Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito O DIREITO NA SOCIEDADE GOLBALIZADA E A CONSTITUIÇÃO DE NOVOS PADRÕES NORMATIVOS: AS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS TRANSNACIONAIS Autor: Mayra Oliveira Cavalcante Rocha Orientador: Prof. Dr. Wilson de Jesus Beserra de Almeida Brasília - DF 2014 MAYRA OLIVEIRA CAVALCANTE ROCHA O DIREITO NA SOCIEDADE GOLBALIZADA E A CONSTITUIÇÃO DE NOVOS PADRÕES NORMATIVOS: AS NEGOCIAÇÕES COLETIVAS TRANSNACIONAIS Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Católica de Brasília como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre no Programa de Mestrado em Direito Internacional Econômico Orientador: Prof. Dr. Wilson de Jesus Beserra de Almeida Brasília 2014 R672d Rocha, Mayra Oliveira Cavalcante. O direito na sociedade globalizada e a constituição de novos padrões normativos: as negociações coletivas transnacionais. I Mayra Oliveira Cavalcante Rocha- 2014. 82 f.; il.: 30 em Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de Brasília, 2014. Orientação: Pro f. Dr. Wilson de Jesus Beserra de Almeida 1. Direito. 2. Globalização. 3. Estado. 4. Normas privadas. 5. Acordos globais. L Almeida, Wilson de Jesus Beserra de, orient. IL Título. CDU340 Aos meus filhos, Luna e Dante, pelo amor incondicional, e por fazerem de mim uma pessoa melhor, mais alegre e mais feliz. AGRADECIMENTO Meus agradecimentos se dirigem aos meus pais, Valdeci e Rosângela, pelo apoio constante, e confiança inabalável, fundamentais para minha evolução pessoal e profissional. Ao meu esposo, Delano, pela compreensão, incentivo e admiração, sem os quais tudo seria mais difícil e menos prazeroso, e pelo amor e companhia que tornam meus dias mais felizes. Ao Denis, meu irmão e meu amigo, que esteve comigo durante toda a elaboração deste trabalho, com quem dividi os receios e conquistas dessa jornada. Aos colegas de trabalho do escritório Valdeci Cavalcante Advocacia e Assessoria, que com o trabalho e dedicação às nossas causas e clientes, permitiram minhas ausências quando necessárias para o desenvolvimento desta dissertação. Ao Prof. Dr. Antônio Moura Borges, a quem devo o convite para acesso ao programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília, e com quem tive o prazer de desfrutar da enriquecedora convivência acadêmica e familiar. Ao meu orientador, Prof. Dr. Wilson de Jesus Beserra de Almeida, pelas lições, orientações e confiança, essenciais para a elaboração e conclusão desta pesquisa. A minha querida tia Cibele, que tão bem me acolheu nos exaustivos dias de aula em Brasília, com disponibilidade e carinho pelos quais sempre serei grata. Aos mestres, e amigos, da Universidade Católica de Brasília, pelos ensinamentos transmitidos e pelo agradável convívio durante todo o programa de mestrado. A Deus, por todas as bênçãos que me são concedidas, e por permitir esta conquista ao lado destas pessoas especiais “Não se pode manter a paz pela força, mas sim pela concórdia” Albert Einstein RESUMO ROCHA, MAYA OLIVEIRA CAVALCANTE. O direito na sociedade globalizada e a constituição de novos padrões normativos: As negociações coletivas transnacionais. 2014. 92 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2014. A globalização, com a respectiva transnacionalização das relações econômicas e sociais, gerou um forte impacto no sistema jurídico internacional, provocando uma crise no Direito Positivo que levou o Estado a redefinir seu papel na regulação da sociedade globalizada. Diante desta realidade, verificada a incapacidade do Estado de disciplinar as relações sociais de forma exclusiva, constatou-se a emergência de regimes regulatórios privados e de uma diversidade de fontes de direito, que caracterizam o atual pluralismo jurídico. Como relevante norma privada de regulação social, de âmbito global, constitui objeto desta pesquisa a negociação coletiva transnacional, com destaque para seu conceito, fundamentos, marcos jurídicos, e principais dificuldades para sua aplicação e efetividade. Com a mesma ênfase são discutidos os acordos globais, instrumentos concretos da negociação coletiva transnacional, celebrados no âmbito das corporações transnacionais, por força da sua atual relevância na promoção dos direitos sociais no campo internacional. Palavras-chave: Globalização.Estado. Normas privadas. Acordos globais. ABSTRACT Economic and social relations concerning transnacional movements within the greater globalization sphere, generated strong impact on positive law in the international legal system and thus triggered a crisis surrounding law in a globalized society;leading the State to redine its role within it.. The afore mentioned, and the demonstrated State‟s proven inability to discipline, solely, social relations, allowed the emergence of private regulatory regimes and a diversity of law sources that describe the current legal pluralism. As a relevant standard private rule of social regulation in a global scope, the object of this study is transnational collective bargaining, highlighting the definition, reasoning, legal frameworks, and main difficulties for implementation and effectiveness. With the same emphasis, global agreements and concrete instruments of transnational collective bargaining are discussed and contextualized in the structure of transnational corporations and in accordance with its current significance in the promotion of social rights in the international area. Keywords: Globalization.State.Private Standard Rules.Global Agreements. LISTA DE SIGLAS AMI Acordos Marco Internacionais CCSCS Coordenadoria das Centrais Sindicais do Cone Sul CEEP Centro Europeu de Empresas Públicas CES Confederação Europeia de Sindicatos CIOSL Confederação Internacional de Organizações Sindicais ECSA Associação dos Proprietários de Embarcação da Comunidade Europeia EMN Empresas Multinacionais ETN Empresas Transnaionais FMI Fundo Monetário Internacional FSI Federações Sindicais Internacionais IUF International Union of Food, Agricultural, Hotel, Restaurant, Catering, Tobacco and Allied Workers' Association OIT Organização Internacional do Trabalho OMC Organização Mundial do Comércio ONG Organização não Governamental ONU Organização das Nações Unidas RSC Responsabilidade Social Corporativa UITA União Internacional dos Trabalhadores UNICE União das Confederações das Indústria dos Empregados da Europa ZPE Zona de Processamento de Exportação SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 1 2. A GLOBALIZAÇÃO E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO ..................................................................................................................... 5 2.1 A GLOBALIZAÇÃO E A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO ........................ 5 2.2 O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO INTERNACIONAL. 13 2.3 A EMERGÊNCIA DOS REGIMES REGULATÓRIOS PRIVADOS ........................ 17 2.4 O PLURALISMO JURÍDICO ................................................................................. 21 2.5 REFLEXOS DA TRANSNACIONALIZAÇÃO DOS MERCADOS NO DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO ............................................................................ 25 3. NEGOCIAÇÃO COLETIVA INTERNACIONAL ......................................................... 31 3.1. AUTONOMIA PRIVADA COLETIVA .................................................................... 33 3.2 BREVE ESCORÇO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA ............................................. 36 3.3. MARCOS NORMATIVOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA .................................. 39 3.4. NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRANSNACIONAL: NORMAS PRIVADAS PARA EFETIVIDADE DA JUSTIÇA SOCIAL NO PLANO INTERNACIONAL ....................... 43 3.5. NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRANSNACIONAL NA UNIÃO EUROPEIA ............. 48 3.6. NEGOCIAÇÕES COLETIVAS TRANSNACIONAIS NO MERCOSUL ................. 50 4. ACORDOS GLOBAIS: INSTRUMENTOS CONCRETOS DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRANSNACIONAL ..................................................................................... 54 4.1 ACEPÇÃO E ASPECTOS GERAIS DOS ACORDOS GLOBAIS .......................... 55 4.2 EVOLUÇÃO QUANTITATIVA E ANÁLISE QUALITATIVA ................................... 62 4.3. DIMENSÃO LEGAL E AVALIAÇÃO DO IMPACTO DOS ACORDOS GLOBAIS . 68 5. CONCLUSÃO ............................................................................................................ 75 6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 78 1 1. INTRODUÇÃO A globalização, embora não seja um fenômeno novo, alcançou uma grande dimensão desde o final do século XX, transformando o conceito de fronteiras e as relações sociais. Integrou o mercado e a economia em nível supranacional, difundiu conhecimento, tecnologia, comportamentos, projetos e ideias, e gerou um forte impacto nas instituições já consolidadas na sociedade. Na economia globalizada, o processo de produção deixa de ser em massa, tornando-se um processo unificado, organizado em escala planetária com o objetivo de aproveitar as vantagens comparativas de cada mercado local, regional ou nacional. Essa mudança, associada a uma subsequente ampliação das redes empresariais, comerciais e financeiras em escala mundial, que começam a atuar com certa independência dos controles políticos e jurídicos nacionais, deflagraram uma integração sistêmica da economia em nível supranacional (FARIA, 2004: 52). Este contínuo e acelerado processo de transformações tem resultado na perda de centralidade e de exclusividade das instituições políticas e jurídicas estatais no controle social. Os mecanismos públicos do Estado nacional já não são suficientes para resolver conflitos de natureza transnacional, envolvendo sujeitos submetidos a diferentes jurisdições. O Estado passa a ter sua soberania e autonomia decisória limitadas, e os atores estatais são obrigados a partilhar o cenário e o poder global com corporações transnacionais e organismos internacionais, que buscam alternativas à gestão econômica e social supranacional, além de movimentos políticos e sociais transnacionais (BECK, 1999, p. 71). Nesse contexto, o Direito, que no Estado moderno é reduzido à lei imposta pelos atores estatais, e, assim, aceita como superior a todas as demais fontes de normatividade, passa a ter seus conceitos, códigos e fundamentos questionados, em razão da falta de operacionalidade e funcionalidade diante dos desafios surgidos com a transnacionalização e desregulação dos mercados, com a privatização de empresas públicas, com o surgimento de novas estruturas de poder e novos padrões normativos, e com as mudanças na divisão social do trabalho decorrentes da globalização. 2 Nas relações de trabalho ocorreram profundas mudanças, como bem retrata o exemplo dos contratos de trabalho firmados por uma mesma corporação transnacional em diferentes lugares do mundo, com sistemas jurídicos diversos. Esta nova conjuntura trabalhista gera reflexos no ordenamento jurídico, na atuação sindical e na responsabilidade social corporativa, principalmente após o surgimento das corporações transnacionais, e a conseqüente transnacionalização das relações de trabalho. Estas transformações lançaram novos desafios ao Direito Internacional do Trabalho, tais quais a necessidade de internacionalização de normas do trabalho e a construção de uma governança social global das relações trabalhistas, considerando os novos atores sociais e as novas fontes de direito surgidas com o fenômeno da globalização (CRIVELLI, 2010, p. 9). Com o seu poder de intervenção reduzido, uma vez que não possui capacidade para regular situações que vão além das fronteiras nacionais, e as consequentes limitações políticas e jurídicas para disciplinar uma sociedade globalizada, o Estado foi constrangido a compartilhar sua titularidade de iniciativa normativa com diferentes atores, públicos e privados, cujas atuações transcendem o nível nacional, como os organismos internacionais, os blocos regionais, e as corporações transnacionais. Na seara do Direito Internacional do Trabalho, os instrumentos privados elaborados pelas corporações transnacionais, de forma unilateral ou com a participação de outros atores sociais, em uma espécie de autorregulação de suas atividades, têm merecido grande destaque, pela sua crescente utilização e aplicabilidade. Dentre estas normas privadas de regulação das relações de trabalho, os acordos globais decorrentes de negociações coletivas transnacionais têm se mostrado um importante instrumento no âmbito da regulamentação trabalhista. A negociação coletiva transnacional pode ser compreendida como uma espécie de regulação privada das relações de trabalho, decorrente da colaboração entre organizações de empregadores e de trabalhadores, que firmam regras a serem observadas no âmbito da empresa, ou de determinada categoria de trabalhadores, baseadas fundamentalmente nas normas das Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 3 Como instrumentos concretos da negociação coletiva transnacional, são celebrados os acordos globais, também chamados de acordos marco internacionais, de acordos quadros internacionais, ou, ainda, contratos coletivos globais, que, segundo definição da OIT, são instrumentos de negociação entre uma empresa transnacional e uma Federação de Sindicatos Internacionais, a fim de estabelecer uma relação contínua entre as partes e garantir que a empresa respeite os mesmos padrões sociais em todos os países onde atua (OIT, 2007). Diante da ausência de um regime legal trabalhista internacional, a negociação coletiva transnacional pode ser considerada um relevante instrumento de regulação e de pacificação social nos ambientes de trabalho. Entretanto, a utilização cada vez mais frequente e abrangente dessa norma privada trabalhista de caráter transnacional, tem suscitado questionamentos acerca de sua legitimidade e efetividade. Questiona-se ainda se essas normas asseguram, de fato, os direitos fundamentais dos trabalhadores, e se reforçam as políticas públicas nacionais, as enfraquece, ou, ainda, se podem ser conciliadas com as normas estatais. Neste irreversível processo de transnacionalização e desregulação dos mercados, e diante da crescente utilização de regulações privadas para disciplinar as relações de trabalho, mostra-se de grande relevância a análise da negociação coletiva transnacional e sua efetividade. Neste cenário, também se revela de extrema importância, a discussão acerca da crise paradigmática do Direito, e, especificamente, do Direito Internacional do Trabalho, fazendo-se mister também o estudo sobre a redefinição do papel regulador do Estado na sociedade globalizada, e, por conseguinte, no sistema jurídico internacional. Com esses propósitos, será feita, inicialmente, uma pesquisa acerca do impacto da globalização no sistema jurídico internacional, abordando a redefinição do papel do Estado na regulação social e a crise do Direito do Trabalho, decorrente, principalmente, da transnacionalização da produção e dos mercados, assim como das relações de trabalho, que pode ser apontada como a principal causa da crise do Direito Internacional do Trabalho. Nesse capítulo inicial, além de serem discutidas as causas e principais consequências da crise do Direito, e, de forma específica, do Direito Internacional do Trabalho, analisar-se-á também a emergência dos regimes regulatórios 4 privados e, ainda, o pluralismo jurídico, caracterizado pela diversidade de fontes de direito, diante da incapacidade do Estado de regular e disciplinar a sociedade em todos os seus variados aspectos e setores de forma exclusiva. Em seguida será analisada a negociação coletiva transnacional, a partir do conceito e principais fundamentos da negociação coletiva, até seu estudo no âmbito internacional, analisando o marco jurídico do instituto, assim como as principais dificuldades para sua aplicação e efetividade. Nesse capítulo também será feita uma breve análise do alcance das normas trabalhistas coletivamente negociadas nos blocos regionais Mercosul e União Europeia. O capítulo final destina-se ao estudo dos acordos globais, instrumentos concretos das negociações coletivas transnacionais, onde se pretende discorrer sobre o surgimento e desenvolvimento da negociação coletiva internacional dentro das corporações transnacionais, que deram origem aos mencionados acordos. Serão discutidos os temas abordados nesses acordos e seus parâmetros legais, a sua importância para empresas e trabalhadores, e, ao final, far-se-á uma análise quantitativa e qualitativa desses instrumentos de negociação e uma breve avaliação do seu impacto nas relações laborais transnacionais. 5 2. A GLOBALIZAÇÃO E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO 2.1 A GLOBALIZAÇÃO E A REDEFINIÇÃO DO PAPEL DO ESTADO A história jurídica moderna foi moldada pela política, e caracteriza-se, primordialmente, pela estatalidade do direito. A classe burguesa, tendo conquistado o poder no século XIX, concentrou o monopólio da lei nas mãos do Estado, fazendo dele o legítimo e único criador das normas jurídicas. A lei pública, sujeita à manifestação da vontade suprema do Estado, tornou-se superior às demais fontes de normatividade, constituindo-se em manifestação da autoridade e da soberania estatal. Dessa forma, a ordem jurídica moldada exclusivamente pelo Estado foi, aos poucos, dissociando-se dos fatos sociais e econômicos que se mantiveram em contínua transformação (GROSSI, 2009, p. 158). Ainda no início do século XX começou a aflorar a insatisfação de diferentes grupos sociais (como sindicatos e grupos industriais)com o aparelho estatal e suas limitações. A soberania interna do Estado passou a ser questionada, discutindo-se, a partir de então, uma crise do Estado. Mais recentemente, com a criação de poderes públicos internacionais que, ainda que instituídos pelos Estados, passaram a lhes impor limitações – como os decorrentes da constituição da União Europeia – mais uma vez passou-se a discutir a questão. (Cassese, 2010, p. 13-14) Atualmente continua-se a debater a crise estatal, mas sob um novo prisma, o da inadequação dos serviços estatais em relação às expectativas dos cidadãos e da sociedade. A atual situação tem ensejado um número cada vez maior de privatizações e concessões de atividades estatais a sujeitos privados, reduzindo, assim, o papel do Estado. (Cassese, 2010, p. 13-14) Partindo da análise desses fatos, Sabino Cassese define a crise do Estado como uma “perda de unidade do maior poder público no contexto interno e perda de soberania em relação ao exterior” (Cassese, 2010, p. 14). Internamente tem se percebido que os grupos civis, muitos de natureza privada, têm conquistado importante espaço na regulação das atividades que desenvolvem, atendendo de forma mais 6 adequada e eficiente aos anseios das categorias representadas. No âmbito externo, as contínuas transformações ocorridas na sociedade levaram à expansão de transações sociais e econômicas, que ultrapassaram as fronteiras nacionais, surgindo, a partir de então, a necessidade de ordenamentos públicos globais, que se mostrassem capazes de disciplinar as novas relações transfronteiriças. Assim, os Estados passam a ter que lidar com uma nova realidade, remodelada a partir do momento que suas relações econômicas e sociais começam a transcender suas fronteiras físicas e suas imposições internas, tendo que conviver com novos sujeitos reguladores, que surgiram durante o processo de globalização. Tais fatos vêm afetando profundamente o papel do Estado, especialmente na sua função regulatória. Para uma melhor compreensão desse processo de globalização, destaca-se a definição do fenômeno por José Eduardo Faria: Integração sistêmica da economia em nível supranacional, deflagrada pela crescente diferenciação estrutural e funcional dos sistemas produtivos e pela subsequente ampliação das redes empresariais, comerciais e financeiras em escala (FARIA, 2004: 52). Trata-se de um processo de integração econômica, comercial e financeira com alcance supranacional, que ultrapassa os limites de atuação do Estado, e que conta com a participação de corpos e movimentos públicos e privados, no qual o poder estatal de controle e gestão é reduzido e compartilhado com os novos atores privados que ganharam maior espaço e relevância na economia globalizada. Sabino Cassese traz a mesma ideia, em termos mais específicos: A globalização consiste em desenvolvimento de redes de produção internacionais, dispersão de unidades produtivas em diferentes países, fragmentação e flexibilidade do processo de produção, interpenetração de mercados, instantaneidade dos fluxos financeiros e informativos, modificação dos tipos de riqueza e trabalho e padronização universal dos meios de negociação (CASSESE, 2010: 25). Diante desta nova realidade, caracterizada principalmente pela desterritorialização das atividades econômicas, o Estado passou por um processo de redefinição da sua soberania e do seu papel. 7 A soberania, um dos pilares da moderna concepção do Estado-Nação, sofreu mudanças no seu conceito desde o século XV até o momento atual. No final do século XV, quando surgiu o atual conceito de Estado, mesma época em que ocorria a luta pela autonomia política do Estado moderno contra a ingerência da igreja nos assuntos de interesse público, a soberania se caracterizava pela unicidade e exclusividade do poder estatal na política, sem submissão a nenhum outro poder (Miranda, 2004: 87). Ainda nesse período, Jean Bodin e Thomas Hobbes, os primeiros autores a estudarem os contornos da soberania, enfatizaram no seu conceito o monopólio do poder legislativo do Estado: poder de criar e revogar as leis; e o monopólio do uso da força ou coerção física: poder de impor comportamentos específicos aos membros da sociedade; na tentativa de conceber novos mecanismos para criar e manter a coesão política e social. (Miranda, 2004: 87). Nesse mesmo sentido foi firmado o conceito de Hermann Heller, segundo o qual: A soberania consiste na capacidade, tanto jurídica, quanto real, de decidir de maneira definitiva e eficaz todo conflito que altere a unidade da cooperação social territorial, inclusive contra o direito positivo, se necessário, além da capacidade de impor a decisão a todos, não só aos membros do Estado, mas, em princípio, a todos os habitantes do território. (HELLER, 1995 apud MIRANDA, 2004, p. 87). O conceito de Hobbes, de uma soberania absoluta, sem limitações, foi profundamente transformado durante os séculos seguintes, especialmente no século XVIII, quando Rousseau definiu soberania como a “expressão da vontade geral do povo, e não mais como atributo exclusivo do Estado ou do soberano” (Rousseau, 1953 apud Miranda, 2004: 88), e quando, também, eram discutidas as propostas de constituição de um balanço no Poder Republicano - até então único e exclusivo - em torno dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Tendo prevalecido esta perspectiva, o Poder Legislativo tornou-se o mais importantes dos poderes políticos, por expressar a vontade geral do povo por meio da eleição de seus representantes no Parlamento, consolidando um novo conceito de soberania, com grande alcance na ordem interna (Miranda, 2004: 88). A partir dessa perspectiva, Jurgen Habermas analisou a questão da soberania dos Estados-Nação, destacando três processos que, no seu entendimento, poderiam 8 comprometer a capacidade de ação soberana do Estado. O primeiro seria a perda de capacidade de controle estatal, que, nas palavras do autor, significa: “que o Estado isolado não é mais suficientemente capaz, com suas próprias forças, de defender seus cidadãos contra efeitos externos de decisões de outros atores ou contra os efeitos em cadeia de tais processos, que têm origem fora de suas fronteiras” (HABERMAS, 1999). Os outros dois processos apontados pelo autor como possível ameaça à soberania do Estado são “os crescentes déficits de legitimação no processo decisório”, uma vez que, com a interdependência e alianças interestatais, não mais há coincidência entre o círculo daqueles que tomam parte na decisão democrática com o círculo daqueles que são afetados por essas decisões; e, ainda, “a progressiva incapacidade de dar provas, com efeito legitimador, de ações de comando e de organização”, decorrente da restrição da capacidade interventiva do Estado, principalmente por força da desnecessidade da presença nacional do capital, que está sempre em busca de possibilidades de investimento e ganhos especulativos, e pode utilizar suas opções de retirada como uma ameaça ao Estado que priorize padrões sociais que possam onerar a manutenção dos recursos no território nacional, de forma que, nos termos utilizados pelo filósofo, “os governos nacionais perdem, assim, a capacidade de esgotar os recursos tributários da economia interna, de estimular o crescimento e, com isso, de assegurar bases fundamentais de sua legitimação” (HABERMAS, 1999). Os reflexos destes processos afetaram significativamente a relação entre economia e Estado, principalmente nos últimos vinte e cinco anos. O Estado, que antes detinha o controle da economia (cunhando moedas, controlando as importações, etc.) passa a submeter-se às imposições econômicas, às regras do mercado, adaptando-se à economia-mundo1, onde uma mesma empresa multinacional possui sede, estabelecimentos produtivos e clientes em diferentes nações. Se antes o Estado guiava a economia, agora ele deve adaptar-se a ela, corrigindo as tendências do mercado, 1 Caracterizada pela produção em escala planetária, fragmentada e geograficamente dispersa, na qual são aproveitadas as vantagens comparativas de cada mercado (FARIA, 1999, p.86-87). 9 exercendo apenas um poder relativo em relação à economia. (CASSESE, 2010, p. 4547) A velocidade com que ocorre a integração dos mercados na chamada economiamundo também reduziu a capacidade de coordenação macroeconômica dos Estadosnação. Com a maior interconexão das estruturas empresariais e dos sistemas financeiros, e a formação dos grandes blocos comerciais regionais, que se converte em efetivos centros de poder, o sistema político perde sua exclusividade na organização da sociedade, e passa a absorver as limitações impostas pelos agentes econômicos, e a conviver com uma ordem cada vez mais auto-organizada e autorregulada (FARIA, 2004: 35). Forjaz analisa o declínio do Estado nacional, enumerando as instituições transnacionais (ou supranacionais) e infranacionais (ou subnacionais) que passaram a competir com o Estado, enfraquecendo-o em suas funções públicas primordiais de regulação social. Primeiramente são citadas as instituições externas, que atuam em âmbito mais amplo que o do Estado nacional, e passam a exercer funções governamentais e produzir normas que se impõem aos Estados, passando a constituir uma nova soberania externa, um poder novo que constrange, e limita, o poder do Estado. Trata-se das organizações multilaterais, tais quais a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio (OMC), e Fundo Monetário Internacional (FMI); dos blocos regionais, entidades supranacionais que destacam grupos de nações que estabelecem normas próprias; das empresas transnacionais, que transcendem as fronteiras dos Estados nacionais e operam em busca de mercados atraentes, não condicionados por razões de Estado; e do fluxo contínuo do capital financeiro e da rede global das comunicações, que não observam as fronteiras nacionais, não tendo o Estado condições de controla-los. (FORJAZ, 2000: 42) Entidades subnacionais e forças centrífugas também corroem a autoridade do Estado internamente, como o tribalismo e o fortalecimento dos níveis de poder infranacional como municípios ou províncias, cada vez mais autônomos. O tribalismo caracteriza-se pelo surgimento de novos grupos sociais definidos por etnia, religião, gênero, cultura e até mesmo idioma, cuja identidade tem uma abrangência menor que o 10 Estado nacional, pressionando-o para conseguir maior autonomia. Esses movimentos fazem com que o Estado nacional perca relevância e nitidez como definidor de identidade social, cultural e política. Concomitantemente, o Estado vem sofrendo processos de descentralização política decorrentes do fortalecimento dos níveis subnacionais de poder dos municípios, cujas políticas públicas afetam diretamente a vida dos cidadãos, de forma mais evidente e significativa que as políticas de âmbito nacional. (FORJAZ, 2000: 45) Verifica-se ainda a criação de novos grupos a partir da rede de contatos e organização dos indivíduos com interesses comuns na seara econômica, política, social ou profissional (com ou sem interferência do Estado) que começam a buscar soluções mais eficientes para atender a seus interesses, agindo como novos núcleos de regulação. O mesmo acontece com grupos de países com identidade de interesses que se organizam para atender às suas demandas de forma conjunta. As regras estatais passam a concorrer com disciplinas bilaterais, multilaterais e supranacionais, decorrentes de contratos, convenções e integrações regionais. Percebe-se, portanto, que o Estado não mais determina, de forma isolada, os rumos da economia. Na economia globalizada, vários outros corpos públicos autônomos passam a afetar conjuntamente as decisões econômicas, como os organismos internacionais, os blocos regionais e as instituições supranacionais e infranacionais. Até mesmo outros países passam a ter influência sobre a economia interna dos demais países. Há um enfraquecimento do papel dirigista do Estado e uma fragmentação interna do controle público da economia privada, que produz um desequilíbrio entre o Estado e a economia (CASSESE, 2010: 50-52). Nesse novo contexto sócio-econômico, embora o Estado continue a exercer sua autoridade nos limites do seu território, percebe-se materialmente limitado em sua autonomia decisória, não conseguindo mais estabelecer e realizar seus objetivos por sua exclusiva vontade (FARIA, 2004, p. 23). Ao tornar-se vulnerável à disciplina estabelecida por decisões econômicas realizadas em outros lugares, por pessoas, grupos empresariais e instituições sobre as quais não exerce poder de controle, o Estado-Nação reformou e redimensionou suas estruturas administrativas, políticas e jurídicas por meio de processos de 11 deslegalização2 e privatização. Esses foram formulados e justificados em nome da governabilidade e da inserção da economia nacional na economia transnacionalizada, dentre outros motivos de mesma natureza. Com esse redimensionamento, as estruturas administrativas, políticas e jurídicas do Estado-Nação passam a exercer novas funções. Deixam de atuar como centros privilegiados de direção, deliberação e imposição de comportamentos obrigatórios, passando a atuar como mecanismos de coordenação, de adequação de interesses e de ajustes pragmáticos. (FARIA, 2004: 37) E não só na economia se verifica o arrefecimento da autoridade do Estado e impacto na sua soberania. A tecnologia, imprensa e telecomunicações, que já foram instrumentos do Estado, atualmente transcendem a seus controles e lhes impõe limitações. Os indivíduos podem comunicar-se por meio das redes eletrônicas, relações diretas entre si, instituição de redes, associações e grupos internacionais, sem a interferência dos poderes públicos, como bem demonstram as organizações não governamentais de âmbito internacional. As organizações não governamentais atualmente exercem papel efetivo na produção de norma legal. Muitas delas têm status de órgão consultivo oficial. Muitas são formalmente convidadas a assistirem sessões plenárias de várias assembleias, para troca de informações, e até mesmo para colaborar na elaboração de relatórios de certas comissões e comitês governamentais de especialistas (ARNAUD, 1997: 33-34). Como exemplo pode ser destacada a organização não governamental Transparência Internacional, que desenvolve ferramentas para combater a corrupção e trabalha com outras organizações, empresas e governos para implantá-las3. Outras associações, locais e internacionais, também estão surgindo, com a intenção de intervir na produção normativa para atingir seus objetivos específicos. É o caso dos sindicatos laborais internacionais, que buscam a melhoria das condições de trabalho de determinada categoria profissional na esfera regional ou no âmbito de uma empresa multinacional por meio de negociações coletivas transnacionais, objeto do presente estudo, ou participando da elaboração de códigos de conduta de âmbito internacional. 2 Fenômeno que tira determinadas matérias do controle regulatório legislativo (por meio de leis) e as entrega ao controle regulamentar do poder executivo (por meio de decreto ou portaria). 3 http://www.transparency.org/ 12 Sob o prisma Arnaud, mais que uma questão de fragilidade da soberania estatal, verifica-se uma erosão da autoridade dos governos, devido, entre outras coisas, à porosidade das fronteiras, à dificuldade de controlar os fluxos transfronteiriços monetários, de bens e informações, e aos avanços tecnológicos. Os governos passaram a sofrer pressão tanto externa, resultado do processo de globalização, como interna, por força dos movimentos sociais localmente enraizados (ARNAUD, 1997: 1314). Ainda assim, Arnaud aponta um paradoxo entre o processo de globalização e a redução do papel do Estado. O jurista ressalta que o Estado ainda é a ferramenta mais eficaz para garantir a melhor regulamentação possível no atual contexto social e econômico resultante da globalização, principalmente por meio da adoção e execução de políticas públicas que, por exemplo, podem melhorar o funcionamento do mercado e proteger as classes sociais mais vulneráveis (ARNAUD, 1997: 26). Para uma melhor visualização desse paradoxo, o autor destaca que, embora a globalização permita que os sindicatos possam negociar coletivamente, e diretamente, com as empresas os salários e condições de trabalho da categoria, é o Estado que limita as prerrogativas e afirma os direitos de cada um, bem como estabelece normas de higiene e segurança cuja aplicação os sindicatos vão controlar. Desta forma, o Estado garante a participação da sociedade civil, de forma equânime, na produção de normas reguladoras, embora se revele, em princípio, enfraquecido pelo surgimento de vários centros de controle de decisão de regulação. (ARNAUD, 1997: 26) Deste modo, a primeira alternativa continua sendo a busca pela proteção do Estado. Uma vez que esse não mais se mostra capaz de prover todas as demandas da sociedade, buscam-se novas soluções, que não dependam da atuação estatal. Nesse contexto, percebe-se a emergência de movimentos civis, que surgem como novos sujeitos na tomada de decisões políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais com os quais já não se pode deixar de contar (ARNAUD, 1997: 32). 13 2.2 O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO INTERNACIONAL Para os juristas, globalização significa a ruptura do monopólio e do rígido controle estatal do direito (Grossi, 2009: 160). O direito deixa de advir tão somente do Estado, e passa a contar com uma pluralidade de fontes. A globalização, na perspectiva jurídica, enfraqueceu a capacidade de regulamentação dos governos; transformou as estruturas hierarquizadas das atividades empresariais em organizações sob a forma de redes, baseadas em parcerias, cooperação e relações contratuais flexíveis; e gerou novas situações sociais originais e diferenciadas, exigindo novos padrões de responsabilidade, controle e segurança. O fenômeno mudou também o perfil e a escala dos conflitos, tornando ineficazes as normas e mecanismos processuais tradicionalmente utilizados pelo direito positivo para dirimi-los. A globalização redefiniu o tamanho, o peso e o alcance das funções e papeis do Estado, ensejando novas formas de ação política e novos modelos de legalidade. (FARIA, 2004: 8-9) Na atual e complexa ordem socioeconômica, continuamente transformada pela globalização, o direito positivo tem se revelado ineficaz, surgindo regras espontaneamente geradas nos diferentes ramos e setores da economia para atender às suas necessidades especificas. A crescente interdependência mundial provocou a desterritorialização das relações sociais, o que intensifica as reivindicações por direitos de natureza supranacional que provocam uma relativização do papel do Estado-nação, que tem como um de seus traços característicos a territorialidade como unidade privilegiada de interação (FARIA, 2004: 15). Desta forma, as instituições jurídicas do Estado-nação são progressivamente reduzidas no tocante ao número de normas e diplomas legais, tornando-se, entretanto, mais ágeis e flexíveis em termos processuais. O Estado manteve sua produção legislativa nas mais diversas matérias mas, diminuído em seu poder de intervenção e, muitas vezes, constrangido a compartilhar sua titularidade de iniciativa legislativa com diferentes forças que transcendem o nível nacional, tem que restringir-se, em muitas situações, ao papel de articulador e controlador da “autorregulação”, das normas produzidas pelos próprios interessados para atender às suas demandas, ou ainda, das normas elaboradas no seio das organizações financeiras e empresariais transnacionais, 14 no âmbito da economia-mundo, sob a forma de manuais de produção, regulamentos disciplinares, códigos de conduta e contratos padronizados com alcance mundial (FARIA, 2004: 141). Surgem ainda os poderes públicos internacionais, a exemplo dos Correios, e revela-se o poder regulador de organismos idealizados como fórum de debate, negociação e acordos, tal qual a Organização Mundial do Comércio, que passam a questionar o modelo estadocêntrico. (CASSESE, 2010: 65). Os atores privados, que exercem o poder econômico, passam a ser produtores de direito, em um processo que ocorre fora dos contornos estatais, além do Estado, sem que haja a necessidade de desconstituição das estruturas jurídicas tradicionais, que passam a ser consideradas conjuntamente com o auto ordenamento da sociedade. O forte vínculo entre o direito e a vontade política que prevaleceu no Estado moderno, mostra-se enfraquecido diante do domínio das forças econômicas, que impõem outras fontes de produção legal. O Direito estatal já não se mostra mais compatível com a rapidez e flexibilidade da construção da economia capitalista, já global. (GROSSI, 2009: 160) A estrutura social busca se auto-ordenar. O ordenamento jurídico passa a ser uma escolha, na busca da melhor tutela, do direito menos severo ou mais conveniente. Há uma substituição do monismo estatal, e sua organização compacta, por um conglomerado de direitos, que se mostram, por vezes, incompatíveis, mas providos de normas de conflito, que indicam que normas devem ser aplicadas ao caso concreto. Nota-se um modo diferente de estabelecer as relações entre o público e o privado. Estas relações deixam de ser bipolares e tornam-se multipolares. Uma empresa nacional pode desenvolver parcerias com uma administração supranacional, com o apoio, ou até mesmo em oposição, à administração nacional, conjuntamente com outros agentes econômicos do mesmo país ou de outros países. Não há superioridade do público sobre o privado. O Estado e o mercado, antes considerados mundos separados e em oposição, apresentam-se como entidades que se interpenetram (CASSESE, 2010: 143-144). A efetividade passa a prevalecer sobre a validade. O modelo centralizado e autoritário perde espaço para novos modelos jurídicos que, em sua informalidade e 15 flexibilidade, expressam as exigências concretas da vida cotidiana, nos diversos tempos e lugares (GROSSI, 2009: 162). Segundo Teubner, “na via da globalização, a política foi claramente ultrapassada pelos outros sistemas sociais” (TEUBNER, 2003: 12). Verifica-se que a nova racionalidade jurídica, que surge com o fenômeno da globalização econômica, resulta da constante tensão entre o processo de harmonização e padronização global de importantes áreas e ramos do direito positivo nacional e a proliferação de regras elaboradas por grandes conglomerados empresariais e financeiros transnacionais e por organismos que criam normas técnicas para atender a exigências mínimas de segurança e qualidade dos bens e serviços em circulação, dentre outras regulações privadas. (FARIA, 2004: 148-149) Essa racionalidade jurídica exige do Estado-nação novos papéis de intermediação para regular as relações sociais decorrentes das interconexões entre as instituições financeiras internacionais e as corporações empresariais transnacionais, em que a colaboração dos novos sujeitos políticos e agentes econômicos é impreterível. Dessa nova realidade descentralizadas, vão resultar procedimentais e instituições facilitadoras, em jurídicas essencialmente oposição às instituições centralizadoras do Estado intervencionista. Instituições concebidas para evitar a eclosão de conflitos, e que se limitam a neutralizar eventuais disfunções do mercado, voltadas à coordenação dos particularismos jurídicos, dos microssistemas normativos com ritmos próprios de desenvolvimento e das diferentes formas de legalidade desenvolvidas no interior das inúmeras cadeias produtivas que constituem a economia globalizada (FARIA, 2004: 148-149). No cenário internacional passa a haver uma prevalência da soft law, que nas didáticas palavras de Marcos Valadão, pode ser entendida nos seguintes termos: Normas editadas pelas associações e organizações internacionais, de caráter público ou privado, para as quais se reconheça força normativa e que possam ter efeito na formação de atos jurídicos com efeitos internacionais, de caráter pessoal, real ou comercial entre as partes ou particular (VALADÃO, 2003: 16). As referidas normas destacaram-se com o surgimento das organizações multilaterais e organizações internacionais, públicas e privadas, ganhando força no início do século XX, quando adotadas pelas instituições de Bretton Woods, passando a 16 exercer forte influência nas relações internacionais, produzindo efeitos jurídicos, ainda que com grau de cogência relativo. Ainda que não gerem formalmente sanções clássicas do Direito Internacional, geram outras modalidades de sanção, excluindo do mercado ou da comunidade internacional aqueles que não adotam seus preceitos (VALADÃO, 2003: 08). A forte influência da soft law, principalmente nos assuntos de comércio e economia internacional, se deu em razão do vazio normativo no tocante à disciplina e regulamentação destas matérias. O mercado passou a prescindir de uma padronização em diversos temas, uniformização de procedimentos e formatação de dados para troca de informações, encontrando na soft law uma forma de viabilizar as transações econômicas e comerciais em nível global (VALADÃO, 2003: 11). A globalização econômica fez surgir a necessidade de novos instrumentos jurídicos capazes de disciplinar as atuais questões econômicas e sociais que ultrapassam os limites territoriais de um Estado. Trata-se de uma economia global, que requer um direito novo, no qual as prerrogativas dos atores econômicos transnacionais possam ser tuteladas, ainda que por contratos ou convenções, e no qual as controvérsias transfronteiriças possam ser dirimidas, não por juízes do Estado e por sentenças judiciais de competência limitada, mas por meio de decisões arbitrais emitidas por julgadores privados escolhidos ou aceitos pelas partes. Com a crescente importância das normas supra e infranacionais, o Estado Nacional perde o monopólio de promulgar regras, o que resulta em uma crescente privatização da regulação jurídica em um direito primordialmente procedente de negociação privada. adaptar à evolução Nesse contexto, o Estado não tem se mostrado capaz de se da sociedade contemporânea, cabendo-lhe, no âmbito internacional, o papel de controle da conformidade dos procedimentos de negociação (RUDIGER, 2006: 78). Diante da ineficiência do Estado na regulação e disciplina da sociedade, nos seus mais diversos setores e atividades, proliferam novas e diferentes fontes de direito com o escopo de regular as diversas relações sociais, políticas, econômicas, ambientais e culturais surgidas principalmente em decorrência do processo de globalização, emergindo um cenário internacional caracterizado pelo pluralismo jurídico. 17 2.3 A EMERGÊNCIA DOS REGIMES REGULATÓRIOS PRIVADOS Evidenciada a incapacidade do Estado para disciplinar as relações cada vez mais complexas que ultrapassam as fronteiras físicas de seus territórios, percebe-se um movimento das organizações privadas e sociedade civil na busca de novas formas de regulamentação de suas condutas e transações, a fim de tornar possível a manutenção da ordem social em vários setores no âmbito supranacional. O papel que, até então, parecia ser função exclusiva do direito produzido pelos Estados (ordenar a sociedade, por meio de regras, de forma a garantir a paz social)passa a ser exercido por diferentes campos sociais no âmbito privado, de forma coerente e específica, que revelam, muitas vezes, grau de eficácia superior ao experimentado pelas normas públicas, produzidas pelos entes estatais, regulando situações para as quais até então não havia solução jurídica possível e eficaz. O fenômeno é mais facilmente compreendido quando se traz à baila o mais clássico dos exemplos de regulamentação privada bem-sucedida: a Lex Mercatoria4.Esse novo conceito representa uma parte do direito econômico global que opera na periferia do sistema jurídico atrelado estruturalmente às empresas e transações econômicas globais, concebido como um ordenamento jurídico paralegal, criado à margem do direito, a partir dos processos econômicos e sociais (Teubner, 2003: 18). Inobstante a natureza econômica do exemplo citado, o processo de globalização, embora normalmente seja discutido sob o prisma da política e da economia, engloba outros espaços sociais, como a educação, sistema de saúde e cultura, que percorrendo seus caminhos específicos no processo de globalização, começaram a demandar normas específicas de âmbito global, que passaram a ser constituídas no seio de organizações intergovernamentais ou não governamentais. Esse fenômeno ensejou uma crescente produção de direito substantivo sem a participação do Estado, sem necessárias interações com a legislação nacional ou tratados internacionais, 4 Lex Mercatoria pode ser definida como “um conjunto de procedimentos que possibilita adequadas soluções para as expectativas do comércio internacional, sem conexões necessárias com os sistemas nacionais e de forma juridicamente eficaz” (Strenger, Irineu, Direito do comércio internacional e lex mercatoria. São Paulo: LTR, 1997) 18 decorrentes de necessidades originais de segurança jurídica e regulação para solução de conflitos que ultrapassem as fronteiras estatais (TEUBNER, 2004: 2). Percebe-se, então, um nítido deslocamento do foco do processo legislativo estatal (por meio dos Poderes Legislativo e Judiciário), para um processo de produção normativa privado, manejados por meio de contratos entre os atores sociais globais, da regulação do mercado privado por meio de empresas multinacionais, e da regulamentação interna de organizações internacionais, que passam a constituir, segundo Gunther Teubner, as atuais fontes dominantes de lei. Estas fontes normativas, por estarem mais próximas de outros setores sociais, fazem surgir uma legislação periférica, espontânea e social. Nesse contexto, as fontes centrais de direito, no âmbito internacional, passam a ser a regulação privada, uma vez que o Estado nação não possui condições de estender o alcance das normas públicas à regulamentação legal das atividades sociais de atores privados em escala mundial (TEUBNER, 2004: 03-04). Flávia Donadelli, fazendo referência a David Levi-Faur, também destaca a importância do papel exercido pelos atores da iniciativa privada. Levi-Faur define esse fenômeno como “capitalismo regulatório”, apontando as particularidades que o caracterizam: nova divisão de tarefas regulamentadoras entre Estado e sociedade; aumento da delegação de questões à comunidade científica; e a proliferação de novas tecnologias de regulamentação, com a formalização de mecanismos auto regulatórios sem a interferência estatal. Segundo o mesmo autor, a regulamentação exercida pelos atores privados legitima o sistema econômico capitalista neoliberal e torna as relações econômicas mais confiáveis em um ambiente que necessariamente envolve mais riscos. (LEVI-FAUR, 2005: 2 apud DONADELLI, 2011: 6) Deste modo, ante a inexistência de um organismo político global capaz de institucionalizar uma esfera organizada de “decisão legal política”, surgem crescentemente, ainda que de forma descentralizada, novos corpos de normas privadas para setores sociais específicos, de forma não hierarquizada, mas espontaneamente coordenados (TEUBNER, 2003). A esse fenômeno de produção de ordenamentos jurídicos globais sui generis por setores distintos da sociedade mundial com autonomia relativa diante do Estado-nação, Teubner deu o nome de “Bukowina global”, transmitindo a ideia de um “direito mundial 19 sem Estado” (TEUBNER, 2003: 10), como resta caracterizado nos corpos normativos elaborados por grupos empresariais multinacionais, e em torno dos direitos humanos e do direito ambiental, que requerem normas específicas de alcance mundial, assim como na área da padronização técnica e do autocontrole profissional, onde há forte tendência à coordenação em escala mundial (TEUBNER, 2003: 10). No entanto, esses ordenamentos jurídicos não estatais são constantemente questionados. Suas atividades não têm necessariamente como base legislação nacional, supranacional ou internacional; não há um locus central de autoridade; muitas vezes não existem estruturas claras como tribunais, comissões legislativas, auditores ou ouvidores; não possuem limites jurisdicionais claros; e não requerem um conjunto facilmente identificável de potenciais participantes democráticos em seus processos (BLACK, 2008: 138-139). A proposição ou criação de um novo regime regulatório ou outra estrutura organizacional, especialmente quando isso se dá à margem do Estado, vem sempre acompanhada do enorme desafio concernente à aceitação pelos destinatários e adequação da atividade para sua validade no ordenamento social. Parte daí a necessidade de legitimidade das regulamentações não estatais transnacionais, para fortalecer seus mecanismos, e motivar seus destinatários. Ainda que essa pretensão esteja dissociada de qualquer intervenção dos Estados, que mais facilmente poderiam conferir-lhes um viés de legitimidade, Suchman (1995) defende que esta legitimidade pode ser conquistada por meio das seguintes estratégias de construção de legitimidade: a) conformação da regulação privada ao ambiente e ditames preexistentes, mantendo-se de acordo com os ideais e princípios do ambiente em que é instituído, quando se busca atender as necessidades substanciais de vários setores da população e oferecer a esses, acesso à tomada de decisões; b) a seleção do ambiente por meio do qual o regime ou organização escolhe o ambiente que lhe seja mais adequado e possa conceder-lhe legitimidade sem exigir muitas mudanças em troca; e por fim, c) a manipulação do ambiente, reservada aos regimes mais inovadores, para os quais as estratégias conformistas ou de seleção de ambiente não são suficientes, sendo necessário intervir preventivamente no ambiente cultural para desenvolver bases de apoio especificamente adaptados às suas necessidades 20 específicas, manipulando assim o ambiente no qual pretende estar inserida. Essa hipótese exige a promoção ativa de novas explicações da realidade social por parte daqueles que buscam a legitimidade (SUCHMAN, 1995: 587-592). Discute-se ainda a questão de um possível “déficit democrático” dos regimes privados. O nível de democracia de um regime varia de acordo, dentre outras coisas, com as relações que tem com os governos nacionais; com os fundamentos utilizados para elaboração das regras estabelecidas – se são elaboradas a partir de princípios consagrados na lei ou se são elaborados sem qualquer relação com normas legais ou princípios já consagrados; e com a possibilidade de participação dos destinatários das normas em seu processo de elaboração (BLACK, 1995: 13). Para contrabalancear um possível “déficit democrático”, normalmente os regimes ou organizações privadas buscam aprofundar sua eficácia e a capacidade resolutiva dos seus mecanismos regulatórios. Percebe-se, portanto, que a legitimidade não é característica exclusiva dos regimes regulatórios estatais. Pode ser construída pelos regimes privados, e, em algumas circunstâncias, delegadas ou concedidas a esses pelos próprios Estados, que se vêem impossibilitados de atuar em determinadas esferas de poder. Não obstante a possibilidade de aquisição de legitimidade, e a reconhecida importância dos regimes regulatórios privados na disciplina de questões supranacionais (em face da mencionada incapacidade dos Estados na regulamentação da economia e de outros importantes setores em uma sociedade globalizada) ainda são muitas as críticas que vêm sendo feitas aos mecanismos de regulação privada. As principais críticas giram em torno da benevolência atribuída aos autores de tais regulamentações, quando é ressaltado o fato de que tais mecanismos estão extremamente expostos à possibilidade de captura por interesses especiais, contrários ao interesse público, o que enseja uma análise mais cautelosa destes mecanismos privados. Outra crítica comum diz respeito ao caráter voluntário de adesão às regras privadas, sem que possuam força coercitiva, e ao já citado deficit democrático que possa tornar questionáveis alguns regimes regulatórios privados (DONADELLI, 2011: 8). 21 A despeito das críticas apontadas, a incapacidade regulatória do Estado, na seara internacional, associada à conduta das organizações privadas na construção da legitimidade de seus regimes regulatórios, tem feito com que diversas iniciativas privadas de regulação sejam aceitas, praticadas e consideradas legítimas por seus destinatários, o que se constata nas empresas de certificação técnica e socioambiental, internacionalmente reconhecidas, bem como na crescente adoção de acordos globais de trabalho, decorrentes de negociações coletivas transnacionais, que passam a regular relações de trabalho de âmbito internacional, no seio das corporações transnacionais. Constata-se, portanto, que a sociedade globalizada passa por um momento de transição social, com o surgimento de novos regimes regulatórios de iniciativa privada, que, embora pacificamente aceitos e incorporados pelos vários setores sociais a que se destinam, suscitam dúvidas e questionamentos quanto à legitimidade, ainda que em grau cada vez menor. 2.4 O PLURALISMO JURÍDICO Na atual conjuntura social percebe-se que o Estado tem renunciado algumas prerrogativas do seu poder soberano, diminuindo o controle exercido sobre assuntos econômicos, políticos e legais, sujeitando-se a uma autoridade superior, como ocorre na União Europeia. Além disso, por uma forte pressão dos competitivos mercados globais, os Estados têm perdido sua capacidade de guiar e proteger sua economia. Percebem-se ainda, na sociedade contemporânea, evidentes sinais de diminuição das funções legais tradicionais do Estado (TAMANAHA, 2007: 386-387). Nos termos já expostos, para suprir a falta de regulamentação legal estatal, muitas organizações e instituições privadas elaboram regras que se aplicam às suas próprias atividades. Em situações de conflitos, muitas vezes as partes conflitantes recorrem a arbitragens, temendo a ineficiência, falta de credibilidade e altos custos dos Tribunais do Estado. Favelas, comuns em grandes cidades ao redor do mundo, têm se organizado com pouca ou nenhuma presença legal oficial, e mantém a “ordem” utilizando-se de outras normas e mecanismos sociais criados por seus moradores. 22 Essas situações caracterizam a atual face do pluralismo jurídico (TAMANAHA, 2007: 386-387). Pluralismo jurídico existe sempre que os atores sociais identificam mais de uma fonte de direito dentro de uma mesma arena social (TAMANAHA, 2007: 396). Ainda que haja intenso debate entre pesquisadores sobre o conceito de direito para fins de definir o alcance do pluralismo jurídico, a ideia que prevalece é a do direito como algo mais abrangente que a lei produzida pelas instituições estatais. Ehrlich entende que o direito é fundamentalmente uma questão de ordem social, que pode ser encontrado em todos os lugares (EHRLICH, 2007: 24 apud DUPRET, 2007: 5). Woodman afirma que o direito abrange um contínuo que vai da forma mais clara da lei estadual até as mais vagas formas de controle social (WOODMAN, 1998 apud DUPRET, 2007: 5). Griffiths conclui ser o direito a autorregulação de cada área social (GRIFFITHS, 1986 apud DUPRET, 2007: 5). Dupret aduz que a lei é determinada pelas pessoas na área social em que vivem através de seus próprios usos comuns (DUPRET, 2007: 5). Teubner, em referência a Griffiths, compartilhando do mesmo entendimento, assinala que o atual pluralismo jurídico tende a substituir o fator propriamente jurídico pelo controle social (GRIFFITHS, 1986, p. 50, nota 41 apud TEUBNER, 2003: 19). O fato é que o pluralismo jurídico está em toda parte, sempre que se reconhece mais de uma fonte normativa por meio de práticas sociais em uma determinada área social. É o que se verifica em todos os campos sociais, uma aparente multiplicidade de ordens jurídicas, desde o nível local, dentro de um município, até o nível mundial. Somados às leis municipais, estaduais, distritais, nacionais, internacionais e transnacionais, convive-se atualmente com regras advindas da religião, e normas de cunho cultural ou étnico, como as regras observadas nas aldeias indígenas. Há também uma forte influência privada na produção normativa, que tem como exemplo mais notável a já citada lex mercatoria, que dita as normas do comércio transnacional (TAMANAHA, 2007: 375). José Eduardo Faria (2004: 155-156), ao analisar o pensamento jurídico contemporâneo, descreve o pluralismo jurídico: “Na medida em que sob essa generalidade e flexibilidade do novo perfil do direito positivo do Estado-nação as organizações financeiras internacionais e as 23 corporações transnacionais formam complexas redes de acordos formais e informais em escala mundial, estabelecendo suas próprias regras, seus procedimentos de auto-resolução de conflitos, sua cultura normativa e até mesmo seus critérios de legitimação, bem como definindo suas próprias identidades e regulando suas próprias operações, o que se tem na prática é uma inequívoca situação de pluralismo jurídico; pluralismo esse aqui encarado na perspectiva da sobreposição, articulação, interseção e interpenetração de vários espaços jurídicos misturados. Tendo como característica básica a “porosidade” dessas múltiplas redes normativas, esse tipo de pluralismo é que confere tanto a especificidade quanto a originalidade das instituições de direito emergentes com o fenômeno da globalização econômica.” Discorrendo sobre o tema, Teubner (2003), em suas pesquisas, destaca a produção de “ordenamentos jurídicos globais sui generis”, apontando os ordenamentos jurídicos de grupos empresariais multinacionais, o direito produzido por empresas e sindicatos para regular relações de trabalho, coordenação em escala mundial na área da padronização técnica, e o discurso dos direitos humanos, conduzido, a princípio, em esfera global (TEUBNER, 2003: 10). Como atores sociais do pluralismo jurídico, além das corporações transnacionais, Organizações Não Governamentais (ONG) internacionais e entidades sindicais globais, destacam-se também as redes transgovernamentais, com poderes de regulamentação, a exemplo do Financial Stability Forum (Fórum de Estabilidade Financeira), composto por três organizações transgovernamentais;o Comitê de Basiléia de Supervisão Bancária, Organização Internacional da Comissão de Valores e Associação Internacional de Supervisores de Seguros; juntamente com outras autoridades, nacionais e internacionais, responsável pela estabilidade financeira em todo o mundo. Redes ativas também têm sido criadas por juízes e outros organismos internacionais (TAMANAHA, 2007). Na atual sociedade capitalista, o direito não é mais monopólio de uma entidade política, social, institucional ou jurídica específica, mas resultante de suas diferentes possibilidades de articulação e interação, que fazem com que estes espaços se relacionem de forma complexa e dinâmica, resultando em uma combinação de várias concepções de legalidade e distintas gerações de normas, antigas e recentes; numa mescla desigual de ordenamentos jurídicos com diferentes regras, procedimentos, linguagens, escalas, áreas de competência e mecanismos adjudicatórios (FARIA, 2004: 163). 24 A visão de uma lei uniforme e monopolista que governa a comunidade é claramente obsoleta. A expansão do capitalismo e o movimento de pessoas e ideias entre os países está cada vez mais célere, trazendo muitas consequências transformadoras para a lei, sociedade, política e cultura. E a globalização traz uma quantidade expressiva de regimes jurídicos supranacionais e internacionais, com potencial para afetar diretamente as pessoas, não importando onde elas vivem (TAMANAHA, 2007: 410). Os sistemas tornam-se autônomos, voltando-se para seus próprios interesses e resolução dos problemas e conflitos criados internamente, não deixando espaço para o Estado e seu sistema jurídico exercerem sua capacidade de gestão, subordinação, controle, direção e planejamento sobre todos eles. O Estado dispõe de menos condições para fazer prevalecer os interesses públicos sobre os interesses específicos dos agentes produtivos, para disciplinar os comportamentos individuais e exigir observância às regras de seu ordenamento (FARIA, 2004: 195). Partindo da premissa de que é a própria sociedade civil que impulsiona a globalização dos seus diferentes discursos, e não a política, Teubner (2003: 14) defende a tese de que “o direito mundial desenvolve-se a partir das periferias sociais, a partir das zonas de contato com outros sistemas sociais, e não no centro de instituições de Estados-nações ou de instituições internacionais”, motivo pelo qual nem as teorias políticas, nem as teorias institucionais do direito podem fornecer explicações adequadas da globalização do direito. A teoria pluralista do direito desempenharia melhor este escopo. Teubner (2003) aborda a teoria do pluralismo jurídico como sendo o único meio adequado para interpretar o direito global, que se distingue do direito tradicional dos Estados-nação, e já está amplamente configurado nos dias atuais, ainda que com pouco respaldo político e institucional no plano mundial, mas estreitamente atrelado a processos sociais e econômicos dos quais, segundo o autor, recebe seus impulsos mais essenciais. A fragmentação característica do direito global, com suas múltiplas cadeias e ordenamentos legais constituídos a partir das interações dos espaços político, social e jurídico, não implica em uma ordem caótica. Ainda que autônomos, esses espaços, ao 25 se relacionarem, influenciam-se reciprocamente, embora não necessariamente com o mesmo peso ou poder de influência. Desta forma, cada um deles poderá, por determinado período, atuar como sinalizador, balizador, delimitador ou polarizador dos demais (FARIA, 2004: 163). Apesar da fragmentação expressa pelos múltiplos microssistemas normativos, e ainda que a lei do Estado atue com diferentes intensidades nos variados espaços sociais, Tamanaha alerta que muito dificilmente ela será completamente irrelevante. A lei pública está em uma posição exclusiva, simbólica e institucional, que deriva da posição única do Estado, no plano nacional e internacional, na ordem política contemporânea. Além disso, os sistemas jurídicos oficiais do Estado, pelo menos os que funcionam de forma eficaz, tem uma distinta capacidade instrumental que lhes permite se envolver em uma ampla gama de atividades possíveis, e de exercer uma ampla quantidade de possíveis metas ou projetos, que se estendem muito além da regulação normativa (TAMANAHA, 2007: 411). 2.5 REFLEXOS DA TRANSNACIONALIZAÇÃO DOS MERCADOS NO DIREITO INTERNACIONAL DO TRABALHO O Direito do Trabalho foi uma das áreas jurídicas que mais sofreu o impacto da globalização, sobretudo em decorrência da transnacionalização dos mercados e das relações de trabalho. Diante das mudanças nos modos de produção e no processo de trabalho, e ainda, com o surgimento de novas fontes do Direito Internacional do Trabalho, públicas e privadas, a internacionalização de normas do trabalho e a construção de uma governança social global emergem como principais desafios nos dias atuais (CRIVELLI, 2010: 9). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) - uma das mais representativas organizações do sistema da Organização das Nações Unidas, criada com os objetivos principais de normatizar as relações de trabalho e alcançar a justiça social - apesar da larga produção normativa realizada ao longo de mais de oito décadas de existência, tem sofrido um duro e constante questionamento na última década que tem colocado em crise o papel do seu modelo normativo (CRIVELLI, 2010: 24). Como fatores determinantes da crise por que passa a OIT, destacam-se a substituição do modelo 26 fordista de produção para o modo de organização toyotista; a expansão das corporações transnacionais, que passaram a desenvolver atividades econômicas em escala global, e consequente desterritorialização das cadeias produtivas; a diversificação das fontes de direito formal; a dimensão mundial adquirida por ONG‟s internacionais, que desafiam o direito internacional e os atores sociais tradicionalmente reconhecidos e aceitos na OIT; os processos de integração regional, como a União Europeia e suas normas comunitárias, e a perda parcial da soberania dos Estadosnação, que enfraqueceu o principal instrumento de coercibilidade das normas internacionais do trabalho (CRIVELLI, 2010: 24). As modificações ocorridas no seio das cadeias produtivas foram um dos fatores que trouxe profundas alterações nas relações de trabalho. No modelo fordista, caracterizado pela produção em larga escala para o mercado em expansão, os produtos são fabricados por meio de uma linha de montagem dentro do estabelecimento industrial. Há uma produção fragmentada, mas coletiva, na qual todos os trabalhadores tem uma função definida dentro da linha de montagem para a consecução do produto final. Para a empresa fordista, é importante manter sua mão-deobra a médio e longo prazo, garantindo condições de trabalho estáveis, por meio de normas rígidas, que aumentem sua capacidade de planejamento (RUDIGER, 2006: 477). A empresa toyotista, que se firmou com a abertura das fronteiras pelo processo de globalização, não produz para abastecer o mercado, esse modelo de organização submete sua produção à demanda do mercado, o que exige flexibilidade da empresa para ampliar ou reduzir o quadro de seus trabalhadores num curto prazo de tempo. A mão-de-obra utilizada deve ser polivalente e organizada para que possa planejar e executar diferentes tarefas nos momentos em que se façam necessárias. Também é comum a contratação de trabalhadores de empresas prestadoras de serviços conforme seja necessário para atender a demanda do mercado, havendo uma descentralização produtiva (RUDIGER, 2006: 480). Nesse contexto, a necessidade de flexibilização das relações de trabalho ocasionaram perdas significativas para os trabalhadores, em termos de qualificação, e por já não mais usufruírem da mesma estabilidade no emprego. 27 As corporações transnacionais, que cresceram vertiginosamente ao longo do século XX, agindo em diferentes países e continentes, tornaram-se atores relevantes nas relações internacionais contemporâneas e passaram a atuar como os principais agentes da globalização, trazendo novas transformações nas relações laborais. Ao negociarem acordos coletivos, criarem regulamentos internos, normas técnicas e códigos de conduta que disciplinam os comportamentos individuais dos trabalhadores, vêm exercendo forte influência no Direito Internacional do Trabalho (CRIVELLI, 2010). A prática do dumping social, por meio do qual as empresas multinacionais (EMN‟s) reduzem salários para tornar seus produtos mais competitivos no mercado internacional é também uma das consequências sociais negativas do processo de globalização. Embora não exista uma definição legal para o termo, o dumping social pode ser caracterizado por “preços internacionais de produtos distorcidos pelo fato de os custos de produção basearem-se em normas e condições trabalhistas inferiores ao que seria considerado razoável ou adequado em nível internacional” (GONÇALVES, 2000: 50) 5. Para tornarem-se competitivas, e exportar produtos com preços inferiores aos do concorrente, algumas empresas utilizam meios desleais, como contratação de mão-deobra infantil, e até escrava, em grave violação aos direitos fundamentais do trabalho. Outro mecanismo utilizado pelas corporações transnacionais, questionável em termos de justiça social, é a Zona de Processamento de Exportação (ZPE), instalada nos países em desenvolvimento para o crescimento econômico estratégico da região onde são estabelecidas. A Organização Internacional do Trabalho, em 2003, definiu as ZPE‟s como “zonas industriais com incentivos especiais criadas para atrair investidores estrangeiros, onde materiais importados passam por algum grau de processamento antes de serem (re)exportados (...)” (ILO, 2003, p. 1). Alguns anos depois, estudo elaborado sob a coordenação da mesma organização alargou o conceito de ZPE apontando-as como “espaços regulatórios em um país destinados a atrair companhias exportadoras 5 GONÇALVES, Reinaldo. O Brasil e o Comércio Internacional: transformações e perspectivas. São Paulo: Contexto, 2000: 50 28 mediante a oferta, a estas, de concessões especiais em impostos, tarifas e regulamentos” (MILBERG, 2008: 02). Embora abra novas oportunidades de empregos, havendo mais de 50 milhões de trabalhadores empregados nessas zonas em todo o mundo, e mesmo que os órgãos públicos oficiais afirmem que o mecanismo contribui para o desenvolvimento e trabalho decentes, as autoridades públicas ainda apresentam alguma preocupação com eventuais isenções de leis trabalhistas às ZPE‟s nacionais, ou o fato de representarem obstáculos ao exercício de direitos (MTE, 2005). Segundo Dupas, o trabalho exercido nas ZPE‟s normalmente apresentam baixa ou nenhuma qualificação, além de relações sindicais frágeis. A mão-de-obra seria constituída, em sua maior parte, por mulheres jovens, que se submetem a longas jornadas, baixa remuneração, trabalho noturno, alta rotatividade e pouca estabilidade, em decorrência, principalmente, da falta de outras opções locais de trabalho (DUPAS, 1998: 131). Diante dessas transformações no cenário internacional, a OIT vem esboçando reações por meio de várias iniciativas. Na sua 86° Conferência, a OIT adotou, com base em oito Convenções fundamentais6, a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho, que estabelece como princípios fundamentais a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; a abolição efetiva do trabalho infantil; e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. 7 Embora não se trate de uma obrigação jurídica, constitui uma orientação de comportamento, tendo como objetivo maior impulsionar a ratificação das oito Convenções fundamentais por todos os Estados-membros (CRIVELLI, 2010: 69). Em 1994 foi instituído um Grupo de Trabalho sobre a Liberalização do Comércio Internacional, que, em 1999, passou a ser chamado Grupo de Trabalho para a Dimensão Social da Mundialização, com o objetivo principal de formular proposta de consenso tripartite, consenso entre trabalhadores, empregadores e Estado, de políticas normativas para enfrentar as consequências sociais da globalização. Por sugestão do 6 Convenções 87, 98, 29, 105, 100, 111, 138 e 182 da OIT OIT. Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/oit/doc/declaracao_oit_547.pdf 7 29 grupo foi criada a Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, composta por personalidades de todo o mundo para elaboração de um relatório global com o objetivo de propor ao sistema multilateral internacional um enfoque integrado sobre o impacto social da globalização (CRIVELLI, 2010: 69 e 181). Outra iniciativa importante foi a Declaração Tripartite de Princípios sobre as Empresas Multinacionais e a Política Social que, embora aprovada ainda em 1977, ganhou maior importância no ano de 2000, quando novamente foi discutido o tema, acrescentando-lhe conteúdo e um sistema de acompanhamento. Trata-se de documento com conteúdo normativo, de aplicação voluntária, dirigido aos governos dos Estados-membros e às respectivas organizações mais representativas de trabalhadores e empregadores, sendo a necessidade de adesão voluntária dos atores sociais um dos maiores problemas que se apresentam à sua implementação na prática (CRIVELLI, 2010: 69 e 168). Concomitantemente às iniciativas oficiais da OIT durante o processo de globalização, proliferaram várias propostas e experiências de regulação do trabalho no âmbito internacional que variavam quanto à natureza jurídica, abrangência territorial de sua aplicação e o número de Estados ou atores internacionais envolvidos. Nesse ambiente caracterizado pela pluralidade jurídica, a OIT já não mais constitui a única fonte formal de Direito Internacional do Trabalho (CRIVELLI, 2010). Dentre as experiências concretas de regulação internacional do trabalho destacam-se os instrumentos jurídicos de direito privado, como os códigos de conduta e etiquetas ou selos sociais, estabelecidos por corporações transnacionais, organizações sindicais de trabalhadores ou ainda por Organizações-Não Governamentais (ONG‟s) (CRIVELLI, 2010: 124-125). Há ainda, os acordos globais, ou acordos marco internacionais, celebrados entre corporações transnacionais e organizações sindicais de trabalhadores internacionais, nos quais são estabelecidas condições mínimas de trabalho aos empregados da corporação transnacional que atuam em diferentes países, criando importantes padrões laborais normativos de âmbito internacional. Esses acordos retratam relevantes avanços no diálogo social e relacionamento mais paritário entre empresas e trabalhadores. 30 Os próximos capítulos aprofundam o tema, a partir da análise da negociação coletiva internacional, de seu conceito e fundamentos, e dos acordos globais, instrumentos de concretização das negociações coletivas internacionais, que tem representado tão importante colaboração na minoração dos efeitos negativos da globalização na esfera social. 31 3. NEGOCIAÇÃO COLETIVA INTERNACIONAL Na segunda metade do século XX o processo de globalização tornou-se mais abrangente. Com a consolidação da economia de mercado, a discussão sobre o novo papel e tamanho do Estado no contexto da sociedade globalizada, as constantes inovações tecnológicas, a criação de conglomerados industriais, a desterritorialização da produção e os importantes processos de integração regional em andamento, as relações sociais foram afetadas de diferentes maneiras, com significativos reflexos nos processos de negociação coletiva, e diversas implicações para os níveis de justiça social no mundo (GERNIGON, 2000). Todos os fatores mencionados ensejaram o surgimento de diferentes tipos de relações de trabalho e novas situações jurídicas não abrangidas pelas legislações nacionais e que, aos poucos, passaram a ser discutidas nas diretrizes de organizações internacionais, mais notadamente na Organização Internacional do Trabalho (OIT). Não obstante, o contínuo debate e a formulação de propostas por parte das organizações internacionais, com o fim de minorar o impacto negativo da globalização nas relações de trabalho, ainda não existe um quadro legal regulatório das relações laborais em nível global, nem mesmo uma política normativa, de âmbito internacional, capaz de assegurar aos trabalhadores, padrões mínimos de saúde, segurança e dignidade. As mudanças no cenário global resultaram em concorrências mais abrangentes, e mais acirradas, aumento do trabalho informal, surgimento de novos tipos de relações de trabalho que afetam a estabilidade do trabalhador, com a proliferação de contratos de curto prazo e a expansão de zonas de processamento de exportação, que muitas vezes desestimulam o sindicalismo (GERNIGON, 2000:3). Concomitantemente, verificou-se maior autonomia dos sindicatos em relação às autoridades públicas e à política, e maior consciência dos direitos fundamentais, da dignidade humana e princípios básicos da democracia, sendo integradas às reivindicações sindicais considerações concernentes às minorias desfavorecidas, à política ambiental e a questões macroeconômicas (GERNIGON, 2000: 3). Nesse contexto, a negociação coletiva firmada entre empregadores e trabalhadores ganhou maior importância, e sofreu significativos impactos. Tornou-se 32 mais dinâmica e conseguiu abranger um conteúdo mais extenso, cujo alcance passou a ir além das condições físicas e salariais concernentes a um setor específico da empresa, sendo estendido para aspectos da política social e econômica que influenciam as condições de vida e de trabalho, discutindo temas como inflação, formação profissional e segurança social (GERNIGON, 2000: 3). No mesmo período, com a expansão do processo de globalização e o crescimento das corporações multinacionais, as negociações coletivas em nível de empresa abrangendo trabalhadores de diversos países8 - ganharam maior destaque, e passaram a ser adotados com maior frequência que os acordos firmados entre entidades sindicais representativas de empregadores e de trabalhadores. Tais acordos consideraram, principalmente, os critérios de produtividade das empresas, com menor ênfase nos interesses gerais das categorias profissionais envolvidas na negociação (GERNIGON, 2000:4). Ainda que mais frequente no âmbito das corporações multinacionais, no qual as empresas gozam de maior poder de barganha, o papel das negociações coletivas transnacionais têm sido de grande importância para pacificação de conflitos juslaborais decorrentes das transformações econômicas e sociais no cenário global. Do mesmo modo, as negociações têm sido relevantes para a instituição de importantes marcos regulatórios trabalhistas de âmbito internacional, considerando o relativo êxito em estabelecer padrões mínimos de trabalho, semelhantes, em diferentes países, ou regiões, no âmbito da empresa na qual são firmadas. Apesar da importância deste instrumento jurídico para aperfeiçoar, e tornar mais justas e equilibradas, as relações de trabalho, o instituto ainda é pouco estudado, e tem sido aplicado de forma tímida, principalmente nas regiões menos desenvolvidas ou em desenvolvimento, verificando-se sua maior incidência nos países europeus, onde há maior espaço - e é conferido maior prestígio - ao diálogo social. Nas próximas linhas discutir-se-á a questão da autonomia privada coletiva, que atribui a grupos sociais particulares, o poder de elaboração de normas para regulamentar seus interesses, sendo as negociações coletivas expressão de sua 8 os chamados acordos globais, contratos coletivos, acordos marco internacionais, ou ainda, acordos quadro internacionais. 33 ocorrência. Em seguida será feita uma breve explanação acerca do conceito e fundamentos das negociações coletivas para melhor compreensão do instituto, para, então, serem analisados os marcos jurídicos da negociação coletiva, seguindo-se de uma abordagem ampla sobre o tema, sendo apresentado ao final do capítulo, de forma sucinta, a importância do instrumento negocial nos processos de integração regional, na União Europeia e no MERCOSUL. 3.1. AUTONOMIA PRIVADA COLETIVA Atualmente, difunde-se o entendimento de que o Direito do Trabalho está inserido, bem como outros ramos do Direito, no contexto do pluralismo jurídico, admitindo-se que tanto o Estado como os particulares elaboram normas jurídicas trabalhistas (SILVA, 2008: 48). Na autonomia privada coletiva, há a coexistência entre normas estatais e normas não estatais. Os tratados internacionais, as declarações de direitos e outras normas internacionais são fontes internacionais de produção do direito do trabalho; o contrato de trabalho, o regulamento de empresa (quando bilateral), as convenções e os acordos coletivos constituem fontes negociais (MARTINS, 2001: 69). Têm-se ainda as legislações nacionais que disciplinam as relações trabalhistas nos limites do Estado. Necessário, portanto, fazer uma análise da atuação normativa dos particulares no âmbito das relações coletivas de trabalho, por meio de suas organizações representativas, no contexto de um ordenamento jurídico que inclui uma pluralidade de fontes, estatais e não estatais, revelando-se imprescindível um estudo acerca da autonomia privada coletiva. A noção de autonomia privada surgiu no século XX, primeiramente na esfera individual, estendida, em seguida, à esfera coletiva pelos juslaboralistas, “como manifestação do poder de criar normas jurídicas atribuído aos particulares” (SILVA, 2008: 54). Sérgio Pinto Martins traça um breve conceito de autonomia privada, definindo-a da seguinte forma: 34 “poder de criar normas jurídicas pelos próprios interessados. É a manifestação de um poder de criar normas jurídicas, diversas das previstas pelo Estado e, em certos casos, complementando as normas editadas por aquele. É o poder de regular os próprios interesses.” (MARTINS, 2001: 118) A autonomia privada coletiva visa, portanto, realizar interesse coletivo, concernente a um grupo específico, sem constituir interesse de toda a comunidade ou sociedade. Distingue-se da autonomia individual, que tem por fim a satisfação de interesse individual, pertinente a um indivíduo (SILVA, 2008). A clássica definição de interesse coletivo de Francisco Santoro Passarelli permite uma melhor compreensão do alcance da autonomia privada coletiva: o de uma pluralidade de pessoas por um bem idôneo apto a satisfazer uma necessidade comum. Este não é a soma dos interesses individuais, mas a sua combinação, e é indivisível, no sentido de que se satisfaz, não por muitos bens, aptos a satisfazerem necessidades individuais, mas por um único bem apto a satisfazer a necessidade da coletividade (SANTORO-PASSARELLI, 1960: 21 apud SILVA, 2008, P. 55). Importante ainda diferenciar a autonomia privada coletiva da autonomia pública, que tem por fim a satisfação de interesses púbicos, constituindo poder atribuído aos entes públicos e aos próprios órgãos do Estado para emanar normas válidas nos seus respectivos âmbitos de competência. A autonomia privada normalmente se expressa por meio de negócios jurídicos bilaterais, enquanto a pública se concretiza em atos unilaterais da administração pública; inobstante os limites legais impostos igualmente pela lei aos dois casos, a autonomia privada pressupõe plena liberdade, no que a lei não a privar, a autonomia pública goza apenas da discricionariedade, cabendo-lhe perseguir somente os fins que lhe são impostos por lei, que não podem ser escolhidos livremente, somente entre as opções oferecidas pela lei, dispondo de uma autonomia limitada (SILVA, 2008: 56). Amauri Mascaro Nascimento (1998: 125-126), embora entenda que ainda não foi desenvolvido um conceito exato para autonomia privada coletiva, apresenta uma concepção restrita para o termo, definindo-o como: o poder conferido aos representantes institucionais dos grupos sociais e de trabalhadores e de empregadores de criar vínculos jurídicos regulamentadores das relações de trabalho. A negociação coletiva é seu instrumento de 35 concretização. Os contratos coletivos de trabalho, expressão aqui tomada no sentido genérico, são o resultado da sua elaboração, o instrumento jurídico pelo qual se expressa e corporifica-se (NASCIMENTO, 1998: 125-126). A negociação coletiva apresenta-se como um meio rápido e eficiente para a melhoria das condições de trabalho, permitindo que os próprios interlocutores sociais, estando à frente os sindicatos, solucionem eventuais conflitos como verdadeiros entes coletivos, na busca de equilíbrio nas relações entre trabalhadores e empresários (GUNTHER, 2008: 100). Embora o Estado adote uma posição intervencionista, por meio de leis que garantem proteção aos direitos dos trabalhadores, resta evidente que não dispõe de meios para regular minuciosamente as condições de trabalho em cada caso concreto. Ademais, o processo de elaboração das leis é mais lento e rígido que o processo negocial. Desta forma, coexistem no mesmo ordenamento jurídico normas estatais e negociais (GUNTHER, 2008: 58). Neste tocante Dorothee Rudiger (2006), com base nos estudos de Gino Giugni e de Norberto Bobbio (1977: 24-25), ensina: A autonomia privada coletiva é conseqüência de uma concepção política pluralista que vê na própria organização social a „noção chave da experiência jurídica‟. Mas, a existência de outros centros de produção normativa ao lado do Estado não significa que estes tenham em mãos um „[...] título de validade que possam fazer valer contra a vontade do Estado‟ (GIUGNI, 1977: 53). Pois, uma vez reconhecidas pelo Estado, as fontes “sociais”, “reais” ou “primárias” de direito tornam-se “secundárias”, isto é, remontam à matriz estatal. Sancionando, pela concessão de autonomia privada coletiva, as normas espontaneamente criadas pelos grupos, o Estado as (e)leva a uma nova condição. Embora haja autosuficiência dos diversos ordenamentos, formal e materialmente distintos, os ordenamentos jurídicos não-estatais, autorizados pela norma estatal, movimentam-se dentro dos limites do poder do Estado. (GIUGNI, 1977: 62) No contexto da globalização, e com a crescente importância das normas supra e infranacionais, o Estado Nacional perde o monopólio de promulgar normas reguladoras, ensejando uma crescente privatização da regulação jurídica, passando a exercer um papel de guia, e não mais de planificador das relações sociais. O Estado torna-se mais um ator social, representando os interesses generalizáveis, e controlando a conformidade dos procedimentos de negociação (RUDIGER, 2006: 479). 36 A existência de liberdade sindical, tal qual preconizada na Convenção n.° 87 da OIT, é fundamental para o desenvolvimento da autonomia privada coletiva. Quando o Estado efetivamente reconhece a autonomia privada coletiva, há uma redução do intervencionismo estatal ao mínimo indispensável, competindo-lhe a fixação de garantias mínimas ao trabalhador, permitindo, assim, que as regras e condições de trabalho sejam estabelecidas diretamente pelos próprios interessados da forma que lhes for mais conveniente e adequado (Martins, 2001: 125). Segundo Walkure Lopes da Silva, deve-se combinar a ação do Estado e a atuação dos particulares, contrabalanceando o intervencionismo estatal com a autonomia coletiva para corrigir as distorções do mercado (SILVA, 2008: 65). A autonomia privada coletiva, conferida a trabalhadores e empregadores para que regulem seus interesses e relações por meio da negociação coletiva constitui instrumento fundamental para regular as relações laborais, propiciar melhorias nas condições de trabalho, e, por consequência, na qualidade de vida dos trabalhadores, contribuindo para a paz e estabilidade social (OIT, 2000: 67). 3.2 BREVE ESCORÇO DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA A negociação coletiva pressupõe a liberdade dos trabalhadores e empregadores de associarem-se de forma organizada e negociarem as condições de trabalho a serem observadas numa determinada empresa ou região, visando uma decisão conjunta, na qual sejam acomodados os interesses de todas as partes envolvidas. Os primórdios da negociação coletiva remetem ao final do século XVIII, em um período de profundas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas decorrentes da Revolução Industrial que começou na Inglaterra e espalhou-se, a princípio, pela Europa Ocidental e América do Norte. Esta época foi marcada por um grande fluxo de pessoas saindo dos campos para trabalhar nas fábricas, sem que estas novas relações de trabalho tivessem uma regulamentação mínima que garantisse proteção aos trabalhadores, que enfrentavam longas horas de trabalho, recebiam baixos salários e trabalhavam em ambientes inseguros (HAYTER, 2011: 01). As precárias condições de trabalho, aliadas à notória fragilidade da atuação isolada dos trabalhadores, levou-os a perceber a necessidade de formar associações 37 organizadas para atuarem na defesa de seus interesses, quando passaram a exigir, de forma pacífica, melhores condições de trabalho, surgindo, assim, as primeiras organizações sindicais (HAYTER, 2011: 01). Pressionados pelas novas associações de trabalhadores, e buscando evitar os movimentos grevistas e perdas na produção, as empresas aceitaram negociar com os representantes dos trabalhadores, a fim de alcançarems soluções pacíficas para os conflitos coletivos de trabalho, desenvolvendo-se, a partir de então, a negociação coletiva. Pretendia-se estabelecer condições mínimas de trabalho a serem observadas nas empresas, ou em determinadas regiões, criar condições de trabalho mais justas e relações laborais mais equilibradas (HAYTER, 2011: 02). Em 1936, a negociação coletiva passou a ter sua importância internacionalmente reconhecida em relatório da OIT, que dava destaque à "crescente importância do acordo coletivo, como um elemento na estrutura social e econômica da comunidade industrial moderna. [...] Em muitos países, o acordo coletivo é agora um reconhecido método de determinar as condições de trabalho "(OIT, 1936: 265). Não obstante as organizações internacionais endossassem e ressaltassem o importante papel das negociações coletivas nas relações de trabalho, houve bastante resistência às novas organizações de trabalhadores, seguidas das, ainda freqüentes, tentativas de enfraquecimento dos sindicatos. Ainda assim o movimento social para criação de associações organizadas de trabalhadores foi expandindo-se, e, aos poucos, alguns países passaram a legitimar o direito à associação, promovendo alterações nas legislações nacionais para eliminar as restrições à criação de sindicatos e obstáculos legais ao direito à greve, admitindo o uso das negociações coletivas como instrumentos de regulação de salários e condições de trabalho. Atualmente o direito à negociação coletiva constitui direito fundamental, aceito pelos membros da OIT ao incorporar-se à Organização, quando assumem o compromisso de respeitar, promover e viabilizar as negociações voluntárias entre empregadores e suas organizações, por um lado, e organizações de trabalhadores, por outro, para disciplinar as condições de trabalho entre essas partes. 38 A forma da negociação coletiva, como sistema de regulação das relações trabalhistas, pode se dar em diferentes modelos. Por um lado há o modelo de negociação estática, no qual as partes entram em negociação apenas de maneira circunstancial ou periódica, estabelecendo padrões de trabalho coletivos determinados e imediatamente configuráveis. Uma vez firmadas as normas ajustadas, não voltam a entrar em negociação até o cumprimento do prazo previsto, ou até que surjam acontecimentos que motivem uma nova negociação. Por outro lado há o modelo de negociação dinâmica, na qual as partes negociantes estabelecem uma série de instituições e procedimentos de caráter permanente (conselho de empresa, procedimentos de informação e consulta, mecanismos de exame de reclamações e de soluções de conflitos, etc.) que cumprem a função de adaptar as relações de trabalho às novas exigências e circunstâncias. Nesse modelo a questão do prazo ou duração dos instrumentos da negociação não é tão importante, uma vez que as instituições constituídas e os procedimentos estabelecidos permitem a atualização constante das cláusulas convencionadas, resolvendo e superando os conflitos que vão surgindo em uma negociação direta e contínua (OIT, 2000). Os temas abordados nas negociações coletivas têm sido cada vez mais amplos e diversos. O objeto das negociações coletivas não mais se restringe à matéria remuneratória e às condições de trabalho, e não abrange apenas os direitos e benefícios diretos dos trabalhadores que são parte nos acordos, podendo vir a compreender os interesses dos trabalhadores considerados em sentido amplo (OIT, 2000: 72). Além dos temas mais comuns, concernentes à remuneração e duração do trabalho, organização do trabalho, segurança e saúde, e formação e educação, temas como igualdade entre a mulher e o homem, e a não discriminação, tem ganhado espaço. Os instrumentos das negociações coletivas são utilizados ainda para institucionalizar modos de resolução de conflitos e de prevenção de greves, e tratar de temas como o assédio, a representatividade dos sindicatos e a reestruturação da empresa, embora os principais objetos das negociações coletivas ainda sejam os salários e a duração das jornadas de trabalho (OIT, 2008). 39 Outro tema que passou a ser discutido com maior frequência nas negociações coletivas é o compromisso dos sindicatos de fazerem concessões em termos de aumentos salariais, duração do trabalho ou de outras regalias em troca da segurança no emprego, com contrapartida dos empregadores de que não ocorra deslocalização da produção e do emprego. Tratam-se dos chamados acordos de flexibilidade, que têm o escopo de evitar demissões, e podem incluir matérias concernentes à contenção de custos, duração e organização do trabalho (OIT, 2008). Esses conteúdos têm sido ampliados em função das novas realidades que enfrentam as empresas e as relações entre empregadores e trabalhadores, principalmente no tocante à internacionalização dos mercados, da globalização econômica, das transformações tecnológicas, do estabelecimento de novos padrões de produtividade, eficiência e qualidade, dos padrões referentes ao trabalho seguro, da valorização do trabalho na melhoria da competitividade da empresa, das novas estratégias e formas de organização e gestão empresarial e do trabalho, entre outros (OIT, 2000: 72). Quanto aos propósitos da negociação coletiva trabalhista, Luiz Eduardo Gunther destaca a realização de pacificação social, quando a negociação contribui para o fim do conflito; e a capacidade de criar normas jurídicas para regular as relações de trabalho, com regras aptas a estabilizar a atividade produtiva (GUNTHER, 2008: 99). A OIT, em Relatório da Conferência Internacional do Trabalho em 2008, enfatiza ainda o reforço da liberdade sindical e da negociação coletiva como fator capaz de contribuir para uma maior estabilidade econômica e social, ao atrair maior investimento direto estrangeiro (IDE) e contribuir para o aumento das exportações, melhorando a competitividade global e o desempenho econômico dos países que adotam essas práticas (OIT, 2008). 3.3. MARCOS NORMATIVOS DA NEGOCIAÇÃO COLETIVA A negociação coletiva, associada à liberdade de associação, pode ser uma ferramenta útil e poderosa para o engajamento entre empregadores e trabalhadores em todo o mundo. É particularmente útil para trazer equilíbrio às relações de trabalho, 40 promover a igualdade de oportunidades no trabalho, e garantir bens coletivos e maior produtividade na empresa. A Organização Internacional do Trabalho reconhece a importância da negociação coletiva, fixando importantes parâmetros legais para assegurar o livre exercício desse direito e promover sua maior aplicação e efetividade em todas as nações do mundo. Em 1944, a Declaração de Filadélfia, referente aos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho, parte integrante da Constituição da OIT, reconheceu a obrigação solene da Organização Internacional do Trabalho de fomentar, entre todas as nações do mundo, programas que permitam alcançar o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, considerando este, princípio plenamente aplicável aos povos de todo o mundo (GERNIGON, 2000: 21). Em 1949 foi aprovada a Convenção n. 98, trazendo proposições sobre o direito de sindicalização e negociação coletiva. Embora não tenha apresentado uma definição de negociação coletiva, ou de contratos coletivos, delimitou aspectos fundamentais do instituto, estabelecendo como objeto da negociação, a regulamentação das condições de emprego e pregou o estímulo e fomento do pleno desenvolvimento e uso de procedimentos de negociação voluntária entre, por um lado, os empregadores e suas organizações e, por outro, as organizações de trabalhadores (GERNIGON, 2000: 23). A Recomendação 91 da OIT, de 1951, trouxe a primeira definição de acordos coletivos, decorrentes da negociação coletiva: Todo acordo escrito relativo às condições de trabalho e de emprego, celebrado entre um empregador, um grupo de empregadores ou uma ou várias organizações de empregadores, por um lado, e, por outro, uma ou várias organizações representativas de trabalhadores ou, em sua falta, representantes dos trabalhadores interessados, devidamente eleitos e autorizados por este último, de acordo com a legislação nacional (OIT, 1951). A mesma Recomendação estabeleceu ainda o caráter vinculativo da negociação coletiva e sua precedência sobre os contratos de trabalho, ainda que reconhecesse como legítimas as estipulações inscritas nos contratos individuais que fossem mais favoráveis ao trabalhador (Recomendação 91 de 1951 da OIT.). 41 Em novembro de 1977, em sua 204ª reunião o Conselho de Administração da OIT aprovou a Declaração Tripartite de Princípios sobre as Empresas Multinacionais e a Política Social, que, ainda que sem força vinculante, representa um elenco de princípios que norteiam o comportamento da sociedade, e, de forma mais específica, das empresas multinacionais (GUNTHER, 2008: 109). No que concerne às negociações coletivas, destacam-se na Declaração Tripartite as seguintes recomendações: a) observância ao direito dos trabalhadores de que a organizações representativas que considerem convenientes sejam reconhecidas para fins de negociação coletiva (n. 49); b) garantia, por parte das empresas, dos meios necessários para dar assistência aos representantes dos trabalhadores na conclusão de efetivas convenções coletivas (n. 51); c) que as empresas multinacionais devem facultar aos representantes dos trabalhadores nela empregados a condução de negociações com os representantes da direção da empresa autorizados a decidir sobre as questões objeto da negociação (n. 52); d) reconhecimento à garantia dos trabalhadores de não sofrerem ameaças no decorrer das negociações coletivas e enquanto estiverem exercendo seu direito de sindicalização (n. 53); fornecimento pelas empresas de dados efetivos e concretos e informações necessárias aos trabalhadores e entidades que os representem para a celebração de negociações coletivas eficazes (n. 55) (OIT, 1977). Em 1980, importantes consensos foram firmados pela Comissão de Negociação Coletiva durante os trabalhos preparatórios para a Convenção n. 154. Um deles foi o reconhecimento da possibilidade de fixar, por meio de negociação coletiva, condições mais favoráveis para os trabalhadores do que as previstas em lei. Outro ponto considerado fundamental para a eficácia das negociações coletivas foi a previsão de que deveria ser observada a boa-fé, como resultado dos esforços voluntários e persistentes de ambas as partes, evitando, assim, atrasos injustificados na negociação e sendo respeitados mutuamente os compromissos assumidos (GUIDO e GERNIGON, 2000: 13). A Convenção n. 154, aprovada em 1981, trouxe o atual conceito de negociação coletiva firmado pela OIT: 42 Artigo 2 – (...) a expressão"negociação coletiva" compreende todas as negociações que se realizam entre um empregador, um grupo de empregadores ou uma ou mais organizações de empregadores, de um lado, e uma ou mais organizações de trabalhadores, de outro, para: a) definir condições de trabalho e termos de emprego; e/ou b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; e/ou c) regular as relações entre empregadores ou suas organizações e uma organização. Para uma correta e eficaz utilização dos instrumentos de negociação coletiva, a Comissão Coletiva de Trabalho, confirmando a interpretação inicialmente feita na Conferência Internacional do Trabalho de 1951, estabeleceu o alcance dos termos previstos nas convenções e recomendações da OIT, ratificando o entendimento segundo o qual: As partes são inteiramente livres para determinar, dentro dos limites da lei e da ordem pública, o conteúdo de seu acordos e, consequentemente, também a concordar com cláusulas que tratam de todas as condições de trabalho e de vida, incluindo as medidas sociais de qualquer tipo (OIT, 2000: 23). Complementando a Convenção n. 154, outra importante Recomendação (n. 163) sobre a promoção da negociação coletiva foi aprovada em 1981, visando assegurar aos trabalhadores acesso às “informações necessárias para poder negociar com conhecimento de causa” (OIT, 1981). A natureza voluntária da negociação coletiva, expressamente prevista no art. 4° da Convenção n. 98, é outro aspecto relevante, considerado fundamental para sua eficácia, segundo o Comitê de Liberdade Sindical da OIT. Por sua natureza voluntária, a negociação coletiva não pode ser imposta às partes. Da mesma forma o exercício eficaz do direito de negociação coletiva requer que as organizações de trabalhadores sejam independentes, e que as negociações prossigam sem interferências indevidas por parte das autoridades (GUIDO & GERNIGON, 2000: 13). Um pouco mais recente é a Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais do trabalho, aprovada em junho de 1998, na 86ª Reunião da Conferência Geral, em Genebra. A Declaração constitui importante instrumento legal de fomento à negociação coletiva, por meio da qual os Estados-membros reafirmam o seguinte compromisso, como membros da OIT: 43 Respeitar, promover e tornar realidade, de boa-fé e em conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva; a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; a abolição efetiva do trabalho infantil; e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação (OIT, 1998). Percebe-se, portanto, que a OIT, por meio de suas normas, princípios e atividades de cooperação técnica, vem desempenhando um papel de grande importância na promoção da negociação coletiva, especialmente na consolidação das diretrizes da negociação coletiva em caráter global, com o fim de torná-la viável e eficaz, assim como para que possa ser adaptada aos diferentes meios em que sejam realizadas, e às mudanças de caráter econômico, político e social. Desta forma possibilita a existência de maior equilíbrio entre empregadores e trabalhadores, abrindo possibilidades para novos avanços sociais. 3.4. NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRANSNACIONAL: NORMAS PRIVADAS PARA EFETIVIDADE DA JUSTIÇA SOCIAL NO PLANO INTERNACIONAL A globalização da economia, com a expansão das empresas transnacionais e multiplicação dos tratados de integração econômica, ocasionou profundas mudanças nas relações sociais internacionalização das no âmbito relações global, de sobretudo trabalho, que com deu o fenômeno ensejo a da diversos questionamentos, e também a um novo rol de normas jurídicas, inicialmente impostas pelos Estados, que, aos poucos, cederam espaço para normas negociadas entre os parceiros sociais (FRANCO FILHO, 1995: 60-67). A fim de harmonizar este novo elenco de normas sociais, é que tem sido admitida a negociação coletiva transnacional. A negociação coletiva transnacional, ou internacional, anteriormente vista como uma hipótese pouco provável, de difícil desenvolvimento, tem ganhado maior credibilidade nas últimas décadas. Apesar das dificuldades ainda existentes, o panorama atual apresenta uma diversidade de fatores que tem contribuído para que esta forma de negociação coletiva alcance progressivamente maior relevância, 44 tornando-se um instituto capaz de traduzir, na prática, a tendência de internacionalização do Direito do Trabalho (RACCIATTI e ROSENBAUM, 2006: 91-92). Octavio Racciatti e Jorge Rosenbaum (2006, p. 93) aduzem que, do ponto de vista teórico, o desenvolvimento da negociação coletiva transnacional deveria constituir uma consequência necessária de, pelo menos, três importantes fenômenos que emergem do contexto econômico internacional. O primeiro destes fenômenos estaria relacionado aos processos de integração econômica regional, que, segundo os autores, deveriam abrir caminho para a expansão da autonomia coletiva. Todos os processos de integração econômica acarretam múltiplos efeitos sociais, e, dentre estes, as implicações trabalhistas. Assim, enquanto existe uma expectativa de efeitos trabalhistas positivos a longo prazo, em consequência do crescimento político e econômico do bloco, no curto prazo são inevitáveis os efeitos sociais negativos, como o desemprego setorial, e o risco da ocorrência de “dumping social” entre os próprios países membros do grupo na competição pelo mercado interno, e também com outros países. Paralelamente, a médio prazo, verificam-se influências recíprocas entre os sistemas de relações trabalhistas dos países que se integram, o que proporciona, e facilita, o surgimento de um novo nível internacional/regional de relações de trabalho (RACCIATTI e ROSENBAUM, 2006: 93). A integração regional não acontece somente na esfera econômica. Prescinde também de uma dimensão social, que contribui para precaver e administrar os efeitos sociais. Nesse contexto a autonomia coletiva assume um papel prático e eficaz para facilitar a instrumentalização das políticas macroeconômicas e administração das principais consequências e transformações que estas políticas projetam sobre as estruturas produtivas e comerciais dos países, das categorias setoriais e das empresas, assim como sobre o mercado de trabalho, as condições de trabalho, a produtividade, os custos trabalhistas e a competitividade internacional. O desenvolvimento de instâncias de auto regulação por parte dos atores sociais cumpre, nesse contexto, a tripla função – normativa, conciliadora e participativa – que estas grandes transformações requerem para sua viabilização (ROSENBAUM, 2006: 93-94). O segundo fenômeno apontado como facilitador do desenvolvimento da negociação coletiva internacional, são as transformações decorrentes da globalização e 45 integração regional econômica, que representam mudanças no sistema social, provocando um redimensionamento da dinâmica das relações trabalhistas ao apresentar um novo contexto para o desenvolvimento dessas relações. Há uma tendência à internacionalização dos atores e de suas relações, o que também se revela como incentivo ao desenvolvimento de negociações coletivas internacionais (ROSENBAUM, 2006: 94). Por fim, a expansão das empresas multinacionais e a formação de grupos econômicos constituem mais uma peça, dentre as diversas configurações, processos, estruturas e relações que transcendem o Estado-nação e compõem a economiamundo, reforçando a transnacionalização das relações laborais, abrindo espaço para o desenvolvimento das negociações coletivas transnacionais. Quanto ao objetivo principal das negociações coletivas transnacionais, o mesmo consiste na redução da diferença de direitos entre os trabalhadores no âmbito global, com o fim de superar os limites inerentes à territorialidade dos sistemas jurídicos, e prolongar o alcance do direito internacional do trabalho para onde não há controle direto do Estado, sobretudo nas empresas (DAUGAREIILH, 2005). Segundo Geraldo Cedrola Spremolla (1995: 65): La negociación colectiva que, en mérito de los actores que participen y de los asuntos que pretende regular, es capaz de trasponer las fronteras de un Estado, buscando imponer sus efectos en distintos sistemas nacionales de relaciones laborales. Esta modalidade de negociación colectiva, se distingue de la modalidade nacional, por cuanto busca trascender el marco de un sistema de relaciones laborales, dirigiéndose a una pluralidad de sistemas. Assim partindo do conceito de negociação coletiva firmado pela OIT (Convenção 154), e analisando-o juntamente com as lições de Geraldo Spremolla, a negociação coletiva internacional pode ser entendida como uma negociação realizada entre empregadores ou organização de empregadores e uma ou mais organização de trabalhadores que tem por fim disciplinar relações de trabalho que, em razão das partes negociantes, ou ainda dos assuntos que pretendem regular, produzem efeitos em distintos sistemas trabalhistas nacionais, transpondo as fronteiras de um Estado para dirigir-se a uma pluralidade de sistemas. 46 Os ensinamentos de Adrián O. Goldin e Silvio Feldman (2008: 68) ampliam o entendimento do instituto, ao definirem a negociação coletiva internacional nos seguintes termos: processo com certos traços convergentes, a partir de realidades significativamente diferentes que, por sua vez, abre novas perspectivas a respeito da representação potencial que pode jogar a negociação coletiva como fonte normativa no processo de integração e, mais em geral, a participação dos protagonistas sociais em seus avanços e estilo de desenvolvimento. Os autores, ao enfatizaemr o importante papel dos sujeitos sociais neste processo de integração, destacam que, apesar de se tratar de um processo que incide em diferentes realidades sociais e econômicas, a negociação coletiva internacional contribui para o processo de integração social global. Este entendimento é compartilhado também por Ermida Uriarte (1996: 214): Así mismo, tanto el marco de los procesos de integración como en el de la denominada globalización de la economia, la acción sindical internacional podría o debería ser un importante factor extra nacional de convergencia, que en el plano teórico debería llegar a plasmar una negociación colectiva transnacional que incorporara una fuente autónoma supranacional al Derecho laboral. Sin embargo son casi inexistentes los avances alcanzado sin esta materia en Latinoamérica... Parecería que las dificultades técnicas y políticas que se oponen a una unificación sindical extra nacional y la concreción de convenios colectivos de ese nivel, se ven potenciadas por la debilidad sindical que en algunos países latinoamericanos ha sido crónica, y en otros se ha verificado o acentuado recientemente, de conformidad con una tendencia mundial. Ainda que reconhecida a importância da negociação coletiva para maior equilíbrio nas relações de trabalho e para a garantia de direitos trabalhistas básicos aos trabalhadores em nível global, muitas são ainda as dificuldades enfrentadas para sua aplicação e efetividade. Jorge Rosenbaum e Octavio Racciatti (2006: 96-99) apontam os principais obstáculos impostos à negociações coletivas transnacionais, que podem ser sintetizados da seguinte forma: 1) inadequação das estruturas das organizações sindicais e das organizações de empregadores para realização de negociações coletivas transnacionais; 2) ausência de uma vontade negociadora efetiva e convincente dos interlocutores sociais para concluir acordos coletivos, o que verifica-se, 47 de forma mais acentuada, entre os empregadores e suas organizações; 3) as atuais carências do sindicalismo, que revelam, salvo algumas exceções, que as organizações de trabalhadores não possuem poder suficiente para levar as organizações de empregadores e os grupos multinacionais às mesas de negociações; 4) a debilidade sindical no mercado, no qual a empresa tem assumido um papel de protagonista e as organizações sindicais tem perdido espaço, possuindo um papel cada vez menos decisivo; 5) acúmulo de dificuldades de ordem prática, muitos dos quais se acentuam ou decorrem quase que exclusivamente da realidade regional à qual pertencem os países negociantes, tal qual a falta de amadurecimento do processo de integração do Mercosul, resultantes também das políticas e programas econômicos implementados pelos Governos, que constituem sérios óbices para o desenvolvimento das negociações coletivas transnacionais, na medida em que muitas vezes limitam os conteúdos suscetíveis à negociação, e, ainda, a imprecisão do conteúdo de algumas expressões concretas deste fenômeno, que transformam os termos discutidos em meras declarações programáticas ou expressão do desejos das partes negociantes; 6) problemas técnicos (jurídicos), concernentes à existência de uma diversidade de legislações nacionais sobre negociação coletiva e a ausência paralela de um ordenamento internacional unitário sobre a matéria, o que constitui uma barreira de difícil transposição para uma negociação coletiva internacional. Georgenor de Sousa Franco Filho (1995: 60-67) destaca o papel do sindicato na superação das dificuldades à efetivação das negociações coletivas transnacionais, propondo o estímulo à criação de organizações internacionais de sindicatos para a negociação de contratos coletivos internacionais, mantendo-se o respeito às diferenças locais de cada país e atendendo às características de cada região. Luiz Eduardo Gunther (2008: 117), ao compreender o direito não só como aquilo que é posto, mas também como o que pode ser conquistado e recriado, sugere uma reelaboração da negociação coletiva, “para que a sua efetividade ultrapasse as barreiras nacionais, seja um ímã agregador das reivindicações do proletariado internacional, estabelecendo, ainda, certa previsibilidade na atividade mundializada das empresas.” Assim, a negociação coletiva transnacional obteria a agilidade e eficiência necessárias para o aprimoramento das relações de trabalho no âmbito mundial. 48 3.5. NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRANSNACIONAL NA UNIÃO EUROPEIA A União Europeia adota como um de seus princípios basilares o princípio do diálogo social, que prestigia o diálogo entre trabalhadores e empregadores, como parceiros sociais, e destes com as instituições da União Europeia, a fim de equilibrar a relação entre trabalhadores e empregadores e impulsionar reformas sociais. Essa tradição social permitiu a disseminação das negociações coletivas internacionais nesta região, onde foram assinados a maioria dos acordos globais vigentes. Deste modo, possui grande relevância a análise das negociações coletivas transnacionais na União Europeia para melhor compreensão do desenvolvimento desse importante instrumento de negociação trabalhista. Desde 1957, com a criação da Comunidade Econômica Europeia (CEE), por meio do Tratado de Roma, já era clara a preocupação social dos países europeus, figurando, entre os objetivos da CEE, no referido tratado, além do progresso econômico e social dos países membros, a busca por melhores condições de trabalho para seus povos. O novo mercado comum europeu favoreceu a internacionalização das relações de trabalho, e, por conseguinte, da negociação coletiva. Esse contexto possibilitou a prática da negociação coletiva transnacional ainda em meados do século XX, quando ocorreu a convenção coletiva sobre condições de trabalho no setor de transporte fluvial do Reno de 1958 (STEVIS, 2010). Antes mesmo do Tratado de Roma, já existia uma incipiente representação sindical em nível comunitário europeu, iniciada com a criação da Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL), em 1950, e ampliada com a posterior Confederação Européia de Sindicatos (CES), fundada em 1973, composta pelas Centrais Sindicais Nacionais e pelas quatorze federações europeias, por ramos de produção, estabelecendo o diálogo social com os empregadores e representando os sindicatos junto ao Comitê Econômico Social (LIMA, 2006). Os empregadores também possuem uma organização sindical que representa os interesses das empresas no diálogo com os parceiros sociais e com o Governo. Criada como União das Confederações das Indústrias dos Empregadores da Europa (UNICE), 49 atualmente é denominada Business Europe9. Possui como membros quarenta e uma federações de empregadores industriais, em trinta e cinco países diferentes, representando pequenas, médias e grandes indústrias europeias, atuando na defesa dos interesses das empresas filiadas, e contribuindo para a promoção de políticas concernentes às atividades empresariais e políticas sociais. Como interlocutor social que representa os organismos e empresas com participação pública, há o Centro Europeu de Empresas Públicas (CEEP), que assim como a Business Europe e o CES, é uma instituição interprofissional, organizada em nível europeu, com representantes em todos os Estados Membros, representando os interlocutores sociais que atuam na prestação de serviços de interesse público, para realizarem negociações coletivas e atuarem efetivamente na aplicação do Acordo sobre Política Social10. Dentre os documentos que representaram certo avanço na atuação dos sindicatos em nível comunitário, beneficiando as negociações coletivas na União Europeia, está a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, que previu que os direitos sociais fundamentais não poderiam ser questionados pela busca econômica da competitividade, prevendo ainda a liberdade de associação e negociação coletiva11. Um dos mais importantes marcos para a negociação coletiva comunitária no âmbito da União Europeia, no entanto, foi o Tratado de Maastricht, celebrado em 1992, que teve como um de seus princípios basilares desenvolver a vertente social da Comunidade Europeia. Houve um alargamento das competências comunitárias por meio do protocolo social, anexo ao Tratado, que teve como objetivos principais a promoção do emprego, a melhoria das condições de vida e de trabalho, o diálogo social e a adequada proteção social aos trabalhadores, sem, contudo, contar com a participação do Reino Unido. O Tratado de Maastricht reconheceu o direito dos interlocutores sociais europeus realizarem negociações coletivas, e passou a aprovar 9 BUSINESS EUROPE, disponível em http://www.businesseurope.eu/content/default.asp?PageID=600 CEEP. Informações disponíveis no sítio eletrônico http://www.ceep.eu/ 11 EUROPEAN UNION. Carta comunitaria de los derechos sociales fundamentales de los trabajadores. Disponível em http://europa.eu/legislation_summaries/human_rights/fundamental_rights_within_european_union/c10107 _es.htm. 10 50 regulamentos na forma de diretrizes, que assegurava direitos mínimos aos trabalhadores europeus12. No âmbito da União Europeia destacam-se ainda os acordos marcos internacionais realizados pelas representações profissionais internacionais com o objetivo de assegurar, por meio de negociação, normas mínimas de trabalho a serem observadas pelos empregadores nas diferentes unidades das empresas. São exemplos, os acordos celebrados entre a empresa BSN (Danone) e a União Internacional dos Trabalhadores em Alimentação, Agricultura, Hotelaria, Restaurantes, tabaco e afins – UITA, e entre o grupo empresarial do setor de hotelaria ACCOR e a mencionada UITA. Na mesma esteira se destacam os acordos coletivos realizados entre organizações sindicais de empregadores e de trabalhadores, tal qual o acordo firmado entre a Associação dos Proprietários de Embarcação da Comunidade Europeia (ECSA) e a Federação dos Sindicatos de Transporte da União Europeia, que estabelece limite de jornada, intervalos legais e férias dos trabalhadores do setor (LIMA, 2006). Observa-se, portanto, que a prática da negociação coletiva transnacional na União Europeia tem se tornado constante, apesar das dificuldades que ainda enfrentam as negociações coletivas transnacionais, o que contribui na consolidação deste importante instrumento legal. 3.6. NEGOCIAÇÕES COLETIVAS TRANSNACIONAIS NO MERCOSUL O Mercosul começa a dar seus primeiros passos para instituir uma dimensão social no seu processo de integração regional. Tendo como um dos países membros o Brasil, faz-se relevante a análise do desenvolvimento das negociações coletivas transnacionais neste bloco econômico para entender como o país está incorporando este mecanismo de negociação internacional no contexto regional. No início da década de 1990 as organizações sindicais dos países que hoje integram o Mercosul passaram a reconhecer a integração regional como importante proposição a ser discutida, adotando uma posição crítica acerca dos rumos da 12 Tratado de Maastricht. Disponível em http://eur-ex.europa.eu/pt/treaties/dat/11992M/htm/11992M.html 51 integração, considerada, então, sinônimo de liberalização comercial e econômica, e temendo as possíveis consequências que sofreriam os trabalhadores dos países envolvidos no processo de integração, sendo a redução do nível de emprego, o estímulo ao dumping social e o aumento do desemprego as maiores preocupações dos dirigentes sindicais (VIGEVANI, 1997). Essa preocupação levou os sindicatos a participarem mais ativamente do processo de integração, buscando evitar prejuízos sociais aos trabalhadores em prol da competitividade econômica, que motivara o processo de integração, tendo como principais bandeiras a luta pela ratificação das convenções da OIT e a elaboração de uma Carta Social ou de Direitos Fundamentais do Mercosul. Assim foi que, ainda no início da integração regional, as entidades sindicais nacionais, por suas centrais, se uniram para conjuntamente influírem na formação do Mercado Comum de modo que nesse fossem levados em conta os legítimos interesses das categorias econômicas e profissionais afetados pelo processo de integração. Para isso foi criada a Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), que reúne as centrais sindicais dos países componentes do Mercosul e de seus associados (Bolívia e Chile), constituindo, a partir de então, a estrutura organizacional laboral em nível regional para negociação coletiva supranacional (SOARES FILHO, 2007: 2/2). Em dezembro de 1998 foi assinada a Declaração sócio-laboral do Mercosul, com o fim de aprofundar a dimensão social do processo de integração regional, considerando as principais convenções da OIT, os direitos fundamentais dos trabalhadores, e outros instrumentos legais concernentes aos direitos trabalhistas (GUNTHER, 2008: 110). A Declaração Sociolaboral prevê como direito dos trabalhadores no âmbito do Mercosul a plena liberdade de associação e de ser representado por sindicatos em observâncias às legislações nacionais, destacando que “empregadores ou suas organizações e as organizações ou representações de trabalhadores têm direito de negociar e celebrar convenções e acordos coletivos para regular as condições de trabalho, em conformidade com as legislações e práticas nacionais”13. 13 Artigo 10 da Declaração Sociolaboral do Mercosul 52 As Convenções da OIT que versam sobre a negociação coletiva têm sido bem aceitas pelos países do MERCOSUL, tendo todos os países membros ratificado a Convenção n. 98, que prevê o direito de sindicalização e negociação coletiva. A Convenção 154, sobre o incentivo à negociação coletiva foi ratificada por Brasil Argentina e Uruguai, e a Convenção n. 87, que trata da liberdade sindical, também foi ratificada pelos países membros, à exceção do Brasil (GUNTHER, 2008: 113). As principais entidades sindicais com competência para representar os trabalhadores e defender seus interesses no âmbito regional são a Coordenação de Centrais Sindicais do Cone Sul, que reúne as Centrais Sindicais dos países membros, representando seus sindicatos laborais e seus trabalhadores; e o Conselho Industrial do Mercosul, que representa os empregadores nas questões sociolaborais no âmbito do Mercado Comum, podendo ainda os sindicatos de determinado setor, ou trabalhadores de uma empresa especifica, firmar acordos e convenções coletivas diretamente com as empresas e sindicatos patronais, assistidos pela Coordenação de Centrais Sindicais do Cone Sul (SOARES FILHO, 2007). Percebe-se, portanto, que a negociação coletiva pode ser utilizada como um importante instrumento de coesão dos países do Mercosul, tornando o bloco mais homogêneo a partir da sua dimensão social, da uniformidade de condições e procedimentos no ambiente de trabalho; podendo, inclusive, concorrer para a instituição de marcos regulatórios no direito internacional do trabalho, e permitir a efetiva participação dos atores sociais no processo de integração regional, dando ênfase à observância dos direitos sociais no processo de integração. Neste aspecto, merece destaque a primeira negociação coletiva firmada no âmbito do Mercosul, que resultou no acordo global assinado pela empresa Volkswagen da Argentina e do Brasil, e pelo Sindicato de Mecânicos de Automotores da Argentina, que destacava a “necessidade de estender acordos das relações entre capital e trabalho no âmbito do Mercosul” , e previa entre suas disposições: o intercâmbio de informações, reunião anual entre empresas e sindicatos, a prevenção de conflitos por meio do diálogo permanente, formação profissional homogênea, reconhecidos os cursos de capacitação em qualquer estabelecimento das empresas no Mercosul, entre outras (LIMA, 2006). 53 Segundo Jorge Rosenbaum e Octavio Racciatti (2006:119), esse acordo coletivo diferencia-se dos demais por não se tratar de negociação coletiva firmada entre um grupo multinacional e um sindicato ou federação internacional ou regional. Esse é um acordo celebrado, pelo lado do empregador, pelas respectivas subsidiárias da Argentina e do Brasil, e pelo lado dos trabalhadores, pelas correspondentes organizações ou comitês que os representam. Em certo sentido, é uma manifestação de um maior grau de descentralização da tomada de decisões e gestão local da empresa multinacional. Mas, ao mesmo tempo, é evidente que o acordo é parte da tendência internacional, já descrita, em direção ao estabelecimento de acordos regulatórios que constituem uma referência para as futuras relações entre as partes. 54 4. ACORDOS GLOBAIS: INSTRUMENTOS CONCRETOS DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA TRANSNACIONAL Os acordos globais, ou acordos marco internacionais, são instrumentos idealizados a partir da década de 1960, e que tem gerado um impacto crescente, especialmente a partir do início deste século, no estabelecimento de normas transnacionais, no âmbito das empresas, constituindo padrões no campo social e laboral a serem observados e aplicados nas relações trabalhistas estabelecidas nas corporações transnacionais. (Platzer e Rub, 2014: 03) Trata-se de uma abordagem desenvolvida pelas Federações Sindicais Internacionais (FSI), que operam em setores específicos, com o objetivo de utilizar negociações e acordos com a administração central das empresas transnacionais (ETN) para implementar componentes específicos de relações trabalhistas em nível transfronteiriço. (Platzer e Rub, 2014: 03). Os acordos globais tem origem essencialmente europeia, continente com forte tradição de diálogo social, onde ainda são realizados a grande maioria dos mencionados acordos. Mas, ainda que enfrente certa resistência, já existem acordos dessa natureza assinados por empresas britânicas, canadenses, japonesas, sulafricanas, e, também, empresas brasileiras, dentre os mais de cem acordos marco internacionais já assinados por empresas transnacionais, indicando uma animadora tendência de expansão desses importantes instrumentos de negociação. Por meio dos referidos acordos, as empresas transnacionais se comprometem ao cumprimento e implementação (descentralizada) dos padrões sociais firmados, com base no corpo de direitos humanos sociais internacionalmente codificados tais quais as normas fundamentais do trabalho estabelecidas pela OIT, presentes na grande maioria dos acordos assinados. Esse compromisso também se aplica às sucursais das EMN‟s, e também, ainda que de forma um pouco diluída, a fornecedores e parceiros. (Platzer e Rub, 2014: 03). Esses acordos têm se mostrado especialmente úteis para superar a assimetria gerada pela globalização, residente no fato de que enquanto o objetivo da ação das empresas multinacionais é crescentemente global, as condições e termos de trabalho 55 dos empregados continuam a ser determinado primariamente no âmbito nacional, variando muito de um país para outro. (Papadakis et al., 2008: 67) Ao possibilitar a regulação e organização das relações de trabalho transfronteiriças pelos próprios interessados, os acordos globais podem ser encarados como uma plataforma de testes práticos de governança privada, que podem fornecer pistas importantes para determinar se, e em que medida, um sistema de normas e regras pode ser eficaz na aplicação dos direitos humanos sociais quando desenvolvido e aplicado através de uma abordagem política baseada na autorregulação por parte de atores sociais. (Platzer e Rub, 2014: 03) 4.1 ACEPÇÃO E ASPECTOS GERAIS DOS ACORDOS GLOBAIS Segundo definição da OIT14, o acordo global, ou acordo marco internacional, “é um instrumento de negociação entre uma empresa multinacional e uma Federação de Sindicatos Internacionais, a fim de estabelecer uma relação contínua entre as partes e garantir que a empresa respeite os mesmos padrões em todos os países onde atua.” Embora ainda haja divergência entre os estudiosos acerca da natureza dos acordos globais15, o conceito apresentado pela OIT nos permite concebê-lo como um instrumento concreto de negociações coletivas transnacionais. Trata-se de acordos de âmbito mundial, realizados diretamente entre capital e trabalho16, entre empresas multinacionais e organizações sindicais internacionais que representam os trabalhadores em nível global, nos quais estas entidades são reconhecidas pelas empresas multinacionais como partes legítimas para, por meio de negociações e do diálogo, resolver conflitos e estabelecer condições de trabalho. A principal característica que os diferencia de demais acordos firmados a partir do diálogo social é o fato das empresas multinacionais reconhecerem a entidade que representa os trabalhadores como um ator global, seja uma federação sindical mundial ou uma organização global de funcionários, rompendo com uma posição historicamente 13 OIT, Imprensa, 2007. Disponível em http://www.ilo.org/global/about-the ilo/newsroom/features/WCMS_080723/lang--en/index.htm (traduçao livre) 15 STEVIS, Dimitris. International framework agreements and global social dialogue: Parameters and prospects. International Labour Organization. Employment Working Paper No. 47, ILO. 16 Idem 56 adotada pelas empresas, que se recusavam a ter qualquer tipo de interações, ainda que informais, com os sindicatos de âmbito global, para não lhes conferir legitimidade. (Stevis, 2010: 5) Originariamente os acordos globais surgiram em decorrência do enfraquecimento do Estado-nação (Hammer, 2008: 89) e como resposta dos trabalhadores ao crescimento da influência das corporações transnacionais nas relações industriais na década de 1960, por meio das três secretarias internacionais do comércio (atualmente renomeadas federações sindicais internacionais), que pretendiam evitar a existência de fragmentação do movimento laboral nas negociações com as corporações transnacionais. (Gallin, 2008: 16) Nessa conjuntura também se destaca o papel dominante da OMC, juntamente com o Banco Mundial e o FMI na formação da arquitetura internacional de comércio e finanças, que facilitou o processo de globalização da economia, sem que, no nível internacional, nenhum contrapeso que pudesse desafiar esses elementos arquitetônicos dominantes tenha sido capaz de estabelecer-se institucionalmente nas áreas relevantes para a política social ou laboral, apesar das normas sociais previstas nos acordos comerciais mundiais, ou mesmo da OIT, que não cumpriu inteiramente seu objetivo de trazer uma dimensão social para a globalização, apesar das várias tentativas que empreendeu desde os anos 1990. (Platzer e Rub, 2014: 4). Os acordos globais são acordos voluntários, não sujeitos a qualquer requisito legal ou regulamentar (Bourque, 2005: 13). Em razão disso, no início, poucas empresas aceitaram receber as delegações das secretarias internacionais do comércio para discutir os problemas que afetavam as relações industriais e suas operações, e, ainda assim, recuavam quando percebiam que as entidades laborais envolvidas esperavam alguma forma de compromisso vinculativo e sérias mudanças nas práticas corporativas da empresa. Assim, não obstante a persistência dos sindicatos, e ampliação de sua organização e atuação, não existiram acordos quadros internacionais nas décadas de 1960-1970. (Gallin, 2008: 25). O primeiro acordo marco internacional foi assinado somente em 23 de agosto de 1988, pela International Union of Food and Allied Workers’Association (IUF) e a companhia transnacional de alimentação BSN (atual Danone, desde 1994), sob o título 57 de “Ponto de Vista Comum IUF/BSN”, em um ambiente amigável de mútuo respeito e confiança, fora de qualquer contexto de conflito, prevendo, por acordo comum entre as partes, a promoção de iniciativas coordenadas em todo o grupo BSN, em quatro questões: a) uma política para formação de competências a fim de antecipar as consequências da introdução de novas tecnologias ou reestruturação industrial; b) uma política visando alcançar o mesmo nível e a mesma qualidade de informação, nos campos econômicos e sociais em todos os locais de subsidiárias da BSN; c) desenvolvimento de condições para assegurar efetiva igualdade entre homens e mulheres no trabalho; d) a implementação dos direitos sindicais, conforme definido em convenções da OIT 87, 98 e 135. (Gallin, 2008: 26) O mencionado acordo global, firmado pela Danone, incluindo os acordos subsidiários, definiu os padrões para novos acordos marco internacionais com empresas transnacionais, e se destaca, ainda nos dias atuais, por sua abrangência e efetividade (Gallin, 2008: 29). A negociação dos acordos globais normalmente ocorre por iniciativa de uma federação nacional filiada a uma FSI (Federação Sindical Internacional) no país onde a multinacional tem sua sede, por meio de contatos informais com o departamento de recursos humanos da empresa. As trocas de informações preliminares entre as FSI e orientações direcionadas às empresas multinacionais também são informais, e, em muitos casos, não são mantidas devido à relutância da direção das empresas em iniciar negociações formais com organizações sindicais internacionais, sem que exista a obrigação legal de firmar tais acordos. (Bourque, 2005: 14). Após os primeiros contatos, os secretários das FSI preparam uma minuta de acordo, que é enviado às federações ou sindicatos nacionais, sendo feitas as modificações necessárias para que sejam abordados os problemas específicos que os sindicatos enfrentam junto à empresa multinacional. Discussões e trocas de propostas são feitas principalmente por meio da internet, por correio ou por telefone, se necessário, sendo preparados pela FSI à qual é ligada a entidade sindical novos projetos de acordo resultantes das alterações introduzidas na negociação. A duração média das negociações é de seis meses, havendo registro de casos que já duraram até quatro anos. (Bourque, 2005: 14) 58 Esses acordos globais preveem princípios e direitos fundamentais do trabalho, que incluem a abolição do trabalho infantil, a proibição do trabalho forçado, a eliminação de todas as formas de discriminação, a liberdade de associação e a previsão de negociação coletiva, fazendo referências às principais Convenções da OIT.17 As demais disposições variam de um acordo para outro, podendo referir-se a outras questões abrangidas por normas da OIT, relacionadas à saúde e segurança no trabalho, salários, treinamentos, entre outros temas, dentre os quais tem ganhado destaque crescente nos acordos a referência à cadeia de fornecimento, mesmo que as empresas fornecedoras não sejam parte do acordo. As empresas multinacionais firmam o compromisso de informar a todas as subsidiárias e fornecedores acerca das condições firmadas no acordo, recomendando a adoção das medidas pactuadas, e acompanhando a adoção dessas medidas, por meio de mecanismos de controle de cumprimento dos acordos, ou impondo-as como obrigações do contrato (Muller et al., 2008: 5). O conteúdo dos acordos marco internacionais mais recentes tem abrangido ainda questões que ultrapassam o campo do direito do trabalho, incluindo novas questões relacionadas às condições de vida dos trabalhadores, suas famílias e de outros cidadãos influenciados pelas atividades da empresa. Um número crescente de acordos globais têm incluído políticas de combate à AIDS. Como passam a integrar as estratégias de responsabilidade social corporativa da empresa, os acordos frequentemente tem abordado também questões socioambientais, como a proteção ao meio ambiente, que permite, inclusive, uma atuação mais ampla dos sindicatos na condução destas questões. (Sobczak, 2007: 123) Para garantir a validade e eficácia das normas acordadas, os mecanismos de implementação e procedimentos de monitoramento são elementos decisivos, que merecem especial atenção. Com a conclusão de um acordo global, as empresas comprometem-se a observar certas condições mínimas de trabalho. Sob o ponto de vista das FSI, é da empresa, portanto, a maior responsabilidade pela aplicação sistemática e observância 17 SOBCZAC, André. Legal Dimensions of International Framework Agreements in the Field of Corporate Social Responsibility. Industrial Relations, vol. 62, n° 3, 2007, p. 466-491 59 do acordo, porque elas tornam-se responsáveis pela integração do conteúdo dos acordos na política corporativa e por assegurar sua execução por meio dos sistemas de gestão existentes. Para as FSI, duas condições prévias são fundamentais para o sucesso da implementação de um acordo global: em primeiro lugar a tradução dos acordos para todas as línguas que sejam relevantes para cada estabelecimento empresarial; em segundo lugar, a garantia de que todos os trabalhadores da empresa serão informados sobre o conteúdo do acordo – incluindo os empregados das filiais, fornecedores e subempreiteiros. (Platzer e Rub 2014: 11) Os procedimentos de publicação, notificação e distribuição dos conteúdos do acordo em todos os locais onde atua a empresa incluem: publicação do acordo no site da empresa e em relatórios sociais e de sustentabilidade, a distribuição de panfletos, bem como a publicação de anúncios em todos os estabelecimentos da empresa. Em alguns casos, procedimentos mais complexos são empregados, como reunião regulares com a gestão de todas as filiais. Ao lado dessas medidas tomadas pelas empresas, as FSI também contribuem para a distribuição e publicação do conteúdo dos acordos, organizando seminários e oficinas regulares para implementação dos acordos com representantes sindicais e trabalhadores de diferentes regiões do mundo e incentivando as entidades sindicais filiadas a informar os representantes dos trabalhadores acerca do conteúdo dos acordos globais em todas as reuniões locais e nacionais. (Platzer e Rub, 2014: 11) Outro ponto crucial, sob o ponto de vista das FSI, é a criação de mecanismos eficazes de acompanhamento do acordo, desafio central na implementação de um acordo global, e que pode ser feito por meio de diferentes abordagens. Um dos procedimentos utilizados é o acompanhamento por meio de certificação externa, auditoria, ou órgãos similares, o que não é bem aceito pelos empregados e sindicatos laborais. Em primeiro lugar, devido à complexidade da cadeia de produção, que dificulta o monitoramento de todos os fornecedores por parte dos agentes externos. Outro motivo é a falta de experiência e know-how das agências externas para acompanhar o cumprimento de direitos sociais e trabalhistas. Por fim, existe o perigo de que os representantes sindicais e dos trabalhadores sejam excluídos do processo de supervisão dos acordos internacionais, e que as empresas que contrataram as 60 agências externas retenham o controle exclusivo sobre o processo de monitoramento. Assim, as FSI só tendem a aceitar a supervisão externa como instrumento complementar para monitorar rede de fornecedores complexos e extensos, e apenas nos casos em que existem acordos claros sobre o processo de acompanhamento concreto e utilização dos resultados gerados por essas agências. (Platzer e Rub, 2014: 11) Para as FSI, o único sistema eficaz para garantir uma “supervisão independente” é o monitoramento no local por empregados e seus sindicatos, embora faltem os recursos necessários para tanto, uma vez que o monitoramento nestes moldes exigiria a presença de sindicatos independentes em cada uma das sedes da empresa e de seus fornecedores. Diante deste cenário, a maioria das FSI concentram seus esforços em fazer parte do desenvolvimento de procedimentos de monitoramento elaborados pelas empresas, sendo continuamente informados e consultados durante este processo. (Platzer e Rub, 2014: 12) A criação de mecanismos eficazes de resolução de conflitos para resolver violações às estipulações de um acordo quadro internacional representa mais um passo importante na implementação prática destes acordos. A resolução de conflitos entre as empresas e os trabalhadores tornam-se mais fáceis quando os sindicatos e empresas desenvolvem antes, e independentemente, de quaisquer disputas concretas, um processo específico e eficiente para lidar com possíveis violações dos acordos, com a respectiva previsão de sanções na hipótese de não serem sanadas as infrações. (Platzer e Rub, 2014: 12) Vários AMI‟s definem procedimentos especiais que permitem aos trabalhadores registrarem reclamações quando os direitos previstos nos acordos não são respeitados. Normalmente o representante local dos trabalhadores se reúne com a gestão local. Não havendo resolução do problema, os trabalhadores ou sindicatos podem entrar em contato com o sindicato nacional da empresa. Se ainda assim o problema não for resolvido, a questão terá que ser discutida diretamente pelos signatários do AMI. (Sobczak, 2007: 124) Na sua grande maioria, os AMI‟s estabelecem um acompanhamento regular, seja pela CER, ou por um comitê especial de signatários. Normalmente é realizada uma 61 reunião anual entre a gestão da empresa e a parte que representa os trabalhadores para discutir acerca das ações adotadas e das dificuldades enfrentadas na implementação do acordo, como também para realizar alteração no texto inicial e avaliar o impacto do AMI. (Sobczak, 2007: 124) Dentre os objetivos almejados pelas Federações Internacionais por meio da celebração de acordos marcos internacionais destacam-se a garantia de padrões mínimos de trabalho em todos os locais onde atua a empresa transnacional pactuante, seus fornecedores e subsidiárias, com o fim de melhorar as condições gerais de trabalho; estabelecer um relacionamento contínuo de diálogo e negociação com a empresa transnacional e suas diretorias e gerências regionais e nacionais, uma vez que essas empresas reconhecem estas entidades sindicais como legítimas representante dos trabalhadores na assinatura de um acordo global; usar os acordos marco internacionais para colaborar com a organização de estruturas sindicais nos locais operados pelas empresas multinacionais e seus fornecedores; bem como utilizá-los para criação de uma rede sindical internacional relacionada às empresas transnacionais, a fim de melhorar a cooperação entre as organizações sindicais, uma vez que uma eficaz estrutura de representação sindical dos trabalhadores no âmbito local, e a cooperação sindical em esfera global, são essenciais para um processo duradouro de melhoria contínua das condições de trabalho no domínio internacional. Por outro lado, percebe-se, por parte das ETN‟s, que uma boa parte das que firmaram acordos globais demonstravam abertura para o diálogo social com os sindicatos anteriormente, no âmbito local, nacional, ou internacional. Em outros casos, porém, as empresas multinacionais têm negociado um acordo desse tipo com o nítido fim de restaurar sua imagem corporativa manchada por denúncias públicas de práticas de negócios ou de trabalho irregulares (Bourque, 2005: 13). Entretanto, percebe-se que, ainda que desenvolvidos em um ambiente de conflito, não abrangendo todo o conteúdo possível, e, mesmo que haja dificuldades de divulgação e implementação, os acordos globais, dos mais simples aos mais amplos, sempre terão o importante papel de promover o diálogo social entre empresa e trabalhadores, o que constitui o primeiro passo para relações sociais mais equitativas e justas. 62 4.2 EVOLUÇÃO QUANTITATIVA E ANÁLISE QUALITATIVA A crescente vulnerabilidade social decorrente do processo de globalização econômica tem provocado uma tendência à cidadania corporativa responsável, abrindose uma janela de oportunidade que vem sendo utilizada pelos sindicatos transnacionais para impor sua nova política baseada em acordos bilaterais com empresas, que, por sua vez, têm dado importância cada vez maior às práticas de responsabilidade social corporativa (RSC). (Platzer e Rub, 2014: 6) Na atual arquitetura da governança global, os acordos marco internacionais constituem instrumento útil, e até mesmo indispensável, para o estabelecimento de normas sociais mínimas globalmente aplicáveis em empresas que operam em âmbito internacional. (Platzer e Rub, 2014: 6) Desde 2000, um crescente número de AMI‟s tem sido negociados no campo da RSC entre companhias multinacionais, principalmente as europeias, e as Federações de Sindicatos Internacionais do Comercio (FSI). O desenvolvimento dessa forma de regulação, visando definir padrões de trabalho para empresas, suas sucursais e às vezes seus subcontratados, é facilitada por dois elementos convergentes. Por um lado, as empresas pretendem aumentar a legitimidade e credibilidade das suas estratégias no campo da RSC pela transformação de seus compromissos unilaterais por estratégias e termos negociados. Por outro lado, os sindicatos reconhecem que tais estratégias negociadas podem complementar a existência dos instrumentos de regulação social nacional e internacional já existentes, instrumentos que são inadequados para superar os desafios da globalização (Sobczak, 2007: 115). O quadro abaixo mostra a evolução quantitativa dos Acordos Globais de 1994 até 2012: 63 Fonte: Hessler, 2012: 326 Destacam-se entre os principais fatores que contribuíram para a multiplicidade de acordos globais nos últimos anos, os seguintes: a) a resposta do movimento sindical para os desafios da globalização através de uma serie de fusões em 1990-2006, de modo a conduzir a transformação das secretarias internacionais de comercio (ITS) em federações sindicais internacionais do comércio (FSI); b) o fortalecimento dos esforços de integração regional, especialmente na Europa, favorecendo a criação de um nível supranacional de representação social; c) um movimento paralelo de negociações de grupos de empregadores para negociações com empregador único. Deve ser sublinhado que embora os AMI‟s sejam instrumentos transnacionais, dizem respeito a um único empregador e não a todo um setor de atividades. d) a emergência de uma nova geração de representantes das empresas e dos trabalhadores, acostumados a um amplo quadro de práticas inovadoras sob a influência da globalização. Em particular, como a estrutura das EMN‟s modernas se tornaram cada vez mais organizadas em torno de unidades nacionais de produção globalmente integradas, tem havido uma consequente necessidade de harmonização entre os níveis nacional e global do ponto de vista tanto da empresa como dos sindicatos dos trabalhadores. (Papadakis, 2008: 6) 64 Importante destacar que as estratégias desenvolvidas individualmente pelas Federações Sindicais Internacionais dependem em grande medida de fatores sindicais internos. AS FSI são entidades que organizam sindicatos nacionais, que, de acordo com suas tradições e estruturas nacionais de relações laborais, têm diferentes abordagens para os acordos globais. Os sindicatos de países com relações de trabalho caracterizadas pela voluntariedade, assinaladas por conflitos (como os EUA e GrãBretanha) tendem a ver os acordos globais como um instrumento de organização sindical, enquanto os sindicatos de países que possuem maior tradição de diálogo social (como na Europa e, sobretudo, na Alemanha, Suécia e países baixos) vêem os acordos globais como um primeiro passo pragmático para o desenvolvimento de um relacionamento contínuo com base no diálogo com as empresas e como solução de problemas concretos no nível internacional. (Platzer e Rub, 2014: 9). Essa posição adotada pelas entidades sindicais também reflete na distribuição territorial dos acordos globais assinados no mundo. Distribuição territorial dos AQI: FIGURA 2 Fonte: Hessler 2012: 326 65 Não obstante se perceba o crescente aumento do número de acordos globais assinados no mundo, deve-se frisar que a estratégia quantitativa, inicialmente adotada pelas FSI a o fim de concluir o maior número possível de acordos globais, tem sido substituída no decorrer dos últimos anos por uma estratégia qualitativa, com maior ênfase no estabelecimento de mecanismos de aplicação eficazes. Enquanto na década de 1990 e na primeira década do novo século, o foco era atingir um número significativo de acordos, a fim de aumentar a pressão sobre as empresas relutantes e as instituições políticas, com o passar do tempo os aspectos qualitativos tornaram-se cada vez mais importantes. O aumento do teor de regulamentação dos acordos globais, conforme será demonstrado, é uma expressão dessa mudança de estratégia ocorrida nos últimos anos, ao preço de um futuro decréscimo no número de acordos celebrados. (Platzer e Rub, 2014: 10). O conteúdo regulatório dos acordos globais foi analisado por Platzer e Rub (Platzer e Rub, 2014: 10), a partir de vários outros estudos e coleta de dados, dando forma a um panorama acerca dos principais temas abordados nos acordos já firmados: o A grande maioria dos acordos globais compreendem as quatro normas fundamentais do trabalho da OIT. Geralmente, referem-se também a um ou mais conjuntos de regulamentos internacionais, incluindo, por exemplo, o Pacto Global, a Declaração de Direitos Humanos da ONU, ou as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais; o Muitos acordos vão além das normas fundamentais do trabalho e também incluem temas como a proteção da saúde no local de trabalho, salários justos e formação profissional contínua; o Quase a metade dos acordos firmados incluem cláusulas sobre as horas de trabalho e horas extras; o A maioria dos acordos firmados incluem disposições relativas a procedimentos institucionalizados para acompanhamento do acordo e a arbitragem como meio de resolução de conflito 66 o Grande parte dos acordos, mas não todos, estabelecem procedimentos para comunicar o conteúdo dos acordos a fornecedores e parceiros comerciais, havendo diferenças consideráveis quanto à força vinculativa dos compromissos assumidos. Nesse último ponto, pode ser feita uma distinção entre três diferentes abordagens. Uma abordagem consiste em o fornecedor ter sido apenas informado da existência do acordo e demonstrar a intenção de apoiar a execução dos compromissos assumidos. A segunda abordagem coloca o cumprimento do acordo como um critério para estabelecer relações de negócio. E a última consiste em impor o cumprimento dos acordos como requisito fundamental para o estabelecimento de relações comerciais, podendo ocorrer a interrupção das relações comerciais no caso de violação continuada dos compromissos assumidos. (Platzer e Rub, 2014: 10) Hammer destaca ainda que acordos firmados em um nível mais avançado de diálogo social referem-se também a normas privadas, tais como o ISO 8000, ISSO 14001 da International Organization for Standardization ou a Declaração Conjunta sobre Responsabilidade Social Corporativa entre Euro Commerce e UNI-Europa Commerce. (HAMMER, 2008: 98) A implementação local destes acordos é elemento fundamental para sua eficácia, e depende, por uma lado, das atividades de implementação oriundas da gestão da empresa e atuação das FSI, como a publicação do conteúdo e auditorias, e, por outro, do comportamento dos atores locais. (Platzer e Rub, 2014: 13) Estudos realizados no Brasil, Índia, México, Turquia e EUA (Fichter et al. 2012 apud PLATZER, 2014: 13) acerca da implementação dos AMI‟s mostram o seguinte: o Fatores setoriais específicos de cada país são importantes na implementação do quadro de termos internacionais ajustados. O trabalho infantil, por exemplo, só desempenha papel significativo na implementação de um acordo quadro internacional em setores específicos (como as indústrias têxtil e de alimentos) de certos países (como a China, Índia e Bangladesh. 67 o Problemas substanciais estão envolvidos na implementação de AMI‟s, dentre os quais se destaca a publicação e comunicação inadequada dos termos do acordo que impede que a informação chegue a todos os trabalhadores, entidades sindicais e gestão das filiais das empresas; (b) mesmo havendo satisfatória divulgação do AMI, muitas vezes os atores locais não estão conscientes das possibilidades que existem para a aplicação do acordo; (c) a execução dos AMI‟s pode ser dificultada pelos sindicatos laborais ou gestão local das empresas, como ocorreu na Turquia e México, onde os sindicatos laborais obstaram a implementação do acordo, a fim de garantir o seu estatuto privilegiado sindical nas fábricas. Em outros casos, a administração local ou nacional das empresas tem impedido a implementação de um AMI, simplesmente ignorando as disposições que ele contém; (d) a implementação de um AMI na cadeia de fornecedores pode ser particularmente difícil, esbarrando, intransponíveis, em quando algumas estas situações, cadeias em barreiras tornam-se muito complexas, envolvendo empresas terceirizadas que muitas vezes não possuem qualquer canal de comunicação com a empresa signatária do AMI. o Os acordos quadro internacionais tem gerado impacto na relações trabalhistas no âmbito das empresas transnacionais. Mesmo que sua implementação, muitas vezes, ainda ocorra de forma inconsistente ou seletiva, limitada a providências específicas. Um caso que merece destaque, como exemplo de implementação de AMI, é o firmado pela Faber Castell. Neste caso, o cumprimento das disposições do acordo é monitorado por meio de um sistema de três fases. Na primeira fase, checklists sociais são usados para que a gestão local em todos os estabelecimentos da empresa possam informar regularmente a gestão central da empresa quanto à implementação e observação dos AMI‟s. Na segunda fase os representantes da gestão central e os 68 responsáveis pelo controle de qualidade da empresa cooperam com a realização de auditorias internas nos diversos estabelecimentos da Faber Castell espalhados pelo mundo. Na terceira fase, todos os estabelecimentos da Faber Castell são inspecionados a cada dois anos por uma comissão de acompanhamento composta por dois representantes da gestão local e da gestão central da empresa e representantes da força laboral e sindical. O objetivo é verificar o resultado das auditorias internas e a aplicação do acordo global. (Fichter et ai 2012; Hessler 2012 apud PLATZER, 2014: 13) Há, portanto, desenvolvimento dos um crescente acordos aumento globais. Ainda quantitativo e qualitativo existem muitas no dificuldades, principalmente em sua implementação e acompanhamento. No entanto, novos e eficientes mecanismos têm sido desenvolvidos por empresas transnacionais socialmente responsáveis para garantir o cumprimento destes acordos e lhes conferir maior efetividade, promovendo, assim, uma contribuição para a melhoria das relações laborais no âmbito mundial. 4.3. DIMENSÃO LEGAL E AVALIAÇÃO DO IMPACTO DOS ACORDOS GLOBAIS Os acordos marco internacionais vêm se revelando efetivos instrumentos de harmonização de interesses e regulação social privada, embora não exista um quadro legal internacional que os ampare juridicamente e lhes confira a necessária segurança jurídica para sua plena eficácia e disseminação. Ainda que, emergindo do diálogo social, estejam em conformidade com o modelo social europeu, os AMI‟s não encontram sustentação legal nos níveis nacional e internacional, não obstante sofram o impacto do ambiente jurídico nacional e internacional aos quais se destinam. Correspondem, assim, a uma nova forma de regulação social, criada pelos atores sociais, sem um quadro legal preciso. Desta forma sua análise legal interessa não só aos parceiros sociais signatários destes instrumentos, como também às organizações internacionais que podem desempenhar um importante papel no desenvolvimento de um quadro legal para os AMI‟s, e de forma geral, paras as negociações coletivas transnacionais. (Sobczak, 2007: 116) 69 Não possuindo os AMI‟s qualquer apoio ou ligação institucional a uma ordem jurídica particular, passam a confrontar-se com a dificuldade de ter sua natureza legal definida sob uma perspectiva jurídica clássica. Entretanto, uma perspectiva sociológica do direito internacional, conhecida como “objetivismo sociológico”, permite uma compreensão da dimensão jurídica do AMI a partir da teoria de que a lei não se restringe a uma forma de regulação estatal de cima para baixo, mas que deve ser compreendida como um meio para resolver uma necessidade de organização social no contexto da crescente atividade transfronteiriça gerada pela globalização. (Papadakis et al., 2008: 82) Segundo George Scelle, principal proponente desta abordagem, o objetivo das normas, incluindo os acordos privados, é satisfazer a necessidade social dos indivíduos e dos seus grupos e organizar as relações sociais, incluindo as relações de trabalho, no contexto de uma sociedade global resultante da interpenetração dos povos por meio do comércio internacional, em que os indivíduos estão no centro da ordem jurídica internacional. (Scelle, 1932;1934 apud Papadakis et al., 2008: 82) A função inovadora dos AMI‟s como instrumentos de criação de espaços de diálogo e interação entre atores sociais (sindicatos globais e EMNs) dentro desta perspectiva sociológica do direito, faz com que estes acordos sejam vistos como um fenômeno supra estatal decorrente de uma necessidade social para organizar as interações globais entre a gestão da EMN e sua força de trabalho na era da globalização. Os AMI‟s refletiriam o resultado da interação entre estes atores sociais que necessitam disciplinar suas relações e, de fato, construir o seu próprio quadro legal em âmbito transnacional, acompanhando a dinâmica criada pelo comércio e investimentos internacionais. O quadro jurídico surgido a partir dessa interação poderia coexistir com outras ordens jurídicas, incluindo as negociações coletivas firmadas pelos parceiros sociais no âmbito local, nacional ou regional, que podem incluir os AMIs como parte das iniciativas que se reforçam mutuamente para a institucionalização de um quadro de relações laborais globais. (Papadakis et al., 2008: 82) Contudo, até que seja construído este quadro legal pelos parceiros sociais, os AMIs continuam sendo firmados sem sustentação jurídica no plano internacional, 70 fazendo com que aqueles que querem adotá-los como forma de regular suas relações sociais sugiram novas soluções para sua efetiva implementação. Um dos problemas a ser enfrentado é a legitimidade dos signatários dos AMIs no que diz respeito à representação de todos os trabalhadores da cadeia produtiva, por parte dos sindicatos laborais, e de todas as subsidiárias, e até fornecedores e subcontratados, aos quais são imputados obrigações por meio destes acordos globais. Por parte das empresas, um ou mais representantes assinam o AMI, cabendolhe a responsabilidade pelo cumprimento dos acordos. Quando estes acordos preveem compromissos a serem cumpridos também pelas subsidiárias, surge um problema de representação. Embora o procedimento adotado reflita a realidade dos poderes econômicos dentro do grupo, cada uma das empresas subsidiárias tem sua própria personalidade jurídica, o que independe da integração do grupo econômico. Essa fragilidade de representação torna-se mais evidente quando o AMI define regras para subempreiteiros e fornecedores, que não participam das negociações, e cuja personalidade jurídica própria constitui impedimento para que a gestão da empresa signatária do acordo negocie por eles. (Sobczak, 2007: 117) Para tornar possível a negociação e assinatura dos AMIs pelas gestão da ETN em nome também de suas filiais e subcontratadas, far-se-ia necessário que essas lhe conferissem um mandato com poderes para negociar compromissos juridicamente vinculativos. Um mandato dessa natureza, com fulcro na legislação competente, consolidaria o valor legal do AMI e conferiria à empresa controladora certa responsabilidade para garantir o cumprimento dos acordos. (Sobczak, 2007: 117) Por parte dos trabalhadores, também deve ser analisada a questão da legitimidade da parte signatária para representar todos os trabalhadores da cadeia de produção, em todo o mundo, que mantém vínculo de trabalho com a empresa com a qual é firmado o AMI. Para sanar essa debilidade, já existem AMI negociados de forma inovadora, incluindo representantes de sindicatos nacionais de todos os países onde a empresa atua. Essa abordagem facilita a aplicação efetiva do AMI alicerçado no diálogo social local, e reflete o princípio da subsidiariedade, mantendo os direitos sociais fundamentais que se aplicam a todo o grupo definidos pelo AMI, e estimulando as 71 negociações descentralizadas em outros níveis, considerando os diferentes contextos nacionais. (Sobczak, 2007: 121) Ainda considerando os diferentes contextos nacionais em que se encontram as subsidiárias e contratadas afetadas pelo AMI, é necessário que estes acordos façam referência às leis nacionais e convenções coletivas que devem ser observadas localmente. Em muitos Estados, o poder público não possui meios suficientes para controlar a observância do direito do trabalho, e mesmo havendo normas sociais juridicamente vinculativas, estas, muitas vezes, não são eficazes. Assim, quando o AMI prevê o cumprimento da legislação nacional, a eficácia destas normas podem ser ampliadas, inclusive por meio dos mecanismos de implementação e monitoramento do acordo. (Sobczak, 2007: 123) Sendo os acordos globais compreendidos como “soft law”, por não constituírem instrumento legalmente previsto no Direito Positivo, uma forma de conferir-lhes efeito legal é integrá-los a outras normas juridicamente vinculativas. Muitas empresas incluem seu AMI em contratos com os subcontratantes. As empresas também podem referir-se aos AMI nas convenções coletivas realizadas em cada país, ou acordos coletivos celebrados por cada filial, o que reforça a participação dos atores locais na implementação dos acordos firmados. Essas medidas conferem ao AMI os efeitos jurídicos de uma convenção coletiva nos termos da legislação trabalhista nacional, aumentando a segurança jurídica dos acordos globais. (Sobczak, 2007: 125-126) Os tribunais também podem reconhecer os efeitos jurídicos de um AMI, mesmo que não estejam incorporados a outras normas legais, se o contrato tiver sido aplicado ao longo de um determinado período de tempo. Em muitas leis trabalhistas nacionais, regras consuetudinárias garantem aos trabalhadores que os benefícios sociais não podem ser retirados, salvo a observância de procedimentos específicos previstos para tanto. (Sobczak, 2007: 126) A falta de previsão legal específica acerca dos AMI, ainda que seja possível ver neles algum valor legal, causa certa insegurança jurídica às entidades sindicais representantes dos trabalhadores e às empresas. É importante que os sindicatos demonstrem que sua participação nas negociações e nos acordos contribuem para a criação de vantagens concretas para os seus trabalhadores no âmbito local, e que o 72 não cumprimento do AMI pode levar a penalidades. Caso contrário, os sindicatos podem ser utilizados neste processo como meras estratégias de marketing social das empresas. Por outro lado, a falta de segurança jurídica também é um problema para as empresas. Uma empresa que assinou um AMI pode temer decisões judiciais adversas se uma ação for intentada contra ela porque uma (ou mais) de suas filiais ou subcontratadas não conseguiu cumprir o AMI, mesmo que a própria empresa tenha usado seus poderes econômicos para tentar forçá-lo a atuar em conformidade com os termos do acordo. É importante para as empresas avaliar o risco legal de assinar um AMI. Também é essencial que as empresas que assinam um AMI e não consigam cumpri-lo sejam penalizadas, para evitar o descrédito de todos os acordos globais dessa natureza. (Sobczak, 2007: 127) Para garantir maior segurança jurídica aos acordos globais, é necessária a constituição de um quadro jurídico para a negociação coletiva transnacional. Este quadro legal deve nomear os negociadores legítimos de ambas as partes representadas, empregadores e empregados, podendo impor aos parceiros sociais um determinado conteúdo mínimo, bem como disposições relativas ao alcance das normas negociadas e ao processo de monitoramento, deixando às partes uma ampla margem de liberdade quanto à definição dos procedimentos e demais conteúdos a serem negociados. Finalmente o quadro deve definir o valor legal e o impacto dos acordos globais, apresentando-se como solução mais adequada a previsão da obrigatoriedade do AMI ser adotado em cada país de acordo com as legislações nacionais dos países em que a empresa possui filiais, seja por meio de decisões de gestão unilaterais, ou por meio de acordos coletivos. (Sobczak, 2007: 128) A despeito da ausência da segurança jurídica necessária a sua plena e efetiva implementação, os AMIs têm gerado significativo impacto na melhoria das relações laborais e garantia de direitos sociais no nível transnacional. As pesquisas de Platzer e Rub apontam que as evidências empíricas a respeito destas questões ainda são incompletas, mas permitem as seguintes conclusões (Platzer e Rub, 2014: 15-17): o Acordos globais são, em termos de crescimento e número atual, o elemento mais dinâmico entre as ferramentas utilizadas nas relações sociais no nível transnacional; 73 o Trata-se de instrumento ideal para ser desenvolvido de forma flexível, que pode se adaptar a uma ampla gama de condições em diferentes empresas e setores, com enorme potencial para assegurar padrões mínimos sociais a partir se sistematicamente implementados, superadas as dificuldades de limitação dos recursos sindicais disponíveis nas áreas de implementação e monitorização; o A assinatura dos AMIs denotam o reconhecimento oficial das FSI como parceiros de diálogo e negociações no âmbito corporativo global, o que reforç o potencial organizativo das FSI, que passam a ocupar um papel independente no campo de definição dos padrões sociais globais, aperfeiçoando a representação sindical no nível global; o Os AMI contribuem para a manutenção e renovação do discurso em torno dos direitos humanos sociais, com o fim de assegurar a aplicação destes direitos, destacando a legitimidade destas normas, e reconhecendo os direitos sociais como uma obrigação, também, de governança privada, e como um compromisso fundamental da política social; o Os resultados empíricos disponíveis acerca da aplicação e efeitos observáveis de AMIs mostram exemplos de impactos positivos, mas específicos, limitados às zonas problemáticas de determinados locais, e seletivos. Platzer conclui sua análise, observando que, devido a seu caráter voluntarista, e porque ainda existem em número limitado, AMIs devem ser visto, em escala global, como instrumento complementar no fortalecimento dos direitos humanos sociais. Os AMIs não podem substituir as soluções políticas e jurídicas, nem podem eles próprios serem substituídos no papel de reforçar e exigir estas soluções políticas e jurídicas voltadas aos direitos humanos sociais. Afinal, os acordos globais criam um canal adicional para a comunicação, implementação e monitorização dos direitos humanos 74 sociais, ao tempo em que estabelecem condições prévias para esse impacto social, promovendo a articulação internacional dos sindicatos e contribuindo para a regulação das relações de trabalho transnacionais no nível corporativo. (Platzer e Rub, 2014: 17) 75 5. CONCLUSÃO Com o fenômeno da globalização, o Estado passou a compartilhar sua titularidade de iniciativa normativa com diferentes atores sociais, o que provocou uma redução do seu poder regulatório, por força, principalmente, das instituições supranacionais, como as organizações multilaterais, blocos regionais, corporações transnacionais e organizações não governamentais, que passaram a produzir normas de alcance global que competem com as normas estatais, até então soberanas e incontestáveis. Essa conjuntura propiciou o surgimento de uma nova realidade jurídica, caracterizada pela proliferação, nos mais diversos campos da sociedade, de regulações privadas, que embora sejam constantemente questionadas pela ausência de um quadro jurídico que as ampare e lhes confira validade legal, já gozam de certa legitimidade social, atribuída por seus destinatários, que passaram a adotá-las pela necessidade de regular situações que transcendem as fronteiras do Estado, ou nas quais a entidade estatal não se mostrou capaz de disciplinar com eficiência. As relações laborais transfronteiriças caracterizam esta ineficiência do Estado na regulação das relações sociais transnacionais, abrindo espaço para o desenvolvimento de negociações com vistas à constituição de normas que garantam aos trabalhadores de categorias econômicas específicas, ou de determinada empresa multinacional, direitos sociais mínimos, independente do país em que exerçam seu trabalho, por meio das negociações coletivas transnacionais. Não obstante as dificuldades enfrentadas para o regular e efetivo desenvolvimento destas negociações internacionais, principalmente no que concerne à inadequação das entidades sindicais, disponibilidade para negociações por parte dos agentes econômicos, e dificuldades de ordem prática e legal, como a divulgação e implementação das normas negociadas em toda a cadeia de produção e adequação destas normas à legislação local, trata-se, indiscutivelmente, de um avanço no diálogo social no domínio global. Tornou-se possível o debate entre os representantes do capital e do trabalho, sendo, estes últimos, reconhecidos como sujeitos ativos na elaboração e estabelecimento de um padrão sócio laboral a ser observado em esfera mundial. 76 Na esteira das negociações transnacionais, surgiram os acordos globais, como instrumentos concretos destas negociações coletivas, realizados no âmbito das corporações transnacionais, entre a empresa e seus empregados, aplicáveis a todas as sucursais, e muitas vezes alcançando empresas subcontratadas e fornecedores. Ainda que se perceba, mesmo no curso das negociações coletivas, uma constante tensão entre as classes empregadora e de trabalhadores, é possível se alcançar, por meio dos acordos firmados, uma convergência de interesses, em que todos sejam beneficiados. Com as negociações coletivas transnacionais, seja na esfera setorial, ou no âmbito das corporações transnacionais, todos os atores sociais têm muito a ganhar. Adotando os acordos em nível transnacional, as corporações internacionais podem se beneficiar com a flexibilidade das condições concernentes às relações de trabalho, diretamente negociadas pelas partes interessadas, e com a possibilidade de conduzir as negociações com vistas a uma maior produção e um melhor desempenho nas suas atividades. Os trabalhadores também são favorecidos, reconhecidos como sujeitos ativos na elaboração das normas que regulam as relações trabalhistas, podem exigir e implantar melhores condições de trabalho para a categoria que representam ou no âmbito da corporação transnacional em que trabalham, e difundir as conquistas obtidas a outros locais no mundo onde os trabalhadores não gozem de proteção social adequada, por ineficiência do Estado, ou, até mesmo, pela inexistência de políticas públicas nacionais que ampare as classes sociais mais frágeis. As negociações coletivas transnacionais beneficiam também, ainda que de forma transversa, o Estado. A despeito da redução no seu papel regulatório na sociedade globalizada, o Estado possui uma posição exclusiva, simbólica e institucional no plano nacional e internacional, desenvolvendo papel essencial na coordenação e adequação de interesses e no desenvolvimento de políticas públicas que aperfeiçoam o funcionamento do mercado e protegem as classes sociais mais vulneráveis. Ainda assim, o ente estatal não se mostra capaz de atuar em todos os setores sociais - que já não mais observam as fronteiras físicas dos territórios - de forma exclusiva e eficaz. 77 Dessa forma, incapaz de disciplinar as relações trabalhistas transfronteiriças, o Estado pode beneficiar-se dos acordos globais firmados, permitindo e fiscalizando sua implantação local e aplicação das suas normas, que interessam às empresas e trabalhadores, para garantir maior eficiência e produtividade aos estabelecimentos empresariais instalados no seu território, bem como para a melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores que se encontram sob sua jurisdição, o que permite resultados benéficos para o bem estar social dos seus cidadãos e para a economia estatal. Mesmo já existindo mais de uma centena de acordos desta natureza, assinados desde o final do século passado, ainda trata-se de um instrumento novo, sem um quadro jurídico que lhe dê amparo legal, e desprovido de mecanismos que assegurem sua implementação efetiva em toda a cadeia produtiva. Contudo, constituem instrumentos negociais com grande potencial de desenvolvimento, que já produzem efeitos concretos no âmbito do espaço no qual foram firmados, e que vem contribuindo para o gradativo aperfeiçoamento de uma relação mais equânime entre empresa e trabalhadores, por meio do dialogo e fixação de normas que atendam aos reais interesses das partes envolvidas e que, em conjunto com outros instrumentos políticos e sociais, tem o poder de disseminar e ampliar a garantia dos direitos humanos sociais no âmbito global. 78 6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECK, Ulrich. O que é globalização?.São Paulo: Paz e Terra, 1999. BÜTHE, Tim. "Governance through Private Authority? 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