CR Ô NICA

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C
R
Ô
N
I
C
A
O centauro
e o abismo
Depois de aprender a fazer o fogo, o ser
humano resolveu cozinhar o alimento –
impossível saber por que a idéia ocorreu, se
crescia e multiplicava comendo cru. Segundo
os antropólogos, a passagem do cru ao
cozido foi um grande salto civilizatório –
se as cozinheiras soubessem que avançaram
a civilização, exigiriam lugar na lista do
Nobel. Mas ao cozer pela primeira vez o
alimento nas mãos, uivou de dor, pois elas
coziam junto – como uiva quem põe a mão
no fogo, principalmente pelos outros. E o ser
humano mostrou sapiência ao inventar a
panela – pedra côncava, cabaça, concha, sei
lá –, ou o que viríamos a chamar de panela:
que cozinha o cru sem fritar as mãos.
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DEMOCRACIA VIVA Nº 37
Mais do que cozinhar na panela, o
avanço foi criar um princípio, talvez maior
que o próprio ser humano: quem não nasce
capaz de realizar o que sonha, deseja e
quer, em vez de se autocriticar como ambicioso, pretensioso ou visionário, que invente algo que realize o que sonha, deseja e
quer. Este algo é sempre fora dele, extensão do seu corpo que, aliás, permanece o
mesmo – exceto o rabo que, relata Darwin,
caiu logo que ficou erecto; e o crânio,
que encolheu.
Antes da panela, o ser humano, sempre apressado – só na era pós-panela aprendeu que afobado come cru –, domou outro
animal – camelo, boi, elefante, cavalo,
burro, avestruz, ser humano, etc – montou-o e fez as tarefas com mais rapidez e
menos cansaço. Tenho dúvida de quem
veio antes, a panela ou a montaria – noutro
dilema, sobre o ovo e a galinha, acho que
o ovo veio antes; a galinha é melhor para
comer, depois da panela, bem entendido,
do que para ter idéia de fazer um ovo.
Para opinar entre ovo e galinha, é preciso
haver algo anterior a ambos, e não consigo atinar o que foi – ovolinha, galovo,
sei lá.
Sempre apressado, o ser humano
achou que o animal não era rápido o
bastante, e inventou o motor, com potência de vários seres humanos, fortes como
quadrúpedes, que se mede em HP – horse
power –, cavalo de potência. Continua
montado em cavalos, agora de quatro rodas.
Com a nova extensão do corpo, virou
algo como o centauro, imaginado pelos
antigos que os contemporâneos realizaram:
a cabeça – segundo Darwin, encolhida –,
o corpo de cavalo sobre quatro rodas.
Insatisfeito, quis mais velocidade:
resolveu voar, sendo mais pesado que o ar,
sem ter asa nem pena. No fundo, sempre
quis ser pássaro – um tal Ícaro, colou penas
no corpo, saltou do penhasco e se
estabacou no mar. Aprendeu a lição? Nada.
Usou o princípio de não se autocriticar
e inventar a extensão do corpo que realize
o sonho: construiu um pássaro de corpo
e asas metálicos. Como as asas não batiam,
usou cavalos de potência para girar a
hélice e impulsá-lo. E o mais pesado que
o ar voou – o homem foi dentro, como se
fora ele o pássaro. Seus pássaros maiores
voam mais ágeis que o som, a lugares
inimagináveis.
Insatisfeito com o cérebro que o
permitiu cozer, correr e voar, quis dispor
do máximo de informação à velocidade
da luz, e inventou a extensão do cérebro:
o computador e a Internet. É agora um centauro alado de quatro rodas e um computador no crânio. Encolheu o cérebro e reduziu o uso. Cada ser humano sabe muito
mais de muito menos – uma ilha só reconhece outra ilha do arquipélago. Mas sonha
com o vôo incorpóreo, desintegrar-se aqui,
e reintegrar-se acolá.
Esgotada a extensão – o que ele
pode – volta-se à compreensão: o que ele é.
Não há como inventar extensões para o
que sonha, deseja e quer a alma – o ser,
a subjetividade, a psiquê, ou que nome
tenha isso que o ser humano é, além do
corpo – essa coisa é um abismo obscuro,
não muda nem se mostra, por mais que ele
cozinhe, corra, voe. Estender-se não é
entender-se.
Alcione Araújo
[email protected]
DEZEMBRO 2007
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