FONTES PARA O ESTUDO DA CORPORALIDADE ENTRE OS GUARANI Prof. Dr. Oséias de Oliveira (DEHIS/I-UNICENTRO), Prof. Dr. José Ronaldo M. Fassheber (PqC/DEDUF/G-UNICENTRO), Prof. Ms. Francismar Alex Lopes de Carvalho (DEHIS/G-UNICENTRO) e-mail: [email protected] Palavras-chave: guarani, corporalidade, fonte histórica. Resumo: A partir dos relatos dos hinos, mitos e preces sagradas dos guarani coletados por importantes pesquisadores como Kurt Nimuendaju, Pierre Clastres e Leon Cadogan, os quais revelam a complexidade do pensamento místico-religioso deste grupo étnico, pretende-se com este trabalho estabelecer uma reflexão acerca da interface da corporalidade na sociedade ameríndia. Introdução Presente nos relatos dos cronistas, desde os primeiros contatos dos nativos ameríndios com os europeus, o outro – indígena assumiu nos séculos XVI e XVII uma função que variou entre o deslumbramento, a apologia da pureza, da docilidade e falta de malícia, para em seguida à uma convivência mais prolongada serem destacados como sujeitos responsáveis por aspectos repugnantes, como as festas orgiásticas, o canibalismo, a guerra e a poligamia. Numa terceira fase, deste período, os relatos são cambiados para uma identificação do outro-indígena como aquele capaz de se revoltar com os agravos provocados pelos colonos, sejam eles espanhóis ou portugueses. (MESGRAVIS, 2001). No século XVIII, quando a Ilustração assume o paradigma principal para engenheiros, cartógrafos e naturalistas, a necessidade de inventariar as riquezas leva a identificação do indígena por meio da pintura-etnográfica, a qual acabou por se caracterizar pela fascinação e fundamentar no chamado registro natural. Ainda que o modelo visual dos nativos estivesse muito preso ao século XVII, estas representações dos ameríndios proliferaram na sociedade européia (ALEGRE, 1998). Para o Brasil do século XIX, preocupado com a busca do auto-conhecimento, da origem, das raízes e da produção de obras brasileiras, as representações dos nativos também em grande parte textuais e pictóricas realizadas pelos viajantes descreveram muito mais aspectos culturais nativos, como os ritos, as festas, a vida cotidiana, as cenas de família, etc. Reproduzidas de forma exaustiva, por livros didáticos e trabalhos científicos, estas produções impregnaram o imaginário coletivo brasileiro (ALEGRE, 1998). Vistos de acordo com os códigos estéticos de cada época, pode-se considerar que os indígenas se distinguiam mais pela ornamentação e práticas do que pelos traços faciais e raciais (BELLUZZO, 1998). A atenção para estas representações indicam que havia muito mais uma intenção de harmonização entre as partes. O interesse pelo outro-indígena, continuou ao longo dos anos, até que no século XX, a busca de novos esquemas teóricos na História e na Antropologia levou–as compreender que o universo cosmológico dos ameríndios da região meridional, principalmente dos guarani, era muito mais complexo do que se pressupunha e exigia, portanto, um esforço maior de compreensão fundamentado nos registros do pensamento metafísico-religioso do nativo. Materiais e métodos Foi Kurt Nimuendaju e seu clássico trabalho As lendas da criação e destruição do mundo como fundamento da religião do apopokuva-guarani (NIMUENDAJU, 1987) que marcou a transição da perspectiva dos naturalistas viajantes do século XIX para aquela moderna Antropologia que inspiraria LéviStrauss, Alfred Metraux, Pierre Clastres e Helene Clastres no interesse da renovação teórica da etnologia sul-americana (VIVEIROS DE CASTRO,1987). Publicado em 1914, o texto revela uma preocupação com o complexo profético-migratorio dos guarani que se deslocavam pelo Mato Grosso, Paraná e São Paulo em direção ao litoral. Após um período de cerca de trinta e oito expedições, um amplo conhecimento da realidade indígena brasileira, Kurt Nimuendaju, juntamente com sua vasta produção bibliográfica foi transformado na maior autoridade da primeira metade do século XX sobre os guarani. As questões abertas por Nimuendaju a respeito das raízes do misticismo guarani, foram levadas adiante por Leon Cadogan, o qual tornou-se responsável por fundamentar tal questão na influência do contato jesuítico com os guarani. Em seu trabalho Ayvu rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá (CADOGAN 1992) o profetismo dos Mbyá-Guarani é aprofundado e entendido como o pólo orientador da vida religiosa. A partir destes trabalhos de aberturas temáticas, a questão do profetismo guarani e sua raiz mística continuou com Pierre Clastres, em seus vários ensaios sobre este grupo étnico. Na coletânea de cantos míticos, A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios Guarani (CLASTRES, 1990), percebe-se uma preocupação em revelar a sofisticada implicação filosófica e política dos guarani. Estes três documentos trazem em si, além da preocupação com o universo sagrado, uma rica conexão da existência material com o mundo religioso por meio dos mitos, dos hinos, cantos sagrados e preces. Ademais, as manifestações de subjetividades contidas nos textos, podem ser entendidas como correspondências de expressões de corporalidade na sociedade guarani. Resultados e Discussão Como infere FASSHEBER (2006), o estudo da construção corporal dos nativos sul americanos apresenta uma eficácia e uma certa especificidade para a vida social. A noção de corpo construída por cada etnia, seja ela associada à tatuagem, amputação, vestimenta ou à perfuração, constitui um mecanismo simbólico de encorporação e identidade étnica. Então, se o corpo é transformado em algo que pode ser legível, tradutível pela História, isto significa que ele, portanto, inscreve-se no âmbito da linguagem e como tal está sujeito à relações do discurso do poder e escrita conquistadora (CERTEAU, 1992). Na cadeia de significados flutuantes entre a compreensão literal e a simbólica, o estudo da corporalidade insere-se no quadro da compreensão da descontinuidade dos sentidos e da variedade de interpretações deste código cultural (BARTHES,1990). Conclusões Por meio do estudo do mundo religioso guarani, contido nos relatos sagrados coletados por Kurt Nimuendaju, Leon Cadogan e Pierre Clastres é possível estabelecer uma interface da compreensão da corporalidade nesta sociedade, como associada à constituição do corpo coletivo em suas relações sagradas intrínsecas. Os significados da corporalidades, portanto, entre os guarani vão além da mera expressão literal e conotam relações de inteligibilidade instauradas na relação com outro que se deslocam à medida que se relacionam com o que faz seu outro. Referências ALEGRE, Maria Sylvia Porto. Imagem e representação do índio no século XIX. In: GRUPIONI. Luis Donisete Benzi (org). Indios no Brasil. 3 ed. São Paulo: Global; Brasilia: MEC. 1998. BARTHES, Roland. O obvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BELLUZZO, Ana Maria de M. A lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In: GRUPIONI. Luis Donisete Benzi (org). Indios no Brasil. 3 ed. São Paulo: Global; Brasilia: MEC. 1998. CADOGAN, Leon. Ayvu rapyta. Textos míticos de los Mbya-Guaraní del Guairá. Asunción: Ceaduc/Cepag. Biblioteca Paraguaya de Antropología. Vol. XVI, Fundación Leon Cadogan, 1992. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. CLASTRES, Pierre. A fala sagrada: mitos e cantos sagrados dos índios guarani. Campinas: Papirus, 1990. FASSHEBER, José Ronaldo Mendonça. Etno-Desporto Indígena: contribuições da Antropologia Social a partir da Experiência entre os Kaingang. Tese (doutorado em Educação Física). Faculdade de Educação Física. Universidade Estadual de Campinas. 2006. MESGRAVIS, Laima. A sociedade brasileira e a historiografia colonial. In: FREITAS, Marcos Cézar de. Historiografia brasileira em perspectiva. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2001. NIMUENDAJU, Curt. As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apopocuva-Guarani. São Paulo: HUCITEC EDUSP, 1987. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Nimuendaju e os guarani. In: NIMUENDAJU, Curt. As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apopocuva-Guarani. São Paulo: HUCITEC - EDUSP, 1987.