técnica é assim sensível a pequenas fracturas não detectáveis em raios-X ou a tumores ósseos, incluindo metátases. Sendo esta técnica uma das mais utilizadas em Medicina Nuclear, pode afirmar-se que é também a principal aplicação médica do 99m Tc. • Imagem de Perfusão do Miocárdio: É uma técnica que permite obter uma imagem funcional do miocárdio, e que é utilizada para diagnósticos de doença isquémica. Baseia-se no princípio de que, em condições de stress, um miocárdio lesado recebe menos fluxo sanguíneo que um miocárdio saudável. Neste exame, após a administração do fármaco ligado ao 99m Tc, o ritmo cardíaco é aumentado (quer por exercício quer farmacologicamente), e o fármaco começa a ser metabolizado pelas células do miocárdio, concentrando no local o 99m Tc, permitindo a visualização. • Ventriculografia Cardíaca: Esta ténica é utilizada para avaliar a doença coronária, doenças nas válvulas cardíacas, doenças congénitas, cardiomiopatias, entre outras. Aqui, o radionuclido é injectado ligado a um fármaco específico para este teste, permitindo avaliar o fluxo de sangue no coração. • Imagem Cerebral Funcional: Nesta técnica pretende-se obter uma imagem funcional da actividade cerebral, nomeadamente no que diz respeito ao fluxo sanguíneo, ou ao metabolismo local de determinadas zonas. O fármaco utilizado é normalmente o HMPAR ligado ao 99m Tc, que tende a distribuir-se preferencialmente para zonas com fluxo sanguíneo mais elevado. Uma das aplicações desta técnica é o diagnóstico e distinção das diferentes causas patológicas de demência. • Imunocintigrafia: Esta técnica pretende, através da incorporação do 99m Tc num anticorpo monoclonal, a identificação de tumores. Este anticorpo, uma vez dentro do organismo, irá ligar-se à região tumoral, permitindo assim uma visualização externa da sua localização. A imunocintigrafia revela-se muito útil na detecção de tumores difíceis de encontrar, como é o caso de tumores intestinais. 12 Tecnécio 4.2.3 João Marques Segurança Tipicamente, as doses de 99m Tc administradas para exames de cintigrafia variam entre 10 e 30mCi, em adultos, o que se traduz em exposições à volta dos 10mSv (equivalente a 500 raios-X torácicos) [19]. No entanto, a radiação para o paciente consegue ser mantida relativamente baixa dado o baixo tempo de semi-vida do 99m Tc, aliado ao facto do seu produto de decaimento ser muito menos radioactivo. Desta forma, este isótopo apresenta grandes vantagens quando comparado com outros que são ainda utilizados em Medicina Nuclear. Na forma em que este isótopo é administrado (pertecnato), tanto o 99m Tc como o 99 Tc são eliminados do corpo em alguns dias, o que implica que praticamente não há decaimento β no interior do paciente [18]. Apesar do Tecnécio não participar em nenhum processo metabólico no corpo humano, a sua toxicidade química é bastante baixa. Ainda que não existam estudos sólidos feitos em seres humanos, houve já bastante investigação da acção deste elemento em ratinhos. Tendo estes ingerido 15µg de 99 Tc por grama de comida durante algumas semanas, não foi possível identificar quaisquer alterações ao nível da constituição do sangue ou órgãos, permitindo dizer que este elemento não interfere de forma destrutiva em ambiente biológico, ao contrário de outros isótopos que são claramente mais agressivos [20]. 5 Conclusões Após a realização deste trabalho, pode concluir-se que o Tecnécio assume cada vez mais um papel fundamental em várias áreas, principalmente na Medicina Nuclear, através de exames de diagnóstico imagiológico. Sendo este um elemento obtido apenas sinteticamente (e o primeiro a ser produzido dessa forma), há também ainda margem para desenvolver os processos de obtenção do Tecnécio, tentando melhorar não só o rendimento do processo, mas principalmente a sua disponibilização, através da descentralização dos seus locais de produção (Secção 4.1.1). Assim, é fundamental a continuação do estudo deste elemento e dos seus isótopos, para que a sua aplicabilidade no mundo moderno possa ser ainda mais acentuada. Contudo, é necessário também ter em conta os aspectos relacionados com a reciclagem do Tecnécio, já que, tendo o 99 Tc um tempo de semi-vida tão longo, é de esperar que perdure na Natureza durante muitos anos. É necessário portanto a existência e aplicação de processos que permitam recuperar este elemento para nova utilização ou mesmo para evitar qualquer tipo de contaminação. Referências [1] P. Stewart, “A century on from Dmitrii Mendeleev: tables and spirals, noble gases and Nobel prizes,” Found Chem 9:235–245, 2007. [2] F. de Jonge and E. Pauwels, “Technetium, the missing element,” Eur J Nucl Med 23:336-344, 1996. 13 Tecnécio João Marques [3] R. Hermann, “Untersuchungen über das Ilmenium,” Journal für Praktische Chemie 40(1):457–480, 1847. [4] O. Swjaginzew, M. Korsunski, and N. Seljakow, “Dwimangan in Platinerzen,” Angewandte Chemie 40(9):256–259, 1927. [5] J. Chadwick, “Possible Existence of a Neutron,” Nature 129:312, 1932. [6] C. Anderson, “The Positive Electron,” Phys Rev 43:491–494, 1933. [7] H. Urey, “Designation of Heavy Hydrogen,” Nature 133:173, 1934. [8] J. Heilbron and R. Seidel, “Lawrence and his laboratory: a history of the Lawrence Berkeley Laboratory,” University of California Press, 1989. [9] D. Lide, Line Spectra of the Elements. CRC press, 1993. [10] J. Dean, Lange’s Handbook of Chemistry (15a Edição). McGraw-Hill, 1999. [11] W. Haynes, Handbook of Chemistry and Physics. CRC, 2010. [12] N. Greenwood and A. Earnshaw, Chemistry of the Elements (2a Edição). Elsevier, 1997. [13] “Technetium, Nuclides/Isotopes.” http://environmentalchemistry.com/yogi/ periodic/Tc-pg2.html, Consultado em 30 de Janeiro de 2010. [14] “Technetium.” http://www.3rd1000.com/elements/Technetium.htm, Consultado em 31 de Janeiro de 2010. [15] J. Emsley, Nature’s Building Blocks: An A-Z Guide to the Elements. Oxford University Press, 2001. [16] K. Schwochau, Technetium: chemistry and radiopharmaceutical applications. WileyVHC, 2000. [17] R. Firestone, Table of Isotopes. Wiley-Interscience, 1998. [18] “Technetium-99m.” http://en.wikipedia.org/wiki/Technetium-99m, Consultado em 28 de Janeiro de 2010. [19] G. Bedetti, C. Pizzi, G. Gavaruzzi, F. Lugaresi, A. Cicognani, and E. Picano, “Suboptimal Awareness of Radiologic Dose Among Patients Undergoing Cardiac Stress Scintigraphy,” Journal of the American College of Radiology 5(2):126-131, 2008. [20] G. Desmet and C. Myttenaere, Technetium in the environment. Springer, 1986. 14