“bendito fruto”1: minorias, ética dialógica e dignidade da

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Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014,
ISSN 2316-266X, n.3, v. 19, p. 151-166
“BENDITO FRUTO”1: MINORIAS, ÉTICA DIALÓGICA E
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
OLIVEIRA SOBRINHO, Afonso Soares de
Doutorando em Direito - FADISP.
[email protected]
RESUMO
A concepção de sociedade plural passa pelo reconhecimento das minorias, conforme previsão
constitucional fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, na
superação das desigualdades, na isonomia material independente de cor, sexo, origem, opção
sexual, condição social, em suma na efetividade dos direitos humanos fundamentais. É esse o
pano de fundo do filme “Bendito fruto”. Edgar, um cabeleireiro, vive em união estável, mantida
por relações de afetos com sua “empregada”, ao mesmo tempo em que nega a existência dessa
relação a partir do modelo patriarcal de sua formação cultural e deseja encontrar uma esposa
branca. No entanto, tem um filho homossexual, fruto do amor com Maria, não reconhecido.
Conhece uma pretendente ao posto de esposa pelo padrão social e cultural familiar tradicional.
Entretanto, quando desmistifica valores e passa ao reconhecimento da pluralidade cultural na
alteridade, vai ao encontro do justo. Descobre a relevância do respeito mútuo pelo afeto como
entidade familiar, na liberdade e no convívio com a diversidade pela solidariedade como
caminho da felicidade.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana; Afeto; Minorias.
ABSTRACT
The concept of plural society depends on the recognition of minorities as constitutional
provision founded on the principle of human dignity, solidarity, overcoming inequities in
equality regardless of the material color, sex, national origin, sexual orientation , social status, in
short the effectiveness of basic human rights is the backdrop for the movie blessed fruit. Edgar a
hairdresser living in stable relationships maintained by affections with his "housemaid". At the
same time it denies the existence of this relationship from the patriarchal model of their cultural
backgrounds and want to find a white wife. However , the fruit has a gay son the love with
Maria unrecognized . Knows a pretender to the wife by the social and cultural traditional family
pattern post. However, when demystifies values and passes the recognition of cultural plurality
in otherness meets the fair. Discover the importance of mutual respect for affection as a family,
living in freedom and solidarity with diversity as the path to happiness.
Key-words: Human Dignity; Affection; Minorities.
“Bendito Fruto – uma divertida história de amores” é um filme dirigido por Sérgio Rosenberg. Trata-se
de uma comédia. O enredo se dá a partir do reencontro de dois antigos colegas de Escola: Edgar (Otávio
Augusto) e Virgínia (Vera Holtz), a viúva que, de férias na Cidade Maravilhosa, acaba atingida por uma
tampa de bueiro no táxi onde se encontrava. O filme aborda o relacionamento entre Edgar e Maria
(Zezeh Barbosa), que tem um filho, fruto dessa união afetiva. Trata-se de Anderson (Evandro Machado),
não assumido pelo pai. Por sua vez, Anderson tem um relacionamento homoafetivo com Marcelo Monte
(Eduardo Moscovis). Edgar é dono de um salão de cabeleireiro no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro e
tem, como funcionárias, Choquita (Camila Pitanga) e Telma (Lúcia Alves) personagens secundários que
testemunharão os fatos, envolvendo as relações amorosas e seus desdobramentos com segredos,
surpresas, momentos de alegria e tristeza típicos da condição humana (ROSENBERG, 2004).
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INTRODUÇÃO
“Bendito Fruto” é um retrato do Brasil contemporâneo, suas contradições,
dilemas existenciais, desigualdades, preconceitos, discriminações. Uma referência às
famílias que se constituíram com base na união estável; “histórias de vida” de pais e
filhos que mantém relações de afeto, mas que tiveram negado o reconhecimento pelo
direito, durante o Século XX. Com o advento da Constitucionalização do Direito,
encontramos campo aberto à efetividade dos direitos das minorias, tendo, como
fundamento, a dignidade da pessoa humana para além de cor, sotaque, condição social,
língua, opção política, cultura, religião. No filme, há clara menção ao preconceito, pelo
fato de não assumirem publicamente a união entre Edgar, um branco, “patrão”, e Maria,
uma preta, “empregada”, embora se constituam em união estável pelos laços de afeto,
que permitem o reconhecimento como entidade familiar, como a convivência pacífica,
contínua e duradoura e tenham, inclusive, frutos dessa união, próprios da constituição
da família.
No entanto, se há o afeto entre os amantes, falta esse elemento na relação entre o
pai e o filho, este não assumido. Da mesma forma, o pai não assume, perante a
sociedade, a relação afetiva por sua companheira ser “empregada e preta”, o que não
configuraria o padrão familiar da época para uma família tradicional de classe média.
Observa-se, no caso brasileiro, o preconceito e a discriminação como elementos
históricos, que mantêm a distância entre o legal e ilegal, com padrões moralmente
construídos por uma elite conservadora. Esses, trazem, consigo, uma concepção
familiar, tradicional e da propriedade privada dos meios de produção, como fator que
distingue ricos e pobres, brancos e pretos, casados e “amigados”. Certamente, o fator
fanatismo religioso alimenta essa distinção, tendo, como base, a família reprodutora,
patriarcal e de manutenção de desigualdades pelo não reconhecimento das minorias
como parte na constituição do Estado e País. Essa questão central, arraigada na
sociedade autoritária e escravocrata ao longo do período colonial e republicano, foi
sedimentada, como cultura dominante, pelas elites, embora, mais recentemente, haja
mudança de paradigma, com a ascensão social de grupos, outrora colocados à margem
da sociedade ou, mesmo, que tinham seus direitos negados como partícipes do Estado
Democrático de Direito.
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Certamente, o preconceito e a discriminação racial e sexual que, ainda,
permeiam a sociedade brasileira, guardam raízes no modelo econômico, social e
político. Tal modelo precisa ser rediscutido, em especial por instituições ilegítimas, as
quais não contemplam a diversidade, mesmo diante de leis que tratam do racismo como
crime e que flexibilizam as relações afetivas, como o casamento homoafetivo e o
divórcio consensual em cartórios. Além disso, persiste muito fanatismo religioso,
negando as minorias e a manutenção de desigualdades pelas alas conservadoras, que
apostam o preconceito e a discriminação como caminhos para segregação social e
cultural. Isso gera o sofrimento humano e o suicídio moral de sujeitos considerados
indesejados aos padrões dominantes impostos no cotidiano, até mesmo pela pressão
social que recai sobre aqueles que optam por não casar ou não ter filhos, ou, ainda, pela
separação para, assim, ficar sem parceiro, especialmente sobre a figura feminina que
precisaria da “proteção” masculina ao seu lado.
Ao mesmo tempo, temos o conflito do “ter” em detrimento do “ser” na pósmodernidade. Insiste-se, dessa forma, em negar ao outro seu espaço de pertencimento
como cidadão na Polis, pela pouca efetividade do direito das minorias. Encontramos,
aqui, a base principiológica do direito, que aponta, como sua função social, condição
humana que assegure a liberdade na diversidade, isonomia formal e material, em suma,
no direito a ser parte para homens, mulheres, homossexuais e filhos mantidos nas
relações de afeto.
Para além do isolamento e individualismo segregando sujeitos considerados fora
dos padrões hegemônicos e os colocando à margem da sociedade, encontramos a luta do
direito do porvir no novo milênio, calcado na ética dialógica inclusiva, pela
solidariedade, respeito mútuo, amor e felicidade como direitos humanos fundamentais.
1. A “CIDADE MARAVILHOSA” ENTRE A TRADIÇÃO E O PROGRESSO:
UMA SOCIEDADE GLOBALIZADA QUE CONVIVE COM O PRECONCEITO
E A DISCRIMINAÇÃO DAS MINORIAS.
As grandes cidades são constituidoras de padrões estéticos, culturais e sociais, o
que deveria afirmar a diversidade pela pluralidade de atores e instâncias sociais. Porém,
o que temos visto, em pleno Século XXI, são ações depreciativas de valores humanos
universais. A simbiose local-global acaba por manter excluídos sujeitos considerados
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fora da ótica dominante. Ainda que se garanta o tratamento como consumidores de bens
e serviços, a sua inserção social e jurídica fica prejudicada pela discriminação com que
são tratados cotidianamente.
A pós-modernidade trouxe avanços significativos para a melhoria da vida das
pessoas, com o tratamento de doenças antes sem chance de cura. Ao mesmo tempo, a
banalização da vida ganhou relevo e a negação do outro é mantida à custa do
conservadorismo, arraigado ao fanatismo religioso patriarcal e ao evolucionismo
eurocêntrico do século XIX. Essa visão insiste no não reconhecimento dos “povos”
como uma só raça e tampouco no planeta como habitat de todos os seres racionais e
irracionais. Essa questão ganha relevo quando tratamos do caso brasileiro a partir da
colonização lusitana durante o pacto colonial até o advento republicano: a escravidão,
como marca indelével da nossa história, a casa grande, a senzala, os capitães do mato, a
empresa colonial voltada para a exportação de produtos primários e a escravidão
indígena, africana e a negação do elemento nacional na construção do País que somos.
Trata-se de uma utopia de civilidade branca, machista e de sotaque estrangeiro
incorporado como dominante pelas elites locais.
Esses traços seriam definidores de uma cidade que legitima desigualdades a
partir não só do status social, mas da cor da pele e, ainda, do trabalho como
característica associada a pessoas pobres, afrodescendentes, indígenas e nordestinos.
Ao longo do pacto colonial, essa característica marcaria o estereótipo de que o
prestígio social não é para todos, e que cada um teria o seu lugar na sociedade, no
espaço público e privado: a casa associada à família patriarcal, monogâmica, do senhor
de engenho, proprietário dos bens e incluído os escravos; a senzala, a rua, para os
excluídos.
Na passagem do século XIX para o XX, temos outro traço marcante da
sociedade brasileira na transição semifeudal para o incipiente capitalismo periférico.
A imigração pela pressão do neocolonialismo inglês permite a substituição do
trabalho escravo associado ao negro. Isso repercute na escassez de mão de obra com a
iminência do fim da escravidão e a proibição do tráfico. Num primeiro momento, temos
a entrada de chineses e, posteriormente, uma grande leva de italianos, alemães,
japoneses, entre outros. Ficou, no entanto, pelas elites locais, o ranço de quem manda e
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quem deve obedecer e ter deveres, não direitos. Da mesma forma, quem tem privilégios
acima dos direitos.
Durante o período colonial e republicano, a supremacia européia parece ter
ficado impregnada na mente das elites, em especial pela colonização e presença
católica, associada ao Estado até a proclamação da República do ponto de vista formal.
Não por acaso, no modelo colonial e neocolonial, a religião é parte constituidora do
projeto metropolitano. No caso brasileiro, foi marcado pela companhia de Jesus, ala
conservadora católica, que combate a expansão do protestantismo pelo mundo afora na
denominada contrarreforma.
Com o advento republicano, temos a utopia de civilidade, pela associação entre
pobreza e higiene. Os cortiços representam uma ameaça ao projeto burguês de cidade
ordenada aos padrões eurocêntricos. Essa perspectiva histórica nos faz analisar, mais
profundamente, as raízes do preconceito e da discriminação, em especial pelo perigo
social que os pobres e negros representam às elites, o risco de greves, manifestações,
rebeliões. A ideia de civilidade circulava pelas elites cafeeiras no Rio de Janeiro,
outrora centro administrativo do império e República até a transferência da capital para
Brasília, na década de 1960.
A pequena burguesia, nesse período formada, traz, consigo, características
marcantes de negação do elemento negro e nacional associado à escravidão, ao atraso e
à “ignorância”, bem como a concepção de família calcada na figura do homem e da
mulher de influência religiosa cristã e Greco-romana. Seria o velho mundo constituidor
de uma civilidade nos trópicos: a associação do elemento nacional com a pouca
instrução, como forma de controle político. Assim, a afirmação do estrangeiro como
civilizado reproduz o autoritarismo das elites e barões do café. Era preciso miscigenar o
Brasil pelo enbranquecimento dos “povos”. Para tal, imigrantes, advindos de regiões
pobres da Europa e com baixa escolaridade, são trazidos para o trabalho na lavoura,
com a tarefa de construir a América, o novo mundo. Dessa forma, a educação para o
trabalho passa a ser objeto da instrução pública.
Ao mesmo tempo, a escravidão, paulatinamente, é associada à ignorância, ao
trabalho forçado, chegando a ganhar contornos sociais preocupantes, como a vinculação
entre o atraso ao sertão, por se constituir geograficamente uma área pouco fértil. Seria
uma forma de afirmar a supremacia nórdica às condições de clima do sul e sudeste
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brasileiro ao avanço da modernidade, na constituição de um Brasil próspero e civilizado
e o fanatismo religioso: “cimento” social de conformismo e naturalização de
desigualdades.
Esses mitos não revelam a exploração a que são submetidos trabalhadores tanto
europeus quanto o próprio nacional, ex-escravos e mestiços, na construção da cidade.
Eles reforçam, sim, o preconceito e a discriminação contra o elemento nacional como
constituidor de uma identidade nacional na cidade e na vida pública, sempre visto com
desconfiança e cuidado pela associação do que é “bom”, o que é exógeno e o que é
“ruim”, associado à própria pobreza material, à ignorância do nacional e ex-escravo.
Essas observações são relevantes para o estudo da questão do filme e do
problema da democracia racial no Brasil que naturaliza desigualdades e a
vulnerabilidade social dos pobres, pretos, homossexuais, em especial da periferia:
marginalizados na própria formação histórica, cultural e política das elites. Formam-se
valores morais deturpados de negação do nacional e adota-se a repressão como marca
nas insurgências populares, associando-os à marginalidade. Entretanto, os maiores
levantes sociais do período colonial e republicano forma liderados por líderes negros e
mestiços, em regiões onde havia mais repressão: Zumbi dos palmares, Joaquim Nabuco,
José do Patrocínio, revoltas como a Sabinada, Balaiada, Revolta do Malês, Revolta da
vacina. A própria resistência contra a ditadura civil-militar teve um ilustre baiano,
mestiço: Carlos Marighela.
Resta o reconhecimento social do preto em espaços restritos como o
divertimento do futebol ao samba. A musicalidade, em geral como força cultural
africana, permanece com Cartola, Milton Nascimento, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, entre
outras ilustres vozes, expressões artísticas e intelectuais reconhecidas nacional e
internacionalmente. Também homossexuais se destacam pela diversidade cultural e
social na moda, no carnaval, nas novelas e artes, pela espontaneidade e criatividade
brasileira, mas não são afirmados como heróis nacionais. Esse mito é do bandeirante
(homem), do Duque de Caxias (militar), sempre repressores e que usam da violência,
julgamento do “forte sobre o fraco”, como caminho para o sucesso. Criam-se, pois,
estereótipos depreciativos do outro, reproduzidos no universo de chefia por ambos os
sexos, como forma de autoafirmação perante a sociedade autoritária, traduzido na
negação à pluralidade social e cultural.
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Essas considerações são relevantes para situarmos nossa história aos 25 anos da
Constituição Cidadã, ao mesmo tempo em que o preconceito, o racismo, as
desigualdades sociais se fazem tão presentes em nossa sociedade. Nesse sentido, o filme
“Bendito Fruto” aborda o cotidiano de pessoas comuns que têm suas vidas entrelaçadas
pelos dilemas existenciais e sociais. É o que acontece com o personagem Edgar, um
solteirão, protótipo de família patriarcal, que deseja casar com alguém da mesma
condição social e, por esse motivo, nega um relacionamento com sua “empregada”
negra, mantendo as aparências pela necessidade moralista da tradição familiar. O fruto
desse relacionamento afetivo é um rapaz que mantém um namoro homoafetivo, objeto
de preconceito pela sociedade machista e autoritária como a nossa.
A personagem Virgínia (viúva), por sua vez, parece satisfazer o desejo dessa
utopia cristalizada por Edgar, por ter características que ora a aproxima ora a afasta,
como ser branca, de família tradicional, de classe média: biótipo almejado por ele como
padrão de esposa voltada aos afazeres doméstico-familiares. No entanto, como “boa
cozinheira” é reprovada. Reforça-se a cultura machista e preconceituosa do universo
masculino: a procura por padrões socialmente esperados, mesmo constituindo famílias
reprodutoras de infelicidade e frustração existencial, conduzindo conflitos, tragédias e
sofrimento humano.
No entanto, prevalece a relação afetiva, ao invés das aparências, e Edgar acaba
por “assumir” o relacionamento com sua companheira, embora não oficialmente como
esposa, mantendo as aparências e reforçando o preconceito social e de cor.
2. “BENDITO FRUTO”: DAS RELAÇÕES EXISTENCIAIS E AFETIVAS EM
FACE À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
O enredo do filme se passa no Rio de Janeiro, “Cidade Maravilhosa”, pelas suas
belezas naturais. Centramos nosso estudo nos personagens Virgínia, Edgar, Maria e no
fruto da relação afetiva entre Edgar e Maria, o “Bendito Fruto”, pois Anderson é o
centro da trama por mexer, justamente, com o afeto entre pais e filhos e entre ele e seu
amor, fruto de relação homoafetiva: Marcelo Monte. Ao mesmo tempo, Telma e
Choquita (personagens secundárias) trazem ao debate a aproximação entre a ficção e a
realidade com que a mídia impõe comportamentos e a violência como algo presente no
cotidiano pelo preconceito, discriminação, banalização das vidas e criação de
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estereótipos a partir de padrões estéticos e deturpação de valores morais dominantes.
Isso conduz ao sofrimento humano pelo isolamento do corpo social das pessoas
indesejadas aos padrões moralmente impostos, resultando em conflitos existenciais e
entre aqueles que convivem no mesmo espaço público e/ou privado.
“Bendito Fruto” mostra o retrato da sociedade carioca e brasileira do final do
Século XX, fazendo-nos refletir sobre qual sociedade queremos para o Século XXI, por
meio de contradições entre o passado e presente. Temos uma sociedade que prega a
“cordialidade” e a “democracia racial”, respeito à diversidade, por sermos um País
aparentemente sem desigualdades, nem sociais, nem culturais. Porém, a realidade de
vulnerabilidade social de minorias se revela em preconceito, discriminação e criação de
estereótipos, ferindo, frontalmente, o previsto no art. 3º, inciso III e IV da Constituição
de 1988:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CRFB,
1988).
Também o art. 5º, caput e o inciso XLI da Carta Constitucional são explícitos
quanto aos direitos e garantias fundamentais, inclusive das minorias:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: [...] A lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais
(CRFB, 1988).
Ademais, é previsão constitucional da Carta Magna, no art. 4º, o
reconhecimento de que o Brasil é regido nas relações internacionais, entre outros
princípios, pela prevalência dos direitos humanos. Nesse sentido, é relevante destacar o
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos ao qual o Brasil é signatário em
especial na proteção das minorias, anexado ao Decreto 592/1992.
O Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, em seu artigo 2º, assegura aos
povos pertencentes aos Estados partes do referido pacto o respeito, bem como garantias
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aos indivíduos sujeitos à sua jurisdição, sem discriminação por cor, sexo, raça, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem social ou nacional, situação
econômica, de nascimento ou quaisquer outras condições, demonstrando uma evidente
proteção aos direitos das minorias. Por sua vez, o art. 10 trata da liberdade como valor
essencial, o qual não pode ser privado, e do tratamento com respeito à dignidade
inerente à pessoa humana. Entendemos que, com relação à dignidade da pessoa humana,
o núcleo a ser protegido, em especial, trata-se de minorias. Também o art. 27 trata
explicitamente da proteção das minorias:
Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas,
as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do
direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua
própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar
sua própria língua” (Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992).
O Pacto de San José da Costa Rica de 1969 em seu art. 1º, tratando dos deveres
dos Estados e dos Direitos protegidos em seu art. 1º, dá ênfase à proteção das minorias:
[...] Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os
direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno
exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem
discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou
social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição
social” (Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas de 1948 explicitava o respeito às minorias nos artigos I, II e VII,
respectivamente citados:
[...] Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às
outras com espírito de fraternidade.
[...] Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie,
seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
outra condição.
[...] Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer
distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção
contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e
contra qualquer incitamento a tal discriminação (Declaração dos
Direitos Humanos Universais da ONU).
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No que tange à existência familiar, é previsão do art. 226, § 3º da Constituição
Federal, a proteção à família na sua pluralidade de relações afetivo-amorosas:
“[...] para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar sua conversão em casamento (CRFB, 1988).
“Bendito Fruto” aponta para o debate do reconhecimento mediante as opções
individuais, às liberdades civis e a transmutações sociais do novo milênio para além do
consenso da maioria. O direito existencial, sua complexidade, dilemas, conflitos da pósmodernidade, tendo, por baliza, a Dignidade da Pessoa Humana como princípio
fundante de todo ordenamento jurídico. É a previsão do Art. 1º, III, que assegura à
relação afetiva os mesmos direitos da união estável, além do reconhecimento da união
homoafetiva como núcleo familiar.
Conforme previsão de vanguarda do Supremo Tribunal Federal, a ainda recente
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 132 decidiram pela interpretação conforme a
Constituição para excluir qualquer impedimento que prejudique o reconhecimento da
união homoafetiva como entidade familiar a partir do art. 1723 do Código Civil, por
haver a equiparação da união homoafetiva à união estável, com base nos princípios da
igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana.
Por sua vez, com a Constitucionalização do Direito Civil, as relações de
parentesco assumem um viés sócio afetivo para além do fato biológico:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consangüinidade ou outra origem.
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação.
Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu
consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos
quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação (Lei
10.406 de 10/01/2002)
Nesse sentido observamos, em “Bendito Fruto”, justamente, a falta dos laços de
afeto entre Edgar e Anderson, Pai e filho, ao mesmo tempo em que entre Anderson e
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Marcelo há a presença marcante da afetividade pelo respeito mútuo, na solidariedade,
isonomia material, amor e felicidade no justo.
Maria Berenice Dias em “Sociedade do Afeto” identifica um termo que
caracteriza a nova entidade familiar para os que vivem em união estável: “amantes”.
Na contemporaneidade, a concepção verticalizada e heterogênea da sociedade é
rediscutida pela pluralidade de esferas sociais, novos atores e instâncias. A relação entre
amantes, companheiros e de gênero são rediscutidas, a própria intimidade, honra,
imagem das pessoas, ao mesmo tempo em que são expostas pela mídia, precisam ser
preservadas, inclusive mediante indenização em caso de violação, conforme art. 5º,
incisos I e X da Constituição Federal.
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação (CFRB, 1988).
Por outro lado, descendo do plano formal ao material, há relações assimétricas
entre o direito positivado e a realidade social pela distinção entre sujeitos considerados
indesejados pela sua cor, origem, opção sexual, condição social, enquanto outros
privilegiados gozam de plenos direitos e garantias constitucionais no plano formal e
material. Edgar reproduz a própria concepção de sociedade patriarcal, conservadora e
elitista de negação do outro, de preconceitos e discriminação histórica e culturalmente
sedimentadas pelas elites conservadoras. Uma sociedade de extremos, afirmando, pela
violência simbólica e física, a segregação no mesmo espaço. Nesse sentido, riqueza e
pobreza convivem com a repressão do Estado e da própria sociedade, traduzidas na
intolerância, na depreciação do outro e na violência, ao invés de acolher e dar afeto.
Demonstra-se, dessa forma, uma sociedade midiática, capaz de se chocar e
solidarizar com vítimas da violência, ao mesmo tempo em que afirma todos os dias
desigualdades, naturalizando-as e normatizando-as em agressões físicas e simbólicas
aos pretos, homossexuais e mulheres, como minorias, mediante a repressão do Estado e,
mesmo, a discriminação cotidiana.
Tal cenário é agravado quando leis são interpretadas por julgadores tirânicos
com os “olhos” de classe abastada no trágico da ação, no ato de proferir sua sentença
condenatória: empurrar pobres, pretos e periféricos para as prisões superlotadas, sem
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perspectiva de ressocialização e reinserção social. Apostam, pois, no aprisionamento
como regra para retirar “suspeitos” do convívio social, muitas vezes já excluídos por
muros visíveis e invisíveis dos condomínios e favelas, da indiferença, do olhar que
subjuga o outro a partir da vestimenta, sotaque, cor da pele, opção sexual.
Nesse sentido, temos campo aberto à reflexão de nossa sociedade e a que
queremos como espaço de convívio pacífico e harmônico, ou de mais segregação e
violência cotidiana.
A questão central do filme “Bendito Fruto” é, portanto, do ponto de vista
jurídico, repensar o direito desde o campo filosófico pela ética dialógica inclusiva, de
pertencimento pelo reconhecimento da alteridade como parte constitutiva da cidade,
como cidadãos que exercem sua democracia participativa. Discute-se o próprio espaço
urbano como produtor de desigualdades produzidas pelo próprio homem, referendado
pelo Estado nas políticas públicas que não contemplam a inclusão das minorias (seja
pela educação, saúde, moradia, renda, mobilidade precárias para quem está à margem da
sociedade), embora com o discurso de mudança e desenvolvimento de governos ditos
democráticos, mas que não se traduzem na efetividade dos direitos humanos,
fundamentados na dignidade da pessoa humana para todos.
3. A ÉTICA DIALÓGICA INCLUSIVA NA ANÁLISE DE “BENDITO FRUTO”
Reconhecimento é um tema complexo, em especial numa sociedade que insiste
em afirmar desigualdades de toda ordem. O Consenso da maioria, simbolicamente
representado na figura individual da autonomia privada, precisa ser revisto pelo
alargamento de instâncias e atores sociais por laços de solidariedade e uma ética calcada
no respeito mútuo. Nessa medida, na relação entre Edgar e Maria há a busca pela
felicidade. Embora tenham liberdade para manter seu relacionamento, há a negação por
parte de Edgar do reconhecimento do seu filho com Maria. Nesse sentido, a busca pela
dignidade, mediante o egoísmo e conservadorismo patriarcal da formação de Edgar,
torna a relação amorosa incompleta. Trata-se, assim, de um sujeito que, ainda, idealiza
uma relação nos moldes tradicionais.
Em certa medida, o filme reproduz a sociedade contemporânea, que insiste em
negar o reconhecimento de pretos, homossexuais, não os elevando ao status de
cidadãos. Dessa forma, prevalece a discriminação das minorias. Essa concepção, mesmo
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com resistência, tem mudado com o papel de vanguarda do STF, no reconhecimento da
união homoafetiva e o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, realizado por
Cartórios por todo o País.
Edgar, no filme, acaba por manter uma visão “preconceituosa” contra sua
companheira, na figura da “empregada doméstica”, visando manter aparências impostas
socialmente. E o direito do mais forte também se impõe, pelo simbolismo de isonomia
formal e desigualdade material, tanto que o arcabouço normativo constitucional,
fundado em princípios, fala em pluralidade, diversidade, solidariedade, dignidades,
igualdade, mas a realidade se mostra diversa. Nisso, a Constituição Federal parece
distante da realidade como algo inalcançável para a esmagadora maioria de “Marias”
(mulher, doméstica, preta e da periferia) e “Andersons” (mestiços, homossexuais),
espalhados pelo país e encontrados nas ruas, vistos como “suspeitos” pela cor, sotaques,
vestimentas, opção sexual, gênero.
Embora supostamente legitimados formalmente como sujeitos de direitos, a
norma jurídica não alcança sua legitimidade material pela negação da ética dialógica
inclusiva. Assim, nosso sistema jurídico, que assenta, no Estado de Direito, a
democracia, funciona num sistema representativo de elites que dominam e ditam as
regras do direito como privilégio para poucos: nega-se a democracia participativa como
essencial ao acesso à justiça, em especial das minorias. Temos um sistema de pesos e
contrapesos fadado ao fracasso, pois nossa sociedade patriarcal é cristã, conservadora e
dominante. Não por acaso, a pirâmide social não vislumbra mudanças de paradigmas,
mas apenas reformas naquilo que não agrada aos grupos no poder.
As esferas de instâncias e atores sociais que buscam alcançar o status de
legitimidade material normativo esbarram na burocracia estatal e numa sociedade
autoritária, que insiste em manter distante o diálogo para a inclusão do outro, seu
reconhecimento como sujeito.
As instituições ilegítimas reproduzem esse discurso normativo pelo poder nas
mãos de poucos, que decidem os rumos das massas carentes de justiça distributiva e
social. Nesse cenário, se formam os preconceitos materializados na discriminação, no
racismo, na perseguição aos homossexuais. A diversidade é tratada com desrespeito,
estereótipos, aumenta-se o fosso social e cultural entre possuidores e não possuidores
pelos padrões econômicos, políticos e sociais moralmente impostos de homem, mulher,
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família, casamento, amizade, comportamento, revelados na intolerância à diversidade.
Até laços de solidariedade, tão expressos na Carta Magna, passam a ser ignorados pelo
distanciamento que une e separa. Essa realidade é mais notória nos presídios
superlotados, campo de refugiados de pobres, pretos e da periferia, bem de sujeitos que
não se encaixaram nos padrões moralmente determinados por uma elite que não
compreende nem quer entender, apenas isolar, segregar para não misturar.
Embora com o discurso racional normatizado em ressocialização, reinserção e
oportunidades que visem à superação de desigualdades, solidariedade, cidadania, entre
outros princípios (como a dignidade da pessoa humana, expressos na Constituição
Federal), todos os dias são reforçados e reafirmados os espaços de cada um em seu
mundo à parte por privilegiados e quem está à margem, seja nos veículos de grande
circulação, seja nos olhares que se cruzam nas ruas, praças, avenidas, centro, bairros
nobres e periferia, heterossexuais e homossexuais, brancos e pretos.
CONCLUSÃO
“Bendito Fruto” aborda o preconceito numa sociedade patriarcal que não
reconhece o outro como partícipe, mesmo estando próximo. Reflete a própria sociedade
pós-moderna e o individualismo como causa do sofrimento humano; os dilemas
existenciais e morais pela falta de uma ética dialógica como caminho de enfrentamento
do preconceito e do respeito à diversidade: temas propícios ao campo de estudo da
filosofia do direito, já que se observa a pouca efetividade dos direitos fundamentais
presentes na Constituição Federal em especial para as minorias. Além disso, reflete o
peso do fator econômico para a produção de desigualdades, aliado aos estereótipos e
padrões estéticos de beleza, na formação do preconceito e racismo, entre outros aspectos
históricos como o patriarcalismo, a escravidão e o modelo Greco-romano associado ao
fanatismo religioso cristão na formação ocidental.
As desigualdades são fruto, também, de uma ideologia elitista de pensar o País
de cima para baixo, a partir de valores que não são o cotidiano do povo pobre das
periferias e, muito menos, das minorias.
O caminho de superação do preconceito e discriminação, com fulcro nos
princípios norteadores do direito entre os quais a solidariedade, o amor e o afeto, tendo
como fundamento a dignidade da pessoa humana, é o belo e justo desfecho do filme
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Bendito Fruto. Reconhecimento é algo complexo em especial numa sociedade de ranços
patriarcais, em que prevalecem preconceitos e discriminação de toda ordem.
Assim, a constitucionalização dos direitos civis é caminho a ser percorrido como
instrumento de transformação social que assegure ao outro a dignidade na singularidade
pela ética dialógica inclusiva. Isso ocorre quando Edgar assume o relacionamento
afetivo, como entidade familiar, com Maria, tornando-a pública e tentando se
reaproximar de seu filho, Anderson, mesmo após ter negado, durante muitos anos, essa
união estável.
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