CULTURA JURÍDICA EUROPEIA Síntese de um milénio António Manuel Hespanha A cultura jurídica européia é apre­ sentada pelo autor a partir de uma aprofundada e estimulante reflexão sobre qual deva ser o objeto de uma história do direito e das instituições políticas que, ao mesmo tempo, se in­ tegre numa formação jurídica aberta aos ambientes do direito e, também por isso, permita aos historiadores não juristas entender melhor os im­ pactos sociais do direito. ANTÓNIO MANUEL HESPANHA, Professor Catedrático de História do Direito na Universidade Nova de Lisboa, foi Presidente da Comissão para a Comemoração dos Descobri­ mentos Portugueses, docente em vá­ rias Faculdades portuguesas, de Direito, História e Ciências Sociais, e docente convidado nas Universi­ dades de Totilpuse, Madri, Messina, Macau, Yale e Pablo O lavid e' de Sevilha, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Fundou e dirigiu a revista Penélope. Fazer e des­ fazer a história e a revista Themis, da "Creio que o verdadeiro trabalho político, numa sociedade como a nossa, é o de criticar o funcionamento de instituições que parecem neutrais e independentes: criticá-las de modo que a violência política que sempre se exerceu, obscuramente, por meio delas seja desmascarada e possa ser combatida." Michel Foucault Human nature: justice versus power (debate with Noam Chomsky) Ín d ic e Prefácio / 1 7 1. A história do direito na formação dos ju rista s/21 1.1. A história do direito como discurso legitimador/ 22 1.2. A história critica do direito/33 1.2.1. A percepção dos poderes "periféricos" / 35 1.2.2. O direito como um produto social/ 38 1.2.3. Contra a teleologia/41 2. A importância da história jurídico-institucional como discurso histórico/4 5 3. Linhas de força de uma nova história política e institucional / 49 3.1. O objecto da história político-institucional. A pré-compreensão do "político" / 49 3.1.1. A crise política do estadualismo/ 49 3.1.2. A pré-comprensão pós-moderna do poder/52 3.1.3. Contra uma história político-institucional actualizante / 54 3.1.3.1. A política implícita da ideia de "continuidade" (Kontinuitàtsdenken) / 54 3.1.3.2. A crítica do atemporalismo/ 56 3.1.4. A descoberta do pluralismo político/62 3.2. Uma leitura densa das fontes/ 69 3.2.1. Respeitar a lógica das fontes/ 70 3.2.2. A literatura ético-jurídica, como fonte de uma antropologia política da Época pré-Contemporânea / 75 3.2.3. "Cálculos pragmáticos" conflituais e apropriações sociais dos discursos / 82 3.2.4. Texto e contexto. Modelos políticos e condicionalismos práticos. A sociologia histórica das formas políticas/85 3.2.5. Interpretação densa dos discursos, história dos dogmas e história das ideias / 88 3.3. Uma nota sobre "relativismo metodológico" e "relativismo moral" e sobre o papel dos juristas, neste contexto/89 4. O imaginário da sociedade e do p o d e r/99 4.1. Imaginários políticos/ 99 4.2. A concepção corporativa da sociedade/101 4.2.1. Ordem e criação/101 4.2.2. Ordem oculta, ordem aparente/104 4.2.3. Ordem e vontade/105 4.2.4. Ordem e desigualdade /108 4.2.5. Ordem e "estados" /111 4.2.6. Ordem e pluralismo político/ 114 4.3. A dissolução do corporativismo e o advento do paradigma individualista/116 5. A formação do "direito comum" /121 5.1. Factores de unificação dos direitos europeus/123 5.1.1. A tradição romanistica /123 5.1.1.1. Direito romano clássico, direito bizantino e direito romano vulgar /123 5.1.1.1.1. Súmula das épocas históricas do direito romano /127 5.1.1.1.2. Sistematização e método de citação do Corpus luris Civilis/ 129 5.1.1.1.3. Sistematização e método de citação do Corpus luris Canonicis /131 5.1.1.1.4. Os estudos romanísticos no quadro da formação dos juristas /132 5.1.1.1.5. Súmula cronológica da evolução do direito romano/139 5.1.1.2. O direito romano na história do direito português/140 5.1.1.3. A recepção do direito romano/141 5.1.1.4. A influência do direito romano na própria legislação local /147 5.2. A tradição canonística/148 5.2.1. O lugar do direito canónico no seio do direito comum/152 5.2.2. O direito canónico como limite de validade dos direitos temporais /153 5.2.3. O direito canónico na história do direito português /155 5.2.4. Direito recebido e direito tradicional/158 5.3. Resultado: uma ordem jurídica pluralista /160 5.3.1. Uma constelação de ordens normativas/163 5.3.2. Direito canónico e direito civil/166 5.3.3. Direito comum e direitos dos reinos/166 5.3.4. Direitos dos reinos e direitos dos corpos inferiores /168 5.3.5. Direito comum e privilégios/171 5.3.6. Direito anterior e direito posterior /172 5.3.7. Normas de conflito de "geometria variável" /173 5.3.8. Uma ordem jurídica flexível / 174 5.3.8.1. Flexibilidade por meio da graça/175 5.3.8.2. Flexibilidade por meio da equidade/179 5.4. Direito do reino em Portugal. Épocas medieval e moderna /183 5.4.1. Direito visigótico/183 5.4.2. Feudalismo e direito feudal/183 5.4.2.1. Bibliografia/189 5.4.3. O costume/189 5.4.4. A legislação/190 5.4.4.1. Bibliografia/196 5.5. A unificação pela "cientificização". As escolas da tradição jurídica medieval /197 5.5.1. A Escola dos Glosadores/197 5.5.2. A Escola dos Comentadores/ 209 5.6. O modelo discursivo do direito comum europeu/220 5.6.1. Génese do modelo do discurso jurídico medieval / 220 5.6.1.1. Factores filosóficos / 222 5.6.1.2. Factores ligados à natureza do sistema medieval das fontes de direito/ 226 5.6.1.3. Factores institucionais/ 228 5.6.2. A estrutura discursiva/229 5.6.2.1. A oposição do "espírito" à "letra" da lei/230 5.6.2.2. A interpretação lógica/231 5.6.2.3. A utilização da dialéctica aristotélicoescolástica e, especialmente, da tópica / 233 5.6.2.4. Conclusão/242 . A crise do século XVI e as orientações metodológicas subsequentes/ 245 6.1. Uma nova realidade normativa/ 245 6.2. O desenvolvimento interno do sistema do saber jurídico / 251 6.3. As escolas jurídicas tardo-medievais e modernas/255 6.3.1. Escola culta, humanista ou "mos gallicus iura docendi" / 255 6.3.2. Escola do "usus modernus Pandectarum" / 259 6.4. Ius commune e common law/ 262 6.5. A cultura jurídica popular / 270 6.6. A doutrina em Portugal (épocas medieval e moderna) / 279 6.6.1. Bibliografia/ 286 7. As escolas jurídicas seiscentistas e setecentistas: jusnaturalismo, jusracionalismo, individualismo e contratualismo / 289 7.1. Os jusnaturalismos / 289 7.1.1. O jusnaturalismo da escolástica tomista / 289 7.1.1.1. A Escola Ibérica de Direito Natural/291 7.1.2. O jusnaturalismo racionalista (jusracionalismo) / 293 7.1.3. O jusracionalismo moderno/ 296 7.2. Algumas escolas jusnaturalistas / 297 7.2.1. Os jusnaturalismos individualistas/ 301 7.2.1.1. A teoria dos direitos subjectivos/306 7.2.1.2. Voluntarismo/310 7.2.1.3. Cientificização/ 318 7.2.2. A tradição do jusnaturalismo objectivista/ 320 7.2.3. A ciência de polícia/325 7.2.4. A ideia de codificação/329 7.3. A prática jurídica / 332 7.4. O direito racionalista e as suas repercussões / 336 7.5. O direito racionalista em Portugal/338 7.5.1. Bibliografia / 339 8. O direito na Época Contemporânea / 341 8.1. O contexto político/341 8.2. Entre vontade e razão/ 345 8.2.1. Democracia representativa e legalismo/ 345 8.2.I.I. "Razão jurídica" vs. "razãopopular"/351 8.2.1.2. Tradição/353 8.2.1.3. Direitos individuais / 356 8.2.1.4. Elitismo social/ 362 8.2.1.5. Estadualismo e "direito igual"/365 8.2.1.6. O "método jurídico"/366 8.2.1.7. "Positivismo’conceitual" e "Estado constitucional"/369 8.2.2. Positivismo e cientismo/ 373 8.3. As escolas clássicas do século XIX/376 8.3.1. A Escola da Exegese. A origem do legalismo/ 376 8.3.2. A Escola Histórica Alemã. A vertente organicista e tradicionalista / 383 8.3.2.1. A cultura jurídica portuguesa da primeira metade do séc. XIX/ 388 8.3.3. A Escola Histórica Alemã. A vertente formalista ou conceitualista. A jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprucknz) ou Pandectística (Pandektemvissenscluift) / 391 8.3.3.1. Os dogmas do conceitualismo/ 399 8.3.3.2. O conceitualismo em Portugal/400 8.4. As escolas anti-conceitualistas e anti-formalistas. Naturalismo, vitalismo e organicismo / 402 8.4.1. A jurisprudência teleológica/ 405 8.4.2. A Escola do Direito Livre/406 8.4.3. A jurisprudência dos interesses/ 408 8.4.3.1. A jurisprudência dos interesses em Portugal / 410 8.4.4. O positivismo sociológico e o institucionalismo / 411 8.4.4.1. Positivismo sociológico e institucionalismo em Portugal/ 427 8.4.5. A reacção anti-naturalista. Valores e realidade/432 8.4.6. O apogeu do formalismo. A Teoria pura do direito / 435 8.4.6.1. A reacção anti-sociologista em Portugal/437 8.5. As escolas críticas / 442 8.5.1. O sociologismo marxista clássico no domínio do direito / 443 8.5.2. O marxismo ocidental dos anos sessenta/449 8.5.3. A "crítica do direito"/451 8.5.4. O "uso alternativo do direito"/453 8.5.4.1. As correntes críticas em Portugal/462 8.6. As escolas anti-legalistas / 466 8.6.1. Sentidos gerais do anti-legalismo contemporâneo / 467 8.6.2. Em busca de uma "justiça material" / 469 8.6.3. Os jusnaturalismos cristãos / 479 8.6.3.1. O jusnaturalismo em Portugal/484 8.6.4. O pós-modernismo jurídico / 486 8.6.4.1. Direito do quotidiano/492 8.6.4.2. O direito como universo simbólico/496 8.6.4.3. Um direito flexível/499 8.6.4.4. O pluralismo jurídico/ 502 8.6.4.5. Construtivismo auto-referencial/507 9. Bibliografia/513 P r e f á c io O texto que agora lhes apresento tem sido utilizado, em sucessivas versões provisórias, nos meus cursos de História do Direito e, nessas mesmas versões, tem circulado entre pessoas próximas. Depois destes vários anos de curso provisório, em que foi crescendo e sendo posto à prova, parece que passou os tes­ tes mínimos e que pode ser editado. Decidir editar mais um manual de história do direito care­ ce de uma boa razão. Creio que posso apresentar algumas para justificar a edição deste. É, em primeiro lugar, um texto que me parece inverter a tendência comum de privilegiar, na história do direito, as épo­ cas mais recuadas, com sacrifício das mais recentes. Neste tex­ to, pelo contrário, os séculos XIX e XX ocupam quase metade do texto. Podendo, por outro lado, dizer-se que os últimos capítu­ los tratam exclusivamente do presente, para não dizer que tra­ tam do futuro. Isto porque, tendo eu muito gosto e muito respeito pela história - minha profissão e minha devoção - neste livro estou menos interessado em invocar antiqualhas do que em desper­ tar os leitores para uma reflexão sobre o direito de hoje e sobre os seus problemas. Neste sentido, como explico na introdução, este livro é, à sua maneira, mais uma obra de propedêutica jurí­ dica do que um simples manual de história. E, se não me enga­ no, é esta uma segunda boa razão para o editar. Finalmente, o texto está concebido como uma introdução histórica ao direito da Europa. Na verdade, de uma certa Europa. Por um lado, está dele excluída a Europa de Leste, subsidiária de uma comum matriz romanista, mas marcada por uma cisão, ao mesmo tempo linguística, política e religiosa, que lhe confe­ riu um perfil histórico absolutamente distinto do Ocidente. De­ pois, o mundo anglo-saxónico ainda mal é tocado, embora, na 18 António Manuel Hespanha descrição dos fundamentos políticos do direito contemporâneo, o legado inglês (e norte-americano) seja necessariamente referi­ do. Por fim, o mundo do Sul da Europa (incluindo a Ibéria, a Itá­ lia e, parcialmente, a França) ganha, na economia desta exposi­ ção, um relevo muito pronunciado; n ão se esquecendo, todavia, o peso importantíssimo que tem tido, nas suas configurações jurídicas mais recentes, o contributo da doutrina alemã do di­ reito e do Estado. A opção por uma descrição "europeia" - e não "nacional" - da história do direito não se deveu, por certo, a preocupações editoriais de rentabilizar o investimento, nem, tão pouco, ao modismo europeísta. Pelo contrário, tem a ver mesmo com o objecto de estudo. Como se verá, em quase toda a sua história, o direito desta Europa foi um direito comum, em que alguns esti­ los e especificidades locais apenas se destacavam sobre um es­ magador fundo de características partilhadas. Encerrar a histó­ ria do direito da Europa nas fronteiras dos Estados é, por isso, um artificialismo e uma fonte de apreciações erradas. Alguns colegas e amigos leram este livro e trabalharam com ele. A sua actual versão pôde beneficiar muito das suas suges­ tões. Entre eles estão, naturalmente, os colegas que, há vários anos, colaboram nos meus cursos: a Ana Cristina Nogueira da Silva, o Luís Nuno Rodrigues, a Maria Carla Araújo, a Maria Catarina Madeira Santos, a Joana Estorninho. Mais recentemen­ te, o Zhang Yong Chun, que também ajudou na preparação da versão chinesa deste texto. Em Espanha, os Professores Carlos Petit (Huelva) e António Serrano González (Barcelona) testaramno com os seus alunos e deram-me sugestões importantes, ten­ do este último preparado, com todo o saber e paciência que tem, a edição castelhana. E, em Itália, o mesmo fizeram vários cole­ gas, dos quais destaco, pelo labor de revisão da tradução italia­ na, o Prof. Aldo Mazzacane. Fico-lhes muito grato por isso. Agra­ deço também ao Francisco Lyon de Castro a afectuosa insistên­ cia na edição deste livro. Finalmente, aos meus futuros leitores - temo que quase to­ dos meus futuros alunos - peço que não responsabilizem esta mão cheia de bons amigos pelos enfados que o livro vos puder trazer. Cultura Jurídica Europeia 19 As necessidades de adaptação provocadas pela preparação das edições chinesa, italiana e espanhola deste livro, levaram a empreender revisões do seu texto, de resto também sugeridas pela experiência de quase cinco anos de uso académico. Nesta segunda edição portuguesa, foram inseridas, no fim de cada grande secção, referências mais directas à história jurí­ dica portuguesa, dispensáveis em edições internacionais. Algumas secções foram revistas e actualizadas, nomeada­ mente no plano bibliográfico. Outras foram introduzidas de novo, mesmo em relação às recentíssimas edição espanhola e 3a ed. italiana. Sempre que possível, as formulações foram clarifi­ cadas. Alguns capítulos foram amigamente lidos por colegas, a quem agradeço a colaboração, e a quem se devem muitos aper­ feiçoamentos. Dedico esta edição do livro ao Prof. Nuno Espinosa Gomes da Silva, um dos mais sábios historiadores do direito que Por­ tugal tem tido. Como não partilhamos exactamente dos mesmos gostos historiográficos'nem escrevemos, no nosso mister, coisas muito aparentadas, logo se vê que estas linhas que escrevo para ele se explicam por coisas - relativas à maneira serena, discreta e elegante de ser e de viver a vida académica - muito mais pro­ fundas e decisivas do que as meras maneiras e modas de escre­ ver a história. Lisboa, Janeiro de 2003. 1. A HISTÓRIA DO DIREITO NA FORMAÇÃO DOS JURISTAS Muito se tem escrito sobre a importância da história do di­ reito na formação dos juristas. Que ela serve para a interpreta­ ção do direito actual; que permite a identificação de valores ju­ rídicos que duram no tempo (ou, talvez mesmo, valores jurídi­ cos de sempre, naturais); que desenvolve a sensibilidade jurídi­ ca; que alarga os horizontes culturais dos juristas. Para além dis­ so, a vida de todos os dias ensina-nos que os exemplos históri­ cos dão um certo brilho à argumentação dos juristas e, nesse sen­ tido, podem aumentar o seu poder de persuasão, nomeadamente perante uma audiência forense... Frequentemente, toda esta discussão acerca do interesse pedagógico da história jurídica limita-se à simples afirmação de que ela é, para os futuros juristas, uma disciplina formativa. Mas raramente se diz exactamente porquê. A opinião adopta:da neste curso é a de que a história do direito é, de facto, um saber formativo; mas de uma maneira que é diferente daquela em que o são a maioria das disciplinas dog­ máticas que constituem os cursos jurídicos. Enquanto que as últimas visam criar certezas acerca do di­ reito vigente, a missão da história do direito é antes a de problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessá­ rio, o definitivo. A história do direito realiza esta missão subli­ nhando que o direito existe sempre "em sociedade" (situado, localizado) e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relações com os contextos sociais (simbólicos, políticos, económicos, etc.), as soluções jurídicas são sempre contingen­ tes em relação a um dado envolvimento (ou ambiente). São, nes­ te sentido, sempre locais. Esta função crítica pode ser seguramente assumida por ou­ tras disciplinas, no âmbito da formação dos juristas. A sociolo- 22 António Manuel Hespar gia ou a antropologia jurídica ou certa teoria do direito (mesmo a semiótica ou a informática jurídicas) podem, seguramente, desempenhá-la. No entanto, o conservadorismo da maior parte das Faculdades de Direito oferece uma resistência muito sensível - que também pode ser explicada sociologicamente (cf. Bour-dieu, 1986) - à inclusão destas disciplinas, uma vez que elas poriam em risco essa natureza implicitamente apologética que os estudos jurídicos ainda têm. Além de que - no dizer dos juristas mais convencionais - dissolveriam o estudo das normas, de que o jurista se deveria exclusivamente ocupar, no estudo de factos sociais, que constitui o tecido dos saberes sociais empíricos, como a sociologia e a antropologia. Uma vez que a ideia de rigorosa separação (Trennungsdenken) entre os factos (Sein) e as normas (Sollen), provinda da teoria jurídica do século passado (cf. 8.3.3.1), continua a formar o núcleo da ideologia espontânea dos juristas (Bourdieu, 1986), esta intromissão de conhecimento social empírico no mundo dos valores jurídicos é ainda largamente inaceitável. Por tudo isto é que, de um ponto de vista táctico, a história do direito, que constitui uma disciplina tradicional nos currículos jurídicos, pode preencher - talvez com algumas vantagens adicionais - o papel que aquelas disciplinas indesejadas iriam desempenhar. Naturalmente que, para desempenar este papel, a história do direito não pode ser feita de qualquer maneira. Pois, sem que se afine adequadamente a sua metodologia, a história jurídica pode sustentar - e tem sustentado - diferentes discursos sobre o direito. í.i. A história do direito como discurso legitimador Realmente, a história do direito pode desempenhar um papel oposto àquele que se descreveu, ou seja, pode contribuir para legitimar o direito estabelecido. O direito, em si mesmo, é já um sistema de legitimação, i.e., um sistema que fomenta a obediência daqueles cuja liberdade Cultura Jurídica Europeia 23 vai ser limitada pelas normas. Na verdade, o direito faz parte de um vasto leque de mecanismos votados a construir o consen­ so acerca da disciplina so cial. Porém, o próprio direito necessita de ser legitimado, ou seja, necessita de que se construa um consenso social sobre o funda­ mento da sua obrigatoriedade, sobre a necessidade de se lhe obedecer. Como se sabe desde Max Weber (1864-1920), a legiti­ mação dos poderes políticos - ou seja, a resposta à pergunta "porque é que o poder é legítimo ?" - pode ser obtida a partir de vários complexos de crenças ("estruturas de legitimação"), organizadas em torno de valores como a tradição, o carisma, a racionalização (Weber, 1956) - ou seja, "porque está estabeleci­ do há muito", "porque é inspirado por Deus", "porque é racio­ nal ou eficiente". No âmbito do mundo jurídico, alguns destes processos de legitimação - nomeadamente, a legitimação "tra­ dicional" - dependem muito de argumentos de carácter histó­ rico 1. A história do direito desempenhou este papel legitimador durante um longo período da história jurídica europeia, como se poderá ver neste livro. No Antigo Regime, prevalecia uma matriz cultural tradicionalista, segundo a qual "o que era anti­ go era bom". Neste contexto, o direito justo era identificado com o direito estabelecido e longamente praticado - como o eram os costumes estabelecidos ("prescritos"), a opinião comummente aceite pelos especialistas (opinio communis doctorum, opinião co­ mum dos doutores), as práticas judiciais rotinadas (styli ciiriae, "estilos do tribunal"), o direito recebido (usu receptum, usu firmatum), os direitos adquiridos ("iura radicata”, enraizados), o conteúdo habitual dos contratos (natura contractus). Então, a his­ tória do direito (o "argumento histórico") desempenhava um papel decisivo de legitimação das soluções jurídicas, pois era por meio da história que essa durabilidade das normas podia ser 1Outros sistemas de legitimação da ordem são: a religião (o que Deus [os deu­ ses] quis), a tradição (os "bons velhos tem pos"), a natureza (o que tem que ser), a rotina (o que sem pre se faz), o contrato (a "p alavra dada"). 24 António Manuel Hespanha comprovada. Mas permitia ainda a identificação das normas tra­ dicionais e, logo, legítimas, pois era a história que permitia de­ terminar a sua antiguidade. O mesmo se diga em relação aos direitos que se deviam considerar como adquiridos, qualidade que só o tempo - e, logo, a história - podia certificar. Os primei­ ros estudos de história do direito - como os de Hermann Conring, De origine iuris gennanici [sobre a origem do direito alemão], 1643 (v., adiante, 6.3.2.) (cf. Fasold, 1987) - tinham claramente como objectivo resolver questões dogmáticas, como a de deter­ minar se certas normas jurídicas tinham tido aplicação anterior e, logo, se estavam vigentes no presente, a de interpretar o seu conteúdo, a de estabelecer hierarquias entre elas, a de determi-. nar a existência de certos direitos particulares, etc.. Um uso da história deste tipo foi corrente até ao séc. XIX. Mesmo hoje, podemos encontrar propostas semelhantes sobre o interesse da história jurídica. Nomeadamente, quando se diz que ela pode ajudar a definir o conteúdo da constituição - como pretendeu uma boa parte do constitucionalismo dos inícios do sec. XIX2 a identidade (ou o "espírito") jurídica ou política de uma nação. O núcleo da filosofia jurídica da Escola Histórica Alemã, no início do século XIX (cf. 8.3.2.), era precisamente constituído por esta ideia de que o direito surge do próprio espírito da Na­ ção (Volksgeist), depositado nas suas tradições culturais e jurí­ dicas. Por isso, a história jurídica devia desempenhar um papel dogmático fundamental, tanto ao revelar o direito tradicional, como ao proteger o direito contemporâneo contra as inovações (nomeadamente, legislativas) arbitrárias ("anti-naturais", "antinacionais"). Nos anos '30 e '40 deste século, estes tópicos volta­ ram a ser recuperados pelo pensamento jurídico conservador, ao reagir contra os princípios liberais em nome de valores naci­ onais imorredoiros ou de conceitos também nacionais de justi­ ça e de bem estar (cf. infra, 8.6.1.). 2 Por exemplo, em Portugal, os primeiros constitucionalistas buscaram na his­ tória os modelos para a constituição a fazer (ou a restaurar, a "regenerar''); cf. Hespanha, 1982a. Cultura Jurídica Europeia 25 Nos nossos dias, com o impacto da ideia de "progresso", a tradição deixou de ser a principal estrutura de legitimação e, por isso, a história do direito perdeu uma boa parte dos seus crédi­ tos como oráculo do espírito nacional. Pelo menos no Ocidente, pois no Oriente - desde o Irão até Singapura ou à China - a bus­ ca de uma teoria do direito liberta de categorias ocidentais, cul­ turalmente estranhas, tende a atribuir à história um importante papel na revelação daquilo que se considera especificamente nacional. Encarar a história como uma via para a revelação do "es­ pírito nacional" - se tal coisa de facto existisse3- levantaria pro­ blemas metodológicos muito sérios. Na verdade, a consciência metodológica está hoje bem consciente de que a história, mais do que descrever, cria (cf., infra, 1.2.3. ). Ou seja, aquilo que o historiador crê encontrar como "alma de um povo", na verda­ de é ele - com as suas crenças e preconceitos - que o lá põe. A prova a partir da história - sobretudo, a prova histórica de enti­ dades tão evanescentes como o espírito nacional ou a cultura jurídico-política nacional - constitui uma construção intelectu­ al que, portanto, diz mais sobre os historiadores seus autores do que sobre as crenças e as culturas do passado que se supõe es­ tarem a ser descritas. De qualquer modo, o argumento histórico não abandonou totalmente os terrenos do raciocínio jurídico, já que ele pode ser inserido noutras estratégias discursivas dos juristas. Por um lado, a história tem podido ser usada para provar que certa categoria do discurso jurídico - v.g., "Estado", "direi­ to público e privado", "pessoa jurídica" - ou uma solução jurí­ dica - v.g., a protecção legal do feto ou o princípio de que os con­ tratos devem ser cumpridos ponto por ponto - pertencem à "na­ tureza das coisas" ou decorrem de categorias eternas da justiça ou da razão jurídica. Aqui, a história pode servir para mostrar 3Sobre a difícil sustentabilidade da ideia de "espírito nacional" perante o evi­ dente pluralismo de valores das sociedades, nomeadamente das de hoje, v. infra, 8.6.4.4. 26 António Manuel Hespanhe que, por exemplo, até já os juristas romanos ou os grandes dou­ tores medievais teriam estado conscientes destas categorias e lhes teriam dado uma certa formulação. Numa perspectiva já um tanto diferente - e com uma dife­ rente genealogia ideológica - a história poderia demonstrar, pelo menos, que se foram firmando consensos sobre certos valores ou sobre certas normas, e que esses consensos deveriam ser res­ peitados no presente. Era a isto que os juristas romanos se refe­ riam quando definiam o costume como “mores maiorum" (cos­ tumes dos antigos, continuamente ratificado por uma espécie de plebiscito tácito (tacita civium conventio)) (D.1,3,32-36) e lhe atri­ buíam, por isso, um valor de norma. A história seria, assim, o fórum de um contínuo plebiscito, em que os presentes partici­ pariam, embora numa posição enfraquecida pela soma de "vo­ tos" já acumulada pelos passados. De alguma forma, esta ideia de um contínuo plebiscito verificável pela história subjaz tam­ bém à ideia, a que nos referiremos abaixo, de ela pode documen­ tar o espírito de um povo. Como se depreenderá de seguida, esta ideia de plebescito pressuporia que, passados e presentes, estariam a abedecer ao que está estabelecido pelas mesmas razões; ou seja, que dariam o mesmo sentido aos seus "votos". Se isto não puder ser prova­ do, não se pode falar de "consenso". Embora muitos conceitos ou princípios jurídicos sejam muito mais modernos do que geralmente se supõe, é verdade que há outros que parecem existir, com o seu valor facial (i.e., re­ feridos com as mesmas palavras ou como frases), desde há muito tempo. Realmente, conceitos como pessoa, liberdade, democra­ cia, família, obrigação, contrato, propriedade, roubo, homicídio, são conhecidos como construções jurídicas desde os inícios da história do direito europeu. Contudo, se avançarmos um pou­ co na sua interpretação, logo veremos que, por baixo da super­ fície da sua continuidade terminológica, existem rupturas deci­ sivas no seu significado semântico. O significado da mesma pa­ lavra, nas suas diferentes ocorrências históricas, está intimamen­ te ligado aos diferentes contextos, sociais ou textuais, de cada Cultura Jurídica Europeia 27 ocorrência. Ou seja, o sentido é eminentemente relacional 'ou lo­ cal. Os conceitos interagem em campos semânticos diferente­ mente estruturados, recebem influências e conotações de outros níveis da linguagem (linguagem corrente, linguagem religiosa, etc.), são diferentemente apropriados em conjunturas sociais ou em debates ideológicos. Por detrás da continuidade aparente na superfície das palavras está escondida uma descontinuidade radical na profundidade do sentido. E esta descontinuidade se­ mântica frustra por completo essa pretensão de uma validade intemporal dos conceitos embebidos nas palavras, mesmo que estas permaneçam. Alguns exemplos desta falsa continuidade. O conceito de fnmüin, embora use o mesmo suporte vocabular desde o direito romano (familia), abrangia, não apenas parentelas muito mais vastas, mas também não parentes (como os criados ou os escra­ vos \famuli]) e até os bens da "casa" 5. O conceito de obrigação como "vínculo jurídico" aparece com o direito romano; mas era entendido num sentido materialístico, como uma vinculação do corpo do devedor à dívida, o que explicava que, em caso de não cumprimento, as consequências caíssem sobre o corpo do deve­ dor ou sobre a sua liberdade (prisão por dívidas). O conceito de "liberdade" começou, na Grécia clássica, designar a não escra­ vidão, no âmbito da comunidade doméstica, distinguindo os filhos-família dos escravos; mais tarde, na Roma republicana, designa, a não dependência de outro privado, no âmbito da co­ munidade política (na polis, respublica); em seguida, com o cris­ tianismo, designa, a exclusiva dependência da fé em Deus, sen­ do compatível, então, com a dependência temporal, mesmo com a escravatura; só muito mais tarde, incorpora a ideia de direito de auto-determinação, de liberdade de agir politicamente; ou 4 /.e., relacionado com o de outros conceitos próximos que ocorram numa cer­ ta época da história do discurso (v.g., "liberdade" com "escravidão", ou com "despotism o", ou com "anarquia"; "dem ocracia", ou com "m onarquia", ou com "aristocracia", ou com "d itadu ra", ou com "anarquia", ou com "totali­ tarism o"). 5Cf. Hespanha, 1984b. 28 António Manuel Hespanha mesmo, ainda mais tarde, de receber do Estado o apoio neces­ sário (económico, cultural, sanitário) para exercer, de facto, essa virtual auto-determinação 6. A palavra "Estado" (status) era uti­ lizada em relação aos detentores do poder (status rei romanae, status regni); mas não continha em si as características conceitu­ ais do Estado (exclusivismo, soberania plena, extensos privilé­ gios "de império" relativamente aos particulares [jurisdição es­ pecial, irresponsabilidade civil, privilégio de execução prévia])7 tal como nós o entendemos. A propriedade já foi definida pelos romanos como uma faculdade de "usar e abusar das coisas"; mas a própria ideia de "abuso" leva consigo esta outra de que existe um uso normal e devido das coisas, que se impõe ao proprietá­ rio, o que exclui a plena liberdade de disposição que caracteri­ zou, mais tarde, a propriedade capitalista 8. Assim, essa alegada continuidade das categorias jurídicas actuais - que parecia poder ser demonstrada pela história - aca­ ba por não se poder comprovar. E, caída esta continuidade, cai também o ponto que ela pretendia provar, o do carácter natural dessas categorias. Afinal, o que se estava a levar a cabo era a tão comum operação intelectual de considerar como natural aquilo que nos é familiar (naturalização da cultura). Mas a história jurídica pode ser integrada numa estratégia de legitimação ligeiramente diferente. De facto, há quem julgue ser possível usar a história para provar a linearidade do progres­ so (neste caso, do progresso jurídico). Partamos de um modelo histórico evolucionista. Ou seja, de um modelo que conceba a história como uma acumulação progressiva de conhecimento, de sabedoria, de sensibilidade. Nesta perspectiva, também o direito teria tido a sua fase juvenil de rudeza. Contudo, o progresso da sabedoria humana ou as descobertas de gerações sucessivas de grandes juristas teriam 6Barberis, 1999. 7 Cia vero, 1982. 8Cf. Grossi, 1992. Cultura Jurídica Europeia 29 feito progredir o direito, progressivamente, para o estado em que hoje se encontra; estado que, nessa perspectiva da história, re­ presentaria um apogeu. Nesta história progressiva, o elemento legitimador é o contraste entre o direito histórico, rude e imper­ feito, e o direito dos nossos dias, produto de um imenso traba­ lho agregativo de aperfeiçoamento, levado a cabo por uma ca­ deia de juristas memoráveis. Esta teoria do progresso linear resulta frequentemente de o observador ler o passado desde a perspectiva daquilo que aca­ bou por acontecer. Deste ponto de vista, é sempre possível en­ contrar prenúncios e antecipações para o que se veio a verificar (cf., infra, 1.2.3.). Mas normalmente perde-se de vista tanto to­ das as outras virtualidades de desenvolvimento, bem como as perdas originadas pela evolução que se veio a verificar. Por exemplo, a perspectiva de evolução tecnológica e de sentido in­ dividualista que marca as sociedades contemporâneas ociden­ tais tende a valorizar a história do progresso científico-técnico da cultura europeia, bem como as aquisições político-sociais no sentido da libertação do indivíduo. Deste ponto de vista, a evo­ lução da cultura europeia deixa ler-se como uma epopeia de progresso e a sua história pode converter-se numa celebração disto mesmo. Mas o que se perde é a noção daquilo que, por cau­ sa deste progresso, se fechou como oportunidade de evolução ou que se perdeu. Como, por exemplo, o equilíbrio do ambien­ te, os sentimentos de solidariedade social. Enfim, a história progressista promove uma sacralização do presente, glorificado como meta, como o único horizonte possí­ vel da evolução humana e tem inspirado a chamada "teoria da modernização", a qual propõe uma política do direito baseada num padrão de evolução artificialmente considerado como uni­ versal. Neste padrão, o modelo de organização política e jurídi­ ca das sociedades do Ocidente (direito legislativo, codificação, justiça estadual, democracia representativa, etc.) é proposto como um objectivo universal de evolução sócio-política, para­ lelo à abertura do mercado no plano das políticas económicas (Wehler, 1975; Baumann, 1993,2001; cf., também, infra, 8.6.4.4). 30 António Manuel Hespanha Estas duas últimas estratégias - a "naturaüzadora" e a " pro­ gressista" - de sacralização do direito actual por meio da utili­ zação da história repousam numa certa forma de a contar. De facto, as matérias históricas relevantes são identificadas a partir do leque dos conceitos e problemas jurídicos contemporâneos. Isto leva a uma perspectiva deformada do campo histórico, em que os objectos e as questões são recortados a partir do modo de ver e conceber o direito nos dias de hoje. Assim, o presente é imposto ao passado; mas, para além disso, o passado é lido a partir (e tornado prisioneiro) das categorias, problemáticas e angústias do presente, perdendo a sua própria espessura e especificida­ de, a sua maneira de imaginar a sociedade, de arrumar os temas, de pôr as questões e de as resolver. Esta ignorância da autonomia do passado leva, pelo menos, a perplexidades bem conhecidas da investigação histórica: como a grelha de interrogação das fontes é a dos nossos dias, é frequen­ te que estas não possam responder às nossas (anacrónicas) ques­ tões. Por exemplo, para aqueles que não estejam conscientes de que uma boa parte da teoria constitucional do Antigo Regime tem que ser buscada na teoria da justiça e da jurisdição, as fon­ tes jurídicas doutrinais das épocas medieval e moderna podem parecer mudas sobre a problemática do poder político supremo. O mesmo se diga da teoria da administração, que não poderá ser encontrada nessas fontes doutrinais, a não ser que se procu­ re ou na teoria do judicium (i.e., na teoria da organização judicial) ou na teoria (moral) do governo doméstico (oeconomia) (cf., v.g., Cardim, 2000). É também na tratadística moral sobre as virtu­ des (como a beneficentia, a gratitudo ou a misericórdia) que podem ser encontrados os fundamentos da teoria das obrigações, da usura ou, mesmo, do direito bancário (cf., v.g., Clavero, 1991). Contudo, a vinculação do passado ao imaginário contem­ porâneo pode levar a consequência ainda mais sérias. Possivel­ mente, a uma total incompreensão do direito histórico, sempre que a sua própria lógica for subvertida pelo olhar do historia­ dor. Por exemplo, isto acontece quando se lêem as cartas régias que, na Idade Média, protegiam a inviolabilidade do domicílio Cultura Jurídica Europeia 31 (enquanto expressão territorial do poder doméstico) como an­ tecipações das modernas garantias constitucionais de protecção da privacidade individual. Na verdade, o que então estava em jogo era a autonomia da esfera doméstica frente à esfera políti­ ca da respublica, no âmbito de uma constituição política plura­ lista, em que os poderes periféricos competiam com o poder cen­ tral. Bem pelo contrário, nada estava mais fora de causa do que a ideia de proteger direitos individuais, os quais eram então com­ pletamente sacrificados no próprio seio da ordem doméstica. Outra ilustração do mesmo erro seria uma leitura "representa­ tiva" (no sentido de hoje) das antigas instituições parlamenta­ res (as "cortes" ibéricas ou os parlamentos franceses de Antigo Regime); embora se tratasse de assembleias que "representa­ vam" o reino, a ideia de representação que aqui domina é, não a actualmente corrente na linguagem política, mas antes a cor­ rente hoje na linguagem do teatro - os actores tornam visíveis (apresentam publicamente) os personagens, mas não são seus de­ legados, seus mandatários, não exprimem a sua vontade; do mesmo modo, os parlamentos visualizam o corpo político (mís­ tico e, por isso, de outro modo invisível) do reino. Também o vincar a sistematização contemporânea do direito civil (parte geral, obrigações, direitos reais, direito da família, direito das sucessões) na descrição do direito antigo impõe a este relações sistemáticas que não eram então perceptíveis: v.g., as matérias de família não se liam como separadas das matérias sucessórias. Num plano ainda mais fundamental, o direito hoje dito "civil" não se distinguia fundamentalmente do direito hoje dito "pú­ blico", porque - nos sistemas jurídicos de Antigo Regime - o príncipe não tinha, em geral, as prerrogativas jurídicas especiais que depois foram atribuídas ao Estado (nomeadamente, a po­ dia ser chamado por um particular perante a jurisdição ordiná­ ria, não podia, em geral, impor unilateralmente o sacrifício de um direito particular); em suma, era, para a generalidade dos efeitos, um particular, cujas relações com os súbditos eram re­ gidas pelo direito comum (civil). Num plano ainda superior, seria completamente absurdo projectar sobre o passado as ac- 32 António Manuel Hespanha tuais fronteiras disciplinares entre direito, moral, teologia e fi­ losofia, procurando, por exemplo, isolar o direito dos restantes complexos normativos. Deve anotar-se que a questão da submissão da narrativa do historiador aos conceitos e representações do presente tem sido muito discutida desde o século passado. Há quem, com razão, (i) considere que esta situação é inevitável, já que o historiador nunca se consegue libertar das imagens, preconceitos (pré-compreensões) do presente. E há também quem - nomeadamente no domínio da história do direito - (ii) considere que esta leitura "actualizante" (present minã approach) da história é a condição para que os factos históricos nos digam algo, sejam inteligíveis, permitam tirar lições9. A primeira posição (i) aponta a impossi­ bilidade radical de um conhecimento histórico objectivo, que subjaz também, de forma muito sensível, a esta nossa introdu­ ção metodológica. Só que, do nosso ponto de vista, isto é uma limitação e não uma vantagem do conhecimento histórico. A segunda questão (ii), porém, suscita todas as objecções referidas no texto. Que podem ser resumidas nesta: o alegado "diálogo histórico" que se obtém por uma perspectiva actualista é, de fac­ to, um monólogo entre o historiador e uns sujeitos históricos desprovidos de autonomia, uns bonecos de ventríloquo em que ele transforma os actores do passado, dando-lhes voz, empres­ tando-lhe palavras e impondo-lhe pensamentos. Uma última estratégia legitimadora nos usos da história do direito segue um caminho diferente. O que nesta está em jogo já não é a legitimação directa do direito, mas a da corporação dos juristas que o suportam, nomeadamente dos juristas académi­ cos. Na verdade, os juristas têm uma intervenção diária na ad­ judicação social de faculdades ou de bens. Isto confere-lhes uma papel central na política quotidiana, embora com o inerente pre­ ço de uma exposição permanente à crítica social. Uma estraté­ 9 Cf. Grossi, 1998, 274, referindo-se a uma obra clássica de Emílio Betti, Diritto romano e dogmatica odiema, 1927, hoje publicada em Betti, 1991. Cultura Jurídica Europeia 33 gia de defesa deste grupo é a de desdramatizar ("eufemizar", Bourdieu, 1986) a natureza política de cada decisão jurídica e, por isso, o seu carácter "político" ("arbitrário", no sentido de que depende de escolhas de quem decide e não de leis ou princípios imperativos). Ora, uma forma de "despolitizar" ("despotenciar", "eufemiziar") a intervenção dos juristas é apresentar o veredic­ to jurídico como uma opção puramente técnica ou científica, distanciada dos conflitos sociais subjacentes. Esta operação de neutralização política da decisão jurídica tornar-se-á mais fácil se se construir uma imagem dos juristas como académicos distantes e neutrais, cujas preocupações são meramente teóricas, abstractas e eruditas. Uma história jurídi­ ca formalista, erudita, alheia às questões sociais, políticas e ideo­ lógicas e apenas ocupada de eras remotas, promove seguramen­ te uma imagem das Faculdades de Direito como templos da ciên­ cia, onde seriam formadas tais criaturas incorpóreas. A onda de medievismo que dominou a historiografia jurídica continental até aos anos '60 - contemporânea do manifesto de Hans Kelsen no sentido de "purificar" a ciência jurídica de ingredientes po­ líticos (cf. infra, 8.4.6.) - teve esse efeito de legitimação pela ciência, justamente numa época de fortíssimos conflitos político-ideológicos em que os juristas tiveram que desempenhar uma impor­ tante função "arbitrai" 10. 1 .2 . A história crítica do direito Os objectivos gerais de uma história crítica do direito fo­ ram evocados antes. Tratar-se-á agora da questão das estratégias científicas e das vias metodológicas mais convenientes (Scholz, 1985; Hespanha, 1986a, 1986b). A primeira estratégia deve ser a de instigar uma forte cons­ ciência metodológica nos historiadores, problematizando a concep­ ção ingénua segundo a qual a narrativa histórica não é senão o 10V., sobre isto, para Portugal, Hespanha, 1981. 34 António Manuel Hespanha simples relato daquilo que "realmente aconteceu". É que, de fac­ to, os acontecimentos históricos não estão aí, independentes do olhar do historiador, disponíveis para serem descritos. Pelo con­ trário, eles são criados pelo trabalho do historiador, o qual selec­ ciona a perspectiva, constrói objectos que não têm uma existên­ cia empírica (como curvas de natalidade, tradições literárias, sensibilidades ou mentalidades) ou cria esquemas mentais para organizar os eventos, como quando usa os conceitos de "causa­ lidade", de "genealogia", de "influência", de "efeito de retorno" (feedback). A única coisa que o historiador pode verificar são se­ quências meramente cronológicas entre acontecimentos; tudo o resto são inferência suas (v.g., transformar uma relação de precedente-consequente numa relação de causalidade [post ergo propter] ou de genelogia-influência [prior ergo origo]). Os historia­ dores devem estar conscientes (i) deste artificialismo da "reali­ dade" historiográfica por eles criada, (ii) da forma como os seus processos mentais modelam a "realidade" histórica, ou seja, do carácter "poiético" (criador) da sua actividade intelectual e (iii) das raízes social e culturalmente embebidas deste processo de criação. Esta estratégia leva naturalmente a uma crise de ideais como o de "verdade histórica", a ponto de alguns autores não hesitarem em classificar a história como um género literário, embora (tal como os outros géneros) dotado de uma organiza­ ção discursiva específica, ou seja, de regras que permitem vali­ dar os seus resultados (White, 1978,1987; Hespanha, 1990a). É por esta última razão que a classificação do saber histórico como um género literário não significa que o ele repouse na arbitrarie­ dade; significa, antes, que o rigor histórico reside mais numa coerência interna do discurso - numa observância de "regras de arte" convencionais - do que numa adequação à "realidade" his­ tórica. Afinal, esta proposta não representa mais do que a apli­ cação à própria história jurídica do mesmo método - de desven­ dar as raízes sociais e culturais das práticas discursivas - que ela pretende aplicar ao discurso que forma o seu objecto - no nosso caso, o discurso jurídico. Cultura Jurídica Europeia 35 A segunda estratégia é a de eleger como objecto da histó­ ria jurídica o direito em sociedade. Esta linha de evolução, que domina a historiografia contem­ porânea a partir da École des Annales (com a sua ideia cie uma "história total") leva a unia história do direito intimamente li­ gada à história dos diversos contextos (cultura, tradições literá­ rias, estruturas sociais, convicções religiosas) com os quais (e nos quais) o direito funciona. Este projecto - que não põe em causa, como alguns parece temerem - a especificidade da história jurídica, como se verá pode ser decomposto numa série de linhas de orientação. 1.2.1. A percepção dos poderes “periféricos” Antes de mais, as normas jurídicas apenas podem ser en­ tendidas se integradas nos complexos normativos que organi­ zam a vida social. Neste sentido, o direito tem um sentido me­ ramente relacional (ou contextuai). O papel da regulação jurí­ dica não depende das características intrínsecas das normas do direito, mas do papel que lhes é assignado por outros sistemas normativos que formam o seu contexto. Estes sistemas são inú­ meros - da moral à rotina, da disciplina doméstica à organiza­ ção do trabalho, dos esquemas de classificar e de hierarquizar às artes de sedução. O modo como eles se combinam na cons­ trução da disciplina social também é infinitamente variável. Algumas das mais importantes correntes da reflexão polí­ tica contemporânea ocupam-se justamente com estas formas minimais, persuasivas, invisíveis, "doces", de disciplinar (Foucault, 1978,1980,1997; Bourdieu, 1979; Santos, 1980b, 1989,1995; Hespanha, 1983; Serrano González, 1987a, 1987b; Levi, 1989; Boltanski, 1991; Thévenot, 1992; Cardim, 2000). Muitas destas formas não pertencem aos cumes da política, vivendo antes ao mais baixo nível (au ras du sol, Jacques Revel) das relações quo­ tidianas (família, círculos de amigos, rotinas do dia a dia, inti­ midade, usos linguísticos). N esse sentido, estes mecanismos de normação podem ser vistos "direitos do quotidiano" (cf. infra, 36 António Manuel Hespanha 8.6.4.1; Sarat, 1993), gerado por poderes "moleculares" (Felix Guattari), "microfísicos" (Michel Foucault), dispersos por todos os nichos das relações sociais. Contudo, estes poderes e estes direitos manifestam uma resistência que falta à generalidade das normas e instituições do direito oficial. Esta imagem da sociedade como auto-organizada num es­ quema pluralístico de ordens jurídicas não é novo. Nasceu - se considerarmos apenas a época contemporânea - no século XIX, pois foi então que apareceu a ideia de que a sociabilidade hu­ mana estava organizada objectivamente em instituições imanen­ tes e necessárias perante as quais a ordem do Estado era quase impotente (cf. infra, 8.2.1.3 e 8.4.4.). Estes pontos de vista tinham sido antes preparados pelo pensamento reaccionário do século XIX, que continuava temáticas da teoria política do Antigo Re­ gime (cf. infra, 4.2.). Já no nosso século, tanto as correntes antiliberais e anti-democráticas (É. Lousse, O. Brunner, J. Evola), como as correntes liberais, deixaram também a sua marca neste pensamento político anti-estatalista. Embora bebendo de outras fontes e inspirações, a teoria política mais recente volta a este imaginário pluralista da ordem política e à consequente tendência para descentrar o direito ofi­ cial no seio de uma constelação inorgânica de mecanismos de disciplina, sublinhando, em contrapartida, o papel conformador de humildes e discretos mecanismos normativos da vida quoti­ diana. A "teoria crítica" da Escola de Frankfurt problematizou a ideologia da neutralidade política e insistiu em que qualquer actividade humana tem uma componente política e disciplinadora, nomeadamente, as do nível cultural e simbólico. Nesta mesma linha, M. Foucault referiu-se ao carácter molecular do poder, à sua omnipresença na sociedade ("pan-politização") e à necessidade de a teoria política se assumir, para captar o po­ der em toda a sua extensão, como uma "micro-física" do poder (Foucault, 1978). Da antropologia jurídica, chegou a ideia de "pluralismo", da coexistência de diferentes ordens jurídicas, le­ gais ou costumeiras, no mesmo espaço social (Hooker, 1975; Cultura Jurídica Europeia 37 Geertz, 1963,1983; Chiba, 1986; cf. infra, 8.6.4.4). Finalmente, o pós-modernismo trouxe uma nova sensibilidade em relação às formas implícitas, informais e quotidianas de poder (Toffler, 1990; Hespanha, 1992a; Santos, 1994,1995; Sarat, 1993; Bauman, 1993; cf. infra, 8.6.4.), tendo chamado também a atenção para a forma como o Estado - a grande criação da "modernidade" procurou desarticular essas formas ou, pelo menos, tomar in­ visível essa dimensão micro da política (Bauman, 2001: páginas de antologia, 26 ss.). É por isso que se pode dizer que a historio­ grafia jurídica dos nossos dias se apoia tanto em temas provin­ dos da mais académica reflexão teórica como numa pré-compreensão do mundo com raízes na mais recente cultura contempo­ rânea. Foi daqui que resultou a sensível tendência actual dos his­ toriadores do direito para alargarem o seu campo de pesquisa para além do âmbito do direito oficial, integrando nele todos os fenómenos de normação social, independentemente das suas habituais etiquetas. Desde as normas religiosas, aos costumes, desde as regras de organização (management) às formas mais evanescente e difusas da ordem. Embora esta vaga esteja a che­ gar aos estudos de história jurídica contemporânea - em que a ideia de pluralismo jurídico desafia cada vez mais ousadamen­ te a antiga ideia de que o direito se reduzia à constituição, ao código e à lei do Estado -, a mais profícua massa de estudos con­ tinua a incidir sobre a sociedade e política de Antigo Regime: o direito informal, o direito das comunidades rústicas e campo­ nesas, o amor e a amizade como sentimentos políticos (Clanchy, 1993; Hespanha, 1983, 1993b; Clavero, 1993; Cardim, 2000), a organização d.o saber (Avellini, 1990; Petit, 1992), a organização do discurso (Grossi, 1992; Costa, 1969, 1986; Beneduce, 1996; Petit, 2000), a disciplina doméstica (Frigo, 1985a), a caridade e a assistência (Serrano González, 1992) n. 11Sobre esta evolução, cf. De Benedictis, 1990; Schaub, 1995. 38 António Manuel H espanha 1.2.2. O direito com o um produto social Contudo, o direito em sociedade não consiste apenas em considerar o papel do direito no seio de processos sociais (como o da instauração da disciplina social), mas também em conside­ rar que a própria produção do direito (dos valores jurídicos, dos textos jurídicos) é, ela mesma, um processo social. Ou seja, algo que não depende apenas da capacidade de cada jurista para pensar, imaginar e inventar, mas de um complexo que envolve, no limite, toda a sociedade, desde a organização da escola, aos sistemas de comunicação intelectual, à organização da justiça, à sensibilidade jurídica dominante e muito mais. Este tópico obriga a que se considere o processo social de pro­ dução do próprio direito na explicação do direito. Sublinhámos "próprio" para destacar que não estamos a aderir a modelos de explicação muito globais, desses que relacionam qualquer fenó­ meno social com um único centro de causalidade social (v.g., a estrutura económica, como do determinismo economicista de um certo marxismo, ou o subconsciente individual, como do determinismo psicanalítico de Freud) (cf. Bourdieu, 1984). Na verdade, parecem muito mais produtivos modelos de explicação sociológica de muito mais curto alcance, que relaci­ onam os efeitos (culturais, discursivos) com a dinâmica especí­ fica do espaço (ou nível, instância) social particular em que eles são produzidos. No nosso presente caso, a ideia é a de relacio­ nar o direito com os espaços sociais ("campos", para usar a ter­ minologia de Bourdieu 12, "práticas discursivas" ou "dispositi- 12Resumindo grosseiramente, Pierre Bourdieu relaciona cada prática de produ­ ção de sentido ("práticas simbólicas") com os seus contextos sociais de pro­ dução (a que cham a "cam pos") e com as lutas e conflitos entre os agentes de produção que se desenvolvem em cada cam o (cf. aplicação ao direito, Bour­ dieu, 1986). "L e pouvoir symbolique est un pouvoir qui est en mesure de se fai­ re reconnaître, d'obtenir la reconnaissance ; c'est-à-dire un pouvoir (économi­ que, politique, culturel ou autre) qui a le pouvoir de se faire méconnaître dans sa vérité de pouvoir, de violence et d'arbitraire. L'efficacité propre de ce pou­ voir s'exerce non dans l'ordre de la force physique, mais dans l'ordre Cultura Jurídica Europeia 39 vos", para utilizar a de M. Foucault)13, explicando a partir daí os efeitos (jurídicos) produzidos. du sens de la connaissance. P ar exem ple, le noble, le latin le dit, est un nobilis , un hom m e "co n n u ", "re c o n n u "", "D évoiler les ressorts du p ou vo­ ir", ininterventions — Science sociale et action politique, A gone, 2002, p p .173176) ; Dans un champ, les agents et les institutions luttent, su ivan t les ré­ gularités et les règles constitutives de cet espace de jeu (et, dans certaines conjonctures, à propos de ces règles m êm es), avec des d egrés divers de force et par là, des possibilités diverses de succès, p our s'ap p ro p rier les profits spécifiques qui sont en jeu dans le jeu. C eux qui dom in en t dans un ch am p donné son t en position de le faire fonctionner à leur avan tage, mais ils d oivent toujours com p ter avec la résistance, la contestation, les reven ­ dications, les prétentions, "p olitiques" ou non, des d om in és." (Réponses, Seuil, 1992, p .78); "C o n tre l'illusion de l'"intellectuel sans attaches ni raci­ n es", qui est en quelque sorte l'idéologie professionnelle des intellectuels, je rappelle [...] que l'appartenance au champ intellectuel implique des inté­ rêts sp écifiq u es, n o n s e u le m e n t, à P aris c o m m e à M o sco u , des p o stes d 'acad ém icien ou des contrats d 'édition, des com p tes-ren du s ou des pos­ tes universitaires, m ais aussi des signes de reconnaissance et des gratifi­ cations sou vent insaisissables p our qui n 'e s t pas m em bre de l'univers mais p ar lesquelles on donne prise à toutes sortes de contraintes et de cen su ­ re s.", (Questions de sociologie, M inuit, 1 9 8 4 , p .70). (Sobre Bourdieu, coin dos bio-bibliográficos, textos e um glossário elem entar: h t t p : / / w w w .h om m em o d e rn e .o rg /s o c ie te /s o c io /b o u rd ie u / [2002-08-15]. 13E m term os muito genéricos, M. F o u cau lt considera que cad a discurso tem as suas regras de form ação (a sua "o rd e m ") e que esta não d epende do au ­ tor m as do próprio processo de escrita, sendo que este está relacionado com condições m ateriais e objectivas ("disp o sitiv o s") da escrita (da "c ria ç ã o "), aqui se com preendendo as tradições literárias em que o d iscu rso se desen ­ volve, o m odelo de divisão do trabalho intelectual dom inantes nesse m o­ m ento, os objectos que su rgem com o m aterial de ob servação, etc.. A este estudo do discurso com o confluência de determ in ações extern as ao au to r ch am a F ou cau lt "arq u eo lo g ia" (m odelo de estudo que ele opõe, tanto ao m odelo biográfico, centrado no au tor, e ao estudo genealógico, centrado n a "in flu ê n cia ". O livro fu n d am en tal de F o u ca u lt, so b re este tem a, é L'archéologie du savoir, 1969. T rad u ção p ortu gu esa de alguns textos im por­ tantes de Fou cault (nom eadam ente, para os efeitos presentes, "A ordem do d iscu rso " e "O m nes e tsin g u la tin - para um crítica da razão p olítica", em h ttp ://w w w .fou cau lt.h p g.ig.com .b r/biblio.h tn il [2002-08-15]. 40 Antonio M anuel Hespanha Por isso, a história do direito será a história do "cam po ju rídico", das "práticas discursivas dos ju ristas", dos "d isp o­ sitivos do direito", pois todas estas expressões são algo equi­ valentes. A prim eira, sublinhando as lutas entre os agentes para hegem onizar um cam po particular; a segunda e tercei­ ra dando ênfase à força estruturante de entidades objectivas, como o próprio processo de escrita (o "texto ") ou a organiza­ ção das práticas. Seja com o for, a ideia com um a qualquer delas é a da autonomia do direito em relação aos momentos não jurídicos das relações sociais. A que acrescentaríam os mes­ mo - para realçar o aspecto conform ador que o discurso ju rí­ dico tem sobre outros discursos (mais numas épocas do que noutras) - a ideia ainda mais forte de que o im aginário ju rí­ dico - produzido pelas condições específicas dos discursos e rituais do direito - pode mesmo modelar im aginários sociais m ais abrangentes, bem com o as práticas sociais que deles decorram. Esta última ideia é ainda mais decisiva se considerarmos que os valores jurídicos perduram no tempo. São produzidos uma vez, mas são continuam ente (re)lidos (ou recebidos). De acordo com a "teoria da recepção" (Holub, 1989), receber um texto (tom ada a p alav ra no seu sentido m ais vasto) é (re)produzi-lo, dando-lhe um novo significado, de acordo com a nova m aneira como ele é integrado no universo inte­ lectual (e em ocional) do leitor. Como os textos jurídicos par­ ticipam desta abertura a novos contextos, a história do direi­ to tem que evitar a reificação do significado dos valores, ca­ tegorias ou conceitos, já que estes - por dependerem menos das intenções dos seus autores do que das expectativas dos seus leitores - sofrem perm anentes m odificações do seu sen­ tido (contextuai). Mas - neste processo de contínuas re-leituras - alguma coisa de permanente resiste a estas sucessivas re-apropriações; daí o peso da tradição jurídica, com a força das palavras e dos con­ ceitos do passado sobre os seus usos no presente. Daí a impor­ tância que, em contrapartida, deve também ser atribuída ao ha- Cultura Jurídica Europeia 41 bitu s14inculcado pela tradição literária em que o leitor se formou (e em que o próprio texto está integrado) (v., já a seguir, "C on­ tra a teleologia."). E por isso que há uma certa circularidade na hermenêuti­ ca histórica dos textos. Eles são apropriados por um leitor for­ mado por uma tradição textual de que os mesmos textos fazem parte (contexto inter-textual). Porém, existe também um momen­ to dinâmico neste círculo, pois a nova leitura também é confor­ mada por outros factores contextuais que estão fora desta tra­ dição textual (momentos extra-textuais), empurrando o leitor para outras paisagens intelectuais (outros discursos ou tradições literárias, outros imaginários culturais, outras expectativas so­ ciais, outros interesses). 1.2.3. Contra a teleologia A terceira estratégia de uma história crítica do direito é a de insistir no facto de que a história jurídica (como a história em geral) não constitui um desenvolvimento linear, necessário, pro­ gressivo, escatológico. Isto significa, em primeiro lugar, que na história há descontinuidade e ruptura - ideia bastante consensual entre os his­ 14 O conceito é, de novo, de P. Bourdieu: "E strutura estrurante que organiza as práticas e a percepção das práticas ; o habitus é também uma estatura es­ truturada : o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percep­ ção do m undo social é, ele próprio, o produto da incorporação da divisão em classes sociais", (La Distinction, Minuit, 1979, p.191); "O s condicionamen­ tos associados a um a classe particular de condições de existência produzem hábitos, sistemas de disposições duráveis e transmissíveis, estruturas estru­ tu rad as predispostas a funcionar com o estruturas estruturantes, ou seja, com o princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objectivamente adaptadas os seus fins sem supor a orienta­ ção consciente para esses fins e o domínio expresso das condições necessá­ rias para os atingir, objectivamente "regu lad as" e "regulares" sem serem , de form a algum a, o produto de obediência a regras e sendo tudo isto colec­ tivam ente orquestrado sem ser o produto de um a acção organizadora de um m aestro", (Le sens pratique, Minuit, 1980, p.88). 42 António Manuel Hespanha toriadores. Mas os juristas (e os historiadores do direito) tendem a crer que o direito constitui uma antiga tradição agregativa, em que as novas soluções se somam às mais antigas, aperfeiçoan­ do-as ou actualizando-as. Se se destacar a ideia de descontinuidade, o papel da tra­ dição - que sempre foi tido como tão importante em direito precisa de ser clarificado. Na verdade, na ideia de ruptura já estava implícito aquilo que acabámos de dizer acerca da natu­ reza contextuai do sentido. Se os sentidos (ou os valores) são relacionais, estando sempre ligados com os seus contextos, qual­ quer mudança no contexto do direito corta-o da tradição prévia. A história do direito será assim constituída por uma sucessão de sistemas jurídicos sincrónicos, fechados uns em relação aos outros. O sentido de cada instituto ou de cada princípio deve ser avaliado pela sua integração no contexto dos outros institutos e princípios que com ele convivem contemporaneamente; e não nos institutos ou princípios que o antecederam (na sua "genea­ logia" histórica). Ou seja, o direito recompõem-se continuamente e, ao recompor-se, recompõe a leitura da sua própria história, da sua própria tradição, actualizando-as. Mas, por sua vez, a tradição é também um factor de cons­ trução do direito actual. Porque, se o direito actual recompõe (relê) a tradição, o certo é que é com os instrumentos (intelectuais, normativos, rituais, valorativos) que uma certa tradição intelec­ tual lega ao presente, que o d ireito d o presente é pensado. Nes­ te sentido, a tradição parece estar muito presente no direito, e sob diversas formas - tradições literárias, casos decididos, leis que se mantêm no tempo, costumes que continuam vigentes, cerimónias e rituais herdados do passado. E o trabalho de pro­ dução de novos efeitos jurídicos (novas normas, novos valores, novos dogmas) é levado a cabo com ferramentas recebidas da tradição: ferramentas institucionais (instituições, papéis sociais), ferramentas discursivas (linguagem técnica, tópicos, modelos de argumentação e de prova, conceitos e dogmas), ferramentas comunicacionais (bibliotecas, redes académicas ou intelectuais). É desta forma que o passado modela o presente. Não pela impo­ Cultura Jurídica Europeia 43 sição directa de valores e de normas, mas pela disponibilização de uma grande parte da utensilagem social e intelectual com que se produzem novos valores e novas normas (ou seja, à la Foucault, como fornecedor de componentes dos "dispositivos" da criação actual do saber jurídico). Estabelecida esta ideia - com a crítica que ela traz implícita à ideia de progresso linear, de genealogia e de influência -, o pre­ sente deixa de ser o apogeu do passado, o último estádio de uma evolução que podia ser de há muito prevista. Pelo contrário, o presente não é senão mais um arranjo aleatório, dos m uitos q u e a bricolage dos elementos herdados podia ter produzido. Contudo, a ideia de descontinuidade, se nos dá uma pers­ pectiva sobre o presente, também influencia o nosso modo de observar o passado. Este deixa de ser um precursor do presen­ te, um ensaiador de soluções que vieram a ter um completo de­ senvolvimento no presente. E, com isto, deixa de ter que ser lido na perspectiva do que veio depois. O passado é libertado do presente. A sua lógica e as suas categorias ganham espessura e autonomia. A sua diferença emerge majestosamente. Esta emer­ gência da diferença, dessa estranha experiência que nos vem do passado, reforça decisivamente o olhar distanciado e crítico so­ bre os nossos dias (ou, no nosso caso, sobre o direito positivo), treinado-nos, além disso, para ver coisas diferentes na aparente monotonia do nosso tempo. 2. A IM PORTÂNCIA DA H ISTÓ RIA JU R ÍD IC O -IN S T IT U C IO N A L COMO DISC U RSO H ISTÓ RICO Como disciplina histórica, a história jurídica e institucional está hoje a recuperar do ostracismo a que tinha sido condenada pela primeira geração da École desAnnales 15. A evolução da teo­ ria e metodologia da história institucional - que implicou um redesenho do seu objecto (cf, antes, "A percepção dos poderes "periféricos".")- desempenhou aqui um papel muito importan­ te. Contudo, também os historiadores gerais estão hoje, passa­ da a vaga de economicismo que dominou até aos anos '70, cada vez mais conscientes da centralidade e omnipresença do poder e da política. Se isto é verdade na sociedade dos nossos dias, é-o mais evidentemente ainda na sociedade de Antigo Regime que, como diremos (cf., infra, "A concepção corporativa da sociedade."), se via e descrevia a si mesma de acordo com imagens e evocações importadas do mundo do direito e onde a estrutura social se expressava nas distinções e hierarquias do direito 16. Na sua obra clássica Das deutsche Genossenschaftsrecht (O direito alemãò das corporações, 1868-1913) 17, Otto Gierke (1841-1921) mostrou como a teoria política medieval e moderna é basicamente expres­ sa com recurso aos termos da teoria jurídica. Mais recentemen­ te, o medievista russo Abraham Gurevich destacou que este tom jurídico da imaginação social ("uma sociedade construída sobre o direito") estava difundido por todos os grupos sociais. Por meio de tópicos e clichés, a ideia de que a sociedade e a própria vida eram construções jurídicas tinha embebido até a cultura 15Cf. H espanha, 1986c, 211. 16 Cf., com o síntese do estado das questões quanto à historiografia sobre o Antigo Regime, H espanha, 1984b; Benedictis, 1990; Schaub, 1995. 17Tradução parcial inglesa, M aitland, 1938. 46 António M anuel Hespanha popular. Se, entre os letrados, a teoria social e política estava contida na teoria da jurisdição e da justiça 18, para os leigos, a mais visível expressão da ordem social e do poder era a admi­ nistração da justiça nos tribunais. Por isso, o processo judicial e a parafernália dos tribunais (rituais, cerimónias, fórmulas) eram tidos como constituindo o modelo mais fiel do exercício do po­ der político. A própria vida era também expressa na metáfora do processo judicial, culminando num acto tipicamente foren­ se, o Juízo F in al19. As situações sociais - patrimoniais, mas tam­ bém pessoais ou mesmo simbólicas, tal como a hierarquia, o tí­ tulo, a precedência - eram reguladas juridicamente (como iura quaesita ou iura radicata, direitos adquiridos ou enraizados) e podiam ser objecto de reclamação judicial. Por isso, o formalis­ mo documental e a litigiosidade constituem um fenómeno muito visível, a ponto de já ter sido descrito como um traço cultural distintivo desta sociedade que já foi descrita como "a civiliza­ ção do papel selado" [civiltà delia carta bollata] (F. Chabod). Esta centralidade do direito pode ser explicada pela estrei­ ta relação que existia entre a ordem jurídica e as outras ordens normativas, muito diferentemente do que se passa hoje. O primeiro destes sistemas normativos quase jurídicos era a religião. O direito divino (ius divinum) - que decorria directa­ mente da Revelação - estava tão intimamente embebido no di­ reito secular (ius civile) que o último não podia contrariar no es­ sencial os comandos do primeiro. Daqui decorriam as limitações ético-religiosas do direito secular (v. infra, 5.2.2., "O direito ca­ nónico como limite de validade dos direitos temporais."), a fun­ damental indistinção entre crime e pecado 20, a competência in­ distinta de ambas as ordens para üdar com certas situações, bem co m o o seu apoio mútuo (cf., infra, 5.3.2. "Direito canónico è di­ reito civ il.)21. 18Muito mais do que nos escritos políticos, com o a Política de Aristóteles. 19Cf. H espanha, 199Òc. 20Cf. Tomás y Valiente, 1990. 21 A religião legitimando o direito secular; o último protegendo a prim eira e impondo deveres religiosos, Bianchini, 1989; sobre o tem a, cf. 5 .2 .2 .. Cultura Jurídica Europeia 47 O direito mantinha uma relação também muito estreita com a moral. Não apenas a moral religiosa, mas também com a ética secularizada que regulava as virtudes, nomeadamente as virtu­ des sociais, como a beneficência, a liberalidade ou a gratidão. Dar podia, nesta perspectiva, ser uma quase-obrigação jurídica (qunsi debitum), em termos de criar um quase-direito a favor dos bene­ ficiários da oferta. Tal era o caso da esmola, que nascia da virtu­ de da caridade e que era frequentemente considerada como de­ vida ao pobre 22. O mesmo ocorria com o dever de compensar serviços, provindo da gratidão (gratitudo), ou com o dever de generosidade ou de magnificência, provenientes da liberalida­ de, liberalitas, ou da magnificentia, que impendiam sobre os ricos e poderosos 23. Mas - acima de tudo - o direito incorporava ainda ideias muito mais profundamente enraizadas quanto ao modo de orga­ nizar e controlar as relações sociais. Isto acontecia, por exemplo, com o chamado direito natural (ius naturale), um direito que de­ correria da própria "natureza das coisas", i.e., de imagens então evidentes acerca da sociedade e da humanidade. Todas estas ima­ gens, profundamente presentes na consciência social, eram evo­ cadas quando os juristas se referiam às características naturais (naturalia) de diferentes papéis sociais (o rei, o pai, a mulher) ou instituições (como os diversos contratos ou a propriedade). Ou quando elegiam a "boa e recta razão" (bona vel recta ratio) como critério supremo para avaliar a justiça de uma situação. Recta ra­ tio, tanto como aequitas (cf., infra, 5.3.8.2Flexibilidade por meio da equidade."), eram um equivalente do que hoje chamamos seixso comum, do sentido comum sobre a boa ordem e a justiça. Contudo, o direito e a doutrina jurídica não se limitavam a receber o senso comum e ideias difusas. Uma vez recebidos, desenvolviam e elaboravam estes materiais "brutos" (ruda aequi­ tas, equidade rude) numa teoria harmónica e argumentada24. De 22Cf. Serrano González, 1992. 23Cf. Pissavino, 1988; H espanha, 1993d ; C lavero, 1991; Cardim , 2000.. 24 Vallejo, 1992. 48 António M anuel Hespanha certo modo, os juristas tornavam explícito aquilo que a vida quotidiana mantinha implícito, se bem que activo. Tal como os psico-analistas, que revelam em discursos explicados o incons­ ciente individual, eles explicitavam em teorias o inconsciente social. E, feito isto, devolviam-no à sociedade sob a forma de uma ideologia articulada que se convertia em norma de acção, refor­ çando ainda o primitivo imaginário espontâneo. Muitas vezes, fazem isto sob a forma de uma literatura altamente sofisticada; outras vezes, apenas por meio de ditos soltos (brocarda), de mne­ mónicas, de formulários documentais ou de ritos processuais. De uma forma ou de outra, eles desempenham um papel impor­ tantíssimo na reprodução de padrões culturais e na construção de esquemas mentais que permanecerão activos, durante sécu­ los, na cultura europeia. E é por isto que a história do direito não pode ser ignorada sempre que se tenha em vista a compreensão, global ou sectorial, da antiga sociedade europeia2S. 25Sobre a im portância da história do direito para a com preensão da sociedade de Antigo regime, v. Schaub, 1995; 1996. 3- L in h a s d e f o r ç a d e u m a n o v a H IST Ó R IA POLÍTICA E INSTITU CION A L 3 .1 . O objecto da história político-institucional. A pré-com preensão do “político” Nunca foi fácil nem unânime definir o que fosse o poder ou mesmo as instituições. No entanto, passando por cima das inquietações e dúvidas sempre latentes em correntes menos con­ formistas, a teoria política liberal tinha, de mãos dadas com o positivismo jurídico, estabelecido um conceito segundo o qual o poder político tinha a ver com o "Estado", sendo relevantes do ponto de vista da história e da ciência política apenas as ins­ tituições/ os mecanismos e organizações instituídos por ele 26. Tudo isso parece estar, hoje, de novo em causa. E as conse­ quências no plano da definição do objecto da história política e institucional não podem deixar de se fazer sentir. É este o tema dos próximos números. 3.1.1. A crise política do estadualismo Há alguns anos, o malogrado historiador italiano R. Ruffilli27 relacionava as temáticas (e também as perplexidades) da história política (no sentido de história do poder) dos nossos dias com aquilo que ele chamava a crise das instituições do Estado liberal represen­ tativo, nomeadamente em Itália. Para os que assistem à dissolução das formas estabelecidas do exercício do poder dito oficial, seja na ordem interna, seja na ordem internacional, falar de crise é seguramente um eufemis- 26Cf. Chevalier, 1978. 27 Ruffilli, 1979. Ruffilli - que, além de prestigiado historiador, se empenhou num corajoso combate pela reform a e dignificação da vida política italiana - m orreu às m ãos das Brigade rosse. 50 António Manuel Hespanha mo. Debaixo dos nossos olhos, a instituição Estado, tal como ti­ nha sido construída pela teoria política liberal, dissolve-se e de­ saparece. E, com ela, uma série de modelos exemplares de vi­ ver a política ou de ter contacto com o poder (o sufrágio, os par­ tidos, a lei, a justiça oficial) 2S. Mesmo o imaginário ligado ao paradigma Estado está em crise: a igualdade, como objectivo político, vê-se confrontada com as pretensões de garantia da di­ ferença; o interesse geral tende a ceder perante as pretensões corporativas ou particularistas; o centralismo debate-se com to­ das as espécies de regionalismo; o império da lei é atacado, tan­ to em nome da irredutibilidadç de cada caso e da liberdade de apreciação do juiz a isso ligada, como em nome das ideias de concertação e de negociação, que fazem com a lei seja, cada vez mais, um contrato pactado entre o Estados e grupos particula­ res; a intenção "racionalizadora" capitula diante das pretensões liberais mais radicais 29. O próprio Estado, a braços com crises de eficiência e de legitimidade, parece que não pode, não care­ ce de, e não quer, manter a sua missão ordenadora30. Em suma, o Estado abandona progressivamente o imaginário político. Este modelo Estado tinha sido desenhado de acordo com uma arquitectura precisa 31, que previa: (i) a separação rigorosa entre a "sociedade política" (a po­ lis, i.e., o Estado e as suas instituições munidas de imperiurti) e a "sociedade civil" (o quotidiano e os seus arran­ jos "privados", contratuais, de poder); 28 Cf. H espanha, 1992a, 1993a. 29Cf. Zagrebelsky, 1992, 20-38 (sobre as características fundam entais do Esta­ do de direito liberal); 4-8; 39-47 (em geral, sobre a dissolução da soberania, com o característica do Estado liberal e do seu direito);. Trata-se de um a bri­ lhante síntese sobre o tem a, no âmbito de um livro, que já se tom ou clássi­ co, sobre as transform ações mais recentes da natureza do direito actual na Europa ocidental.“ Baum an, 1 9 9 5 ,1 3 8 ss.. 31 V., sobre o desenho liberal do Estado, Chevalier, 1978 ou Zagrebelsky, 1992, citado antes. Cultura Jurídica Europeia 51 (ii) distinção da natureza dos poderes, consoante se trata de poderes de que o Estado é titular (poderes públicos) ou poderes na titularidade dos particulares (poderes priva­ dos); (iii) a instituição de uma série de mecanismos de mediação, fundados no conceito de "representação" (concebido como um produto da vontade, instituído por contrato [mandato]), por meio dos quais os cidadãos, vivendo na sociedade civil, participavam na sociedade política; (iv) a identificação do direito com a lei, concebida como exprimindo a vontade geral dos cidadãos, cuja corporização era o Estado; (v) a instituição da justiça oficial, como a única instância de resolução de conflitos. Do ponto de vista da política, este modelo, com as conse­ quências políticas que ele comporta, suscita cada vez menos entusiasmo. Critica-se o gigantismo e impessoalidade da política ao ní­ vel do Estado 32; considera-se que ela toma impossível a parti­ cipação dos cidadãos. Rejeita-se a ideia de representação, reconhecendo-se os cidadãos cada vez menos nos seus representan­ tes eleitos. A abstenção eleitoral cresce, manifestando a falta de adesão aos modelos representativos. Desconhece-se a lei, defrau­ da-se a sua letra, contestam-se as suas imposições em nome de interesses particulares e procura-se substituí-la por pactos (concertação) entre o Estado e os grupos sociais (mais fortes). Sus­ peita-se da justeza da justiça oficial, propondo-se a sua substi­ tuição por outras formas de composição. Por outro lado, a um nível superior ao do Estado, criam-se instâncias supra-estaduais de regulação - ONU, União Europeia, Mercosul -, organismos oficiais que condicionam decisivamen­ te as políticas estaduais - FMI, entre outros - ou até formas su­ 32Sobre a oposição entre a personalização dos laços com unitários e a im pesso­ alidade dos laços estaduais, característicos da m odernidade, cf., Baum an, 2001, brilhante análise de toda o contexto ideológico desta oposição. 52 António Manuel H espanha pranacionais de punição - como o Tribunal Penal Internacional. Aos condicionamentos oficiais das políticas estaduais acrescem os condicionamentos pelas grandes empresas ou grupos econó­ micos multi-nacionais 33. Mas, ao mesmo tempo que o imaginário estatalista do li­ beralismo recua, descobre-se que, finalmente, não se tratava, na verdade, de muito mais do que de um imaginário, por detrás do qual fervilhavam mecanismos múltiplos de organização e de disciplina sociais - a educação dos sentimentos (a moral), o sen­ so comum, as rotinas, a organização do trabalho, a família, os círculos de amigos, enfim, a "comunidade". Pela intimidade dos amores, pelos mecanismos viscosos da rotina, pela acção do dis­ curso, pelos jogos da evidência e da verdade, pelos constrangi­ mentos da domesticidade e da amizade, a sociedade continua tão firme e espontaneamente organizada como antes. E, por lon­ ge que estejam dos cumes da política, os homens a as mulheres têm, todos os dias, os seus momentos de poder. Enfim, afinal fazse política como se respira. 3.1.2. A pré-comprensão pós-m oderna do poder Esta nova descoberta de uma "política ao nível do solo" (J. Revel, 1989) - ou, se se preferir Lenine, de uma política ao alcance da porteira - pode ser relacionada com uma temática teórica ti­ picamente pós-modema: horror ao gigantismo e atracção pela pequena escala, desconfiança dos modelos globais, das tecno­ logias pesadas e das grandes organizações, revalorização das componentes pessoais e da vida quotidiana, preferência por uma ética do prazer em vez de uma ética da responsabilidade. Esta antipatia em relação às formas "m acro" do modelo político li­ beral tem uma genealogia bastante longa, na qual se podem en­ contrar, quer Karl Marx, quer Cari Schmitt, antes de chegar às 33Sobre o seu im pacto sobre as políticas estaduais, cf. o testemunho de um in­ sider em Soros, 2000, 2002; Ferrrese, 2000, 2002. Cultura Jurídica Europeia 53 análises micro-físicas de Michel Foucault ou aos diagnósticos sobre a mudança das fontes, dos níveis e das tecnologias do po­ der e da organização nas sociedades omni-comunicativas, des­ critas por Alvin Toffler. Quaisquer que sejam as genealogias, o que interessa é que o diagnóstico ou o anúncio do fim do Estado como modelo de organização política se tomaram usuais na teoria política mais recente É por isso que a evolução mais recente da historiografia do direito e das instituições não pode ser separada, quer da evolu­ ção dos movimentos da sensibilidade política antes descritos, quer das últimas novidades da teoria política. Uns e outras criam interesses existenciais que dirigem o conhecimento (Erkenntnisleitende Interessen) ou, para escolher uma outra formulação, que modelam uma pré-compreensão ( Voruerstandniss) do político, a qual antecipa os resultados da actividade historiográfica. No entanto, não se pode dizer que, nos finais dos anos ses­ senta, quando o movimento de contestação da historiografia jurídico-política tradicional começou a tomar forma, estes sinais de dissolução das formas contemporâneas de normação e de disciplina já fossem abertamente visíveis. E, sobretudo, não se pode de forma alguma dizer que fos­ sem eles que estavam na origem do mal-estar da então mais ino­ vadora historiografia jurídica. MLim itando-m e a exem plos dos últimos anos, vindos de cantos opostos da reflexão sobre a política: P. Legendre, no âmbito de um a já longa reflexão sobre a forma estatal (desde L'amour du censeur, 1974, até Les enfants du texte. Étude sur la fonction parentale des États, 1992, até ao Trésor historique de l'État en France. L'administration classique, 1992), prognostica "a sua dissolução do interior, deixando lugar a outra coisa" (Trésor..., 13). Do lado das teorias do management - cujo papel dogm ático (i.e., legitimador das relações políticas estabelecidas) é colocado p o r P. Legendre ao lado do direito dos Estados contem porâneos - , tom am os o exem plo de A. Toffler (Toffler, 1990) que vê nas actuais deslocações do poder (pozvershift) o sinal do advento de uma nova época civilizacional, dom inada por formas moles e flexíveis de organização (flex-organisations). 54 António Manuel Hespa O q u e en tão d esem p en h o u u m p a p e l d eterm in an te fo crítica da fam iliaridade" com a qual a historiografia estabe cida lidava com o passado. 3 .1.3 . Contra uma história politico-institucional actualizante. 3 .1 .3 .1 . A política implícita da ideia de “continuidade” (Kontinuitatsdenken) Para aqueles que tinham tido contacto com a historiogra fia geral mais moderna, nomeadamente com o movimento do Annales, a falta de distanciamento histórico era naturalmente chocante. Mas tomava-se ainda mais, quando se analisava a polític implícita nesta historiografia "da continuidade". Com efeito ,, ideia de uma continuidade, de uma genealogia, entre o direit» histórico e o direito do presente era tudo menos inocente, do ponto de vista das suas consequências no plano da política do saber (jurídico). A continuidade dos dogmas (dos conceitos, das classifica ções, dos princípios) jurídicos constitui, de facto, a via real para a naturalização do direito e dos modelos estabelecidos de podei para a aceitação de um direito natural, de uma organização política racional, fundados no primado de um espírito humam transtemporal, que permitiria o diálogo dogmático entre os ju ristas do presente e os do passado. A história teria, então, un papel essencialmente dogmático. Como saber que lida com < tempo, ela teria a função de permitir a comunicação trans-tem poral, tornando possível o diálogo espiritual entre os de hoje 1 os de ontem. Nesse diálogo, o presente enriquecia-se mas, so bretudo, justificava-se. Porque o passado, ao ser lido (e, portan to, apreendido) através das categorias do presente, tornava-si numa prova muito convincente do carácter intemporal - e, por tanto, racional - dessas mesmas categorias. "Estado", "represen tação política", "pessoa jurídica", "público/privado", "direit( subjectivo", eram - lendo a história desta maneira - encontra Cultura Jurídica Europeia 55 das por todo o lado na história. Não podiam, por isso, deixar de ser formas contínuas e necessárias da razão jurídica e política. Que esta continuidade fosse o próprio produto do próprio olhar do historiador era questão de que não se parecia estar consciente. Mas, além de poder ser lida neste registo da "perm anên­ cia", a continuidade também pode ser lida no registo da "evo­ lução". Neste caso, trata-se de assistir ao nascimento e secular aperfeiçoamento de um conceito ou de um instituto. A "conti­ nuidade" é concebida como a continuidade dos seres vivos, que crescem e desabrocham, em flores e, finalmente, em frutos. A sabedoria político-jurídico da Humanidade, justamente porque continuaria o passado e não perderia os seus ensinam entos, aperfeiçoar-se-ia - i.e., progrediria linearmente por acumulação. A partir desta ideia, institui-se uma visão progressista da histó­ ria do poder e do direito, que transforma a organização institu­ cional actual num ómega da civilização política e jurídica. O Estado liberal-representativo e o direito legislado (ou, melhor ainda, codificado) constituiriam o fim da história, o termo últi­ mo de todos os processos de "modernização". A visão histórica, ainda aqui, servia para documentar essa saga, essa contínua luta pelo direito (Kam pfum Recht). Os dog­ mas do direito histórico não são já, como no caso anterior, teste­ munhos da justeza dos do presente. Mas testemunhos da acti­ vidade de libertação da Razão jurídica em relação à força, aos preconceitos e às doenças infantis 3S. Pressuposto deste uso legitimador da história era, num caso ou noutro, a ideia de continuidade. Ou seja, a ideia de que o sa­ ber do presente se enraizava no saber do passado e que recebia deste as categorias fundamentais sobre as quais trabalhava. De facto, a chave do sucesso da tradição romanística, desde os glosadores até à pandectística alemã, foi sempre o mascarar do ca­ rácter inovador da "recepção", o facto de esta repousar sempre sobre uma duplex interpretatio. Com efeito, ficcionava-se que o sentido pelo qual se tomavam 35 Abordei esta tem ática em H espanha, 1986c. 56 António M anuel H espanha os conceitos ou as normas herdadas do passado era o sentido cu­ nhado pelos seus autores ou o ligado aos seus contextos originais. Nem os próprios textos, nem as condições da sua produção e apro­ priação, disporiam de espessura suficiente para provocar refracções no seu sentido. Pelo contrário, a limpidez cristalina e a plena dis­ ponibilidade dos textos deixariam reinar, soberano, o único con­ texto que seria preciso ter em conta, o contexto intemporal - e, por­ tanto, comum ao passado e ao presente - da Razão jurídica. Esta crença na intemporalidade do sentido e na possibilidade de uma hermenêutica sem limites conduzia a um achatamento ou a uma negação da profundidade histórica e a um sentido de familiarida­ de com o passado que, por sua vez, levavam a uma trivialização da "diferença" deposta nos textos jurídicos históricos. 3 . 1 .3 . 2 . A crítica do atem poralism o Não se pode dizer que a questão das rupturas, nomeada­ mente das rupturas dogmáticas, fosse desconhecida dos histo­ riadores do direito. Nos anos '20 e '30, alguns romanistas, rea­ gindo justamente contra a apropriação actualizante do direito romano, operada pela pandectística, tinham denunciado o erro que seria o ignorar do trabalho criativo, poiético, das diversas recepções dos textos romanísticos (duplex interpretatio), o seu progressivo distanciamento em relação aos sentidos originais. Desta denúncia, do carácter ilusório das aparentes continuidades terminológicas decorria a ilegitimidade de aplicar, no tra­ balho histórico, as categorias jurídicas actuais.36 Mas a crítica da ideia da "continuidade" (da "familiarida­ de") mais decisiva para os desenvolvimentos recentes da histo­ 36 O preço pago por esta orientação foi uma inevitável "historicização" das cor­ rentes romanísticas e a sua perda de peso nas Faculdades de Direito. Por isso, alguns sectores rom anistas propuseram um estudo "jurídico" (actualizante) do direito rom ano, reactivando as intenções dogmáticas da pandectística (zurück zu Savigny, zu dem heutigen System des römischen Rechts). V., neste último senti­ do, o "m anifesto" de Cruz, 1989b, 113-124. Para a crítica, v. infra, 5 .I.I.I.4 . Cultura Jurídica Europeia 57 riografia jurídico-institucional veio mais tarde, no decurso dos anos '70. Apesar da diversíssima identidade ideológica dos ac­ tores, não parece muito arriscado dizer-se que se tratou de um movimento de crítica do triunfalismo da política estabelecida o Estado liberal-representativo e o seu direito legislado -, que amarrara a história institucional e jurídica ao seu carro de triunfo 37. O que, de vários lados, se tentou fazer, foi desamarrar daí o passado, mostrando como ele, se o deixassem falar a sua pró­ pria linguagem, se dessolidarizaria das formas estabelecidas do presente e exprimiria a inenarrável mobilidade das coisas hu­ manas. No domínio da história político institucional, esta missão foi preparada pelos trabalhos pioneiros de Otto Brunner 38- que, tal como Otto v. Gierke, Émile Lousse ou Julius Evola, perten­ cia aos grupos tradicionalistas, críticos da "situação política" -, ao destacar a alteridade das representações de Antigo Regime sobre o poder e a sociedade 39. A influência de Brunner, combi­ nada com sugestões anteriores e disseminada por esta nova his­ toriografia, provocou um movimento historiográfico, hoje muito amplo, de problematização da justeza de aplicar categorias e précompreensões contemporâneas à história do poder das Épocas Medieval e M oderna40. No domínio da história do direito, a crítica da continuidade prometia maiores dificuldades, de tal modo esta era essencial, não apenas à manutenção da ideia de uma ratio iuris intemporal, mas 37V., no m esm o sentido, em bora com diferente argum entação, Levi, 1998. 38 Indicações bibliográficas, avaliação global e nota sobre os precursores, Hespanha, 1984b, 31 ss. 39A fortuna que este autor veio a ter na historiografia da época m oderna (sécs. XV-XVIII) deve bastante à sua recepção pela historiografia político-institucional crítica (m as, desta vez, "d e esquerda") italiana dos anos '70 e ao des­ taque que é dado à sua obra nos prefácios de duas antologias que então es­ tiveram muito em voga, a de Schiera-Rottelli e a de A. Musi (Rottelli, 1971; Musi, 1979). O mesm o destaque lhe foi dado por mim, em H espanha, 1984b. 40 V. Blockmans, 1993. 58 António Manuel Hespanh; ainda à defesa da razoabilidade de dispositivos técnicos como é "regra do precedente" ou a "interpretação histórica" 41. Foi justamente o culto da "continuidade" que explica as tensões que acompanharam o aparecimento, em 1977, de uir número da revista lus commune, publicação institucional de urr dos templos da historiografia jurídica alemã, o Max-Planck-lnstitut fü r europäische Rechtsgeschichte, de Frankfurt/Main, coorde­ nado por um investigador do Instituto, Johannes-M ichael Scholz, e subordinado ao tema Vorstudien zur Rechtshistorik42. Js o título era tudo menos inocente, ao jogar no contraste provoca­ dor entre a designação clássica da disciplina - Rechtsgeschichte e o neologismo francisante - Rechtshistorik. A intenção iconoclasta estava abertamente explicada no estudo de abertura de J.-M Scholz ("Historische Rechtshistorie. Reflexionen anhand franzö­ sischen Historik" [Uma história histórica do direito. Reflexões a propósito da historiografia {historicizante} francesa], 1-175). Tratar-se-ia justamente de "historicizar a história do direito", importando para a disciplina as sugestões metodológicas da Escola dos Annales, nomeadamente a de promover a observa­ ção do direito no seu contexto social e a de introduzir aí, com toda a sua imponente majestade, a consciência da dimensão tem­ poral, de um tempo marcado pela ruptura. O passado jurídico devia ser, portanto, lido de forma a res­ peitar a sua alteridade, dando conta do carácter "local" do sen­ tido dos problemas, da justeza das soluções, da racionalidade dos instrumentos técnico-dogmáticos utilizados. Ou seja, do modo como todos estes elementos dependiam de condições his­ tóricas concretas de produção de sentido, quer estas condições 41 Que requerem que a passagem do tem po e a evolução dos contextos não prejudique a similitude (a "continuidade") das situações. As coisas são, na realidade, mais profundas: é a ideia de continuidade (das coisas e das pes­ soas) que suporta o essencialismo que, por sua vez, suporta o direito. Sem ela as nossas coisas desvanecer-se-iam continuam ente; as prom essas estari­ am sem pre a perder os seus garantes, e por aí fora. 42 V. Klosterm ann, Frankfurt/M ain, 1977. Cultura Jurídica Europeia 59' se ligassem aos contextos sociais da prática discursiva/quer si relacionassem com os particulares universos culturais dos acto res históricos. Já o convite a um comércio mais intenso com a história so ciai provocava mal-estar a uma historiografia que vivia sobre ; ideia de "separação" (Trennungsdenken, O. Brunner) entre o di reito e a sociedade 43. Mas, por cima disto, o corte com as conti nuidades da tradição jurídica dissolvia esta "fam iliaridade" di que se tem falado, suspendia a trivialização dos dogmas jurídi cos do passado e fazia correr o risco de introduzir um histori cismo que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por afectar o pre sente. Porque, na verdade, o carácter "estranho" do passadi corresponde, como num espelho, ao carácter também histórica mente enraizado - e por isso, reactivo - do presente. Tal como passado nos parece estranho, o presente pareceria estranho ao nossos antepassados, como o parecerá aos nossos vindouros. Este programa de recuperação dos sentidos "autênticos' ("locais") das instituições do passado não seria fácil de levar cabo, a menos que se ignorassem os problemas metodológico; postos por este desígnio de descrever o passado jurídico em si mesmo. Ou seja, a menos que se supusesse que o fechamento do passado nas categorias do presente é um facto intencional e qui pode, portanto, ser evitado por uma espécie de redução volun tária dos preconceitos actualistas. As coisas tornam-se mais pro blemáticas justamente porque os quadros de apreensão não são deliberados, mas o produto de pré-juízos imanentes ao próprio. wMais tarde (cf. 8.4.6. O apogeu do form alism o. A Teoria pura do direito.), vere m os com o a "ideia de sep aração" estava de acordo com teorias jurídicas qu propunham um a nítida separação entre o estudo do "s e r" (Sein; a socieda de) e o "d ev er ser" (Sollen; o direito). 44 As propostas metodológicas de J.-M. Scholz dirigiam -se, antes de tudo, con tra a história dos dogm as (Dogmengeschichte). Mas era claro que elas nãse dirigiam menos contra a história "m ilitan te" dos anos sessenta, politi cam en te com p rom etid a, pronta a denunciar, em nom e dos valores do pre sente, as aberrações do passado, sobretudo aquelas que se p rolon gavar no presente, ou de que se podia fazer u m uso, directo ou m etafórico, ri luta cívica ou política. 60 António Manuel H espanha olhar do historiador. Scholz estava consciente disto. Nem as deform ações epistem ológicas dos historiadores tradicionais eram intencionais, nem a história poderia nunca trabalhar com categorias neutras de apreensão que deixassem viver, em toda a sua liberdade e auto-determinação, o objecto sobre que inci­ dissem. E, assim, ele tentava escapar ao impasse recorrendo ao conceito, então desenvolvido pela teoria alemã da história, de quadros de conceptualização sugeridos pelo próprio objecto de estudo (Gegenstnndsbezogene Kategorien), quadros que possibili­ tariam uma adesão distanciada e não pietista em relação às autorepresentações dos agentes históricos. Uma questão à qual te­ remos que voltar mais abaixo. O programa que J.-M. Scholz traçara neste seu "m anifes­ to" 45 estava já a ser levado a cabo, no domínio da história do direito privado, pelo jus-historiador florentino Paolo Grossi, um dos exemplos mais interessantes de uma historiografia jurídica que, mantendo cuidadosamente todas as distâncias em relação à Dogmengeschichte tradicional, levava a sério os textos46. Ou seja, Grossi recusava-se a ver nos textos históricos do direito e nas suas figuras discursivas os antecedentes de uma história futu­ ra. Não sobrestimava as aparentes continuidades formais (pa­ lavras ou elementos normativos isolados do contexto), nem trivializava os elementos estranhos e inesperados47. 0 interessante do projecto é justamente o facto de suspender a continuidade 45 E que ilustrava com alguns artigos de jus-historiadores "d e ru p tu ra". ’"Sobre Grossi e outros representantes desta historiografia jurídica "d e rup­ tura" (H espanha, Petit, Clavero, Grossi), v. Vallejo, 1995. 47Os seus estudos sobre os direitos sobre as coisas (maxime, no seu livro Le situazione reali nelVesperienza giuridica medievale, 1968, continuado em II dominio e le cose. Percezione niedievali e modeme dei diritti reali, 1992) inauguram, neste domí­ nio, uma forma nova de tratar a dogmática jurídica medieval e moderna. Par­ tindo do estudo da dogmática medieval sobre as relações entre os homens e as coisas e relacionando-a com as suas raízes na teologia, P. Grossi tenta desven­ dar um sistema diferente do contemporâneo de pensar estas relações. Um sis­ tema em que, entre os homens e as coisas, se tecem laços variados e sobrepos­ tos, muito mais complicados do que os laços bi-unívocos (uma coisa é proprie­ dade de uma pessoa, uma pessoa é proprietária de um a coisa) do modelo libe­ ral de uma propriedade concebida como um poder exclusivo de uso. Cultura Jurídica Europeia 61 aparente dos conceitos familiares (como o de dominium), subli­ nhando, de um só golpe, a natureza cultural dos conceitos em­ pregues, tanto pelo sistem a dogmático do direito medieval, como pelo do direito liberal. Ao fazer isto, P. Grossi não fica pri­ sioneiro, nem dos quadros dogmáticos actuais (que ele recusa como grelha de reconstrução histórica), nem dos da época. Li­ mita-se a observar estes últimos, buscando as suas origens no seio do discurso teológico-jurídico e evidenciando as suas con­ sequências no plano da percepção das relações sociais. Em suma, põe em prática essa leitura dos textos "por de cima do ombro daqueles que os escreveram", de que falam os antropólogos. Lê o que eles liam, com um olhar paralelo; mas lê, também, o pró­ prio acto de leitura (ou de escrita) original. Para dar um outro exemplo deste género de "leitura parti­ cipante", provinda também do grupo brilhante de discípulos de Paolo Grossi, poder-se-ia citar o exemplo de Pietro Costa, autor, nos já longínquos anos sessenta, de um livro inesperado que, ao contrário dos ensaios correntes de história das ideias políticas, procurava apanhar as categorias do político nos tratados jurí­ dicos sobre a jurisdição 48. ■“ Cf. Costa, 1969. O empreendimento historiográííco de P. Costa era duplamente inovador. Em primeiro lugar, ele reconstituía, na sua alteridade, o sistema me­ dieval do saber relativo ao poder, mostrando, assim, que o lugar do discurso político, no seio de uma sociedade que se cria fundada sobre a justiça, se arru­ m ava no lugar onde se tratava da capacidade para fazer a justiça, ou seja, no discurso dos juristas sobre a jurisdição. E, consequentemente, considerava que o lugar central da prática política era o tribunal; o que explica muito da impor­ tância da litigiosidade no quadro das lutas políticas (cf. Hespanha, 1993e, 451 ss.).. Depois, ele revela a eficácia, textual e contextuai, dos sistemas vocabulares (dos campos semânticos) contidos nos textos jurídicos, como, v.g., o vocabulá­ rio jurídico medieval sobre o poder, ou essas fugas intermináveis de definições e de classificações em tom o de palavras como iurisdictio ou imperium. Era no seio destes jogos vocabulares que era apreendida e encerrada toda a realidade social, aí sujeita a operações de tratamento intelectual que obedeciam a uma lógica estritamente textual. E, de novo, era proposta "a o mundo" como um modelo, uma matriz, destinados a enquadrar as questões políticas e a servir de norma para elas Eu próprio documentei esta função política das classificações doutrinais do imperium e da iurisdictio em Hespanha, 1984a (versão castelhana em Hespanha 1993b); v. a sua ulterior valorização por Vallejo, 1992. 62 António Manuel Hespan 3.1.4. A descoberta do pluralism o político Uma das principais consequências da problematização do imaginário político liberal foi, justamente, o abandono dos por tos de vista historiográficos que apenas consideravam (na hitória ou na sociologia do poder) o nível estatal do poder e o nivel oficial (legislativo, doutrinal) do direito. Antes da brutal redução do imaginário político operad pela ideologia estatalista, no início do século XIX, a Europa vivera num universo político e jurídico plural49. Mas, sobretudc estava consciente disso. Consciente, quer da multiplicidade dc vínculos sociais, quer da diversidade dos níveis de normaçã social, quer das diferentes tecnologias pelas quais as norma eram impostas. Coexistiam, em primeiro lugar, diferentes centros autónc mos de poder, sem que isto pusesse problemas, nem de order prática, nem de ordem teórica. A sociedade era concebida com um corpo; e esta metáfora ajudava a compreender que, tal com no corpo, há muitas relações, dependências e hierarquias funcionais. Nem tudo está dependente, única e exclusivamente, da cabeça. Depois, compreendia-se também facilmente que os d: ferentes órgãos corpóreos, assim os diversos órgãos sociais, pu dessem dispor da autonomia de funcionamento exigida pel desempenho da função que lhes estava atribuída na economi do todo 50. Depois, neste mundo de poderes - sobrenaturais, naturais e humanos - distintos e autónomos, a normação realizava-s também a vários níveis. Existia uma ordem divina, explicitad pela Revelação. Mas, independentemente desta ordem primei ra, a própria Criação estava ordenada, possuindo "as coisas uma lógica própria de organização, que as relacionava natural mente entre si, independentemente da vontade dos homens e '■'Sobre o tema, muito expressivo, Clavero, 1991; sobre a estratégia da sua de< truição, no nível do imginário e no nível da prática, v. Bauman, 2001, 7-39 50 Sobre isto, v., em síntese, Hespanha, 1993b, 122 ss. Cultura Jurídica Europeia (x poder-se-ia até dizer, da vontade de Deus, já que Ele as tinhc criado assim. Finalmente, os homens tinham acrescentados í estas ordens supra-humanas diversos complexos normativo: particulares. Embora houvesse uma hierarquia entre estas dife rentes ordens, ela não privava as inferiores da sua eficácia pró pria, que predominava nos âmbitos que lhes eram próprios. Este pluralismo jurídico não era específico do Antigo Re gime. Pelo contrário, ele ainda se verifica no mundo político do nossos dias. O carácter artificial da ideia de Estado e os custo desta construção foram muito bem ilustrados por Z. Baumar ultim am ente num belo livro sobre a decadência do espírit comunitário com o advento da modernidade 51. Eu próprio, nur artigo mais recente, sugeri que apesar do imaginário da unide de instituído pelo estatalismo, as revoluções do século passad criaram mecanismos novos de periferização do poder (como burocracia)52. Mas foram sobretudo os sociólogos da justiça qu revelaram a multiplicidade de mecanismos de normação e d resolução de conflitos nas sociedades contemporâneas 53. Em todo o caso, esta ideia de que a normação social se efec tua a múltiplos níveis já encontrou aplicações notáveis na mai recente historiografia político-institucional do Antigo Regime Sirvo-me do exemplo de Bartolomé Clavero, um dos mais inte ressantes historiadores do direito dos nossos dias 54. A partir d 1979 (Derecho comun, Sevilla, 1979), Clavero desenvolveu ur modelo alternativo e não anacrónico para descrever o univers político do Antigo Regime. Esse modelo encontrou-o ele, quas explícito, na literatura jurídica da época. Esta literatura não fa lava do Estado, mas antes de uma pluralidade de jurisdições de direitos, direitos no plural, estreitamente dependentes d 51 Sobre os aspectos civilizacionais e éticos da construção do Estado, cf. a nc tável síntese de Baum an, 1 9 9 5 ,1 1 9 -1 3 8 ; Baum an, 2001, caps. 1-3. 52 Cf. H espanha, 1990b; sobre a pluralidade dos poderes e das tecnologias pc líticas dos nossos dias, v. H espanha, 1992a. 53 Inform ação bibliográfica em H espanha, 1993a ("In tro d u ção "). V. tambéi Cappelletti, 1984; e, Spittler, 1980. 54Cf. Vallejo, 1995. 64 António Manuel Hespanha outras ordens normativas (como a moral religiosa ou os deve­ res de amizade). Nos seus trabalhos, Cia vero insiste em dois tó­ picos: • a ordem jurídica de Antigo Regime tem um carácter natural-tradicional; o direito, uma vez que não é o produto do Estado, mas de uma tradição literária, tem fronteiras fluidas e m ovediças com outros saberes norm ativos (como a ética ou a teologia); • a iurisdictio, faculdade de dizer o direito, i.e., de assegu­ rar os equilíbrios estabelecidos e, portanto, de manter a ordem aos seus diferentes níveis, é vista como dispersa na sociedade, não sendo a summa iurisdictio senão a fa­ culdade de harmonizar os níveis mais baixos da jurisdi­ ção. O resultado é um modelo intelectual do mundo político que se adequa muito bem aos dados das fontes e muito explicativo em relação ao universo institucional da época. A partir daqui, a autonomia dos corpos (família, comunidades, Igreja, corpora­ ções), as limitações do poder da coroa pelos direitos particula­ res estabelecidos, a arquitectura antagonística da ordem jurídi­ ca, as dependência do direito em relação à religião e à moral, deixam-se compreender sem esforço 5556. 55 A influência deste m odelo - que tam bém foi proposto, ainda que de forma menos sistem ática, em Itália, por historiadores contem porâneos de Clavero, com o P. Schiera - é hoje grande em Itália, Espanha e Portugal, sobretudo entre os m odernistas (cf. apreciação, em Levi, 1998). A historiografia ingle­ sa sem pre lhe esteve mais próxim a, com o tam bém certas correntes da histo­ riografia alem ã. Em todo o caso, tanto na A lem anha com o em Fran ça, o m odelo estatalista ainda dom ina. P ara um a panorâm ica dos pontos de vista mais recentes sobre o "E stad o m od ern o", v. Blockmans, 1993. 36 Os efeitos desta leitura da história jurídico-política são chocantes para os partidários de um a história jurídica, institucional e política centrada sobre o Estado e que insista na ideia de centralização, com o característica das m o­ narquias europeias da Época M oderna. E m Espanha, esta im agem era tri­ butária do centralism o político da época de Franco (Espana, una, grande, li­ bre). Mas algum a da historiografia pós-franquista não deixa de com ungar desta visão centralizadora. O que explica, em certa m edida, o tom polémi­ co que envolve, ainda hoje, a obra de C lavero no seu próprio país. Cultura Jurídica Europeia 65 Esta visão pluralista do poder e do direito atrai, desde logo, a atenção para universos institucionais claramente não estatais, como a família e a Igreja. Já é trivial sublinhar a importância da rèdescoberta, por Otto Brunner (cf. Brunner, 1939,1968a, 1968b), de um facto que seria evidente, se não foram os efeitos de mascaramento da ide­ ologia estatalista - a centralidade política do mundo doméstico. Não apenas como módulo autónomo e auto-referencial de or­ ganização e disciplina sociais dos membros da família, mas tam­ bém como fonte de tecnologias disciplinares e de modelos de legitimação utilizados noutros espaços sociais 57. No que diz respeito à Igreja, os estudos sobre as tecnologi­ as disciplinares próprias multiplicaram-se. Em primeiro lugar, sobre os mecanismos eclesiásticos de coerção típicos, como a confissão, a inquisição ou as visitas paroquiais 58. Depois, sobre o núcleo de legitimação do discurso jurídico canónico, a frater­ na correctio ou o am o r59. O estudo do amor como dispositivo legitimador e como tecnologia disciplinar ultrapassa em muito os limites do direito canónico. Mas foram os historiadores deste direito quem inaugurou um campo de investigação que pode tomar-se de enorme importância para a compreensão dos me­ canismos políticos - a disciplina dos sentimentos ou a disci­ plina pela educação sentimental. Voltaremos ao tema. De 'mo­ mento, basta-nos sublinhar a importância heurística, apesar do seu carácter por vezes herm ético, dos trabalhos de Pierre Legendre 60 sobre as relações entre o poder e o amor 61. 57 Este papel m odelar da família e da disciplina dom éstica foram objecto de estudos recentes de - para citar um exem plo notável - Daniela Frigo (1985a, 1985b, 1991). 58 Cf. Turchini, 1985; Turrini, 1991 e, sobretudo, Prosperi, 1996. 59Sobre esta relação entre am or divino, graça e poder, v. Prodi, 1992. “ Legendre, 1 9 7 4 ,1 9 7 6 ,1 9 8 3 . 61 Sobre o contexto emocional e afectivo da política, v. também, Ansart, 1983; ou, fundam ental, Baum an, 1995, 82-109. Por último, exaustivo tratamento, para Portugal, em Cardim , 2000. 66 António M anuel Hespanl Mas, como se disse, esta leitura pluralista do poder e d disciplina na sociedade de Antigo Regime ultrapassa o direitt tal como este é hoje concebido. Na verdade, este direito const tuia (constitui) uma ordem mínima de disciplina, envolvida pc outras mais eficazes e mais quotidianas. Por exemplo, aquilo a que se chamava, na literatura do di reito comum, o direito dos rústicos (iura rusticorum) 62, ou sejc estas práticas á que o direito comum nem sequer outorgava ; dignidade de costume, mas que constituíam a norma de com portamento e o padrão de resolução de conflitos nas comunida des camponesas. Os trabalhos empíricos de Yves e Nicole Cas tan provam bem a sua eficácia, por muito difícil que seja avali ar o seu impacto através de uma leitura ingénua das fontes jurí dicas letradas (Hespanha, 1983). Mas a normação e disciplina sociais são sobretudo garan tidas pela "domesticação da alma". Não pode deixar de se pensar em Michel Foucault quandc se evoca este tema das "tecnologias de si" (cf. Martin, 1992). Ma; o interesse por estes temas de investigação decorre também di pistas teóricas mais antigas (desde Max Weber a Norbert Elias sobre os mecanismos de interiorização da disciplina social (Dis ziplinierung). Por outro lado, o estudo dos "sentimentos políti cos" tem avançado muito com os estudos histórico-antropoló gicos sobre o dom, a liberalidade e a gratidão, como cimento: ideológicos das redes de amigos e clientes. Uma primeira corrente, que tem levado a estudar a educa ção sentimental, quer a moderna, quer a contemporânea, na: suas relações com o mundo do direito e do poder 63, apenas dei os primeiros passos 64. 62 Cf. Andreas Tiraquellus, Tractatus de privilegiis rusticorum, Coloniae Agrip pinae, 1582; Renatus Chopinus, De privilegiis rusticorum, Parisiis, 1575; De. privilèges des persònnes vivant aux champs, Paris, 1634 (cf. Hespanha, 1983). 63 Sobre a função política da educação sentim ental no contexto da sociedadi laicizada dos séculos XVIII e XIX, v., por todos, Schiera, 1985; Schings, 1987 64V., pioneiro, Petit, 1997. Cultura Jurídica Europeia 67 Uma outra corrente, cujo ponto de partida é constituído pelos estudos de Clyde Mitchel e G. Boisevain65sobre as redes de amigos na Sicília contemporânea, explorou as virtualidades disciplinares das normas da moral tradicional (nomeadamen­ te, de Aristóteles e de S. Tomás; mas ainda muito presentes em certas bolsas tradicionalistas da Europa de hoje) sobre domíni­ os aparentemente tão livres como os da liberalidade e da graça. Num texto de há uns anos (Hespanha, 1993e), tentei mostrar de que forma um campo tão importante como o da liberalidade régia estava sujeito a uma gramática rígida, que constrangia a liberalidade e graça e que quase tirava ao rei toda a sua liberda­ de, neste domínio do juridicamente não devido. Ao mesmo tem­ po, Bartolomé Clavero publicou o seu livro Antidora [...], que explorava, na sequência de trabalhos anteriores, a teoria jurídi­ ca da usura na Época Moderna, encontrando aí um exemplo magnífico desta complementaridade entre o direito e a moral. Nesse livro, que revolucionou muito o campo da história do pensamento económico, Clavero mostrou como a disciplina de instituições hoje tão "am orais" e impessoais como os bancos e o empréstimo de dinheiro repousavam sobre as normas da m o­ ral beneficiai - da graça e do dom - e não sobre as normas do direito 66. Ao falar de amizade, de liberalidade, de gratidão, estamos a falar de disposições sentimentais que não podem ser observa­ das directamente. Por isso, as correntes historiográficas que têm que se ocupar delas são obrigadas a trabalhar sobre os textos normativos acerca dos sentimentos e das emoções. A hipótese de que se parte é a de que estes textos modelam, em primeiro lugar, o modo como entendemos e classificamos os nossos esta­ dos de espírito e, depois, os comportamentos que daí resultam. Neste sentido, a literatura ética, disseminada pelas obras de vulgarização, pela parenética e pela confissão, constituiria uma 65 Cf. Mitchell, 1973; Boisevain, 1978. 66 C lavero, 1991. 68 António M anuel H espanha tecnologia de modelação (inculcação) dos sentimentos particu­ larmente importante para a realização da ordem na Época Mo­ derna. Mas também a literatura jurídica que, nuns domínios mais do que noutros, se ocupa dos sentimentos, das emoções ou dos estados de espírito. Os exemplos clássicos são, no domínio do direito penal mas também do direito civil, os estados psicológi­ cos como a culpa (culpa), o dolo (dolus), o estado de necessidade (necessitas), a mentira, a loucura, a amizade, etc. Referindo-os e utilizando-os, como pressupostos para a aplicação de normas jurídicas, o direito institui uma "anatom ia da alma" (uma "geo­ metria das paixões", Mario Bergamo) que fixa os contornos de cada sentimento. A partir deste momento, o discurso já não se limita a descrever, estabelecendo também normas que discipli­ nam a sensibilidade e os comportamentos. Se listámos exemplos de formas "não jurídicas" de contro­ le e de normação, todas elas originárias do mundo medieval e moderno, isto não quer dizer que só então se possam encontrar destas formas "doces" de disciplina. Também a época contem­ porânea está cheia delas. No séc. XIX, os pensadores liberais re­ feriram-se a elas utilizando a expressão "m ão invisível", cunha­ da por Adam Smith para descrever as regras da economia de mercado, tal como eram então entendidas, a época moderna 67. E, de facto, o Estado liberal apenas pôde propor um programa de não intervenção, de deixar de regular directamente pela lei, porque os seus adeptos contavam com os mecanismos automá- 67"E v ery individual necessarily labours to render the annual revenue of the society as great as he can. H e generally neither intends to prom ote the pu­ blic interest, nor knows how m uch he is prom oting it...He intends only his ow n gain, and he is in this, as in m any other cases, led by an invisible hand to prom ote an end which w as no part of his intention. N or is it alw ays the w orse for society that it w as no part of his intention. By pursuing his ow n interest he frequently promotes that of the society m ore effectually than when he really intends to prom ote it. I have never know n m uch good done by those w ho affected to trade for the public good ." (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776) Cultura Jurídica Europeia 69 ticos de auto-regulação da sociedade, alguns dos quais eram apesar do seu alegado automatismo - promovidos pela educa­ ção e ela imposição de estritas regras de comportamento moral ou cívico. Lembremo-nos do moralismo da "época vitoriana" 68. Por outro lado, o Estado contemporâneo, se não regula por leis, cria meios de permanente observação dos cidadãos - o censo, o registo civil, os registos policiais, os outros, variados registos em que cada um tem que se inscrever (nomeadamente, para rece­ ber prestações do Estado); para não falar da recolha massiva de informação sobre cada um realizada pelos Estados policiais e totalitários (desde a PIDE portuguesa à STASI alemã) ou até, em momentos de histeria securitária, pelos próprios Estados demo­ cráticos 69. Foi Michel Foucault quem sublinhou esta transição nos métodos de controlo estadual da sociedade da disciplina legal nas monarquias absolutas, para a observação nos Estados contemporâneos 70. 3.2. Uma leitura densa das fontes Tratada a questão da definição do objecto da história do poder, cumpre esclarecer a questão dos métodos de abordagem desse objecto. E o que se fará no presente número. 68Sobre a evolução dos m ecanism os de disciplina económ ica do capitalismo nos finais do sec. XX, cf. o expressivo livro de Jean-Luc Boltanski, Le nouvel esprit du capitalisme, 2000 (Boltanski, 2000). 69Cf. o cham ado tips program, projectado nos EU A depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, convidando os cidadãcs a denunciarem às autorida­ des actividades suspeitas TIPS (Terrorism Information and Prevention Sys­ tem): "M ost leads that neighbors would pass along in the governm ent's pro­ posed netw ork of anti-terrorism tipsters will produce little, a top Justice De­ partm ent official predicted Saturday. Assistant Attorney General Michael Chertoff, the adm inistration's lead anti-terrorism prosecutor, defended the program as a legitimate w ay to protect Am ericans, despite criticism it in­ fringed upon their civil liberties" (Associated Press, 1 1 /0 8 /2 0 0 2 ). 70Prim eiro em Surveiller et punir, 1975; depois, em IIfaut défendre la société, 1997. Sobre este aspecto da obra de Foucault, Serrano, 1987a, 1987b. 70 António Manuel Hespanl- Ao referir as obras de Paolo Grossi e de Pietro Costa, subi: niiámos a sua especial metodologia de leitura das fontes, nome adamente das fontes jurídicas. Salientámos então como estes doi autores tomavam os textos a sério. Não os desvalorizavam comc metáforas, nem como contendo sentidos figurados; mas, sobre tudo, evitavam lê-los através das categorias do presente. Con isto, pretendiam preservar a lógica original das fontes, mesmc que esta não coincidisse com a actual. A frescura da visão que delas colhiam decorria justamente desse esforço em não trivializar os testemunhos do passado filtrando-os pelas categorias do senso comum do historiador. O carácter não trivializante desta leitura distanciada das fontes deve ser sublinhado. 3 . 2 . 1 . R e sp e ita r a ló g ica d as fo n te s Na verdade, os textos que constituem a tradição literária eu­ ropeia sobre o poder e o direito têm sido objecto de um constante trabalho de reinterpretação. Nomeadamente, os textos jurídicos. Uma tradição centenária de juristas, que acreditavam que nestes textos se depositava a ratio scripta, foi-os relendo sob a influ­ ência de novos contextos e procurando encontrar neles os sentidos "adequados" a estes. Por outras palavras, foi-os inovando. Por sua vez, uma tradição de historiadores, sobretudo de historiadores do direito, educados na lição da história dos dogmas jurídicos (Dogmengeschichte), foi-os lendo retrospectivamente, procurando neles a prova de que os conceitos e institutos actuais já tinham aflorado no passado. Por outras palavras, foi-os recuperando. Hoje, a frescura do sentido original está por isso obscure­ cida por camadas sucessivas de inovação e recuperação. O estra­ nho converteu-se em familiar, o inesperado em banal, o chocante em esperado. A leitura corrente encontra as palavras esperadas nos lugares previsíveis. As palavras estão cheias do sentido co­ mum, o que quer dizer que não têm qualquer sentido específi­ co. O presente olha para o passado e encontra lá a sua imagem, como quem se vê ao espelho. Cultura Jurídica Europeia 71 A obra, já citada, de Paolo Grossi sobre as situações reais na experiência medieval é significativa do que acaba de ser dito. Porque as fontes em que ele reencontrou os sentidos antigos que fazem da sua narrativa uma novidade não tinham cessado de ser invocadas, ao longo dos últimos duzentos anos, embora reinterpretados o sabor das sucessivas concepções do mundo, jus­ tamente para provar o carácter tradicional, ou mesmo natural, dos conceitos (dogmas) vigentes, neste caso, do conceito de di­ reito de propriedade 71. A arte de Paolo Grossi foi a de saber ul­ trapassar as evidências, em busca dos sentidos perdidos. Uma outra forma de banalizar os textos históricos é eufemizar o peso do que é dito, atribuindo-lhe o estatuto de metáfo­ ra ou dispositivo meramente retórico: o autor originário não poderia querer mesmo, literalmente, dizer aquilo que disse. Es­ taria a utilizar uma imagem, a enfeitar o discurso com um arti­ fício de eloquência ou, mesmo, a querer enganar o leitor, escon­ dendo a dura realidade com o manto diáfano da fantasia. Cabe­ ria, então, ao historiador interpretá-lo habilmente (cum grano salis), descobrindo, sob o que era o dito, aquilo que era pensa­ do, dando-lhe o seu "verdadeiro" sentido. Um exemplo desta leitura "perspicaz" é a que normalmente é feita das contínuas referências que se encontram nos textos jurídicos às ordens superiores da ética e da religião. Uma atitu­ de comum dos historiadores do direito, para não falar dos his­ toriadores do social que frequentam os textos jurídicos, é a de considerarem estas referências, completamente estranhas à ac­ tual compreensão de um direito e de um poder completamente 71 Li há bastantes anos que, quando elaborava o borrão da encíclica Quadragé­ simo anno, o C ardeal De Gasperi, preocupado em encontrar um a fundam en­ tação histórica e tradicional para a doutrina da Igreja de defesa da prop rie­ dade privada contra os "e rro s" do com unism o, saudara com um a entusiás­ tica anotação "E cco il diritto di proprietà \" um passo de S. Tom ás onde se falava de dominium no sentido não exclusivista e não individualista que o termo então tinha. E um exem plo de com o as preocupações contextuais agem sobre a leitura. M as, geralm ente, os processos de contextualização social da leitura são menos directos. 72 António M anuel H espanha secularizados, como artefactos retóricos desprovidos de senti­ do "real" ("p rático ")72. Ora, pelo contrário, no caso dos textos de direito medievais e modernos, essas referências são o sinal de uma ligação que eles entendiam como ontológica entre o di­ reito e a religião, sem a qual, esses textos não podem ser enten­ didos; tal como não pode ser compreendido o sentido global da ordem jurídica, nem muitos dos seus detalhes 73. O mesmo se passa no que diz respeito às referências ao amor. Neste caso, a operação de banalizarão apresenta duas ver­ tentes. Por um lado, reinterpreta-se o conceito de amor. Com efeito, amor não haveria senão um, o que corresponde à nossa gramática dos sentimentos, o amor pelo amante, quando muito pelos pais ou pelos filhos. Já um amor pelos governantes, pela ordem, pela justiça, um amor que está na origem da ordem ou na origem da justiça, não seriam mais do que maneiras metafó­ ricos de dizer, dispositivos retóricos sem conteúdo social. Esta aproximação que então se fazia de sentimentos afectivos (e das correspondentes atitudes) em relação a pessoas tão diferentes como o rei, os pais, os companheiros de viagem ou os amantes não diria nada da realidade política "real", podendo ser deixa­ da de lado na análise histórica dos efeitos políticos 74. Pelo contrário, uma leitura em profundidade (uma leitura "densa", para retomar uma terminologia já proposta para des­ crever preocupações do mesmo género 75), que respeite tudo o q u e é dito (e não dito), que recuse o sentido comum, que sub­ verta uma leitura calmante do passado, mostrará como estes tex­ tos que se referiam ao amor repousavam sobre (construíam, di­ fundiam) uma diferente gramática dos sentimentos, uma outra anatomia deli'anima (Mario Bergamo), que constituía o impensa- 72 Ou melhor, dotados de um sentido pragm ático (i.e., destinado a com over o leitor) e não sem ântico (i.e., destinado a denotar objectos). 73 Cf., neste sentido, o testem unho do principal responsável pela dissem ina­ ção, em termos novos, desta ideia, Bartolom é Clavero (Clavero, 1991). 74 Para a análise do am or com o sentimento político, v. Legendre, 1974; Boltanski 1990; Cardim, 2000. 75 Cf. Geertz, 1973; M edick, 1984. Cultura Jurídica Europeia 73 do do direito, bem como do conjunto dos saberes sobre o homem e a sociedade, e dava, portanto, um sentido específico ("local") às suas proposições. O trabalho de recuperação dos sentidos originais é, como se vê, penoso. O sentido superficial tem que ser afastado para deixar lugar às camadas sucessivas de sentidos subjacentes. Como na arqueologia, a escavação do texto tem que progredir por camadas. Os achados de cada uma delas têm que fazer sen­ tido a esse nível. O modo como eles foram posteriormente reinterpretados pode também ser objecto de descrição; mas isso é já uma outra história - é a história da tradição textual. A cada nível, portanto, o esforço é o de recuperar a estra­ nheza, não a familiaridade, do que é dito; o esforço de evitar deixar-se levar por leituras pacíficas; o de ler e reler, pondo-se porquês a cada palavra, a cada conceito, a cada proposição, a cada "evidência" e procurando as resposta, não na nossa lógi­ ca, mas na própria lógica do texto. Até que o implícito deste se tenha tom ado explícito e possa ser objecto de descrição. Nessa altura, o banal carrega-se de sentidos novos e inesperados. O passado, na sua escandalosa diversidade, é reencontrado 7b. 76Autores ligados à história da escrita, da im prensa e do livro têm vindo a sa­ lientar que o sentido original, para ser encontrado tem que ser objecto de múltiplas contextualizações: não apenas necessário conhecer o contexto au­ toral, cultural, textual em que a obra é produzida; é preciso ainda conhecer o seu contexto "escribal" - ou seja, os sentidos que a própria m aterialidade do suporte do que é escrito cria nos leitores. Donald Francis M cKenzie, um dos m aiores representantes da cham ada "bibliografia material", salienta esta função do escrito (impresso) físico, afirm ando (McKenzie, 2002) que " a for­ m a afecta o sentido" (p. 13): "th e physical form s through which texts are transm itted to their readers (or their auditors [censors, ideological police] affect the process of the construction of m eaning" (p. 28) e propondo que a sociologia dos textos se ocupe tanto da sociologia da criação, com o desta sociologia da bibliografia, que abarcaria a fixação do sentido em textos com um a certa m aterialidade, um a certa difusão um certo m ercado, um certo público (cf. Mckenzie, 1997, 2002). Esta atenção à m aterialidade dos supor­ tes do sentido rem onta aos estudos de M arshall M cLuhan (M cLuhan, 1962), W alter O ng (Ong, 1958), Jack Goody (Goody, 1977) e Roger Chartier (Chartier, 1987), que a teorizaram largam ente, com resultados muito im portan­ tes, m as ainda pouco explorados, tam bém para a história do direito. 74 António Manuel Hespan Este escutar das profundidades do texto é também un sondagem às zonas limite do universo da interpretação. Pod mos - e se sim, como - reconstituir a geometria da alma d( agentes históricos, essa geometria que explica as suas reacçõe: Na verdade, na base dos comportamentos ou das prátia passadas encontram-se opções humanas em face de situações. E; tas situações são avaliadas pelos agentes de acordo com dispos ções espirituais, cognitivas ou emocionais. São estas que ditam tarr bém o tipo das suas reacções. A menos que se adira aos pontos d vista de uma natureza inata e comum destas disposições, elas e: tão fora do alcance do nosso conhecimento exterior, pois estão er cerradas no seu mundo mental, que não é o nosso. O máximo qu< então, se pode fazer, nesta hermenêutica das raízes da prática, anotar as manifestações exteriores, sejam elas comportamentos o discursos (nomeadamente, discursos que auto-representem os ei tados de espírito), descrevê-los com todo o detalhe e fidelidade e, partir daí, tentar identificar as disposições espirituais aí embebida a origem dos sentidos autênticos das práticas 7778. Mas, dada a nã 77 A expressão "forte" sentidos autênticos da prática significa que não se adi re aqui a concepções da história, para as quais é o historiador que dá o sei tido autêntico aos actos hum anos, reconduzindo-os ou a um a cadeia esc; tológica de tipo providencialista/finalista, ou a um encadeam ento causal d tipo cientista; mas não pretende criar ilusões quanto à validade final do c< nhecimento histórico, com o se conclui da nota seguinte. 78Cf. (no mesmo sentido de um trabalho, não de reconstituição dos sentimento mas de leitura das formas simbólicas - palavras, imagens, instituições, compo tamentos - a partir das quais as pessoas se vêem umas às outras) Geeríz, 1986; 75. Esta proposta apresenta, evidentemente, problemas epistemológicos sér os, pois não é fácil encontrar um fundamento, neste plano, para o optimism de se conseguir atingir esse nível irredutivelmente individual em que se fund cada acção. Os problemas atenuam-se se se orientar a pesquisa, não para c puros proposita in mente retenta (as disposições puramente interiores), mas par estados de espírito "d e algum modo objectivados" em discursos ou comporte mentos, de modo a possibilitar, por um a espécie de procedimento reconstrui vo, a reconstituição de uma disposição espiritual objectiva, que, na verdade, nã é de ninguém, mas que se induz daquilo que os indivíduos que participam num cultura depositam nos seus actos externos, comunicativos. Mas os conhecidc problemas do círculo hermenêutico não desaparecem com isto. Pois esta recoru tração funda-se nas experiências subjectivas culturais do intérprete... Igua mente céptico, embora por razões diferentes, 1985. Cultura Jurídica Europeia 75 correspondência entre os seu mundo mental e o nosso, os resulta­ dos desta empresa são problemáticos. Ao fim e ao cabo, quase não poderemos fazer mais do que supor que por detrás dos seus actos estavam intenções diferentes das nossas e, por isso, desconfiar da aparente continuidade do sentido entre as suas reacções (os seus comportamentos, os seus escritos) e os nossos. 3 . 2 . 2 . A lite r a tu r a é tic o -ju ríd ic a , c o m o fo n te de u m a a n tro p o lo g ia p o lític a d a É p o c a p ré -C o n te m p o râ n e a Se considerarmos, porém, os géneros literários ético-jurídicos específicos da Época Moderna, a probabilidade de os tex­ tos conterem mais do que fantasias ou pios votos aumenta bas­ tante. Porque há quem pense que, se existem vias de acesso para o impensado social da Época Moderna, a via real de entre todas elas é justamente a dos textos da teologia, da moral e do direito. Esta é a posição de Bartolomé Clavero, nas suas repetidas propostas de uma antropologia da Época Moderna fundada nos textos jurídicos 79ou, na versão mais recente, também nos tex­ tos teológico-morais 80. A partir do conjunto de preceitos da literatura ético-jurídi­ ca e do levantamento da lógica política profunda da sociedade pré-contemporânea que ela permite, obter-se-ia a mesma sen­ sação experimentada por Leonardo Sciascia em relação à socie­ dade siciliana, uma vez descoberta a sua chave mental. As sur­ presas, ao nível das atitudes dominantes, acabam. Tudo se tor­ na lógico e previsível81. Porquê ? 79 Cf. C lavero, 1985. 80Cf. Clavero, 1991, "P refácio ". O pessim ism o que repassa este texto não de­ riva de dúvidas "locais" quanto ao valor histórico dos textos ético-jurídicos para a reconstrução do im aginário social moderno, m as d e dú vidas " gera is" quanto à pertinência de qualquer reconstrução. 81 N o plano pedagógico, isto tem a vantagem de permitir a substituição de uma exposição atom ista da história institucional, em que cada instituição é des­ crita de per si, por um a exposição dos grandes quadros da cultura instituci­ onal subjacente. 76 António M anuel H espanha Desde logo, a teologia moral e o direito constituem, até ao século XVIII, os saberes mais importantes relativos ao homem e à sociedade. Saberes prolixos, de mais a mais. Basta um relan­ ce de olhos sobre a bibliografia dos títulos impressos ao longo da Época Moderna para nos darmos conta do domínio esmaga­ dor destes saberes no conjunto do teatro dos conhecimentos. Na verdade, a teologia moral e o direito representam, na Época Moderna, uma tradição longamente sedimentada. Ou seja, uma tradição na qual se recolhem esquemas culturais de representação do homem e do mundo muito experimentados e consensuais. A contínua discussão intelectual de um mesmo universo literário pusera à prova a consensualidade das inter­ pretações e das leituras e a adequação destas aos dados vividos. Por outro lado, o mesmo carácter provecto da tradição fi­ zera com que ela tivesse embebido os esquemas mais fundamen­ tais de apreensão, instituindo grelhas de distinção e de classifi­ cação, maneiras de descrever, constelações conceituais, regras de inferência, padrões de valoração. Esquemas que se tinham incorporado na própria linguagem; que se tinham tomado co­ muns numa literatura vulgar ou em tópicos e brocardos; que se exteriorizavam em manifestações litúrgicas, em programas iconológicos, em práticas cerimoniais, em dispositivos arquitectó­ nicos. E que, por isso, tinham ganho uma capacidade de repro­ dução que ia muito para além daquela que decorria dos textos originais em si mesmos. A tradição literária teológica, ética e jurídica constituía, assim, um habitus de auto-representação dos fundamentos antropológicos da vida social. Neste sentido, a sua acção conformadora antecedia mesmo qualquer intenção nor­ mativa, pois inculcava um conjunto de esquemas intelectuais profundos que acabavam por modelar a totalidade apreensão da vida social. Porém, esta literatura era tudo menos puramente descriti­ va, tudo menos a-normativa. A sua carga preceptiva era enor­ me, tanto porque as suas proposições apareciam ancoradas, ao mesmo tempo, na natureza e na religião, como porque a sua in­ tenção não era descrever o mundo, mas transformá-lo. De fac- Cultura Jurídica Europeia 77 to, o que aparece descrito nos livros de teologia e de direito apa­ rece ou como dado inevitável da natureza ou como dado invio­ lável da religião. Os estados de espírito dos homens (affectus), a relação entre estes e os seus efeitos externos (effectüs), eram apre­ sentados como modelos forçosos de conduta, garantidos a mon­ tante pela inderrogabilidade da natureza e, a jusante, pela ame­ aça de perdição. Estes textos têm, ao nível da sociedade, uma estrutura se­ melhante à do habitus, tal como é concebido por Pierre Bourdieu. Por um lado, constituem uma realidade estruturada (pelas con­ dições de uma prática discursiva embebida em dispositivos tex­ tuais, institucionais e sociais específicos), que incorpora esque­ mas intelectuais cuja adequação ao ambiente fora comprova­ da 82. Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que continua a operar para o futuro, inculcando esquemas de apre­ ensão, avaliação e acção. Tanto os intuitos práticos, como o apelo a valores univer­ sais como a natureza e a religião, favoreciam a difusão dos mo­ delos mentais e pragmáticos contidos nestes textos por auditó­ rios culturalmente muito diferentes do grupo dos produtores. Para além disso, os ambientes institucionais em que os textos eram produzidos dispunham de "interfaces de vulgarização" muito eficazes (a parenética, a confissão auricular, a literatura de devoção, a liturgia, a iconologia sagrada, para a teologia; as fórmulas notariais, a literatura de divulgação jurídica, os brocar­ dos, as decisões dos tribunais, para o direito), por meio dos quais os textos-matriz obtinham traduções adequadas a uma grande multiplicidade de auditórios. E este secular embebimento que tomou a moral e o direito em saberes consensuais. De resto, esta consensualidade em tor- 82Esta é um a vantagem deste corpo literário sobre a tradição literária ficcio­ nal ou puram ente ensaística. E que, aqui, os mecanism os de controle de ade­ quação prática das proposições ou não existem ou têm muito menos força reestruturante. U m a personagem psicologicamente inverosímil não obriga necessariam ente o autor a reescrever um a novela. 78 António Manuel Hespari no das suas proposições fundamentais constituía uma vocação central destes discursos, que decorria, quer do ambiente em que eles se desenvolviam, quer das funções sociais que lhes estavam atribuídas. Esta vocação para a consensualidade provém, antes de mais, das próprias condições de produção da tradição literária em que os textos se incluem. Trata-se, com efeito, de uma tradição que, durante vários séculos, tinha trabalhado sobre bases textuais imodificadas e que tinha podido produzir, como que por sedimentação, as opiniões mais prováveis, i.e., as mais aceitáveis pelo auditório. Esta sedimentação tinha cristalizado o acquis consensual em tópicos, brocarda, dieta, regras, opiniones conimunes. Era aí, portanto, que estavam depositadas as opiniões mais comuns e mais duráveis do imaginário sobre o homem e a sociedade. Mas provinha também da intenção prática a que antes já nos referimos. A educação pela persuasão não se pode levar a cabo senão a partir de um núcleo de proposições geralmente aceites. O carácter consensual deste núcleo de representações fundamentais não excluía, evidentemente, visões conflituais, sobre as quais era preciso optar, em vista da formação de uma regra de comportamento (v., infra, 3.2.3. "Cálculos pragmáticos" conflituais e apropriações sociais dos discursos.). Porém, o saber teológico-jurídico tinha desenvolvido métodos de encontrar a solução justa que, por um lado, deixavam aparecer a pluralidade de visões conflituais e que, por outro, deixava a opção entre elas aos consensos possíveis, elegendo a solução aceite mais geralmente (opinio communis) como a solução provável (embora não forçosa). Estes processos metodológicos eram, por um lado, o esquema expositivo da quaestio, ou seja, um esquema lógico de colocar uma questão controversa, em que estava garantida a consideração e confrontação das perspectivas possíveis. E, por outro lado, a combinação da tópica (ars topica) e da opinião comum, ou seja, do método sistemático de encontrar todos os argumentos que podiam ser produzidos de uma e outra parte e o Cultura Jurídica Europeia 79 modo de encontrar aqueles que eram susceptíveis de colher mais consensos (cf., infra, 5.6.2. "A estrutura discursiva."). Com o re­ positório das quaestiones, o historiador adquire, portanto, um capital de proposições discutidas (quaestiones disputatae) que dá conta dos conflitos provenientes de diferentes interpretações / apropriações dos textos. Com a tópica, acede ao catálogo das bases consensuais de qualquer discussão, i.e., aos topoi social­ mente aceitáveis. Mas a tópica garantia ainda que a solução fi­ nal, registada para a posteridade como opinião comum, era a solução mais consensual, tomada de futuro como base de novos desenvolvimentos textuais. Quaestio e topica são, assim, dois poderosos mecanismos de enraizamento dos textos teológico-jurídicos nos contextos sociais, que transformam estes textos em testemunhos particularmente fiáveis acerca dos dados culturais embebidos na prática. O lugar central ocupado pelo imaginário jurídico na representação da sociedade e do poder são disso uma prova convincente. Mas não será que justamente este intuito preceptivo da te­ ologia, da moral e do direito prejudica a relevância dos seus tex­ tos como testemunhos das relações sociais? Ou seja, nestes tex­ tos o pathos normativo não os fará estar mais atentos ao dever ser do que ao ser? Não lhes dará uma coloração mistificadora, "id e­ ológica", que os inutilize como fontes idóneas da história? Alguns reparos feitos por historiadores à utilização destas fontes insistem justamente neste ponto. Para uns, a estas fontes carregadas de intenções seriam de preferir fontes não intencionais, subprodutos brutos da prática, como peças judiciais, petições, descrições e memoriais. Ou seja, textos que não foram escritos para constituir modelos de acção, mas antes que foram escritos sob a modelação da acção. Para outros, o decisivo seria o estudo das situações concretas, nas quais, sob o impacto de interesses momentâneos e efémeros, os agentes optariam casuisticamente, contextualizadamente, sem recurso a qualquer modelo valorativo permanente e geral. Estas objecções, porque são diversas, devem ser abordadas separadamente. 80 António M anuel Hespanha Quanto à preferência por "fontes meramente aplicativas" a "fontes doutrinais", é provável que a preferência pelas primei­ ras, do ponto de vista da sua "fidelidade ao real", repouse num conceito de ideologia como consciência deformada e do discur­ so ideológico como discurso mistificador, discurso que poderia ser oposto a outros meramente denotativos, que reproduziriam, sem mediações, o "estado das coisas". Este conceito de ideolo­ gia não reúne hoje muitos sufrágios, pois não se aceita geralmen­ te que, por oposição ao discurso ideológico, existam discursos não deformados, dando neutralmente conta da realidade. E, as­ sim, entre um texto explicitamente normativo e um texto apa­ rentemente denotativo, a diferença que existe é apenas a de duas gramáticas diferentes de construção dos objectos. Porque, afinal, a realidade dá-se sempre como representação. Com a desvan­ tagem de que, nos discursos não explicitamente normativos, esta gramática se encontra escondida, encapsulada em actos discur­ sivos aparentemente neutros, ou fragmentada em manifestações parciais, pelo que as suas explicitação e reconstrução globais constituem um trabalho suplementar. Até por razões de econo­ mia da pesquisa, vale mais a pena ler o que os teólogos e juris­ tas ensinavam, longa e explicadamente, sobre, por exemplo, a morte, do que procurar, através da leitura de milhares de testa­ mentos, perscrutar a sensibilidade comum sobre ela. Já a oposição por alguns realçada entre uma história das sensibilidades (das mentalidades, das culturas) baseada em "ca­ sos" 83 e uma mesma história feita a partir de modelos doutri- 83Cf. Levi, 1985; Curto, 1994. As posições dos dois autores - que tom am os ape­ nas com o exem plo de correntes mais vastas - são diferentes. Levi insiste no "casu ísm o"(ou "m icro-h istória") porque acha que, em bora existam valores ou visões do m undo gerais e estruturadas (por exem plo, um a visão católica da política, na época m oderna, cf. Levi, 1998), elas são sem pre funcionalizadas ou relativam ente deform adas funcionalizadas pelos agentes, em função de conflitos sociais concretos. C urto, pelo seu lado, acha que as situações concretas são tão estruturantes das sensibilidades, dos interesses e das raci­ onalidades, que a referência a quaisquer modelos gerais de sensibilidade ou de com portam ento reduz inaceitavelm ente a com plexidade do m undo. Cultura Jurídica Europeia 81 nais estruturados, a questão que se põe é de outra natureza. E pode ser formulada assim: será que, nos negócios da vidá, há algum discurso - alguma norma, alguma racionalidade - perma­ nente a orientar a acção das pessoas envolvidas ? Ou não será que é a situação, o caso, que, na suas características irrepetíveis e irredutivelmente complexas, constrói os sujeitos da acção (ou seja, os põe em acção) ? Melhor ainda, os põe em acções, já que a complexidade das situações e dos sentidos que os contextos en­ volvem é múltipla e inesgotável84. Uma posição metodológica deste tipo tem consequências historiográficas diametralmente opostas às que aqui se defen­ dem favoráveis à relevância do discurso ético-jurídico como fon­ te de história social. A primeira é a de que todas as evocações de quadros ge­ rais de referência - ou horizontes de expectativas, ou quadros de avaliação, ou padrões de valoração - são deliberadamente suspensos (ou mesmo definitivamente excluídos). Cultura de elites, cultura popular, sistemas de crenças, modelos de religio­ sidade, de disciplina, de poder e de resistência, regularidades disciplinares, quadros institucionais e, evidentemente, sistemas jurídicos, tudo isto seriam formas de iludir o verdadeiro senti­ do doa actos humanos, justamente porque são modelos gerais pelos quais a acção individual e concreta nunca se deixa mol­ dar; A segunda é a de supor, nos actores em situação, uma ca­ pacidade criadora de sentidos ilimitada e arbitrária. Ou porque se considera não existirem sistemas gerais de referência ("cosmovisões", "modelos do mundo", "horizontes de leitura"), ou 84"[...] os discursos na sua natureza dispersa e fragm entada constituem-se em fonte de inspiração para as abordagens interessadas em analisar o significa­ do plural dos actos - incluindo os actos de linguagem - considerados políti­ cos [...]. E m esquem a, pode dizer-se que actos, negócios, experiências ou práticas não poderão separar-se dos significados, representações ou discur­ sos, que os agentes em relação produzem em diferentes situações, necessaria­ mente contingentes" (Curto, Diogo R., cit., cit., p. 2). 82 António Manuel Hespar porque, ainda que se admita a existência destes, se confere "aos agentes, aos grupos ou às audiências, uma capacidade de conferir significados a uma ordem social, a um sistema de crenças ou a um simples acto, significados que não se encontram previamente determinados" (Curto, 1994,179). A terceira é a de que, para esta metodologia microscópica, a única escala de observação é, portanto, a pequena escala - diria mesmo, a escala 1:1, como na história dos cartógrafos chineses contada por Jorge Luís Borges -, aquela que reconstrui, de forma tendencialmente integral, aquela situação concreta que, por sua vez, constrói os actores, os lances (enjeux) e as estratégias. A quarta é a de que a interpretação das situações nunca fornece chaves que ultrapassem essa situação, uma vez que os contextos são irrepetíveis. Quando muito, facilita "alusões" (que bem se podem transformar em "ilusões" ...). A reconstrução de um "objecto geral" - como "cultura política", ou "cultura jurídica" surge assim como um problema metodológico central que fica por resolver. A quinta é que, vista esta irrepetibilidade dos contextos e a inextensibilidade dos modelos interpretativos, a narrativa histórica é inverificável. Por muito que se sobrecarreguem os textos de citações eruditas e de papelada de arquivo, ou por muito enfáticas, fortes ou mesmo terroristas que sejam as afirmações dos autores, as conclusões a que chega são apenas problemáticas e provisórias alusões a sentidos inatingíveis, locais e efémeros. 3.2.3. “Cálculos pragmáticos” conflituais e apropriações sociais dos discursos A vocação da literatura teológico-jurídica para chegar a soluções consensuais, a que nos referimos, não excluía, porém, que na sociedade moderna convivessem representações diversas dos valores que, por sua vez, comandavam práticas de sentidos diversos ou até abertamente conflituais. A sociedade moderna não era, evidentemente, uma socie- Cultura Jurídica Europeia 83 dade unânime. As pessoas não actuavam sempre da m esm a maneira, mesmo em contextos práticos objectivamente equiva­ lentes. Ou seja, os seus sistemas de apreensão e avaliação do contexto, bem como os de eleição da acção e de antecipação das suas consequências não eram sempre os mesmos. Alguns destes conflitos situam-se a um nível mais superfi­ cial de avaliação e decisão, no seio de um espaço de variação deixado pelos modelos mais profundos de representação e de avaliação veiculados pela tradição teológico-jurídica. Ou seja, os actores sociais tiram partido da própria natureza argumentativa do discurso teo-jurídico, optando por um ou por outro tópi­ co, mais coerente com os outros seus sistemas particulares de cálculo pragmático (v.g., a mundividência nobiliárquica, a mundividência feminina, a mundividência plebeia). Estas situações não escapam, porém, a análise discursiva proposta. Por um lado, estes sub-modelos "tópicos" são apenas opções possíveis dentro de um sistema de categorias mais pro­ fundo. Pode optar-se pela preferência das "arm as" sobre as "le ­ tras" ou, pelo contrário, pela das "letras" sobre as "arm as" e construir-se, sobre cada uma das opções, uma estratégia discur­ siva e prática própria. Mas o catálogo dos argumentos a favor de cada posição e até as formas alternativas de os hierarquizar estão fixadas num meta-modelo comum que contém as bases culturais de consenso que, justamente, permitem que as suas posições dialoguem 85. Ou seja, as diferentes apropriações do conjunto contraditório de tópicos que integram o sistema discur­ sivo do direito não saltam para fora da sua sistematicidade, a um nível mais profundo, tal como as posições contraditórias das partes num processo não destruem as normas de decisão pro­ cessual 86. Não cremos, no entanto, que seja prudente erigir o mode- 115M as que, por exem plo, exclui um a discussão do m esm o género sobre a pre­ ferência do estado "n ob re" e do estado "m ecânico". 86 O u as estratégias opostas de dois jogadores não dessoram o patrim ónio co ­ m um das regras do jogo. 84 António M anuel Hespanha lo cultural subjacente ao espírito das instituições e da literatura doutrinal que delas trata como um modelo global, um pouco como faz Louis Dumont para os quadros mentais subjacentes às hierarquizações sociais da cultura hindu 87. Existem, evidente­ mente, modelos de representação estranhos ao discurso dos te­ ólogos e dos juristas. Por exemplo, para a época primo-moderna peninsular, o dos chamados "políticos" (basicamente, inspi­ rados em Maquiavel), fundado em valores (como o da oportu­ nidade ou da eficácia, concebidas como adequação a um único ponto de v ista)88que são claramente antipáticos aos fundamen­ tos da imagem da sociedade que enforma o discurso da teolo­ gia moral e do direito. O discurso dos teólogos e dos juristas apenas permite o acesso a estas outras constelações cognitivas e axiológicas "dis­ sidentes", na medida em que com elas polemiza. E nem isso, quando nem sequer é obrigado a polemizar com elas, limitan­ do-se a desqualificá-las pelo silêncio ou pelo desdém 89. Naturalmente que estes modelos "variantes" (no primeiro caso) ou "alternativos" (no segundo) devem ser considerados pelo historiador ao traçar o quadro dos paradigmas de organi­ zação social e política da sociedade moderna. A sua eficácia em meios sociais determinados deve ser contextualizada. Não necessariamente nos termos de uma contextualização "social", sobretudo atenta aos "interesses" dos gru­ pos, mas de uma contextualização cultural, que tenha em conta os sistemas cognitivos e axiológicos próprios desses grupos de que, justamente, decorrem os seus "interesses" 90. 87 Dumont, 1966. 88 V.g., a oportunidade ou eficácia do ponto de vista do interesse da coroa, deixando inatendidos os pontos de vista de outros interesses, cuja conside­ ração conjunta e equilibrada constituía, precisam ente, a justiça. 89C om o acontece com o "direito dos rústicos", ignorado ou referido depreci­ ativam ente com o os usos dos ignorantes ou dos rudes; cf. H espanha, 1983. 90N ote-se que se inverte aqui a costum ada relação entre "interesse" e "rep re­ sentação" (a representação é considerada com o gerando os interesses, e não o contrário ...) (cf., infra, 3.2.3. "C álcu los pragm áticos" conflituais e apropri­ ações sociais dos discursos.). Cultura Jurídica Europeia 85 Porém, os respectivos peso e difusão sociais - e, logo, a sua capacidade para dar sentido (para "explicar") as práticas - des­ tes modelos alternativos de cálculo pragmático devem ser tidos em conta. Ora, pelas razões já antes referidas, parece-me que os dis­ cursos alternativos à teologia moral e ao direito são, durante toda a Época Moderna, francamente minoritários. Não devendo ser sobrevalorizados quando se trata de descrever condutas massivamente dominantes, são, em todo o caso, muito importantes para explicar as resistências aos poderes estabelecidos e, tam­ bém, os processos de ruptura e desintegração do universo cul­ tural moderno que conduzem à substituição pelo universo cul­ tural contemporâneo. Se não bastasse o argumento da impossibilidade (e inutili­ dade epistemológica) de uma história feita assim, à escala 1:1, algumas considerações do número seguinte poderão responder às alegadas dificuldades de uma história que tome por base "vi­ sões do mundo" ou "modelos estruturados e acção", como os que é possível reconstruir com base na literatura ético-jurídica. 3 . 2 .4 . T e x to e c o n te x to . M o d e lo s p o lítico s e c o n d ic io n a lis m o s p rá tic o s . A so cio lo g ia h is tó r ic a d a s fo rm a s p o lítica s Alguma historiografia opõe, como se vê, a uma história dos modelos de acção - sejam eles éticos, jurídicos ou, genericamen­ te, culturais (se é que a distinção faz sentido) - aquilo a que se poderia chamar os "condicionalismos práticos", as "situações concretas", os "interesses da vida", as "condições objectivas" ou a "força das coisas". Com qualquer destas expressões pretende-se referir cir­ cunstâncias "objectivas", "forçosas", que se impõem ou condi­ cionam a avaliação e livre decisão dos sujeitos "em situação": os seus interesses objectivos, a lógica da realidade, uma manei­ ra de agir ou de reagir disparada pelo contexto concreto. Apenas queria insistir em que, por um lado, os contextos da acção são sempre subjectivamente avaliados, que os interes­ ses decorrem de traçados pessoais de estratégias, enfim, de op- 86 António Manuel Hespa ções; e que, por outro lado, as "coisas" têm a força que os sujeitos lhes decidem atribuir. A perspectiva aqui proposta visa, justamente, reagir contra várias formas de mecanicismo objectivista que tendem a explicar a acção humana a partir de um jogo de determinantes puramente externas, sejam elas a necessidade fisiológica, as leis do mercado, os ritmos dos preços, as curvas de natalidade ou as estruturas de produção. Insistimos, pelo contrário, em que as práticas de que a história se ocupa são práticas de homens, de alguma forma decorrentes de actos de cognição, de afectividade, de avaliação e de volição. Em qualquer destes níveis da actividade mental pressuposta pela acção se encontram momentos irredutíveis de escolha, em que os agentes constróem versões do mundo exterior, as avaliam, optam entre formas alternativas de reacção, representam os resultados e antecipam as consequências futuras. Todas estas operações pertencem à esfera do mundo interior. São operações irredutivelmente intelectuais, baseadas em representações construídas pelo agente, eventualmente a partir de estímulos (de muito variada natureza) recebidos do exterior. No entanto, estes são reprocessados por mecanismos puramente intelectuais, constituídos por utensílios mentais como grelhas de apreensão e de classificação, sistemas de valores, processos de inferência, baterias de exemplos, modelos típicos de acção, etc. Enfim, tudo representações. Quando, por exemplo, Karl Polanyi insiste no carácter "antropologicamen-te embebido" do mercado não está a salientar outra coisa senão que as "leis do mercado" não constituem lógicas de comportamento forçoso, decorrentes ou de uma lógica das coisas ou de uma razão económica, mas modelos de acção que se fundam sobre sistemas de crenças e de valores situados numa cultura determinada (de uma época, de um grupo social) 91. Do mesmo modo, quando M. Bakhtin defende que o mundo não pode ser apreendido senão como um texto 92 e que, portanto, a Polanyi, 1944 (apreciação recente, Fazio, 1992, maxime, 91 107-116). 92 Cf., sobre esta ideia de pan-textualidade, Bakhtin, Zyma, 1980 (cap. "Gesellschaft als Text"). Cultura Jurídica Europeia 87 relação entre "realidade" e representação tem que ser necessa­ riamente entendida como uma forma de comunicação intertextual, está apenas a insistir nesta ideia de que todo o contex­ to da acção humana, ao qual esta acção necessariamente res­ ponde, é algo que já passou por uma fase de atribuição de sen­ tido.93 A realidade, ao ser apreendida como contexto de acção humana, foi consumida pela representação. Há, porém, uma ideia que convém ainda salientar, agora para afastar qualquer tipo de idealism o ou de essencialismo psicologista. Estas raízes mentais da prática não são inatas, mas externamente dependentes. As operações intelectuais e emo­ cionais comportam momentos de relação com o mundo exte­ rior (a que alguns chamam momentos cognitivos). Nesta me­ dida, a mente está sujeita a processos de incorporação de da­ dos ambientais, processos a que, sim plificadam ente, cham arí­ amos "d e aprendizagem" - ou, mais radicalmente, no sentido de um construtivismo proposto, por exemplo, por Humberto Maturana ou por Niklas Luhmann - , 94 "d e construção" ou de auto-poiesis. E é justamente a ideia de existência de tais quadros mentais de avaliação (de tais "horizontes de leitura" das situações, de tais "guiões" [scripts, Schank, 1977] de acção) que exclui a ilimitada liberdade de escolha, de opção, de justificação, de discurso, dos agentes em situação, pressuposto por alguns dos defensores mais radicais do método dos case studies ou (hiper) micro-história. Mas esta mesma ideia de que há modelo intelectuais (ou de sensibilidade) que condicionam a acção humana, a montante mesmo dos circunstancialismos externos leva também a uma posição crítica em relação a uma boa parte das tentativas de in­ terpretação sociológica das formas políticas e jurídicas (nomea­ 93 Que a transform ou em "te x to "; ou seja, em realidade significativa, dom ina­ da por um código. 94M aturana, 1979,Hejl, 1978, Luhm ann, 1 9 8 2 ,1 9 8 4 ]. Boa introdução ao sistem ism o construtivo em Schmidt, 1988. P ara o direito, Teubner, 1993. 88 António M anuel Hespanha damente, "Estado m oderno",95 "liberalism o", etc.). Na verdade, descontando já a simplificação brutal a que muitos dos mode­ los obrigam (mas que poderá ser conatural a qualquer tentativa de modelização), a contextualização que aí normalmente se faz das formas políticas e jurídicas consiste em inseri-las em ambi­ entes económicos, geo-demográficos, tecnológicos, militares. Ausente está quase sempre o contexto específico deste univer­ so de entidades mentais que constituem a forma de "ler", repre­ sentar, imaginar, as relações de poder, pois este contexto espe­ cífico é formado por outras representações mentais, vizinhas ou a montante. E, por isso mesmo, tudo se passa, nesses ensaios, como se as condições externas agissem directamente, por um processo não explicado e dificilmente explicável, sobre as dis­ posições interiores dos agentes políticos. 3 . 2 . 5 . I n te r p r e ta ç ã o d e n s a d o s d is c u rs o s , h is tó ria d o s d o g m a s e h is tó ria d a s id e ia s Em que é que se distingue, então, este processo de interpre­ tação, dirigido sobretudo aos textos dos métodos das discipli­ nas tradicionais neste domínio, como a história das ideias (polí­ ticas)96ou a história dos dogmas (jurídicos)? Justamente numa atitude que aquelas não cultivavam e que é central nesta última - o "distanciamento" (Entfremdung) do his­ toriador em relação ao seu objecto de estudo. Na verdade, a crí­ tica mais pertinente que se pode fazer à história jurídica tradici­ onal não é tanto a do seu form alism o, mas sobretudo a do seu dogmatismo. Enquanto que o primeiro pode mesmo constituir uma atitude positiva, no sentido de salvaguardar a autonomia 95Para uma visão panorâmica actualizada, v. Biockmans, 2993, maxime os artigos de Wim Biockmans; G. Galasso; Ch. Tilly; M. Bentley; W . Weber; R. Evans; P. F. Albaladejo; e C.-O. Carbonell. Eu próprio, já ensaiei tentativas do género, tanto no artigo "O Estado absoluto. Problemas de interpretação histórica", em Estu­ dos de homena-gem ao Prof. ].]. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1978; como no manual História das instituições [..], 1982, maxime, 1 0 7 ss. e 187 ss. (Hespanha, 1982b). 96Sobre um a visão do que hoje é corrente fazer-se em "história das ideias", Duso, 1999; Pocock, 1972; Kosellek, 1975; Kelley, 1990. Cultura Jurídica Europeia 89 do nível jurídico-institucional e de evitar cair em determinismos redutores, o segundo impede toda a contextualização histórica, pois as instituições ou os dogmas doutrinais aparecem como modelos necessários (e, logo, a-históricos) decorrèntes da natu­ reza das coisas ou da evidência racional. Em contrapartida, a orientação proposta, ao relativizar os modelos jurídico-institucionais, convida a uma sua perspectivação histórica, a uma sua leitura no contexto da história das formas culturais e, naturalmen­ te, do enraizamento destas em contextos práticos .97 Pode acrescenta-se, ainda, que a história das ideias cultiva uma centralidade do sujeito (do "autor") que está completamen­ te ausente da perspectiva aqui proposta. Ao sujeito substituiuse o discurso, os contextos discursos, a força dos textos como esquemas que modelam a percepção e a avaliação dos autores, os próprios dispositivos materiais de comunicação (a forma impressa, o modelo de paginação, etc.). Nada pode estar mais longe da concepção tradicional de que o autor era decisivo na compreensão da história dos saberes.98 3.3. Uma nota sobre “relativismo metodológico” e “relativismo moral” e sobre o papel dos juristas, neste contexto "To think sociologically can render us more sensitive and tolerant o f diversity... thus to think sociologically means to understand a little more fully the people around us in terms o f their hopes and desires and their worries and concerns." (Zigmunt Bauman & May, Thinking Sociologically, Blackwell, 2001,11). 97 Para um m odelo de contextualização, que ainda me parece razoavelmente válido, do discurso jurídico, v. Hespanha, 1978a. Há um a certa proxim ida­ de entre o modelo aqui proposto e o modelo da Begriffsgeschichte, de O Brun­ ner, W. Conze e, sobretudo, R. Koselleck (sobre o qual, por último, Com i, 1998, M azza, 1998 e Duso, 1999. 98Com o já se disse, confluem aqui tópicos que vêm de Foucault, de Bakhtin, de Luhm ann, de M cKenzie ou de Chartier. 90 António Manuel Hespari Este livro foi concebido como um manual, destinado à formação de estudantes de direito. Por isso, não é descabido que -ao terminar uma introdução metodológica bastante corrosiva para as certezas que nos confortam a todos, mas, antes de todos, costumam confortar os juristas -, se abordem as consequências ético-profissionais destas posturas metodológicas. Postas as coisas em termos correntes, o que nesta introdução se insinua sobre o direito (e mesmo sobre a história) identifica-se com um bastante acentuado relativismo: não há valores permanentes, sendo a justiça ou injustiça das situações produto de avaliações (leituras) "locais" ou "contextuais". Não há um progresso histórico, fluindo a história em geral (e a história jurídica, em particular) segundo um percurso marcado pelo arbitrário das rupturas. Nem, em rigor, há um conhecimento "verdadeiro" do passado, pois a história é uma permanente construção e reconstrução dos seus objectos pelo olhar do historiador. No meio de toda esta incerteza sobre o justo e o verdadeiro, parece não sobrar espaço para qualquer projecto de "racionalização" ou "rectificação" da sociedade, tão típicos da política do direito e das intenções dos juristas. Será assim, de facto ? A primeira observação que deve ser feita é que do que aqui se trata é de um "relativismo metodológico”. Ou seja, da crença de que é aparentemente impossível fundamentar os valores jurídicos na "natureza", na "razão" ou na "ciência". Mas já não se afirma que não se possam fundamentar na crença (nomeadamente, nas crenças religiosas; mas também nas convicções polí-tico-ideológicas), no senso comum, na tradição. A segunda observação a fazer é a de que este tipo de relativismo metodológico é muito antigo e tem sido muito permanente na tradição cultural europeia, sendo hoje largamente partilhado pela teoria das ciências, e não apenas das ciências sociais. Realmente, as próprias ciências físico-naturais abandonaram a ideia de verdade (como correspondência com uma realidade exterior fixa, adequcitio intelelectus rei, i.e., o conhecimento como cópia intelectual de coisas exteriores) pelas ideias de "coerência interna", de "paradigma" (como modelo [mutável] de saber), de "universo de crenças", de "eficácia ou elegância explicativas". Cultura Jurídica Europeia 91 E, no entanto, nem no passado, nem nos dias de hoje, dei­ xou de haver juízos éticos, empenhamentos científicos e compro­ missos políticos, mesmo da parte daqueles que assumem estes pontos de vista relativistas. É que o relativismo metodológico não impede a adesão pessoal a valores, nem enfraquece a força desta adesão. Como também não prejudica a observância de regras metódicas con­ vencionais (ou geralmente aceites) de investigação. Nem, por fim, constitui um obstáculo à aceitação pragmática de valores consensuais. Tudo reside, afinal, no modo como se entendem esses vários padrões de conduta. Realmente, as certezas que nos fazem mover não têm que ser certezas verificáveis pelo método cien tífico. Algumas das mais fortes e quotidianas - como os afectos, a fé, os gostos, as regras dos jogos - são impossíveis de fundar em certezas objec­ tivas e partilháveis. E, no entanto, impõem-se, subjectivamen­ te, com uma força capaz de se ser capaz de morrer por elas. São as tais razões do coração que a razão desconhece e que fazem com que, - paradoxalmente, como refere Zygmund Baum an (Bauman, 1993) - mesmo numa era de grandes incertezas (como a nossa), nas grandes questões pessoais normalmente não tenha­ mos grandes dúvidas. Assim, o relativismo metodológico não tem nada a ver com o relativismo moral e, longe de constituir um factor de dissolu­ ção e permissividade, esta atitude metodológica contém uma forte carga ética." Em primeiro lugar, pelo que comporta de risco pessoal. Os valores afirmados por cada um, na base da sua experiência subjec­ tiva, constituem uma "opção", um "lance", um "risco", para o qual não temos nenhuma garantia objectiva. A responsabilidade por eles recai totalmente sobre nós e por eles teremos que responder sem quaisquer álibis (como a Ciência, a Verdade, o Direito Natural...). Por isso é que, do ponto de vista ético, o relativismo promove a co" E m contrapartida, as atitudes baseadas em valores necessários são eticam en­ te tão pobres com o aquelas que "to m am o s" por constrangim entos físicos ou fisiológicos (respirar, com er, andar com os pés assentes na terra). 92 António Manuel H espanha ragem e a autoresponsabilização na afirmação dos valores de cada um. E obriga, evidentemente, a cautela e reflexão dobradas sobre as opções ou propostas pessoais.100 No caso concreto dos juristas, sobre as avaliações quanto à justiça ou injustiça das situações ou sobre as propostas quanto à política do direito. Em segundo lugar, o relativismo metodológico constitui um princípio de tolerância. As opções e os valores são apenas evidên­ cias pessoais. Não se podem impor. Nem se podem fazer passar por algo mais do que aquilo que são. Nomeadamente, não se po­ dem apresentar como valores universais ou naturais, desqualifican­ do os dos outros como "errados" ou "anormais". E justamente esta exclusão da certeza objectiva que deixa espaço para a afirmação das certezas subjectivas, de que já se falou. De tal modo que, num mun­ do que cultive este relativismo metodológico, não seja, de facto, preciso que ninguém "morra pelas suas crenças". Na história do direito, como se verá, as épocas dominadas pela ideia de uma ra­ zão única e unidimensional foram épocas de violência (explícita ou surda, estadual ou difusa) sobre a pluralidade das razões de cada um, de violência do direito sobre os direitos (cf. Ciavero, 1991). O que se explica bem: porque se se crê que há possibilidade de pro­ var a existência de valores humanos naturais - isto comuns a to­ dos os seres dotados de natureza e razão humanas -, então todos os dissidentes desses valores ou não são homens ou, sendo-o, são irracionais (dementes, anormais). E, de facto, o discurso sobre a demência dos dissidentes tem uma história trágica e recente, e não apenas na ex-União Soviética. Resta acrescentar - para que nos demarquemos de algum "liberalismo totalitário" que quer à força educar toda a gente a ser liberal (tal como entendem a palavra, cla­ ro está) - que a violentação das consciência não provém apenas do Estado, através da lei; pode provir também da sociedade, através da imposição de cânones opressivos de comportamento (regras "de pensar" e de "actuar politicamente", regras "de decência", regras "de trato", "de vestir", "de falar", etc.). Finalmente, o relativismo, se é o fundamento da tolerância, ' “ P a ra utilizar u m expressão de B oaventura Sousa Santos, prom ove u m a " ra­ zão màoYetvte" (Santos, 2000). Cultura Jurídica Europeia 93 é também o fundamento do diálogo, pois a aquisição de posi­ ções comuns, que permitam a convivência das diferenças indi­ viduais, só pode ser obtida pelo confronto de opiniões, pela tran­ sacção de compromissos, pelo ganho de consensos, abertos, pragmáticos e provisórios. Mas, sendo assim, que lugar fica para o direito, para a im­ posição de valores de convivência social? Embora esta seja uma questão que não pertence ao campo da história do direito, o tema será debatido nas últimas páginas do livro, a propósito da cul­ tura jurídica contemporânea. Apenas se adianta um princípio de reposta. A convivência exige a existência de um mínimo de regras comuns. Estas devem ser, por um lado, consensuais. E, quanto a isto, os problemas que se colocam não são poucos. Consensuais, não quer dizer, por um lado, únicos, simplificadores da variedade social, opressores da liberdade dos indivíduos ou dos grupos que compõem a sociedade. Consensuais, quer dizer, desde logo, que foram objecto de uma negociação política, em que todos ti­ veram a oportunidade de participar de forma equilibrada, ou seja, com a igual possibilidade de exprimirem os seus pontos de vista e com a igual oportunidade de serem atentamente ouvi­ dos. Estas condições não se realizem automaticamente, ou seja, não se verificam sem uma intervenção da "república" no senti­ do de "melhorar as oportunidades de vida e de maximizar a li­ berdade humana" (Bauman, 2001,140, citando Jeffrey Weeks). Consensuais, não quer dizer, por outro lado, "plebiscitários", obtidos por qualquer meio empobrecido 101 de sondagem da opi­ 101Com empobrecido quer-se dizer qualquer meio que não corrija o desenraizamento, a atom ização, a desorientação, a superficialidade, dos indivíduos na actual sociedade massificada, im ersa no excesso e consequente relativização e indiferença da inform ação. Neste sentido, pobres são os referen­ dos ou eleições partidocráticos, as sondagens de opinião, a m edida das audiências televisivas. Ricos serão, em contrapartida, todas as formas de discussão política substancial, informada, que coloque as pessoas face a face e as provoque a um a discussão política profunda sobre temas que abar­ quem, mas dos quais se possa partir conscientemente para generalizações. 94 António Manuel Hespar nião pública, que ratifique, no plano político, o estilhaçamento individualista da sociedade. Porque isto não conduz a um reforço da autonomia individual, mas antes à desorganização dos indivíduos perante forças que, essas sim, permanecem organizadas, à expressão individualizada das angústias e da insegurança, não atendendo às suas raízes sistémicas m. Consensuais, quer dizer obtidos a partir da multiplicidade dos pontos de vista pessoais, entendidas como pontos de vista sobre o bem comum, mas seguidas de uma discussão política "substantiva", que confronte essas perspectivas e as avalie dialogicamente. Por outro lado, devem ser minimamente substanciais (quase integralmente processuais), para deixarem conviver valores diversos. Por outro lado, devem ser tidos como provisórios, susceptíveis de revisão e, eventualmente, não monótonos na sua aplicação, ou seja, variáveis de acordo com um cuidada interpretação de cada situação 103. 102Cf., ainda aqui, Bauman, 2001,125 ss. (numa suma de todo o livro [que, por sua vez, já condensa o que ele escrevera em The individualized society, 2001), sobre a individualização como ("cada um por si") como a condição para exercício de novas formas de poder e de dominação e sobre as políticas públicas dirigidas para a satisfação das ansiedades individuais como "to seek biographical solutions to sistemic contradictions" (cita Ulrich Beck). 103 A proposta permanece, evidentemente, um pouco vaga. No intuito de a esclarecer um pouco, volto a recorrer a Z. Bauman, na sua descrição do processo de encontrar valores comuns: "[It] implies the solidarity of explorers: while we all, singly or collectively, are embarked on the search for the best form of humanity, since we would all wish eventually to avail ourselves of it, each of us explores a different avenue and brings from the expedition some-what different findings. None of the findings can a priori be declared worthless, and no earnest effort to find the best shape for common humanity can be discarded in advance as misguided and undeserving of sympathetic attention. On the contrary: the variety of findings increases the chance that fewer of the many human possibilities will be overlooked and remain untried. Each find-ing may benefit all explorers, whichever road they have themselves chosen. It does not mean that all findings are of equal value; but their true value may only be established through a long dialogue, in which all voices are allowed to be heard and bona fide, well-intentioned comparisons can be conducted. In wer words, recognition of cultural Cultura Jurídica Europeia 95 Perante princípios deste género, os juristas têm dois impor­ tantes papéis a desempenhar. Por um lado, os juristas, como especialistas, têm garantir a vigência destes princípios - a que chamaremos constitucionais - contra a sua deterioração quotidiana. Sem prejuízo de que se trata de princípios mutáveis e aber­ tos, eles constituem um núcleo muito firme de regras de convi­ vência, cujo estabelecimento (positivação, constitucionalização) foi rodeado de uma série de cautelas, destinadas justamente a garantir que eles exprimem o sentido comum da "república". A sua alteração é possível, mas deve obedecer a processos igual­ mente cuidadosos. Não pode, em contrapartida, decorrer de ju- variety is the beginning, not the end, of the m atter; It is but a starting point for a long and perhaps tortuous, but in the end beneficial, political process" (Baum an, 2 0 0 1 ,1 3 5 /1 3 6 ). Não creio que isto ande muito longe, na intuição e nos resultados, do processo proposto por G. Zagrebelsky, em II diritto mite, 2000): "L'insiem e dei principi costituzionali [...] dovrebbe costituire u n so rta di "senso com une" dei diritto. II terreno d'intesa e di reciproca com prensione in ogni discorso giuridico, la condizione per Ia risoluzione dei contrasti attrav erso la discussione invece che attra v e rso la sopraffazione. Essi dovreb-bero svolgere il ruolo degli assiom i nei sistemi dom inati dalla ló­ gica form ale. Ma, m entre questi ultimi restano quelli che sono, fino a tanto che si resta nel medesimo sistema, nelle scienze pratiche i loro assiomi, com e il senso com une nella vita sociale, sono soggetti al lavorio dei tem -po [...] La pluralità dei principi e dei valori cui rinviano è 1'altra ragione di im pos­ sibilita di un formalismo dei principi. Essi non si strutturano, di regola, secondo una "gerarch ia dei valori" [...] La pluralità dei principi e 1'assenza di una gerarchia formalmente determ inata com porta che non vi possa essere una scienza delia loro composizione ma una prudenza nel loro bilanciamento. La "p ratica concordanza" cui si è falto cenno, o la "pesa dei beni giuridici indirizzata al princípio di proporzionalità" (Güterabwügung ausgerichtete am Verhãltnismassigkeitgrundsatz) di cui parla Ia dottrina tedesca rientrano in questa prospettiva. Ma, per quanti sforzi le giurisprudenze costituzi­ onali abbiano fato per form alizzare i procedim enti logici di questo bilanciam ento i risultati - dal punto di vista di una scientia juris - sono deludenti. Forse, 1'unica regola formale di cui si può p arlare è quella delia "ottim izzazione" possibile di tutti i principi; m a com e ottenere questo risultata è ques­ tione em inentem ente pratica e "m ateriale" (Zagrebelski, 1 9 9 2 ,1 7 0 -1 7 1 '. 96 António M anuel Hespanha ízos de oportunidade conjuntural de uma maioria no poder; nem de inorgânicos, pouco testados e emocionais movimentos de opinião pública. Aos juristas cabe, esta vigilância para que o es­ trutural e permanente não flutuem ao sabor do conjuntural e momentâneo. Isto envolve, por sua vez, duas tarefas. A primei­ ra é da identificar, de entre os valores emergentes, quais corres­ pondem ou (i) a meras reivindicações de uma parte da socieda­ de (de um grupo contra o todos; dos restantes grupos (" do todo) contra um grupo 104; ou (ii) a valores efémeros (por exemplo, o desejo exacerbado de segurança que acompanha um estado de insegurança social); ou (iii) a valores oportunistas dos que go­ vernam (v.g., a necessidade de fazer reformas deve justificar a omissão das formas constitucionais; os garantes da legalidade são "forças de bloqueio", para utilizar uma expressão recente­ mente em voga). Esta tarefa de fixar normas de convivência e de bom gover­ no é ainda mais importante no mundo de hoje, em que a globa­ lização (em termos espaciais) e a super-abundância e frenética sucessão dos sentidos (em termos tem porais)105criou, partir da diferença dos valores, uma indiferença sobre os valores. Ao mes­ mo tempo que, no plano da normação social, a ilusão da livre escolha fez com que a sedução e a tentação se tendam a substi­ tuir à normação (Pierre Bourdieu). Como observa Z. Bauman glosando a "retirada de Deus" da explicação da ordem do mun­ do, operada pelos nominalistas e pelos humanistas (cf., infra, 4.3. "A dissolução do corporativismo e o advento do paradigma in­ lw A diferença é que os "restan tes grupos" não form ulam a sua reivindicação num sentido generalizável, que possa incluir m esm o o grupo visado. Por exem plo, podem ser opostos aos hom icidas os valores de todos os que o não são, porque estes valores aproveitaram aos próprios hom icidas. Podem ser opostos aos que fogem ao fisco os valores dos que p ag am impostos, porque o p agar im postos reverte a favoT de todos. ]á os valores racistas da maioria não p odem ser opostos a um a m inoria, porque esta n ão aproveita­ ria deles. 1(6O zapping dos valores tem u m a certa similitude com o zapping dos canais de televisão ... Cultura Jurídica Europeia 97 dividualista.") é como se a sociedade deixasse de contar na re­ gulação social (etiamoi sociatem non esse), tudo ficando entrega a uma anárquica, fugaz, superabundante e irreflectida profusão de valores (Bauman, 2001,130 ss.). Cabe, então, aos juristas re-enraizar as pessoas em valores comuns e reconstruir, assim, a ordem social (e o sentido de co­ munidade e de segurança). A especial legitimidade dos juristas para levar a cabo este diagnóstico decorre, da sua especialização técnica; mas, sobre­ tudo (ou exclusivamente) se esta incidir sobre o "direito em so­ ciedade", pois só a consideração da técnica jurídica e do conhe­ cimento da sociedade podem abalizar a uma avaliação correcta dos valores a eleger como valores constitucionais. A referência ao "direito em sociedade" envolve também a consciência do próprio reconhecimento da inserção social dos próprios juristas e da natureza politicamente determinada (em vários planos) do seu discurso. Por outro lado, cabo aos juristas procurar estabelecer roti­ nas para aplicação destes princípios. Ou seja, ir testando sequ­ ências de processos e de raciocínios (regulae artis) que garantam maior probabilidade na boa aplicação desses princípios jurídi­ cos. Distinguindo situações, interpretando casos, testando a apli­ cação de regras, formulando conceito que sintetizem resultados adquiridos. Sempre tendo presente a ideia de que todos estes processos e conceitos são provisórios, não tendo, tão pouco, um sucesso garantido no enésimo caso (o cão futuro, não experimen­ tado). 4- 0 IMAGINÁRIO DA SO C IED A D E E DO PO D ER 4.1. Imaginários políticos Uma concepção ingénua do direito tende a vê-lo apena como um sistema de normas destinadas a regular as relaçõe sociais, assegurando aqueles padrões mínimos de comporta mento para que a convivência social seja possível. Neste senfc do, o direito limitar-se-ia a receber valores sociais, criados pc outras esferas da actividade cultural e a conferir-lhes uma forç vinculativa garantida pela coerção. Na verdade, a eficácia criadora {poiética) do direito é muit maior. Ele não cria apenas a paz e a segurança. Cria, tam bén em boa medida os próprios valores sobre os quais essa paz segurança se estabelecem. Neste sentido, o direito constitui um actividade cultural e socialmente tão criativa como a arte, a ide ologia ou a organização da produção económica. De facto, antes de a organizar, o direito im agina a socie dade. Cria modelos m entais do homem e das coisas, dos vín culos sociais, das relações políticas e jurídicas. E, depois, pau latinamente, dá corpo institucional a este im aginário, crian do também, para isso, os instrum entos conceituais adequa dos. Entidades como "p essoas" e "co isas", "h om em " e "m u lher", "contrato", "E sta d o ", "soberan ia", etc., não existirar antes de os juristas os terem im aginado, definido conceitua] mente e traçado as suas consequências dogmáticas. Neste sen tido, o direito cria a própria realidade com que opera. O "fac to" não existe antes e independentem ente do "d ire ito ". O "casos ju ríd icos" têm realm ente muito pouco a ver com o "casos da v id a", com o aliás se torna evidente logo que s transpõem as portas de um tribunal ou do escritório de un advogado. O grande poeta inglês P. B. Shelley (1792-1822) não debcoi de intuir este aspecto essencialmente criativo do direito, ao de 100 António M anuel H espanha finir as grandes construções políticas e jurídicas romanas como obras primas da tradição poética do Ocidente. E, nos nossos dias, este aspecto criador do direito e do saber jurídico tem sido des­ tacado, quer por antropólogos como Clifford Geertz,106quer por sociólogos como Niklas Luhmann.107 É por isto que, ao longo deste curso, a descrição das gran­ des etapas da evolução do saber jurídico no Ocidente é antece­ dida por um panorama do imaginário mais profundo que dá sentido à criação jurídica. Imaginário que, durante quase toda a história do pensamento social e político europeu, foi, em gran­ de parte, da responsabilidade dos próprios juristas, como "p o­ etas" e pensadores da sociedade e do poder, podendo ser colhi­ do por uma "interpretação densa" (thick interpretation, C. Geertz) das suas obras.108 106 " a tom ada de consciência de que os factos jurídicos são fabricados e não n ascem assim , são socialm ente co n stru íd o s, com o diria u m an tro p ó lo ­ go, p or tod o um conjunto que inclui reg ras de p ro v a, a etiqueta do tri­ bunal e as tradições de acertam en to do d ireito, até às técnicas de a leg a­ ção, a retó rica dos juizes e a escolástica da form ação nas F acu ld ad es de D ireito [...] [O direito com o] um a form a de im ag in ar o real [...] u m m u n ­ do em que as descrições jurídicas têm um sen tid o " (G eertz, 1986b , 2 1 4 / 215). 107 Sobre este im portantíssim o sociólogo do direito dos nossos dias e a sua con­ cepção do direito com o um sistem a "au to-poiético", v. A m au d , 1993. '“ Tam bém no sentido da im portância da história dos im aginários políticos, v., por último, Albuquerque, 2002. A divergência que o A. nota com posi­ ções minhas (cf. p. 19 ss.) - quando eu valorizo a dim ensão institucional, a ponto de dizer que, perante ela, certas questões teóricas podem perd er a sua relevância - não é tão significativa com o isso,. Apenas quis então dizer que, se nas práticas institucionais (do Estado m oderno) certos princípios doutrinais (com o, por exem plo, o de um a nítida suprem acia do p oder real) não obtém tradução, estas princípios são inúteis p ara o traçado do m odelo institucional (do Estado m oderno). Em bora a sua perm anência a nível dou­ trinal se possa sem pre vir a enraizar em instituições (com o, de facto, veio a acontecer neste caso). Cultura Jurídica Europeia 101 4 .2 . A concepção corporativa da sociedade O pensamento social e político m edieval109110é dominado pela ideia da existência de uma ordem universal {cosmos), abran­ gendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objectivo último que o pensamento cristão identifica­ va com o próprio Criador.111 Assim, tanto o mundo físico como o mundo humano, não eram explicáveis sem a referência a esse fim que os transcendia, a esse telos, a essa causa final (para utili­ zar uma impressiva formulação da filosofia aristotélica; o que transformava o mundo na mera face visível de uma realidade mais global, natural e sobrenatural, cujo (re)conhecimento era indispensável como fundamento de qualquer proposta política. 4 . 2 . 1 . O rd e m e c r ia ç ã o Numa sociedade profundamente cristã, o próprio relato da Criação (Génesis, I) não pode ter deixado de desempenhar um papel estruturante. Aí, Deus aparece, fundamentalmente, dan­ 109A descrição dos grandes paradigm as do pensamento político medieval, com continuidade na Época M oderna, está magistralmente feita por Villey, 1961; 1968 (com o que se pode, em grande parte, dispensar a leitura de clássicos como Otto v. Gierke ou Émile Lousse). Há, no entanto, outras obras: umas clássicas (K antorow icz, 1957; Brunner, 1939; Post, 1964), outras de exposi­ ção sistemática (Gilmore, 1941; Bum s, 1997), outras, recentes, m as com re­ visões importantes das questões (Wyduckel, 1984; Bertelli, 1990; Prodi, 1993; Krynen, 1993; Grossi, 1995; Fioravanti, 1999). Constitui um a síntese elegante, Dolcini, 1983. W ieacker, 1980 (ou, mais recente e especificam ente, de Stolleis, 1988), tratam dos pensadores políticos centro-europeus da Época Mo­ derna. . 110Para Portugal, as obras de base para a história do pensam ento político-so­ cial m oderno são as seguintes. P ara os séculos XVI e XVII, Albuquerque, 1968 ,1 9 7 4 ; Torgal, 1981. Dispensam, em geral, a consulta de autores ante­ riores. Para o século XVIII, M oncada, 1949; Langhans, 1957; Dias, 1982; Pe­ reira, 1 9 8 2 ,1983. V., ainda, Hespanha, 1992, 71. 111Sobre várias m anifestações dá ideia de ordem no pensam ento político oci­ dental pré-contem porâneo, v. Donnelly, 1998. 102 António Manuel Hespí do ordem às coisas: separando as trevas da luz, distinguindo o da noite e as águas das terras, criando as plantas e os anirr "segundo as suas espécies" e dando-lhes nomes distintos, or nando as coisas umas para as outras (a erva para os animais, tes e os frutos para os homens, o homem e a mulher, um pai outro e ambos para Deus). Esta narrativa da Criação - ela mesmo resultante de u antiquíssima imagem do carácter esponttaneamente organi do da natureza - inspirou seguramente o pensamento so< medieval e moderno, sendo expressamente evocada por te* de então para fundamentar as hierarquias sociais. Nas Orde ções afonsinas portuguesas (1446), esta memória da Criaçã Ordenação aparece a justificar que o rei, ao dispensar graça com isso, ao atribuir hierarquias políticas e sociais entre os s ditos, não tenha que ser igual para todos: "Quando Nosso nhor Deus fez as criaturas assi razoáveis, como aquelas que recen da razão, não quiz que dois fossen iguais, mas estab< ceu e ordenou cada uma em sua virtude e poderio departic segundo o grau em que as pôs. Bem assim os Reis, que em gar de Deus na terra são postos para reger e governar o pc nas obras que hão-de fazer - assim de justiça, como de graç mercê - devem seguir o exemplo daquilo que ele fez [...]" (C A f, 1,40, pr.). Também a filosofia grega e romana confirmavam este rácter naturalmente organizado do universo natural e huma Para Aristóteles (384 a.C - 322 a.C.), o mundo estava fi listicamente organizado. As coisas continham na sua próp natureza uma inscrição (um gene, por assim dizer) que "m cava" o seu lugar na ordem do mundo e que condicionava, i somente o seu estado actual mas também o seu futuro des volvimento em vista das finalidades do todo. Era este gene c criava nas coisas "apetites" (affectus, amor, philia) internos c as encaminhavam espontaneamente para a ocupação dos s< lugares naturais e para o desempenho das suas funções no to No caso dos homens, este gene determinava o seu instinto g gário (affectus societatis), a sua natureza essencialmente polítd Cultura ] uri dica Europeia 103 o desempenho dos seus papéis políticos no seio de uma socie­ dade organizada em vista do bem comum. Neste sentido, era legitimo falar de um equilíbrio natural ou de um justo por natu­ reza (dikaión physikon) (cf. Villey, 1968). Os estóicos insistiam na existência de um poder criador e ordenador (pneuma, logos), que daria movimeento ao mundo e que o transformaria num mun­ do ordenado (cosmos ).112 O pensamento medieval herda tudo isto, fundindo ambas as concepções num sincretismo por vezes difícil de deslindar. Fundamentalmente, na famosa polémica entre "realistas" e "nominalistaas", que domina o pensamento escolástico, o que os "realistas" querem sublinhar é que da essência das coisas faz parte a sua natureza relacional, no conjunto do todo da Criação. Que - em particular -, no mundo humano, não há "indivíduos", isolados e socialmente incaracterísticos. Mas que há "pais", "fi­ lhos", "professores", "alunos", "hom ens", "m ulheres", "france­ ses", "alem ães", essencialmente relacionados uns com os outros por meio de pedículos essenciais, predicados, atributos, que os referiam, por essência, uns aos outros, que os marcavam, por natureza, como membros determinados da cidacfe, como sujei­ tos políticos. O direito, como em geral a organização da cidade (grego, polis), tinham como fundamento a ordem divina da Criação. Por isso, os juristas identificavam a justiça com a natureza e esta com Deus. Num célebre texto do Digesto (D.,1,1,1,3) em que se defi­ ne o direito mais fundamental e inderrogável - o chamado "d i­ reito natural" - explica-se que "o direito natural é o que a natu­ reza ensinou a todos os animais" (ius naturale est quod naturn omnia animalia docuit). E um comentador medieval do texto es­ clarece, numa curta glosa à palavra "natureza", que esta não é senão Deus (natura, id est Deus). Daí o êxito de um outro texto do Digesto que definia a prudência (= saber prático) do direito (que, então, desempenhava o papel de teoria política) como uma "ciência do justo e do injusto, baseada no conhecimento das coi- 112Villey, 19 6 8 ,4 2 8 -8 0 . António Manuel Hespanha 104 sas divinas e humanas" (divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia, D, 1,1,10,2). E foi por isso também que os juristas foram tidos como quase sacerdotes, também na esteira de um texto do início do Digesto.113 4 . 2 . 2 . O rd e m o c u lta , o rd e m a p a re n te Para além das concepções reflectidas dos filósofos e dos juristas, a ideia de uma ordem objectiva e indisponível das coi­ sas dominava o sentido da vida, as representações do mundo e da sociedade e as acções dos homens. Antes de ser uma norma de direito formal, a ordem era uma norma espontânea de vida. Honestidade, honra, verdade e bondade, palavras centrais na linguagem política e jurídica da época, remetiam para esta ideia corrente de que o comportamento justo era o que guardava a proporção, o equilíbrio, o modo (moderação) ou a verdade do mundo, das personas, das coisas. Viver honestamente - que pas­ sava por ser um dos preceitos básicos do direito (cf. D., 1,1,10, pr.) - era aderir à natureza das coisas, da ordem natural do mun­ do. Ser honrado era respeitar a verdade das coisas e esta era a sua natureza profunda, à qual devia corresponder a sua aparên­ cia. Porque o comportamento manifestava a natureza, a hones­ tidade e a verdade eram as qualidades daquele que se portava como devia, como lhe era pedido pela sua natureza. Assim, o nobre não se devia comportar como plebeu, se queria manter a honra. Que a mulher honesta (que respeita a sua natureza) se devia comportar como tal, sob pena de não ser tida como hon­ rada. E por aí adiante. Ao passo que a bondade - a qualidade de quem era capaz de intuir o sentido da ordem - era a qualida­ de principal daquele que tivesse o encargo de julgar 113 " O direito é a arte do bom e do equitativo. Pe\o que h á quem nos [aos juris­ tas^ cham e sacerdotes sobre este carácter quase sacerdotal da profis­ são \und\ca, d . Kyt\\o, 1 9 7 6 a , M l s., com citações muito im pressivas (u.g., " m agistratus a O eo positi sunt, düque vocantvir” Vos m agistrados são pos­ tos por D eus e cViamam-se àeu se s\ ,N .T o p iu s,1 6 5 5 y Cultura Jurídica Europeia 105 Deste imperativo de honestidade e de verdade resulta a importância atribuída aos dispositivos que visam tomar aparen­ te a ordem essencial das coisas e das pessoas: títulos e tratamen­ tos, trajes "estatutários" (i.e., ligados a um estatuto - clérigo, ca­ valeiro de ordem militar, juiz, notário, mulher honesta, prosti­ tuta), hierarquia de lugares, precedências, etiqueta cortesã. As cortes e sociedades ibéricas eram justamente célebres pelo seu pontilhismo formalista e classificatório. A linguagem corrente das sociedades de Antigo Regime é, por isso, muito rica nas for­ mas de tratameno (de classificação, de hierarquização).114 Condenáveis (mesmo penalmente) era, assim, todas as for­ mas de falsidade: falsificar documentos, moeda, metais ou piedras preciosas, mas também usar nomes o títulos alheios, travestir-se de outro sexo ou de outra qualidade, simular a gravi­ dez. Condenável era também esse tipo de cultura da afectação e do simulacro conhecida como a dissimulação, que os círculos intelectuais das cortes italianas (Baldasare Castiglione [14781529], II cortegiano [1528]) propunham agora como modelo de comportamento áulico (cf. Villari, 1987). Contra ela reagiam, em Espanha, Portugal e Itália, as vozes casticistas, opondo a esta cultura cortesã da mentira a simples e verdadeira cultura aldeã ("corte de aldeia", v.g., António de Guevara, Menosprecio de cor­ te e alabanza de aldea, 1539; Francisco Rodrigues Lobo, Corte de aldeia ou noites de inverno, 1618). No Portugal nostálgico do iní­ cio do séc. XVII, lamentavam-se ainda as novidades sospeitas das modas de corte importadas de Madrid, como os cabelos com­ pridos dos homens ou a profusão de rendas nos seus trajos, ambas contrárias ao que se designava como "o estilo severo por­ tuguês antiguo", a capa e o chapeirão negros. 4.2.3. Ordem e vontade Uma outra forma de invenção, que nos remete já para uma 114O português, em particular, caracteriza-se por ter conhecido até há muito pouco uma enorme variedade de formas de se dirigir aos outros (vossa ex­ celência, vosselência, o senhor, o senhor doutor, o sr. dr., etc.). 106 António Manuel Hespa problemática diferente,, era ainda condenável reinventar uma ordem para o governo do mundo, a golpes de imaginação política ou de textos legais. Salientava-se então, de facto, a ideia do carácter natural da constituição social, i.e., de que a organização social depende da natureza das coisas e de que está, por isso, para além do poder de disposição da vontade. As leis fundamentais ("constituição") de uma sociedade (de um reino) dependeriam tão pouco da vontade como a fisiologia do corpo humano ou a ordem da natureza. E certo que soberano e vassalos podem temporariamente afas-tar-se das leis naturais de ordenação social, pela tirania ou pela revolução; mas o mau governo, "contra o qual as próprias pedras clamarão", é sempre um episódio político passageiro. O que os povos já poderão é eleger - embora de acordo, também, com características objectivas das várias nações, por sua vez ligadas às particularidades da terra e do clima - as formas de governo: a monarquia, a aristocracia, a democracia ou qualquer forma de governo misto, proveniente do cruzamento destes regimes-tipo referidos por Aristóteles. Como podem explicitar e adaptar às condições de cada comunidade, através do direito civil (ius civile, isto é, do direito da cidade) os princípios jurídicos decorrentes da natureza das sociedades humanas (direito natural, ius naturalé). Mas a constituição natural conserva-se sempre como um critério superior para aferir a legitimidade do direito estabelecido pelo poder, sendo tão vigente e positiva como este.115 Nestes termos, o direito - todo ele, mas sobretudo o natural desempenha uma função constitucional. Impõe-se a todo o poder. Não pode ou, pelo menos, não deve ser alterado. E isto porque se funda nos princípios necessários de toda a convivência humana (affectio societatis). E não porque se fundamente num pacto primitivo ou num pacto histórico estabelecido, por exemplo, em cortes, como supõem os historiadores que sobrevalori-zam o "pactismo" medieval ou moderno. Em virtude desta função constitucional do direito, toda a actividade política aparece 115 Cf. Hespanha, 2000a. Cultura Jurídica Europeia 107 subsumida ao modelo "jurisdicionalista". Ou seja, toda a acti­ vidade dos poderes superiores - ou mesmo do poder supremo é tida como orientada para a resolução de um conflito entre es­ feras de interesses, conflito que o poder resolve "fazendo justi­ ça". Caso contrário, o governo será tirania(tirania quanto ao exer­ cício, tyranía in exercitio), podendo (e devendo) ser objecto de resistência. A intervenção da imaginação e da vontade nas coisas do governo, ainda que não estivesse excluída de princípio, deveria ser mínima. Neste contexto, o príncipe só excepcionalmente como que à maniera dos (raros) milagres de Deus - se devia des­ viar da razão dos conselheiros, peritos e letrados, pelos quais e não pela sua vontade impetuosa e arbitrária - devia corrrero gow erno ordinário. "O Supremo Senhor - escreve o jurista luso-galaico João Salgado de Araújo, citando Frei Juan de Santa Maria -, por quem reinam os Príncipes da terra, fez causas principais do governo deste mundo visível os anjos, céus, estrelas e elementos, obran­ do por estas causas segundas os efeitos naturais, a não ser que queira mostrar a sua omnipotência. E por imitar a Deus os Prín­ cipes, encarregaram o governo de seus Impérios, e Reinos a sá­ bios e prudentes varões, deixando correr o despacho pelo o curso ordinário da consulta e sábias determinações que tomam os seus conselheiros, ainda quando o Príncipe fazia alguns milagres, obrando sem dependências, como dono do governo, para que soubesse o povo, que o seu Rei tinha caudal para tudo, e que era poderoso para fazer por si só o que no seu nome fazia o mais destro conselheiro" (Juan Salgado de Araújo, Ley regia de Portu­ gal, Madrid, 1627, n. 120 , p. 44). Deste texto (directamente inspirado na teoria escolástica das causas segundas) resulta claro que o governo ordinário - i.e., diri­ gido à manutenção do ordem das coisas e organizado segundo os procedimentos estabelecidos e ordinários - deve constituir a norma. E que, ao revés, a inovação, a criação de feitos políticos inusitados, a eleição de vias singulares de governo, são como que milagres que o rei deve utilizar apenas como ultima ratio. Eram 108 António Manuel Hespanha considerações deste tipo que condenavan os projectos e estilos políticos dos arbitristas. Estas figuras típicas do pessoal político ibérico do século XVII imaginavam planos e expedientes (artifíci­ os) para reformar a politica. A própria designação deste género de literatura politica ("alvitre", do latin arbitrium) já denota o seu carácter artificial e artificioso - i.e., não natural, já que arbitrium se opõe a ratio, razão, equilíbrio, sentido do ordem. 4 . 2 .4 . O rd e m e d e sig u a ld a d e A unidade dos objectivos da criação não exigia que as fun­ ções de cada uma das partes do todo, na consecução dos objec­ tivos globais da criação, fossem idênticas às das outras. Pelo con­ trário, o pensamento medieval sempre se manteve firmemente agarrado à ideia de que cada parte do todo cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico. Por outras palavras, a unidade da criação não comprometia, antes pressupunha, a especificidade e irredutibilidade dos objectivos de cada uma das "ordens da criação" e, dentro da espécie humana, de cada gru­ po ou corpo social. Nesta ordem hierarquizado, a diferença não significa - pelo menos numa perspectiva muito global da criação, que tem em conta a sua origem primeira e o seu destino último - imperfei­ ção ou menos perfeição de uma parte em relação às outras. Sig­ nifica antes uma diferente inserção funcional, uma cooperacão, a seu modo específica, no destino final (escatológico) do mun­ do. Assim, em rigor, subordinação não representa menor dig­ nidade, mas antes apenas um específico lugar na ordem do mundo, que importa a submissão funcional a outras coisas. Os próprios anjos, seres perfeitos, não escapavam à ordem, estan­ do organizados em nove graus distintos. No plano da teologia política, esta ideia da idêntica digni­ dade de todos os homens levava a uma explicação optimista dos laços de submissão. Estes não decorreriam do pecado original (como queria a teologia política alto-medieval) mas antes da própria natureza ordenada do mundo. Cultura Jurídica Europeia 109 Esta compatibilização entre a perfeição do homem e a exis­ tência de desigualdades e de hierarquias políticas não deixava de criar uma aparente paradoxo. De facto, como se explicaria que Deus, o Ser Perfeito, criando o homem à Sua imagem e seme­ lhança, tivesse introduzido diferenças entre os homens ? Por outras palavras, como explicar que os homens, que antes da queda eram a imagem da perfeição, tivessem conhecido entre si a desigualdade. Como se explica que houvesse dissemelhanças entre seres que eram a imagem da Identidade ? Francisco Suarez trata este tema no seu curto tratado De Deo uno et trino (1599), como introdução a uma discussão sobre o modo de viver dos homens no estado de inocência, isto é, se não tivesse havido pecado original (cf. 1. V, "D e statu quem habuissent in hoc mundo viatores, se primi parentes não peccassent" [Da condição que teriam os passantes neste mundo se os seus primeiros pais não tivessem pecado]; cf. também S. Tomás, Sumtna theol, Illa, I, qs. 91 a 95).116 Mesmo nesta ordem perfeita, Su­ arez imaginava que haveria desigualdade de estados, assim como governo político. No entanto, a desigualdade de estados não poderia derivar de alguma imperfeição intrínseca, pois os homens seriam todos perfeitos. Derivava antes "da circunstân­ cia dos elementos, da influência dos céus, da diversidade dos ali­ mentos e dos humores" (n. 3). O governo e sujeição políticos (dominium iurisdictionis) - que também implica desigualdade (des­ de logo, entre governantes e governados) -, por sua vez, decor­ reria dos vantagens da associação (entre pessoas diferentes e complementares) e da necessidade natural de governo que a associação supõe (n. 11, p. 238). Embora este governo fosse não coactivo (porque os homens perfeitos não poderiam sofrer pe­ nas), mas só directivo e aceite esponttaneamente por mero de­ 116H á muito de curioso neste ensaio de imaginação antropológica. Como se re­ produziriam, que comeriam, com o se vestiriam, como consumiriam o tem­ po, os homens em estado de natureza perfeita. Por outras palavras, o que seria a perfeição humana. Neste momento, interessa-nos sondar brevemente o ide­ al de perfeição política na pristina utopia imaginada por Suarez. 110 António Manuel Hespar sejo de perfeição ([pg. 238]). A ordem, e a desigualdade que ela comporta, seriam, assim, compatíveis com a plenitude e a perfeição. Não importando um menor valimento de uns seres em relação aos outros, pelo menos numa visão escatológica da criação. O mesmo tipo de raciocínio já ocorria em S. Tomás de Aqui-no, quando ele discute a compatibilidade entre a perfeição e unidade da Igreja e a existência de diferentes estados no seu seio (cf. S. Tomás, Summa tlteol., Ila.Iiae, q. 183, a. 2). Como aí se explica, a diferenciação dos estados corresponde à única forma de traduzir, no plano das coisas naturais, a imensa perfeição de Deus: "nas coisas da natureza, a perfeição, que em Deus se encontra de forma simples e uniforme, na universalidade das criaturas não pode encontrar se a não ser de modo disforme e múltiplo" (ibid.) Esta ideia de que todos os seres se integram, com igual dignidade, na ordem divina, apesar das hierarquias aí existentes, explica a especialíssima relação entre humildade e dignidade que domina o pensamento social e político da Europa medieval e moderna. O humilde deve ser mantido na posição subordinada e de tutela que lhe corresponde, designadamente na ordem e governo políticos. Mas a sua aparente insignificância esconde uma dignidade igual à do poderoso. E, por isso, o duro tratamento discriminatório no plano social (na ordem da natureza, do direito) é acompanhado de uma profunda solicitude no plano espiritual (no plano da graça, da caridade, da misericórdia). Este pensamento - que se exprime na parábola evangélica dos lírios do campo e se ritualiza nas cerimónias dos lava pés - explica, ao lado das drásticas medidas de discriminação social, jurídica e política dos mais humildes (miserabiles pessoae, pobres, mulheres, viúvas, órfãos, rústicos, indígenas africanos ou americanos), a protecção jurídica e a solicitude paternalista dos poderes para com eles, protecção que inclui uma especial tutela do príncipe sobre os seus interesses: foro especial, tratamento jurídico mais favorável (favor), por exemplo em matéria de descul-pabilização perante o direito penal, de prova, de presunção de inocência ou de boa fé. Cultura Jurídica Europeia 111 4 .2 . 5 . O rd e m e “e s ta d o s ” Qualquer que tenha sido a força desta ideia de que todos os seres tinham, no plano global da ordem da criação, uma igual dignidade, uma avaliação mais matizada exige que se diga que - a ideia de ordem sugeriu também outras perspectivas mais hierarquizadoras. Nomeadamente, a perspectiva de que a cria­ ção era como que um corpo, em que a cada orgão competia uma função, e que estas funções estavam hierarquizadas segundo a sua importância para a subsistência do todo. Este tópico já levava a uma visão diferente da criação, legi­ timando uma distinção das coisas e das pessoas em termos de hierarquia e de dignidade. As criaturas não eram apenas diferentes. Eram também mais o menos dignas, em função da dignidade do ofício que naturalmente lhes competia. Isto queria dizer que, existindo na Criação um modelo de perfeição que é o próprio Deus, este modelo não se reflectia igualmente em todas as criaturas. O ho­ mem, por exemplo, fora criado "à im agem e sem elhança de Deus". Já a mulher não teria essa natureza de espelho divino. A sua dignidade seria menor; a sua face podia (e devia) andar co­ berta, enquanto que a face do homem - imagem de Deus - não deveria ser velada. E entre os homens, alguns - os nobres e ilus­ tres - teriam uma especial dignidade, constituindo a parte mais sã da sociedade a que devia pertencer o governo (respublica a saniore [meliore, digniore] est gubernanda). No plano do direito, as diferenças entre pessoas eram tra­ duzidas pelas noções de "estado" e de "privilégio", ou direito particular. "O estado é a condição do homem que é comum a vários" ensina Antonio de Nebrija ( Vocabidarium, 1601). Em princípio, um estado - palavra que remete, na sua origem etimológica, para a ideia de equilíbrio - corresponde, como vimos, a um lugar na ordem, a uma tarefa ou dever (officium) social. Na sociedade tradicional europeia, identificavam-se três ofícios sociais: a milicia, a religião e a lavrança. "Defensores são 112 António M anuel Hespanha huns dos tres estados, que Deus quis, per que se mantivesse o mundo, ca bem assy como os que rogan pelo povo se llaman oradores, e aos que lavran a terra, per que os homes han de vi­ ver, e se manteem, são ditos mantenedores, e os que han de de­ fender são llamados defensores", pode ler-se nas Ordenações ajbnsinas portuguesas (1446), inspiradas nas Partidas (I, 2, 25, pr.). Mas esta classificação das pessoas podia ser mais diversifi­ cada e, sobretudo, menos rígida. De facto, ela era apenas uma fór­ mula, muito antiga na cultura occidental (G. Dumézil, La réligion archaïque romaine, Paris, 1967), de representar a diversidade dos estatutos jurídicos e políticos das pessoas. No domínio da repre­ sentação em cortes, manteve-se basicamente a classificação tripar­ tida até aos finais do Antigo Regime. Já noutros planos da reali­ dade jurídica (direito penal, fiscal, processual, capacidade jurídi­ ca e política), os estados eram muito mais numerosos. Nos dis­ tintos planos do direito, constituiam-se, assim, estatutos pessoais ou estados, correspondentes aos grupos de pessoas com um mes­ mo estatuto jurídico (com os mesmos privilégios). A concepção do universo dos titulares de direitos como um universo de "estados" (status) leva à "personificação" dos esta­ dos. Ou seja a considerar que uma mesma pessoa tem vários estados e que, como tal, nela coincidem várias pessoas. Fenóme­ no tornou-se conhecido, para a realeza, depois do célebre livro de Kantorowicz sobre os vários corpos do rei (Kantorowicz, 1957). Mas esta pluralidade de pessoas num só indivíduo era algo de muito mais geral. Como escreve o jurista português Manuel Álvares Pegas (Pegas, 1669, XI, ad 2,35, cap. 265, n. 21), "nem é novo, nem contrário aos termos da razão, que um e o mesmo homem, sob diferentes aspectos, use de direitos diferen­ tes". O exemplo teológico deste desdobramento da personalida­ de era o do mistério da Santíssima Trindade, em que três pesso­ as distintas coexistiam numa só verdadeira. O mesmo se passa­ va no exemplo, bem conhecido e já evovcado, dos "corpos do r e i". N a mesma pessoa íísica do monarca coexistiam a sua "pes­ soa privada" e a sua "pessoa publica". Ou ainda mais pessoas, como, D.g., se o rei íosse, como toi, a certa altura, em Portugal, Cultura Jurídica Europeia 113 grão-mestre dos ordens militares; ou Duque de Bragança; neste caso, já era posível distinguir nele quatro pessoas, "cada qual retendo e conservando a sua natureza e qualidades, devendo ser consideradas como independentes umas das outras" (cf. Pegas, 1669, ibid). Frente a esta multiplicidade de estados, a materialidade fí­ sica e psicológica dos homens desaparece. A pessoa deixa de corresponder a um substracto físico, passando a constituir o ente que o direito cria para cada aspecto, face, situação ou estado em que um indivíduo se lhe apresenta. A veste torna-se corpo. "Pes­ soa - escreve ainda o tradicionalista Lobão no século pasado (Lobão, 1828,1, tit. 1, 1) - é o homem considerado como em certo estado", ou seja, considerado sob o ponto de vista de certa qualidade "conforme à qual [...] goza de direitos diversos dos que gozam outros homens" (ibid.). A final, tal como decorre do significado original da palavra persona,117 a "pessoa"é o ho­ mem (ou mulher) enquanto desempenha um "papel social". Então, se são as "qualidades" (os papéis sociais), e não os seus suportes corporais-biológicos, que contam como sujeitos de direitos e obrigações, estes podem multiplicar-se, dando carne e vida jurídica autónoma a cada situação ou veste em que os homens se relacionem uns com os outros. A sociedade, para o direito, enche-se de uma plétora infinita de pessoas, na qual se espelha e reverbera, ao ritmo das suas multiformes relações mutuas, o mundo, esse finito, dos homens. A mobilidade dos estados em relação aos suportes físicos é tal que se admite a con­ tinuidade ou identidade de uma pessoa, ainda que que mude a identidade do indivíduo físico que a suporta. Tal é o caso da pessoa do defunto que, depois da morte, incarna no herdeiro; mas é também o caso do pai, que incarna nos filhos, mantendo a sua identidade pessoal ("O pai e o filho são uma e a mesmo pessoa no que toca ao direito civil", Valasco, 1588, cons. 126, n. 12). A relação entre estado e indivíduo chega a aparecer inverti­ n7Que designava a m áscara teatral (grega), com a qual um actor se transforma num papel. 114 António Manuel Hespa da, atribuindo-se ao estado (à qualidade) o poder de mudar o aspecto físico do indivíduo; diz-se, por exemplo, que o estado de escravidão destrói a fisionomia e majestade do homem (cf. Carneiro, 1851, pg. 69, nota a). Nestes casos, a realidade jurídica decisiva, a verdadeira pessoa jurídica, é esse estado, que é permanente; e não os indivíduos, transitórios, que lhe conferem momentaneamente uma face (cf. Clavero, 1986, max., 36). Homem que não tenha estado não é pessoa. De facto, há pessoas que, por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não têm qualquer status e, logo, carecem de personalidade. Tal é o caso dos escravos ("Quem não tenha nenhum destes estados [civil, de cidadania ou familiar, status civilis, civi-tatis, familiae] é havido, segundo o direito romano, não como pessoa, mas antes como coisa", escreve Vulteius (Vulteius, 1727, cit. por Coing, 1985,1,170). Tal é a sociedade de estados (Stündesgesellschaft, società per ceti, sociedad estamental), característica do Antigo Regime e que antecede a actual sociedade de indivíduos. 4.2.6. Ordem e pluralismo político Ligada a esta, estava a ideia da indispensabilidade de todos os órgãos da sociedade e, logo, da impossibilidade de um poder político "simples", "puro", não partilhado. Tão monstruoso como um corpo que se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade em que todo o poder estivesse concentrado no soberano. O poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais. A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio própria, o funcionamento próprio de cada uma das partes do corpo), mas por um lado, a de representar externamente a unidade do corpo e, por outro, a de manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que Ibe é próprio (ius suum cuiqiie Cultura Jurídica Europeia 115 tribuendi); garantindo a cada qual o seu estatuto ("foro", "direi­ to", "privilégio"); numa palavra, realizando a justiça(iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi [a justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu], D., 1,1,1,10,1). E assim é que a realização da justiça - finalidade que os juristas e politólogos tardo-medievais e primo-modernos (séculos XIV-XVI) consideram como o primeiro ou até o único fim do poder político - se acaba por confundir com a manuten­ ção da ordem social e política objectivamente estabelecida.118 Por outro lado, faz parte deste património doutrinal a ideia, já antes esboçada, de que cada corpo social, como cada órgão corporal, tem a sua próprio função (ojficium), de modo que a cada corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que a pos­ sa desempenhar. A esta ideia de autonomia funcional dos cor­ pos anda ligada, como se vê, a ideia de autogoverno que o pen­ samento jurídico medieval designou por iurisdictio e na qual englobou o poder de fazer leis e estatutos (potestas lex ac statuta condendi), de constituir magistrados {potestas magistratus constituendi) e, de um modo mais geral, julgar os conflitos (potestas ius dicendi) e emitir comandos (potestas praeceptiva). Mas pode falar-se de pluralismo ainda num outro sentido - o de que a ordem tem várias fontes de manifestção, não po­ dendo ser reduzida ao direito formal. Realmentge, um aspecto da ordem era o de estabelecer vín­ culos tão necessários entre as coisas que se podia dizer que os comportamentos correspondentes a estes vínculos se converti­ am em comportamentos devidos em virtude da própria "natu­ reza das coisas". E nesta perspectiva que S. Tomás define o débito como "o r­ dem de exigir, ou necessidade de alguém em relação ao que está ordenado [= posto em ordem]" (Summ. tlieoi, Ia, q. 21, 1 ad 3). Como existe uma ordem entre as criaturas que cria dívidas re­ cíprocas entre elas, pode dizer-se que as relações estabelecidas nessa ordem constituem deveres. E, logo, que a ordem institui 118Cf. Petit, 1994, III, 732 ss. 116 António Manuel Hespanha um direito, um direito natural. E como a soma dos deveres das criaturas entre si é também devida à ordem, ou seja, a Deus, o cumprimento dos deveres recíprocos é, em certa medida, um dever para com Deus e, logo, o tal direito natural acaba por ser um direito divino: "É devido a Deus que se realize nas coisas aqui­ lo que a sua sapiência e vontade estabeleceu e que a sua bonda­ de manifesta ... E devido a cada coisa criada que se lhe atribua o que lhe foi ordenado [...] e, assim, Deus faz justiça quando dá a cada um o que lhe é devido segundo a razão de sua natureza e condição" (cf., também, Summ. theol., Ia-Iae, q. 111,1 ad 2). Este carácter natural da ordem fazia com que ela se manifestsse de muitas formas - pelas tendências naturais (amores), com o tempo concretizadas em costumes (consuetudines vel mo­ res, practicae, styli), pelas virtudes morais (amicitia, liberalitas), pela revelação e também pelo direito formalizado pelos juristas, como peritos na observaçãoe memória das coisas sociais, ou mesmo pela vontade do rei, como portador de um poder nor­ mativo de origem divina.119 4.3. A dissolução do corporativismo e o advento do paradigma individualista Embora se lhe possam encontram antecedentes mais recua­ dos (oposição entre filósofos estóicos e aristotélicos, entre a teolo­ gia inspirada em Santo Agostinho e a inspirada em S. Tomás de Aquino), a genealogia mais directa do paradigma individualista da sociedade e do poder deve buscar-se na escolástica franciscana quatrocentista (Duns Scotto, 1266-1308; Guilherme d'Occam, 1300c.1350).120 É com ela - e com uma célebre querela filosófica, a ques- 119Sobre este pluralism o de fontes, v. infra, 5.3. ). 120A escolástica franciscana representa um a visão teológica difundida por te­ ólogos franciscanos (sobretudo, séculos XIV e XV), que, no plano do conhe­ cimento de Deus, valoriza a fé em detrimento da razão; e que, no conheci­ mento das coisas naturais, desvaloriza a ideia de ordem em relação à de individualidade de cada coisa. A sua inspiração teológica mais longínqua pode encontrar-se em Santo Agostinho. Cultura Jurídica Europeia 117 tão "dos universais" - que se põe em dúvida se não é legítimo, na compreensão da sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos. Na verdade, passou a entender-se que aqueles atributos ou quali­ dades ("universais") que se predicam dos indivíduos (ser -paterfa­ milias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações sociais em que estes estão integrados não são qualidades incorporadas na sua essência, não são "coisas" sem a consideração das quais a sua natureza não pudesse ser integralmente apreendida - como queri­ am os "realistas". Sendo antes meros "nomes", externos à essên­ cia, e que, portanto, podem ser deixados de lado na consideração desta. Se o fizermos, obtemos uma série de indivíduos "nus", incaracterísticos, intermutáveis, abstractos, "gerais", iguais. Verda­ deiros átomos de uma sociedade que, esquecidas as tais "qualida­ des" agora tomadas descartáveis, podia também ser esquecida pela teoria social e política. Esquecida a sociedade, i.e., o conjunto de vín­ culos inter-individuais, o que ficava era o indivíduo, solto, isola­ do, despido dos seus atributos sociais. Estava quase criado, por esta discussão aparentemente tão abstracta, um modelo intelectual que iria presidir a toda a refle­ xão social durante, pelo menos, os dois últimos séculos - o indi­ víduo, abstracto e igual. Ao mesmo tempo que desapareciam do proscénio as pessoas concretas, ligadas essencialmente umas às outras por vínculos naturais; e, com elas, desapareciam os gru­ pos e a sociedade (cf. infra 7.2.). Para se completar a revolução intelectual da teoria política moderna só faltava desligar a sociedade de qualquer realidade metafísica, laicizando a teoria social e libertando o indivíduo de quaisquer limitações transcendentes.121 Essa revolução levou-a a cabo um novo entendimento das relações entre o Criador e as criaturas. A teologia tomista, sobretu­ do através da "teoria das causas segundas" - ao insistir na relativa autonomia e estabilidade da ordem da criação (das "causas segun­ das") em relação ao Criador, a "causa primeira" -, garantira uma 121 Um a análise fundam ental das im plicações políticas e m orais desta revolu­ ção do im aginário social foi magistralm ente feita por Zygm unt Baum an (, 1987,1995). 118 António Manuel Hesp certa autonomia da Natureza emface da Graça e, consequentemente, do saber temporal em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma recaída no fideismo, na concepção de uma completa dependência do homem e do mundo em relação à vontade absoluta e livre de Deus que levou a uma plena laicização da teoria social. Se Deus se move por "impulsos" (teoria do impetus, de raiz estóica), se os seus desígnios são insondáveis, não resta outro remédio senão tentar compreender (racionalmente ou por observação empírica) a ordem do mundo nas suas manifestações puramente externas, como se Deus não existisse, separando rigorosamente as verdades da fé das aquisições intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde Hugo Grócio a Tomás Hobbes (v. infra, 7.1.) - que a liberta de todas as anteriores hipotecas à teologia moral, do mesmo passo que liberta os indivíduos de todos os vínculos em relação a outra coisa que não sejam as suas evidências racionais e os seus impulsos naturais. Esta laicização da teoria social e a colocação no seu centro do indivíduo, geral, igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tem consequências centrais para a compreensão do poder. A partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa ordem objectiva das coisas; vai ser concebido como fundado na vontade. Numa ou noutra de duas perspectivas. Ou na vontade soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente, pelo seu lugar tenente - o príncipe (providencialismo, direito divino dos reis). Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos e insegurança da sociedade natural, ou pelo desejo de maximizar a felicidade e o bem estar, instituem, por um acordo de vontades, por um pacto, a sociedade civil (contratualis-mo). A vontade (e não um equilíbrio ratio preestabelecido)122é, 122 Na verdade, os nominalistas deixaram também de crer na existência de qualquer vínculo entre vontade e razão. Uma vez que existia, no plano epis-temológico, uma radical diferença entre a realidade objectiva e a sua representação mental (cf. Coleman, 1991), o mundo objectivo não tinha qualquer poder de conformação sobre o mundo mental. E, assim, não existia nenhum apetite natural pelo bem, nenhuma direcção da vontade pela razão, como queria S. Tomás. V., sobre este tema, Sève, 1991, 64 ss. Cultura Jurídica Europeia 119 também, a origem do direito. Guilherme d'Occam descrevera-o ou como o que Deus estabeleceu nas Escrituras, ou como o qui decorre racionalmente de algum pacto. E, laicizada a teoria jurí­ dica, Rousseau (cf. 7.2.1.2) definirá a lei como "uma declaraçãc pública e solene da vontade geral" ("une déclaration publique e solemnelle de la volonté générale sur un objet d'intérêt commun" Lettres écrites de la Montagne, 1,6).123 Perante este voluntarismo cedem todas as limitações decor­ rentes de uma ordem superior à vontade (ordem natural ou so brenatural). A constituição e o direito tornam-se disponíveis e c sua legitimidade não pode ser questionada em nome de algun critério normativo de mais alta hierarquia. Daqui se extrai (ns perspectiva providencialista) que Deus pode enviar tiranos pan governar os homens (pecadores, duros), aos quais estes devem apesar de tudo obedecer. Extrai-se também que as leis funda mentais, como todos os pactos, são disponíveis, i.e., factíveis £ alteráveis pelos homens, num dado momento histórico. E, final mente, que todo o direito positivo, bem como todas as conven ções, enquanto produto directo ou indirecto de pactos, são jus tos ("positivismo jurídico").124 Para além destes pontos comuns, o paradigma individua lista e voluntarista na concepção da sociedade e do poder des­ dobra-se em certas correntes típicas. Por um lado, no providen cialismo, que concebe o poder como produto da livre vontade dc Deus, exercitada na terra pelas dinastias reinantes, que assin eram revestidas de uma dignidade quasi-sagrada. Por outre lado, no contratualismo absolutista, que concebe o pacto socia como transferindo definitivamente para os governantes todos os poderes dos cidadãos. Esgotando-se os direitos naturais na­ 123 Mas, já antes dele, Marsílio de Pádua a definira como "preceito coercitivo" e Samuel Puffendorf com o "com ando proveniente da vontade do legislador" 124 Note-se, no entanto, que a ideia de um pacto na origem das sociedades civií não era estranha à teoria política tradicional. Só que, com o vim os, este pactc apenas definia a forma de governo (que Aristóteles considerara mutável); nãc já a forma do poder. E mesmo aquela, uma vez estabelecida, consolidava-se em direitos adquiridos (iura radicata) impossíveis de alterar. 120 António M anuel H espanha queles transferidos e não se reconhecendo outra fonte válida de obrigações (nomeadamente, a religião), o soberano ficava, en­ tão, livre de qualquer sujeição (a não ser a de manter a forma geral e abstracta dos comandos, o que distinguiria o seu gover­ no da arbitrariedade do governo despótico). Por fim, neste qua­ dro apenas sinóptico, o contratualismo liberal, para o qual o con­ teúdo do contrato social estaria limitado pela natureza mesma dos seus objectivos - instaurar uma ordem social e política maximizadora dos instintos hedonistas dos homens - pelo que, os direitos naturais permaneceriam eficazes mesmo depois de ins­ taurada a sociedade civil.125 Também no domínio do direito privado, o individualismo vem a ter as suas consequências. Desde logo, a dissolução de que os pactos e contratos tinham uma natura (natura, substantia) in­ disponível, ligada à própria natureza das coisas. Depoisque as mesmas coisas, de que os homens se serviam, tinham usos na­ turais que não podiam ser ignorados e, portanto, que a proprie­ dade tinha limites., podendo, assim, ser objecto de "abuso" (um dos quais seria, por exemplo, o não uso absoluto, privando a comunidade das utilidades que decorriam do do normal uso das coisas, das suas "funções sociais"). 115 Sobre estas correntes, com bibliografia suplem entar, X avier, 1 9 9 3 ,1 2 7 . So­ bre as escolas do pensam ento político m oderno, ibid., 127 ss. 5- A FORMAÇÃO DO “ DIREITO COMUM” A doutrina jurídica dos séculos XV, XVI e XVII tem recebi­ do designações muito variadas - "bartolism o", "escolástica ju ­ rídica", "m os italicus", etc.; mas a sua designação mais correcta é a de "direito comum" por se revelar menos unilateral do que qualquer das anteriores e por nos dar, desde logo, esta ideia: a de que ela apresenta, como característica primeira, a unidade (i) quer enquanto unifica as várias fontes do direito (direito justinianeu [cf. infra, 5.1. ], direito canónico [cf. infra, 5.2. ] e direi­ tos locais); (ii) quer enquanto constitui um objecto único (ou co­ mum) de todo o discurso jurídico europeu; (iii) quer ainda en­ quanto "trata" este objecto segundo métodos e estilos de racio­ cinar comuns; (iv) forjados num ensino universitário do direito que era idêntico por toda a Europa; e (v) vulgarizados por uma literatura escrita numa língua então universal - o latim.126 Para a formação desta comunidade jurídica europeia con­ tribuem vários factores. Por um lado, uma constelação de factores que gera uma certa tendência para a unidade dos vários ordenamentos jurídicos europeus. Um deles é a reconstituição do Império (primeiro, do Im­ pério de Carlos Magno, século IX, dando origem à classificação de Carlos Magno como senhor universal, "regnator in orbe" (Alcuíno); depois, do Sacro Império Romano-Germânico, sécu­ lo X), unidade política inspirada, quer pela memória do "im pé­ rio universal" que era o Império Romano, de que os novos im­ peradores francos ou germânicos, seriam os sucessores127quer 126Teorização do conceito, em Calasso, 1970., maxime 33-136. 127Cf. de um edito imperial de 864 (Edidtum postensis): "N aquelas regiões nas quais se julgava segundo a lei dos rom anos, os litígios continuarão a ser jul­ gados por essa mesma lei, pois os nossos antecessores] não estabeleceram qualquer capitular suplementar ou contrária a essa lei, nem nós mesmos [de Carlos II, im perador dos francos] o fizemos" (apud Calasso, 1970,41). 122 António Manuel Hesp pela existência, no plano religioso, de uma Igreja ecuménica que reunia toda a cristandade. Quer o Império, quer a Igreja, tinham ordenamentos jurídicos unificados, embora coexistissem paralelamente. Daí que a tríade "uma religião, um império, um direito" (una religio, iinum imperium, unum ius) parecesse apontar para algo de natural na organização do género humano - uma certa comunidade de governo (respublica christiana) e uma certa unidade do direito (ius communé). Por outro lado, o sentimento de unidade do direito foi -em grau não menor - suscitado pela homogeneidade da forraa-ção intelectual dos agentes a cargo de quem esteve a criação do saber jurídico medieval - os juristas letrados. Tratavam-se de universitários com uma disposição intelectual comum, modelada por vários factores que se verificavam em toda a área cultural europeia centro-ocidental. Primeiro, o uso da mesma língua técnica - o latim -, o que lhes criava, para além daquele "estilo" mental que cada língua traz consigo, um mesmo horizonte de textos de referência (numa palavra, a tradição literária romana). Depois, uma formação metodológica comum, adquirida nos estudos preparatórios universitários, pela leitura dos grandes "manuais" de lógica e de retórica128utilizados nas Escolas de Artes de toda a Europa. Finalmente, o facto de o ensino universitário do direito incidir unicamente - até à segunda metade do século XVIII - sobre o direito romano (nas Faculdades de Leis) ou sobre o direito canónico (nas Faculdades de Cânones), pelo que, nas escolas de direito de toda a Europa central e ocidental, desde Cracóvia a Lisboa, desde Upsala a Nápoles, se ensinava, afinal, o mesmo direito. O mesmo direito, na mesma língua, com a mesma metodologia. É do trabalho combinado destes factores - a unificação dos ordenamentos jurídicos suscitando e possibilitando um discurso jurídico comum, este último potenciando as tendências unificadoras já 128 Dos quais, o principal foi, até ao século XVI, as Summae logicales do português Pedro Hispano (depois, papa João XXI, m. 1272). Cu\tura ] uri dica Europeia 123 latentes no plano legislativo e judiciário - que surge o direito comum, ius commune.129 5 .1 . Factores de unificação dos direitos europeus Vejamos, mais detidamente, a primeira série de factores, i.e., as circunstâncias a partir das quais se foi gerando a unificação dos ordenamentos jurídicos europeus. 5 . 1 . 1 . A tr a d iç ã o r o m a n ís tic a 5 .1.1.1. Direito rom ano clássico, direito bizantino e direito rom ano vulgar A memória do direito de Roma foi, porventura, o princi­ pal factor de unificação dos direitos europeus. Entre os séculos I a.C. e III d.C., o Império Romano esten­ deu-se por toda a Europa meridional, tendo ainda atingido al­ gumas zonas mais a norte, como a parte norte da Gália (a actual França) e o sul de Inglaterra. No oriente europeu, o Império ro­ mano estendia-se pelos Balcãs e pela Grécia e prolongava-se, depois, pela Ásia Menor. O direito conheceu então uma época áurea.130 129 N ote-se, desde já, que o direito comum é um fenóm eno mais de natureza doutrinal do que legislativa. Isto é notório quando, a p artir da Baixa Idade Média (séculos XIII e ss.) se cria um a espécie de costume doutrinal (opinio communis doctorum) que passa a ser decisivo - mais do que as próprias fon­ tes dos direitos dos reinos - na orientação da jurisprudência. Em Portugal, por exem plo, apesar de as Ordenações conferirem ao direito rom ano um lu­ gar apenas subsidiário no quadro das fontes do direito (O rd.fil, III, 64), na prática ele era o direito principal, sendo m esm o aplicado contra o preceito expresso do direito local (Cruz, 1 9 5 5 ,1 0 ; Costa, 1 9 6 0 ,2 5 ; e M erêa, 1939, 539 ss.). Com o o direito rom ano constituía a base da form ação dos juristas e juizes de então e era o direito veiculado pela doutrina vigente e aceite nos tribunais, forma-se um costum e doutrinal e judicial contra legem, mas d o ­ tado de verdadeira opinio iuris (i.e., sentido com o obrigatório). 130Sobre a história do direito romano, suas épocas e principais características, v. Gilissen, 1988,80-100. Para maiores desenvolvimentos, D'Ors, 1973; Kaser, 1959. 124 António M anuel H espanha Na base de umas poucas leis - desde a arcaica Lei das XII Tábuas (meados do século V a.C.) até às leis votadas nos comíci­ os no último período da República (séculos I e II a.C.)131- e das acções (legis actiones, acções da lei) que elas concediam para ga­ rantir certas pretensões jurídicas, o pretor, magistrado encarre­ gado de administrar a justiça nas causas civis, desenvolvera um sistema mais completo e mais maleável de acções (actiones praetoriae), baseado na averiguação das circunstâncias específicas de cada caso típico e na imaginação de um meio judicial de lhes dar uma solução adequada. Nesta tarefa de extensão e de afinação do arcaico "direito dos cidadãos", ius civile - formalista, rígido, desadaptado às no­ vas condições sociais -, os pretores criam um direito próprio, o "direito dos pretores", ius praetorium. Inicialmente, socorrem-se dos seus poderes de magistrados (imperium), dando às partes ordens que modificavam as circunstâncias de facto e que, por isso, excluíam a aplicação de uma norma indesejável ou possibilita­ vam a aplicação de outra mais adequada à justiça material do caso.132 Mais tarde, a partir da Lex Aebutia de formulis (149 a.C.), o pretor adquire a possibilidade de criar acções não previstas na lei (actiones praetoriae). Cada acção consiste numa formula, espé­ cie de programa de averiguação dos factos e da sua valorização jurídica. A partir daí, é a fórmula específica de cada situação, e não a lei, que dita a solução para o caso em análise. Com isto, a jurisprudência dos pretores autonomiza-se completamente das leis e torna-se numa fonte imediata de direito. A partir dos me­ ados do século II d.C., os pretores completam a sua tarefa de 131 Existiam ainda, com o fonte de direito, alguns resíduos de direito consuetudinário e as determ inações legislativas do Senado, os senatusconsulta, al­ guns dos quais com certa relevância em m atéria jurídica. 132 O rdens deste tipo são: as stipulationes praetoriae [efectivação de prom essas forçadas pelo pretor], as restitutiones in integrum [ordem de reposição do estado anterior], as missiones in possesionem [entregas forçadas], os interdicta [proibições de agir ou ordens de exibir, restituir]. C om elas, o pretor cri­ ava situações de facto que alteravam os pressupostos de aplicação do di­ reito. Cultura Jurídica Europeia 125 renovação do velho ius civile. O Edictum perpetuum (c. 125-138 d.C.) codifica as acções do direito pretório. O direito ganha, desta forma, um carácter casuístico que incentiva uma averiguação muito fina da justiça de cada caso concreto. Para além disso, o momento da resolução dos casos é muito criativo, pois a lei não amarra, de modo nenhum, a inven­ tiva do magistrado, que fica bastante livre para imaginar solu­ ções específicas para cada situação. Isto explica, porventura, o desenvolvimento de uma enorme produção literária de juristas, treinados na prática de aconselhar as partes e o próprio pretor, que averiguam e discutem a solução mais adequada para resol­ ver casos reais ou hipotéticos. Designam-se a si mesmo como técnicos na distinção entre o justo e o injusto, sabedores práti­ cos do direito (iuris-prudentes) e produzem, na época áurea da sua actividade (entre 130 a.C. e 230 d.C.) centenas de milhares de páginas de consultas e opiniões, de resolução de questões, de regras de direito, de comentários ao édito do pretor. Fora de Roma, no entanto, este direito letrado e oficial pou­ ca aplicação teria. Aí, pontificavam usos locais e formas tradici­ onais de resolver os litígios. Em algumas províncias de cultura mais específica, como o Egipto ou a Grécia, o direito local tinha particularidades muito importantes que resistiam aos padrões do direito romano clássico. Noutras, menos romanizadas (como a Germania, certas zonas da Gália e da Hispania), o direito ofi­ cial de Roma mal chegava. Deste modo, a iurisprudentia roma­ na clássica, se contribuiu para a unificação dos direitos europeus até aos dias de hoje, não foi por causa da sua difusão pelo Im­ pério, no período do seu maior brilho, mas porque constituiu um tesouro literário em que, mais tarde, se vieram a inspirar os ju­ ristas europeus. A crise do Império Romano, a partir do século III d.C., e a ulterior queda do Império do Ocidente (em 476) põem em crise este saber jurídico, cujo rigor exigia uma grande formação lin­ guística, cultural e jurídica, e cujo casuísmo impedia uma pro­ dutividade massiva. Num Império vasto, mal equipado em téc­ nicos de direito, longe da acção dos pretores urbanos de Roma, 126 António Manuel Hespc o que progressivamente foi ganhando mais importância foram as leis imperiais (constitution.es principum). O direito como que se administratizou. De um saber de uma elite cultivada numa longa tradição intelectual passou para uma técnica burocrática de aplicação, mais ou menos mecânica, de ordens do poder.133 Ganha em generalidade e automatismo aquilo que perde em fineza casuística e apuramento intelectual. Dizer o direito torna-se numa actividade menos exigente e mais simplificada, acessível mesmo aos leigos. O saber jurídico perde o rigor e a profundidade de análise. O direito vulgariza-se. Esta vulgarização é mais pronunciada nas províncias, em virtude das corruptelas provocadas pela influência dos direitos locais. Aí, forma-se um direito romano vulgar (Vulgarrecht), que está para o direito romano clássico como as línguas novilatinas ou românicas estão para o latim. No Império Oriental, por sua vez, o direito clássico deixou-se contaminar pelas influências culturais helenísticas e pelas particularidades do direito local. Muitos dos comentadores passaram a escrever em grego, a língua oficial da corte bizantina. Em todo o caso, o gosto pela reflexão intelectual em matérias jurídicas não se perdeu, continuando a produção doutrinal dos juristas clássicos a ser apreciada. Tanto que, nos meados do século VI, o Imperador Justini-ano, um apaixonado pela cultura clássica e um nostálgicos das antigas grandezas de Roma, empreende uma tarefa de recolha de textos jurídicos da tradição literária romana, desde as obras dos juristas romanos clássicos, que mandou reunir numa compilação a que chamou Digesto (i.e., resumo, selecção) ou Pandec-tas (i.e., obra enciclopédica), 533 d.C., até à legislação imperial dos seus antecessores, que foi recolhida no Código (i.e., livro), 529 d.C. A sua obra de recolha foi completada por um manual de introdução, as Instituições, 530 d.C., e por uma compilação póstuma, as Novelas, 565 d.C., as "constituições novas" promulgadas pelo próprio Justiniano depois da saída do Código. 133 Petit, 1994, III, 728 ss. '127 Cultura Jurídica Europeia É este conjunto de livros - a que, a partir cio século XVI, se dá o nome de Corpus iuris civilis - que vai constituir a memória medieval e moderna do direito romano, pois a generalidade das obras dos jurisconsultos clássicos, que continuava a existir nas grandes bibliotecas do Próximo Oriente (Beirute, Alexandria, Constantinopla), perdeu-se posteriorm ente, nom eadam ente com a conquista árabe desses centros.134 5.I.I.I.I. Súm ula das épocas históricas do direito romano É p o ca a rc a ic a (753 a.C . - 1 3 0 a .C ) • In d istin ção ius-fas-mos. • O c a rá c te r s a c ra l d o d ire ito : • R itu ais ju ríd ico s - a emptio venditio fu n d i. • F ó rm u la s m á g ic a s a stipulatio. A Lei das X II Tábuas (c. 4 5 0 a.C ) (ex. S .C ., p . 185) • O p rim a d o d o c o s tu m e . A n a tu re z a a p e n a s e x p lic ita d o ra d a s leis. In d e rro g a b ilid a d e e fo rm a lis m o d o s in s tru m e n to s ju ríd ico s - a s legis actiones. • O s a b e r ju ríd ico p ru d e n c ia l • A n a tu re z a o ra c u la r d o d iscu rso ju ríd ico - pontífices • A a p re n d iz a g e m do d ire ito p e la p rá tic a (pontem facere) e ju ristas. ju n to d o s p erito s. (cont.) 134 A tal ponto que, até aos inícios do século XIX - data em que se descobre um manuscrito das Institutiones de Gaio, um jurista dálm ata do século III - , não se conhecia nenhum a obra completa, dos milhares das provavelm ente es­ critas por juristas rom anos. António M anuel Hespanha 128 (cont.) Época clássica (130 a.C - 230 d.C) Ascensão e auge do direito pretório (ius praetorium est quod praetores introduxerunt adiuvandi vel corrigendi vel supplendi iuris civilis gratia propter ütilitatem publicam, Papinianus, D.,1,1,7,1); Decadência do direito pretório: • a ossificação do direito pretório - o Edictum perpetuum (130 d.C.); • a generalização da ddadania romana (com Caracala, 212 d.C); A inventiva doutrinal (iurisprudentia): non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat Epoca pós-clássica (230-530) • Expedientes do pretor baseados no imperium: ex. a stipulation praetoria, as restitutiones in integrum (ob metum, ob dolum, ob errorem, ob aetatem), os interdicta possessoria (uti possidetis, unde vi); • Expedientes baseados na iurisdictio (depois da Lex Aebutia deformulis, c. 130 a.C.): • actiones praetoriae (in factum conceptae, utiles); • a fórmula (Tiius iudex esto. Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio centum dare oportere, condemnato. Si non paret, absolvito) • exceptiones. A eficácia disciplinar do direito legislado: Vulgarização; • centralização; • Oficialização (lei e critérios • generalidade; oficiais de valorização da doutrina); • codificação (Codex Theodosianus, 438 d.C.) • Codificação; Helenização. A ratificação imperial (< imperium ) da autoridade (auctoritas) dos juristas: o ius respondendi ex auctoritate principis (Augusto, c. 25 a.C.)); a equiparação da doutrina à lei (Adriano, c. 220 d.C.); a Lei das Citações (426 d.C.) Cultura Jurídica Europeia 129 5.1.1.1.2. Sistematização e método de citação do Corpus Iuris Civilis Instituições (533 d.C.) 4 livros (.personae, res, obligationes, actiones): • divididos em títulos e estes, C ódigo (534 d. C.) 12 livros :3 • constituições ou leis e estas, por vezes, em parágrafos; por vezes, em parágrafos; • • citação: I[nst.), [liv.] 1 , [tit.] 10, [parag.] pr[oemium J;1 • citação: C[odex Iustinianit.], [liv.] 9, [tit.] 7, [constituição] 5, [parag.] • cit. antiga: (Cod. lust..), cit. antiga: (Inst .), l[ex], pr., De nuptiis.2 divididos títulos, estes em l[ex]. 1, Si quis imperatori maledixerit. (cont.) 1 O proemium ou principium é, de facto o primeiro parágrafo. O parágrafo 1 é, portanto, o segundo na ordem do texto. 2De nuptiis é a epígrafe do tít. 10 do livro 1 das Institutiones. 3Na Idade Média, os três últimos livros do Código eram frequentemente agru­ pados nos chamados tres libri, formando, juntamente com outras fontes me­ nores (Institutiones, Authenticum e Librifeudorum) o Volumen paruum (livrinho). 4Como antes se disse, o parágrafo 1 é, de facto, o segundo na ordem do texto. 130 António Manuel Hespanh (cont.) D igesto (ou Pandectas) N ovelas (534-565 d.C.): (533 d.C.) - 50 livros ;5 • • • divididos em títulos (salvo os livros 30 a 32, De legatis et divididas em constituições ou leis; • a mais importante das fideicommissis), estes em frag­ colecções medievais mentos (ou "leis") e estes, por vezes, em parágrafos; de novelas é o Líber Authenticum, composto citação: por 134 novelas latinas. • D., 2,1,3: D[ig.], [liv.] 2, [tit.] 1, [frag.] 3, [parag.] (frag. não dividido em parágr.); citação antiga: I. Imperium,6 f f 7 De iurisdíctione;8 D., 1,1,10,1: D[ig.], [liv.] 1 , [tit.] 1 , [frag.] 10, [parag.] 1 (frag. dividido • • em parágr.); citação antiga: l. Iustitia, f f De iustitia et de iure; • D., 31,6: D[ig.], [liv.] 31, [frag.] 6, [parag.] - (livro não dividido em títulos);9 • citação antiga: l. grege, ff De legatis et fideicommissis. • 5Na Idade M édia, o Digesto aparecia dividido em Digestum Vetum (livs. ' 24,3,2); Digestum novum (livs. 39-50) e Digestum Infortiatum (livs. 24,3,3-38) 6Primeira palavra da "lei". 7 O nome grego do Digesto com eçava pela letra P (pi) que, m anuscrita se a semelhava a dois f. E foi assim que os copistas m edievais a copiaram . “Epígrafe do título. 9E fragmento não dividido em parágrafos. 5.1.1.1.3. Sistem atização e método de citação do Corpus Iuris Canonicis Decretum (c. 1140). Decretais (1 2 3 4 ) - 5 livros. • • divisão: I a parte - 101 distinctiones; d iv id id a s e m títu los e cap ítu lo s. • 2a parte - 36 causae, divididas em quaestiones; cita çã o : c. [nc d o ca p ítu lo ], X (o u in X ), ne d o tit. o u su as 3a parte p rim e ira s p a la v ra s , (De consecratione) distinctiones. e x .: c. 1, X , V , 7 (= c. 1, in X , D e haereticis) 5 • citação: I a parte - c. [n° do cânone], d. [na da dist.] Sextum (= Liber sextum D ecretalium ) (1 2 9 8 ) - 5 liv ro s. ex.: c. 13, d. XXXVIII « 2a parte - c. [n° do cânone], C. [n2 da causa], q. [na da quaestio] ex.: c. 8, C. XII, q. 2 3a parte (De consecratione ) e 2a parte, Tractatus De poenitentia. - c. [n° do cânone], d. [n° da dist.], De cons. (ou De poen.). ex.: c. 46, d. 1, De poen. • • cita çã o : ig u a l a o a n te rio r, se n d o a sigla V I o u in V I Clem entinas (Clem entis V constitutiones) (1 3 1 4 ) - 5 liv ro s. • d iv id id a s e m títu los • e ca p ítu lo s. cita çã o : ig u a l a o an terio r, citação antiga: a indicação dos números dos cânones, distinctiones ou quaestiones é substituída pela das suas primeiras palavras, o que obriga a recorrer a índices d iv id id o e m títu los e cap ítu lo s. sen d o a sigla Ciem. o u in Ciem. Extravagantes de João XXII (1 2 3 4 ). • d iv id id a s e m títu lo s; sig la E xtrav. Iohann. X X II que acompanham as edições. Extravagantes comuns (séc. X V ). • d iv id id a s em títu lo s; sig la Extrav. Comm. 132 António Manuel H espanha 5.1.1.1.4. Os estudos romanísticos no quadro da form ação dos juristas Na economia desta exposição, o direito romano interessa-nos apenas como uma experiência histórica, culturalmente localiza­ da. E, sobretudo, na medida em que constituiu uma referência, sempre relida e reinterpretada, da ulterior tradição jurídica. No entanto, há outras perspectivas sobre o seu interesse, que aqui interessa avaliar. O estudo do direito romano, como disciplina "dogmática" - i.e., dotada de um interesse formativo de natureza "prática" no âmbito das licenciaturas de direito tem sido justificado fun­ damentalmente com base em dois argumentos: o da perfeição do direito romano e o da importância do seu legado ainda no direito actual. Com o tópico da "perfeição do direito romano" quer-se dizer que os romanos tiveram uma especial sensibilidade para as coisas do direito, tendo criado conceitos e soluções cuja jus­ teza (no sentido de adequação, ajustamento, à natureza das coi­ sas ou das relações humanas) ou justiça (no sentido de confor­ midade com um padrão ideal do justo) se teriam imposto à usura do tempo.135 Com o tópico da importância do direito romano na confor­ mação do direito europeu (ou, mais em geral, ocidental) de hoje pretende-se sublinhar o interesse do direito romano para a in­ terpretação do direito actual (no âmbito da chamada "interpre­ tação histórica" ou "elemento histórico" da interpretação). A ideia de uma especial perfeição do direito romano (ou de qualquer outro direito histórico ou actual) repousa na ideia de que existem padrões universais de justiça na regulação das re­ lações humanas, dos quais as várias épocas ou culturas se apro­ ximariam mais ou menos. Tratar-se-ia, então, de uma perfeição n5 Em blem ático, r\a detesa destes pontos de vista, C ru z, 1989a, ""Prólogo" e "R azões yastificativas da utilidade do ensino do dueito rom ano nas actu­ ais "Faculdades de D ireito ". Cultura Jurídica Europeia 133 "material". Ou, vendo as coisas de um ponto de vista "form al", que existiriam técnicas também intemporais de tratar as ques­ tões jurídicas, tais como maneiras de organizar a justiça (v.g., a valorização da decisão do juiz sobre um caso concreto), mode­ los de raciocínio (v.g., o raciocínio a partir de casos), formas de repartir as funções entre os vários operadores do direito (juris­ tas, magistrados, legisladores; v.g., a autonomização da autori­ dade racional dos juristas em relação à vontade política do legisla­ dor). A ideia da existência de padrões universais e eternos de justiça baseia-se, por sua vez, na de que existe uma natureza humana transtemporal e transcultural. Da perspectiva das correntes de pensam ento que desta­ cam o carácter construído, cultural, local, das representações e dos valores que dominam cada época (muito comuns entre os historiadores, os antropólogos e os sociólogos) tem sido destacada a dificuldade de valores, de princípios ou de téc­ nicas jurídicos que tenham vencido o tempo ou a diversida­ de cultural. O princípio da reciprocidade nas prestações (do ut des [dou para que dês]), que é a chave da actual ideia de justiça (justiça "com u tativa"), não valeu em sociedades em que se entendia que bom e justo era dar sem pedir nada em troca, distribuir livre ou arbitrariamente (princípio da "libera­ lidade", da "g raça" ou do "d om "; justiça "distributiva"). O princípio do carácter sagrado e indisponível da vida huma­ na também não vigorou nem vigora nas culturas que sobre­ põem ao respeito pela vida humana outros valores, como a segurança social, a retribuição do mal praticado. Conceitos fundamentais do direito actual, como os de direito subjecti­ vo, de pessoa jurídica, de relação jurídica, de generalidade da norma, de não retroactividade das leis, de igualdade jurídica e política, de prim ado da lei, de Estado, são relativam ente modernos na cultura jurídica europeia, não existindo de todo noutras culturas jurídicas. Frequentemente, esta descontinuidade e inovação na histó­ ria jurídica é encoberta pela própria maneira de fazer história. Os historiadores do direito fazem, frequentem ente, uma leitura do direito passado na perspectiva do actual, procuran­ 134 António Manuel Hespar do lá os "prenúncios", as "raízes" dos conceitos, dos princípios e das instituições actuais. Por exemplo, se estudam o Estado, procuram nos direitos da tradição europeia, nomeadamente no direito romano, entidades que dispusessem de certos atributos (mas não de outros, como o monopólio de criação do direito, ou um poder de plena disposição em relação à ordem jurídica) do Estado actual (por exemplo, o conceito de popidus romanus, o conceito de imperator); ou, se estudam a propriedade, pegam na história do dominium sobre as coisas, conceito que, em algumas definições romanas (ius utendi ac abutendi), parece corresponder à actual propriedade individualista. Num caso ou noutro, um estudo da lógica originária do conceito, bem como da sua integração no seu contexto conceituai ou institucional de então, mostraria que, se se respeitar a autonomia do conceito histórico, este não corresponde, de forma alguma, ao actual. Outras vezes, os historiadores ocupam-se do estudo dos conceitos ou instituições com um nome igual ("obrigação-ob/z-gatio", "representação-repraesentatio", "matrimónio-matrimo-nium"). Também aqui, um estudo mais preocupado com os conteúdos do que com os nomes chegará facilmente à conclusão de que, por detrás da continuidade das palavras, se verificaram rupturas decisivas de conteúdo. As própria palavras evocavam, então, ideias e imagens diferentes, que nem sequer nos ocorrem hoje. Também a utilidade do estudo do direito romano para a interpretação do direito actual é problemática. É certo que o direito actual é o herdeiro, nas suas palavras, nos seus conceitos, nas sua instituições, de uma longa tradição na qual os textos de direito romano tiveram um lugar central. Mas a primeira coisa que é preciso dizer é que, ao longo dessa longa tradição, os textos romanos sofreram reinterpretações contínuas, ao mesmo tempo que, da imensa mole de textos disponíveis, os que. protagonizavam o discurso jurídico iam sucessivamente mudando. Pode mesmo dizer-se que, se não fosse essa contínua alteração silenciosa do direito romano invocado pela Cultura Jurídica Europeia 135 tradição romanística, este não teria podido sobreviver às enor­ mes transformações culturais e sociais da sociedade europeia durante mais de dois milénios. O "herdeiro" do direito, formalista, romano não foi o mesmo do direito, linhagista, feudal e senhorial ou do direito, igualitarista, da Época Contemporânea. A "equidade" romana clássica, inspirada na filosofia aristotélica ou estóica, não foi a mesma dos direitos cristianizados, pósclássico, medieval ou moderno, nem a mesma do direito, indi­ vidualista e laicizado, dos nossos dias. Isto apesar de as pala­ vras "herdeiro-heres" e "equidade-aequitas" - e os textos roma­ nos que se lhes referiam - terem estado continuamente presen­ tes na reflexão jurídica de dois mil anos. No entanto, o que é importante realçar é que cada insti­ tuto jurídico ou cada conceito de direito faz parte de um siste­ ma ou contexto, do qual recebe o seu sentido. Mudado o con­ texto, os sentidos das peças isoladas recompõem-se, nada ten­ do a ver com o que elas tinham no contexto anterior. Isto mos­ tra já até que ponto são frágeis os argum entos históricos na interpretação das normas jurídicas. Pode mesmo dizer-se que só porque esquecemos os sentidos originários dos conceitos ou das instituições é que elas podem continuar a funcionar, nesta contínua readaptação que é a sua história. Só porque esquece­ mos o sentido originário das palavras romanas que significam "obrigação" (obligatio - atar em volta de) ou "pagam ento" (solutio - desatar) é que alguns textos de direito romano que se lhes referem, podem continuar a ser invocados (depurados, como é evidente, dos seus sentidos, explícitos ou implícitos, origi­ nais). Só porque esquecemos o conteúdo originário de concei­ tos romanos como paterfamilias (ou mesmo fam ilia) ou actio (ac­ ção) é que podemos continuar a tirar partido de alguns princí­ pios de direito romano que se lhes referem. A própria ideali­ zação que por vezes se faz, por exemplo, da natureza criativa e autónoma da jurisprudência (no sentido, originário, de dou­ trina) ou da actividade do pretor só é ainda hoje atraente por­ que se esquece todo o seu contexto político e social. Seguramen­ te que não poderíamos hoje aceitar que um grupo de juristas 136 António M anuel H espanha dispusesse de uma quase total discricionariedade de conforma­ ção do direito, nem que um magistrado utilizasse a sua auto­ ridade burocrática para decidir em que casos garantia protec­ ção jurídica (como o fazia o pretor através da concessão ou ne­ gação de actiones praetoriae)136 ou para nos forçar a praticar ac­ tos que alterassem o nosso estatuto jurídico ou o estatuto jurí­ dico das nossas coisas (como nos expedientes do pretor basea­ dos no seu imperium).137 Como se pode, então, justificar o lugar que ainda vem sen­ do atribuído ao direito romano nas Faculdades de Direito de um grande número de países, nomeadamente na Alemanha, em Itá­ lia, em Espanha e em certos países da América Latina? Desde logo, pelo peso da tradição e das próprias estruturas universi­ tárias, pois a própria existência de cátedras, com o seu pessoal, é um factor de continuidade. Depois, pelo impacto das anteriores ideias. Nomeadamente no imediato pós-guerra, a crise provocada pela constatação da impotência do direito, mesmo no país clássico dos estudos jurí­ dicos (a Alemanha), para impedir a implantação de regimes que negavam alguns dos princípios básicos da cultura jurídica oci­ dental, fez surgir projectos de reforma profunda do direito. No quadro destes projectos, os romanistas apresentaram então o direito romano, com a sua estrutura anti-legalista e com o seu embebimento ético (?), como um possível modelo capaz de evi­ tar aquele "totalitarismo da lei" ("absolutismo da lei", chamalhe Paolo Grossi), com o qual se tinha relacionado os males ocor­ ridos. Tratava-se de uma época em que se reagia fortemente con­ tra a redução do direito à lei, contra a inexistência de critérios supra-positivos para aferir da legitimidade das leis, contra a dis­ solução da especificidade do caso concreto numa abstracta nor­ ma geral. O direito romano - com o seu carácter doutrinal e jurisprudencial; com as suas referências à aequitas, à natura rerum (natureza das coisas) e ao ius nnturale (direito natural); com o seu 136V. Cruz, 1989a, 332 ss. 137 Ibid., 302 ss. Cultura Jurídica Europeia 137 casuísmo - seria justamente o antídoto contra tais males.138Con­ temporaneamente, surgiram, porém, correntes de pensamento jurídico - as que valorizavam métodos casuístas (J. Esser), as que propunham processos apenas "probabilistas" de raciocínio (Th. Viehweg), as que criticavam o papel conservador da dogmática jurídica estabelecida e propunham uma intervenção mais cria­ tiva dos juizes ("uso alternativo do direito") - que propunham vias de superação da crise que não passavam por um mais que problemático retorno a um direito de há dois milénios. Ao direito romano fica, porém, um inegável interesse his­ tórico, nos quadros de uma história do direito de intenção críti­ ca, ou seja, que vise mostrar o carácter apenas local da actual cul­ tura jurídica, revelando o carácter radicalmente diferente e al­ ternativo de outros modos de imaginar e pensar o direito. Ora o direito romano é, justamente, um bom exemplo de uma cultura jurídica diferente. Nos seus pressupostos culturais, na sua técnica de lidar com os problemas jurídicos, nos seus concei­ tos e princípios, nas suas instituições e, finalmente, na forma de organizar a prática jurídica. As melhores exposições de direito romano são, por isso, aquelas que, libertando-se das categorias jurídicas actuais, conseguem dar uma visão, historicamente mais autentica, do direito romano como um sistema jurídico domina­ do por uma lógica alternativa, ou mesmo oposta, à do actual. Basta ler os primeiros parágrafos de um manual como o do prestigia­ do romanista espanhol Alvaro d 'O rs139para nos darmos conta de que modo era diferente a maneira de pensar o direito e de orga­ nizar o seu estudo entre os romanos: o direito consistia na dou­ trina jurídica; direito, verdadeiramente, era só o direito privado; a sua exposição centrava-se no direito processual; a "sistematiza­ ção germânica" do direito civil era desconhecida. No quadro seguinte, sintezam-se algumas dessas diferenças. 138"O principal objecto da nossa docência deve ser libertar o jurista moderno da servidão do positivismo legalista e instruí-lo nos hábitos mentais de uma jurisprudência cuja independência continua a ser exem plar" (D'Ors, 1973). 139Derecho privado romano, 1973, 3 ss. 138 António Manuel Hesp Direito romano Crença num direito imanente (natura rerum, ius naturale) • "é da natureza das coisas que aquele que beneficia das vantagens sofra também os inconvenientes" (D., 50,17,10). Casuísmo: a justiça como a solução ajustada de um caso concreto.' • "a regra é aquilo que enuncia brevemente uma coisa. Não é a partir da regra que se extrai o direito; mas a partir do direito que existe que se faz a regra [...]; a qual, quando se não verifica em alguma coisa, perde a sua força" (D., 50,17,1). • "toda a definição em direito civil é perigosa, pois é raro que não possa ser subvertida" (D.,50,17,202). Carácter jurisprudendal ou doutrinal: o direito como criação dos juristas, a partir do seu saber-prático. Autonomia da autoridade dos juristas (ex própria auctoritate). O direito como um saber prático (como uma prudentia ou arte de agir). Direito actual Concepção positivistavoluntarista do direito: • o direito como vontade (arbitrária, artificial) do poder expressa em declarações solenes (leis). Normativismo (a justiça como critério geral e abstracto): • o direito como norma geral e abstracta; • o justo como critério genérico. Carácter legal. Dependência da autoridade dos juristas (ex auctoritate principis): • o juiz como longa mão da lei; • o jurista como aplicador da lei; • o saber jurídico como técnica de aplicação da lei. O direito como a expressão de uma vontade ou como um saber especulativo. • o direito como ciência ou das leis (positivismo legalista) ou dos princípios gerais de direito (positivismo conceituai). 1 Apesar da raiz casuísta da "invenção jurídica" rom ana, deve notarse o esforço "con strutivo" da jurisprudentia, procurando estabele­ cer modelos gerais (regulae, figuras, tipos ou conceitos), a partir dos quais as soluções particulares ganhassem coerência e fossem expli­ cáveis de um a form a generalizante. Cultura jurídica Europeia 139 5.1.1.1.5. Súmula cronológica da evolução do direito romano 753 a.C. Fundação de Roma. O direito baseava-se exclusivam ente nas "acçõ es" previstas e tipificadas na lei (nom eadam ente, na "L ei das XII Tábuas", legis actiones). 367 a.C. C riação da m agistratu ra dos pretores, en carregad a da adm inistração d a justiça nas causas civis. Início do ius praetorium, constituído pelas m odificações introduzidas pelo pretor no direito civil, com base nos seus poderes genéricos (i.e., com uns a todos os m agistrados) de itnperium, i.e., de d ar ordens (stipulationes praetoriae [pro­ m essas], restitutiones in integrum [reposição no estad o a n ­ terior], missiones in possesionem [entregas forçadas], interdicta [proibições de agir ou ordens de exibir, restituir]). 242 a.C. C riação do p retor p eregrino; fim do período de vigência exclusiva do ius civile. Lex Aebutia deformulis - atribui ao pretor a possibilidade de redigir um a formula, espécie de program a de averiguação dos factos e de sua valorização, segundo a qual 0 iudex leva­ va a cabo 0 iudicium (ou fase apud iudicem, junto do juiz, do processo), ou julgamento do diferendo; a par-tir daqui, 0 pretor leva a cabo a sua missão de corrigir e adaptar 0 ius ríirile com recurso a meios propriamente "judiciais" (i.e., com base em poderes que lhe são espe-cíficos - a iurisdictio - e não comuns a todos os magistrados - como era 0 imperium). Com pilação do Edictum perpetuum, a cargo de Salvius lulianus, que constitui um a codificação, com carácter definitivo, dos éditos anuais dos pretores e que, deste m odo, representa um a consolidação do ius praetorium. Term o convencional da época clássica (130 a.C. - 230), 0 período de vida e actu ação dos m aiores juristas, com o Q. M. Scaevola ( t 132 a. C .), Labeo ( t c .10), Iavolenus ( t 98), Iulainus ( t 168), Gaius ( t c.180), Papinianus ( t 212), Paulo ( t c.226), Ulpiano ( t 228), M odestino ( t 240). Divisão definitiva do Im pério. Lei das Citações, limitando a autoridade da jurisprudência aos juristas Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e Gaio, e erigindo Papiniano em critério de decisão, no caso de empate. Codex Theodosianus. 149 (?) a.C. 130 d.C. 230 d.C. 395 d.C. 426 d.C. 438 d.C. 530 d.C. 530-565 d.C. Início do reinado de Justiniano I. Elaboração do Corpus iuris civilis. 140 António Manuel Hespanha 5.1.1.2. O direito romano na história do direito português O direito romano vigente na Península Ibérica, a aprtir do início da romanização (218 a.C.) era: a) Para os cidadãos romanos, estabelecidos nas cidades ro­ manas (colonias, municípios), o ius civile. Após o edito de Caracala (212 d.C.), que outorgou a cidadania a todos os habitantes do Império, o ius civile passou a ter uma vigên­ cia tendencialm ente generalizada. O direito civil era adaptado às características da vida provincial pela acti­ vidade do magistrado encarregado de administrar a jus­ tiça (governador, praesis provinciae), dando origem a um direito provincial com bastantes especificidades. Por ou­ tro lado, era menos técnico, socorrendo-se de formas sim­ plificadas (direito romano vulgar, Vulgarrecht). b) Para os não cidadãos (a maioria), os seus direitos, quase sempre costumeiros, pois apenas os Tartesos (na costa SE da Península) parece terem tido leis escritas. Estes direi­ tos eram reconhecidos pelos romanos, nos termos de de­ clarações unilaterias ou dos tratados paz estabelecidos com as comunidades indígenas. c) Para as relações entre romanos e não romanos, o ius gentium, que os romanos reconheciam como um direito co­ mum a todas as nações (gentes). A história do direito romano na Península Ibérica tem sido abordada quer por historiadores espanhóis, quer por portugue­ ses. Quanto aos primeiros v., por último e com indicações bibli­ ográficas, Juan Antonio Alejandre Garcia, Derecho primitivo e romanización jurídica, Sevilla 1979; Francisco Tomaz y Valiente, Manual de historia dei derecho espanol, Madrid, Tecnos, 1981 (3a ed.), 71 96. Quanto aos segundos, Nuno Espinosa Gomes da Sil­ va, Historia do direito português, Lisboa, Gulbenkian,1985,31 36, A. M. Hespanha, História das instituições. Epocas medieval e mo­ derna, Coimbra, Almedina, 1982, 69-80. As fontes jurídicas especificas da Península (leges de coló­ nias e municípios) estão publicadas nas Fontes iuris romani anteiustitniani (FIRA), Firenze 1941,1. Leges (2.a ed., a cargo de Ric- Cultura Jurídica Europeia 141 cobono). Também tiveram uma edição portuguesa em Colecção de textos de direito peninsular. I. Leis romanas Coimbra 1912. As Leges metalli Vipascenses têm tido várias edições, traduzidas e comentadas, a última das quais é a de C. Domergue, em "La mine antique d'Aljustrel (Portugal) et les tables de bronze de Vipasca", Conimbriga, 22 (1983) 5 193. O Codex theodosianum foi editado por Mommsen e Meyer, Theodosiani libri XVI, cum constitutioniobus sirmondianis et leges novellae aã Theodosianam perti­ nentes, 2 vols.,., Berolini 1905 (reimpr. 1954). Do Corpus Iuris civilis existe uma edição crítica, a cargo de Mommsen, Krüger, Schõll e Kroll (revisão de W. Kunkel), 3 vols., Berolini 1965. Existe uma tradução espanhola recente, dirigida por A. d'Ors (Pamplona 1965 ss.). Muitos excertos das fontes jurídicas (e literári­ as) romanas, com a respectiva tradução, foram incluídos na Antologia de juentes dei antiguo derecho (= Manual de historia dei Derecho, II vol.), de Alfonso Garcia Gallo, Madrid, Taurus, 1967. 5.1.1.3. A recepção do direito rom ano Com a restauração do Império do Ocidente (Carlos Mag­ no, 800 d.C. [Império carolíngio]; Otão I, 962 d.C. [Sacro Impé­ rio Romano-Germânico]), surge a ideia de que o antigo Império Romano revivescera, sendo os seus atributos políticos, nomea­ damente a universalidade do seu poder político, transferidos para os novos imperadores (translatio imperii). Para mais, o Im­ pério aparecia como uma criação providencial ("qui est a Deo", que deriva de Deus, dirá o jurista Baldo de Ubaldis, [século XIV]), destinada a ser o suporte político (o gládio temporal) da Igreja, correspondendo a universalidade do Império à catoliciâade (i.e., carácter ecuménico ou universal) da Igreja. Os resíduos de direito romano então conhecidos e, sobre­ tudo, os seus principais livros, redescobertos no Norte de Itália no século XII, são então tidos como direito do Império, de voca­ ção universal; logo, como direito comum.U0 ,J0Sobre a form açao e evolução do direito com um , v. C avanna, 1982, 33-75; Clavero, 1979,17-84. 142 António Manuel Hesp No entanto, o território do Império não era um espaço juridicamente vazio. Nos jovens reinos medievais, nas cidades (sobretudo em Itália), nos senhorios e noutras corporações de base pessoal (universidades, corporações religiosas, corporações de artífices) existiam e continuavam em pleno desenvolvimento direitos próprios, fundados em tradições jurídicas romano-vulgares,141 canónicas e germânicas142 ou simplesmente nos estilos locais de normação e de resolução de litígios. Assim, a pretensão de validade universal do direito comum do Império (então identificado ainda apenas com o direito romano) - defendida pelo Imperador e, também, pelos juristas universitários que o ensinavam - não podia deixar de originar tensões. A vigência dos direitos locais foi inicialmente fundada numa pretensa permissão (permissio) ou reconhecimento tácito (tacitus consensus) do imperador.143 Depois, dir-se-á que o rei (ou a cidade) que não reconhece superior é como imperador no seu território (rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator, Azo, Guilherme Durante), com isto se justificando a pretensão das grandes monarquias da Europa ocidental (França, Inglaterra, Sicília, depois, as monarquias ibéricas, como 141 I.e., com origem no direito romano vulgarizado (ou deturpado) em vigor no ocidente da Europa depois do século V (Vulgarrecht). ,42Os direitos das várias "nações" ou tribos germânicas que invadem e percorrem a Europa, entre os séculos III a VIII, eram de natureza consuetudinárias. Mas foram frequentemente coligidos em compilações que imitavam as codificações de constituições imperiais romanas do Baixo Império (séculos IV e V). Chamou-se, mais tarde, a estas compilações "leis dos bárbaros" (leges barbarorum). São exemplo delas as leges visigothorum, dos reinos visitados de França e da Península Ibérica; a lex baiuvariorum, dos bávaros do sul da Alemanha; a lex borgundionum, dos brunidos ou borgonheses do leste da França; a lex salica, dos francos; o Edito de Rotário, dos lombardos, etc. 143 O texto invocado era um dos capítulos da paz de Constância: "Nós, Frederico, Imperador, e o nosso filho Henrique, Rei dos Romanos, concedemo-vos, a vós cidades, lugares e comunidades, os nossos direitos reais e costumes [...] de modo que nessa cidade tenhais tudo como até agora tendes ou tenhais tido [...]" (Liber de pace Constanliae, 2). Cultura jurídica E uropeia Castela e Portugal) a não reconhecerem a supremacia im peri­ al (exemptio imperii, isenção em relação ao Império) nem, con­ sequentemente, a obrigatoriedade política do seu direito. Final­ mente, com base num texto do Digesto - a "lei" om nes populi (D.,1,1,9), que se tornará central para a forma de conceber as relações entre direito comum e direitos próprios, acaba por se reconhecer que os povos têm, naturalmente, a capacidade de estabelecerem o seu próprio direito. Já no século XIV, o jurista Baldo exprim irá de forma acabada este carácter natural do poder normativo dos corpos políticos infra-imperiais - "os po­ vos existem por direito das gentes [i.e., natural] e o seu gover­ no tem origem no direito das gentes; como o governo não pode existir sem leis e estatutos [i.e., leis particulares], o próprio facto de um povo existir tem como consequência que existe um go­ verno nele mesmo, tal como o animal se rege pelo seu próprio espírito e alm a". A vigência do direito comum tem, assim, que se com pa­ tibilizar com a vigência de todas estas ordens jurídicas reais, municipais, corporativas ou mesmo familiares. Esta compatibilização não pode ocorrer senão por uma forma. Considerar que, no seu domínio particular de aplicação, os direitos pró­ prios têm a prim azia sobre o direito comum, ficando este a valer, não apenas como direito subsidiário, mas também como direito modelo, baseado nos valores mais permanentes e gerais da razão humana (ratio scripta, ratio iuris), dotado por isso de uma força expansiva que o tornava aplicável a todas as situa­ ções não previstas nos direitos particulares e, ao mesmo tem­ po, o tornava num critério, tanto para julgar da razoabilidade das soluções jurídicas nestes contidos, como para reduzir as soluçãoes, variegadas e dispersas dos direitos locia, a uma or­ dem "racional".. A partir do século XIII, primeiro em Itália e, depois, um pouco por toda a parte, o direito romano passa a estar integra­ do no sistema de fontes de direito da maior parte dos reinos eu­ ropeus, mesmos naqueles que não reconheciam a supremacia do imperador, embora, nestes casos, apenas quando se verificasse 144 António M anuel Hespanha nao estar a matéria em causa regulamentada pelo direito local.144 O mesmo aconteceu na Alemanha, onde a recepção foi mais tar­ dia (séculos XV/XVI). Esta recepção do direito romano nos direitos dos reinos europeus pode ser explicada a partir de várias circunstâncias. Na perspectiva de uma história "social" do direito, costu­ ma dizer-se que a recepção do direito romano estava de acordo com as formas de vida económica em desenvolvimento na Eu­ ropa de então. Os séculos da recepção (XIII-XVI) são, de facto, os do desenvolvimento inicial da economia mercantil e mone­ tária europeia.145 A este novo tipo de relações económicas seri­ am necessárias três coisas no plano jurídico - um direito estável, que garantisse a segurança jurídica e institucional necessária à previsão e ao cálculo mercantil, um direito único, que possibilitasse o estabelecimento de um comércio inter-europeu, e um direito individualista, que fornecesse uma base jurídica adequada à ac­ tividade do empresário, livre das limitações comunitaristas que os ordenamentos jurídicos medievais tinham herdado do direi­ to germânico. O direito romano constituiria, precisamente, um ordenamento jurídico dotado de todas estas características: a sua abstracção (i.e., o facto de as situações visadas pelas normas es­ tarem nelas descritas através de formas muito estilizadas e, por­ tanto, gerais) opor-se-ia ao casuísmo dos direitos da Alta Idade Média; depois, era aceite como direito subsidiário comum a to­ das as praças comerciais europeias, constituindo uma língua fran­ 1+1 As questões jurídicas deviam , portanto, ser resolvidas "secu n d um formam statuti, ubi sunt statuti, et statutis deficientibus, secundum legus romanae" (Es­ tatutos de N ovara, 1227). Em Castela, as Siete Partidas de Afonso X, obra doutrinal de forte influência rom anista, adquirem , em 1348, a força de di­ reito subsidiário em C astela, havendo notícia da sua aplicação em Portu­ gal (v. M erêa, 1 9 2 5 ,1 2 4 ). Em Portugal, um a lei de D. João I (1426) põe em vigor um a parte do C ódigo de Justiniano, com a correspondente glosa de Acúrsio e com entário de Bártolo, em bora a validade geral - se bem que subsidiária - do direito justinianeu só venha a ser consagrada nas Ordena­ ções Afonsinas (1447), con sagração ratificada, m ais tarde, nas Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1603). w5Cf., breviter, Ellul, 1956, vol. II, 207 ss. e 263 ss. Cultura Jurídica Europeia 145 ca de todos os mercadores, usada desde as cidades da Hansa, nas costas europeias do Báltico e do Mar do Norte, até às da faixa mediterrânica. Por último, os grandes princípios do sistema jusromanista coincidiriam, no fundam ental, com á visão capi­ talista das relações mercantis - liberdade de acção negociai, ga­ rantida pelo princípio da autonomia da vontade;146 possibilida­ de de associações maleáveis e funcionais, facultada pelas figu­ ras romanísticas da personalidade jurídica ou colectiva (universitas, corpora, etc.); extensão ilimitada do poder de lançar os bens e capitais no giro mercantil, facultada por um direito de propri­ edade que desconhecia quaisquer limitações sociais ou morais ao uso das coisas.147 Não parece, em todo o caso, que se deva insistir muito nes­ tes tópicos. Na verdade, o direito romano nem se caracterizava (tal como o direito comum), como veremos, pelo seu carácter abstracto; nem era ele que garantia a comunicação jurídica en­ tre as grandes praças comerciais europeias;148 nem, finalmente, o direito romano conseguira fazer inverter o sentido anti-indi­ vidualista dos direitos medievais europeus, antes servindo bem o seu reforço. As causas são possivelmente de buscar noutros planos. Por um lado, a já referida restauração do Império ociden­ tal, no século IX, gerara a ideia - assim expressa pelo bispo Agobardo de Lion - de que “ut sub uno piissimo rege una lege omnes regerentur" (como os súbditos vivem sob a autoridade de um piissimo rei, devem reger-se todos pela mesma lei), ou seja, de que a unidade política e até religiosa do Império exigia a sua unidade jurídica.149 E esta não podia ser construída senão sobre o direito do Império por excelência, o Império Romano. 146O u rlia c,1 9 5 7 ,9 7 ss. 147Sobre a inadequação do direito m edieval ao individualismo e "am oralism o" da econom ia capitalista, v. Villey, 1 9 6 1 ,106-107. 148Nas matérias comerciais, o direito com um ente usado, a título principal ou a título subsidiário (lex mercatoria) era, mais do que o direito romano (lex Rhodia), o direito de algumas praças comerciais europeias mais importantes (v.g., o Livro do Consulado do Mar, de Barcelona, ou os Costumes de Olerorí). 149Calasso, 1954,152. 146 António Manuel Hesp Por outro lado, onde a autoridade do direito romano não pudesse provir da autoridade do imperador - por lhe não ser devida vassalagem - aquele continuava a impor-se em virtude da superior perfeição que lhe era atribuída. Realmente., as fontes do direito romano eram muito mais completas e sofisticadas do que as dos direitos germânicos alto-medievais ou dos direitos locais. Com a sua fina e riquíssima casuística, cobria a generalidade das situações. Tinha, além disso, sido objecto de uma elaboração doutrinal. As suas soluções apareciam "explicadas" e "justificadas" pelos juristas. Estes tinham, por outro lado, elaborado uma série de argumentos gerais, como a razão do direito (ratio iuris), a equidade (aequitas),150 a utilidade (utilitas), que constituíam como que linhas de orientação do saber jurídico, permitindo dar coerência às várias soluções casuísticas e encontrar outras novas. Por tudo isto, o direito romano, respondia - directamente ou mediante interpretação extensiva - à generalidade das questões; mas, além disso, respondia-lhes de forma razoável e convincente. Devido a esta perfeição ou racionalidade, o direito romano podia valer não apenas em virtude da submissão política (ratione imperii, em razão do império), mas também pela aceitação (voluntária) da sua razoabilidade (império rationis, por imperativo da razão). Esta crença na perfeição do direito romano era, para mais, ainda potenciada pelo empenhamento dos juristas letrados, formados no saber jurídico universitário baseado no direito romano.151 Que, naturalmente, divulgavam nos círculos mais elevados do poder (imperial, papal, real, citadino) a excelência das fontes jurídicas com que trabalhavam. O direito romano, ao lado da filosofia grega, das belas letras clássicas e da medicina gre-co-romana, integrava assim um modelo intelectual que os círculos cultos europeus, mesmo antes do Renascimento, nunca deixaram de venerar. 150 Não a ruda aequitas (equidade rude) do povo comum, mas a equidade extraída das fontes elaboradas do directo (a aequitas civilis, a equidade "civilizada"). 151 Sobre as universidades ibéricas e a recepção, v. Pérez Martin, 1980. Cultura jurídica Europeia 147 5.í.i.4. AAnfhièn.cia do direito romano na própria legislação local Mas mesmo nos domínios regulados pelo direito local, a uniformização estava em marcha, provocada por uma influência crescente dos princípios romanistas sobre o próprio legislador. Inicialmente, tal influência processava-se através das colec­ tâneas legislativas da Alta Idade Média, v.g., o Breviário de Alarico, uma colectânea de direito romano organizada, no início do século VI, por ordem de um rei visigodo, para a população romanizada do seu reino. Alguns notários utilizavam tam bém conhecimentos rudimentares de direito, obtidos em textos de direito romano vulgar, para redigirem fórmulas negociais. Reu­ nidas em colectâneas, essas fórmulas circularam por toda a Eu­ ropa ocidental. Nas mãos de notários e escrivães, constituíram, entre os séculos V e X, os únicos documentos de uma cultura jurídica escrita, altamente prestigiada num mundo em que do­ minava o analfabetismo.152 Mais tarde, a recepção do direito ro­ mano vai ter como agentes os letrados presentes nas chancela­ rias reais, que utilizam as fórmulas deste direito para fazer va­ ler as pretensões políticas de reis e imperadores. Assim, se rios aparecem fontes de direito régio fortemente imbuídas de prin­ cípios romanistas, sobretudo a partir do século XIII,153 surgem também enfáticas afirmações doutrinais, de juristas formados no direito romano, de que este deve ser o cânone interpretativo da própria legislação dos reinos.154 152Cf., sobre o tema, Padoa-Schiopa, 1 9 9 5 ,1 6 1 ss. 153 V.g., o Liber Augustalis (1231) de Frederico II von Hohenstaufen; a legisla­ ção inglesa de Eduardo I (m eados do século XIII); a lei dinam arquesa de 1241; e, na Península, o Fuero Real (1250-1260) e as Siete Partidas (1265). Em Portugal, esta influência é muito notória na legislação de Afonso 111. M as verificava-se já desde os inícios do século XIII. 154Por exem plo: ao propor um a certa solução para um a questão (em m atéria de apropriação de um bem depositado pelo depositário) em que o direito lom bardo era diferente do direito rom ano, dois juristas do italianos do séc. XII (Guilherme e o seu filho H ugo, defendiam que "a reintegração do d e­ positante se fizesse segundo a lei rom ana, quer as partes sejam rom anas, quer lom bardas, pois esta é geral para todos" (apud Calasso, 44). António M anuel Hespanha 148 5 .2 . A t r a d i ç ã o c a n o n í s t i c a O direito canónico é o direito da Igreja cristã.155 Como instituição, a Igreja sempre teve um direito que, ini­ cialmente, decorreu quase inteiramente da vontade de Deus, revelada nos livros sagrados (Antigo e Novo Testamentos). Nos tempos apostólicos, os cristãos alimentaram a esperança de po­ der resolver, quer os problemas de disciplina interna da Igreja, quer as relações entre os crentes, apenas com base na palavra de Deus, nos ensinamentos de Cristo e nas exigências do amor fraternal. O carácter clandestino do cristianismo nos seus três primeiros séculos tornavam, de resto, praticamente impossível a existência de aparelhos jurídicos e judiciários. A Igreja cura­ va, então, mais da difusaõ da palavra (dos dons "proféticos") do que das matérias organizativas e disciplinares.156 Tudo se modificou, porém, com a outorga da Uberdade de culto pelo imperador Constantino, em 313 d.C. A jurisdição do Papa e dos bispos sobre os fiéis pode, agora, ser abertamente exercida, sendo mesmo fomentada pelo poder imperial, que atri­ bui força de julgamento às decisões episcopais sobre litígios que lhes tivessem sido voluntariamente sujeitos e reserva para a ju­ risdição eclesiástica o julgamento das infracções puramente re­ ligiosas. A partir do século V, o Império - e, depois, os restantes poderes temporais - reconhece à Igreja o privilégio de foro, atri­ buindo-lhe uma jurisdição privativa sobre os clérigos. No sécu­ lo X, a Igreja arroga-se a jurisdição sobre todas as matérias rela­ tivas aos sacramentos, nomeadamente, sobre o casamento. Esta progressiva extensão do domínio jurídico-jurisdicional da Igreja foi ainda facilitada pela derrocada das estruturas políticas, jurídicas e jurisdicionais no Ocidente europeu conse- 155 Sobre o direito canónico, v., em síntese, Gilissen, 1988,133-160; para maio­ res desenvolvim entos, v. Le Bras, 1955; Berm an, 1983. 156Sobre a história da Igreja, realçando estas oposições entre profetismo e dis­ ciplina, v . o fundam ental ü v t o à e H ans K üng, O Cris ticmismo. Essên cio e história[1994], trad. port., Lisboa, Ciclo de Leitores, 2002, nom eadam ente, cap. C.1L. Cultura Jurídica Europeia 149 quente à queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e às invasões germânicas. Cada vez mais prestigiada culturalmente - pelo seu domínio quase exclusivo da cultura escrita - e cada vez mais forte e organizada no plano institucional, a Igreja ten­ de a hegemonizar os mecanismos políticos e jurídicos, impon­ do-se aos reis e tutelando as organizações políticas periféricas (cidades e comunidades locais). Esta expansão institucional da Igreja obriga-a a constituir um corpo normativo muito mais complexo do que o dos primei­ ros tempos, pois o conteúdo dos Livros Sagrados já não pode regular uma sociedade com problemas e cultura diferentes dos da sociedade hebraica dos tempos bíblicos ou mesmo da comu­ nidade judaico-romana dos tempos de Cristo. Uma das fontes desta nova regulação são os decretos dos concílios, ecuménicos, regionais, provinciais ou diocesanos, as­ sembleias dos bispos de toda a cristandade ou de uma região, província ou diocese particulares, respectivamente. Em cada diocese, podem ainda ser promulgados constituições ou estatu­ tos diocesanos, aprovados pelos sínodos (assembleias de ecle­ siásticos) locais. Outra fonte do direito canónico é constituída pelas deterr minações papais. De facto, embora inicialmente o poder norma­ tivo da Igreja estivesse atribuído aos órgãos colectivos que eram os concílios e o Papa apenas interviesse para esclarecer ou apli­ car concretamente as normas conciliares, o papado - socorrendo-se frequentemente da imagem, paralela, do Imperador e das prerrogativas deste segundo o direito romano - foi, progressi­ vamente, aumentando a sua capacidade de edição do direito, emitindo decretais ou constituições pontifícias. De acordo com uma tipologia, que tem tanto a ver com as temáticas como com as suas finalidades, as constituições podem designar-se por encíclicas, bulas ou breves. Este crescente poder legislativo dos Papas - e a inerente capacidade para derrogar o direito tradicional - consti­ tui, por sua vez, um modelo para os monarcas medievais e uma fonte de legitimação da sua reivindicação de inovar, por via le­ gislativa, os ordenamentos jurídicos dos reinos. 150 António Manuel Hesif A partir de certa altura, este novo direito escrito da Igreja passa a constituir uma mole normativa apreciável, a necessitar de compilação e de concatenação. Isso é feito, por iniciativa privada, durante os séculos VI a VIII, destacando-se delas uma colecção feita no reino visigótico da Hispania . No século XII, um monge professor de teologia em Bolonha, Graciano, elabora uma compilação que se iria impor a todas as anteriores e permanecer como um grande repositório de direito canónico praticamente até à actualidade - a Concordantia discordantium canonum [concórdia dos cânones discordantes, c. 1140], mais conhecida por Deeretum Gratiani [Decreto de Graciano]. Aí reúne cerca de 4000 textos de relevância jurídica, desde passos de Padres da Igreja até cânones conciliares, organizados por matérias e brevemente comentados ou apenas sintetizados (num dictum)}57 Com o contínuo desenvolvimento do direito da Igreja, o Decreto foise desactualizando, tornando necessárias compilações complementares. Em 1234, Gregório IX encarrega o dominicano espanhol Raimundo dè Penhaforte, também professor em Bolonha, de completar a compilação de Graciano. O resultado foram as Decretales extra Decretum Gratiani vacantes [Decretais que extravasam o Decreto de Graciano], divididas em cinco livros.158 Em 1298, Bonifácio VIII completa-as com mais um livro, o chamado Liber sextum (ou simplesmente Sextum). Clemente V acrescentalhes as Clementinas (1314). João XXII, as Extravagantes de João XXII (1324). E, nos finais do século XV, aparecem ainda uma outra colecção oficial, as Extravagantes comuns. Ao conjunto destas colecções passou a chamar-se Corpus iuris canonici, à semelhança do nome dado à compilação justinianeia de direito civil.159 107 Graciano é contemporâneo dos primeiros glosadores (v. infra, 146); os seus dieta correspondem às glosas ao Corpus iuris civilis. 158 Esta sistematização tomou-se num modelo para compilações jurídicas seguintes. E, por exemplo, a utilizada nas Ordenações portuguesas. 1=9 O Corpus iuris canonici manteve-se em vigor até 1917, data de publicação do Codex iuris canonici [Código de direito canónico]. Sistematização e m étodo de citação do Corpus Iuris Canonici 1 Decretum (c. 1140). • divisão: I a parte - 101 distinctiones; 2a parte - 36 causae, divididas em quaestiones; 3a parte (De consecratione) 5 distinctiones. ■D e c r e ta is • e ca p ítu lo s. ® cita ç ã o : c. [n B d o ca p ítu lo ], X (ou in X ), n Qd o tit. ou su a s p rim e ira s p a la v ra s , e x .: c. 1, X , V , 7 (= c. 1, in X , • citação: I a parte - c. [n° do cânone], d. [nQda dist.] ex.: c. 13, d. XXXVIII 2a parte - c. [n° do cânone], C. [nQda causa], q. [n° da quaestio] ex.: c. 8, C. XII, q. 2 3a parte (De consecratione ) e 2a parte, Tractatus De poenitentia. - c. [na do cânone], d. [n° da dist.]. De cons. (ou De poen.). ex.: c. 46, d. 1, De poen. D e h a eretiá s) Sextum (= Liber sextum D ecretalium ) (1 2 9 8 ) - 5 liv ro s. • • cita çã o : ig u a l a o a n te rio r, se n d o a sig la V I o u in V I Clem entinas (Clem entis V constitutiones) (1 3 1 4 ) - 5 liv ro s. • d iv id id a s e m títu los e cap ítu lo s. • distinctiones ou quaestiones é substituída pela das suas primeiras palavras, o que d iv id id o e m títu los e cap ítu lo s. • citação antiga: a indicação dos números dos cânones, (1 2 3 4 ) - 5 liv ro s. d iv id id a s e m títu lo s cita çã o : ig u a l ao an terio r, se n d o a sigla d e m . o u in d e m . Extravagantes de João XXII obriga a recorrer a índices (1 2 3 4 ). que acompanham as edições. • d iv id id a s e m títu lo s; sig la Extrav. Iohann. X X II Extravagantes comuns (séc. XV). • divididas em títulos; sigla - Extrav. Comm. 152 António M anuel Hespanha 5.2.1. O lugar do direito canónico no seio do direito com um O direito comum foi basicamente um direito romano-canónico, apesar de nele estarem também inseridos institutos dos direitos tradicionais dos povos europeus (cf. infra,5.3.2. ). No seu seio, o direito canónico desempenhou um papel menos impor­ tante do que o direito romano.160 Em todo o caso, a sua influên­ cia foi determinante em alguns pontos, que nem sempre se re­ lacionavam com a religião ou com a fé. Na verdade, o direito canónico representava, não apenas o direito da Igreja e das coi­ sas sagradas, mas ainda um direito mais recente do que o direi­ to romano, uma espécie de direito romano reformado. Assim, é notória a influência canonística: (i) em matéria de relações pessoais entre os cônjuges; (ii) na valorização da von­ tade (em vez da forma) no direito dos contratos; (iii) na desformalização do direito sobre as coisas (valorização da posse em relação à propriedade); (iv) na valorização da sucessão testamentária e na desformalização do testamento; (v) na exigência de boa fé para a prescrição;161 (vi) na valorização das soluções de equi­ dade (aequitas) contra as decisões de direito estrito (stricti iuris, rigor iuris, ápices iuris) (cf., infra 5.3.8.2) (vii) em matéria proces­ sual, na promoção da composição amigável e da arbitragem; (viii) em matéria processual penal, no estabelecimento do pro­ cesso inquisitório, com uma maior preocupação da averiguação da verdade material.162 160Sobre o direito canónico medieval, v., por último, Berm an, 1983, maxime 199 ss. ,£>i A fonte são duas decretais, uma de Alexandre III, outra de Inocêncio III, Ajello, 1976b, 333. '62Fundanvse na aequilas\ a interpretação não literal da lei (u.g., a partir da ra­ tio legis), a exigência da culpa nos delitos, a valorização da boa fé e da in­ tenção das partes no direito negociai, a adm issão do carácter verdadeira­ mente jurídico e accionável dos nuda pacta (i.e., dos contratos informais). Cultura Jurídica Europeia 153 5 .2 .2 .0 direito canónico como limite de validade dos direitos temporais A teoria canónica das fontes de direito proclamava a subor­ dinação dos direitos humanos (secular e eclesiástico) ao direito divino, revelado pelas Escrituras ou pela Tradição.163 Estes direi­ tos humanos eram considerados como dois modos complemen­ tares de realizar uma ordem querida por Deus. Todavia, este precário equilíbrio entre os dois direitos ter­ renos rompeu-se com as grandes lutas que opuseram o Impera­ dor e o Papa (séculos X a XII),164 o primeiro tentando estabele­ cer uma tutela sobre a Igreja (reclamando, nomeadamente, a investidura e a deposição dos bispos), o segundo procurando salvaguardar o autogoverno eclesiástico. Na teoria canónica das fontes de direito, esta ruptura não podia deixar de ser no senti­ do de estabelecer a supremacia do direito canónico que, pela sua própria origem e destino, estaria mais próximo do direito divi­ no. E, assim, o Papa Gregório VII estabelece, num conjunto de proposições normativas (Dictatus Papae, 1075), o primado do Papa (da Igreja de Roma) sobre os bispos;165a autonomia da Igre­ ja e dos clérigos face aos poderes temporais; bem como, por úl­ timo, a sujeição destes à tutela de Roma. Estes dois últimos pon­ tos eram, do ponto de vista das relações entre os direitos canó­ nico e civil, os mais importantes. A autonomia da Igreja e do clero 163A "trad ição " é constituída pelo conjunto de costum es ou de escritos dos Padres da Igreja que vão interpretando a verd ad e revelada nas Sagradas Escrituras. lwO auge desta luta é constituído pela contenda entre o Im perador Henrique IV (1056-1106) e o Papa Gregório VII (1073-1085), a propósito das investi­ duras, que termina pela submissão, embora apenas tem porária, do Impe­ rador. 165Dictatus Pape: "Só o Pontífice Romano se díz, por direito, universal" (c. 2); "Só ele pode depor bispos e readm iti-los" (c. 3); "O legado do Papa presi­ de a todos os bispos nos concílios"; "A s causas mais importantes de qual­ quer igreja devem ser trazidas à Sede Apostólica" (c. 21); "A Igreja Roma­ na nunca errou" (c. 22); "N ão é católico aquele que não estiver de acordo com a Igreja R om ana" (c. 23). 154 António Manuel Hespa em face dos poderes temporais, se excluía a nomeação e deposição dos bispos e padres pelos leigos (reis, senhores ou simples particulares), fundava a isenção dos clérigos em relação ao foro temporal e a consequente reclamação de um "foro especial" ou "privilégio de foro" para os eclesiásticos. A sujeição dos poderes temporais ao poder eclesiástico atribuía ao Papa o poder de depor os reis ou de libertar os súbditos do dever de lhes obedeceram.166 Em todo o caso, esta supremacia do direito canônico - típica da doutrina jurídica de Santo Agostinho (século VII) e retomada, agora, pelos papas Nicolau II, Gregório VII e Urbano II e pelos primeiros canonistas, nos séculos XI e XII - é posta em causa no século XIII, quando a teologia começa a insistir na ideia de que, na esfera temporal, se prosseguem fins próprios, que não têm a ver a salvação post-mortem, mas apenas com a boa ordem terrena. Começa então a ser claro que a intervenção correctiva do direito canónico apenas deveria verificar-se quando a regulamentação temporal pusesse em causa aspectos decisivos da ordem sobrenatural, tal como a intervenção de Deus (pelo milagre) apenas tinha lugar quando, de todo em todo, o funcionamento da ordem da natureza comprometia o plano da salvação.167 Na sequência disto, canonistas e civilistas168 procedem a uma elaboração mais cuidada da questão e - embora afirmando a independência mútua dos ordenamentos civil e canónico ("nec papa in temporalibus, nec imperator in spiritualibus se debeant immis166 Dictatus Pape: "Os príncipes só devem beijar os pés ao Papa" (c. 9); "É lícito ao Papa depor os imperadores" (c. 12); "O Papa pode libertar os súbditos dos injustos de lhes obedecerem" (c. 27). 167 Sobre isto, v. Villey, 1968,109 ss. 168 As primeiras gerações de civilistas (ou legistas) mostram um relativo desprezo em relação ao direito canónico, que careceria de um contínuo recurso ao direito romano ("legum suffragio implorare"; mais duros eram, ainda, em relação aos modestos ordenamentos comunais, que Odofredo classificava como "escritos por burros" (In Dig. Vet.J, 3, de leg. etsenatusc. (apud Calasso, 1970, 59) Cultura Jurídica Europeia 155 cere" [nem o Papa se deve imiscuir nas matérias temporais, nem o Imperador nas espirituais], afirma o jurista Acúrsio, cf. infra, 5.5.1.) - reconhecem que, nos casos em que entre eles surgisse um conflito grave, a última palavra pertencia ao ordenamento da Igreja. Assim, o direito canónico apenas vigoraria, como padrão superior, nos casos em que da aplicação das fontes jurídicas terrenas resultasse pecado ("critério do pecado", inicialmente formulado por Bártolo,169 um destacado jurista do século XIV [cf. infra, 5.5.2. ]; cf., em Portugal, Ord.fil., III, 64). Tudo isto, e ainda a ideia muitas vezes afirmada de que entre o direito dos reis e o direito da Igreja deve existir uma "specialis coniunctio" (especial parentesco) - pois, aos olhos dos teólogos e dos juristas cristãos da Idade Média, o Império e a Igreja "dicuntur fraternizare" (diz-se que são irmãos, Bártolo) - constituíam factores muito poderosos no sentido da uniformização dos direitos locais, à sombra de um modelo único que, sob este aspecto ultimamente focado, era mais o direito canónico do que o romano (ou, dado que o direito romano fornecia a ossatura do canónico, continuava a ser o direito romano através do modelo do canónico). 5.2.3. O direito canónico na história do direito português A evolução do direito canónico em Portugal corresponde, nos seus traços gerais, à europeia. Há algumas notas a destacar. 169Bártolo: "aut loquimur in spiritualibus et pertinentibus ad fidem etstamus canoni...; aut loquimur in temporalibus, et tunc in terris subiectis Ecclesi-ae, etsine dubio stamus decretalibus; aut in terra subiectis Império, et tunc, autservare legem est inducere peccatum... et tune stamus canonibus...; aut non inducit peccatum...et tunc stamus legi..." [ou nos referimos a coisas espirituais e pertencentes à fé e observamos os cânones ou falamos de coisas temporais e estamos em terras sujeitas ao poder temporal da Igreja, e então observamos sem dúvida as decretais, ou estamos em terras sujeitas ao Império e então, se observar as suas leis induzir em pecado, observamos os cânones; ou, se não induzir, observamos a lei] (Super Cod., 1, 2 de sacr. eccles., 1 priv.). Sobre isto, bem como sobre a restante matéria desta alínea, Calasso, 1954,177-9 e 487-90. 156 António M anuel H espanha O beneplácito régio foi introduzido em Portugal pouco antes de 1361, data em que os prelados já se queixam dele em Cortes (Eivas, 1361, doc. em J. Gilissen, Introdução ..., doc. 8, pg. 156), embora D. Pedro o mantenha, tal como fará o seu filho, nas cortes de Santarém de 1427 (v. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 9, pg. 156), e D. Afonso V. (Ord. a f , II, 12: onde se especifi­ cam os casos normais de denegação - falsidade, sub repção, ofen­ sa da jurisdição e direitos do rei). Abolido em 1487, foi, na prá­ tica, restabelecido em 1495 e sucessivamente estendido no seu âmbito (cf. Ord. fil., II, 14 e 15; Const. 1822, art. 123, Xll; Carta const., art. 75, § 14); entre os muitos documentos pontifícios a que foi negado (lista em Bemardino Joaquim da Silva Carneiro, Ele­ mentos de direito eclesiástico portuguez, Coimbra 1896, 25), conta se a célebre "Bula da ceia" (In coena Domini, na ceia do Senhor). Bibliografia: Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia, I, Lugduni, 1673, 363; Manuel Chaves e Castro, O beneplácito ré­ gio em Portugal, Coimbra 1885; Marquês de S. Vicente, Conside­ rações relativas ao beneplácito, Rio de Janeiro 1873; art. "Beneplá­ cito régio" no Dicionário de história de Portugal (dir. Joel Serrão), Porto, 1963. Quanto aos privilégios do foro. Embora em Portugal te­ nham sido recebidos os respectivos princípios do direito canó­ nico, desde cedo o poder temporal reclamou para si a compe­ tência jurisdicional sobre eclesiásticos, em certas circunstânci­ as. Uma lei dos meados do séc. XIV, transcrita no Livro de leis e posturas (pg. 380), bem como os artigos das concordatas dos tits. 1 a 7 do Liv. II das Ord af. são significativos da política real de restrição da jurisdição da Igreja. As Ord. fil., II, 1 fazem uma lis­ tagem extensa destes casos (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 10, pg. 157). Os princípios gerais na matéria são os seguin­ tes: quanto à sujeição (ou não) ao direito temporal: completa isenção nas matérias puramente espirituais e eclesiásticas, sub­ missão nas temporais; quanto ao foro competente: isenção com­ pleta nas matérias temporais, mesmo nas patrimoniais e penais. As excepções, neste último plano, são as constantes do citado texto das Ord. fil. (II, 1). É só no século XIX que a Igreja perde o Cultura Jurídica Europeia 157 principal da sua jurisdição: os privilégios de foro são abolidos pela Const. 1822, art. 9 e pela Carta Const., art. 145, § 15 e 16; os casos m ixtifori são abolidos pelo art. 177 do dec. 24, de 16/3/ 1832 e, depois, pela Reforma Judiciária, parte II, art. 70. Bibliogra­ fia: Baptista Fragoso, Regimen reipublicae christianae, Colonia Allobrogum, 1737, pt. 1 ,1. II, d. IV; Gabriel Pereira de Castro. Tractatus..., cit.; Pascoal de Melo Freire, Institutiones iuris civilis lusitani, Conimbricae, 18 1 8 ,1, tit. V (maxime, § 14 e 15); Alves de Sá, O catholicismo e as nações catholicas - das liberdades da Igreja portu­ guesa, Coimbra, 1881; Bernardino Joaquim da Silva Carneiro, Elementos de direito eclesiástico ..., cit. Quanto às relações entre o direito civil e o direito canóni­ co, matéria abundantemente tratada pela historiografia, v, por último, Guilherme Braga da Cruz, "O direito subsidiário na his­ tória do direito português", Rev. port. hist. 14 (1973); António Manuel Hespanha, História das instituições. Épocas medieval e mo­ derna, Lisboa, 1982; Portugal moderno. Político e institucional, Lis­ boa, Universidade Aberta, 1994; Nuno Espinosa Gomes da Sil­ va, História do direito português, cit.; Martim de Albuquerque e Ruy de Albuquerque, História do direito português, Lisboa, 1984/ 5. Sobre as relações entre direito temporal e direito canónico depois do concílio de Trento, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lo­ bão), Notas [...] a Melo, ed. util, Lisboa, 1865,1,132; Marcelo Cae­ tano, "Recepção e execução dos decretos do Concílio de Trento em Portugal", Rev. Fac. Dir. Lisboa, 19 (1965). As principais fon­ tes do direito eclesiástico estão reunidas nas citadas obras de Pereira de Castro e de Silva Carneiro e ainda em Joaquim dos Santos Abranches, Bullae et breviae pro Lusitaniae..., Ulissipone, 1856, 2 tom.; Fontes do direito ecclesiastico portuguez. Summa do bullario portuguez Coimbra, 1895; António Garcia Ribeiro de Vas­ concelos, "Nova chronologia das constituições diocesanas por­ tuguesas até hoje impressas", O Instituto 58 (1911) 491,505; Ave­ lino de Jesus Costa e Maria Alegria Fernandes, Bulário portugu­ ês: Inocêncio III: 1198-1216, Coimbra, INIC, 1989. Sobre a canonística portuguesa medieval, António Garcia y Garcia, Estúdios sobre la canonísitica portuguesa medieval, Madrid, Fundación Uni- 158 António Manuel Hespanhol versitaria Espanola, 1976 (maxime, "Canonistas portugueses medievales", 95-134). 5.2.4. Direito recebido e direito tradicional A recepção do direito romano não foi um facto trivial. Pelo contrário. Por muito forte que tivesse sido a romanização dos direitos dos povos europeus durante a Alta Idade Média, os costumes gerais ou locais dos vários povos europeus (iura própria) contrastavam fortemente, em muitos domínios, com o direito romano. Num breve conspecto, podemos identificar algumas áreas normativas em que este contraste se verificava.170 No domínio do direito das pessoas, o direito europeu alto-medieval caracterizava-se pela diferenciação dos estatutos jurídicos pessoais, típica daquilo a que se tem chamado uma sociedade de estados (ständische Gesellschaft). As pessoas apareciam repartidas em "estados", uns ligados à dignidade (nobres vs. vilãos), outros à religião (clérigos vs. leigos), outros às profissões (militares, estudantes, lavradores, profissões vis), outros ao sexo e idade (homens, mulheres, anciãos). Por outro lado, entre as pessoas podiam estabelecer-se laços de dependência que limitavam o estatuto jurídico dos subordinados (senhores, vassalos; marido, mulher). Em contrapartida, o direito romano, embora conhecesse o instituto da escravidão e diferenciasse os estrangeiros dos cidadãos, era basicamente igualitário quanto aos estatuto destes últimos, mesmo no que diz respeito ao tratamento relativo de homens e mulheres. No domínio dos direitos patrimoniais, os direitos locais europeus caracterizavam-se por estabelecerem fortes restrições à disponibilidade do património, nomeadamente da terra (bens de raiz). Este encontrava-se frequentemente vinculado a uma família, não podendo ser dela alienado inter vivos sem o consen- Cultura Jurídica Europeia 159 timento dos parentes e estando reservado para estes na altura da sucessão por morte do seu detentor. Frequentemente, eram estabelecidas, por contrato (v.g., por convenção antenupcial, contrato de enfiteuse, etc.) ou por testamento normas quanto à sucessão dos bens (fideicomissos, morgados), vinculando-os a uma determinada linha sucessória. Nestes casos, o proprietário acabava por ser apenas um administrador vitalício de uma mas­ sa de bens que devia manter íntegra para um sucessor prefixa­ do. Mas um bem podia ainda estar sujeito a pessoas diferentes que dele usufruíam rendas ou outras utilidades (cultivo, caça, apanha de lenha, pastoreio). Como todos tinham um certo po­ der de disposição sobre a mesma coisa, esta estava sob o domí­ nio de vários (o domínio estava "dividido", a coisa "servia" vá­ rios) e não podia ser usufruída ou alienada plenamente por nin­ guém. A liberdade contratual e testamentária de bens imóveis estava, por isso, fortemente limitada. Já o direito romano atri­ buía ao proprietário uma capacidade de plena disposição, sen­ do o dominium definido como o direito de usar e de abusar da coisa (ius utendi acabutendi). O direito de propriedade presumiase não dividido e liberto de quaisquer servidões a favor de ou­ trem ou da colectividade. A liberdade de testar era a regra e a ordem sucessória, na falta de testamento, estava estabelecida em geral e não dependia da natureza dos bens. Ainda neste domínio das relações patrimoniais, o direito medieval conhecia uma íntima relação entre o domínio sobre as coisas e o domínio político sobre as pessoas. Referimo-nos àquilo a que se costuma chamar a "patrimonialização dos direitos polí­ ticos". Os direitos políticos (Hoheitsrechten, direitos de comando, jurisdicionais, fiscais) são concebidos como atribuições patrimo­ niais dos senhores, incorporadas nos seu património e susceptí­ veis de serem objecto de negócios jurídicos (compra e vendas, doações, cessões precárias, arrendamentos, penhores). Em con­ trapartida, a titularidade de direitos sobre a terra incorpora, fre­ quentemente, atribuições de natureza política. Esta mistura en­ tre direitos sobre o solo e direitos políticos é tal que se dizia que não existia propriedade que não fosse senhorio, pelo que toda a António M anuel Hespanha 160 terra tinha um senhor (nulle terre sans seigneur). O direito roma­ no, pelo contrário, mantinha uma distinção nítida entre as prer­ rogativas públicas (do Senado e do Povo Romano [SPQR, Senatus PopulusQue Romanus], do Imperador) e os direitos dos par­ ticulares sobre os seus bens, não concebendo que as primeiras pudessem ser objecto de negócios jurídicos de direito privado. A estas divergências normativas entre o direito romano e os direitos locais, soma-se ainda uma outra dificuldade na re­ cepção do primeiro. Ao contrário do direito actual, sistemático e codificado, constituindo, por isso, um package normativo que pode ser transmitido e recebido globalmente,171 o direito roma­ no consistia numa colecção de soluções casuísticas, fracamente estruturadas entre si. A sua recepção pressupunha, por isso, uma incorporação atomizada, caso a caso, não decidível ou regulá­ vel por um acto do poder político. Só um paulatino trabalho doutrinal e jurisprudencial podia estabelecer, casuisticamente, as soluções do direito romano, criando entre os homens de di­ reito e, em geral, entre os destinatários do direito, um consenso acerca da bondade de cada uma delas. Os próprios glosadores, embora basicamente romanistas, tinham em conta o vizinho di­ reito lombardo, que algumas constituições imperiais tentavam definir - muito convenientemente - como "ius commune" ,172 Em todo o caso, e como já se disse, esta busca de equilíbrios casuísticos entre o direito tradicional e o direito recebido (o romano e o canónico) não deixava de ser bastante limitada por uma crescente tendência para a unificação jurídica, sob a égide dos direitos cultos, que aspiravam a uma validade universal.173 5 .3 . Resultado: uma ordem jurídica pluralista Dos parágrafos anteriores já resulta que, na sociedade eu­ ropeia medieval, conviviam diversas ordens jurídicas - o direi171 Por exem plo, pela adopção por via legislativa de u m código estrangeiro, com o o que aconteceu co m o C ódigo Civil G erm ânico de 1 9 0 0 no Japão. 172Cf. Calasso, 1 9 7 0 ,5 1 ss.. 171 Cf. C alasso, 1 9 7 0 ,4 0 -4 9 ). Cultura Jurídica Europeia 161 to comum temporal (basicamente identificável com o direito romano, embora reinterpretado), o direito canónico (direito co­ mum em matérias espirituais) e os direitos próprios.174 A esta situação de coexistência de ordens jurídicas diver­ sas no seio do mesmo ordenamento jurídico chama-se pluralismo jurídico.175 Por pluralismo jurídico quer-se, portanto, significar a situa­ ção em que distintos complexos de normas, com legitimidades e conteúdos distintos, coexistem no mesmo espaço social. Tal situ­ ação difere da actual - pelo menos tal como ela é encarada pelo direito oficial -, em que uma ordem jurídica, a estadual, pretende o monopólio da definição de todo o direito, tendo quaisquer ou­ tras fontes jurídicas (v.g., o costume ou a jurisprudência) uma le­ gitimidade (e, logo, uma vigência) apenas derivada, ou seja, de­ corrente de uma determinação da ordem jurídica estadual.176 Para a visão medieval do mundo, a ordem era - como se disse - um dóm originário de Deus. S. Tomás de Aquino, que exerceu enorme influência, antes e depois do Concílio de Trento (1545-1563), e mesmo nos países reformados - tratou detida­ mente o tema da ordem. A ordem mantinha-se, antes de mais, pela existência dessas forças íntimas que atraem as coisas umas para as outras, de acordo com as suas simpatias naturais (amo­ res, affectiones) transformando a criação numa rede gigantesca dé simbioses ou empatias. Numa quaestio sobre o amor (Sum. theol, lla.llae, q. 26, a. 3, resp), S. Tomás define o amor como o (plural, diversa) afecto das coisas pela ordem do todo. Sublinha que: (i) Estes afectos não são monóotonos, mas decorrentes da 174 Note-se que, também no seio do direito canónico se podem distinguir di­ reito com um (as norm as em anadas de uma jurisdição geral, com o o Papa e os concílios ecuménicos) e direitos próprios (em anados de autoridades ecle­ siásticas regionais com o os concílios regionais, os bispos, etc. 175Sobre o tema da arquitectura do ordenam ento jurídico medieval, exem plar­ mente, Grossi, 1995; Costa, 1999. 176A unidade e exclusividade do direito oficial corresponde à unidade e indi­ visibilidade do poder político (soberania), tal com o o concebe o im aginário estadualista. 162 António Manuel Hespanhol diferente natureza de cada coisa, da sua diferente relação, quer com o todo, quer com as outras coisas: e (ii) Exprimem-se através de diferentes níveis de sensibilidade (intelectual, racional, animal ou natural). Esta ideia central de uma ordem global, auto-sustida por impulsos naaturais e plurais constitui a chave para entender o lugar do direito nos mecanismos da regulação do mundo. Explica, desde logo, a proximidade e estreita relação entre mecanismos disciplinares que hoje são vistos como muito distantes (direito, religião, amor e anizade). Uma vez que a Ordem é um acto de amor e que as criaturas estão ligadas umas às outras por afectos, o direito humano (civil) constitui apenas uma forme externa, rude e grosseira, de corrigir défices ocasionais dessa simpatia universal. Para os níveis mais elevados - e menos externos - da ordem, existem mecanismos mais subtis, como a fé ou as virtudes, que disparam sentimentos (de amizade, de liberalidade, de gratidão, de sentido de honra, de vergonha) ordenadores. Num certo sentido, estes macanismos estão ainda mais próximos da justiça, como virtude que "dá a cada um o que é seu" (ius suum cuique tribuit), ou do direio natural, como aquele que a natureza ou Deus ensinaram a cada animal (quod Natura [gl. id est Deus] omnia animalia docuit). E por isto que os tee-ólogos e os juristas definem este conjuntode deveres como quase legais (quasi legali) (cf. Clavero, 1991; Hespanha, 1993c), esbatendo as fronteiras entre os respectivos territórios normativos. Os juristas são os guardiões deste mundo multi-ordenado, autoordenado. O seu papel não é o de criar ou rectificar a ordem. Nem tão pouco o de declarar o justo de uma forma autoritária e dogmática. Mas antes o de sonddear o justo a partir da natureza, tirando partido de todos os recursos (virtus) da sensibilidade humana ((amor, bonitas, intellectus, sensus), numa época em que os métodos intelectuais de encontrar o direito ainda não estavam expurgados de perspectivas trans-racionais.177 177Cf. Hespanha, 1992f, 1997b (v. os ensaios incluídos em Petit, 1997). Cultura ]urídica Europeia A poiesis jurídica não é com eles. Com eles é anotar, inquirir, sentir, crer, lembrar, ruminar e interpretar ordens existentes, in­ teriores e exteriores, acima ou abaixo do humano. É com eles, por outras palavras, levar a cabo uma hermenêutica ilimitada de Deus, dos homens e da natureza. E encontrar vias para transformar os resultados desta hermenêutica em consensos comunitários. 5 .3 .1. Um a constelação de ordens normativas O amor era, como se viu, o principal cimento da ordem do mundo e, também, da ordem das sociedades humanas (cf., su­ pra, 3.2. ). Mais exacto seria, no entanto, falar de amores (philiae), cada um dos quais correspondendo a um tipo de relação (co­ municação, comunhão) social. S. Tomás de Aquino (Summa theologica Secunda secundae, qu. 26) lista um leque vasto de afectos humanos: (i) O amor familiar, surgido da comunicação da fa m ília natural; (ii) O amor filial ou parental, fundado na ngeração; (iii) O am or p o r co-nu trição, p r o m o v id o p o r u m a infância e criação comuns; (iv) O amor por eleição, baseado em empreendimentos co­ muns; (v) O amor por vassalagem, que decorre da insstituição do governo da república; (vi) O amor por con-cidadania, que existe entre os patríci­ os de uma mesma república; (vii) O amor por cannaradagem, que se tece enntre compa­ nheiros d e armas; Todos estes amores criavam obrigações. E a estas ainda se podiam acrescentar as que surgiam da religião (ou seja, do amor para com Deus e, através dele, para com todas as suas criatu­ ras, animais, plantas e inanimados incluídos). Bem como as afei­ ções que Deus imprimiu nas nossas mentes (afectos intelectu­ ais) ou nos nossos desejos (afectos sensitivos).178 178Sobre o relevo da ordem am orosa no direito, cf. Hesparvha (19921), 164 António Manuel H espanha Entre todos estes amores, uma hierarquia existia, à qual S. Tomás dedica justaente esta questão 26a da Secunda secundae da Summa theologica, em que explora o modelo de relações netre os deveres domésticos, de amizade, políticos ou puramente pragmátticos (ou seja, ligados à acção corrente do dia a dia).. Em princípio, a proximidade em relação à fonte da ordem (Deus, natureza) - era um critério decisivo para estabelecer esta hierarquia. A revelação e o direito divinos deveriam, por isso, dispor de um lugar de topo no conjunto das ordens normativas. Seguia se o direito canónico "positivo", dado que era mais ex­ terno e dependente da vontade dos homens. Em alguns casos, como veremos, a ordem divina afastava a ordem humana (v. 5.2.2.), como nos caos em que esta induzisse a pecar.179 Noutros casos, a ordem divina apenas teperava o rigor da ordem civil (como no caso do adequação do direito civil às posições mais maleáveis da aequitas canónica).Finalmente, o direito era sensí­ vel a outros estímulos que vinham de baixo: por exemplo, os juizes criminais tinham que compensar a ferocidade da lei pe­ nal (rigor legis) com a misericórdia (misericórdia).180 Depois do direito divino vinham estas ordens normativas em que a natureza "fala grosso", como a ordem doméstica, par­ cialmente subsumida à anterior ordem divina, devido ao carác­ ter sacramental do casamento. Aqui, as normas decorriam da própria "natureza" (natura, honestas), sendo transcritas para o corpo do direito os comandos contidos no "direito do corpo" (na sexualidade, na feminilidade, na masculinidade): a fraqueza, a indignidade e a maldade das mulheres; a natureza da sexuali­ dade humana (monogâmica, hetero, vaginal: vir cum foemina, recto vaso, recta positio); a natureza da comunidade doméstica (unitária, patriarcal).181 179M esm o aqui, a regra não era absoluta: a prostituição em bora pecado, era perm itida para evitar um a difusão ainda m ais prom íscua e desregulada da sexualidade (coítus uugus). 180Cf. Hespanha, 1988b. m Hespanha, 19% g;, Hespanha, \994e'). Cultura Jurídica Europeia 165 Como a família não era a única instituição natural, outras relações humanas tinham pretensões "naturais" em relação ao direito; mesmo no caso daquelas instituições que a cultura ac­ tual considera como perfeitamente arbitrárias e disponíveis, como os contratos. O conceito cunhado para exprimir estas nor­ mas implícitas e forçosas contidas em certos tipos de relações era o de "natureza dos contratos" (natura contractus) ou de "vestes" dos pactos (vestimenta pacti, \, como que dizendo que, sem cer­ tos atributos formais, os acordos [nús] não podiam valer) (cf. Grossi, 1968; Beneduce, 1990; Violante, 2001). Esta necessidade e possibilidade de transcrever normas de uma ordem na outra torna ve-se possível pela existência de con­ ceitos genéricos que serviam como que de "canais de comuni­ cação" entre elas. Entre a ordem política e o direito, as importa­ ções e expotações faziam através de canais como "utilidade pú­ blica" (publica utilitas), bem comum (bonum communem), poder absoluto ou extraordinário (absoluta vel extraoráinaria potestas), posse de estado {possessio status); direitos adquiridos (iura quaesita), estabilidade das decisões jurídicas (stare decisis), razão ju­ rídica (ratio iuris).182 Como as hierarquias entre as diferentes ordens normativas eram sensíveis ao contexto (case-sensitivé) e os modelos de trans­ ferência (ou transcrição) não eram fixos, o resultado era uma ordem entrecruzada e móvel, cujas particularizações não podi­ am ser antecipadamente previstas. É a isto que se pode chamar a "geometria variável" do direito comum (ius commune).Em vez de um sistema fechado de níveis normativos, cujas relações es­ tavam definidas uma vez por todas (como os sistemas de fontes 182Ou seja, valores políticos eram transform ados em valores jurídicos porque o direito permitia que valores externos fossem recebidos em nome de con­ ceitos genéricos [vazios, indeterm inados], com o "utilidade pública", "bem com um "; ou porque o direito reconhecia com o jurídicos os valores já ad­ mitidos pelos dados da vida social ("posse de estado"); ou ainda porque o direito incorporava os com andos de um a razão natural acerca das relações humanas. 166 António Manuel Hespanhol de direito do legalismo contemporâneo), o direito comum constituía uma cconstelação aberta e flexível de ordens cuja arquitectura só podia ser fixada em face de um caso concreto. Nesta constelação, cada ordem normativa ( com as suas soluções ou seus princípios gerais: insãtuta, dogma ta, rationes) era apenas um tópico heurístico (ou perpsectiva) cuja eficiência (na construção do consenso comunitário) havia de ser posta à prova. Daí que coubesse ao juiz fornecer um solução arbitrada183 em tomo da qual a harmonia pudesse ser enconttrada (interpretatio in dubio est faciendam ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnan tiarn)}M 5.3.2. Direito canónico e direito civil Num plano superior, está o direito canónico que, como direito directamente ligado à autoridade religiosa, pretende um papel de critério último de validação das outras ordens jurídicas, em obediência ao princípio da subordinação do governo terreno aos fins sobrenaturais de salvação individual. Embora, como já vimos, esta superioridade dos cânones não fosse automática, antes se regulando pelo critério do pecado (cf., supra., 5.2) 5.3.3. Direito comum e direitos dos reinos Como "direito geral", vigora o ius commune, constituído por um enorme conjunto de normas tidas como provenientes da razão natural (cf. D., 1,1,9: "Todos os povos, que se governam por leis e costumes, usam de um direito que em parte lhes é próprio e em parte comum a todos os homens. É que aquilo que cada povo para si estabelece em comum como direito é próprio dessa mesma cidade e chama-se direito civil, como que a significar próprio da mesma cidade. Pelo contrário, aquilo que a razão 1M"Arbitrium iudex reünquitur quod in iure definitum non est". 184 Cf. Grossi, 1995, 223-236; infra, 5.Ó.2.3 Cultura Jurídica Europeia 167 natural estabelece entre todos os homens é observado por toda a parte e chama-se direito das gentes [rus gentium], como que a significar o que todas as nações [gentes] usam "). O facto de pro­ virem da razão não garantia a estas normas uma vigência supe­ rior, pois da mesma razão decorria a faculdade de cada cidade ou de cada nação corrigir ou adaptar, em face da sua situação concreta, o princípio estabelecido em geral pela razão. Pois, embora a razão natural tenha em vista aquilo que resulta justo ná generalidade dos casos, a realidade é tão multiforme185que bem se pode conceber que alguma utilidade particular exija a correcção da norma geral (D.,1,2,16: " o direito singular é aquele que foi introduzido pela autoridade do legislador, tendo em vista alguma utilidade particular, contra o teor da razão"). Assim, o direito comum vigoraria apenas para os casos em que um direito particular não o tivesse afastado; ou seja, como direito subsidiário. Mas, sendo fundado na razão, dispunha de uma vigência potencialmente geral. Isto queria dizer que se aplicava a todas as situações não cobertas pelos direitos próprios ou particulares. Mesmo estes, não deixavam de sofrer as consequências da sua contradição com o direito comum. Não deviam ser aplicados a casos neles não previstos (por analogia); não podiam constituir fundamento para regras jurídicas gerais (D.,1,2,14: "aquilo que foi recebido contra a razão do direito não pode ser estendido às suas consequências [indirectas]"); deviam ser interpretados de forma estrita. E, embora existisse um princípio segundo o qual "as re­ gras do direito [comum] não podem ser seguidas naqueles domí­ nios em que foi estabelecida [por um direito particular] uma con­ tradição com a razao do direito", D., 1,2,15), o certo é que os juris­ tas, formados na dogmática do direito comum e crentes na sua intrínseca racionalidade, tendiam a aplicar ao direito particular os cânones interpretativos e conceituais do direito comum. 185 "Plures sunt casus quam leges" (os casos da vida são mais do que as leis); "n em as leis nem os senatusconsultos podem ser redigidos de forma a com ­ preender todos os casos que algum a vez ocorram ; basta que contenham aqueles que ocorrem o mais das vezes", pode ler-se em D.,1,2,10. 168 António M anuel Hespanha O próprio direito comum não era único. Pois, ao lado deste direito comum geral, existiam direitos comuns especializados, referentes a certas matérias. Tal é o caso do direito canónico, que era comum em matérias atinentes à religião, ou o direito mercan­ til (lex mercatoria), que era comum no que respeitava à regulação da actividade mercantil. Entre estes direitos comuns, nem tudo era harmonia, existindo entre eles princípios contraditórios. Mas, sobretudo, o direito comum coexistia, em equilíbrio indeciso, com os direitos próprios. Completava-os nas suas la­ cunas. Mas, uma vez que estes não continham uma teoria pró­ pria da norma jurídica, logo a definição do seu âmbito de apli­ cação (e, por isso, a decisão sobre existência ou não de lacunas) cabia ao direito comum. Como lhe cabia a formulação de todas as teorias gerais, que não podiam ser deduzidas de normas par­ ticulares. O que queria dizer que pertencia ao direito comum (à doutrina nele fundada) a constituição do fundamental do apa­ relho dogmático do direito. Em todo o caso, como veremos, a teoria que o direito comum criou sobre as suas relações com os direitos particulares não deixa de ser muito favorável a estes últimos. Na verdade, a Glosa [de Acúrsio], ao tratar da decisiva questão da validade dos direitos feudais (recolhidos nos Libri feudorum) regista que "os costumes em matéria feudal sobrepõem-se às leis", embora se acrescente "no entanto, entendo isto dos costumes justos, e não dos injustos" (consuetudo infeudis vincit leges [...] sed hoc intelligo de aequa, non de iniqua consuetudine) (glosa a LF, II, 1, de feudi cognitione) "Direitos próprios" são, desde logo, uma realidade também plural, já que sob este conceito podem ser subsumidos: (i) os direitos dos reinos; (ii) os estatutos das cidades; (iii) os costumes locais; (iv) os privilégios territoriais ou corporativos. 5 .3 .4 . Direitos dos reinos e direitos dos corpos inferiores Comecemos pelos direitos dos reinos. Desde o século XI que os direitos dos reinos pretendem, no domínio territorial da ju­ risdição real, uma validade absoluta, semelhante à do direito do Cultura Jurídica Europeia 169 Império (rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator [o rei que não reconhece superior é imperador no seu reino], Azo, Guilherme Durante), definindo-se como "direito comum do re in o ".186 O fundamento doutrinal desta ideia pode encon­ trar-se num texto do Digesto que afirma que "o que agrada ao príncipe tem o valor de lei; na medida em que pela Lei regia, que foi concedida ao príncipe sobre o seu poder político [imperium], o povo lhe conferiu todo o seu poder e autoridade", D.,1,4,1).187 Isto não tinha grandes implicações práticas nas relações entre o direito do reino e o ius commune. Levava, de certo, a uma afirmação de que este último não vigorava internamente por força de critérios políticos, mas apenas por força da sua racio­ nalidade intrínseca ("non ratione império sed império rationis", não em razão do império, mas por império da razão), o que even­ tualmente acabaria por conduzir à distinção entre normas do direito comum conformes à boa razão e outras que não o eram.188 Como levava à conclusão de que, sendo comum, o direito do rei­ no continha, tal como o ius commune, uma ratio iuris que vigora­ va no seu seio189e da qual se podiam extrair consequências nor­ mativas, com o que adquiria alguma da força expansiva do di­ reito comum imperial. Mas, com as limitações daqui decorren­ tes, todas as anteriores regras relativas às relações entre ius com­ mune e iura própria se aplicam ao direito reinícola. Note-se, porém, que a estreita relacionação entre o direito dos reinos e o poder real fazia com que nas relações entre o di­ reito real e os direitos locais inferiores vigorassem normas que não funcionavam nas relações entre direitos próprios e ius com- 186Cf. C avanna, 1982, 70; Pennington, 1993. 187Ou seja, nom eadam ente, todo aquele poder que, nos termos da lei "O m nes populi" (D.,1,1,9), lhe cabia de estatuir direito. 188As primeiras sendo incorporáveis no direito do reino, mas não as segun­ das. Esta consequência subjaz à teoria do direito da escola do Usus moder­ nus pandectarum e é afirm ad a, em P o rtu g a l, pela Lei da Boa Razão, de 18.08.1769. 189Que, em todo o caso, não anulava a ratio iuris communis, que permanecia com o critério superior (ius naturale). 170 António Manuel Hespanhol mune, já que a supremacia deste não decorria da superioridade política, mas do seu enraizamento na natureza. Assim, a supremacia do poder real sobre os súbditos ("superioritas iurisdicti-onis", superioridade quanto à jurisdição) traduzia-se numa máxima que não podia valer nas relações entre o ius commune e os ium própria - a de que "a lei inferior não pode impor-se à lei superior" ("lex superior derrogat legi inferiori", a lei superior derroga a inferior; "inferior non potest tollere legem superioris", o inferior não pode derrogar a lei do superior), tal como o inferior não pode limitar o poder do superior. Assim, o direito do reino é, politicamente, supra-ordenado aos direitos emanados de poderes inferiores do reino, o que não acontecia com o ius commune em relação aos iura própria. Porém, esta supra-ordenação em termos políticos não exclui a acima referida preferência do especial em relação ao geral. Sendo o direito do rei o direito comum do reino, valem em relação a ele as mesmas regras que valiam quanto ao ius commune nas suas relações com os direitos próprios. E, assim, a afirmação da supremacia política não excluía que, desde que esta não estivesse em causa, pudessem valer dentro do reino, nos seus respectivos âmbitos, direitos especiais de corpos políticos de natureza territorial ou pessoal. A salvaguarda da supremacia política do rei seria garantida, então, por um princípio de especialidade, segundo o qual a capacidade normativa dos corpos inferiores não podia ultrapassar o âmbito do seu autogoverno.190 Esta prevalência dos direitos particulares dos corpos tinha um apoio no direito romano. De facto, a "lei" Omnes popul, do Digesto (D., 1,1,9) reconhecia que "todos os pobos usam de um direito que em parte lhes é próprio, em parte comum a todo o género humano". No entanto, a primeira geração de legistas fora muito prudente em retirar daqui um argumento em favor da 190 Para além de se reconhecer que todo o súbdito, mesmo integrado num corpo jurídico inferior, tinha o direito de apelar para o rei, caso se sentisse injustiçado; mas o rei teria que decidir de acordo com o direito corporativo desse súbdito. Cultura Jurídica Europeia 171 supremacia dos direito comunais (que Odofredo, depreciativa­ mente, dizia "serem feitos por burros") que, quando muito, va­ leriam numa esfera estritamente local. Finalmente, o que esta­ va em causa, não era apenas a subversão do novo direito impe­ rial (em relação ao qual os juristas nem sempre eram muito res­ peitosos), mas sobretudo o direito romano, do estudo do qual eles tiravam o seu prestígio social e político. É preciso esperar por Baldo degli Ubaldi para que a vali­ dade do direito local adquira uma justificação teórica robusta: "Populi suntde iuregentium, ergo regimen populi estde inregentium: sed regimen non p otestesse sine le-gibus et statutis, ergo eo ipso quod popnlus habet esse, habet per consequens regimen in suo esse, sicut omne animal regitur apro prio spiritu et anima ” 191 ("os povos exis­ tem por direito das gentes [i.e., natural] e o seu governo tem ori­ gem no direito das gentes; como o governo não pode existir sem leis e estatutos [i.e., leis particulares], o próprio facto de um povo existir tem como consequência que existe um governo nele mes­ mo, tal como o anim al se rege pelo seu próprio espírito e alm a").192 5 .3 .5 . Direito comum e privilégios Abaixo do plano do reino, proliferavam as ordens jurídi­ cas particulares já referidas, todas elas protegidas pela regra da preferência do particular sobre o geral. Em alguns casos, vigo­ ravam ainda normas suplementares que asseguravam o respei­ to pelos direitos particulares. Por exemplo, as normas que pro­ tegiam os estatutos (ou direitos das comunas, cidades, municí­ pios), considerando-os, nos termos da lei "om nes p op u li",193 como ius civile ("dicitur ius civile quod unaqueque civitas sibi constituit", [diz-se direito civil o que cada cidade institui para si], Odofredo, século XII), ou seja, com dignidade igual à do di­ 191 In Dig. Vet., 1,1, de iust et iure, 9, n.4. 192Cf. Calasso, 1 9 7 0 ,5 9 ss.. 193Cf. H espanha, 1989, 239 s., 285 ss. 172 António M anuel Hespanha reito de Roma. Ou as que protegiam o costume (nomeadamen­ te, o costume local), cujo valor é equiparado ao da lei ("também aquilo que é provado por longo costume e que se observa por muitos anos, como se constituísse um acordo tácito dos cidadãos, se deve observar tanto como aquilo que está escrito", D.,1,3,34; v. também os frags. 33 a 36 do mesmo título).194 Ou, finalmente, o regime de protecção dos privilégios, que impedia a sua revo­ gação por lei geral ou sem expressa referência; ou mesmo a sua irrevogabilidade pura e simples, sempre que se tratasse de pri­ vilégios concedidos contratualmente ou em remuneração de serviços ("privilegia remuneratoria").195 Ou seja, em todos estes casos, ainda que as normas particulares não pudessem valer contra o direito comum do reino enquanto manifestação de um poder político, podiam derrogá-lo enquanto manifestação de um direito especial, válido no âmbito da jurisdição dos corpos de que provinham. E, nessa medida, eram intocáveis. Pois decorrendo estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de edição de direito era natural e impunha-se, assim, ao próprio poder político mais eminente. 5 .3 .6 . Direito anterior e direito posterior Se o ordenamento jurídico era pluralista no sentido de que nele conviviam normas emanadas de centros normativos coe­ xistentes no mesmo espaço, era-o também no sentido de que a própria sucessão das leis no tempo não implicava, como hoje, a cessação da vigência de umas quando sobreviessem leis novas em contrário. A lógica de combinação temporal das normas ju­ rídicas era menos exclusiva, pois permitia que as leis antigas conservassem uma certa vigência no presente. De facto, consi­ 194 "L ex est sanctio sancta, sed consuetudo est sanctio sanctior, et ubi consuetudo loquitur, lex m anet sopíta" [a lei é um a sanção santa, m as o costume ainda é mais santo, e onde fala o costum e, cala-se a lei] (Consuetudines amalfitenscs); Hespanha, 1989, 291 ss. 195 Cf. H espanha, 1989, 399 ss. Cultura Jurídica Europeia 173 dera-se que as leis antigas sobrevivem nas mais recentes (D., 1,3,26 e 27) e que as mais recentes devem ser tomadas perti­ nentes em relação às mais antigas, a menos que abertamente as contradigam (D.,1,3,28). Logo, direito novo e direito antigo, ain­ da que divergentes, acumulam-se em camadas sucessivas, po­ dendo ser conjuntamente chamados a resolver um certo caso. 5 .3 .7 . Normas de conflito de “geometria variável” A ordem jurídica apresenta-se, assim, como um conglome­ rado de normas de proveniência diversa, eventualmente incom­ patíveis, desprovido, por outro lado, de um conjunto fixo de normas de conflitos, i.e., de regras que decidam qual a norma a aplicar num caso concreto. É certo que existem princípios gerais, aos quais já nos referimos, que estabelecem algumas directivas (o "critério do pecado"; o princípio de que a norma especial der­ roga a geral; o princípio de que o direito comum é subsidiário em relação ao direito próprio).196 Mas, mesmo assim, coexistem normas contraditórias, sem que a preferência de nenhuma de­ las possa ser decidida por estes princípios. Na arquitectura do ius commune, a primeira preocupação não é reduzir à unidade esta pluralidade de pontos de vista normativos. A primeira preocupação é torná-los harmónicos, sem que isso implique que alguns deles devam ser absoluta­ mente sacrificados aos outros ("interpretatio in dubio facienda est ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnantiam", a interpretação deve ser feita, em caso de dúvida, no sentido de evitar a correcção [de umas normas pelas outras], a contradição, a repugnância). Pelo contrário, todas as nor­ mas devem valer integralm ente, umas nuns casos, outras nos outros. Assim, cada norm a acaba por funcionar, afinal, como 196Outros princípios (por vezes contraditórios entre si!): "lex superior derrogat inferior"; "lex tendens ad bonum publicum praefertur tendenti com modo privatorum "; "lex specialis derrogat generali" (D .,50,17,80); "lex pos­ terior d errogat priori"; "leges in corpore pareferuntur extravagantes" (cf. Coing, 1 9 8 9 ,1,128 s.). 174 António Manuel Hespanhol uma perspectiva de resolução do caso, mais forte ou mais fraca segundo essa norma tenha uma hierarquia mais ou menos elevada, mas, sobretudo, segundo ela se adapte melhor ao caso em exame.197 Ou seja, as normas funcionam como "sedes de argumentos" (topoi, loci, v. infra, 5.6.), como apoios provisórios de solução; que, no decurso da discussão em torno da solução, irão ser admitidos ou não, segundo a aceitabilidade da via de solução que abrem. A regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurídica pluralista não é, assim, uma regra formal e sistemática que hierarquize as diversas fontes do direito, mas antes o arbítrio do juiz na apreciação dos casos concretos ("arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbítrio do juiz aquilo que não está definido pelo direito). E ele que, caso a caso, ponderando as consequências respectivas, decidirá do equilíbrio entre as várias normas disponíveis. Este arbítrio é, no entanto, guiado. Pelos princípios gerais a que já nos referimos. Mas, sobretudo, pelos usos do tribunal ao julgar questões semelhantes (stylus curiae), usos que, assim, se vêm a transformar num elemento decisivo de organização (casuística) do complexo normativo deste direito pluralista. É sobre este ordenamento que vai incidir a actividade de uma doutrina jurídica europeia, obedecendo aos mesmos cânones metodológicos, e potenciando, portanto, a tendência para a unificação. 5.3.8. Uma ordem jurídica flexível Já antes (cf., supra, 5.3.1. referimos a flexibilidade como a primeira característica ds ordem jurídicá pluralista do direito comum. Explicaremos agora melhor quais os procedimentos técnicos através dos quais essa flexibilidade era conseguida. Sobre a estratégia casuísta, v. a límpida exposição deTau Anzoategui, 1992. Cultura Jurídica Europeia 175 5.3.8.I. Flexibilidade por meio da graça A flexibilidade jurídica não decorria apenas da pluralida­ de de ordens normativas e do carácter aberto e casuístico da sua hierarquização. Resultava também da ideia de que o território do direito era uma espécie de "jardim suspenso", entre os céus e a vida quoti­ diana. Entre o domínio sobrenatural da religião e o domínio das normas jurídicas terrenas. Na verdade, as normas jurídicas, as máximas doutrinais e as decisões judiciais constituíam as regras da vida quotidiana. Normalmente, cumpriam bem o seu papel. No entanto, elas não constituíam o critério último de normação. Passava-se com o direito o que se passava com a natureza. Tal como a lei que Deus imprimira na natureza (causae secundae [causas segundas], natura reruni [natureza das coisas]) para os seres não humanos, também o direito positivado (nas institui­ ções, nos costumes, na lei, na doutrina comum) instituíra uma ordem razoavelmente boa e justa para as coisas humanas. No entanto, acima da lei da natureza, tal como acima do direito positivo, existe a suprema, embora frequentemente m is­ teriosa e inexprimível, ordem da Graça, intimamente ligada à própria divindade (Causa prima, Causa incausata). Por causa da sua influência na compreensão desta relação entre os níveis da ordem, é útil relembrar aqui a teologia da Cri­ ação, tal como foi exposta pelos grandes teólogos ibéricos (e ita­ lianos) da primeira época moderna. Servimo-nos de Domingo de Soto (De iustitia et de iure, Cuenca, 1556, liv. I, q. 1, art. 1.). O acto de Criação, como acto primeiro, fora um acto incausado e livre, um acto de pura (absoluta) vontade, um acto de Graça. No entanto, uma vez que Deus é a Suma Perfeição, a Criação não constituíra um processo arbitrário. E certo que a Criação não é boa por corresponder a uma bondade anterior a Deus e que este tivesse que ter em conta; mas também é, paradoxalmente, ver­ dade que Deus, sendo Bom, não podia ter querido outra coisa senão o bem. Em suma, a Criação não sendo "devida", sendo e 176 António M anuel Hespanha livre e "gratuita", não é arbitrária. Pois há como que uma ordem, uma regra, nos próprios actos arbitrários. Para além deste acto primeiro .de criação, pelo qual Deus estabeleceu (gratuitamente, livremente) a ordem do mundo, esta ficou a valer, tanto em relação às coisas não humanas, como às coisas humanas. E, dentro destas, deu origem a um direito - o direito natural, que já os juristas romanos tinham definido como "aquele que a natureza ensina a todos os animais". De facto, Ulpianus define o direito natural como "[...] Aquele que a natureza ensina a todos os animais. Na verdade, este direito não é próprio do género humano, mas comum a todos os animais que vivem na terra e no mar, incluídas as aves. Daqui decorre a união entre macho e fêmea, a que chamamos matrimónio, a procriação e edu­ cação dos filhos. Vemos, na verdade, que os restantes animais, mesmo as feras, mostram ter conhecimento deste direito" (D., 1,1,1,3). Outros juristas acrescentavam como pertencentes a este direito que a natureza ensinou aos homens (ius gentium [direito das gentes], que restringiam ao género humano): o amor por Deus, pelos pais e pela pátria (Pomponius, D, 1,1,2); a auto-defesa, de onde decorria que aquilo que se fizeste em defesa do próprio cor­ po, seria legítimo; a proibição da falsidade no seio das relações humanas (Florentinus, D.1,1,3); a liberdade humana (Ulpianus, D,1,1,4); o direito da guerra, a divisão das nações, a constituição dos reinos, a divisão da propriedade, a generalidade dos contra­ tos (Hermogenianus, D,1,1,5). Porém, esta ordem "estabelecida" não é finita, porque Deus desenvolve a ordem (acrescenta mais ordem à ordem) por meio de outros actos, também não devidos ou livres, outros actos de Graça (dos quais se destacam os milagres). A tendência geral da teologia católica, depois de Trento, foi a de restringir o arbítrio divino, tomando-o menos soberano no domínio dos actos de Graça (menos soberano "no dar"), ao in­ sistir no carácter justificador (logo, condicionador das dádivas de Deus, nomeadamente, da dádiva da Salvação) das acções dos homens. Para a sensibilidade católica,198 as acções constituíam ''“ Sobre o carácter estruturante da religião católica nos países da Europa me­ ridional, justam ente no dom ínio do direito, Levi, 2000. Cultura Jurídica Europeia 177 factos palpáveis, contabilizáveis, objectivos, que forçavam a von­ tade de Deus na sua "gestão da Graça". No nível político-constitucional, os actos incausados (como as leis ou os actos de graça do príncipe), reformatando ou alte­ rando a ordem estabelecida, são, por isso, prerrogativas extra­ ordinárias e muito exclusivas dos vigários de Deus na Terra os príncipes. Usando este poder extraordinário (extraordinaria potestas), eles im itam a Graça de Deus, fazendo como que milagres, (cf., infra, 5.5.1. e, como fontes dessa graça terrena, in­ troduzem uma flexibilidade quase divina na ordem humana.199 Como senhores da graça, os príncipes: • Criam novas normas (potestas legislativa) ou revogam as antigas (potestas revocatoria); • Tornam pontualmente ineficazes normas existentes (dis­ pensa da lei, dispensatio legis); • Modificam a natureza das coisas humanas (v.g., eman­ cipando menores, legitimando bastardos, concedendo nobreza a plebeus, perdoando penas); • Modificam e redefinem o "seu" de cada um (v.g., conce­ dendo prémios ou mercês). De certo modo, esta prerrogativa constitui a face mais visí­ vel do poder taumatúrgico dos reis, a que a tradição europeia tanto recorre.200Teorizando esta actividade "livre e absoluta" dos reis, João Salgado de Araújo, um jurista português dos meados do séc. XVII, usa expressamente a palavra "m ilagre" (João Sal­ gado de Araújo, cf. Araújo, 1627, p. 44), enquanto que outro de­ clara que o príncipe, através da graça, "pode transformar qua­ drados em círculos" (mutare quadratos rotundis, cf. Pegas, 1669, t. IX, p. 308, n. 85.), na sequência de fórmulas que vêm dos pri­ meiros juristas medievais que discutiram os poderes dos papas e dos reis (cf., infra, 5.5.1.). 199Cf. H espanha, 1993f. 200De facto, era corrente acreditar-se, durante a Idade Média que is reis esta­ vam dotados do poder de fazer m ilagres, mesmo no plano físico, com o cu­ rar doenças. (Bloch, 1924) 178 António Manuel Hespanhol No entanto, esta passagem do mundo da Justiça para o mundo da Graça não nos introduz num mundo de absoluta flexibilidade. Por um lado, a graça é um acto livre e absoluto ((z.e., como se diz do poder absoluto ou pleno do rei: plenitudo potes-tatis, seu arbitrio, nulli necessitate subjecta, nullisque juris publicis limitata, [um poder ou vontade absolutos, livre de qualquer necessidade, não limitado por quaisquer vínculos do direito público], Cod. Just., 3,34,2). Mas, por outro lado, a graça não é uma decisão arbitrária, pois tem que corresponder a uma causa justa e elevada (salus & utilitas publica, necessitas, aut justitiae ratió). Nem isenta da observância da equidade, da boa fé e da recta razão ("aequitate, recta ratio [...], pietate, honestitate, & fidei data"), nem do dever de indemnizar por prejuízos colaterais causados a terceiros.201 Em contrapartida, pode tornar-se como que "devida" , em face de actos também gratuitos (favores, serviços) que os vassalos tenham feito ao rei, e que, assim, forçavam os reis à atribuição de recompensas ou mercês.202 Como a graça não é o puro arbítrio e antes configura um nível mais elevado da ordem, a potestas extraordinaria dos príncipes aparece, não como uma violação da justiça, mas antes como uma sua versão ainda mais sublime.203 Para Salgado de Araújo (Ley regia de Portugal, Madrid, 1627), o governo por estes meios extraordinários da graça - ou seja, tirado fora dos mecanismos jurídico-administrativos ordinários - representa uma forma última e eminentemente real de realizar a justiça, sempre que esta não pudesse ser obtida pelos meios ordinários (Araújo, 1627,46). Este tipo de flexibilidade correspondia, portanto, à existência de vários e sucessivos níveis de ordem. Quanto mais elevados eles estivessem, tanto mais escondidos, inexplicitáveis e não generalizáveis seriam. A flexibilidade era, então, a marca da insuficiência humana para esgotar, pelo menos por meios racionais e explicáveis, o todo da ordem da natureza e da humanidade. 201 Cf., com mais detalhes, Hespanha, 1993f; Dios, 1994, 264 ss.. 202Sobre esta economia da mercê, v., por último, Monteiro, 1998, maxime, 545 ss.. 2(13 Por isso é que a graça corresponde à justiça distributiva, que não se pauta -como a comutativa - por uma regra automática e geral. Cultura Jurídica Europeia 179 5.3.8.2. Flexibilidade por meio da equidade A equidade era um outro factor de flexibilidade. A discus­ são sobre a equidade foi longa na tradição jurídica europeia,204 relacionando-se com várias questões. No séc. XII, Graciano ligou esta questão à da legitimidade dos privilégios, i.e., normas singulares que se opunham à nor­ ma geral: "Por isso, concluímos do que antecede que a Santa Madre Igreja pode manter a alguns os seus privilégios e, mes­ mo contra os decretos gerais, conceder benefícios especiais, con­ siderada a equidade da razão, a qual é a mãe da justiça, em nada diferindo desta. Como, por exemplo, os privilégios concedidos por causa da religião, da necessidade, ou para manifestar a gra­ ça, já que eles não prejudicam ninguém" (Decretam de Graciano, II, C. 25, q. 1, c. 16). A equidade aparece aqui como uma "justiça especial", não geral e não igual, mas mais perfeita do que a justiça igual (da qual a equidade seria a mãe). Um passo suplementar e mais elaborado, é dado por S. Tomás, na sua discussão sobre equidade e justiça (Summa theologica, Ila.IIae, qu. 80, art. 1). O ponto de partida é a declaração de Aristóteles de que a equidade (epieikeia) era uma virtude anexa à justiça. Usando a sua peculiar técnica de raciocinar (quaestio, progredindo de um problema particular para questões cada vez mais gerais) (cf., infra, 5.6.2.3), S. Tomás interroga-se sobre uma questão mais geral acerca da natureza de um tipo de conheci­ mento que designa por gnome (Il.IIae, qu. 51, no. 4, "Se a gnome é uma virtude especial"): "Respondo que os hábitos de conhe­ cer são distintos, conforme se baseiam em princípios mais ele­ vados ou menos elevados. Por isso, o conhecimento das coisas especulativas lida com princípios mais elevados do que os das ciências. Essas coisas que estão para lá da ordem dos princípios inferiores ou causas estão evidentemente dependentes da ordem 204Vallejo, 1992; Padoa-Schioppa, 1999. 180 António Manuel Hespanha dos princípios mais elevados: por exemplo, se a explicação dos monstros está para lá da ordem das forças activas do sémen, isso quer dizer que ela se situa no nível de princípios mais elevados, como a influência dos corpos celestes ou, para além disso, a or­ dem da Providência divina [...] No entanto, acontece às vezes que é necessário fazer algumas coisas que estão acima da ordem dos actos comuns [...] e, por isso, neste caso devemos julgar as acções por princípios que estão acima das normas comuns [...] Para julgar de acordo com estes princípios mais elevados, ne­ cessita-se de uma outra virtude judicativa, chamada gnome, a qual requer uma certa perspicácia de julgamento [.. Este relance sobre as concepções psicológicas implícitas de S. Tomás que confirma o que se disse sobre os distintos níveis da ordem - permite também um distinção mais rigorosa entre justiça (geral) e equidade (particular).205 Ou seja, ao passo que a justiça geral era o produto de uma forma menos refinada e pro­ funda de conhecimento, a justiça particular (ou equidade) de­ corria dessa forma superior de entendimento das coisas que alcançava níveis superiores e mais escondidos da ordem do mundo - a gnome. Depois da secularização do mundo e do triunfo do racionalismo (cf., infra, 7.1.2.), perdeu o sentido a ideia de uma esfe­ ra de ordem sobrenatural e oculta, da qual fluíam os critérios para temperar o rigor da lei. A graça, como um critério ilimita­ do de ajustar a lei geral ao caso particular, foi expulsa do direi­ to. Aquilo que dela restou (perdão e amnistia) foi atribuído ape­ nas ao poder supremo (chefe de Estado), um pouco como resí­ duo daqueles anteriores poderes taumatúrgicos dos reis. Mas, mesmo aqui, limitadamente, de acordo com critérios objectivos e gerais. E contrapartida, no Antigo Regime, esta ideia de percep­ ções não racionais, não discursivos e não generalizáveis, nos 205Sobre o tem a, v. ainda S. Tom ás (Summa theologica, Ila.IIae, qu. 80, art. 1, to ns. 4 and 5; Ila.IIae, qu. 120, art. 2). Cultura Jurídica Europeia 181 níveis supremos da ordem estavam na base de da teoria do di­ reito concebida como uma teoria argumentativa (cf. infra, 5.6.2.), da verdade jurídica como uma verdade "aberta" e "provisória", da teoria do poder de criação jurídica dos juizes (arbitrium iudicis),206 bem como dos traços fundamentais da deontologia dos juristas.207 O conceito de equidade (equity) teve uma evolução e impac­ to muito particulares no direito inglês, que aqui convirá desta­ car.208 Um pouco como no direito civil (ius civile) romano, o direi­ to medieval inglês (common law) - de origem normanda - era, sobretudo, um sistema muito estrito e formalizado de acções (writs). Um queixoso não poderia fazer valer os seus direitos se não encontrasse uma acção na qual pudesse integrar a sua pre­ tensão (ubi remedium ibijus [só se houver um remédio processu­ al, haverá um direito]). O grande jurista inglês Henry Bracton, no seu Tractatus de legibus et consuetudines Angliae, (c. 1256; I a ed. impressa 1569) refere que "há tantos géneros de acção [de pro­ cessos de garantir direito] quantas as fórmulas dos writs" ["tot erunt formulae brevium quot sunt genera actionum", fl. 413 b).209 Já nos finais do séc. XVIII, Adam Smith considerava, com orgulho, que a liberdade dos ingleses repousava principalmente no es­ casso poder dos juizes, ao explicar, alterar ou estender, corrigir o sentido das leis, e na grande exactidão com a qual estas têm que ser observadas de acordo com o significado literal das suas palavras ("the little power of the judges in explaining, altering, or extending or correcting the meaning of the laws, and the gre­ at exactness with which they must be observed according to the “ Cf. Hespanha, 1988f, 207Cf. Tao Anzoategui, 1992. 208Cf., sobre o tem a, Plucknett, 1 9 5 6 ,6 7 1 ss. 209E muito interessante a sem elhança com o sistema rom ano das acções pretorias, em que a tutela do direito estava dependente da concessão de uma fórmula processual pelo pretor [actionis datio]. 182 António Manuel Hespanhol literall meaning of the words, of which history affords us many instances", Lectures on jurisprudence [10.3.1763].210 Este sistema - que se manteve até aos Judicature acts (1873-1875) provocou uma grande rigidez no direito, tanto mais que se começou a manifestar, por volta do séc. XIV, uma resistência dos senhores feudais à concessão de novos tipos de acções (writs), nos quais viam potenciais garantias de direitos das populações que poderiam limitar o seu arbítrio. A forma de superar este conservadorismo jurídico foi um progressivo recurso à equidade,211 que - embora com alguma expressão mesmo nos tribunais clássicos do common laiu - teve um impacto maior naqueles tribunais em que os juízos de oportunidade ou a pretensão régia de corrigir o direito em função da justiça (v., supra, 6.3.8.1) eram dominantes. Isto passava-se, nomeadamente, com tribunais reais mais especializados, como o King's Council ou a Court of Chancery (tribunais reais por excelência) ou a Court of Admiralty (que üdava com matérias comerciais, normalmente usando o direito da tradição ro-manista continental). Dada esta separação institucional, a equity acabou por se constituir num ramo de direito relativamente autónomo em relação ao common law.212 210 E continua: "The first cause of the great strictness of the law is the ordinary method of proceeding in the courts, which must be commenced by taking out a writ in Chancery, according to which they must form the suit and pronounce sentence without any deviation from the exact words of the brief; or if the action be founded on any particular statute, the words of the statute must be adhered to exactly. Nor can they alter or falsify any thing in the proceeding or the sentence different from the brief, as the records which 1 are kept very exactly must bear it openly. Another thing which curbs the power of the judge is that all causes must be tried with regard to the fact by a jury. The matter of fact is left intirely to their determination". 211 Teorizada, sobretudo, por Christopher St. Germain (em Doctor and student, 1523-1530), que propunha a equidade - na esteira de Aristóteles e do direito canónico - como uma forma de compatibilizar o direito com a veriabili-dade dos tempos e das situações. V., sobre o tema, Caenegem, 1999. Cultura jurídica Europeia 183 5.4. Direito do reino em P o rtu gal. É pocas m edieual e m oderna 5 .4 .1 . D ireito v isig ó tico A história do direito visigótico na Península Ibérica tem sido abordada por historiadores alemães, espanhóis e portugue­ ses. Dos espanhóis, por último e com indicações bibliográficas, Luís Garcia Valdeavellano, Curso de historia de las instituciones espanolas, Madrid 1973 (5a ed.), 163 216; Francisco Tomaz y Valiente, Manual de historia dei derecho espanol, Madrid 1981 (3.aed.), 97 112. Quanto aos segundos, Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do direito português, Lisboa 1985, 37 64. As fontes jurídicas visigóticas foram editadas: a Lex ro­ mana zuisigothorum, por G. H anel, Lex romana w isigothorum , Leipzig 1849; os códigos visigóticos por K. Zeumer, Leges w i­ sigothorum antiquiores. M onumento Germanize histórica, Hannover Leipzig 1849; ou, entre nós e de forma mais cómoda, por Manuel Paulo Merêa, Textos de direito visigótico, I (Codex Euricianus, Lex ivisigothorum sive Liber Iudiciorum), Coimbra 1923, e II (Glosas ao Liber iudiciorum. lei de Teudis, Fragmentos de HoIkham, Form ulas visigóticas, etc.), Coim bra 1920. Existe uma versão castelhana do Liber..., em Los códigos espanoles concor­ dados y anotados, Madrid 1872-3, ou em Fuero juzgo en latin y castellano, Madrid 1815. 5 .4 .2 . Feudalismo e direito feudal A questão da existência ou não do feudalismo em Portu­ gal constitui um debate clássico da historiografia portuguesa. O termo "feudalismo" foi utilizado para descrever o siste­ ma político e social medieval português ainda no séc. XVIII. Pascoal de Melo, por exemplo, usa-o (com conotações negativas) para classificar as prestações forais. Mas é o eco que a obra de Francisco Cárdenas (Ensayo sobre la historia de la propriedad terri­ torial en Espana, 1873 5) origina em Alexandre Herculano ("Da existência ou não do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e Portugal", Opúsculos, V) que lança entre nós o debate. Hercula- 184 António M anuel Hespanha no pronuncia se negativamente; o mesmo faz Gama Barros (His­ tória da administração pública..., I , 162 ss.), fundando se: a) na não obrigatoriedade do serviço militar nobre; b) na não hereditariedade dos feudos; c) na utilização excepcional, nas fontes, da palavra "feudo"; d) na permanência dos laços de vassalagem "geral", i.e., na sujeição de todos os habitante do reino ao rei, como seu senhor "natural"; e) e na consequente não assunção pelos senhores feudais de todos os direitos majestáticos (regalia, Hoheitsrechte). Manuel Paulo Merêa e Torquato de Sousa Soares aderiram às anteriores posições, ficando estabelecida entre nós a opinião da especificidade dos modelos portugueses da organização po­ lítico social na Idade Média - dominados por um modelo "se­ nhorial", mas não "feudal". Importa realçar - pois não se trata­ rá de um facto acidental na sua fortuna - a adequação desta ideia de uma especificidade da sociedade medieval portuguesa à ide­ ologia dominante nos círculos politicamente moderados ou con­ servadores durante os séculos XIX e XX: o alegado papel unifi­ cador, regulador e arbitrai da coroa (do Estado, cf., infra, 8.4.4.) legitimou, sucessivamente, a ideologia monárquica do cartismo ("poder moderador"), o cesarismo dos fins do séc. XIX (v. O Prín­ cipe Perfeito, de Oliveira Martins), o nacionalismo monárquico do Integralismo Lusitano (o rei, fundador e protagonista da "cons­ ciência nacional"), a ideologia integracionista, anti-plutocrática e "estadualista" do corporativismo fascizante dos anos trinta e quarenta (o rei, ao lado do "povo", contra o "egoísm o" dos no­ bres; o rei, garante do equilíbrio social e do interesse nacional). Os anos sessenta e setenta, pelo contrário, são marcados pela influência entre nós da reflexão dos historiadores e teóri­ cos marxistas sobre o feudalismo, compendiada no célebre ca­ derno do Centre d'Études et recherches à la lumière du marxisme, Sur le féodalisme, 1963, e aplicada a Portugal pela obra de Álvaro Cunhal ("La lutte de classes en Portugal à la fin du moyen age", em Recherches internationales à la lumière du marxisme, 37 (1963) 93 122; trad. port., 1974). As especialidades do nível jurídicopolitico foram desvalorizadas, a distinção "senhorialismo-feu- Cultura Jurídica Europeia 185 dalismo" foi obliterada, e e. estrutura social portuguesa foi sub­ sumida ao modelo geral de um sistema económico-social "feu­ dal". Nesta perspectiva convergiram as interpretações de, entre outros, A. H. Oliveira Marques (História de Portugal, I, Lisboa 1972), Armando Castro (Evolução económica de Portugal (...), 1,146 ss., 324 ss.), António Borges Coelho (por último, Questionar a his­ tória. Ensaios sobre a história de Portugal, Lisboa 1983) e A. M. Hespanha (História das instituições. Épocas medieval e moderna, Lisboa 1982); nesta obra, no entanto, não só se punha em causa o mo­ delo marxista clássico do feudalismo (definindo - com um acer­ to problemático... - a coerção "extra-económica" como uma ca­ racterística "não essencial" - de degenerescência - do sistema, p. 92 ss.), como se apontava para outras tipologias classificativas dos sistemas "de dominação" (Herrschaftsysteme), de raiz weberiana (v.g., a oposição entre "feudalismo" e "patrimonialismo ou "patriarcalismo" -, como subtipos da "dominação tradicio­ nal (traditionale Herrschaft) [pg. 87]). Coube a José Mattoso, o mérito de (por último em Identifica­ ção de um país, Lisboa 1985, rnaxime 1,47 ss., 83 ss.) ter renovado a impostação do problema, ao distinguir dois planos: o das relações entre os grupos sociais dominantes e os grupos sociais domina­ dos (pelas quais os primeiros se apropriam, nomeadamente, dos excedentes produzidos pelos segundos) e o das relações que es­ truturam o interior dos grupos dominantes (que organizam o blo­ co social dominante). O primeiro plano seria o domínio de vigên­ cia do regime "senhorial", com uma definição próxima da que lhe é dada pela historiografia marxista (temperado, apenas, o exclu­ sivismo economicista de algumas das suas versões). O segundo, o da vigência do regime "feudal", como forma de organização interna dos grupos dominantes, neste plano sem diferenças deci­ sivas em relação aos modelos centro-europeus. A explicação de José Mattoso é, na sua simplicidade, mui­ to produtiva, pois tem a vantagem de se harmonizar com pro­ cessos conhecidos da teoria social e, até, da teoria social marxis­ ta que, frequentemente, lida com esta ideia de que os grupos sociais dominantes possuem processos internos de organização (v.g., no capitalismo concorrencial, o regime parlamentar) com 186 António Manuel Hespanhol os quais, ao mesmo tempo, se desorganizam os grupos dominados. Alguma especificidade (debilidade) do sistema feudal português apenas obrigaria a estudar a eficácia, entre nós, de formas vicariantes de organização das classes dominantes (como, v.g., as estruturas familiares ou a acção reguladora e mediadora da coroa). As Partidas (v. doc. em J. Gilissen, Introdução ..., doc. 2, p. 193), bem conhecidas em Portugal no séc. XIV, definem o feudo como "bien fecho queda el Senor algund ome, porque se torne su vassalo, e el faze omenaje dele ser leal.. (IV, 26,1: cf. a definição dos feudistas -feudum est benevola concessio libera et perpetua rei immobilis, vel aequipolentis, cum transactione utilis dominii, pro-prietate retenta, cumfidelitatisprestatione, etexhibitione servitii (Curtis); fetudum sive beneficium est benevola atctio tribuens gaudium capienti, cum retributione servitii [Baldo]). Distinguem depois entre o feudo sobre bens de raiz, irrevogável salvo comisso, e o feudo "de câmara", consistindo numa quantia e revogável ad nutum. Na lei seguinte, as Partidas fixam se no foro de Espanha e nos correspondentes peninsulares (castelhanos) das concessões feudais. A "terra" seria o correspondente do feudo "de câmara"; a honra, o correspondente do feudo sobre bens de raiz. Com uma diferença: ao contrário dos vassalos ultra-pirenaicos, os vassalos por foro de Espanha não estariam obrigados a serviços concretos, especificados no pacto feudal ("postura"), mas antes sujeitos a uma obrigação genérica de serviço leal. O mais famoso comentador das Partidas, o quinhentista Gregório Lopez bem observou (glosa d) a IV, 26, 2; cf. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 2, pg. 193) que esta distinção não estava certa, pois o direito feudal comum conhecia feudos sem especificação de serviço (feuda recta; nos franca et libera não haveria, pura e simplesmente, obrigação de serviço, cf. glosa e) à mesma lei). Mas esta ideia da especialidade do regime vassalá-tico peninsular fez curso. Também S. Tomás [De rebuspublicis et principum institutione, ed. cons. Lugduni Batavorum, 1651, 1,3, c. 22, pg. 293] a corrobora, ao afirmar que, nas Espanhas, e principalmente em Castela, todos os principais vassalos do rei se chamam ricos-homens, porque o rei provê com dinheiro a cada Cultura Jurídica Europeia 187 barão segundo os seus méritos, não tendo a maior parte deles jurisdições ou meios bélicos senão por sua vontade, pelo que o seu poder depende absolutamente das quantias dadas pelo rei. Embora as situações de facto não sejam fundamentalmente diferentes das ultrapirenaicas, a imagem de um regime vassalá-tico diferente plasma se enfaticamente, como veremos, na legislação portuguesa quatrocentista sobre as concessões de bens da coroa, nomeadamente na Lei Mental, e permanece como um tópico corrente da doutrina seiscentista. A Lei Mental (Ord. man, II, 17; Ord.fil., II, 35) fixa, desde os inícios do séc. XV, o regime das concessões vassálicas, em termos muito próximos do regime das concessões feudais do direito comum. Aplica se apenas às concessões beneficiais com obrigação de serviço nobre, excluindo - tal como a doutrina do direito comum (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução doc. 5, pg. 198) - as concessões contra uma prestação económica (como as enfitêu-ticas, cf. Ord.fil, II, 35,7). Quanto ao serviço, adopta o "costume de Espanha" referido nas Partidas, estabelecendo (Ord.fil., II, 35,3) que o donatário não seria obrigado "a servir com certas lanças, como por feudo, porque queria que não fossem havidas por terras feudatárias, nem tivessem a natureza de feudo, mas fosse obrigado a servir, quando por elle fosse mandado". Quanto à devolução sucessória, afasta se, primeiro, do direito feudal lombardo (compilado nos Libri feudorum), que permitia a divisibilidade dos feudos, e adopta (decerto por atracção do regime de sucessão da coroa e do princípio aristotélico, recebido pelo direito comum, de que dignitates et iurisdictiones non dividuntur), a solução da indivisibilidade e primogenitura, que já era usada entre nós para a sucessão em jurisdições, e que dominava, também, o direito feudal franco e siciliano. Depois, consagra a exclusão da linha feminina, em consonância, também, com a solução das Partidas. A Lei Mental favoreceu, por fim, o princípio de que os bens da coroa, embora doados, nunca perdem esta natureza, não podendo ser alienados sem licença do rei (Ord. fd., II, 35,3). 188 António M anuel Hespanha Pouco depois, no tempo de D. João II, estabeleceu se a re­ gra de que as doações deviam ser confirmadas, quer à morte do donatário (confirmação por sucessão), quer à morte do rei (con­ firmação de rei a rei). Dois outros títulos das Ordenações (O rdaf, II, 24; II, 40; Ord. man. II, 15; II, 26; Ord. f i l , II, 26; II, 45) interes­ sam à definição das relações feudo-vassálicas na idade moder­ na. O primeiro lista os direitos reais, ou seja, os direitos própri­ os (naturais, mas nem sempre exclusivos) do rei; o segando, fixa o princípio de que tais direitos e as jurisdições não podem ser tituladas senão por carta, fixando, suplementarmente, algumas regras de interpretação e interpretação destas cartas. Contra o que era admitido pelo direito comum (recebido, por exemplo, em Castela), o nosso direito exclui, portanto, a aquisição das ju­ risdições e direitos reais por prescrição, ainda que imemorial. Na prática, a Lei M ental constituiu uma moldura legal muito complacente, sendo frequentemente dispensada, no sen­ tido de autorizar a sucessão de parentes inábeis (nomeadamen­ te de mulheres). Também a política de confirmações foi sempre generosa, mesmo nos momentos de maior tensão política. As casas nobres puderam perpetuar se (amparadas pelo princípio da indivisibilidade, por vezes reforçado com a instituição de morgados de bens da coroa). Também os direitos reais e as ju­ risdições foram magnanimamente doados, incluindo os de mai­ or relevo, como a isenção de correição. Para além da doação de prerrogativas claramente majestáticas - como a legislação, ape­ lação e a moeda - a única coisa que a coroa evitou com diligên­ cia foi a sub-enfeudação - já no tempo de D. João I, contra tenta­ tivas do Condestável Nuno Álvares Pereira, seu genro, mas de­ pois, no séc. XVI, contra práticas idênticas da casa de Bragança. A organização interna do grupo dominante teve, então, que se basear nas solidariedades familiares e na acção reguladora da coroa (que, por exemplo, devia aprovar os casamentos dos do­ natários, em certos casos). Nestes termos, não se pode falar de um direito feudal em Portugal, justamente porque aos senhores àe terras nunca foram concedidos os instrumentos para o instituir. Por um lado, po­ der àe íazer leis. Por outro, o poàet àe julgar em última instân- Cultura Jurídica Europeia 189 cia, o que permitiria criar práticas jurisprudenciais eventualmen­ te específicas. Todo este regime entrou em crise nos finais do séc. XVIII. A lei de 19.7.1790 regulou muito restritivamente as justiças se­ nhoriais e as isenções de correição; os restantes direitos reais, nomeadamente os direitos de foral e as banalidades, são aboli­ das na sequência da revolução liberal. 5.4.2.1. Bibliografia Para além da bibliografia citada, v., sobre a Lei Mental, Manuel Paulo Merêa, "Génese da 'Lei mental' (algumas notas)", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 10(1926 8 ), 115. Sobre o regime senhorial na Idade Média, José Mattoso, Identificação de um país, cit., 101 ss.; para a Idade moderna, v. as minhas obras As vésperas do Le­ viathan. Instituições e poder político (Portugal, séc. XVIII), Coimbra, Almedina, 1994, e História de Portugal Moderno. Político-institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995. Sobre as jurisdições senhoriais nos finais do Antigo Regime, v. Ana Cristina Noguei­ ra da Silva, O modelo espacial do Estado moderno. Projectos portu­ gueses de reorganização nos finais do Antigo Regime, Lisboa, Estam­ pa, 1998. Para a literatura do Antigo Regime, v., para além da obra de Domingos Antunes Portugal adiante (doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. n.° 7) citada, Manuel Alvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes, cit., tomos X e XI, e Manuel da Costa, Tractatus circa maioratu, seu successionum bonarum regiae Coronae, Conimbricae 1569. 5.4 .3 . O costume A história do elemento consuetudinário na história do di­ reito português tem sido objecto obrigatório de tratamento nos nossos manuais de história do direito. Vejam se, a este propósi­ to, como últimos exemplos: Guilherme Braga da Cruz, "O direito subsidiário na história do direito português", Rev. port. hist. 14(1975) 177 316; Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do di­ reito português, 1. Fontes de direito, Lisboa 1985,106 s., 114 ss., 229 190 António Manuel Hespanhol ss., 276 ss.; Martim de Albuquerque & Ruy de Albuquerque, História do direito português, I, Lisboa 19841985,161 ss.. Os forais, até 1279, estão publicados nos Portugaliae rnonu-menta histórica. Leges et consuetudines, Olisipone 1856-1868. Uma edição mais cómoda foi elaborada por Caeiro da Mata, Collec-ção de textos de direito português. I - Foraes, Coimbra 1914,184 pp.. Lista de (quase) todos os forais, publicados ou não, Francisco Nunes FranMm, Memória para servir de indice dos foraes das terras do reino de Portugal e seus dominios, Lisboa 1816, VII + 259 pp.. Alguns dos foros extensos que não se encontram nos P.M.H. podem encontrar-se na Colleccão de livros inéditos da historia por-tugueza dos reinados de D. Dinis. D. Afonso IV, D. Pedro leD. Fernando, vols. IV(1816) (Santarém, S. Martinho de Mouros, Torres Novas), V(1824) (Garvão, Guarda, Beja) e vol. não concluído (s. 1. s. d.) (Castelo Branco). Mais bibliografia em A. M. Hespanha, "Introdução bibliográfica à história do direito português. II", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 49(1974), secção 6.2. Um ponto que, na literatura corrente sobre o tema, merece, a nosso ver, revisão é o dos padrões de julgamento dos juizes locais; pois, dado o seu frequente analfabetismo, não poderiam aplicar o quadro de fontes de direito escrito e letrado (v., sobre o tema, A. M. Hespanha, "Savants et rustiques. La violen-ce douce de la raison juridique", Ius commune, 10(1983), Frank-furt-Main, 1-48 (versão castelhana em A. M. Hespanha, La grada dei derecho, Madrid, C. E. C., 1993); As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político (Portugal, séc. XVIII), Coimbra, Alme-dina, 1994, maxime, 362 ss.; 439 ss.). É provável que se tenha que atribuir ao direito consuetudinário local - parcialmente constituído por regras "de bom senso" ou por regras "do precedente" - um papel bem mais importante do que até hoje lhe tem sido reconhecido, mesmo para a época moderna. 5.4.4. A legislação Apesar de muita da historiografia portuguesa do direito se ocupar da história das fontes, há muitas questões em aberto na história da legislação portuguesa. Cultura Jurídica Europeia 191 Para a Idade Média, começa se por não se dispor de uma edição sistemática e crítica dos textos relevantes: os P.M.H. re­ colhem os anteriores a 1279 (deixando por resolver muitos pro­ blemas de datação e de reconstituição da tradição textual); a partir daí, apenas conhecemos, fundamentalmente, as leis inse­ ridas em colecções tardo-medievais (Livro das leis e posturas, pu­ blicado em 1971, e Ordenações de D. Duarte, publicado pela Fun­ dação Gulbenkian em 1988). Nomeadamente, as chancelarias de D. Dinis e dos reis seguintes (está publicada a de D. Pedro, [A, H, Oliveira Marques (coord.), Chancelaria de D. Pedro I: 13571367), Lisboa, I.N.I.C., 1984] e a de D. Afonso IV [Id., Chancelari­ as portuguesas: D. Afonso IV: 1325-1344, 3 vols., 1990) contêm muitas "leis" inéditas ou já conhecidas, mas de datação incerta. Depois, há que precisar que o problema do "conceito de lei" não foi satisfatoriamente resolvido. Alexandre Herculano abor­ da o, no prefácio dos P.M.H (Leg. 1,145 ss.), mas fá-lo em termos historicamente errados, projectando sobre o passado os elemen­ tos do conceito oitocentista: generalidade, origem parlamentar, permanência, "dignidade" das matérias (emanação da soberania). A doutrina jurídica medieval não punha, desde logo, estas exigências: c f, por exemplo, a alargada definição contida nas Sete Partidas: "estabelecimientos porque los omes sepan biuir bien, e ordenadamente, segun el plazer de Dios. (1,1,1), "leyenda q(ue) faze ensenamento, e castigo escripto que liga, e apremia la uida dei hombre que no faga mal" (1,1,4). Se o interesse do historia­ dor é o de detectar a medida da intervenção do poder eminente (imperial, real, condal, etc.) na constituição da ordem jurídica, então parece de adoptar um conceito que realce (i) o papel de­ terminante, unilateral e constitutivo da vontade do titular desse poder e (ii) a intenção genérica de regulamentar ex novo as rela­ ções sociais. Isto permitirá distinguir a "lei" do "costum e", do direito "pactado" local (em Portugal, "acordos", pouco frequen­ tes), mas também da "jurisprudência" do tribunal da corte (que pode não instituir "direito novo", nem decorrer da vontade, mas de "estilos", de normas doutrinais ou de autoridades jurídicas). Em todo o caso, não foi este o critério das fontes históricas que nos transmitiram os textos. As principais fontes utilizadas 192 António Manuel Hespanha pela nossa historiografia para reconstituir a legislação medieval são produto da actividade de juizes (da corte: Livro das leis e pos­ turas, Ordenações de D. Duarte, ou locais: Foros da Guarda), pelo que aí estão reunidos os textos susceptíveis de aplicação judici­ al no âmbito do respectivo tribunal, qualquer que fosse a sua natureza. No fundo, um critério semelhante ao de posteriores fontes do mesmo tipo ("livros de assentos", "livrinhos ou livros de leis"). Em uns e outros não faltam textos de natureza clara­ mente doutrinal ou jurisprudencial (e não "legislativo"). Em Portugal, até aos finais do séc. XIII estão identificadas cerca de 250 "leis" (posturas, degredos, estabelecimentos, orde­ nações, mais raramente, constituições). Cerca de 220 situam se entre 1248 e 1279 (embora esta estatística seja problemática, pois muitos dos textos não estão datados). Por sua vez, o Livro das leis e posturas, da primeira metade do séc. XV, contém pouco menos de 400 "leis". Pelo que, numa aritmética grosseira, caberiam ao séc. XIV e ao início do séc. XV, cerca de 150 "leis". Este conjunto de "leis" reparte-se por vários temas: (i) determinações régias no uso do seu poder "imperial" (nierunt imperium, scil., officium nobilis iudicis expeditum reipublicae utilitatis respiciens, ou potestasgladiiadanim vertendum facinorosos homines, poder visando a utilidade da república, nomeadamente quanto à repressão dos crimi­ nosos): aqui se incluem as leis penais e as "pazes" (insti­ tuição de juizes, proibição da vingança privada), de que se aproxima o conjunto de leis da cúria de 1 2 1 1 ; progres­ sivamente, a ideia de "paz" vai-se alargando à de "bom governo", abrangendo a intervenção "positiva" do rei em matéria de governo e administração (mas, predominan­ temente, de administração judiciária): "super statu regni et super rebus corrigendis et emendandis de suo regno", sobre o estado do reino ou sobre a correcção e emen­ da do seu reino: lei das cortes de Leiria de 1254, Leg., 1,183; (ii) disposições do rei sobre as suas próprias coisas (de acor­ do com o modelo das leges rei suae dictae): acerca dos reguengos, dos cargos do paço, dos ofícios régios; na medi­ Cultura Jurídica Europeia 193 da em que a confusão entre o património do rei e o pró­ prio reino se vai instituindo (a partir da perda das concep­ ções "estatais" visigóticas e tardo-romanas), a separação entre este tipo e o tipo (i) esbate se frequentemente; (iii) disposições de cortes, representando "acordos" do rei e dos optimata ou próceres regni; formalmente, constituí­ am decisões unilaterais do rei, embora "a pedido", pelo que a sua irrevogabilidade nunca foi de direito; no entan­ to, a doutrina, mesmo a da época moderna, admitia uma especial dignidade das leis "de cortes " , 213 que não pode­ riam ser revogadas tacitamente; (iv) normas de decisão do tribunal da corte: muitas vezes trata se de preceitos doutrinais ou costumeiros ("costu­ me he em casa dei rey", "custume he per magistrum julianum e per magistrum petrum "); mas, outras vezes, parece ter havido uma decisão real ("estabelecimento", "postura"), embora nem sempre resulte clara a intenção de se ir além da certificação de um estilo interno, adop­ tando uma norma dirigida ao "público" externo. A distribuição das espécies conhecidas por estas categori­ as não é equilibrada. A esmagadora maioria pertence às duas últimas categorias; mas, sobretudo, à última. Nas leis contidas nos P M.H., 2/3 são normas de julgamento do tribunal da corte; apenas em cerca de 1/ 7 se distingue claramente a intenção real de estabelecer direito novo. Mas só um estudo detalhado da tra­ dição textual, da cronologia e das fontes inspiradoras, tudo em ligação com a conjuntura política permitirá avançar num diag­ nóstico claro da função legislativa dos reis portugueses na Ida­ de Média. Quanto à época moderna, também são insuficientes os co­ nhecimentos acerca da função legislativa. 2,3Algumas publicações: Joaquim Leitão, Cortes do reino de Portugal, Lisboa, 1940 A. H. Oliveira M arques (coord.), Cortes portuguesas: reinado de D. Afonso IV (1325-1367), Lisboa, INIC, 1982; Id. (coord.), Cortes portuguesas: reinado de D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, INIC, 1986; Id., Cortes portuguesas: reinado de D. Fernando I (1367-1383), 2 vols., 1990. 194 António Manuel Hespanhol No que respeita às suas formas, aos seus domínios temáticos, aos seus ritmos. A doutrina jurídica moderna distingue (a partir de quando?) uma série de tipos bem identificados de actos "legislativos" - cartas de lei, regimentos, alvarás, provisões, cartas régias, portarias, decretos, avisos, assentos (v., sobre eles, a minha História das instituições, cit., 423). Mas não está estudado o uso de cada uma destas formas ao longo dos sécs. XV a XVIII ou a sua articulação mútua; nem, muito menos, o significado jurídico, político ou simbólico da preferência por uma delas (v.g., a expansão do "alvará", a partir dos meados do séc. XVI, poderá relacionar se com a intenção de evitar o controlo do Chanceler-mor, que podia recusar o registo dos diplomas que passassem pela chancelaria, v.g., as cartas de lei; também o uso da "portaria" visa iludir o processo ordinário de despacho, curto-circuitando os competentes tribunais da corte). O que é certo é que, no conjunto, o número dos diplomas legislativos "por natureza", as cartas de lei, é muito escasso: menos de 200 entre 1446 e 1603, incluindo as 45 leis das cortes de 1538; cerca de 200 durante os séculos XVII e XVIII; o que representa, para este arco de tempo, menos de 1/10 das providências normativas da corte. Sobre os domínios temáticos de intervenção da legislação real, muito está por fazer. Quanto às Ordenações, sabe se que elas cobriam a regulamentação da administração central e local (sobretudo no domínio da " justiça", com o âmbito "administrativo" que então a expressão também tinha; mas não já no domínio fiscal-financeiro), livro I; a das relações entre a coroa e os restantes poderes (nomeadamente, igreja, senhores, grupos privilegiados), livro II; o processo, livro III; algumas matérias de direito civil (compra e venda, doações, fianças, regime de bens do casamento, tutelas e curatelas, sucessões, criados e serviçais, alugueres, aforamentos, etc.), livro IV; o direito penal, livro V. Quanto à legislação extravagante, ela incide, sobretudo, em temas administrativos (sempre, mas sobretudo entre 1530 e 1650 e, depois, a partir de 1750), fiscais-financeiros (sempre, mas com especial incidência no reinado de D. Manuel e, depois, entre 1630 e os finais do séc. XVII e no período üuminista), de organização 195 Cultura Jurídica Europeia judicial (sobretudo entre 1530 e 1600), penais e de policia (sobre­ tudo a partir de 1730). As espécies dedicadas ao direito privado são raras: cerca de uma dezena entre 1446 e 1603 (c. 5 %), deze­ na e meia (c. 7 %) para os dois séculos seguintes, incluindo as providências pombalinas (c. 1 0 espécies) em matéria de direito da família, das sucessões e da propriedade (morgados, enfiteu­ se, servidões). Ou seja, parece que, passado o período filipino, se legisla progressivamente menos, até se atingir o período iluminista e, dentro deste, o pombalismo, onde se situam os "picos" moder­ nos de actividade normativa da coroa. Quanto aos ritmos, é difícil proceder a estudos estatísticos, mesmo baseados nas fontes incluídas nas colectâneas ou índi­ ces dos finais do séc. XVIII, pois os critérios de compilação são incertos e não homogéneos, nelas se incluindo diplomas de na­ tureza muito diversa, desde as cartas de lei, genéricas, a porta­ rias e avisos, individuais, passando por assentos, tratados e ou­ tras fontes. Em todo o caso, baseando nos em duas colectâneas gerais (CCL - Colecção chronologica de legislaçao; IChr - índice chronologico..., de João Pedro Ribeiro) e computando todas as espécies aí referidas, obtínhamos os seguintes perfis de evolução quantita­ tiva (médias anuais de diplomas emitidos, por quinquénio, de trinta em trinta anos). A nos CCL IC h r. 1 6 0 3 -1 6 0 7 6 ,4 - 1 6 3 3 -1 6 3 7 1,3 1 3 1 ,2 1 6 6 3 -1 6 6 7 0,6 8 4 ,4 1 6 9 3 -1 6 9 7 3 ,8 87 1 7 2 3 -1 7 2 7 0,4 7 6 ,2 1 7 5 3 -1 7 5 7 - 3 1 4 ,8 1 7 8 3 -1 7 8 7 - 1 5 7 ,6 196 António M anuel Hespanha Ou seja: descontando anos anormais (como o de 1539, em resultado das cortes do ano anterior), mostra se que a activida­ de propriamente legislativa é regular e relativamente elevada entre 1520 e 1620 (ou seja, nos reinados de D. João III, de D. Se­ bastião, de Filipe I e de Filipe II); retoma, até a níveis superio­ res, com a Restauração (1641 1655); cai com D. Afonso VI, mas volta a crescer com D. Pedro II, sobretudo na fase "real"; depois, decai até aos anos centrais do pombalismo (1770 1776). Embora esta estatística seja muito grosseira para diagnos­ ticar, com precisão, os períodos de uma política "intervencionis­ ta" nos domínios do direito e administração (basta lembrar que muitas intervenções legislativas importantes revestiam outras formas, nomeadamente a de "regim ento" ou mesmo, a de "al­ vará"), ela pode, no entanto, fornecer algumas pistas de estudo. Quanto as questões mais correntes da história legislativa (relações da lei com as outras fontes de direito, compilação co­ dificação legislativas, publicação das leis, interpretação e inte­ gração), remetemos para os manuais citados na bibliografia. Das fontes escritas de direito local, devem distinguir se as que consistem em cartas de privilégios concedidas pelos senho­ res da terra (forais), as resultantes de acordo dos vizinhos ou dos órgãos dos concelhos (posturas, acordos) e as que resultam da redacção dos costumes locais, por iniciativa do concelho, de magistrados ou, até, do rei (estatutos, foros longos). Sobre estas fontes, para além dos manuais antes citados, nas secções respectivas, v. a bibliografia citada nas secções 6.2 e 7.2 da bibliografia final do meu livro A história do direito na história social, cit., 186 ss. e 192 ss. e, ainda. Franz-Paul de Almeida Langhans, As posturas, Lisboa 1938. 5.4.4.1. Bibliografia Em geral, Marcello Caetano, História do direito português, Lisboa 1981,240 ss., 344 ss., 529 ss. A. M. Hespanha, História das instituições..., cit., inaxime 181 ss., 328 s., 374 n.° 768, 421 ss., 524 ss.; Martim de Albuquerque e Ruy de Albuquerque, História do direito português, I, Lisboa 1984/1985, cit., maxime 128 ss.; Nuno Cultura Jurídica Europeia 197 Espinosa Gomes da Sil História do direito português, Lisboa 1985,1 19 ss., 167 ss., 190 ss., 224 ss., 276 ss.; J.-M. Scholz, "Por­ tugal", in H. Coing, Handbuch der Quellen zur europaeische Rechts­ geschichte, cit., II.l (Neuere Zeit, 15001800), "Gesetzgebung und Rechtsprechung", 204 309; trad. port., "Legislação e jurisprudên­ cia em Portugal nos sécs. XVI a XVIII. Fontes e literatura", Scientia iuridica, 25(1976), 1 ss.. Para os finais do Antigo Regime, v., do mesmo, "Portugal", ibid., III.l ("Das 19. Jarhundert. Geset­ zgebung zum allgemeinen Privatrecht"), 687 861 e 2242-2488. Para a legislação medieval, v., ainda, Alexandre Herculano, prefácio e notas aos P.M.H., Leges, nomeadamente, 1,165 ss.; J. Mattoso, Identificação de um país Ensaio sobre as origem de Portu­ gal. 1096 1325, II, 78 ss. (maxime, 84 ss. ). Para as fontes, v., para além de J.-M. Scholz, o guia biblio­ gráfico incluído no meu livro A história do direito na história soci­ al, Lisboa 1978, infelizmente não muito desactualizado,183 ss. e Martim de Albuquerque, "Para a história da legislação e juris­ prudência em Portugal", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 58(1982), II, 623 654. As Ordenações (afonsinas, manuelinas, filipinas), bem como as Leis extravagantes e repertório das Ordenações, de Duarte Nunes de Leão, foram publicadas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Que tam bém publicou as chamadas Ordenações de D. Duarte, colectânea não oficial de legislação do tempo deste rei. 5 .5 . A u n ificação p e la “cien tific iz a ç ã o ”. A s esco la s d a tr a d iç ã o ju r íd ic a m ed iev a l 5 .5 .1 . A Escola dos Glosadores Na primeira metade do século XII, o monge Irnerius come­ çou a ensinar o direito justinianeu em Bolonha, dando origem à "escola dos glosadores , 214 posteriormente continuada por discí214Sobre os "glosadores" v., por todos, Calasso, 1954, 503 ss.; W ieacker, 1980, 38 ss. e 45 ss.; Bellomo, 1988; síntese, Clavero, 1979, 34 ss. Para Portugal, v. por todos, Silva, 1 9 9 1 ,1 8 1 ss. P ara o seu pensam ento político e jurídico, Brugi, 1915, 41-9; Calasso, 1957; Cavanna, 1982,1 0 5 -1 3 6 ; Dolcini, 1983. 198 António Manuel Hespanhol pulos seus.215 Estes dispersam-se primeiro pela Itália (citramon-tani), depois pela França (ultramontani), onde, sob a influência da escolástica francesa, se elaboram as primeiras sínteses. Por volta de 1240, Acúrsio (c.1180 - c.1260) reúne a elaboração doutrinal da Escola na célebre Magna Glosa, Glosa Ordinária ou, simplesmente, Glosa. As características mais salientes e originárias do método bolonhês são a fidelidade ao texto justinianeu e o carácter analítico e, em geral, não sistemático. Quanto ao primeiro aspecto, é de realçar a ideia, comum entre os glosadores, de que os textos justinianeus tinham uma origem quase sagrada,216 pelo que seria uma ousadia inadmissível ir além de uma actividade puramente interpretativa destes textos. A actividade dos juristas devia consistir, portanto, numa interpretatio cuidadosa e humilde, destinada a esclarecer o sentido das palavras (verba tenere) e, para além disso, a captar o sentido que estas encerravam (sensum eligere) interpretação anotativa. E natural que tenha havido algum ensino especializado de direito 215 (lom-bardo e franco, mas com referências ao direito justinianeu) no Norte de Itália (nomeadamente em Pavia) desde os meados do século XI (cf. Padoa-Schioppa, 1995, 168 ss.). Segundo Odofredo - que, nas suas lições sobre o Corpus iuris (de 1234 a 1265)- inseria pequenas e por vezes divertidas historietas sobre o ensino jurídico em Bolonha - teria sido Imerius o iniciador destes estudos ("quia primus fecit glosas in nostros libros, vocamus eum lucerna iuris" [como foi o primeiro que fez glosas aos nossos livros, lhe chamamos lâmpada do direito]; "Sed Dominus Irnerius, dum doceret in artibus in civitate nostra, cepit per se studere in libris nos-tris et studendo cepit Iegere in legibus ... fiut lprimus illuminatur scien-tie" [No entanto, foi o Senhor Irnério, quando ensinava artes liberais na nossa codade, com aqui chegaram os livros de leis, que começou a estudar pelos nossos livros e, ao estudar, começou a ensinar (ler) direito") (apud Grandi, 1982, 23). Sobre o estudo bolonhês, v. Bellomo, 1979; sobre Odofredo, Tammasia, 1967, 335-461. 216 Os glosadores pensavam que Justiniano (século VI d.C.) fora contemporâneo de Cristo ("Iustinianus regnabat tempore nativitis Christi", Glosa de Acúrsio). Cultura Jurídica Europeia 199 Por outro lado - e entramos agora no segundo aspecto - uma actividade intelectual deste tipo não podia desenvolver-se senãc em moldes predominantemente analíticos. Ou seja, os juristas faziam uma análise independente de cada texto jurídico, reali­ zada ao correr da sua "leitura", quer sob a forma de glosas in­ terlineares ou marginais, quer sob a de um comentário mais com­ pleto (apparatus); sem que (pelo menos, de princípio) houvesse a preocupação de referir entre si vários textos analisados. A "glosa" - explicação breve de um passo do Corpus Iurh obscuro ou que suscitasse dificuldades - era, portanto, o mode­ lo básico do trabalho desta escola. No entanto, ela cultivou uma gama muito variada de tipos literários: desde a simples glosa interpretativa ou remissiva até ao curto tratado sintetizando uir título ou um instituto (summa), passando pela formulação de regras doutrinais (brocarda, regulae), pela discussão de questões jurídicas controversas (dissenssiones doctorum, quaestiones vexatac ou disputae), pela listagem dos argumentos utilizáveis nas dis­ cussões jurídicas (argumenta), pela análise de casos práticos (casus). Em alguns destes tipos literários as preocupações de sínte­ se e de sistematização são já sensíveis .217 217 Sobre todos estes géneros literários, cf. Calasso, 1954, 531-536; Mortari, 1958, 78 ss.; e, W eim ar, 1 9 7 3 ,1 4 0 ss., Berm an, 1 9 8 3 ,1 2 9 ss.. (que transcreve o iní­ cio de um curso de Odofredus: "Prim eiro, dar-vos-ei um sum ário de cada título [do Digesto], antes de prosseguir com o texto. Depois, porei tão clara e explicitamente quanto possa exem plos das leis [fragm entos] contidas nc título. Em terceiro lugar, repetirei o texto, com uma opinião que corrija este E m quarto lugar, repetirei brevm ente o conteúdo das Ieies. Em quinto lu­ gar, resolverei as contradições, adicionando princípios gerais comumente cham ados brocardos, bem com o distinções ou questões delicadas e úteis, com as respectivas soluções, tanto quanto a Divina Providência m e-lo per­ mita. E se algum a lei pareça m erecer, pela sua celebridade ou dificuldade, um a repetição [uma liçaõ especial], reservá~la~ei para uma rcpetito da tar­ d e". Todo este processo expositivo é intim am ente inspirado pela estrutura usada na dialéctica, com o verem os adiante, onde a exposição (cf. 5 . 6.2.3) ia e vinha entre afirm ação e contrdição, dúvidas e soluções, proposições par­ ticulares e form ulações gerais. 200 António Manuel Hespanha De qualquer modo, cabe aos glosadores o mérito de terem recriado, na Europa Ocidental, uma linguagem técnica sobre o direito. Não se trata mais de descrever ou reproduzir algumas normas ou fórmulas de direito romano, com intuitos exclusiva­ mente práticos, como tinha sido relativamente comum nos es­ tudos de arte notarial usuais em algumas chancelarias eclesiás­ ticas ou seculares. Trata-se, agora, de começar a fixar uma ter­ minologia técnica e um conjunto de categorias e conceitos espe­ cíficos de um novo saber especializado - a jurisprudência .218 O impacto prático da escola dos glosadores não é - como refere F. Wieacker219- fácil de explicar. Na verdade, as intenções do seu trabalho não eram, predominantemente, práticas. A prin­ cipal intenção dos primeiros cultores do direito romano era, na verdade, mais um objectivo teórico-dogmático - o de demons­ trar a racionalidade (não a "justeza" ou "utilidade prática") de textos jurídicos veneráveis - do que um objectivo pragmático, como o de os tornar directamente utilizáveis na vida quotidia­ na do seu tempo. Isto explica, por um lado, o labor devotado a explicar institutos e magistraturas que já não existiam, bem como o distanciamento dos glosadores em relação à vida jurídico-legislativa do seu tempo - que classificavam depreciativamente 220 e sobre a qual apenas pairavam , exclusivam ente dedicados, como estavam, à exegese dos textos romanos. Assim, pelo menos os civilistas, negavam que o texto es­ crito (o direito doutrinal do Corpus iuris ou o novo direito impe­ rial do Sacro-Império) necessitasse de ser confirmado pelo uso (;usu utentium, uso dos utilizadores). O que se traduzia, por exem­ plo, em começarem por tender a negar a vigência dos costumes contra o direito escrito, pelo menos contra o direito "dos seus liv ros". V n e s t e servtiào, enfaticam ente, Crescenzi, 1 9 9 2 . TlS N as im pressivas páginas que dedica a este tem a e m \Nieacker ,1980, max., 66. 220"E scrita com o que por b u rro s", com o dizia O dofredo; ou "leigos rústicos ou pouco educados" \kiici rustici et modice educati], com o escreve um anóni­ mo c. 120 (cf. Ocultus pflstoralis, cit, por Pennington, 1 9 9 3 ,3 9 ). Cultura Jurídica Europeia 201 E acabavam, portanto, Dor influir fortemente na vida jurí­ dica e política do seu tempo, isto deve-se não ao seu empenha­ mento prático, mas à eficácia da autoridade intelectual do saber que cultivavam , 221 De facto, justamente porque falâvam com a autoridade de um direito imperial e creditado, além disso, com um prestígio quase sagrado, a sua palavra acabou por ser deci­ siva, mesmo ao nível da alta política da época. O imperador Frederico II, então lutando por submeter as ci­ dades italianas, entendeu isso perfeitamente. Primeiro, em 1220, passou por Bolonha e discutiu aí direito longamente com os "qua­ tro doutores", discípulos de Imério, aos quais deixou surpreen­ didos com a sua perícia no novo direito imperial. Na verdade, o ensino destes, marcado pelo regalismo do direito romano tardio, reconhecia ao imperador um amplo poder legislativo ("Tua voluntas est iuris, secundum dicitur: Quod principi placuit, legis habet vigorem", disse um letrado ao imperador, na dieta de Rocaglia, em 1158). Nessa mesma altura, obtém uma ratificação científica, por parte da maior parte dos juristas mais eminentes no sentido da sua superioridade política em matéria temporal222 e concede aos 221Detalhadam ente, sobre as relações entre Frederico II e o Studium bolonhês, nom eadam ente em tom o da questão do p oder im perial, v. Pennington, 1993, 14 ss..V. ainda, mais em geral sobre a valorização doutrinal da lei im perial e real, Costa, 1969 (agora, num a ristampa com apreciações críti­ cas de O. Capitani e B. Clavero, 2002); W yduckel, 1979,35-62; Berman, 1983, 405-519. Por último, bela síntese, em Descimon, 2002, 27-51. 222U m a historieta ch egou até nós, em vária versões: Fred erico p asseav a a cavalo, acom p an had o p o r M artinus e B ulgarus, dois dos quatro discí­ pulos de Irnério, a quem p ergu n tou se, de aco rd o com o d ireito, ele era ou não senhor do m u ndo. B úlgaro respondeu-lhe que, enquanto p ro p ri­ etário, não o era. M artin h o, pelo co n trá rio , resp o n d eu -lh e (timore vel am ore, com enta A cú rsio, m aldosam ente) que sim . O im p erad o r, satis­ feito, ofereceu o cav alo que m o n tav a a M artinho, peran te o que B úlga­ ro, fazendo um trocadilho em latim , com entou: " Am isi equum , quia dixit aequum , quod n on fuit a e q u u m ". [Perdi um cavalo (equuus), pois disse o que era justo (aequum), o que não foi justo (aequum)] (cf. um a das versões em P ennington, 1 9 9 3 , 1 6 ). E sta p erg u n ta sobre o sen horio do mundo é ainda a base da d iscu ssão sobre os títulos sobre as terras des 202 António Manuel Hesp estudantes de direito de Bolonha, "particularmente aos estu sos das leis divinas e sagradas", garantias de protecção e ixn dade (Autentica habita, 1158).223Todavia, em 1224, o impera para maior segurança, resolveu estabelecer uma universic imperial em Nápoles, sobre a qual podia exercer um controlo: efectivo 224 O papa Onório II (1216-1227) reconheceu que "dc cobertas, invocados pelos reis de Espanha e de Portugal com fundan na doação papal. Mas, de facto, a opinião de Búlgaro, que excluía o ] dos reis sobre as terras dos seus reinos tanquam proprietatem foi a que a triunfar, sobretudo depois de uma decisiva distinção de Baldo de dis "n a verdade, não têm a mesma razão e condição o direito públic perador (sobre o reino) e o das pessoas privadas (sobre as suas propi d es)", Proemium in Dig. Vet, § Om nem , apud. Canning, 1987, 37; já Ac ensaiara a mesm a distinção: "É mais verdadeiro dizer que são sua im perador] todas as coisas que estão na sua disposição, com o as fis patrimoniais [...]. De onde se conclui que o meu livro não é dele e qi mim e não a ele que é concedida a reivindicatio [acção de recuperar uma própria sua] directa", Acúrsio, Glosa ad C., 7,37,3, Bene a Zanone, v. i principis (cf. também Nicolini, 1952, 91 ss.).. ^ "E s ta b e le c e m o s p ortanto com esta lei universal e que deverá valer toda a eternidade, que daqui p ara o futuro ninguém seja tão atrj com o p ara fazer algum a ofensa aos escolares, e m uito m enos p o r < de algum a dívida em relação a algu ém da m esm a p rovín cia, o qu vim os acon tecer em virtu d e de um costu m e preverso [...] E aos qu sarem violar esta sag rad a lei, e a quem os dirigentes do lugar deix de punir, saibam que se d everá exigir a restituição em quádruplc coisas indevidam ente exigidas, e ap licad a a pena de infâm ia comtc rig o r da lei e serão p rivad os p ara sem p re dos seus lu gares e digi d es" (texto em Giorgini, 1988). ^ U m b e r to Eco, em Baudolino, dá um a im preesiva versão das relaçõe tre o im perador e os doutores bolonheses: "F o i d ar com o im peradoi te e iroso, andando p ara trás e para a frente nos seus aposentos, e , canto Reinaldo de Dassel esperava que ele se acalm asse. Frederico a altu ra p arou , fixou B audolino nos olhos e disse-lhe: "T u és testemu m eu rap az, de quanto m e tenho ato rm en tad o a pôr sob um a única ! cid ad es de Itália, m as de todas as vezes tenho de recom eçar do pi pio. Será errada a minha lei? Q uem m e d iz que a minha lei é justa Baudolino, quase sem p ensar: "S en h or, se com eças a pensar assim ca mais acabas, e afinal o im p erad o r existe m esm o para isso, ele r im perador por lhe virem as ideias justas, m as as ideias é que são j\ Cultura Jurídica Europeia 203 tudo bolonhês saíam os chefes que dirigem o povo do Senhor" (Grandi, 1962, 25). A. própria Comuna àe 'Bolonha - a quem os por virem dele, e basta". Frederico fitou-o, e depois disse a Reinaldo: "E ste rapaz diz as coisas melhor que vós todos! Se estas palavras fossem postas em bom latim, seriam adm iráveis!. "Quod princuitl habet legts habet vigorem, o que agrada ao príncipe tem vigor de lei", disse Reinaldo de Dassel. "Sim , soa muito sábio, e definitivo. Mas seria preciso que estivesse escrita no Evangetho, senão com o se pode persuadir todos a aceitarem esta belíssi­ ma ideia? "B em vim os o que aconteceu em R om a", disse Frederico, "se me fizer ungir pelo papa, adm ito ipso facto que o seu poder é superior ao rneu, se agarrar o papa pelo pescoço e o atirar ao Tibre, torno-m e um flagelo de Deus que nem Atila que Deus tem ".."O n d e diabo arranjo alguém que pos­ sa definir os m eus direitos seni pretender pôr-se acim a de m im? N ão exis­ te no m u n do". "T alvez não exista um poder assim — disse-lhe então Baudolino. M as existe o sab er"."O que queres dizer?". "Q uan d o o bispo Otão me contou o que é um studium, disse-m e que estas com unidades de m es­ tres e alunos funcionam por sua própria conta: Os alunos vêm de todo o m undo e não im porta quem é o seu soberano, e pagam os seus m estres, que assim depen d em só dos alunos. Assim se passam as coisas com os m estres de direito em Bolonha, e assim tam bem já acontece em Paris onde p rim ei­ ro os m estres ensinavam na escola catedral, e portanto dependiam do bis­ po, depois um belo dia foram ensinar para a M ontanha de Santa G enoveva, e tentam descobrir a verdade sem darem ouvidos nem ao bispo nem ao rei". "Se fosse o rei deles, eu é que os ensinava...". "M asm esm o que assim fosse? Seria assim se fizesses uma lei a reconheceres que os m estres de Bo­ lonha são de facto independentes de qualquer outra autoridade, tanto de ti com o do papa e de todos os outros soberanos, e estão só ao serviço da Lei. U m a vez que estão investidos desta dignidade, ünica no m undo, eles afirma que de acordo com a recta razão, a luz natural e a tradição a ünica lei é a rom ana e o único que a representa é o Sacro Rom ano Im perador e que, naturalm ente, com o tao bem disse o senhor Reinaldo, quod principi pia quit legis habet vigorem". "E porque deveriam des dizê-lo?". "Porque tu em troca lhes dás o direito de poderem dizê-lo, ejá não é pouco. Assim ficas satisfeito tu, ficam satisfeitos eles, e como dizia o meu pai G agliaudo, es­ tais os dois na m esm a barca", "Eles não aceitarão fazer uma coisa do géne­ ro", resm ungou Reinaldo. "Pelo contrário, sim — ilum inou-se o rosto de Frederico —, digo-te eu que aceitarão. Salvo que antes têm de fazer aquela declaraçãso, e depois dou-lhes eu a independência, senão todos pensam que o fizeram para pagar uma doação m inha"."N a minha opinião, nem que seja para virar o bico ao prego, se alguém quiser dizer que combinastes tudo, 204 António Manuel Hespanha legistas prestaram serviços jurídicos valiosos quer defendendoa do Império, como do Papado, e a quem o Estudo Geral dava renome e proventos económicos, procura cativar estudantes e di-lo-á na m esm a", com entou corn cepticism o Baudolino. ''M as sempre quero ver quem se levanta a dizer que os doutores de Bolonha não valem nada, depois de até o próprio im perador ir hum ildem ente pedir-lhes um parecer. Nessa altura o que eles tiverem dito é Evangelho". E foi assim que correu tudo, nesse m esm o ano em Roncaglia, onde pela segunda vez hou­ ve uma grande dieta. Para Baudolino foi acim a de tudo um grande espec­ táculo. Com o Rahewino lhe explicou — para que não pensasse que tudo o que via era apenas um jogo circense com bandeiras desfraldadas por toda a parte, insígnias, cortinas coloridas, m ercadores e jograis, Frederico man­ dara reconstruir, num a m argem do Pó, um típico acam pam ento romano, para recordar que era de Roma que provinha a sua dignidade. No centro do cam po estava a tenda imperial, com o um templo, e a fazer-lhe de coroa as tendas dos feudatários, vassalos e vassalos destes. Do lado de Frederico estavam o arcebispo de Colónia, o bispo de B am berga, Daniel de Praga, C orrado de A ugusta, e outros mais. Do outro lado do rio, o cardeal legado da cadeira apostólica, o patriarca de Aquileia, o arcebispo de Milão, os,bis­ pos de Turim, Alba, Ivrea, Asti, N ovara, Vercelli, Terdona, Pavia, Como, Lodi, C rem ona, Placência, Reggio, M odena, Bolonha e sabe-se lá quantos mais. Presidindo a esta assembleia majestosa e realm ente universal, Fre­ derico deu início as discussões. Em resum o (disse Baudolino p ara não en­ fastiar Niceta com as obras-prim as da oratória imperial, jurisprudencial e eclesiástica), quatro doutores de Bolonha, os mais fam osos, alunos do gran­ de Irnério, haviam sido convodados pelo im perador a exprim ir um insindicável parecer doutrinal sobre os seus poderes, e três deles, Búlgaro, Jacopo e U go de Porta R avegnana, exprim iram -se com o Frederico queria, ou seja, que o direito do im perador assentava na lei rom ana. De opinião dife­ rente tinha sido apenas uum tal M artino. "A que Frederico deve ter man­ dado arrancar os olhos", com entou Niceta. "D e m odo nenhum , senhor Ni­ ceta — respondeu-lhe Baudoino —'vos rom eus arrancais os olhos a este e aquele e já não percebeis onde está o direito, esquecendo o vosso grande Justiniano". Logo a seguir Frederico prom ulgou a Constitutio Habita, em que se reconhecia a autonom ia do estudo bolonhês, e se o estudo era autóno­ mo, M artino podia dizer o que quisesse e nem sequer o im perador podia tocar-lhe num pêlo. Que se lho tivesse tocado, então os doutores já não se­ riam autónom os, se n ão fossem autónom os o seu juízo n ão valeria nada, e Frederico arriscava-se a passar por usurpador" (trad. p ort., Lisboa, 2002). Cultura Jurídica Europeia 205 professores, 225 proibindo a exportação de livros jurídicos como se espionagem se tratasse .226 Os seus colegas das outras faculdades, nomeadamente os filósofos, invejam-nos, ao constatarem que "a ciência [filosófi­ ca] pouca utilidade presta aos seus professores, enquanto que, em contrapartida, a ciência das leis e a medicina lhes dão gran­ des proventos, pelo que a reputam de verdadeira ciência, ao passo que não dão grande crédito nem à ciência filosófica nem aos filósofos" (ibid., 26). Basicamente, o Studium era uma corporação (universitas, nome técnico do direito romano para um conjunto de pessoas ou 225"Estabelecem os e ordenam os que as pensões e casas nas quais habitem es­ colares não possam ser destruídas .... por causa de dívidas, rebeliões, mul­ tas ou condenações dos donos das casa, nem possam ser ocupadas por oitros para serem habitadaa, m as antes sejam deixadas livres para eles por todo o an o" (Estatutos de 1288, VIII, 4); "Estabelecem os além disso que a nenhum artesão ou gram ático (professor de prim eiras letras, cujos alunos liam em voz alta, fazendo barulho) sejam alugadas casas junto ás dos estu­ dantes ou das escolas" (Estatutos de 1288, VIII,16); "Q ue os estudantes pos­ sam com p rar trigo para si e para os seus criados segundo as suas necessi­ dades ... apesar das proibições sou limitações feitas ou a fazer ... aos preços impotos aos vendedores" (ib., 16); "Q u e os livreiros sejam obrigados a ter os exem plares bem corrigidos . e que não façam pacto com algum doutor para suprim ir qualquer "ap arato " (com entário" antigo ... e que os mesmos não ven dam nem com prem por si ou interposta pessoa nenhum livro sem conhecimento dos vendedores" (Estatutos de 1250, VII, 14). Se qualcuno verrà in questa città da un'altra città, alio scopo di condurre gli studenti in altro luogo, sara denunciato aí Podestà e sara trattenuto fino al tem po in cui avrà pagato cento lire (di denaro) imperiale* e se al podestà risultasse certo che fosse venuto (a Bologna) proprio per questo motivo sia punito con (una multa) di duecento lire di holognini 1250, VII, 10. “ "Se alguém ch egar a esta cidade, vindo de outra, a fim de induzir os estu­ dantes a m udar-se para outro lugar, será denunciado ao podestà e retido até pagar 100 liras de dinheiro im perial" (Estattutos de 1250, VII, 10).; "Se se encontrar alguém a fazer ou a ter feito qualquer conspiração para transferiro Studium da cidade de Bolonha para outro lugar será banido perpetua­ mente, sendo os seus bens, tornado-se todos os seus bens propriedade da comuna, ficando m etade para o acu sad or" (Estatutos de 1250, VII, 11). 206 António Manuel Hespa de bens dotado de uma identidade jurídica) de estudantes, contratavam (e pagavam) professores para os ensinarem, ele^ do os reitores (um, para os estudantes de "nação" italiana (c montani), outro para os de "nação" ultramontana e atribuindo i meio dos reitores, os graus de bacharel (bachalauretaus, gradui laureatus). Ao lado, existia uma associação de professores, atribuía o grau de doutor meramente académico (doctor). Os estudos jurídicas eram, em rigor, do tipo daquilo a hoje se chamaria de pós-graduação, já que os estudantes tini que cursar, primeiro, as chamadas artes liberales (gramática gica, aritmética, geometria, astronomia e música), o que exp a contínua presença de referências não jurídicas - aquilo a os juristas romanos tinham designado por rerum humanarur. que divirarum notitia, ou, mais simplesmente, por natura rei natureza das coisas - no raciocínio jurídico Os dois juristas mais famosos desta escola são, sem dúv o seu fundador - Imério - e Acúrsio, o compilador final de to sua produção doutrinal - na Magna Glosa ou Glosa de Acúrsi 1250). Outros, no entanto, tiveram vasta influência. Refiran sobretudo, os directos discípulos de Imério (Martinho, Búlg Jacobus, Hugo), os "civilista" Azo (m. C. 1220; autor de uma pularíssima Sumnta codicis) e Odofredo (m. 1265; escritor arr< to e usual contador de anedotas, mas também jurista de mér o "canonista" Henrique de Susa (m. 1271), mais conhecido cc o "cardeal Hostiense",227ou Giovanni d'Andrea (m. 1348). Entre si, mantinham opiniões contrárias que, quando i diam sobre questões de grande impacto político - como os deres do imperador, a validade do direito comunal frente a< império ou ao direito romano - ficaram na memória do Stud 227 Dentre os espanhóis, citeni-se os "decretistas" (com entadores do Deere João e Lourenço Hispano e os "decretalistas" (com entadores das Decn Vicente Hispano e Raimundo de Penyafort. Cf. W eim ar, 1 9 7 3 ,1 5 5 ss. va, 1991. Em Portugal foi grande a influência de Acúrsio, de Azo e do ] tiense, a avaliar pelas cópias aqui existentes das suas obras, cf. Pereira, 1 7. Sobre a influência de Acúrsio, Costa, 1966, 41. Cultura ]urídica Europeia 207 como controvérsias entre "esco la s". A este propósito, }á aludi­ mos à questão da conceptualização do poder do imperador so­ bre o mundo. Outra questão crítica era, também, a do titulari­ dade do poder supremo (merum unperium). Azo, um célebre glosador bolonhês, pergunta-se sobre se "Se o mero império só com­ pete ao príncipe ? Pois dizem que só ele o tem. Diz-se deste po­ der ser mero (simples) pois se exerce sem outorga (prelatura) de ninguém. Mas certamente que os magistrados sublimes 228 têm mero império, se é correcta a definição da lei a que nos referi­ mos. Pois também os governadores das províncias tem o direi­ to de punir [ius g la á ii...], não o tendo já os magistrados munici­ pais [...]. Daí que eu diga que a jurisdição plena ou planíssima apenas compete ao príncipe, mas o império mero compete tam­ bém a outros magistrados sublimes; apesar de, com isto, se ter perdido um cavalo, o que não foi justo" .229 230 Este texto dá-nos uma boa ideia do método de trabalho dos glosadores. Azo não discute as situações jurídicas do seu tempo. Discute, sim, a interpretação de conceitos (imperium merum, plena vel plenissima potestas, magistratus sublimes) contidos em textos de direito romano, muitas vezes com referências a magistrados, pro­ blemas ou situações já inexistentes. Do que se trata, depois, é de saber como encaixar a vida corrente, com os seus interesses con­ cretos, naqueles esquemas conceptuais. Sendo porém certo que, para estes juristas, a legitimação das soluções decorria, não da sua adaptabilidade à vida, mas da sua coerência com um modelo do mundo considerado como racional e eterno. De eminente interesse político era, também, a questão do ca­ rácter vinculante das leis para quem governava. Ou seja, a questão de saber se a vontade do príncipe podia alterar a ordem (ou razão) do direito ("An in iure pro ratione stat voluntas", era como eles for- 228Trata-se de um a classificação do direito bizantino, de problemática aplica­ ção às m agistraturas m edievais, cf. H espanha, 1984a], 229Referência à anedota de M artinho e Búlgaro. 230Azo, Summa super Codiccm, ad C od., 3, 13 (De iurisdictione om nium judicum ), apud Pennington, 18. 208 António M anuel Hespanha mulavam a questão). Intimamente conexa com esta, estava a ques­ tão de saber se o poder do príncipe (do Papa) era pleno, puro ou absoluto. Lourenço Hispano (c. 1215) aborda a questão, a propósi­ to do poder do Papa, dizendo. "Por isso se diz que [o Papa] goza do arbítrio divino [C.,1,1,1,1] e, mas como é grande o poder do prín­ cipe, pois pode mesmo mudar a natureza das coisas, aplicando a substância de uma coisa a outras [C., 6,43,2], podendo tomar in­ justa a mesma justiça, como quando corrige algum cânone ou lei, pois quando exprime a sua vontade, esta faz as vezes da razão (I, 1,2,6]...] Em todo o caso, ele deve conformar o seu poder àquilo que é exigido pela utilidade pública" (Ad Compilatione III,. 1,5,3,, v. puri hominis, apud Pennington, 1993,46 (trad. minha). Posta em relação ao Papa, a questão parecia mais clara (sobretudo aos curialistas), dada a origem divina do seu poder; embora a concessão de um poder absoluto prejudicasse as prerrogativas episcopais (também de instituição divina e, para muitos, anterior ao primado do bispo de Roma) e, por isso, não fosse aceite por todos os canonistas, no­ meadamente, pelos conciliaristas. Posta a questão em relação aos reis, a questão era menos clara, embora a assimilação entre "papa" e "príncipe" começasse a ser frequente. Assim, Henrique de Susa, no seu comentário à Novellae de Inocêncio IV, formula uma série de imagens que ficarão na tradição jurídica realista até ao fim do An­ tigo Regime e que justificarão o poder dos reis para se afastarem das leis, não tanto revogando-as (pois a legitimidade para revogar as suas próprias leis correspondia a uma potestas legislativa dos reis, desde cedo geralmente reconhecida), mas, sobretudo, dispensan­ do-as, i.e., não as aplicando em casos concretos.231 Era isto que per­ mitia aos príncipes realizar autênticos milagres, como legitimar bastardos, emancipar menores, perdoar criminosos, embora tudo 231 "N ão é de ad m irar que estas coisas [os poderes de "g ra ç a "] apenas sejam concedidas ao príncipe, pois elas são quase com o m ilagres e contra a natu­ reza [...] costum a dizer-se que o príncipe, um a v ez que é a lei viva, pode transform ar os quadrados em círculos e dispor de tudo enquanto senhor, salva a violação da fé [...]" (cit. por Pennington, com u m a tradução que me parece mais fiel ao pensam ento do H ostiense, 54). Cultura Jurídica Europeia 209 isto devesse ter em vista, não uma modificação arbitrária do direi­ to, mas o aperfeiçoamento da justiça nos casos concretos (cf., sobre esta flexibilização do direito por meio da graça régia, 5.3.8.1). 5 .5 .2 . A Escola dos Com entadores O surto urbanista e mercantil dos séculos XIII e XIV come­ ça por se traduzir, no plano jurídico, por uma valorização dos direitos locais (especialmente dos "estatutos" das cidades itali­ anas) frente ao direito comum cultivado pelos letrados e domi­ nante, por seu intermédio, nas chancelarias reais. Se os juristas universitários estavam dispostos a aceitar a (relativa) fixidez do direito comum, baseado em fontes imutáveis ("olim... ergo hodie"), já os estatutos das cidades afirmavam, enfaticamente, o devir da vida e do direito . 232 Com a progressiva extensão deste novo tipo de vida eco­ nómica e social a regiões cada vez mais vastas e com o estabele­ cimento de laços comerciais inter-citadinos e inter-estaduais, tomou-se necessário que estes princípios de direito novo intro­ duzidos pelos iura própria nas cidades italianas fossem integra­ das no ius commune (romano-justinianeu) e que este, de um amontoado de normas (agora) de proveniência diversa (romano-justinianeias, romano-vulgares, canónicas e estatutárias), se transformasse num corpo orgânico dominado por princípios sistematizadores, que correspondesse ao ideal intelectual de um discurso orgânico, embora, como dissemos, respeitador dos pontos de vista dissonantes .233 Está, portanto, em pleno desen­ volvimento um processo de integração de princípios novos oriundos de necessidades de novos estímulos sociais (aqui in­ cluídos os culturais) e inicialmente incorporados nos direitos próprios, mais sensíveis à vida - no ius commune. O ideal de con- 232Lê-se no prefácio dos estatutos de Gaeta: "Se as próprias leis são contingen­ tes, em virtude de se m odificar o m odo de ser das épocas (temporum qualitate), porque adm irar-se se os estatutos de vez em quando requerem m odi­ ficação de algum as disposições particulares?". V. Calasso, 1954, 492. 233Sobre isto v. Villey, 1968, 540; W ieacker, 1980, 78 ss. 210 António Manuel Hespi córdia legislativa é perseguido pelos juristas não só no limiti direito romano-justinianeu (objectivo que, como vimos, nãc de todo estranho aos glosadores), mas relativamente a toc ordenamento jurídico positivo. A contínua referência, a p; do século XIV, ao direito antigo e ao direito novo e, sobreti ao problema das suas relações mútuas, reflecte plenamen processo histórico de actualização e alargamento do sistem; direito comum. Esta foi a tarefa de uma nova geração de juristas erudil que a historiografia tem designado por post-glosadores, prát consiliadores ou comentadores; juristas a que, pelo seu papel ( fluência (até ao século XVIII) na história jurídica europeia, Fi Wieacker não hesita em chamar "arquitectos da modernid europeia", ao lado de Dante, Giotto e Petrarca (de quem, de rc são contemporâneos). O fundador da escola foi Cino de Pistóia (1270-1336 Pistóia, em cujo Duomo jaz) - contemporâneo e conterrânec grande poeta italiano do pré-renascimento Dante Alighieri rista, pré-humanista e poeta do dolce stil nuovo. Mas o jurista r influente nela inserido foi, sem dúvida, o seu discípulo Bár de Sassoferrato (1314-1357), de Perugia, jurista ímpar (lumir lucerna iuris, luz e lanterna do direito, lhe chamaram os cont porâneos) na história do direito ocidental que, numa vide pouco mais de trinta anos, produziu uma obra monumenta sua influência na tradição jurídica europeia durou até ao séc XVIII, a ponto de se ter criado o dito "nemo jurista nisi bartoli (ninguém é jurista se não for bartolista). Outros juristas íai sos desta escola foram Baldo de Ubaldis (1327-1400), homen grande cultura filosófica, correntemente citado ao lado de 1 tolo; Paulo de Castro (m. 1441) - já influenciado pelas rnovaç intelectuais (muito relevantes para o pensamento jurídico} escolástica franciscana (G. Occam, D. Scotto, cf. supra, 4.3.), são dei Maino (1435-1519 [Pavia]), já contemporâneo da d< dência da escola; e, ainda, Raffaele Fulgosio (1367-1427 [Padc o já referido bolonhês Giovanni d'Andrea, a cavalo entre as d escolas e Nicolau de Tudeschi (mais conhecido pelo "A h Panormitano"; 1401-1467 [Siena]). Cultura Jurídica Europeia 211 São estes juristas que, debruçar\do-se pela primeira vez so­ bre todo o corpo do direito (direito romano, direito canónico, direito feudal, estatutos das cidades) e orientados por finalida­ des marcadamente práticas, vão procurar unificá-lo e adaptá-lo às necessidades normativas dos fins da Idade M édia .234 Na raiz da nova atitude intelectual dos Comentadores, nes­ ta equiparação do direito "vivido" ao direito contido nas fontes da tradição, está uma nova atitude perante a tensão entre verda­ de e realidade, que podemos relacionar com o advento da esco­ lástica tomista. No ambiente cultural e filosófico da Idade Média, a esco­ lástica (filosofia e teologia ensinadas nas escolas) representa, de facto, uma reacção contra aquelas correntes "integristas" que queriam reduzir todo o saber válido e legítimo ao saber contido nos textos da autoridade e que recomendavam, para a resolu­ ção de todos ós problemas, práticos e teóricos, uma atenção ex­ clusiva à verdade revelada ou ao argumento da autoridade, pondo de quarentena a razão e toda a actividade racional. As­ sim, as ciências e artes laicas (e entre elas o direito) só eram es­ tudadas enquanto tivessem qualquer utilidade para a interpre­ tação da tradição dotada de autoridade (nomeadamente, no pla­ no religioso, das Escrituras). No século XII, porém, verifica-se uma profunda mutação no panorama cultural e filosófico, conhecida como "renascimento do século XII" ou "revolução escolástica", provocada imediatamen­ te, pela descoberta de novos textos lógicos de Aristóteles. Esta descoberta, juntamente com o progressivo reconheci­ mento de que os textos das Escrituras são insuficientes para a resolução de todos os novos problemas sociais e culturais, vem provocar o restabelecimento da crença na razão e o renascimen­ to, por todo o lado, das ciências profanas. O conflito da razão e 234Sobre a escola dos com entadores, v., por todos, VVieacker, 1980, 78 ss.; Calasso, 1954,469-563. Para Portugal, Silva, 1991,181 ss. Para o seu pensamento jurídico e político, além de algum as das obras já referidas, v. VVoolf, 1913 e 1901; a bibliografia citada por W iduckel, 1979, 63 ss. e Dolcini, 1983. 212 António M anuel Hespanha da fé (tão temido durante todos os séculos XI e XII pelas corren­ tes integristas) deixa de ser possível, pois os campos de exercí­ cio de uma e de outra aparecem delimitados. Embora, no cam­ po da teologia, a intromissão dos processos racionais aprendi­ dos dos filósofos pagãos, gregos e romanos, seja suspeita, nas disciplinas mundanas, desde o direito e moral até à filosofia e ciências naturais, a livre investigação intelectual é de regra. Instaura-se, portanto, uma atitude filosófica que poderemos classificar de realista e de racionalista. De realista porque se pro­ põe investigar, não o que o textos sagrados ou da autoridade dizem das coisas, mas a própria natureza das coisas. De racio­ nalista porque procura levar a cabo esta investigação com o au­ xílio de processos racionais, processos estes cuidadosamente disciplinados por regras de "pensar correctam ente" (lógica) aprendidas dos filósofos clássicos (sobretudo, de Aristóteles). Todavia, a ideia de que o direito - repositório da experiên­ cia, leitura da natureza (divina) das coisas - consiste num con­ junto de normas que o intérprete pouco poderá alterar fazia com que, para os Comentadores, como para os Glosadores, a ordem jurídica representasse um dado basicamente indiscutível, ain­ da quando ela se mostrasse contraditória e desactualizada. Por­ tanto, a tarefa de actualização e de sistematização do direito terá de ser fundamentalmente realizada no interior de uma ordem prefixada autoritariamente, aparecendo formalmente como uma tarefa de mera interpretação. Ao serviço da interpretação são agora colocados meios lógico-dogmáticos imponentes, a maior parte deles provenientes da renovação lógica (Lógica Nova) subsequente à redescoberta de importantes textos aristotélicos (Tópicos e Elencos Sofísticos). Foi esta ruptura no plano dos instrumentos intelectuais que permitiu aos comentadores criar inovações dogmáticas que, por corresponderem também às aspirações normativas do seu tem­ po, vieram a tomar-se dados permanentes da doutrina posterior. Se, simplificando um pouco, se pode dizer que a activida­ de dos glosadores era sobretudo académica, ]á a dos comenta­ dores - também simplificadamente, pois quase todos foram.pro­ fessor es universitários - foi mais frequentemente orientada para Cultura Jurídica Europeia 213 a prática, como consultores de magistrados e de particulares. De facto, a partir dos meados do séc. XIII, tinha surgido a doutrina - naturalmente favorecida pelos próprios juristas - de que os magistrados, frequentemente pouco sabedores de direito (co­ mum) e sem dinheiro pagar a um bom assessor permanente, "deviam, por direito e bons costumes" aconselhar-se com um especialista, de tal modo que, como escreveu o português João de Deus (m. 1253), "é também costume aprovado que a senten­ ça não se torne definitiva senão com depois de conselho dos peritos" [est etiam approbata consuetuão ut non feratur ãiffinitiva [sententiam] sine consilio sapientium ].235236 Esta literatura consiliar seria, de resto, mais rica do que a meramente escolástica, pois, ao passo que esta última podia reproduzir apenas a opinião sin­ gular do professor, a opinião do consulente tinha que dar conta do estado da questão, segundo as opiniões mais recebidas ["seja o que for que digam ao dar aulas, ao julgar, quando há várias opiniões dos doutores, é de seguir a que for comprovada por mais testemunhos", Jasão dei Maino, cit. por Lombardi, 1975,145 n. 123].237238 Este novo modelo de pensar sobre o direito esteve na ori­ gem de teorias e figuras dogmáticas novas. Entre elas, refiram-se as seguintes. (i) A teoria da pluralidade das situações reais (i.e., das relações entre os homens e as coisas, res). Ao contrário do que hoje acontece, em que a relação entre o homem e os bens é 235Apud Lom bardi, 1 9 7 5 ,1 2 7 , onde se pode ver um a completa exposição da teoria do consilium sapientium no direito comum. Com o fonte: Pace Scala, De consilio sapientis in forensibus causis adhibendo, Venetiis, 1540; Tiberius Decianus, Apologia pro iuris prudentibus qui responsa sua edunt imprimenda [...], Vnetiis, 1579. 236Mais tarde, dir-se-á tam bém que se presum e feita sob erro a lei do rei pro­ mulgada sem ouvir o conselho dos juristas. 237Sobre esta questão da opinião com um dos doutores, v. infra 5. 6.2.3). 238Em contrapartida, os detractores da literatura consiliar destacam a falta de independência e a parcialidade do consulente, face à independência do professor (v. Lombardi, 1 9 7 5 ,1 4 1 ss.). 214 António ManuelHesp con figu rada com o uma relação exclusiva e absolut tre o sujeito e a coisa , 239 o direito medieval concebia miniunt (i.e., o direito sobre uma coisa) como podend não exclusivo, podendo coexistir com outros direit« outros titulares incidindo sobre a mesma coisa. Na dade, as coisas, se têm uma substância única, têrr contrapartida, diversas utilidades. São susceptíve vários planos de utilização, entre si compatíveis. £ cada um destes planos pode existir um direito absc (embora limitado a esse plano) a favor de uma pe Embora o domínio sobre todas as utilidades da coi propriedade) seja a situação real mais completa e de rarquia superior, a faculdade de usufruir de algum; lidade particular, desde que suficientemente enrai na coisa, não deixa de ser uma forma de domínio, o mesma dignidade que a propriedade. Isto aplicava-se, nomeadamente, a situações muito cor na constituição fundiária medieval, como a enfiteuse, o fe o arrendamento por longo prazo, o censo, a situação do a nistrador do morgado; ou seja, a situações em que sobre a ma coisa coexistiam direitos titulados em diversas pessoas permitiam a cada uma delas usufruir de uma utilidade .240 Baseada na referida "leitura" da natureza das coisas, a trina jurídica dos comentadores pode construir a teoria d' rnínio dividido, segundo a qual era possível conceituar como dadeiros donos (domini, titulares de áominium) todos estes lares. Uns eram-no por terem um direito sobre a própria s tância da coisa, embora este direito pudesse ser apenas fo 239A propriedade é definida com o um poder de usar e de abusar ( i.e., d< sem quaisquer limites, naturais ou éticos) de uma coisa, com a facu de excluir desse uso todos os outros. 240O cultivo, como na posição do rendeiro ou do enfiteuta; a percepção d< prestação periódica relativa ao terreno, com o nas posições do senhc senhorio enfitêutico ou censítico; a cobrança dos tributos fundiários, na situação do feudatário; a m era adm inistração e fruição, com o nc do adm inistrador do m orgado Cultura. }\iT\AvcaE u t oçeVa. (ü.g., uma simples inscrição cadastral). Eram os titulares do dominium directum, titulares de uma ac tio directa (acção fundada no direito formal) para protecção dos seus direitos. Outros eramno por, em face da situação em que estavam de usufruir perma­ nentemente de uma utilidade da coisa, serem como que desig­ nados pela própria coisa (não pelo direito formal) como seus "donos úteis", titulares de um dominium utile e da respectiva actio utilis (acção baseada num direito que brota da própria rela­ ção de utilização). Apesar da substância da coisa ser uma só, o facto de o direito brotar da realidade da vida sugere-lhe que uma coisa possa ter vários donos, já que o dominium visa usos plu­ rais das coisas e não a sua essência . 241 ii) Aplicação espacial dos ordenamentos jurídicos (teoria "esta tutária"). O mesmo tipo de realismo caracteriza a solu­ ção que é dada aos conflitos espaciais de normas jurídi­ cas. O direito alto-medieval identificava o problema da aplicação espacial do direito com o da pertinência a uma "nação", a um grupo humano (Personenverband). Assim, o âmbito de aplicação de um direito coincidia com o âm­ bito de uma tribo ou de uma comunidade ligada por la­ ços de sangue e de tradição. Ou seja, o direito tinha uma aplicação p e sso a l. Com a constituição dos reinos euro­ peus, durante os séculos IX a XII, tendeu-se para consi­ derar o direito como uma emanação do poder político (iurisdictio) que o tivesse editado, devendo a hierarquia das normas corresponder à hierarquia dos poderes polí­ ticos. Assim, tendeu-se então para uma concepção terri­ torial do poder, segundo a qual as leis deviam vigorar territorialm ente, independentem ente da naturalidade dos sujeitos a que se devessem aplicar, da situação dos bens a que se referiam, do lugar de celebração dos negó­ cios jurídicos ou d o direito do foro que conhecia a causa. Qualquer destas duas concepções quanto ao âmbito de aplicação dos direitos levavam à adopção de critérios rígidos, 241 Sobre o tema, v. Grossi, 1968; H espanha, 1995, cap. 2.3. 216 António M anuel Hespanha indiferentes à variedade das situações e às propostas de solução que elas mesmas continham. Os com entadores - que vivem numa época em que estes problemas se multiplicam, ao acen­ tuar-se a mobilidade das pessoas - vão precisamente escutar esta variedade das situações da vida, formulando critérios casuísticos e desamarrando a questão dos conflitos de leis dos critérios únicos da pertença "nacional" ou da sujeição política. Embora partam da regra de que a lei só se aplica, em princípio, aos súb­ ditos , 242 introduzem todavia limitações inspiradas por soluções casuísticas contidas nos textos romanos, bem como por razões de equidade. Assim, os contratos e testamentos reger-se-iam pela lei do local da sua celebração (lex actus); o processo, pela lei do foro (lexfori); o estatuto pessoal, pela lei do interessado; a situa­ ção jurídica de imóveis, pela lei da sua localização (lex rei sitae)-, os actos exprimindo o poder político (v.g., punição, fiscalidade, administração, etc.) estavam sujeitos à legislação territorial. Es­ tas soluções podem ser compendiadas na fórmula de que o al­ cance de aplicação das normas está ligado ao alcance do poder de quem as edita: assim, no caso de bens imóveis, coincide com o território, no caso de pessoas, coincide com o universo dos súbditos .243 Novamente, uma enorme atenção ao plano dos fac­ tos, que se consuma na adopção de soluções casuísticas e na re­ cusa de esquemas rígidos, abstractos e imobilistas. iii) A teoria da naturalidade do poder político (iurisdictio). Outro campo em que se manifesta esta sensibilidade dos comen­ tadores em relação à ordem implícita na própria realida­ de e à variabilidade que esta comporta (à "oficina das coi­ sas") é o da teoria da origem e legitimação do poder polí­ tico, nomeadamente, da faculdade de editar normas jurí­ 242O texto de arranque era C., 1,1,1, Cunctos populos ...: "Q uerem os que todos os povos, regidos pelo império da nossa clemência Este princípio partia ainda da identificação entre conflito de leis e conflito de poderes políticos, embora definisse doutra forma (segundo critérios pessoais e não territoriais) o âmbito do poder político. Sobre este tem a v . Coing, 198 9 ,1 ,1 0 6 -1 0 7 . 243 Coing, 1 9 8 9 ,1 ,1 3 8 ss. E m P ortu gal, a teoria estatutária vigorou até ao sécu­ lo XIX. Cf. Ord. fil„ 11 ,5 5 ,1 -3 . Cultura Jurídica Europeia 217 dicas e de declarar o direito ("ius-dicere"). Anteriormen­ te, como vimos,, dominava uma concepção autoritária do poder normativo e jurisdicional, segundo a qual este era um atributo do príncipe, como sucessor do Imperador ou como vigário de Cristo (nulla potestas nisi a Deo [não há poder senão o que vem de Deus], formulação típica do augustinianismo jurídico-político). Todos os poderes exer­ cidos na sociedade teriam esta fonte, sendo produtos de uma permissão ou de uma delegação da jurisdição (delegatio iurisãictionis). A Glosa ainda insiste neste carácter publicístico do poder, ao definir a iurisdictio como "potes­ tas de publico introducta cum necessitate iurisdicendi, et aequitatis statuendae" (poder introduzido pela autorida­ de pública com a faculdade de dizer o direito e estatuir a equidade ) . 244 Na sociedade medieval, no entanto, isto não correspondia à realidade. Existiam poderes diversos e de diferente hierarquia e âmbito, sem que se pudesse dizer que a sua existência decorria de uma permissão do Impe­ rador. A novidade introduzida pelos comentadores (so­ bretudo, Baldo) foi a de afirmar que os poderes existentes na sociedade tinham uma origem natural, independente de qualquer concessão superior, pois a própria existência de corpos sociais implicaria naturalmente a sua ordenação íntima e esta a faculdade de auto-regulação. Daí que se tenha começado a tender para uma concepção do poder político como algo pertencente à própria ordem das coi­ sas, que, ao instituir corpos humanos organizados, lhes tinha, implicitamente, outorgado a faculdade de autopro­ 244Também Bártolo sublinha este carácter público (i.e., relacionado com interesses colectivos) do poder político acrescentando à definição a expressão "enquanto pessoa" pública (tanquam persoria publica), o que excluiria da iurisdictio os po­ deres que alguém detêm sobre outro, em vista da consecução de interesses privados (v.g., o poder do pai sobre os filhos, do senhor sobre os servos). E daqui que decorre a distinção entre iurisdictio, coertio e dominium, a primeira visando interesses colectivos, os segundos interesses privados, v., sobre a distinção entre iurisdictium e dominium, Grossi, 1992, 3 16,323. Sobre iurisdic­ tio e coertio [domestica, herilis], Hespanha, 1984,8-9; 1995, cap. 4.4. 218 António Manuel He; moção ("os povos [as comunidades] existem em vi do direito das gentes [do direito natural]; mas o go não pode existir sem leis e estatutos; por isso, pelo mo facto de os povos existirem, têm um governo irr to no seu próprio ser, tal como todos os animais se i pelo seu espírito e alma", Baldo, comentando a lei C populi, D.,1,2,1). Mas, assim pulverizado e dividido n da mesmo sociedade, o poder não pode ter sempre c mo conteúdo, pelo que a teoria tardo-medieval da ui tio é levada a distinguir vários níveis e âmbitos de p Assim, no seio da iurisdictio genericamente concebii juristas distinguem entre a ordinaria (estabelecido p> ou pelo costume, abarcando a universalidade das cz e a delegata (concedida, por rescrito ou privilégio, pa: tipo especial de causas ou para certa causa individu da). Mas distinguem ainda, segundo o âmbito de po que encerram, sucessivos subtipos de iurisdictio.245 O primeiro é o imperium, conjunto de poderes que o j titular do poder político) exerce por sua iniciativa. O imp, encontra-se, por sua vez, subdividido em merum imperiu jurisdição que se exerce por iniciativa própria ou mediantí sação, visando a utilidade pública " ) , 246247 englobando as J 245 Esta concepção de iurisdictio com o um conjunto hierarquizado de ( de poder exprim e-se, graficam ente, sob o aspecto de um a árvore rai da (arbor iurisdictionis [árvore da jurisdição]). 146 Esta definição, com o as seguintes, são de Bártolo, no Comm. in Dig. V De iurisd. omnium iudicum, pr., v. "iurisdictio". 247 O merum imperium ainda aparece subdividido em seis graus. O itnperiun mum (mero império máximo) inclui os poderes supremos do principie i maiora), como fazer leis, reunir cortes, confiscar bens, criar notários, etc perium maius (mero império maior) abarca, nomeadamente, o poder pi (habere gladii potestatem ad animadvertendumfacinorosos homines, "ter o po gládio para castigar os facínoras", D.,2,1,3) relativo às penas capitais (m< decepamento de membro, perda da liberdade, perda da cidadania). C rium magnum (mero império grande) inclui a deportação. O imperium y. (mero império pequeno), o desterro e a perda da qualidade de vizinho. C últimos graus (imperium minus e minimum), a faculdade de aplicar actos erção menores (modica coertió), como multas e repreensões. Cultura Jurídica Europeia 219 dades políticas superiores que visam a utilidade da comunida­ de no seu todo; e mixtum imperium ("o que se exerce por iniciati va própria visando alguma utilidade privada"), abarcando a; faculdades de actuação autónoma do juiz tendo em vista a rea lização de um interesse, não já comum, mas particular . 248 Quanto à lurisdictio - que consistia na faculdade de dizer < direito numa causa em que dois interesses particulares e contra postos entravam em conflito -, ela incluía também os mesmo seis graus, definidos agora a partir da importância da causa oi questão .249 Em suma, esta concepção naturalista e hierarquiza da do poder político permite dar conta da pluralidade e coexis tência de poderes numa sociedade corporativa, como a medie vai; permitindo que eles coexistam harmonicamente dentro da respectivas esferas de vigência. 248Tam bém o mixtum imperium se encontra dividido em seis subtipos, de acordi com a im portância dos efeitos produzidos e o grau de conhecim ento d. causa suposto pelo seu exercício. O mixtum imperium magnum integrava o expedientes que im plicavam a derrogação de uma norm a geral em v ist do interesse particular, ou seja, os casos em que o príncipe (único titula desta faculdade) dispensava de um a norm a jurídica certo caso partícula (com o nos casos da em ancipação, da legitim ação, da concessão de ben com uns a particulares). O maius incluía o poder de conhecer, em recursc de decisões dos tribunais ordinários. O magnum, os decretos do poder vi san do a utilidade particular (com o os rem édios possessórios: interdictc, missiones in possessionem, etc.). O parvum, decretos visando a m esm a finali dade, m as desprovidos de efeitos coercitivos (v.g., a datio tutoris [nomea ção de um tutor]). Finalmente, os dois últimos graus, aquelas ordens qui apenas m obilizavam meios de poder mínimos (com o a faculdade de orde nar certos actos processuais (missio in possessionem cx primo decreto [autori zação para a manumissão]). 249No prim eiro grau (iurisdictio maxima) entravam as causas que tocavam ai estatuto das pessoas (liberdade, cidadania) ou à sua fama. No segundo grai (iurisdictio maior), as causas que podiam levar à aplicação de penas corpo rais no caso de incumprim ento da decisão do tribunal (v.g., prisão por dí vidas). N o terceiro (iurisdictio magna), a decisão das causas de valor eleva do (300 aurei). Nos restantes graus, outras causas de incidência patrim oni al, m as de valor sucessivam ente menor. 220 António M anuel Hespanha Mas o impacto mais decisivo da actividade e do saber dos comentadores sobre a vida jurídica, política e social europeia foi constituído, mais do que pelas suas inovações dogmáticas, pelo seu contributo para a constituição de uma categoria social, à qual passou a ficar cometida a resolução dos diferendos sociais com recurso a uma técnica racional, embora suficientemente hermé­ tica para estar fora do alcance do homem comum. A categoria dos juristas - pois a ela nos referimos - passa, então, a desempe­ nhar um papel central no equilíbrio político e social europeu; inicialmente, na administração central e na diplomacia, lidan­ do, portanto, com as grandes questões políticas da sociedade; mais tarde, na administração local e na aplicação da justiça, as­ sumindo então um papel arbitrai no quotidiano da vida social. . . O modelo discursivo do direito comum europeu 5 6 5 .6 . 1 . Génese do m odelo do discurso jurídico m edieval A origem do direito, a natureza do justo, sempre constituí­ ram, em todas as épocas e em todas as sociedades, questões em aberto; para lhes dar resposta se têm elaborado mitos e doutri­ nas filosóficas de muitas matizes. Fundamentalmente, as posi­ ções têm oscilado entre o voluntarismo e o racionalismo. Para o voluntarismo, o direito é o produto de uma vonta­ de - a vontade divina, a vontade do legislador ou do príncipe, a vontade geral - cujo conteúdo é, em princípio, arbitrário. Daí que o jurista apenas tenha uma forma de descobrir o que é justo interpretar, da forma mais humilde possível, a vontade da enti­ dade que quis o direito. Este toma-se, assim, num dado indis­ ponível a que o intérprete apenas tem que obedecer. Para o racionalismo, pelo contrário, o direito constitui uma ordem pré-estabelecida - inscrita na natureza humana ou na natureza das coisas - à qual se pode aceder mediante um uso adequado da razão. Os efeitos de uma ou de outra atitude são opostos. Nas épocas em que predominam concepções do primeiro tipo, parece haver uma pequena margem para se exercitar uma Cultura Jurídica Europeia 221 actividade doutrinal autónoma sobre o direito. Pois esta consis­ te numa via raciocinante de acesso ao "justo" (à solução justa ou jurídica dos problemas), via esta que o voluntarismo começa por negar. Toda a ars inveniendi (i.e., a técnica de encontrar a solu­ ção jurídica) se reduzirá, portanto, a interpretar, de forma mais ou menos subserviente, as fontes de direito sem qualquer intui­ to de criação jurídica autónoma. A atitude do voluntarismo não é, de modo algum, pensar o direito mas, em vez disso, obedecer ao direito. Já nas épocas em que domina uma concepção racionalista do direito, se propõe uma técnica, mais ou menos rigorosa, de encontrar racionalmente o justo. Como agora se acredita que o direito pode ser encontrado raciocinando, toda a preocupação dos juristas é fixar o caminho, o curso, que a razão terá que per­ correr (discurso) para encontrar a solução jurídica. E vai surgir, assim, uma intensa actividade metodológica tendente a desco­ brir as correctas regras do pensamento jurídico. Mas, por outro lado, a questão tem outra face, documenta­ da pela história. Esta demonstra, efectivamente, que algumas das grandes épocas da dogmática jurídica (i.e., aquelas de que da­ tam a maior parte dos instrumentos lógicos, dialécticos e con­ ceituais ainda hoje usados) são aquelas em que domina uma concepção voluntarista e positivista do direito, aquelas em que as normas jurídicas postas eram dotadas de um prestígio excep­ cional que impedia, inclusivamente, a sua derrogação .250 Como, nem sempre a solução normativa estabelecida autoritariamen­ te correspondia às necessidades normativas vigentes no momen­ to da sua aplicação e dada a impossibilidade de afastar, sem mais, a norma indesejada, nada resta à doutrina senão modifi­ car o conteúdo desta norma através de uma interpretação sub­ til, levada a cabo mediante a utilização de complexos instrumen­ tos lógico-conceituais. Por meio deste arsenal de instrumentos 250Assim aconteceu na época clássica do direito romano em que os juristas se afirmam uns seguidores estritos da letra e do espírito da lei; no pensamento jurídico dos comentadores; e, já próxim o de nós, no positivismo conceituai. 222 António Manuel Hespai intelectuais o que se está é a alterar a norma indesejada, sir lando que apenas se está a levar a cabo a sua interpretação. Concluindo. O nascimento da dogmática jurídica lige tanto a uma crença teórica no poder da razão como a uma cessidade prática de usar a razão, para actualizar, sub-repti< mente, normas consideradas inderrogáveis. E isto mesmo < podemos verificar na formação do saber jurídico medieval: por um lado, a podemos ligar à "libertação da razão" consequ te à revolução escolástica , 251 não parece menos correcto relac ná-la com a atitude respeitosa dos juristas perante os textos tradição jurídica, o que os obrigava a uma actividade que, s do profundamente inovadora, se desenrolava sob a capa de u mera interpretação, só possível, no entanto, com o desenvo mento de um imponente instrumental lógico-dogmático. Sintetizando as duas posições, podemos dizer que com gem na produção do ambiente favorável à constituição da d trina jurídica medieval dois tipos de factores: (i) factores "f sóficos", que contribuem para a crença do poder da razão, e factores ligados ao modo de ser do sistema das fontes de di to, que cria aos juristas a necessidade de se servirem da raz Para além destes, são ainda relevantes (iii) factores "instituc nais", os quais vêm constituir o ambiente institucional favc vel ao exercício e ao desenvolvimento da "razão jurídica". 5 .6 .l.l. Factores filosóficos Toda a Alta Idade Média até ao advento da escolástica a< tou, sem grandes desacordos, a síntese teológica e filosófica Santo Agostinho (354-430 d.C.). O augustinianismo jurídico I duz-se precisamente num voluntarismo. Na verdade, para o 1 po de Hipona, a única fonte de direito é a vontade de Deus; v tade em geral insondável, mas revelada parcialmente pelas crituras e manifestada em cada momento pela ordenação p videncial da.história. Daqui decorrem várias consequências 251É o ponto de vista de Villey, 1961, 4. Cultura Jurídica Europeia 223 Primeiro, a inexistência àe uma oiàem juriàica objectiva, natural, na qual certos actos estivessem inevitavelmente conde­ nados e outros necessariamente permitidos. Assim, Santo Agos­ tinho acaba por admitir a legitimidade de certos actos (à primeira vista injustos) por se inserirem num plano divino da Salvação inacessível à razão humana. Nesta perspectiva, as coisas não são queridas por Deus porque sejam justas, mas são justas porque queri­ das por Deus. Depois, como segunda consequência, a impotência da ra­ zão para atingir o critério da justiça. Efectivamente, este critério consiste na, digamos, vontade arbitrária de Deus e esta - já o dis­ semos - não pode ser atingida por meios humanos, restando apenas, como último recurso, a submissão aos Livros Sagrados e aos poderes constituídos na terra por graça da Providência. Por último, esta aceitação dos poderes constituídos (pos­ tos), que retiram a sua autoridade de uma espécie de mandato divino ("É por Mim que os tiranos reinam"), implica a aceita­ ção dos direitos positivos terrenos (por injustos e imorais que sejam), pois eles teriam uma razão de ser escondida, um senti­ do oculto, na história da Salvação. Voluntarismo, anti-racionalismo, positivismo tais são os ingre­ dientes que o augustinianismo traz ao entendimento do direito da primeira Idade Média .252 Qual deles o mais contrário à cons­ tituição de uma "ciência do justo e do injusto". De facto, a esta luz, a única actividade legítima do jurista era a leitura humilde e a submissão passiva em relação ao direito revelado ou positi­ vo ("Aderindo a Ele viveremos com justiça; e somos tanto mais ou tanto menos justos, quanto mais ou menos a Ele aderimos", Ep.,120,4 ) . 253 252Sobre as teorias jurídicas de Santo Agostinho, v., por todos, Villey, 1961, 69 ss. 233O augustinianism o está na origem do pensam ento filosófico e filosófico-jurídico dos franciscanos Duns Scotto e Guilherme d'O ccam , os quais, como muito bem nota Villey, estão na origem do pensam ento jurídico m oderno, concretam ente, das orientações positivistas dos dois últimos séculos; ain­ da nesta direcção, a filosofia jurídica da Reforma (Lutero e Calvino). Sobre todos estes autores, Villey, 1961. 224 António Manuel Hespanha Todo este panorama se modifica, nos finais do século XII, com o renascimento do ensino laico, com a revalorização dos saberes mundanos e, no domínio filosófico, com o advento da escolástica (ou "saber das escolas"). No entanto, a filosofia medieval mantinha da época ante­ rior a ideia de que a razão era limitada, de que - em muitos do­ mínios - não podia haver uma posse definitiva da verdade das coisas. Mas que apenas se podia peregrinar para a verdade. Por isso, não se podia excluir, de antemão, qualquer ponto de vista teórico sobre um certo problema. A investigação intelectual adquire, assim, um tom dialo­ gante, em que as várias opiniões são confrontadas e em que, mais do que uma solução definitiva, interessa o pôr da questão .254 O alcance da verdade é encarado, não como tarefa que possa ser levada a cabo isoladamente por meio da razão individual, mas como uma obra colectiva em que todos colaboram, na discus­ são e no confronto de opiniões. É esta humildade perante a "ver­ dade" das coisas que toma simpático o pensamento medieval, embora não seja deste género a ideia que dele se faz, comummente. 254 Abelardo (século XII), um dos arautos do pensam ento "escolástico", na sua célebre obra Sic et non, dá-nos um dos exemplos mais vivos do que acaba­ mos de dizer. Aí, partindo do princípio de que "a prim eira chave da sapi­ ência é uma assídua ou frequente interrogação [...] pois pela dúvida che­ gam os à interrogação e, pela interrogação, aprendem os a v erd ad e", orga­ niza uma colectânea "d e opiniões opostas contidas em diversos textos" ('pro qua quidem contrarietate, haec compilatio sententiarum 'Sic et Non' appellatur" [pela qual contradição, esta com pilação de proposições se cham a "Sim e N ão"]) a fim de exercitar os seus leitores em busca da verdade. E seguemse vários títulos em que, depois de enunciada a questão, se coligem vários textos contraditórios, sem se tirar qualquer conclusão (ex., XXXII, Quod omnia possit Deus, et non; XXXIV, Quod Deus non habeat liberum arbitrium, et contra). Como se vê, trata-se m enos de form ular soluções do que de convi­ d ar o leitor a continuar esta obra social de construção do saber. A mesma organização por questões (quaestiones) ou problemas surge na Summa Theologica, de S. Tom ás de Aquino, em bora aí o autor não perm aneça neutro. Cultura Jurídica Europeia 225 Assim, o pensamento medieval dos séculos XII e XIII - e, concretamente, o seu pensamento jurídico - é um pensamento de tipo problemático, e não sistemático. Isto é, não se preocupa com que as soluções dadas aos problemas surgidos num dos ramos do saber constituam um todo lógico isento de contradição (ou seja, que constituam um sistema). Mais do que a perfeita inte­ gração das soluções numa unidade lógica e sistemática, interes­ sa-lhe a adequação destas aos dados concretos do problema a que visam responder. Daí que o ensino e a própria literatura te­ órica não se apresentassem com a forma - hoje corrente - de ex­ posições sistematicamente ordenadas, dotadas duma arquitec­ tura lógica bem visível, mas como colectâneas de soluções de problemas controversos (casus, quaestiones disputatae, etc . ) . 255 Tudo isto se reflecte no pensamento jurídico. Agora que a razão tem a sua "carta de alforria", a teoria augustiniana das fontes do direito deixa de ser aceitável. Para o pensamento escolástico, cuja figura maior é S. Tomás de Aquino, o direito contido nas Escrituras (direito divino) ou aquele edi­ tado pelos reis (direito positivo) não eram os elementos decisivos para encontrar o iustum, a solução justa, que constituía o corpo do direito (ius est quod iustum est, o direito é o que é justo). Esse iustum, esse direito decisivo, era anterior a todo o direito positi­ vo, estava inscrito numa ordem natural, estabelecida por Deus, mas à qual Ele próprio obedecia .256 E esta ordem era desvendável por um uso correcto da razão (recta ratio), i.e., por um uso da razão disciplinado por certas regras de discorrer. O direito, portanto, deixa de estar todo feito nas fontes de direito (escriturais ou legais), onde só falte ir colhê-lo. Pelo con­ trário, a solução jurídica deve ser encontrada em cada momen- 255Sobre a oposição entre pensam ento problemático e pensam ento sistemáti­ co e sobre a caracterização do pensam ento medieval, Viehweg, 1953. 256E a teoria escolástica das "cau sas segundas" segundo a qual Deus, Causa Prim eira de tudo, se abstém de agir sobre cada facto particular; com o por econom ia de m eios, entrega um a parte da Sua tarefa ao funcionamento autom ático das leis naturais que imprimiu na natureza, só as violando em caso de milagre (cf. De gubematione rerum, Ia, qu. 103 ss.). 226 António M anuel Hes] to, através de uma específica e precisa técnica de investig (iars inveniendi, arte de encontrar) que, já sabemos, concedi grande papel à discussão e à investigação casuísticas. Sã processos específicos desta ars inveniendi que explicarão, jx mente com outras razões referidas, o modo de ser do pensai to jurídico, do ensino jurídico e da literatura jurídica dos ; los XII e XIII. 5.6.1.2. Factores ligados à natureza do sistema medieval das fontes de direito Dissemos que o nascimento do saber jurídico mediev as suas formas concretas de desenvolvimento - não se podi plicar unicamente a partir do ambiente filosófico da época támos até que o aparecimento do saber jurídico não podi seguramente explicado, senão encarando conjuntamente co factores filosóficos, o modo de ser do sistema das fontes d reito. Ou seja, o lugar proeminente aí ocupado pelo direitc tinianeu, perante o qual os juristas se encontram num estac completa dependência teórica. É a isso que iremos dedic parágrafos seguintes. Como dissemos, as características mais salientes e ori« rias do método dos glosadores eram a fidelidade ao texto jus, neu e o carácter analítico e disperso da literatura jurídico-cieni Por isso, a sua actividade doutrinal não podia desenvolv senão em moldes predominantemente analíticos. Isto é, o ti Lho dos juristas consistia numa análise independente de texto jurídico, realizada ao correr da sua "leitura", quer 5 forma de glosas interlinhadas ou marginadas, quer sob a di comentário mais completo (apparatus), sem que, pelo menc princípio, houvesse a preocupação de referir entre si os v textos analisados. Esta concepção do saber jurídico como uma actividadi ramente interpretativa (ou exegética) - e o modelo do discursc daí decorre - é frequentemente ligada à "atitude espiritual pria da Idade Média", propensa à aceitação respeitosa das < ridades, quer estas fossem religiosas, filosóficas ou jurídicas Cultura Jurídica Europeia 227 Todavia, para além dos factores já antes enumerados, de aceitação da autoridade do direito romano, esta atitude de "apagamento" explica-se também por razões de natureza metodo­ lógica. É que ir além do magro comentário cingido ao texto e abalançar-se a uma actividade sintética ou a extracção de regrai (regulae, brocarda) exigiam instrumentos lógicos que o pensamen­ to medieval desta altura não possuía e de que só viria a dispo] depois da chegada à Europa ocidental de novos textos dos filó sofos e lógicos da Antiguidade, nomeadamente de Aristóteles . 25 A evolução da vida europeia não iria permitir, por muitc mais tempo, um respeito tão absoluto e exclusivo pelos texto: romanísticos. Todavia, e apesar das tendências reformistas \í referidas, mantém-se bem viva até ao fim da Idade Média, a ideie de que o direito consiste num conjunto de normas legadas poi uma tradição dotada de grande autoridade, que o intérprete sc dificilmente pode alterar, ao sabor da sua inventiva. Tambén aqui, o ideal de "livre exame" ainda estará para chegar. Para os Comentadores, como para os Glosadores, a orden legal justinianeia representava um dado quase indiscutível, cujc valor autoritário era o reflexo da autoridade jurídica a metajurídica que os juristas medievais atribuíam ao Corpus iuris civilii na sua totalidade. Portanto, toda a tarefa de actualização e sis­ tematização do direito terá de ser realizada no interior de ume ordem prefixada autoritariam ente, aparecendo formalmente como uma tarefa de mera interpretação. 257 Isto não quer dizer que os Glosadores - mas não decerto os prim eiros - nãc tenham iniciado um im portante trabalho de organização dos m ateriais ju­ rídicos rom anos. Aliás, tinham sido eles próprios a dar à com pilação justi­ nianeia a designação,de "co rp u s", pelo que lhes competia actuar de aco r­ do com esta ideia, debruçando-se sobre as contradições que povoavam o Corpus am is. Npus iuris. Na sua fase incipiente, tal tarnte, tal tarefa consis­ tia na elaboração de aboraç de concordsncia e discordância textuais (Calasso, 1954, 531); depois, à m edida que o trabalho de exegese ia progredin­ do e a capacidade lógica dos exegetas ia crescendo, surgiam as definitiones, as regulae, os brocarda e, num período já de transição para os novos tempos, as sum m a. Sobre estes tipos d 4 ,531-536 e V.P. Morta ri, 1958, 78 ss. 228 António M anuel Hespanha É ao serviço desta interpretação que será colocada a nova lógica da escolástica. A argumentação dos juristas, o modo de estes organizarem o seu discurso, adquire agora um tom muito particular. Surgem conceitos, modelos de raciocínio, temas in­ telectuais, que só por eles são usados. Em suma, é um novo do­ mínio do saber que se constitui - a doutrina ou dogmática jurí­ dica cujos cabouqueiros são estes juristas dos séculos XIII e XIV. 5.6.1.3. Facto res institucionais Agora que, como acabamos de ver, falar sobre o direito se torna uma tarefa difícil, dotada de regras lógico-dialécticas que cumpre observar, implicando o uso de conceitos especiosos, é impossível a qualquer um encetar, sem mais nem menos, o exer­ cício da função jurídica. Esta exige uma aprendizagem teórica muito complexa que deixa de estar ao alcance do prático. O di­ reito vai precisar da escola. Ao esponttaneismo ou à prudentia aurida da prática vai suceder-se a aprendizagem teórica nas es­ colas universitárias que então se multiplicavam por toda a Eu­ ropa. Em todas elas, o ensino do direito ocupou um lugar mui­ to relevante; mas temos que convir que elas ocuparam um lu­ gar ainda mais relevante (imprescindível mesmo) na evolução do direito e, através disso, na evolução da própria sociedade. Em boa parte, a Europa Moderna é o produto de uma imaginação social cultivada nas Faculdades de Direito. Por outro lado, as características do ensino universitário de então potenciaram ainda certas orientações metodológicas atrás referidos. Assim, se - como já vimos - o modo de ser da tarefa " inter­ preta tiva" dos Comentadores exigia a utilização de uma uten­ silagem lógico-dialéctica muito sofisticada, a vizinhança interdisciplinar cultivada nas universidades medievais facilitava, convidava até, a que os juristas importassem para os seus do­ mínios os métodos utilizados pelos seus colegas filósofos, lógi­ cos e teólogos, das Faculdades de Artes e de Teologia. Do mesmo modo, o carácter argumentativo e tópico que é justam ente reconhecido ao saber yurídico m edieval não pode Cultura Jurídica Europeia 229 deixar de ter sido influenciado pela própria prática da discus­ são, da discussão livre e generalizada - quodlibética 258 - no seio das instituições universitárias. E a partir daqui que podemos considerar a fundação das universidades como um factor institucional do aparecimento do saber jurídico na Baixa Idade Média. 5 .6 .2 . A estrutura discursiva Como dissemos anteriormente, toda a obra de actualização e sistematização do direito exigida pelas novas condições da vida social europeia e levada a cabo, sobretudo, pelos Comentado­ res tinha que o ser sob a forma de uma interpretação do direito romano-justinianeu em vigor. Efectivamente, exceptuando o parêntese constituído pelo sentido geral da obra de São Tomás, o pensamento jurídico medieval era - como já vimos - favorável à identificação do direito com a vontade do legislador. A leitu­ ra dos textos romanísticos e, bem assim, o curso da vida políti­ ca da época (dominada pelas tentativas de centralização do po­ der dos príncipes), sugeriam uma concepção monárquica do direito, em que a da edição do direito tendia a ser considerada como exclusiva do rei (quoã principi placuit legis habet vigorem [aquilo que agrada ao rei tem a força de lei]) e cujos reflexos te­ óricos e filosóficos aparecem em Duns Scotto e Guilherme de Occam .259 Posto, assim, diante da realidade concreta de um sistema jurídico baseado sobre normas com origem numa tradição do­ tada de enorme autoridade, o jurista devia inevitavelmente par­ tir do texto normativo na sua tarefa de conseguir uma regula­ mentação jurídica aderente à nova realidade social. 258As discussões quodlibéticas (da expressão quodlibet = de quod libet [acerca do que se quiser]) eram discussões praticadas periodicam ente em todas as universidades m edievais, em que, depois de u m debate generalizado, so­ bre quaisquer questões levantadas pelo auditório, o professor dava a sua opinião e rebatia os argum entos em contrário. 259Mortari, 1 9 5 8 ,5 2 -5 7 e Villey, 1961. 230 António Manuel Hespai Deste modo, os objectivos do saber jurídico coincidia formalmente, com os da interpretação; embora, no fundo, os ristas tivessem em vista muito mais do que a interpretação c textos. Na verdade, o fim principal da exegese não consistia < averiguar o significado histórico do preceito legislativo, ma seu significado jurídico e racional. Isto é, a interpretação tendi descoberta (à colocação...), nas palavras da lei, de princípios rídicos dominantes na prática e na cultura do tempo. A realização de uma tarefa deste tipo que, no fundo, c< sistia em fazer dizer ao legislador aquilo que ele não tinha, modo algum, querido dizer exigia, como já se disse, meios 16 co-dialécticos adequados. A eles dedicaremos agora algu: atenção .260 5.6.2.1. A oposição do “espírito” à “letra” da lei Uma primeira forma de proceder a uma interpretação ii vadora era a oposição entre o texto da lei (verba) e o seu espíi (mens) e a atribuição de um valor decisivo a este último. Tal distinção baseava-se nos princípios fundamentais filosofia da linguagem medieval para a qual as palavras for; criadas pelo homem para levar aos outros 0 conlrecimento dos & pensamentos ("na verdade, as palavras [...] são os sinais daqu que está na alma" escreve Giason dei Maino, séc. XV). A atrib ção de um valor decisivo ao espírito da lei procurava apoio, qi na máxima de S. Paulo "littera occidit, spiritus vivificat" (a le mata, o espírito dá vida), quer no preceito do Digesto "scire ges non est verba earum tenere sed vim ac potestate" (saber as 1 não é dominar a sua letra, mas o seu sentido e intenção), C sus, D., 1,3,17. Mas, para além destas razões de ordem teórica, justifica e procedimento interpretativo o facto de ele ser o único proce: M1Sobre o discurso jurídico medieval, para além de Villey, 1961, e Mortari, lí Berman, 1 9 8 3 ,1 4 3 ss.; Tau Anzoategui, 1992. Cultura ]urídica E uropeia 231 de tornear as dificuldades postas por alguns textos, literalmen­ te opostos, aos interesses normativos que os intérpretes queri­ am prosseguir. Assim, quando formulava uma regra que, nos novos tempos, não podia ser aceite em toda a sua extensão, o intérprete afirmava que tal regra excedia a vontade racional do legislador e interpretava-a restritamente não a aplicando a cer­ tos casos; noutras situações, pelo contrário, estendia o preceito legal a casos que ele, manifestamente, não visava. 5 .6 .2 .2 . A interpretação lógica Mas, para além desta tarefa de actualização normativa, re­ alizada através da oposição entre a letra e o espírito da lei, reali­ za-se também em sede interpretativa, um importante trabalho de sistematização, posto em prática a partir da interpretação ló­ gica dos preceitos. A interpretação lógica foi um procedimento hermenêutico aplicado inicialmente à Sagrada Escritura e que constituía um meio termo entre a interpretação literal (agarrada ao elemento filológico e gramatical dos textos) e a espiritual (que quase des­ prezava o texto, envolvendo-se em divagações simbólicas). A interpretação lógica, pelo contrário, partia do texto, mas considerava-o como expressão de uma ideia geral (ratio) do seu au­ tor que, por certo, não deixaria de estar presente noutros pas­ sos da sua obra. Deste modo, o texto não pode ser entendido senão pela sua integração no contexto. Só esta integração per­ mite a extracção das ideias informadoras (dogmata) de cada con­ texto normativo ("instituto" como hoje dizemos), ideias essas que constituem o apoio indispensável para a interpretação de um preceito isolado. Daí a afirmação de Baldo (século XIV) de que a "scientia (legum) consistit in medida rationis, et non in cortice scripturarum” (a ciência das leis consiste na medula da razão e não na casca das palavras escritas ) . 261 261 Cit. por M ortari, 1958, 67. 232 António Manuel Hespanha A investigação da ratio legis era conseguida através dos pro­ cedimentos da dialéctica aristotélico-escolática, nomeadamen­ te dos expedientes, adiante mais detidamente analisados, da definição, divisão e da Analogia ("o processo teórico correcto de proceder é triplo, isto é, define, divide e progride por exemplos", diz Baldo). Através deles eram isoladas: a essência (substantia) dos institutos; as instituições ou figuras jurídicas mais vastas em que eles se enquadravam {genera); os caracteres específicos que continham em relação a outros institutos enquadrados nos mes­ mos géneros (differentiae); as analogias formais ou materiais que mantinham entre si (similitudines). Tudo isto efectuado, como já se disse, nos limites da interpretação lógica e com o recurso às regras lógico-dialécticas de Aristóteles, que passa a ser o filóso­ fo mais citado entre os juristas. Em face do que acabamos de dizer, logo se reconhece que, sob a capa de uma interpretação lógica, a doutrina estava a levar a cabo um trabalho altamente criador. "Forçando" os textos com auxílio de instrumentos lógico-dialécticos finamente elaborados, ela ia construindo um sistema de conceitos jurídicos adequados a respon­ der às necessidades da vida sua contemporânea. No trabalho dos Comentadores, é essencial realçar, não tanto a dependência em re­ lação ao texto por eles sempre reafirmada, mas, principalmente, a progressiva distanciação em relação ao conteúdo originário das regras textuais. Paralelamente com esta distanciação (ou, talvez melhor, em virtude de ela existir), vai-se desenvolvendo uma cres­ cente confiança nas possibilidades da razão e, consequentemente, uma progressiva valorização da actividade doutrinal dos juristas ("o direito, na verdade, não pode prosperar se não houver algum jurisconsulto que o tome melhor pela sua interpretação", Luca de Penna, século XIV; "Sem Bártolo e certos outros intérpretes seus o nosso direito não existiria", Alciato, século XVI) . 262 262 Mais tarde, nos fins do século XVI, haverá já quem escreva, anunciando novas épocas do pensam ento jurídico, que "o m odo de ser do nosso tempo e dos nossos tribunais é, na verd ad e, muito diferente do dos romanos..." Tiberio Deciani, cit. por M ortari, 1 9 5 8 ,7 2 . Cultura Jurídica Europeia 233 5.6 .2 .3 . A utilização da dialéctica aristotélico-escolástica e, especialmente, da tópica No número anterior falámos de dois expedientes utilizados pelos juristas medievais, sobretudo pelos Comentadores, para, sob a capa da interpretação, levarem a cabo uma obra profun­ damente inovadora de actualização normativa e de sistematiza­ ção do direito do seu tempo. Um desses expedientes - a inter­ pretação lógica - implicava, como dissemos, a utilização de um instrumental lógico dialéctico muito complexo, através do qual fosse possível a elaboração sistemática de um direito por natu­ reza assistemático e até contraditório .263 Tal instrumento foi for­ necido pela dialéctica aristotélico-escolástica. A dialéctica é, para a tradição aristotélico-ciceroniana, a arte de discutir. A discussão caracteriza-se, quer formalmente (i.e., quer por, na sua forma, se distinguir de outros tipos de discurso ) , 264 quer materialmente (i.e., quer porque incide sobre assuntos dis­ cutíveis, ou seja, assuntos sobre os quais não há afirmações ne­ cessariamente certas). Este segundo aspecto é fundamental para a caracterização da dialéctica. Uma vez que não há, nos assun­ tos dialécticos, afirmações indiscutivelmente verdadeiras, que cortem definitivamente as questões (pois então a própria discus­ são seria impensável), é sempre possível encarar os problemas em aberto a partir de vários pontos de vista, ou seja, progredir 263Na verdade, o com plexo norm ativo conhecido, a partir do século XIII, por "direito com u m ", era constituído por norm as de várias origens, animadas, por vezes, por princípios contraditórios. 264Por exem plo, da oração (oratio) - a que vulgarm ente cham am os "discurso" - , a cuja regulam entação se dedica a retórica, ou da demonstração, cujas re­ gras são estudadas pela analítica. Enquanto a oração se caracteriza por ter em vista a obtenção de efeitos estéticos, a discussão e a dem onstração vi­ sam o acréscim o do saber; distinguindo-se entre si porque, na primeira, a base de que se parte são afirm ações somente prováveis, não necessárias, num a palavra, susceptíveis de discussão (v.g., os hom ens têm uma alma imortal; o direito é a arte do bem e do equitativo), enquanto que, na segun­ da, o raciocínio desenvolve-se a partir de afirm ações indiscutíveis (u.g., o homem é u m anim al racional, o direito é um facto social). 234 António M anuel Hesps para a sua solução com base em argumentos distintos e, por zes, até opostos. A discussão é, portanto, um andar à volte questão, perspectivando-a de diversos pontos de vista, atac do-a a partir de diferentes considerações (ou argumentos). Sendo assim, a tarefa mais importante da teoria da disc são (ou dialéctica) é encontrar os pontos de vista, os argun tos, a partir dos quais as questões podem ser consideradas, tarefa é designada, na linguagem aristotélico-ciceroniana, poi inveniendi 265 ou tópica, sendo esses pontos de vista, directore: argumentação, designados por lugares (loci) ou tópicos (topoi O pensamento jurídico da Baixa Idade Média recorreu c tinuamente aos processos dialécticos e, nomeadam ente, métodos propostos pela tópica para encontrar os argumen E não por acaso. Já vimos, de facto, que a grande tarefa do pensamente rídico desta época foi a integração do direito romano, canón feudal e urbano num sistema único dominado por grandes p cípios jurídicos actualizados, isto é, que traduzissem adequa mente as exigências da vida económico-social de então. Tc via, cada um destes ordenamentos jurídicos tinha os seus j prios pontos de vista e, mais do que isso, a sua própria fonte legitimidade. Eram, por outras palavras, ordenamentos ever almente contraditórios entre si, mas fundamentalmente autó mos. Tal como os diversos pontos de vista no âmbito de u discussão. Daí que a sua compatibilização num único orde mento constituísse uma das tais tarefas típicas da arte da disc são que, partindo de perspectivas diferentes, tenta organizí consenso entre elas. Um consenso, em todo o caso, que não duz a especificidade e autonomia de cada um dos diverse opostos pontos de vista. De alguma forma, a prática da disc são vai organizando, em etapas sucessivas, princípios cons suais de âmbito sucessivamente mais genérico. No entanti medida que se vai subindo em generalização, o consenso va tornando mais superficial. O acordo já não diz respeito a sit 265Arte de encontrar (os argum entos que servirão de base à argum entaçãi Cultura ]urídica Europeia 235 ções carregadas de conteúdos concretos - a situações " espessas" (thick, M. Walzer) mas a fórmulas gerais e muito esvaziadas de referências concretas (thin, id .).266 A teoria do discurso e a metodologia jurídicas de então ti nham consciência desta debilidade das formulações muito ge néricas, insistindo em que "da regra [genérica] não se pode ex trair a solução jurídica [concreta], sendo antes desta que se devi inferir a regra" (non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est re gula fiat, D.50,16,1)267 ou em que "toda a definição [i.e., formula ção genérica] é perigosa" (omnis definitio periculosa est). E, po isso, estavam bem longe de propor uma axiomatização do sa ber jurídico, ou seja, uma equiparação do processo de achamentc da solução jurídica a uma dedução axiomática do tipo das qus se utilizam na geometria. No entanto, se virmos as coisas de uma perspectiva históri ca, o que as escolas tardo-medievais vão levar a cabo é a constru ção daqueles princípios mais gerais de direito que, mais tarde, no; séculos XVII e XVIII irão ser tomados, pelas escolas jusraciona listas, como axiomas jurídicos partir dos quais se possa procede; dedutivamente. Assim, historicamente, o período compreendidc entre os séculos XTV e XVII corresponde à.formação "indutiva" dc "sistema jurídico" exigido por uma certa mundividência. A partir do século XVIII, o sistema está perfeito, os seu: axiomas elaborados, e o pensamento jurídico limita-se a expli cá-los dedutivamente - é a pandectística(cf., infra, 8.3.3. . Tantc mais que, por via da laicização do direito e da sua separação en relação à religião e à moral, o direito se torna numa ordem jurí­ 266W alzer, 1994. “ 7Regula est, quae rem, quam est, breviter enarrat. Non ut ex regula ius sumatur sed ex iure, quod est, regula fiat.Per regulam igitur brevis rerum narratio tradi tur, et (utait Sabinus) quasi causa conjectio est: quae, simul cum in aliquo vitiati est, perdit ojficium suum" [A regra é aquilo que descreve resum idam ente um; coisa. De tal forma que da regra [genérica] não se pode extrair a soluçãc jurídica [concreta], sendo antes desta que se deve inferir a regra. Por isso ap enas se transm ite com a regra um a breve n arração das coisas, sendc (com o diz Sabino) com o que uma presunção, a qual, na m edida em que algc se não verifica, perde o seu efeito"] 236 António M anuel Hespanha dica "fechada " . 268 No trânsito do século XIX para o século XX inicia-se uma nova tarefa de recomposição do sistema, pois a introdução de instituições jurídicas exigidas por necessidades novas origina uma crise interna no sistema jurídico-conceitual, ainda hoje em aberto (cf., infra, 8.4.). Uma tal tarefa de unificação de institutos jurídicos por vezes tão díspares exigia um esforço penoso, tendente a encontrar o ponto de vista a partir do qual se pudesse achar alguma unidade ou liga­ ção lógica entre os institutos considerados. Ora a técnica de encon­ trar os pontos de vista a partir dos quais qualquer questão pode ser encarada era - como já se disse - a tópica. Observando as suas re­ gras, os juristas serão capazes de encontrar as várias perspectivas segundo as quais um instituto jurídico pode ser enfocado e, dentre todas elas, escolher aquela que melhor permita pôr em destaque a sua ligação a um outro instituto ou grupo de institutos. Uma primeira perspectiva de um instituto jurídico pode ser obtida através da sua definição, realizada nos moldes aristotélico-escolástico. A definição ("oratio quae id quod definitur explicat quid sit", proposição que explica o que é aquilo que se define, Cícero, Tópica, V, 26) era a expressão da essência de uma coisa e devia ser formada ex genere et differentia: ou seja, devia consistir na indicação da categoria geral a que pertencia o definido (gé­ nero) acrescida da característica que o distinguia de outras rea­ lidades pertencentes à mesma categoria (espécie ) . 269 Ora bem, encarar um instinto jurídico através da sua defi- 268V., sobre este fechamento (auto-referencialidade) da ordem jurídica m oder­ na, Prodi, 2000. 269 Ex.: " Doação (definido) é um contrato (género) pelo qual um a pessoa trans­ fere a outrem gratuitamente uma parte dos seus bens (diferença)". Por sua vez, a entidade que era género nesta definição (contrato) pode ser tam bém ob­ jecto de definição: "contrato (definido) é um a relação jurídica (género) em que cada uma das partes é simultaneamente titular de um direito e de um dever recí­ proco (diferença)". N estes exem plos se vê claram ente que o género é a cate­ goria geral de que o definido é espécie; a diferença, a característica que dis­ tingue o definido das outras espécies que, com ele, integram o género (no I o exem plo, com pra e venda, locação, m útuo, etc.; no 2o, relações jurídicas em que só há deveres ou direitos p ara um a das partes). Cultura Jurídica Europeia 237 nição contribui para o enquadrar num princípio de sistematiza­ ção, numa sistematização por assim dizer "regional". Efectiva­ mente, a definição ex genere et differentia implica a formação de conceitos genéricos (como relação jurídica, negócio jurídico, etc.), desconhecidos da dogmática romanística, em função dos quais se relacionam certas figuras jurídicas até aí isoladas .270 Esta relacionação, por outro lado, põe a nu as semelhanças e as dife­ renças existentes entre elas e permite a individualização de subgéneros (ou géneros menos gerais). A perspectiva da definição (ou "lugar da definição " ) 271 era, portanto, utilíssima para levar a cabo uma primeira tarefa de sis­ tematização, pois considerava os vários institutos jurídicos in­ tegrados em géneros mais vastos, os quais por sua vez, se orde­ navam noutros ainda mais compreensivos. Definir consistia, portanto, em enquadrar um instituto num sistema de conceitos logicamente hierarquizados . 272 270Assim, o aparecim ento da noção genérica de contrato permite encontrar al­ guma relação entre várias figuras jurídicas, até aí isoladas, com o a com pra e venda, a locação, o m útuo, etc. Tal relação consiste no facto de estes insti­ tutos apresentarem elementos essenciais comuns, elementos esses que são aqueles que integram a noção genérica de "contrato". 271 Trata-se do cham ado locus a deffinitione. Os antigos diziam que estas pers­ pectivas de enfoque das questões ("lu gares" ou "tópicos") eram "sed es argum entorum ". E efectivam ente assim é: a perspectiva (o lugar) donde ob­ servam os um a questão fornece-nos argum entos para a resolverm os - é, portanto, um "dep ósito" de argum entos, alguns dos quais podem servir para os fins dialécticos em vista. N o nosso caso, o fim em vista - unificação e sistem atização do direito - pode ser auxiliado, com o acabam os de ver no texto, considerando os institutos a partir da sua definição. 272U m outro processo dialéctico adequado a revelar a relação lógica entre os vári­ os institutos era a distinção ou divisão. Se a definição consistia em procurar inte­ grar o instituto no género a que, com outros, pertencia, a divisão considera-o com o um género e tenta individualizar as espécies distintas que o compõem. Assim, pega na noção de contrato e distingue contratos consensuais e formais, unilaterais e bilaterais, etc. O processo da divisão, que contribui - tanto como o da definição - para um enquadramento lógico dos institutos jurídicos, teve um enorme prestígio no pensamento jurídico desta época, a ponto de se vir a afirmar que "qui bene distiguit, dene docet" (quem bem distingue, bem ensina); a este brocardo vir-se-á a opor, numa época em que estes processos dialécticos já não se justificam, o princípio de que “ ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus" (onde a lei não distingue, também nós não devemos distinguir). 238 António Manuel Hespanl Vimos a grande importância que a definição podia ter r sistematização do sistema jurídico; mas nem sempre este pr cesso era suficiente para uma tarefa tão árdua. Muitas vezes, e preciso procurar outras perspectivas dos institutos sob as qua se pudesse levar a cabo ligações que o ponto de vista da defir ção não permitia. Assim, por exemplo, a perspectiva das caus do instituto. Sabe-se como Aristóteles distinguia entre cau material (ou substância), causa form al (ou existência), causa efi> ente (ou elemento genético) e causa final (ou finalidade). Uma v que a causa material era equiparada ao genus e a causa forma differentia, as únicas perspectivas novas eram as das causas e ciente e final. Efectivamente, ainda que não fosse possível rei cionar os institutos do ponto de vista da sua essência (manife tada através da definição), talvez o fosse através dos factores qi lhes deram origem (causa eficiente) ou das suas finalidades (ca sa final). Assim surgiu, por exemplo, a noção de "declaração i vontade", causa eficiente de todos os negócios jurídicos; ou c "interesse", como causa final da regulação jurídica. Ainda uma outra perspectiva que contribui para o sur£ de concatenações lógicas entre os institutos é a sua simples coi paração. Claro que muitas ligações entre as figuras jurídicas o tidas por via da comparação seriam possíveis por qualquer di dois processos dialécticos anteriores .273 Mas, muitas vezes, comparação encontrava relações que não eram patenteadas pe locus a deffinitione ou pelo locus a causis. Além disso a compar ção permitia a utilização dos argumentos "por paridade de r zão" (a pari),274 "por maioria da razão" (a fortiori ),275 e do racioc 273 Isto é, muitas semelhanças entre os institutos proviriam de eles pertenc rem ao m esm o género, de terem idênticas finalidades (a m esm a causa nal) ou a m esm a génese (a m esm a causa eficiente). 274 "Sendo semelhante os institutos A e B, se em A se verifica certa consequê cia jurídica, e'm B deve verificar-se igualm ente". 275 "Sendo a característica "X " mais nítida no instituto A do que no B e anda do certa consequência jurídica verificada em B ligada a tal característica ")< ela deve verificar-se em A por maioria de razão ". Cultura Jurídica Europeia 239 nio por analogia, utilização essa que é um importante factor de unificação da regulamentação jurídica e de saneamento das con­ tradições normativas dentro de uma mesma ordem jurídica .276 'Finalmente, um a outra perspectiva útil para os fins tidos em vista pelo saber jurídico era aquela que consistia em encarar os institutos e figuras jurídicas através daquilo que os autores tinham dito deles - é a perspectiva das autoridades (locus ab auctoritate) . Num saber em que a verdade era apenas provável, 277 a opinião do maior número ou dos melhores era a que, pelo me­ nos estatisticamente, tinha mais probabilidades de ser a certa. Então, os juristas, na sua tarefa de actualização e de sistemati­ zação do direito, deixam de partir dos próprios textos jurídicos e baseiam-se nos comentários destes textos feitos pelos juristas anteriores mais comummente aceites ou de maior autoridade. 276Outra forma próxim a de proceder à uniform ização norm ativa é a utiliza­ ção do argumentum ab exemplis : trata-se de aplicar ao instituto considerado a regulam entação aplicável a um outro (cxemplum) que com ele m antenha um a certa sem elhança, em bora não essencial (e por isso se distinguia do expediente de com paração, em que a sem elhança entre os casos era essen­ cial) - "o exem plo [...] não tom a em consideração nenhum a característica bem elaborada (exquisita) da coisa considerada [...] ao passo que o argum en­ to por analogia (a simili) observa profundam ente as características da coi­ sa", O ttom anno, século XVI). A utilização do "lu g a r do exem p lo" im plica­ va a investigação de casos paralelos, nom eadam ente de precedentes judici­ ais. A ponto de, com o tempo, tais precedentes com eçarem a ser aceites acrítica e passivam ente, sendo necessário reagir contra tal utilização do exem ­ plo: "non exemplis sed legis est judicandum” (não se deve julgar a partir de exem plos, m as da lei). 277 A noção de "probabilidade" subjacente é a de um a probabilidade estatísti­ ca (id quod plerumque accidit, aquilo que acontece o mais das vezes). Ou seja, a solução é tanto mais digna de crédito quanto mais vezes se m ostra ad e­ quada ou é definida pelos peritos. Este conceito é de origem aristotélica (Aristóteles, Tópicos, 1 ,1). N ão foi a única concepção de probabilidade em vigor na Idade M édia. Até cerca de 1250 vigorou a ideia de que a probabi­ lidade de correcção de um a opinião não aum entava pelo facto de ela ter muitos sequazes. P ara esta última concepção não tinha grande sentido a busca de um a opinio communis, pelo que, efectivam ente, a invocação desta só irá ter lugar depois do século XIII. Sobre isto, Giuliani, 1 9 6 1 ,1 1 5 e M ortari, 1 9 5 4 ,4 6 1 ss. 240 António M anuel H espanha O recurso ao argumento da autoridade é muito caracterís­ tico do pensamento jurídico medieval. Teoricamente, o valor deste argumento baseava-se na presunção de que o autor invo­ cado era um profundo conhecedor daquela matéria (ãoctor est peritus [o doutor é um perito]). Todavia, o seu parecer não era forçoso, só valendo até ser infirmado por um outro de valor su­ perior .278 Assim, enquanto não intervierem factores de decadên­ cia, a invocação do argumento de autoridade e da opinio communis áoctorum [opinião comum dos doutores] não significa, como muitos pensam, um dogmatismo estiolante para a ciência jurí­ dica. Antes sugeria uma atitude mental aberta em que, por não se reconhecerem verdades definitivas, importava, a todo o mo­ mento, confrontar os pontos de vista dos vários autores. Tornase, portanto, claro como a invocação do argumento ab auctoritate se liga à natureza dialéctica, não definitiva, das soluções jurí­ dicas. Uma vez que estas admitiam sempre discussão e eram apenas prováveis, importava reforçar essa probabilidade mos­ trando que a solução proposta era admitida pela maior parte dos autores. Todavia essa probabilidade nunca se tornava numa certeza, ainda que se invocasse milhares de opiniões a corroborá-la ("disseram-no os Doutores da Glosa, e o mesmo Rodoffredus, e por muitos que fossem, ainda que mil o dissessem, todos errariam ", Cino de Pistóia, século XIV). Descrito o fundamento teórico do locus ab auctoritate, impor­ ta averiguar qual a função que ele desempenhava na ciência ju­ rídica medieval. A principal função da invocação da communis opinio e do argumento de autoridade era a de introduzir alguma disciplina na interpretação do direito. De facto, já vimos a amplitude dos processos lógico-dialécticos postos ao dispor dos juristas para a sua tarefa de actuali­ zação e sistematização do direito. Ora, um uso desordenado de 278 "D epois de relem brar os escritos de muitos, ensinei a minha doutrina", Cino de Pistóia, século XIV; "d a au toridad e dos doutores deriva um a presun­ ção de verdade porque se presum e que o doutor é probo e perito", Coratius, século XVI. Cultura Jurídica Europeia 241 tal instrumental podia ser catastrófico. Dada a liberdade interpretativa quase total de que os juristas dispunham, se não se impusesse alguma disciplina ao seu esforço teórico, em vez de uma obra de sistematização do direito, a doutrina levaria a cabo a sua pulverização ainda maior. Pois cada autor perfilharia uma interpretação pessoal dos textos. A invocação das autoridades tinha, precisamente, por função canalizar a actividade teórica dos jurisconsultos naqueles sentidos socialmente mais conveni­ entes e que, por o serem, tinham sido os tomados pelos juristas mais influentes (i.e., aqueles que melhor tinham sentido as ne­ cessidades da época). Através desta invocação os juristas eram convidados a não se afastarem facilmente das soluções já admi­ tidas e provadas ,279 embora as devessem aceitar criticamente .280 279"A quilo que a Glosa determ inar deve ser mantido, pois nas decisões das glo­ sas raram ente se encontram erros"; "a o aconselhar sobre os casos o melhor é seguir a glosa" (Baldo, séculos XIII-XIV). Cf. Ermini, 1 9 4 6 ,1 8 6 e Mortari, 1954, 462. Raffaele Fulgusius (início do século XIV) escrevia: "C ino dizia que a Glosa era de tem er pela condenável idolatria que lhe era tributada pelos ad vogados, significando que, assim com o os antigos ad oravam os ídolos em vez de Deus, assim os advogados adoram os glosadores em vez dos evangelistas. Ora eu antes quero ter por mim o glosador do que o tex­ to; é que, se alego o texto, dizem os advogados da outra parte e m esm o os juizes-. Julgas tu que a Glosa não viu esse texto com o tu e que o entendeu tão bem com o tu?" (citado por Ermini, 1946). 280Só assim , gozando dum a autoridade lim itada, é que o argum ento da au­ toridade desem p enh ava a sua função. De facto, sendo as exigências da vida m u táveis, um apego e xag erad o às au toridad es tradicionais daria origem a um a doutrina disciplinada, é certo, m as divorciada das aspira­ ções n orm ativas do seu tem po. Só um a contínua ren ovação da opinio communis garan tiria um a direcção da doutrina consoante com a vida. Como verem os mais tarde, um dos m ais frequentes m otivos de critica do mos italicus tardio foi, precisam ente, a sua aceitação passiva dos grandes ju­ ristas de quatrocentos (nom eadam ente de Bártolo) que, tendo reflectido nas interpretações que propunham os anseios norm ativos da sua época, estavam com pletam ente ultrapassados em relação às exigências n orm a­ tivas d os séculos XVI e XVII; disciplinada por estes m estres, a doutrina logo perdeu o contacto com a vida. 242 António M anuel Hesf 5.6.2.4. Conclusão Vimos, nos números anteriores, quais os expedientes 1 zados pelos juristas da Baixa Idade Média para levar a ca actualização e sistematização do direito então em vigor. P podemos avaliar como, sob a capa de uma tarefa interpreta era de facto realizada uma obra de libertação em relação ac to. Primeiro, opondo um alegado "espírito" da lei (que, ma: que na mente do legislador, estava na dos intérpretes) à s u e tra". Depois, dissolvendo cada preceito num contexto norr vo, e procurando os princípios informadores desse contexto mata). Depois ainda, referindo os vários institutos entre si e curando concatená-los logicamente, através das noções d( nero, espécie e diferença, de causa eficiente e causa final, r( rendo - sempre que não fosse possível encontrar semelha essenciais - às noções menos rigorosas de analogia, lugar p leio, exemplo. E, quando o texto, de todo em todo, não cor tisse qualquer manipulação, alicerçando a tarefa de renove não já sobre ele, mas sobre a anterior actividade doutrinal nio communis) de que tivesse sido objecto e que, compreens mente, era mais fácil de orientar num sentido "m oderno". Este método de discorrer sobre o direito vem descritc Gribaldo de Mopha (1541) na seguinte mnemónica: 1) Prae to, 2) scindo, 3) summo, 4) casumque figuro, 5) perlego, 6) do ca\ 7) connoto, 8 ) et obiicio. Nela se contém todas as operações s riormente descritas: 1) Introdução à análise do texto consic do, primeira interpretação literal; 2 ) divisão do texto nas ; partes lógicas, com a definição de cada uma das figuras aí i ridas e sua concatenação lógica, através das noções dialéc: de género, espécie, etc.; 3) com base nesta ordenação lógice elaboração sistemática do texto; 4) enunciação de casos pai los, de exemplos, de precedentes judiciais; 5) leitura "corr ta" do texto, i.e., leitura do texto à luz do contexto lógico e i; tucional construído nos estádios anteriores; 6 ) indicação dz tureza do instituto (causa material), das suas características tintivas (causa formal), da sua razão de ser (causa eficiente) e Cultura ] uri dica Europeia 243 suas finalidades (causa final); 7) ulteriores observações, indica­ ção de regras gerais (brocardos) e de opiniões de juristas céle­ bres (dieta); 8 ) objecções à interpretação proposta, denotando c carácter dialéctico das opiniões sobre problemas jurídicos, e ré­ plicas, com larga utilização do instrumental da dialéctica aris totélico-escolástica .281 Através destes processos - que constituem ainda hoje um; componente importante do estofo do discurso jurídico 282 - os Co mentadores levam a cabo uma obra de construção dogm átic que permanece de pé, sem grandes alterações, até ao nosso tem po. Ainda hoje, apesar de um crescente movimento de reacçãi contra a dogmática "escolástico-pandectísta", se pode dizer qu ela é utilizada pela esmagadora maioria dos civilistas e, mesme dos cultores de outros ramos do direito. 281 C alasso, 1954, 594 e Viehweg, 1953 (trad. italiana, 81). Confronte-se com c m étodo descrito por Odofredo (cf., supra, 148). 282 Os juristas de hoje ainda utilizam - mas já m aquinalm ente e, por vezes, sen a consciência da sua historicidade - o aparelho lógico e conceituai forjade pelos C om entadores. Quer os argum entos, quer os conceitos e princípio: gerais (dogm as), quer o m odo de os extrair apresentam , na verdade, um; im pressionante continuidade. 6. A CRISE DO SÉCULO XVI E AS ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS SUBSEQUENTES No século XVI, o advento de uma nova realidade normativa, bem como o desenvolvimento interno do sistema do saber ju ríd i­ co, vêm provocar uma grande crise na doutrina europeia do direito. 6.1 . Uma nova realidade normativa Como antes dissemos, o século XIV, a que corresponde a actividade teórica dos Comentadores, é a altura em que os iura propria são plenamente integrados no ius commune romano-justinianeu e em que o saber jurídico procura reduzir este cúmulo a uma unidade. Todavia, a evolução social e o progresso do movimento de centralização do poder político acaba por modi­ ficar o equilíbrio do sistema das fontes de direito, abrindo para uma aberta supremacia do direito reinícola ou citadino (que, passa a ser o verdadeiro direito comum) sobre o ius commune elaborado pelos juristas do século XIV . 283 283Recapitulando, lem bremos que se podem individualizar três fases no de­ senvolvim ento do regim e das fontes de direito na Europa medieval e m o­ derna. A prim eira corresponde aos séculos XII e XIII e é caracterizada pelo predomínio do direito rom ano (e canónico) sobre todas as outras fontes con­ correntes cuja validade só é adm itida desde que não estejam em contraste com a norm a de direito com um . A segunda fase estende-se do século XIV até ao fim do século XVII, nela se notando a afirmação dos iura própria como fonte prim ária dos ordenam entos particulares, cujo valor se equilibra com o direito com um . A terceira, por fim, m arca a independência completa do direito dos reinos que se tom a a única fonte do direito e relega o direito comum para a posição de direito subsidiário. Cf. M ortari, 1958, 369 e Calasso, 1954,125-126. 246 António Manuel Hespai Isto acontece, antes de mais, naqueles ramos em qu direito romano não podia trazer grande contributo (dad maior evolução do estilo de vida) - como o direito públicc direito crim inal e o direito comercial. Se, no prim eiro, air foi possível encontrar algum paralelo entre a organização poder do Baixo Império romano (séculos IV-V] - contida j três últimos livros do Código de Justiniano (desde muito ce estudados pela ciência jurídica medieval, sob a designação Tres libri - e a dos estados italianos, nomeadam ente a do i no normando-siciliano de Frederico II, o mesmo não acor ceu no direito criminal, matéria em que a compilação justi aneia não podia oferecer grande coisa 284 e, principalmente, direito comercial, filho de exigências sociais novíssimas propósito do qual já Bártolo dizia: "sabe-se como nos tril nais dos m ercadores se deve ju lg ar segundo a equida omitidas as solenidades do direito [romano-justinianeu, i tenda- se ] " . 285 Mas o abandono dos princípios da doutrina romano-ci lística nestes domínios particulares é o reflexo de uma subn são mais vasta do direito com um de base romano-canón (corrigido, é certo, pela actividade modernizadora dos Comi tadores) aos novos direitos nacionais, cuja codificação cor ça, a partir do séc. XV, a estar em marcha, e que traduzia, campo jurídico - como já se disse - o fenómeno da centrali ção do poder real. Em França, a redacção dos costumes é ordenada suce; vãmente por Carlos VII (1454), Luís XI (1481) e Henrique (1587); em Espanha, uma codificação dos costumes, ordena por Isabel a Católica (as Ordenanzas Reales de Castela), aparece i 2,14Calasso, 1965, 451. 285Calasso, 1965, 455. Já vimos (supra, 5 .3 . 8.2) com o, em Inglaterra, é prec mente na C ourt of Adm iralty que o equidade ganha mais cedo um grai relevo. Cultura 3urídica Europeia 247 1484, enquanto a codificaçao da legislaçao real é realizada em 1567. Nos Países Baixos, a recolha escrita do direito local é em­ preendida sob Carlos V (1531) e, na Bélgica, com o Édit Perpétuel (1611). Na Alemanha, o duque Guilherme IV da Baviera leva a cabo a codificação das principais fontes normais do direito bá­ varo (Reformacion, 1518), ao mesmo tempo que unifica o proces­ so (Gerischtsordnung, 1520) e reúne a legislação ducal em maté­ ria administrativa e económica (Büch der gemeinen Landpot-Landsordnung, 1520). Em Portugal, por fim , 286 a compilação da legislação é reali­ zada em 1446-1447 (Ordenações Afonsinas), retomada em 15121514 (OrdenaçõesManuelinas) e em 1603 (Ordenações Filipinas). Ao passo que os forais são objecto de uma reforma a partir de 1497.287 E certo que a novidade de muitas destas com pilações é muito problemática. Por um lado, até os finais do séc. XVII, elas não represen­ tam uma intenção de centralização do poder monárquico, ino­ vando o direito por meio da lei régia, mas antes um desejo de corresponder aos pedidos dos povos de, pela redacção escrita, se tornar mais certo o direito consuetudinário tradicional.288 Nes­ te sentido, este movimento de promoção da legislação real não significa ocaso do pluralismo medieval, que apenas ocorrerá, 286Sobre o m ovim ento da codificação dos direitos consuetudinários e real, v. Gilissen, 1988, 448 ss. e Vanderlinden, 1967, 22 ss., onde se pode consultar um cóm odo diagram a do m ovim ento da codificação na Europa. As Orde­ nações portuguesas estão, porém , inexplicavelmente (pois trata-se dum a das prim eiras m anifestações da codificação do direito), ausentes. 287Cf. H espanha, 2001q. 288V., para Portugal, o meu cit. artigo sobre a reform a dos forais (H espanha, 2002q), em que todas as garantias foram dadas de respeito pelos direitos tradicionais dos concelhos. Para a Flandres, a m esm a é a conclusão do úl­ timo estudo de conjunto do Edito perpétuo, de 1611 que, nos seus prim eiros artigos, m anda registar e hom ologar os costum es locais (cf. M artyn, 2000), nom eadam ente 1.4 e II.1. P ara a França, C osandey, 2002, 52 ss.. 248 António Manuel Hespanha muito mais tarde, quando a lei reclamar o monopólio, ou uma eminência absoluta .289 Para além disso, muitas destas compilações estavam for­ temente repassadas de princípios e instituições de direito co­ mum .290 291 Em todo o caso. Importa salientar que, daqui em diante, elas vão relegando (pelo menos na teoria) o direito comum para o plano de direito subsidiário. 289Esta questão - que é um a questão central na com preensão da "constituição política das m onarquias m odernas - é longa e muito com petentem ente dis­ cutida em C osandey, 2002, maxime, 52-82. A conclusão de que é difícil falar de um controle judicial da legislação do reino, quanto à sua conform idade com a con stituição da m onarquia (sobre o conceito de constituição nas M onarquias m odernas, v., para além destes autores, H espanha, 2001c) parece-m e incorrecta, apesar de os autores apresentarem (desvalorizando-o com certa ligeireza) o argum ento decisivo: "A questão que sustenta estas novas in terpretações [sobre a existência de um a constituição de Antigo Regime] é a do controle da constitucionalizasse, tão essencial na reflexão jurídica de hoje: "A análise do com portam ento dos tribunais suprem os no séc. XVIII atesta as virtualidade da função de juiz constitucional no Esta­ do. A extensão do controle, nom eadam ente no terreno da oportunidade, pode levar o juiz a ocu par uma grande parte do espaço decisional". Eis um risco "bem conhecido dos constitucionalistas contem porâneos" e cuja acei­ tação desem boca num a "con cep ção do direito natural com o direito positi­ v o "" (C osandey, 2002, 73). E concluem - um pouco superficialmente - "E difícil aplicar ao Antigo Regime m onárquico estas finezas do pensamento jurídico de hoje, valendo mais, sem dívida, continuar a pensar que absolu­ tismo e monarquia constitucional continuam a ser duas noções antagóni­ cas e inconciliáveis" (ib.). Ora a verd ad e é que o controle judicial da legis­ lação - que, de facto, existia no Antigo Regime, para mais dispersa por qual­ quer tribunal - atenua-se justam ente na m onarquia constitucional (carac­ terizada ou pelo prim ado do parlam ento ou pelo princípio monárquico e só renasce depois da II Guerra M undial (excepção feita aos EU A , onde foi um traço muito mais perm anente do constitucionalism o. 290Saber até que ponto a codificação dos direitos locais utilizou a contribuição rom anística é um assunto que não está definitivamente esclarecido, v. Coing, 1 9 8 5 ,1 5 -1 6 . 291 E m relação às Ordenações, só um a cuidada edição crítica - que constituiria um a útil tarefa - perm itiria destrinçar as várias influências aí detectáveis. Algum as indicações podem colher-se em Silva, 1780. Cultura Jurídica Europeia 249 Esta mudança da realidade normativa não pode deixar de influir no modo de ser do saber jurídico. Pode-se mesmo dizer que a substituição do tradicional objecto da scientia iuris pelo moderno a lançou numa grave crise de que só se irá recompor no século XVIII. O que se compreende. Tendo ordenado toda a sua tarefa nos quadros de uma interpretação dos textos romanísticos, con­ siderados insubstituíveis, o edifício do saber jurídico dos comen­ tadores não podia deixar de ruir no momento em que os alicer­ ces romano-justinianeus sobre que fora construído fossem aba­ lados. Todo aquele esforço de subtil interpretação dos textos, necessário à modernização do direito romano, deixava de ter sentido em relação às disposições, elas mesmas já modernas, dos novos direitos próprios. Todo o afirmado (se bem que, na práti­ ca interpretativa, não actuado) respeito pelo direito romano se tomava absurdo quando o direito efectivamente vigente se dis­ tanciava, progressivamente, dos textos do Corpus Iuris. Perante isto, tríplice foi a orientação da doutrina .292 Segundo uma corrente (aquela que vem a ser conhecida sob a designação de mos gallicus ou Escola culta, humanista ou elegan­ te, cf., infra, 6.3.1.) passa-se a encarar o direito romano-justinianeu com um interesse apenas historico-filológico, negando, im­ plícita ou explicitamente, o seu carácter de direito vigente, ao mesmo tempo que se intenta libertá-lo de toda a ganga de su­ cessivas interpretações actualizantes, reduzindo-o à sua pure­ za clássica. Outra corrente, vivaz naqueles domínios e naqueles países em que as realidades normativas nacionais eram excessivamente vivas para serem escamoteadas pelo saber jurídico tradicional, o pensamento jurídico dedicou-se a uma inserção dessas reali­ dades nos quadros conceituais dos Comentadores, utilizados até onde eles fossem adequados à nova matéria e supridos, no res­ tante, com figuras teóricas novas. E o usus modernus Panãectarum 292Sistematização sem elhante, em Silva, 1964, 55 e 59. 250 António Manuel Hespai (uso moderno das Pandectas [= Digesto]). Corrente que reft diu (pondo-o de acordo com os novos dados normativos) e cc pletou (desenvolvendo os princípios que ele levava implícit o sistema de direito construído pelos Comentadores. Se o humanismo jurídico vigorou, especialmente em Fr; ça e na Holanda, o usus modernus Pandectarum correspond uma orientação predominantemente alemã. Ela tem origem nítida desvalorização do direito romano consequente à quel da ideia do Império e à desagregação do próprio Império A mão após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Estes factos r podem, na realidade, deixar de ter influência sobre o prestíj do direito, cuja vigência teoricamente se fundava na contin dade existente entre o Império Romano e o Alemão. Foi H mann Conring (1606-81) quem, pela primeira vez (em 1643), rou as consequências destes factos e fez a crítica da ideia de cepção automática e global do direito romano na Alemanha | infra, 6.3.2.). Por fim, nos domínios da civilística e, principalmente, i queles países em que, como nas Penínsulas Itálica e Ibérica e sul de França, o direito civil era, quase exclusivamente, de bí romanista, é mantido e desenvolvido o saber jurídico dos C mentadores (ou, numa grande parte dos casos, este é manti sem desenvolvimento) continuando-se a fazer girar, agora já ( vão (como veremos), o seu instrumental científico. É o "Bar lismo tardio" (ou "praxística") que, no sul-ocidente da Europa se assenhoreia da doutrina civilística (com tendência a expe dir-se a toda a actividade jurídico-doutrinal) até ao século XV (cf., infra, 6.5.). 293Tam bém em Inglaterra, a autoridade dos juristas italianos perm aneceu m uito tarde, sobretudo em virtude da recepção que deles fizera Bract sobretudo na primeira parte do seu T ra ctatu s de leg ibu s e t co n su etu d in es i gliae-, cf. Wijffels, 1992. Mas a verdadeira rom anização do sistema expos vo do direito inglês só se dá, de facto e com grande impacto, com os Cc m en ta ries on the law s o f E n g lan d , de W illiam Blacstone (1765-1769). Cultura Jurídica Europeia 251 6.2. O d e s e n v o l v i m e n t o in t e r n o d o s i s t e m a d o s a b e r j u r í d i c o Mas, como dissemos de inicio, não foram só causas desta ordem (institucionais-normativas) que provocaram a crise do saber jurídico dos Comentadores. Se a mutação do estilo da doutrina, a que nos vimos refe­ rindo, é, em parte, causada por uma profunda modificação na natureza do seu objecto (a já referida substituição do direito ro­ mano pelos direitos nacionais no quadro das fontes), ela não pode, por outro lado, ser separada de um factor de ordem epistemológica - o desenvolvimento da própria lógica interna do sis­ tema discursivo do direito.294 Efectivamente, o saber jurídico dos Comentadores tinha posto em movimento uma lógica de unificação interna do orde­ namento jurídico, lógica essa que se ia realizando com o recur­ so à dialéctica aristotélico-escolástica. Já antes realçamos, tam­ bém, que a complicação dos meios utilizados está em correspon­ dência com a dificuldade do trabalho proposto. Chegado o século XVI, tinha-se atingido o fim do princí­ pio. Através dos vários processos antes referidos, os grandes princípios e a estrutura dogmática dos vários sectores do direi­ to estavam encontrados, o mesmo se podendo dizer dos princí­ pios (axiomas) informadores de cada instituto,295 do significado técnico-jurídico das palavras (sigmficntio verbo rum ),296etc. Corne- 294Ou, numa terminologia mais m oderna, o desenvolvim ento da sua e s tra té­ g ia . De facto, em cada mom ento da sua história, as disciplinas cientificas são orientadas por um a intenção (ou estratégia) geral - aquilo que nós cha­ m am os "teorias" ou "tem as" - que implica um certo sen tid o de evolução do seu discurso (cf., sobre este conceito, Foucault, 1969, 85 ss.). O sentido (ou estratégia) do saber jurídico da Baixa Idade Média era, já o vim os, o da construção da co erên cia in tern a ou "sistem aticíd ad e" do direito. 295De que com eçam , agora, a ap arecer as colecções: em Portugal, das prim ei­ ras são as de Agostinho Barbosa, D e a x io m alib u s. D e sig n ific a tio v erboru m . D e locis co m m u n ibu s (ed. 1699) e de Simão Vaz Barbosa, A x io m a la et loca com m u n ia (ed. 1686). ^ S u rg in d o , portanto, os primeiros dicionários jurídicos, sob o modelo daquele esboçado no Digesto (D., 5 0 ,1 6 ). 252 António Manuel Hespanha çara, portanto, a ser possível passar ao imediato degrau da tare­ fa da unificação científica do direito - a construção de "sistemas" jurídicos gerais, estruturados a -partir dos princípios obtidos. Se os Comentadores os tinham obtido através de uma paciente obra de análise de textos isolados,297toma-se agora viável o movimen­ to de síntese, pelo qual todo o direito fosse reunido num siste­ ma teórico orgânico submetido a axiomas e regras. Ao modelo do Digesto (compilação enciclopédica, mas caótica, de resolu­ ções de casos isolados) substitui-se o modelo das Instituías (tra­ tado de carácter sistemático).298 Assim, não é de admirar que tenham começado a aparecer autores reclamando, ou realizando mesmo, obras deste tipo.299 Derrer escrevia (Jurisprudentiae Liber, 1540): "[...] o direito ainda não foi descrito de uma forma devida. Isto é, de tal modo que tudo seja posto no lugar próprio e natural, disposto sob a sua ordem. Daí que não possa ser reproduzido por quem apenas seja mediocremente versado nesta arte".300 Estabelecidos, assim, os axiomas fundamentais e arruma­ dos logicamente no seio de um sistema coerente e sintáctico, tudo está pronto para fazer o sistema caminhar pelos seus próprios meios, sem necessitar de apoio permanente dos textos da tradi­ ção romanística. Por outras palavras: neste estádio de elabora­ ção do "sistem a jurídico" já é possível utilizar os mecanismos do raciocínio dedutivo, achando a solução jurídica conveniente, não através de uma rebuscada "interpretação" dos textos romanísticos, mas através de uma especificação dos axiomas jurídicos recém-formulados. 297Investigando, através dos processos lógico-dialécticos atrás referidos, os géneros, as espécies, as parentelas conceituais, a hierarquia m útua, etc., de cada instituto ou figura jurídica. 298Ou da perdida obra de Cícero (se é que algum a vez foi escrita) na qual ele teria efectuado uma redacção ordenada (in artern) do ius ávile. 299Chansonette (Cantiuncula); no século XVI, H egendorff, D errer, U go Donnelo, Freigio, e, principalm ente, O ldendorp (Isagoge seu Elementaria Iuris Naturalis [...], 1539), e Althussius (Dicaelogicae libri tres, totum et universum ius [...], 1617-1618). 300Cf. M ortari, 1 9 5 8 ,3 8 4 . Cultura Jurídica Europeia 253 Abre-se a época do direito natural racionalista, em que se acre­ dita que os princípios superiores do direito são um produto da razão que, ao elaborá-los, revela uma ordem universal. Nós já sabemos, porém, que tais princípios não são univérsais, nem necessários, nem anteriores à actividade intelectual que os des­ cobre. Pelo contrário, eles correspondem a desígnios normati­ vos exigidos pelas condições sociais e institucionais de uma certa época. O pensamento jurídico não se limitou a descobri-los mas pô-los lá, laboriosamente, através de uma árdua tarefa de "inter­ pretação" das fontes romanísticas comandada por intenções normativas próprias da época. Se eles, agora, parecem "natu­ rais", isso só mostra até que ponto a tarefa da sua construção ar­ tificial foi conseguida e adequada à mundividência da época.301 Atingida, portanto, esta fase de construção sistemática do direito impunha-se uma remodelação dos instrumentos lógicoconceituais disponíveis no sentido da sua simplificação, pois as subtilezas da ciência jurídica dos Comentadores, além de des­ necessárias, tornavam-se opressivas e incómodas. Por exemplo, a sofisticação da argumentação que tinha sido necessária para compatibilizar, sem destruir mutuamente, textos jurídicos con­ traditórios, mas de idêntica hierarquia (textos romanos, canóni­ cos ou estatutários) fazia agora com que o direito se tivesse tor­ nado numa selva de opiniões e de distinções especiosas, em que toda a certeza e eficácia se diluíam. Nesta altura, começa a de­ senhar-se uma reacção muito forte contra o especiosismo do dis­ curso jurídico ("ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus" [onde a lei não distingue, nós também não devemos distinguir]). Agora que o trabalho para que tal instrumental tinha sido mobilizado estava terminado e que o arsenal argumentative se tinha tomado incómodo, era possível desmobilizá-lo e voltar aos processos de discorrer simplificados e naturais. Isto faz com que, num segundo aspecto, o discurso jurídico do século XVI tenha 301Sobre a época do "jusracionalism o", v. por todos, W ieacker, 1980, 279 ss. 254 António M anuel Hespai proposto o repúdio da complicada dialéctica aristotélico-escolástic a adopção de uma dialéctica jurídica simplificada, natural, próxi do senso comum. Assim, um jurista alemão dos meados de Q nhentos convidava os seus colegas, a abandonar as complicac argumentações dialécticas dos bartolistas e a tratar os problen de uma forma "popular" (populariter), ao alcance do povo ("a! tenhamo-nos, na verdade, daquelas discussões que não estão r usos e costumes da vida e dos povos, porque já Aristóteles í vertiu seriamente que a estes não agradam tanto as sentença interpretações que são subtis e argutas, quanto as simples e p prias, as quais podem ser usadas na vida comum com maior f quência", Elen, século XVII).302 É este o significado do novo teresse dos juristas do século XVI pelas questões da lógica e dialéctica, apoiando-se, especialmente nas obras da Nova lógi de Pierre de La Ramée (Petrus Ramus).303 Do mesmo modo, à medida que a estabilização do sistei conceituai ia progredindo e que as especiosas argumentações c Comentadores iam sendo substituídas por outras que tolhic mais a liberdade do intérprete, era possível prescindir do paj disciplinador que a "opinio communis" até aí desempenhara. Agora, a tarefa da Rechtsfindung [achamento da soluç jurídica] era dirigida, com bastante segurança, pelo conjunto axiomas, logicamente concatenados, do sistema jurídico. A pc sib ilid a d e d e hesitação entre princípios contraditórios, tão c mum no sistema ainda incompletamente construído dos Come tadores, com a consequente falta de segurança no achamento soluções jurídicas firmes, não se verifica agora, pois as regras direito estão unificadas num sistema lógico-conceitual isento contradição. Deste modo, é possível ir pondo de parte a invocação ■ "opinio communis", substituindo-a na sua função disciplinad ra, pelos critérios da "boa razão", /.e., da lógica interna do sis ma jurídico. 302 Mortari, Dialettica e giurisprudenza [...], 310. 303Sobre este ponto, M ortari, 1958, 304. Cultura Jurídica Europeia 255 6 .3 . A s e s c o l a s j u r í d i c a s t a r d o - m e d i e v a i s e m o d e r n a s Já se esboçou o leque de orientações teóricas e metodoló­ gicas a que deu origem a crise do saber jurídico dos Comenta­ dores bem como o panorama das escolas daí decorrentes. Da­ mos agora uma descrição mais detalhada de cada uma delas. 6 .3 .1. Escola culta, humanista ou “mos gallicus iura docendi” Sob esta designação304são agrupados os juristas que, no sé­ culo XVI e sobretudo em França - daí "mos gallicus (iura docen­ di)" [maneira francesa de ensinar o direito], por oposição a "mos italicus (iura docendi)", o estilo de discurso e ensino jurídicos tra­ dicionais, dominantes em Itália -, se propõem reformar a meto­ dologia jurídica dos Comentadores no sentido de restaurar a pureza dos textos jurídicos da Antiguidade. Este movimento de renovação está ligado ao ambiente cul­ tural, filosófico, jurídico e social dos primórdios da Europa mo­ derna. No plano cultural, ele é tributário da paixão pela Anti­ guidade Clássica típica do Renascimento (séculos XV-XVI); o que levava a uma crítica contundente da literatura jurídica tra­ dicional, estilisticamente impura e grosseira, filologicam ente ingénua e ignorante do enquadramento histórico dos textos com que lidava. No plano filosófico, o humanismo jurídico arranca da opo­ sição entre a escolástica medieval, submissa ao valor das auto­ ridades mas igualmente atenta à realidade (neste sentido, rea­ lista) e o neoplatonismo renascentista, crente no poder livre e ilimitado da razão e atraído pelas formas ideais puras. Daí os seus traços principais: anti-tradicionalismo, crítica das autorida­ des, racionalismo, academicismo. -vuSobre a Escola hum anista, para m aiores desenvolvim entos, v., por todos, W ieacker, 1980, maxime, 87 ss e 179 ss. e bibliografia aí citada: Villey, 1968, 507 ss.; Cavanna, 1982,172-192; Silva, 1 9 9 1 ,3 2 9 ss. Para Portugal, Silva, 1964. 256 António Manuel Hespanha No plano jurídico, a orientação humanista é facilitada pela progressiva pujança dos direitos nacionais, que libertava o es­ tudo do direito romano dos objectivos práticos e o transforma­ va numa actividade de recorte cada vez mais antiquarista, histórico-literário e teórico. Finalmente, no plano social, a crítica humanista ao discur­ so jurídico anterior e aos seus portadores, os juristas tradicionais, constituía o eco erudito de uma generalizada antipatia social pela figura do jurista letrado, pedante e hermético, cultivando um estilo formalista e arrevesado, bem longe das possibilidades de compreensão e de controle do homem comum. A partir daqui, o humanismo jurídico vai propor várias orientações. a) Uma depuração histórico filológica dos textos jurídicos roma­ nos, que os libertasse, por um lado, da ganga das glosas e comentários medievais, e, por outro, das próprias cor­ recções introduzidas nos textos clássicos dos compilado­ res justinianeus (interpolações," tribonianismos" [deTriboniano, o responsável pela organização do Digesto justinianeu]). Este programa pressupunha a combinação do estudo jurídico com o estudo histórico (e filológico), como forma de reencontrar o enquadramento original dos tex­ tos jurídicos romanos e, logo, o seu primitivo sentido. Teve como resultado uma série de edições críticas dos textos jurídicos, ainda hoje merecedoras de atenção (v.g., a edição do Código Teodosiano, por Jacob Godofredo; e a do Corpus Iuris, por Dionísio Godofredo). b) Uma tentativa de construção sistemática do direito, inspi­ rada filosoficamente no idealismo platónico e procuran­ do refazer uma lendária obra de Cícero, De iure civili in artem redigendo, na qual ele teria exposto o direito roma­ no sob forma sistemática. Esta orientação tanto desem­ bocou numa crítica ao carácter atomista, não metódico e analítico da saber jurídico dos Comentadores, como deu origem a exposições metódicas do direito, quer romano, quer mesmo nacional - como, v.g., as de Hugo Doneau Cultura Jurídica Europeia 257 ou de Jean Domat (Les loix civiles dans leur ordre naturel, 1689 1705).305 - c) Uma reforma do ensino jurídico, que atendesse, antes de tudo, ao texto da lei (e não aos comentários que, sobre ele, a doutrina tivesse bordado) e que procurasse formar o espírito sintético e sistematizador (ou compendiário) dos juristas; o que envolvia uma crítica ao pendor doutriná­ rio (não "textual") e analítico do ensino das universida­ des tradicionais. d) Uma atenção nova a um direito natural de cunho racionalista e sistemático. Também os humanistas foram contagi­ ados pela tradição jusnaturalista romana. Também eles proclamaram que o jurista culto e formado numa filoso­ fia "sólida" compreende que a "natureza da justiça não é mudar segundo a vontade dos homens mas conformarse com a lei natural" (Jean Bodin), lei essa que se encon­ tra nos ditames da razão. No que eles apresentaram mai­ or originalidade foi enquanto críticos do direito romano justinianeu, em nome de um pretendido direito romano clássico. Esclareça-se, no entanto, que no fundo, não era o direito romano clássico que os atraía. Era, isso sim, um direito romano que respondesse às suas preocupações de filósofos e de juristas do seu tempo. Isto é, um direito ro­ mano que fosse sistematizável e redutível a dois ou três prin­ cípios racionais adaptados à mundividência da época.206 E, se­ gundo eles criam, um direito deste tipo teria sido o di­ reito romano clássico deturpado e tornado caótico por Justiniano e Triboniano. Sem esta corrupção, o direito romano teria conservado o seu carácter axiomático. E, quanto ao conteúdo, seria ainda redutível a meia dúzia de princípios racionais, dos quais os humanistas desta­ cavam os de neminem laedere (não prejudicar ninguém) e 305De notar, em todo caso, que a elaboração destas obras teria sido impossível sem o trabalho de sistem atização das anteriores escolas medievais. 306Com o teria sido feito por Cícero (v. supra). 258 Antórvio Manuel Hespa de pacta sunt servanda (os pactos devem ser respeitadc E foi assim que, no século XVI, se começou uma segi da recriação do direito romano (a primeira fora a dos mentadores), agora em moldes racionalistas. Apesar de contarem com percursores italianos - sobretx entre os cultores das disciplinas literárias (Policiano e Lour ço Valia), mas também entre os juristas (Alciato, 1492-1550, c ensinou em Bruges, mais tarde tomada no centro da escola os principais nomes da Escola culta são franceses. Desde lo Jacques Cujas (Cujacius, 1532-1590), professor em Toulou Paris e Bruges, autor de uma monumental obra de estudo 1 tórico filológico e dogmático dos textos romanos; depois, Fr; çois Hotman (1524-1590), autor do conhecido trabalho sobre interpolações justinianeias (Antitribonianus, 1574) e teórico anti-absolutismo (monarcómaco); Hugo Doneau (Donellus, 15 1559), jurista sistemático e dogmático; Duarenus; Brissoniu outros.307 Com o desfecho das guerras religiosas e a perseguição c protestantes huguenotes (confissão a que a maioria destes jui tas aderiu)308em França, os humanistas franceses refugiam-se i universidades holandesas e alemãs, dando origem aí a uma < tra geração humanista, cuja acção se prolonga até ao séci XVIII. Dela fazem parte nomes como os de Vinnius, Voet, N< dt, além do célebre Huigh van Groot (1583-1645), famoso p seu tratado sobre a guerra e a paz (De jure belli ac pacis libri t, 1625) considerado percursor da ciência do direito internado: público e, em Portugal e Espanha, pela sua defesa do princí] da liberdade dos mares na sua obra Mare liberum (1609), co batida pelo português Serafim de Freitas, De justo império asii co lusitanorum, 1625. 307 Entre eles, o português António Gouveia [Goveanus, m. 1566]). 308A opção religiosa dos hum anistas não deixou de influir na dificuldade seu im pacto nos países da contra-reform a, com o Portugal. Cultura Jurídica Europeia 259 6.3.2. Escola do “usus m odernus Pandectarum ”309 O humanismo jurídico, condicionado como estava por um sistema de fontes de direito em que o direito romano tivesse perdido a sua vigência prática, não se pôde implantar duradou­ ramente senão naquelas regiões da Europa em que o direito na­ cional era suficientemente rico e vivaz para regular a generali­ dade das questões. Isto aconteceu na parte norte da França ("pays du droit coutumier") e - por razões e em circunstâncias algo diferentes - na Holanda. No resto da Europa, porém, a lon­ ga tradição romanística confiara ao direito romano e ao saber jurídico tradicional a regulamentação de extensas zonas da vida social, sobretudo no domínio do direito privado. Aqui, portanto, o impacto da mensagem humanista não pôde ser tão radical. Porém, ela contribui, mesmo assim, para abalar a vigência indiscutida do direito romano e para - conju­ gada com o novo pathos das monarquias modernas - fortalecer a vigência dos direitos nacionais. Na Alemanha, que costuma ser considerada como o cen­ tro desta orientação, o usus modernus vem pôr em causa a vigên­ cia global e preferencial do direito romano, ao contestar o seu fundamento teórico - a translatio imperii [transmissão do poder imperial], ou seja, a ideia segundo a qual o direito romano vi­ goraria na Alemanha em virtude dos imperadores alemães se­ rem os sucessores dos imperadores romanos. Substituindo esta ideia de uma "recepção teórica", os juristas alemães (antes de todos, H. Conring, 1606-1618, em De originis germ anid, 1643) cri­ aram o conceito de "recepção prática", segundo o qual a recep­ ção se dera pontualmente, à medida que os príncipes e os tribu­ nais iam fazendo seus uns ou outros princípios e normas do di­ reito romano. Assim - como refere F. Wieacker -, o direito roma­ no só teria ganho vigência, "norma por norma, por força de uma aplicação prática", pelo que se deveria "promover, para cada ■’"'’Sobre o "u su s m odernus", v., por todos, W ieacker, 1980, 225 ss. Para E spa­ nha, v., por último, Valiente, 1980, 298 ss.; para Portugal, v. adiante. 260 António M anuel H espanha princípio, a comprovação histórica da sua recepção" e se "de­ via também admitir como possível a marginalização de princí­ pios já recebidos por costumes que os derrogassem". As consequências do usus modemus foram diversas. Em primeiro lugar, um interesse novo pela história jurídi­ ca nacional, dirigida pelo objectivo prático de determinar quais os princípios romanísticos recebidos, mas que teve resultados de âmbito muito mais vasto. Em segundo lugar, uma grande atenção, no plano prático e no plano da construção teórica, pelo direito nacional, que agora passa a ser objecto, tal como o direito romano, de tratamento dogmático. Daí que a legislação nacional, os estilos e praxes de julgar (donde a designação de praxística, que se aplica a esta es­ cola) e mesmo os costumes e estatutos locais, passem a ser con­ siderados pelos juristas nos momentos de construção teórica. Em terceiro lugar, uma maior adequação do ensino jurídi­ co às realidades do direito nacional. Se a tradição universitária dificultou que estas realidades fossem objecto de ensino nas ca­ deiras "ordinárias", ela já não conseguiu impedir que, sobretu­ do em muitas das universidades da Europa central, fossem mi­ nistrados "lições privadas" e "catedrilhas" de direito nacional. Dentre os juristas do usus modernus é costume salientar o nome dos alemães B. Carpzov (1595-1666), G. A. Struve (16191692), S. Stryk (1640-1710), G.-W. Heineccius (1618-1741), J.-H. Bõhmer (1647-1749), A. Leyser (1683-1752). Esta orientação segundo a qual o direito romano deve ser compatibilizado com os novos direitos comuns dos reinos não é exclusiva da Alemanha. Também nas grandes monarquias do sul e ocidente europeu, bem como nos Estados italianos, é ago­ ra bem viva a ideia de que o direito da coroa, seja ele a legisla­ ção real, seja o conjunto de decisões dos altos tribunais palati­ nos, é o novo "direito comum" e que o direito romano só tem vigência como direito recebido pelo príncipe. "A s próprias leis comuns dos romanos" - escreve, no século XVII, um famoso ju­ rista italiano, o cardeal Giambattista de Luca - "que dizemos comuns, de facto deviam chamar-se leis particulares de qual- Cultura Jurídica Europeia 261 quer principado independente, atendendo a que a sua neces­ sária observância não nasce apenas do poder de um legislador que seja comum a todos, como acontecia no tempo do antigo império romano, mas antes do poder distinto de cada prínci­ pe, o qual o quis receber e permite que se observe no seu prin­ cipado, com as limitações que lhe pareçam" (II dottore vulgare, proemio, IV). Também em Portugal, como nos restantes reinos da Espa­ nha, se sublinhava que as disposições do direito romano aqui vigoravam "somente [...] pela boa razão em que são fundadas" (iO rd.fil., III, 64). Este direito reinícola - como então se dizia - manifestavase decerto em leis; mas manifestava-se cada vez mais nas deci­ sões dos grandes tribunais (nos seus "estilos", ou costumes de julgar, e na sua "praxis", ou forma de aplicar o direito aos casos concretos). Ao jurista "cidadão da Europa", que equaciona ques­ tões abstractas em face dos dados do direito comum europeu, substitui-se o juiz dos tribunais da corte, que passa pelo crivo da jurisprudência do reino (praxística) a doutrina do direito co­ mum (opinío communis doctorum). Assim, por toda a Europa, as decisões dos grandes tribu­ nais passam a ter, a partir da segunda metade do século XVI, uma enorme audiência na doutrina, que se dedica à sua compi­ lação e comentário. Por várias razões. Por um lado, os tribunais são agora constituídos exclusivamente por letrados. Por outro lado, porque os tribunais, como tribunais da corte ou "colate­ rais", estão revestidos da dignidade do rei. Finalmente, porque a regra do precedente conduz a uma maior certeza do que o fun­ cionamento do critério da opinio communis. A prática forense tor­ na-se, assim, na intellectrix legum (na interpretadora das leis) e os critérios de decisão contidos nas abundantes recolhas de de­ cisões jurisprudenciais (decisiones, aresta, practica) passam a cons­ tituir o "direito usado" ("ius quasi moribus constitutm" [o di­ reito como que instituído pelo costume] como diz o jurista por­ tuguês António da Gama). 262 António Manuel Hespanl 6.4. Ius com m une e com m on law Apesar da leitura modernizadora que mais tarde ser fai delas, a constituição do período da dinastia dos Lancaster (1391 1461) era dominada pelas ideias tradicionais de propriedade de feudo, como centrais na limitação ao poder real ("ad regi enim potestas omnium pertinent; ad singulos, proprietas", ao r pertence a auotridade sobre tudo, aos particulares, a propried. de", aforismo originalmente de Séneca, De beneficiis). A recepção do direito romano, que se iniciara, como no re to da Europa ocidental - no séc. XIII, ganha um novo ímpeto r período renascentista dos Tudor (1485-1603), tanto mais que valorização dos textos de direito romano ia em paralelo com reaproximação aos textos religiosos originais do cristianism proposta pela Reforma. Assim, o ensino do direito romano é ú troduzido por Henrique VIII em Oxford e em Cambridge, tenc os seus professores, como regii professores e membros dos tribi nais em que o rei gozava de supremacia (prerrogative courts),'■ uma enorme influência. O mesmo não acontecia nos tribunais c common law, que se encarregavam de formar o seu próprio pe soai em estabelecimentos próprios, dirigidos por juizes, as Im ofth e Courts. Nestas, dominava - por reacção corporativa, m< também como defesa do "direito do reino" contra o direito "p. pista" de Roma - o velho direito feudal de origem normand Acresce que o common law constituía o fundamento e título de toc a propriedade, comum ou feudal, pelo que a sua modificação í tomava um factor de perturbação social e política muito grand Neste sentido, o common law transformou-se numa espécie de d reito constitucional, garantia dos direitos (nomeadamente da pr< priedade) dos súbditos, tal como ficou expresso por Sir Edwai Coke (1552-1634) no célebre Bobbam's Case (1610).311 310 Nom eadam ente, tribunais fiscais, tribunais da C âm ara Real, cf. Th. Pluc nett, A concise history ofthe common law, ed. cit., Boston, Little, Brown an Ce 1 9 5 6 ,1 7 4 ss.. 311 Sobre esta evolução, v. Th. Plucknett, A concise history [ ...] , cit.. Cultura ]urídica Europeia A polémica entre common law e civil laxo - que }á era uma questão com conotações religiosas, depois da Reforma anglica­ na, dadas as alegadas viculações dos romanistas aos canonistas e ao Papado -, torna-se também, nas lutas civis do séc. XVII, numa questão política, sendo a defesa do common law tomada a peito pelos parlamentaristas e defendendo o partido realista (no­ meadamente durante a dinastia dos Stuart, 1603-1714) uma certa renovação do direito inspiradaa no ius commune europeu, o que - de facto - aconteceu no reinado de Carlos II, por vezes tam­ bém com carácter garantista, como é o caso do Habeas corpus Acat (1679). No entanto, as suas medidas de maior alcance político relacionavam-se com a sua pretensão de, ao abrigo da royal prerrogative, dispensar a aplicação de leis a casos particulares. Daí que, alguns dos textos fundamentais do Bill ofrights (1689) se relacionassem justam ente com esta relação entre o rei e a lei ("That the pretended power of suspending of laws, of execution of laws, by regall authority, without the consent of Parliament is illegal", sess. 2, c. 2). Este tom polémico das relações entre common law e ius com­ mune exprime-se numa abundante literatura contra os juristas civilistas (que os anglicanos consideravam quer como agentes do Papa, quer como inimigos das liberdades tradicionais ingle­ sas. Ainda nos meados do séc. XVIII, esta lenda negra da recep­ ção do direito romano (civil law) e, ao mesmo tempo, a glorifi­ cação do common law é muito evidente no épico e xenófobo modo como Sir William Blackstone (1723-1780), o maior jurista da épo­ ca, autor de uns Commentaries on the laws o f England (17651769),312 descreve a luta dos reis e juizes ingleses para contrari­ ar a difusão da ao mesmo tempo lúdica e subversiva dedicação dos "clérigos" e estudantes ociosos ao "direito municipal de Roma", com prejuízo do "adm irável sistema jurídico inglês". 312 Sir W illiam Blackstone, Knt., Commentaries on the laws of England. In four books. Notes Selected from the editions of Archbold, Christian, Coleridge [etal.], Philadelphia, Published By George W . Childs, Ledger Building, Sixth & C hestnut Sts., 1869. 264 António M anuel Hespanha Vale a pena citar: "As inovações normandas, continuaram ligadas ao uso do direitoi comum. O rei Stephen publicou imediatamente uma pro­ clamação, proibindo o estudo do direito, então importado prin­ cipalmente de Itália, qual foi tratado pelos monges com uma peça de coisa ímpia.; e, embora tenha podido impedir a introdução do processo da civil law nos nossos tribunais de justiça, contudo não impediu o clero de o ler e ensinar nos seus próprios mosteiros e escolas "(1 ,19). "[... ] mas como o grande peso do ensino estava ainda largamente do lado do clero, e como o common law já não era ensinado, como anteriormente, em qualquer parte do reino, deve ter sido sujeito a muitos ultrajes, e talvez se tivesse perdido, sendo gradualmente suplantado pelo civil law (uma suspeita jus­ tificada se se atender às frequentes transcrições de Justinian que se encontram em Bracton e Fleda), se não tivesse ocorrido um in­ cidente peculiar, qual se deu num momento muito crítico, contri­ buindo fortemente para a manutenção o common law. O inciden­ te a que me refiro foi a reforma do Court of Common Pleas, o gran­ de tribunal para questões sobre a propriedade, no sentido de ser mantido num determinado lugar certo, de modo a que a sede da justiça ordinária pudesse ser permanente e notória para toda a nação [...]; com o que [os tribunais reais] têm sido mantidos des­ de então (exceptuadas algumas ausências necessárias nas épocas de praga) no apenas no palácio de Westminster. Isto juntou os professores de direito municipal [i.e., common law], que antes an­ davam dispersos pelo reino, dando-lhes a forma de um corpo agregado, estabelecendo uma comunidade entre eles. Quem [...] se entregasse completamente ao estudo das leis da terra, e não as considerando mais como uma mera ciência subordinada para divertimento de horas do lazer, logo pôde alcandorar aquelas leis a esse nível de perfeição, que então alcançou de repente sob os auspícios de nosso Justiniano inglês, o rei Eduardo I. Na sequên­ cia desta afortunada junção, os juristas do direito comum formam naturalmente um tipo da colégio; e, sendo excluído de Oxford e de Cambridge, tiveram que estabelecer uma nova . Fizeram-no comprando a pouco e pouco várias casas (agora chamadas as Inns o/tlie courts eof the Chancenj) entre acity de Westminster, lugar de Zultura Jurídica Europeia 265 eunião dos tribunais reais, s a city de Londres; pela vantagem do ácil acesso a uma e pela abundância de provisões na outra. Era iqui que os exercícios se faziam, que as aulas eram dadas e que, malmente, os graus em common law eram conferidos, tal como nas xitras universidades o eram os de civil e canon law. Os graus eram )s de barristers [...] correspondentes aos de bacharéis: a posição e jrau de serjeant (servientem in legem) correspondiam ao de doutor. \ coroa parece que cedo tomou sob a sua protecção estes nóveis seminários de common law [_] (1,23). Contudo, as leis imperiais não oram totalmente negligenciadas mesmo na nação inglesa. Um co­ nhecimento geral com suas decisões foi sempre considerado como im apreciável trunfo de um cavalheiro; mantendo-se a moda, em ispecial ultimamente, em transportar as esperanças crescentes desta lha para as universidades estrangeiras, na Suiça, na Alemanha e ia Holanda; as quais, embora infinitamente inferiores às nossas pró­ prios, têm sido olhadas como melhores berçários do direito civil, )u (o que é quase o mesmo) das suas próprias leis municipais; ao nesmo tempo, o peculiar conjunto do nosso admirável sistema de iireito começou a ser descuidado e mesmo desconhecido, como se osse uma mera profissão prática; embora construído em cima so­ pre as fundações as mais sadias, e aprovado pela experiência das dades. Bem longe de mim está afastar o estudo do civil law, consilerado (aparte de alguma autoridade obrigatória) como uma re:olha da razão escrita. Ninguém está mais completamente persuaiido da excelência geral das suas regras, e da equidade usual de luas decisões, nem mais convencido do seu uso, assim como do )mamento que constitui para o académico, o sacerdote, o estadisa, e mesmo o advogado comum. Mas nós não devemos sobrecaregar a nossa veneração a ponto de sacrificar os nossos Alfredo e iduardo aos manes de Teodósio e de Justiniano; nós não devemos preferir o edicto do pretor, ou o rescripto do imperador romano, los nossos próprios costumes imemoriais, ou às decisões de um par­ amento inglês; a menos que também preferíramos a despótica molarquia de Roma e de Bizâncio, para cujos meridianos os anterio-es (edito e rescripto) foram calculados, à constituição livre de Grã Bretanha, à qual as fontes jurídicas ultimamente referidas são ade­ quadas a perpetuar" (I, p. 4. § 5). 266 António Manuel Hespanh, Como característico do direito inglês fica, doravante: • uma pronunciada supremacia da lei, qe explicará muitc no futuro, quanto à resistência da constituição inglesa er colocar limites à lei;313 • uma consciência aguda de que existe um direito não es crito;314 • um rigor muito estrito dos meios disponíveis para obte o reconhecimento judicial dos seus direitos - paradoxa mente, muito semelhante, em certos aspectos, ao forme lismo das legis actiones romanas -, a ideia de que, embor o direito consista nos usos estabelecidos historicament e diuturnamente recebidos, cabe aos tribunais a autor dade de os explicitar, por meio de correntes jursidruder ciais consequentes e constantes (precedentes);315 313 "Legislature, as w as before observed, is the greatest act of superiority th: can be exercised by one being over another. W herefore it is exclusive to tf very essence of a law, that it be m ade by the suprem e power. Sovereignl and legislature are indeed convertible terms; one cannot subsist withoi the other [... ] By the sovereign pow er, as w as before observed, is m eant tJr making of laws, for w herever that pow er resides, all others m ust confori to and be directed by it, w hatever appearance the outw ard form and at ministration of the governm ent m ay put on. F o r it is a t any time in the 0[ tion of the legislature to alter that form and adm inistration by a new edii or rule, and to put the execution of the laws into w hatever hands it ple< ses; by constituting one, or a few, or m any executive magistrates: and a the other pow ers of the state m ust obey the legislative pow er in the di: charge of their several functions, or else the constitution is at an end" (V Blackstone, Commentaries [...], I, p. 46). 314 "The lex non scripta, or unw ritten law, includes not only general custom or the C om m on law properly so called; but also the particular customs ( certain parts If the kingdom; and likewise those particular laws, that ai by custom observed only in certain courts and jurisdictions." (W. Black; tone, Commentaries [...] , I, sect. Ill, in capu)). 315 "F o r the authority of these m axim s rests entirely upon general coceptio and usage: and the only m ethod of proving, that this or that m axim is rul of the com m on law, is by show ing that it hath been alw ays the custom t observe it.*But here a very natural, and very m aterial, question arises: hoi are these custom s or m axim s to be known, and by whom is their validit be Ietermined? The answ er is, by the judges in the several courts of justia Cultura Jurídica Europeia 267 • um papel residual e estritamente limitado a certas maté­ rias316 e a certos tribunais da equity (v. adiante );317 They are the depositaries of the law s; the living oracles, w ho m ust decide in all cases of doubt, and w ho are bound by an oath to decide according to the law of the land. The know ledge of that law is derived from experience and study (W. Blackstone, Com m entaries [...], I, 62) [...] it is an established rule to abide by form er precedents, w here the sam e points com e again in litigation: as well to keep the scale of justice even and steady, and not lia­ ble to w aver with every new judge's opinion; as [so because the law in that case being solemnly declared and determ ined, w h at before w as uncertain, and perhaps indifferent, is now become a perm anent rule, w hich it is not in the breast of any subsequent judge to alter or vary from recording to his private sentim ents:f...] Yet this ule adm its of exception, w here the form er determ ination m ost evidently contrary to reason; m uch m ore if it be clear­ ly contrary to the divine law. But even in such cases the subsequent judges do not pretend to make a new law, but to vindicate the old one from m isre­ presentation". (W. Blackstone, Com m entaries [...], I, 62). 516 "I shall there-fore only add, that (besides the liberality of sentim ent with which our com m on law judges interpret acts of parliament, and such rules of the unwritten law as are n o t of a positive kind) there are also peculiar courts of equity established for the benefit of the subject: to detect latent frauds and concealm nts, w hich the process of the courts of law is not ad ap ­ ted to reach; to enforce the execution for such m atters of trust and confi­ dence, as are binding in conscience, though not cognizable in a cou rt of law; to deliver from such dangers as are ow ing to misfortune or oversight; and to give a m ore specific relief and m ore adapted to som e circum stances of the case, than can alw ays he ohtained by the generality f the rules of the positive or com m on law. This is the business of our courts of equity, whi­ ch how ever are only conversant in m atters of property. For the freedom of our constitution will not permit, that in criminal cases a pow er should be lodged in any judge, to construe the law otherwise than according to the letter (ibid.). 317 "F ro m this method of interpreting laws by the reason of them, arises w hat w e call equity, w hich is thus defined by Grotius "th e correction of that w herein the law (by reason of its universality) is deficient." For, since in law s all cases cannot be foreseen or expressed, it is necessary that, when the general decrees of the law com e to be applied to particular cases, there should be somewhere a lower vested of defining those circumstances, which (had they been foreseen) the legislator himself would have expressed. And these are the cases which, accordlngto Grotius, "lex non exacte definit, sed arbitri boni viri perm itit" (W. Blackstone, Commentaries [...], I, 62). 268 António M anuel H espanha • um papel estritamente limitado outorgado ao civil law.3U Relativamente à situação dos direitos continentais a situação do direito inglês tem algo de paradoxal. Por um lado, a prevalância do direito próprio (ou municipal) é mais enfaticamente afirma­ da e, sobretudo, muito mais sistematicamente praticada, dado que os juizes são formados, não em instituições universitárias de tipo académico, permeáveis às modas académicas do continente, mas sobretudo em escolas judiciais, aferradas ao sistema de direito pra­ ticado nos tribunais, que era o normando. Do ponto de vista estru­ tural, atenta a estreita margem de discricionariedade atribuída aos juizes perante o sistema de lurits ou acções, a influência do direito régio era maior. No entanto, esse direito não era o direito actual, mas o direito consuetudinário, enraizado numa tradição de julgar consubstanciada naa regra do precedente e codificada nos registos (records) dos tribunais. Deste modo, o direito inglês acabava por se assemelhar bastante, na sua gramática formal, ao sistema de direi­ to pretoriano dos romanos, constituído por regras de julgar, final­ mente codificadas nos editos dos pretores. Estas distinções acabam por se atenuar com a tendência para a recepção das concepções sistemáricas do direito do período jusracionaiista, quando os juristas ingleses - como o próprio W. Blackstone na sua Analysis ofthe laivs ofEngland (Oxford, 1771) - adop­ tam um método axiomático de apresentar as matérias e tentam fun­ dar todo o direito em regras jurídicas naturais de tipo axiomático,319 tal como o faziam os juristas seus contemporâneos no Continente. 318Havia quarto tipos de tribunais em que era permitido o uso dos direitos canóni­ co e civil, embora com restrições: "1. The courts of the archbishops and bishops, and their derivative officers, usually called in our law courts Chris-Tian, cunAe Christianitatis, or the ecclesiastical courts. 2. The military courts. 3. The courts of admiralty. 4. The courts of the two universities. In all, heir reception in general, and the different degrees of that reception, are grounded entirely upon custom, corroborated in the latter instance by act of parliament, ratifying those charters which confirm the customary law of he universities [...] the courts of common law have the superintendency over these ourts; to keep them within their juris­ dictions [...] (W. Blackstone, Commentaries [...], 1,84). 319"These are - resume Blacstone - the etem immutable laws of good and evil, to which the Creator himself, in all his Jispensations, conforms; and which he has enabled human reason to discover, so far as they are necessary for the conduct of human actions. Such, am ong thers, are these principles: that w e should live honestly, should hurt nobody, and should render to every one his due; to which three general precepts ]us-tinian(a) has reduced the whole doctrine of law ". 269 Cultura Jurídica Europeia C O N T E OF N T S THIS A N A L Y S I S . I N T R O D U C T I O N . O f the S t u d y o f the Law . S e c t i o n T h e Nature o f L a w s in general. i . 2, T he Grounds and Foundation o f th e Laws o f E n g l a n d . 3. T h e Countries fubject to thofe Laws. 4, T he Objects o f the Laws o f E n g l a n d ; v iz , “ I. T h e R i g h t s o f Perfonsj which are B ook I. Nat f l t, Natural Perfons ; whoie Rights are C h a p T I R I# ^ i . Abfolutej viz* the Enjoyment o f r 1. Perfonal Security. < 2. Perfonal Liberty, i 3. Private Property. R e la tm ; a# they fcand in Relations 11, " Public j as " j . MagUfrates; who are Supreme, 1. Legiflativej v iz . T h e Parliament. i: * 2. Executive j v iz .T h c King j whercio o f hi* <11* j I ï j 1. 2. 3. 4. 5. Title. Royal Family. IT . Councils. v. Duties. v i, Prerogative. vu Revenue, vni, U. “ r i . Ordinary j vizs. 1 f X. Ecdefiafticai. J C 2* Temporal, ^ 2 . Extraordinary, Subordinate. ix , X, People j who are ■ “ 1 . A lien s. N atives j who are i J f *• 7 2. Laityj who are ix* a State r 1, Civil. «1 2. Military. im . £ 3. Maritime. 2. Private ; as xxv. 1. Mafttr and Servant. J j , Husband and W ife . ^ 3. Parent and Child. v 4. Ouardian and Ward* 2, Bodies politic, or Corporations, XT, xvi. xvil * xvril, I L Th e R i g h t s o f Things* III, Private W r o n g s , B o o k I I, JV . Public Wi i WO « . S99JC I Y . B o o k I I I. Á rvore das matérias (W. Blackstone, Analysis of the laws of England (O xford, 1771) 270 António Manuel Hespanl 6 .5 . A c u l t u r a j u r í d i c a p o p u l a r Quando Derrer, acima citado (cf. 174), se referia à neces: dade de adoptar um discurso jurídico que pusesse o direito ; alcance de "quem apenas seja mediocremente versado nesta artí ele estava a evocar uma questão notória - a do massivo desconh cimento do direito erudito por parte da população. Porém, talv se referisse apenas a uma parte desta questão, a da relação ent este direito e a população urbanizada, e nem sequer estranhas um outro facto massivo, o da existência de todo um mundo - n meadamente, o mundo campesino - que continuava a viver s< um outro direito, constituído por antigas tradições normativ; passadas oralmente de geração em geração, aplicadas por juiz leigos e iletrados, apontando para valores diferentes e utilizam conceitos, princípios e estratégias de resolução dos conflitos q pouco tinham a ver com o direito culto. Este direito dos grupos sociais culturalmente marginaliz dos (embora estatisticamente dominantes) foi designado, p esta época, como "direito dos rústicos" (ius rusticorum), tende sua supervivência construído uma constante do direito europe a que nem a "codificação" (cf., infra, 7.2.4. ) nem, mais tarde alfabetização (no séc. XIX) ou a massificação da cultura (já 1 séc. XX) puseram termo. Tomemos o exemplo português que, no aspecto seguini está melhor estudado. Nos meados do séc. XVII, o número d juizes de fora - os únicos que, desde 1539, tinham que ter un formação jurídica universitária, não ia além de um décimo c total dos juizes dos concelhos.320 Os restantes, eram juizes qu quando muito, saberiam ler e escrever, embora as fontes par çam evidenciar que nem isso acontecia num número apreciáv de casos. Ou seja, mesmo para quem administrava a justiça, discurso dos juristas eruditos, escrito e, para mais, em latim, e absolutamente inacessível. Como o era mesmo a própria lei c reino (nesse caso, as Ordenações filipinas, de 1604). 320Números mais precisos, em Hespanha, 1984(i); síntese em Hespanha, 19É Cultura Jurídica Europeia 271 No entanto, se descermos ao nível dos destinatários do di­ reito/do que nos damos conta é da existência de um mundo ju ­ rídico submergido, pouco aparente para quem lê as obras dou­ trinais dos juristas. No domínio do direito, o contraste entre estes dois mundos culturais foi descrito numa já longa série de traba-lhos, principal­ mente de antropólogos.321 Segundo Boaventura de Sousa Santos - que utilizou os instrumentos teóricos dessas correntes na sua in­ vestigação sobre o direito "não oficial" das favelas do Rio de Ja­ neiro322- os traços distintivos da prática jurídica dessas socieda­ des marginalizadas dos nossos dias (cujas estruturas e práticas culturais e simbólicas estão intimamente relacionadas com as das sociedades tradicionais) podem descrever-se da seguinte forma. Os conflitos têm, geralmente, um carácter comunitário, não se reduzindo a uma questão puramente privada. A comunidade mostra-se, de certo modo, empenhada nos dife-rendos entre seus membros. Isto explica-se devido às fortes solidariedades decor­ rentes do teor marcadamente fechado sobre si da vida destas co­ munidades. Além disso, a natureza tradicional e imanente (isto é, não voluntarista e arbitrária) da ordem jurídica trans-forma qualquer conflito sobre o direito numa questão que ultrapassa o nível meramente técnico e que põe em causa os fundamentos (con­ siderados indisponíveis) da vida social. É este carácter trans-individual dos conflitos que explica, por um lado, a fluidez das fron­ teiras entre o direito (ius), a moral (fas) e o costume (mos), e ainda a referência, permanente no dis-curso jurídico tradicional, a pa­ drões éticos de conduta: aquilo que deve ser considerado como fundamento do direito é viver honestamente (ou seja, de acordo com a natureza das coisas], não prejudicar outrém e dar a cada qual o seu lugar). Longe disto não está ainda o facto da censura ético-religiosa dirigida ao conflito e às pessoas conflituosas, que levava a Igreja a promover a arbitragem como solução dos con­ flitos. Este carácter comunitário dos conflitos explica ainda a in321 Cf. Hespanha 1983b ; 1993(iii).. 322Santos, 1985, onde dá conta do prinipal de urnseu anterior trabalho sobre o tema (Law against law: legal reasoning in Pasargada laio, Cuernavaca, Cidoc, 1974). 272 António M anuel Hespanha tervenção activa do tribunal e da própria sociedade (através dos seus elementos mais respeitados, os honoratiores, anciãos) na pro­ cura de um equilíbrio entre os interesses conflituantes que per­ mita resolver o litígio de forma durável.323 Uma outra característica do direito "dos rústicos" consiste na precariedade dos meios coercivos institucionalizados, expli­ cando que a resolução dos conflitos assente numa "violência doce" do discurso orientada para a obtenção de um consenso que possibilite, não só satisfazer momentaneamente os interes­ ses, mas tam bém encontrar um equilíbrio estável. O discurso jurídico socorre-se de todos os lugares retóricos aceites, mobili­ za toda uma riqueza emocional e tópica e, longe de isolar a ques­ tão numa moldura técnica e abstracta (neutra, do ponto de vis­ ta das convenções colectivas), favorece constantemente a sua li­ gação com outros registos valorativos da vida social (ética, reli­ gião, mundo das virtudes), procurando salientar o carácter so­ cialmente indispensável da obtenção de um acordo (e, por con­ sequência, os deveres das partes nesse sentido). Um último sin­ toma deste débil grau de institucionalização das instâncias de­ cisórias das questões jurídicas traduz-se no facto de as institui­ ções jurisdicionais serem integradas ou presidi-das não por pro­ fissionais de carreira, especializados e escolhidos em função das suas qualificações técnicas, mas por indivíduos investidos de um prestigio social anterior à sua designação como juizes (honorati­ ores, notáveis), que exercem essa função a par de outras papéis e dignidades sociais e que, para além disto, não pos-suem qual­ quer formação técnica. Também a linguagem jurídica não tem um carácter técnico ou especializado e, por isso, não provoca a distanciação entre o tribunal e o auditório, permite um controlo e uma participação pública no desenrolar do processo e, final­ mente, na decisão. Para isto, a "sim plificação" dos processos aproxima as práticas judiciais dos rituais e formalidades da vida quotidiana, eliminando todos os protocolos em que os aspectos materiais são sacrificadas aos aspectos formais ou, melhor di- 121Santos, 1 9 6 0 ,1 7 . Cultura Jurídica Europeia 273 zendo, em que a solução socialmente evidente e justa é abando­ nada por razões "form ais"324 Os estudos sobre a litigiosidade no Antigo Regime,325 em­ bora frequentemente voltados para a litigiosidade dos tri-bunais superiores (ou seja, para o mundo erudito), não cessam de con­ firmar estas perspectivas sobre a irredutibilidade e a especifici­ dade do direito popular tradicional.326 Com efeito, apesar do tom irreal e fictício tantas vezes adop­ tado pelo discurso do direito erudito, a realidade desse mundo jurídico não assimilado era de tal modo gritante que, forçosamen­ te, ele tinha de estar presente no horizonte do jurista letrado. Pre­ sente, quer como alternativa cultural e jurídica que se tentava com­ bater e depreciar, quer como realidade não assimilada que exigia um enquadramento dogmático e institucional específicos. Na li­ teratura erudita, este mundo do direito tradicional, não erudito e não escrito, era designado por mundo dos "rústicos" .327 324Por exem plo, a fixação definitiva do objecto do proceso de acord o com a Iitis co n testatio ; a existência de critérios pré-estabelecidos de apreciação da prova; a perda de direitos materiais por prescrição de prazos ou por viola­ ção de certas form ali-dades processuais. 325Cf. Hespanha, 1983b; 1993(iii). 326Por exemplo, a obra de Richard H. Kagan (Kagan, 1981) - embora incida prin­ cipalmente na prática judicial de um tribunal superior (a C han célleria d e Valladolid) - testemunha também um a oposição, ainda no século XVIII espanhol, entre form as tradicionais e m odernas de resolução de conflitos: entre o "pleyto" que corria num tribunal oficial e erudito, submetido às regras do direito escrito, e os antigos juízos ex aequ o et bono (juicios de a lvedrio) proferi­ dos pelos juizes tradicionais e honorários dos municípios e aldeias, submeti­ dos ao direito tradicional parcialmente contido nos antigos "fueros". 327Literatura sobre os rústicos (privilégios, ,u d icia ): Andreas Tiraquellus, T ractatus de p riv ileg iis ru sticoru m , CoIoni~ Agrippin~ 1582; Renatus Chopinus, D e p riv ileg iis ru sticoru m , Pansus 1575; D es p riv ilèg es des p erso n n es v iv a n t au x cham ps. Paris 1634 (trad. franc.); Iohannis Albini, O p u scu lu m de reg im in i ru s­ ticoru m , M oguntiae 1601; Iustus H enning Boehmer. De lib erta te im p erfecta ru sticoru m in G erm an ia, Halliae, 1733; Siculus Flaccus, De ru sticoru m regim en , Moguntiae, 1601: Joh. Wilh. Goe-bel, D e ju r e & iu d icio ru sticoru m f o r i G erm an iae, H elm stadt 1723; Benedictus C arpzovius, D is p u ta tio d e p ra ec ip u is ru sticoru m privilegia. Lipsiae 1678; Iohannis Suevi, T ra ctatu s de p riv ile g iis ru sticorum . Coloniae 1582; e outras obras que focam, sobretudo, as obriga­ ções feudais dos rústicos e dos cam poneses. 274 António Manuel Hespa A definição deste universo surge já na literatura clássicé direito comum. Segundo Bártolo, os rústicos são os que vi\ fora das cidades ou das terras importantes ("omnes quí habi extra muros civitatis vel castri, tamen idem intellegeremus de cai et commitatuis ubi non esse copia hominum et sic non sunt ca insignia") [os homens que habitam fora dos muros de uma c: de ou castelo, embora também o digamos dos castelos e po\ ções onde não haja muitos homens e que, deste modo, nãc jam castelos importantes].328 Ainda mais expressiva é, contt a definição de Alexandre de Imola que se refere clarament< que, em sua opinião, justificava o estatuto especial dos rústi a ignorância e a rudeza ("rusticus proprie est, qui opere, & con satione est rusticus" [rústico propriamente dito é aquele qi rude no comportamento e na maneira de falar]).329 "Rústicos" não era, de facto, uma expressão neutra no curso da Baixa Idade Média. Longe de constituir uma sim] evocação do mundo rural, ela continha uma conotação n it mente pejorativa equivalente a "grosseiro" (grossus, grossolan "rude" e "ignorante", por oposição a um ideal de cultura lit ria que, cada vez mais, se vinha impondo. Esta imagem dej dada da rusticidade não decorria apenas de uma observação geira sobre a diversidade dos hábitos e das maneiras. Enra va-se em representações mais profundas sobre a natureza homens que tanto se aplicavam aos rústicos da Europa como nativos descobertos nas terras do ultramar.330 A atitude do jurista erudito para com esse mundo é um m de simpatia, mais retórica do que genuína, suscitada pelo est virginal da inocência primitiva, de condescendência arroge relativamente à sua ignorância e estupidez e, final-mente, de c 328BartoIus, Comm. ad Dig. infort. (D. 2, 29, 7, 8, 2j; idêntica definição é dada Baldo: "rusticus dicitur quolibethabitans extra muros civitatis, vel habi in castro, in quo est hom inum penúria" [diz-se rústico aquele que hí fora dos muros da cidade, ou de um castelo, onde haja poucos home (Comm. D. de iure codic., 1. conficiantur, § codicilli. cit., t. III, p. 170). 329A lexander de Imola, Consilia, Lugduni 1563, vol. 6 co n .l. n.3. 330Sobre esta aproxim ação, à qual voltarem os, v. Prosperi, 1996, 551 ss. Cultura Jurídica Europeia 275 prezo mal disfarçado pela insignificância (também económica) das questões jurídicas que, neste mudo, apareciam. O rústico era, por um lado, a criatura franca, ingénua, incapaz de malícia, despro­ vida de capacidade de avaliação exacta das coisas em termos eco­ nómicos e, por isso, susceptível de ser enganada. "A mente sin­ cera e aberta dos camponeses aconselha a presunção de que não actuam com dolo [intenção]", escreve Chapinus (De privilegiis..., cit., 1.1, p. 2, c. 4). Mas, por outro lado, era o ignorante e o grossei­ ro, incapaz de se exprimir correctamente e de compreender as subtilezas da vida, nomeadamente da vida jurídica. Por fim, ele era o pobre cujas causas nunca atingiam uma importância que justificasse as formalidades solenes de um julgamento. Destas características negativas decorrem uma série de "defeitos dos rús­ ticos", enumerados por juristas e moralistas.331 O que pouco transparece neste discurso erudito sobre o mundo dos rústicos não é uma abertura para o reconhecimento do carácter alternativo e diferente do direito tradicional, mas an­ tes uma atitude paternalista e condescendente, própria de quem está perante uma realidade jurídica inferior, precária, que apenas prevalece graças à paciência do direito oficial. A realidade jurídi­ ca do mundo rústico é, assim, deste modo, banalizada e expro­ priada da sua dignidade de prática jurídica autónoma. A generalidade dos privilégios dos rústicos funda-se, como já vimos, na presunção da sua ignorância e do seu desconheci­ mento das subtilezas do direito oficial ("in rústico est praesumptio iuris ignorantia", Alexandre de Imola). Em todo o caso, o que não se presumia era, como vimos a propósito do tratamento da ignorância por S. Tomás, era a ignorância do direito natural ou das gentes, pelo menos quanto aos seus dogmas "prim ários" (nos "secundários", pelo contrário, a ignorância era presumida e juridicamente excusatória, pois "frequentemente, mesmo os mais sabedores se alucinam" .332 331 Cf. exem plos em H espanha, 1983b. 332J. W. Goebel, Tractatus de iure cit., 1 9 3 /4 . António M anuel Hespanha 276 Na verdade, os letrados dizem que, nas causas do rústicos, se deveria preferir a uma decisão baseada no sentido imanente da justiça (ex nequo et bono) a uma outra fundada na aplicação estrita do direito (ex apicibus iuris). Mas acrescentavam mais: em vez de decidir as questões com o sacrifício irreparável e defini­ tivo de uma das partes, era preferível dividi-las ao meio, salom onicamente, sacrificando ao mesmo tempo as duas partes, mas atingindo uma solução consensual em que todos obtives­ sem algo, de modo a construir um equilíbrio estável para futu­ ro. Neste sentido, Baldo diz-nos que os rústicos se põem de acor­ do dividindo as questões ao meio ("rustici dividunt per medium quaestiones") .333 Para a salvaguarda de outras particularidades de estudo jurídico tradicional bastava o princípio, geralmente aceite pela doutrina do direito comum erudito, segundo qual os costumes particulares do rústicos de revogavam o direito comum. No en­ tanto, nem tudo era favorável aos rústicos, mesmo no plano des­ te direito especial. Por um lado, havia circunstâncias nas quais os privilegia rusticorum não tinham eficácia;334 por outro lado, o estatuto dos rústicos compreendia também aspectos negativos, como, por exemplo, o de nunca poderem pertencer à nobreza, ainda que fossem ricos e de bem; ainda, a ofensa que lhes fosse feita nunca era considerada como uma injúria; os seus privilé­ gios não podiam ser opostos aos dos senhorios directos, nos ca­ sos de enfiteuse, o mais importante dos contratos agrários.335 Como se viu, o estatuto dos rústicos dificilmente pode ser considerado - pelo menos, se nele apenas se ler aquilo que é ex­ pressamente dito - como uma forma de repressão de um mun­ do jurídico alternativo. Bem pelo contrário. Aparentemente, todo o discurso erudito sobre ele está dominado pela ideia de condes­ cendência - mais do que de respeito - para com o mundo do di­ reito tradicional. 333Baldus, Opera ..., cit. (in D. De negotiis gestis, 1. Nessonis, n. 6), vol. I, p. 120. 33J Cf. Iac. Menocchio, De arbiitrariis iudicum quaestionibus ..., c. 194, n. 2 /3 2 . 335V. o já citado Menochio e, ainda, R. Choppinus, De privilegiis rusticorum, cit, 1.1, p. 2, c. 5. Cultura Jurídica Europeia 277 Em todo o caso, se a análise for levada um pouco mais lon­ ge, poder-se-á verificar como esse discurso se integra numa es­ tratégia doce, mas inexorável, de assimilação e repressão. Uma estratégia que recupera no plano simbólico e ideológico o que abandonara no plano jurídico-institucional. Com efeito, o discurso sobre o direito dos rústicos - e a pró­ pria expressão "rústico" - é dominado por uma oposição fun­ damental: a oposição entre saber e ignorância. Os dois termos desta oposição não estão, porém, em equilíbrio porque o saber representa já o ideal cultural de uma época, e a ignorância já não é a inocência original, nem a simples falta de conhecimento, mas, pelo contrário - e como já vimos no plano da teologia -, a atitu­ de antinatural daquele que recusa, positivamente, a sua realiza­ ção humana. Toda a violência do discurso erudito reside neste facto. Classifica-se a si mesmo como o discurso da verdade, pro­ duto da tendência natural do homem para o saber. Ao mesmo tempo, os discursos alternativos são remetidos para uma zona de recusa contra-natural e obstinada do saber que os priva de qualquer legitimidade. Por outras palavras, o jurista erudito nunca considera a prática jurídica dos rústicos como presença de outro direito enraizado numa outra cultura, mas como mani­ festação da ignorância malsã, do arbitrário, do erro, enfim, da "rusticidade". E se transige com essas práticas é sempre por ra­ zões de ordem táctica, semelhantes às que levaram Castillo de Bobadilla a aconselhar aos corregedores uma atitude de contemporização provisória sempre que não pudessem vencer pela for­ ça a resistência dos seus súbditos: "N i tampoco se dira parcial el Corregidor, si por evitar escandalo, sedición ò tumulto, acudiére à favorecer al pueblo, lo qual conviene hazerse algunas veces, ó exceder en la pena, y acomodarse dulcemente al furor, ó humor dei pueblo, para ponerle en razon. Asi conviene que el prudente Corregidor viendo el pueblo ravioso, condecienda al principio con su apetito; para que insensiblemente poco a poco le pueda meter en razon: porque oponerse à una muchedumbre irritada, no es otra cosa que hazer resistencia à un rápido tor­ rente que cae de un alto lugar: pero despues poco à poco quita­ 278 António Manuel Hespanh do el escandolo, yra castigando los sediciosos y culpados en 1 faccion".336 A estratégia da condescendência (no plano prático e inst tucional) conjugava-se, assim, com uma estratégia de rejeição (n plano ideológico e simbólico). Mas, tendo em conta a força e) pansiva desse capital simbólico extremamente reprodutivo qu é o discurso jurídico erudito - porque vai actuar na for-maçã de todos os quadros políticos e administrativos, quer da adm nistração central, quer, pouco a pouco, da administração local , o resultado não podia ser senão a gradual negação do direito existência dessa prática jurídica tradicional, em nome do prc gresso da razão, de um processo civilizador, de uma teleologi da história que, ainda hoje, expropriam a legitimidade de mu tos outros mundos culturais minoritários. Neste sentido, o ir vestimento na ideia de que o saber jurídico letrado (tal como entendido nos meios eruditos da época medieval e moderna) a única base legítima da justiça funciona como meio de exprc priação dos poderes periféricos e é comparável a outras forme contemporâneas de centralização do poder.337 Do que se disse, resulta um quadro bastante especifico d fontes do direito, quando se trata do mundo local, ou "rústico' a) costumes locais, reduzidos ou não a escrito, cuja existêr cia e eficácia é atestada, ainda no século XVII, pela prí pria legislação real (v.g., as Ordenações portuguesas (Ori Fil., I, 66, 28)) ou o Edit perpétuel flamengo (1611); b) "posturas" ou "estatutos", tomadas em resultado d deliberação dos concelhos ou comunas camponesas, noj malmente sobre matérias de organização da vida loa (divisão de águas, regimes dos pastos, feiras e mercados c) privilégios locais, concedidos pelo rei ou pelos senhore: direitos adquiridos pelo uso; praxes dos tribunais locai: 336Política para corrigedorcs III, c. 9, n. 44 (t. II, p. 206). 337V., no sentido da equivalência da constituição de um saber abstracto a oi tras formas de centralização do poder em desenvolvim ento na época mc dem a, Spittler, 1980. Cultura jurídica Europeia 279 d) costumes locais e normas casuísticas ditadas pelo senti­ do comunitário de justiça. Este direito aplicado pelos juizes populares era, decerto, um direito conservador ou mesmo arcaizante. Os séculos XIV e XV tinham trazido grandes transformações à vida local; nas zonas mais abertas ao exterior, era a influência do surto mer-cantil e colonialista; nas zonas agrárias, a recomposição das matrizes sociais provocadas pela introdução de novas formas de deten­ ção e cedência da terra, como a enfiteuse perpetua-mente reno­ vável e os morgadios. Muitos costumes e posturas deviam apa­ recer, nos séculos XVI e XVII, como desadaptados; em muitos casos, terão sido corrigidos pela legislação real, explicitamente ou implicitamente, considerando-os contra a "boa razão"; nou­ tros casos, ter-se-ão encontrado formas espontâneas de os reinterpretar. Mas esta realidade do direito popular manteve-se até aos nossos dias, sob formas muito diversas e no seio de estratos po­ pulares que foram variando. 6.6. A doutrina em Portugal (épocas medieval e m oderna) Em Portugal, o conhecimento da produção jurídico doutri­ nal europeia é bastante precoce (finais do século X I), apesar de decerto restrita a uma elite culta, constituída especialmente por eclesiásticos (v. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 14, pg. 379) que tinham estudado nas novas universidades do sul da Euro­ pa ou integrados nos círculos monásticos mais abertos ao estran­ geiro.338 A tensão entre esta nova cultura jurídica e uma anteri­ or, baseada no conhecimento do Código Visigótico, de fórmu­ las notariais visigóticas, dos Cânones conciliares hispânicos e das Etimologias de Santo Isidoro e em tradições jurídicas comunitá- 338Sobre o papel das elites cultas judaicas, M anuel A ugusto R odrigues, "A cultura jurídica medieval e os incunábulos hebraicos", A cta s do C o n g resso In te rn a c io n a l do IX C en ten á r io da D ed ic a ç ã o d a S é d e B rag a, 3(1990), Braga, Universidade Católica, 231-261. 280 António M anuel Hespanha rias de influência visigótica ou moçárabe (de que há vestígios suficientes na documentação alto medieval), não está estudada (v. todavia, os textos de }. A. Duarte Nogueira, Francisco da Gama Caeiro e José Mattoso, adiante citados). Os progressos daquela nova cultura jurídica foram mais rápidos na corte, sobretudo depois do aparecimento dos textos romanizantes de Afonso X (Fuero real, Siete Partidas), muito uti­ lizados em Portugal até aos finais do século XIV (cf., v.g. Nuno Espinosa Gomes da Silva História do direito português, cit. 158 ss.).339 A fundação da Universidade de Lisboa (entre 1288 e 1300) generaliza o conhecimento das fontes do direito comum, instau­ rando uma nova tensão (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 14, pg. 379) entre a cultura jurídica romanizante (mais próxima do contexto sócio-político peninsular ocidental) e a cultura jurí­ dica romanista (que reproduzia realidades sociais e políticas do centro ocidente europeu); em alguns pontos, é possível detec­ tar o significado político da opção entre uma e outra (cf. Bartolomé Clavero, "Lex Regni Vicinioris. Presencia de Castilla en Portugal", in Estudos em homenagem aos Doutores Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz, Coimbra, 1 9 8 2 ,1, 239-298). Faltam estudos pormenorizados para destrinçar as linhas de continuidade e de inovação, quer da produção jurídica cor­ tesã (sobretudo, legislação de D. Afonso III a D. Fernando), quer dos grupos de técnicos (práticos da administração curial ?, no­ tários palatinos ?, letrados locais ?, letrados formados no estran­ geiro ? onde ?) que a promoviam, quer do significado político social das soluções que iam sendo estabelecidas. No século XV, a corte utiliza intensamente a produção dou­ trinal europeia para unificar e sistematizar o direito: são man­ dadas fazer traduções autênticas do Código e dos comentários 339Publicação de versões portuguesas: José de A zevedo Ferreira, A lp h o n se X. P rim ey ra P artida. E d ition et étu d e, Braga, INIC, 1980; José de Azevedo Fer­ reira, A fo n so X, F oro real, Lisboa, INIC, 1987, 2 vols.; cf. ainda José de Aze­ vedo Ferreira,"A Prim eira Partida de Afonso X: versões portuguesas", R e­ v ista da F a cu ld a d e de Letras, Lisboa, 5a série, 13-14(1990) 165-172. Cultura Jurídica Europeia 281 de Bártolo, ao passo que o direito comum, além de ser intensa­ mente (?) utilizado na confecção das Ordenações afonsinas (em que medida, está por estudar detalhadamente), é consagrado como direito subsidiário (Ord. a f, 11,9; Ord. man., 11,5; Orã.fH. III, 64). Nas Ordenações Afonsinas (1446 7) o assunto é tratado no li­ vro II (tit. 9), em que se estabelecem as relações entre o poder real e outros poderes do reino. O que quer dizer que a questão do direito aplicável, nomeadamente no que se refere aos direito canónico e romano (imperial) era encarada como algo que tinha essencialmente a ver com a questão política da relação entre o reino, o Império e o Papado, uma típica questão da alta política medieval. Começa por se estabelecer claramente o princípio de que o direito comum era apenas subsidiário, porque o direito do rei, no reino, sobrepõe-se a todos os outros - e que, portanto, "quando algum caso for trazido em pratica, que seja determi­ nado por alguma Lei do Reino, ou estilo da nossa Corte, ou cos­ tume dos nossos reinos antigamente usado, seja por eles julga­ do, e desembargado finalmente, não embargante que as Leis Imperiais [direito romano] acerca do dito caso hajam disposto em outra guisa, porque onde a Lei do Reino dispõem, cessam todalas outras Leis, e Direitos..." (Liv. II, tit. 9). Só então, na falta de direito pátrio, se aplicava o direito co­ mum (i.e, o direito romano, "Leis Imperiais" e o direito canóni­ co, "Santos Cânones"). A delimitação das esferas relativas dos direitos romano e canónico é feita através do "critério do peca­ do" - ou seja, no caso de conflito entre os dois direitos, o direito canónico só preferiria o direito civil quando da aplicação deste - tanto em matéria temporal como espiritual - resultasse peca­ do (v.g., prescrição aquisitiva de má fé). Na falta de expressa previsão das fontes de direito justinianeu ou de direito canónico, apelava-se para o direito doutrinal dos Glosadores ou dos Comentadores. Em primeiro lugar, para a Glosa de Acúrsio e, na insuficiência desta, para a opinião de Bár­ tolo, ainda que contrariada por outros doutores, pois o rei, por o ouvir dizer a letrados, a tinha tida como a habitualmente mais conforme à boa razão ("E se o caso, de que se trata em prática, 282 António Manuel Hespanhe não fosse determinado por Lei do Reino, ou estilo, ou costume suso dito, ou Leis Imperiais, ou Santos Cânones, então manda­ mos que se guardem as glosas de Acúrsio incorporadas nas di­ tas Leis. E quando pelas ditas glosas o caso não for determina do, mandamos que se guarde a opinião de Bártolo, não embar gante, que os outros doutores digam o contrário, porque somo; bem certo que assim foi sempre usado, e praticado, em tempc dos Reis meu Avô e Padre, de gloriosa memória; e ainda no: parece que já alguma vez vimos, e ouvimos a muitos letrados que sua opinião comunalmente é mais conforme à razão, que £ de nenhum outro doutor; e em outra guisa seguir-se-ia grandt confusão aos desembargadores, segundo se mostra por clan experiência"). Finalmente, se o caso fosse de todo em todo omis so, recorrer se ia ao monarca (entenda se, ao tribunal da corte) que integraria a lacuna. Na versão definitiva das Ordenações Manuelinas (1521) est< regime sofre algumas alterações (cf. Ord. Man., II, 5). Continua va a recorrer se, na insuficiência dos direitos romano e canóni co, à doutrina. Reafirma se o valor da Glosa de Acúrsio, mas ]í apenas quando não reprovada pela opinião comum e, sendo c Glosa omissa, acolhe-se a opinião de Bártolo, mas apenas se e opinião comum dos doutores mais modernos não a contrariasse ("E se o caso de que se trata em pratica não for determinado poi Lei do Reino, ou estilo, ou costume suso dito, ou Leis Imperiais ou Santos Cânones, então mandamos que se guardem as Glo­ sas de Acúrsio incorporadas nas ditas Leis, quando por comurr opinião dos Doutores não forem reprovadas, e quando pelas ditas Glosas o caso não for determinado, mandamos que se guar­ de a opinião de Bártolo, não embargante que alguns doutores dissessem o contrário; salvo se a opinião dos Doutores, que de­ pois dele escreveram, for contrária, porque a sua opinião comumente é mais conforme à razão", II, 5). O que, em termos gerais significa o intento de ligar o julgador a soluções (as da "opiniãc comum") capazes de evoluir e assumir as novas necessidades normativas, desvinculando-o de uma obediência forçosa à Glo­ sa ou à opinião de Bártolo. Note-se, em todo o caso, que esta úl­ Cultura ]urídica Europeia 2S3 tima ainda prevalecia sobre a opinião comum dos doutores mais antigos ou seus contemporâneos. São estas também, na substancia, as determinações das Ordenações Filipinas(1603) a este respeito. Embora se note pela sua colocação - não no livro II, a propósito das relações entre o poder temporal e o poder espiritual, mas no livro III, a propósi­ to do direito aplicável na lide - que a questão ganhava, finalmen­ te, uma dimensão claramente "jurídica" e não "política". Embora se possa falar numa estratégia real de promoção do direito comum (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 18, pg. 380 [carta de Bruges]) isso não acontece, no entanto, sem restrições. Nomeadamente por esta anteposição, enfaticamente decla­ rada nas Ordenações, do direito pátrio aos direitos imperial e ca­ nónico. E, de facto, em pontos politicamente decisivos, o direito comum foi corrigido por legislação nacional. E o que acontece, nomeadamente, quanto à titulação e conteúdo do poder senho­ rial, em que o direito nacional adoptou soluções diferentes da opinião comum dos feudistas (v.g., imprescritibilidade das ju ­ risdições e regaliae, carácter apenas intermédio da jurisdição se­ nhorial, elenco dos naturalia (i.e., cláusulas normais ou presumi­ das das doações senhoriais) ou quanto ao regime das relações entre o poder temporal e o poder espiritual, em que se vincaram as prerrogativas régias perante as pretensões dos canonistas. A (paradoxal) falta de estudos sobre as discordâncias, neste perí­ odo, entre o direito próprio e o direito comum impede que se avance mais neste importante diagnóstico do significado políti­ co da recepção. No entanto, a prática era diferente, dada a influência dos juristas letrados e a sua autonomia na declaração do direito. A partir da segunda metade do séc. XV, inicia se, de facto, um processo de promoção dos juristas letrados. Até aos meados do séc. XVI, os mais famosos fazem a carreira no estrangeiro, em divórcio com as realidades do direito "próprio", tendo dificul­ dades em se implantar na prática jurídica nacional, até porque os modelos da ciência jurídica humanista, então em vigor nas universidades francesas e italianas (humanismo jurídico), os 284 António M anuel H espanha encaminham para campos muito longínquos das preocupações do jurista prático (depuração histórico filológica dos textos, dis­ cussões académicas) (Nuno Espinosa Gomes da Silva, Humanis­ mo e direito ..., cit.; A. M. Hespanha, Panorama ...). A partir dos meados do séc. XVI, os juristas formam se, so­ bretudo, na Universidade de Coimbra, reformada em 1537 e a que D. João III concedera, pela lei de 13.1.1539 (que exige estudos jurí­ dicos para desembargadores, juizes de fora e corregedores (im­ plicitamente) e advogados (em parte)), o monopólio da formação dos letrados que aspirassem a lugares de letras ou à advocacia. Embora do curso não constasse o direito nacional, o contacto com o direito nacional era promovido, por se exigir dois anos de "prá­ tica" (ou de "residência, na Universidade) (a partir de certa altu­ ra, cf. dec. 19.6.1649), para o acesso aos lugares de letras. Por vol­ ta de 1623, Filipe IV chegou mesmo a sugerir a criação de uma cadeira para Belchior Febo ensinar direito pátrio; mas o claustro universitário entendeu não ser necessário (27/1/1623, Barbosa Machado, Bibliotheca lusitana, s.v. Melchior Febo). A própria actividade profissional dos letrados, como advoga­ dos ou como magistrados, promovia esta contínua integração do direito comum com o direito régio. O reflexo literário desta recep­ ção prática do direito comum e da sua miscigenação com o direito nacional são géneros literários como as decisiones (v.g. de Jorge de Cabedo, de António Gama, de Gabriel Pereira de Castro, de Bel­ chior Febo, de António de Sousa Macedo), as quaestiones (v.g., as Quaestionumjuris emphyteutici, de Álvaro Vaz), as consultationes (v.g. de Álvaro Vaz), as allegationes (v.g., de Tomé Valasco) os comentá­ rios ou tratados sobre as leis nacionais (v.g., de Manuel Alvares Pegas, Manuel Gonçalves da Silva ou Manuel Banha Quaresma, de Domingos Antunes Portugal) ou as praticas (v.g. de Manuel Mendes de Castro, de Gregório Martins Caminha). Em todo o caso, a tendência para antepor o direito comum aprendido nas escolas, objecto de uma vastíssima literatura, con­ siderado como a ratio iuris - ao direito pátrio era muito grande. Pelo que, nesta síntese efectuada pelos juristas portugueses dos sécs. XVI a XVIII, o contributo do direito pátrio era muito modes­ to, apesar do sempre crescente movimento legislativo (cf. supra). Cultura Jurídica Europeia 285 A formação de uma ciência jurídica erudita e de um cor­ respondente corpo de juristas letrados e profissionais teve con­ sequências profundas na prática jurídica: a) Por um lado, aumentou a distância entre ò direito ofici­ al e letrado, cultivado na corte e nos (poucos) juízos le­ trados da periferia, e o direito vivido pela maior parte da população e praticado na esmagadora maioria dos tribu­ nais locais, servidos por juizes eleitos e analfabetos (ou, pelo menos, iletrados) (A. M. Hespanha, As vésperas do Leviathan ..., cit., 439-470) que as fontes da época descre­ vem, de forma verosímil, como dominados pelos tabeli­ ães, estes últim os detentores de uma cultura jurídica "vulgar" veiculada por formulários e tradições familia­ res (tema a carecer de estudo, baseado nos corpos arquivisticos notariais). b) Com isto, o direito culto ou letrado criou uma generali­ zada reacção contra os juristas letrados, visível na litera­ tura de costumes (v.g., Gil Vicente, Auto da Barca do In­ ferno). c) Por outro lado, gerou forte espírito de corpo entre os ju­ ristas profissionais que, combinado com a sua função social de árbitros das grandes questões sócio-políticas, com a sua insindicabilidade prática e com os efeitos de uma literatura orientada para a defesa dos seus privilé­ gios estamentais (cf. António de Sousa Macedo, Perfectus doctor, Londini, 1643; Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus advocatus, Ulyssipone 1743; Gabriel Alvarez de Velasco, Iudex perfectus, Lugduni 1642), os constituiu numa cama­ da politicamente decisiva, cujas alianças e funcionamento político social se começa hoje a estudar. d) O direito culto promoveu ainda uma tradição literária com uma dinâmica (textual, dogmática, normativa) pró­ pria, dotada de grande capacidade de auto reprodução e pouco permeável às determinações dos contextos extra-literários (ou mesmo dos contextos literários que não fizessem parte da tradição jurídica erudita, como as nor­ 286 António Manuel Hespaní mas provindas da coroa - leis, alvarás, etc. - sobretudo ei matérias estranhas à literatura jurídica tradicional (v.g fiscalidade, finanças, administração económica). A lit ratura jurídica, os seus tópicos, aforismos, fórmulas, br< cardos, ditos, regras, repetidos durante séculos, embebe: a cultura letrada, mas também a cultura popular, cria] do formas categorias de interpretar e avaliar as condi tas e relações sociais. Não raramente, as inovações soc ais tiveram que conviver com modelos jurídicos contr ditórios, tudo se compatibilizando por um bricolage d( juristas que, através da duplex interpretatio das velhas fó mulas, as conseguiam compatibilizar com as novidadi (e, até, torná las funcionais em relação a estas). Exemple típicos: a permanência da proibição da usura perante disparar da economia mercantil; a tensão entre o desei volvimento do aparelho político administrativo mode no e a teoria dos magistrados herdada de uma época e: que as actividades do poder quase se reduziam à funçê judicial (António Manuel Hespanha, "Représentatic dogmatique et projets de pouvoir. Les outils concepti eis des juristes du ius commune dans le domaine c radm inistration", Wissenschaft und Recht der Venvaltur, seit dem Ancien Régime, 1984,1-28, versão castelhana ei La gracia dei derecho, Madrid, Centro de Estúdios Const tucionales, 1993). 6 .6 .1 . Bibliografia Sobre a cultura e ensino jurídicos anteriores à recepção, Jos Artur Duarte Nogueira, Sociedade e direito em Portugal na Idac Média. Dos primórdios aos século da Universidade (Con tribuição pa, o seu estudo) s Lisboa, 1994. Mais alguns elementos em: Francisc Gama Caeiro, "Escolas capitulares no primeiro século da nac onalidade portuguesa", Arq. hist. cult. port. 1.2 (1966); id., "A o: ganização do ensino em Portugal no período anterior à fund; ção da Universidade", íbid., II.3 (1968); José Mattoso, "A culü Cultura Jurídica Europeia 287 ra monástica em Portugal (8751200), ibid., III.2 (1970) (= Religião e cultura na idade média portuguesa, Lisboa 1982, 355 393), “Ori­ entações da cultura portuguesa no princípio do século X III", Estudos medievais, 1(1981)) (= Portugal medieval. Novas interpreta­ ções, Lisboa 1984, 225 239); "Sanctio (875 1100)", Rev. port. hist. 13(1981) (= Portugal m edieval..., cit., ibid. 396-440); Antonio Gar­ cia y Garcia, Estúdios sobre la canonística portuguesa medieval Madrid 1976; José Antunes, A cultura erudita portuguesa nos sécs XIII e XIV (juristas e teólogos), diss. de doutoramento clact, Co imbra, Faculdade de Letras, 1995. Para o período posterior à Recepção v., por todos, A. M Hespanha, História das instituições ..., cit., 439 ss.; Nuno Espino sa Gomes da Silva, Humanismo e direito em Portugal no séc. XVJ Lisboa 1962; História do direito português, Lisboa 1985, loc. var. Martim de Albuquerque & Ruy de Albuquerque História do di reito português, I, Lisboa 1984/1985, 273 295. 7- AS ESCOLAS JU R ÍD IC A S SEISC E N TISTA S E SE T E C E N TISTA S: JU S N A T U R A -L IS M O , JU SR A C IO N A LISM O , IN D IVID U A LISM O E CONTRATUALISM O 7.1. Osjusnaturalism os 7 .1 .1 . O jusnaturalism o da escolástica tomista Já antes se falou por várias vezes de direito natural e de na­ tureza das coisas. São ideias que, nascidas entre os gregos, atra­ vessaram toda a Idade Média com fortuna e sentidos diferen­ tes, e se reinstalaram na Época Moderna. Encontrámo-nos com o direito natural, por exemplo, quan­ do nos referimos a São Tomás de Aquino. (cf., supra, 5.3. ). Na esteira de Aristóteles, São Tomás aceitava a existência de uma ordem natural das coisas, tanto físicas (entia physica) como hu­ manas (entia moralia), ordem já constatada pelos clássicos e que era confirmada pela crença cristã num Deus inteligente e bom, criador e orãenador do mundo. Pelo menos, a teoria escolástica das "causas segundas" era neste sentido.340 A cada espécie teria atribuído Deus (como "Causa Primeira") uma lei natural ("causa segunda") - o fogo sobe, por natureza, os corpos pesados caem, etc. -, salvo caso de milagre (i.e., salvo intervenção extraordiná­ ria de Deus. Estas naturezas das várias espécies harmonizar-seiam todas em função do Bem Supremo, de tal modo que o mun­ do estaria cheio de ordem e os movimentos dos seres ou das es­ pécies de seres obedeceriam a uma regulação cósmica. E o mesmo se diga do homem. Também a espécie humana 340Não era esta a única interpretação cristã das relações entre Deus e o m un­ do; Santo Agostinho tinha pensado as coisa doutra maneira, dando mais lugar ao arbítrio de Deus do que à ordem do m undo; e os seus discípulos franciscanos da Baixa Idade Média retom arão os seus pontos de vista, como veremos, substituindo à teoria "d a s causas segundas" a teoria do impetus. 290 António Manuel Hespanh teria uma certa natureza, ou seja, estaria integrada de certo mod na ordem e no destino cósmicos. A ideia de direito natural pa] te precisamente daqui. A partir de uma pesquisa dos fins d homem e do seu contributo para o plano da criação, elaborar a regras que deviam presidir à prática humana, de modo a que est resultasse adequada aos desígnios de Deus quanto à vida ei sociedade e quanto ao lugar do homem na totalidade dos sere criados. Tais regras, umas formuladas nas Escrituras (direito d vino), outras daí ausentes mas manifestadas pela própria order do mundo e atingíveis pelo intelecto, se bem ordenado (recta n tio, boa razão), constituem o direito natural. Simplesmente, São Tomás combinava a sua confiança n capacidade do homem para conhecer a ordem do mundo cor o sentimento de que este conhecimento não podia ser obtido pc processos estritamente racionais (cf., supra, 5.3.8.15.3.8.2). Por ur lado, a descoberta da ordem natural das coisas não podia prc vir de um acesso directo às ideias divinas, vedado ao homen em virtude do pecado. Por outro lado, não seria atingida pc uma especulação meramente abstracta. Começava por presst por um trabalho de observação dos factos, dos resultados re: tritos e imperfeitos da nossa experiência. Esta observação devi ser orientada e complementada pela elaboração intelectual. Ma o intelecto não se compunha apenas de faculdades de racioc cio (razão), mas também de faculdades morais (virtudes). Nc meadamente, o raciocinar sobre a ordem das coisas dependia d virtude da bondade, ou seja da capacidade moral de perceber sentido global da ordem e, por isso, de distinguir o justo do ir justo. Daí que a razão tenha que ter um qualificativo moral par ser eficaz - tem que ser uma "boa razão" (recta ratio). Por outro lado, a mobilidade essencial das coisas humana; provocada pela existência de liberdade no homem, levava a qu não fosse possível encontrar princípios invariáveis de justiça. I daí, que fosse impossível estabelecer uma ciência do direito na tural que desembocasse na formulação de um código de regra permanentes. Tudo o que se podia afirmar, neste domínio, era existência de um vago e formal princípio de que "se deve faze o bem e evitar o mal". Se, pelo contrário, se passasse para a re Cultura Jurídica Europeia 291 gulamentação concreta, tudo seria mutável e sujeito a um con­ tínuo exame de ponderação. A pretensão de uma ciência do na­ tural, substitui, portanto, São Tomás a proposta de uma arte de, em cada momento, para cada caso, encontrar o justo (ius siatin ciiique tribuere). E nisto também se encontrava com o ensinamen­ to de Aristóteles.341 7.1.1.1. A Escola Ibérica de Direito Natural A Escola Ibérica de Direito Natural constitui um desenvol­ vimento peninsular da escolástica aquiniana, provocado pelo advento da Contra-Reforma.342 Apesar de uma fidelidade fun­ damental (pelo menos nas afirmações) a São Tomás,343 esta es­ cola integra uma boa parte da contribuição cultural e filosófica do humanismo (então no seu auge) e não é estranha a muitos te­ mas da filosofia franciscana. Assim, uma análise mais profun­ da da sua obra está longe de assegurar a tal alegada fidelidade fundamental a São Tomás; em muitos pontos, há um nítido re­ visionismo das posições tomistas. E é isto que acontece com a doutrina do direito natural. 341 Sobre o "jusnaturalism o" de São Tom ás v., por todos, e dentro desta inter­ pretação do seu pensam ento, Villey, 1961 e 19 6 8 ,1 2 4 -1 3 1 . 342A Escola Ibérica de Direito N atural desenvolveu-se sobretudo à volta das universidades hispânicas da C ontra-R eform a, especialm ente Salam anca, Valha-dolide, Coim bra e Évora. Os seus representantes são, quase todos, religiosos jesuítas ou dom inicanos. Eis os nom es principais: De Soto (14941560), especialista em questões coloniais; Afonso de C astro (1495-1558), penalista; Francisco de Vitória (1486-1546), dom inicano, um dos mais ilus­ tres representantes da escola, autor do com entário De iustitia; Luis de Molina (1535-1600), o mais fiel à tradição do tom ism o e autor de uma filosofia m oral - que será o alvo dos ataques de Pascal -, durante muitos anos pro­ fessor em Portugal (Évora); e, finalmente, o mais fam oso, Francisco Suarez (1548-1617), professor em Alcalá, M adrid, Rom a, Salam anca e Coim bra, onde publica a sua obra mais fam osa, um tratado sobre a lei, onde aborda os problem as fundam entais da teoria do direito, o Tractatus de Legibus ac Deo Legislatorc (1612) e procede a um a reinterpretação, embora m oderada, das posições de S. Tom ás sobre o tem a. Bibliografia: Melía, 1977; Costello, 1974; Villey, 1968. 343 Pelo que lhe é dada a designação de Segunda Escolástica. 292 António Manuel Hespanha Aqui, o contributo específico da escolástica espanhola ci­ fra-se no seguinte: (i) Laicização do direito. Levando às últimas consequências a teoria das "causas segundas", a natureza é de tal modo concebida como auto-regulada, que se admite que tal re­ gulação teria lugar mesmo se Deus não existisse (etiam daremus Deum esse). Tal como Deus nada pode contra 2 e 2 serem 4, nada poderia mudar às verdades da ciência do direito. Este aspecto não está, porém, presente nem é igual­ mente acentuado em todos os representantes da escola, já que em alguns prevalece uma orientação mais "voluntarista",344 na esteira de Scotto e Occam (v.g., Suarez). (ii) Radicação do direito na razão individual. Retomando as for­ mas do jusnaturalismo estóico (veiculado pelo humanismo), os peninsulares defendem a ideia de que as leis naturais são suficientemente explícitas para serem conhecidas pela ra­ zão humana. A razão individual (desde que seja "recta") é, assim, promovida a fonte de direito, a "primeiro código" onde estão inscritos os princípios jurídicos eternos. (iii) Logicização do direito. A crença na razão e nos mecanis­ mos lógicos, postos em honra pelo nominalismo, vai fa­ zer com que se julgue possível encontrar o direito por via dedutiva. Suarez lança, de facto, as bases do dedutivismo que iria reinar na metodologia do direito ao afirmar, pela primeira vez nos tempos modernos, que é possível deduzir, a partir dos princípios racionais do direito, regras jurídicas precisas, com conteúdo, eternas e imutáveis.345 Com o que, está bem de ver, muito se afastou de São To­ más, mas muito se aproximou dos sistemas jurídicos logicizantes do século XVIII. A Escola Ibérica de Direito Natural teve enorme importância 3441.e., realçando o poder constitutivo da vontade "arbitrária" de Deus. 345"... a lei natural ou divina é muito geral e abarca somente determ inados prin­ cípios m orais por si mesm os evidentes e, quando m uito, é estendida àqui­ lo de que tais princípios se deduz com nexo necessário e evidente" (De Legibus, I, III, 18). C ultura Jurídica Europeia 293 para o devir do pensamento jurídico europeu. O racionalismo, o contratualismo e outros ingredientes do direito moderno encon­ tram aí os seus princípios. Daí a sua enorme influência em zonas tão distantes, geográfica e espiritualmente, como às áreas culturais do norte da Europa, especialmente a Holanda e o norte da Alema­ nha,346 onde vão desenvolver-se as orientações seguintes. 7 .1 .2 . 0 jusnaturalism o racionalista (jusracionalismo) Mas os juristas europeus, que tinham começado a ler o Corpus iuris, e os filósofos, que desde há muito conviviam com os textos dos estóicos e de Cícero, encontravam-se com uma outra tradição jusnaturalista - a de raiz estóica. A qual, por melhor res­ ponder às aspirações dos juristas, ansiosos de certeza, e por es­ tar muito explícita em textos fundamentais do Corpus Iuris justinianeu, veio a triunfar sobre a tradição aristotélico-tomista nos alvores dos tempos modernos. Para os estóicos, o direito natural era outra coisa, porque também a "sua" natureza era diferente daquela de Aristóteles. Este último fazia da natureza não só o germe (presente em nós desde o momento do nascimento) a partir do qual se desenvol­ vem as coisas e os seres vivos; mas também o fim para o qual estes naturalmente tendem, aquilo que são em potência. No caso dos homens, a sua natureza é a associação com outros. Os ho­ mens são "naturalmente políticos", pois tendem a constituir ci­ dades, grupos, comunidades, como aqueles existentes efectiva­ mente. Sendo da observação destes que se poderia averiguar alguma coisa sobre o direito natural. Pelo contrário, para os estóicos, a natureza é a causa, o es­ pírito criador e ordenador (pneuma, logos) que dá movimento ao mundo e que o transforma num mundo ordenado (cosmos). Em todos os seres e, nomeadamente, nos seres vivos, há uma par­ cela de logos, que constitui o seu princípio de vida ("razão semi­ nal", logos spermatikos). No estado puro, o logos (ratio, "razão") 346A pesar das diferenças religiosas, os juristas peninsulares vão influenciar os alemães e holandeses, nom eadam ente Hugo Grotius e Johannes AJthussius. 294 António Manuel Hespa encontra-se nos deuses e também na alma dos homens, de modo que a razão constitui a "natureza" específica do home Portanto, quando os estóicos afirmam que a natureza é a f te de direito (initium iuris, fons iuris, ex natura ortum est iuris, C: ro),347o que querem dizer é uma destas duas coisas. Ou que o reito deve seguir os dados naturais, dobrar-se ao destino, às in tuições existentes, às "inclinações" que a natureza colocou em ] (amor facti). Ou, uma vez que há uma centelha de logos (razão) alma dos homens, que ele deve basear-se nos comandos da raz A primeira proposição é relativamente estéril em consei ências normativas. Pode conduzir a uma aceitação das instil ções e direito instituídos (a um quietismo jurídico) e, nesse s tido, favorecer uma atitude positivista. A segunda proposiç porém, foi mais rica em consequências. Ela encontra-se pres' te em toda a obra de Cícero. Foi Cícero, efectivamente, qu difundiu a moral e a doutrina jurídica estóicas no ambiente c tural romano e, mais tarde - quando a cultura europeia ans; por um regresso aos modelos clássicos -, quem a iniciou na d< trina moral e jurídica da Stofl.348 Esta doutrina - que se pode encontrar resumida no te citado na nota anterior - pode sintetizar-se nas seguintes ide: (i) Existe uma lei natural, eterna, imutável, promulgada p Ordenador do mundo. 347D e in v en tion e, II 22, 65; D e leg ib u s, 1 ,5; I, 6; 1 ,13. 348É seu um texto, muito lido em m uitas épocas da cultura europeia, em - se define o direito natural (ou melhor, em pregando a terminologia cict niana, à qual nos devem os ir habituando, a "lei" natural); "E xiste um: v erd ad eira, que é a recta razão, que concorda com a natureza, d ifu sa em to im utável e eterna; que nos reclam a im periosam ente o cum prim ento nossos deveres e que nos proíbe a fraude e nos afasta dela; cujos prece e proibições o hom em bom (h o n e s ta s ) acatará sem pre, enquanto que os { versos lhes serão surdos. Qualquer correcção a esta lei será sa críle g a ,: sendo permitido revogar algum a das suas partes; não podem os ser disp sados dela nem pelo Senado nem pelo povo; n ão é n ecessá rio en co n tra r S ex tu s A e liu s p a ra a in terp reta r; esta lei não é um a em A tenas e outra Roma; m as é a única e m esm a lei, im utável, eterna e que abrange em to os tempos todas as nações. U m D eu s ú n ico, se n h o r e im p era d o r de todas as sa s, por si só, im aginou-a, deliberou-a e prom ulgou-a [...]". Cultura Jurídica Europeia 295 (ii) Tal lei está presente em todos, podendo ser encontrada por todos, desde que sigam as evidências da boa razão (rec­ ta ratio), ou seja, da razão do hom em que respeita as suas inclinações naturais (homo honestus, quí honeste vivit [que vive honestamente]). (iii) Este direito é constituído por normas precisas, por leis ge­ rais, certas, e claras, de tal modo que não é necessário um técnico de direito para as interpretar. A declaração do di­ reito não é, portanto, uma tarefa árdua, precedida de uma cuidadosa observação e ponderação de cada caso concre­ to, mas uma simples extracção das regras de viver que a boa razão sugere a cada um (eadem ratio cuni est in hominis mente confimiata et confecta est lex [a lei é a própria razão, tal como reside e opera na mente do homem], Cícero, De Legibus, I, IV). E também não é uma tarefa limitada nos seus resulta­ dos, pois nem a lei natural está sujeita à contingência dos tempos e dos lugares, nem a razão humana (que é a sua própria sede) tem dificuldades em a conhecer. Por outro lado, não há para Cícero uma verdadeira oposi­ ção entre o direito natural e o direito positivo. Pelo contrário, o quietismo jurídico a que já nos referimos levava à ideia de que o direito natural tenderia a concretizar-se nas normas positivas e de que estas constituiriam, portanto, a consumação definitiva e respeitável do direito natural ("Os costumes e as instituições são, por si próprios, obrigatórios. Sob o pretexto de que um Só­ crates ou um Aristipo violaram uma ou outra vez os costumes da cidade, não se deveria cometer o erro de pensar que poderí­ amos agir do mesmo modo...", De officiis, I, 4 1 ,148).349 w Também para Aristóteles e São Tomás não havia um a completa oposição entre o direito natural e o direito positivo; mas a sua conjugação era de um outro tipo. O direito positivo, longe de representar o coroam ento da realização do direito natural, constituía apenas uma tentativa da sua realização, tentativa possivel­ mente fruste, mas cujos resultados deviam ser tidos em conta por qualquer investigação posterior, tal como os de uma experiência já feita o devem ser nas experiências subsequentes; por outro lado, o direito positivo era um elemento a ter em conta no achamento da solução justa, pois criava expectativas. 296 António M anuel Hespanha É a partir destes ingredientes de origem estóica350que se vai constituir a doutrina moderna do direito natural. Evidência, generalidade, racionalidade, carácter subjectivo, tendência para a positividade, tais são as notas distintivas do jusnaturalismo moderno, as quais encontramos in ovo na filosofia moral dos es­ tóicos. 7 .x.3 . O jusracionalism o moderno Mas, para além destas vozes que lhe vinham do passado, o século XVII encontrou no ambiente filosófico do seu tempo elementos que contribuíram para formar a sua concepção de um direito natural, estável como a própria razão. Referimo-nos ao idealismo cartesiano, embora tal concepção filosófica tenha li­ gações muito profundas com uma anterior escola filosófica da Baixa Idade Média - o nominalismo de Duns Scotto e Guilher­ me de Occam.351 Descartes (1596-1650) foi um espírito profundamente atra­ ído pela ideia de um saber certo. Ele próprio confessa, referin­ do-se aos tempos de estudante: "Je me plaisais surtout aux mathématiques, à cause de la certitude et de 1'evidence de leurs raisons [...] leurs fondam ents étant si ferm es et si solides" (Descartes, Discours de la Méthode. Pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences. Première Partie, 1637). E era esta firmeza e solidez o que ele não encontrava nas disci­ plinas filosóficas, políticas, jurídicas, éticas, etc., tradicionais. Aí, tudo era mobilidade, incerteza, contradições e disputas. Toda a primeira e segunda partes do Discours de la Méthode exprimem o seu estado de espírito sobre este ponto. E daí que lhe vem a ideia de, apoiado na sua "lu z natural" e no "grande livro do m undo", estabelecer para estas disciplinas um método que lhes fornecesse bases tão sólidas como as das matemáticas. Sobre a doutrina m oral, política e jurídica dos estóicos v . Villey, 1968,428480; Oestrid\, 1982. 351 Sobre o nominalismo dos dois íranciscanos, a sua influência na filosofia mo­ derna e o seu contributo para o pensam ento jurídico, v. Vüley, 1968,147-263. Cultura Jurídica Europeia 297 A primeira regra deste método é a regra da evidência racio­ nal: nada admitir como verdadeiro que não seja evidente para o espírito. As outras três das quatro regras cartesianas são com­ plementares desta e destinam-se a tornar evidente aquilo que à primeira vista o não é.352 Quer dizer, para Descartes (como para os estóicos) a chave da compreensão estava num interrogar de si mesmo, num excogitar altivo e isolado, pouco atento às reali­ dades exteriores. Embora Descartes não se tenha ocupado do direito, o seu método influenciou, sem dúvida, os juristas que buscavam a segurança.353 Também estes fizeram fé nas ideias claras e distintas, na evi­ dência racional dos primeiros princípios do direito, na possibili­ dade da sua extensão através da dedução; enfim, no poder da ra­ zão individual para descobrir as regras do justo, de um justo que fugisse à contingência, por se radicar numa ordem racional (qua­ se matemática) da natureza (mathesis universalis) de que a razão participava. E é com este direito natural racionalista que se vai avançar no sentido de tomar mais certo o direito positivo. y.2 . Algumas escolas jusnaturalistas A ideia do direito natural, neste novo sentido, vem a impor-se decisivamente na cultura jurídica europeia do século XVII. De alguma forma, o novo direito natural, fundado na ra­ zão, é o correspondente do antigo direito natural, fundado na teologia. O pensamento social e jurídico laicizara-se. O que não é estranho ao facto de, pela primeira vez, se ter quebrado a uni- 352A segunda é a regra da análise (dividir cada dificuldade em tantos elemen­ tos quantos os necessários para a resolver); a terceira, a regra da síntese (co­ m eçar pelos elementos mais aptos a ser conhecidos e progredir sucessiva­ mente, para o conhecim ento dos mais com plicados); a última, a das revi­ sões gerais (assegurar n ada omitir no curso da investigação). 553Boa síntese sobre a novidade desta "jurisprudência racional" - oposta a con­ cepções mais "realistas" (o direito ligado as coisas estabelecidas) do direi­ to natural, Kelley, Donald R., "L e d roit", em Bum s, 1977, 78-86. 298 António Manuel Hespanha dade religiosa da Europa (com a Reforma) e de se ter entrado em contacto com povos totalmente alheios à tradição religiosa europeia. Uma e outra coisa tornavam, de facto, necessário en­ contrar um direito que pudesse valer independentemente da identidade de crenças. E, com esta laicização, o fundamento do direito passara a residir em valores laicos, tão comuns a todos os homens como as evidências racionais. Esboçada em novos moldes, em primeiro lugar, na Época Moderna, pela Escola Ibérica de Direito Natural, a ideia de di­ reito natural domina a obra de todos os juristas e adquire aí imensas consequências práticas. Trata-se, como se disse, de um novo jusnaturalismo. Desde logo, emancipado de uma fundamentação religiosa, ainda que os seus fundadores, na sua maior parte, fossem deístas ou mesmo cristãos. Seja como for, prescindiam, por um lado, da omnipotência da vontade de Deus, limitando-a pela Sua ra­ zão, ou seja, concebendo um Deus sujeito a princípios lógico-racionais que lhe seriam "anteriores", o que corresponde, não a uma atitude religiosa, mas a uma atitude racionalista.354Por outro lado, os fundamentos de que partiam para encontrar uma ordem ima­ nente na natureza humana não eram qualquer vocação, destino ou finalidade sobrenaturais do homem, ou quaisquer dados da fé sobre isso, mas antes as suas características puramente tempo­ rais, como os instintos e a capacidade racional. Ao prescindirem dos dados da fé, estes jusnaturalismos fi­ cam a poder contar apenas com a observação e com a razão como meios de acesso à ordem da natureza. A observação - histórica 1,51 Muito característica é a posição de G. W. Leibniz (v. infra) "E m qualquer ser inteligente, os actos da vontade são sem pre, por natureza, posteriores aos actos do seu entendimento ... isto não quer dizer que haja algo antes de Deus, mas apenas que os actos do entendim ento divino são anteriores aos actos de vontade divina", 7 n. 31 [Carta a Bierling, Duttens, 1768, V, 386]; e, assim, "D eus pode criar matéria, um hom em ou um círculo, ou deixá-los no nada (na não existência), mas não pode produzi-los sem lhes dar as suas propriedades essenciais. Ele tem que fazer um hom em com o animal racio­ nal e que dar a forma redonda ao círculo" ri. 33 [Teodiceia, II, 138], Cultura Jurídica Europeia 299 e actual - das sociedades humanas é muito utilizada por estes autores, estando as suas obras plenas de exemplos tirados da história ou da observação contemporânea, com os quais apoia­ vam, tanto os traços permanentes da natureza humana e social, como as suas variantes "locais". Mas, ao lado da observação, funcionava a razão que, à maneira do que acontecia na física ou na matemática, (i) identificava axiomas sobre a natureza do ho­ mem - v.g., o homem é dirigido pelo instinto de conservação (Locke), o homem tem um direito natural à auto-defesa e ao cas­ tigo das injúrias que lhe são feitas (Locke), a justiça é o que se conforma, ao mesmo tempo, com a justiça e com a bondade (Leibniz), a vontade geral é mais do que a soma das vontades parti­ culares (Rousseau) - e (ii) definia os procedimentos intelectuais capazes de deduzir desses axiomas outras normas. Estes proce­ dimentos eram, em geral, os que correspondiam ao raciocínio da física ou da matemática. "A justiça - escreve J. G. Leibniz, expondo o tipo de raciocí­ nio a utilizar na ciência do direito natural - é um termo fixo, com um determinado sentido [...] este termo ou palavra justiça deve ter certa definição ou certa noção inteligível, sendo que de qual­ quer definição se podem extrair certas consequências, usando as regras incontestáveis da lógica. É isto precisamente o que se faz ao construir as ciências necessárias e demonstrativas - as quais não dependem de quaisquer factos - mas apenas da razão, tal como a lógica, a metafísica, a aritmética, a geometria, a ciência do movi­ mento e, também, a ciência do direito. As quais não se fundam na experiência dos factos, antes servindo para raciocinar acerca dos factos e para os controlar antes de se darem. O que também aconteceria com o direito, se não houvesse lei no m undo".355 355M ed ita çã o so bre o co n ceito com u m de ju s tiç a (c. 1702-1703), publ. em G. M ollat, R ech tsp h ilo so p h isch es au s L eib n izen s U n g ed ru ckten S ch riften , Leipzig, 1885. Ou " [ ...] a justiça segue certas regras de igualdade e de proporcionalidade que não são menos fundadas na. natureza im utável das coisas do que os princí­ pios da aritm ética e da geom etria", O p in iã o so b re os p rin c íp io s de P u ffe n d o r f (1706), publ. em Louis Duttens, G od. G u il. L cibn itii, O pera om n ia , T oum es, Genève, 1768, IV. V. in fra. 300 António M anuel H espanha E, por isso, é muito frequente encontrar nestes autores ima­ gens ou modelos de argumentação importados da matemática ou da física. Rousseau, por exemplo, constrói extensos passos do Contrato social sobre modelos de raciocínio inspirados pela matemática. Assim, por exemplo, constrói as relações entre Es­ tado, soberano e governo sob a forma de uma figura matemáti­ ca.356 E, embora diga que nas matérias políticas não se pode uti­ lizar o raciocínio da aritmética (Contrato social, III, 1), muitas das suas conclusões sobre as melhores formas de governo baseiamse em cálculos feitos sobre esta proporção. Samuel Pufendorf é igualmente rotundo nas suas afirmações sobre o parentesco en­ tre o direito e as ciências formais. Conceitos como o de "força", bem como outras imagens extraídas da dinâmica, aparecem fre­ quentemente a explicar as relações entre vontade individual e vontade geral.357 O modelo geral da natureza de que partem é um modelo mecanicista, inspirado na física do seu tempo. E, assim, a substi­ tuição de uma estrutura mental teológica por uma outra domi­ nada pelo novo pensamento científico manifesta-se, ainda, na substituição de um modelo finalista por um modelo mecanicista. Ou seja, neste mundo que prescinde da dimensão sobrenatural e se concentra nas explicações ao nível puramente temporal (físi­ co), a natureza do homem é agora encontrada, não pela sua fina­ lidade última (Deus, a salvação, a vida em comum), mas pelas causas das suas acções (a vontade, os instintos). O direito da na­ tureza deixa de ser aquele exigido pela preparação da cidade di- 356"É no governo que se encontram as forças interm édias, cujas relações com­ põem a relação do todo ao todo, do soberano ao Estado. Pode representarse esta última relação pelo dos extrem os [a, c] de um a proporção contínua [a /b = b /c ], cuja m édia proporcional é o governo [b]. O governo recebe do soberano as ordens que dá ao povo; e para que o Estado esteja em bom equi­ líbrio, é preciso que haja igualdade entre o produto ou potência [= b2] do governo tom ado em si m esm o e o produto ou potência dos cidadãos, que são soberano de um lado e súbditos de outro [a x c]" (Contrato social, 111, 1 ). J. G. Leibniz é ainda mais ousado na utilização de m odelos matemáticos. 357 V.g., em John Locke (Two treatises of govemm ent, 1690, II, 7, 96) e Jean-Jacques R ousseau (Du contrat social, 1 7 6 2 ,1, 6). C ultura Jurídica Europeia 301 vina, mas aquele que decorre da manifestação das tendências ce­ gas naturais do homem ou da necessidade de as garantir. Ao prescindir da ideia de finalidade, de ordenação do ho­ mem para algo que o transcende (seja Deus, seja ã sociedade), este novo pensamento social fica limitado, nas suas referências, ao indivíduo. Este é, como veremos, o ponto de apoio de todas as construções do direito da natureza, embora varie de autor para autor a definição das suas características mais relevantes para este fim - uns salientam o seu impulso de conservação in­ dividual, outros o seu desejo de felicidade, outros o seu instinto de propriedade, outros a busca da utilidade. Alguns - fazendo a ponte com concepções anteriores - continuam a referir o seu desejo de sociabilidade ou, o que é quase o mesmo, a sua depen­ dência da sociedade para garantir a conservação individual. Voltaremos, em breve, ao tema. Perdida - ou atenuada358- a referência a uma ordem social natural, estabelece-se a nova - embora com raízes antigas - ideia de que os vínculos e a disciplina social são factos artificiais, cor­ respondentes à criação da ordem política por um acordo de von­ tades. A vontade passa a ser, assim, única a fonte da disciplina política e civil. Embora o voluntarismo radical seja temperado pela ideia - diversamente formulada - de que esta vontade háde ser guiada pela razão. Seleccionam-se, de seguida, algumas das principais orien­ tações jusnaturalistas, apontando-se os tópicos fundamentais de cada uma delas. 7 .2 .1 . Os jusnaturalism os individualistas Sob esta designação pretende-se englobar todos aqueles pensadores que apresentando porventura entre si diferenças 158N em todos os autores identificam o estado de natureza com o caos social, negando a possibilidade de existência de um a ordem social natural. John Locke, p o r exem plo, concebe a possibilidade de um a sociedade natural, embora deficientemente garantida. 302 António Manuel Hespan] marcantes, partiram para a construção dos seus sistemas jusn turalistas dos instintos inatos do indivíduo. Esta ideia de que o indivíduo - o homem, tomado isolad mente, considerado como desligado dos grupos em que está ii serido, não caracterizado pelas funções que aí desempenha - es na base do direito, remonta ao nominalismo de Duns Scotto Guilherme Occam,359 corrente que, como temos vindo a ve inaugurou muitas das ideias básicas do pensamento jurídico m derno. Mas o impulso decisivo foi-lhe dado pelo cartesianisrr e, também, pelo empirismo que, cada um a seu modo, defin ram a natureza do homem e dela fizeram derivar direitos indi-v duais, inalteráveis e necessários. A definição do homem feita pelo cartesianismo era a de s. racional: ser que buscava a verdade através da razão; ser qu intelectualmente, não se dobrava senão à evidência racional, tal ente não podiam deixar de se reconhecerem dois direito decorrentes da sua natureza: o de usar livremente a razão (r campo teórico) e o de desenvolver (no campo prático ou da a ção) racionalmente a sua personalidade (i.e., o de pautar a st acção pelos princípios que lhe eram ditados pela razão). Já o empirismo, que partia de uma observação do homei concreto: o homem, mais do que um ser racional, era um ser a mandado pelos instintos (o da conservação, o da perpetuação, etc, Era a estes instintos que o direito devia garantir o livre curs' podendo dizer-se que a sua satisfação (a felicidade) constituía u] direito natural.360 J59 Enquanto que a filosofia clássica dava existência real ao h o m em "situ a d o " e certas estru tu ra s so ciais (com o "p a i", com o "cid ad ão ", com o "filho"), e, po tanto, considerava com o reais ou naturais os direitos e deveres decorre: tes de tal situação, a filosofia social nom inalista considera os indivídui isolados, sem outros direitos ou deveres senão aqueles reclam ados pela si natu reza in d iv id u al, ou pela sua vo n ta d e (e eis aqui o pendor "voluntarist« do nominalismo, que está na base do positivismo m oderno). Sobre isto, síntese de Villey, 1 9 6 8 ,1 9 9 ss. 360Ideia que é de raiz estóica e que aflora, por várias vezes, no D ig esto (as inc nações n atu rais do hom em com o an im al [D .,1 ,1 ,3 ]; a legítim a defe: [D.,43,16,1,27], etc.). Cultura Jurídica Europeia 303 Como acabamos de ver, o direito natural não deriva agora da natureza cósmica ou da(s) natureza(s) da(s) sociedade(s) (como acontecia com o direito natural aristotélico-tomista), mas da natureza do homem individual e da observação daqueles impulsos que o levavam ã acção. E, pelo que vimos até aqui, a "sociabilidade" (característica essencial da espécie humana em Aristóteles, para quem o homem era "um animal político") não constituía, para uma grande parte destes pensadores,361 um des­ ses impulsos. Pelo contrário: perante a sua necessidade "natu­ ral" de agir racionalmente ou de agir instintivamente, a socie­ dade chegava a aparecer como um obstáculo, pois nela não era possível dar livre curso a estes impulsos sem chocar com os de­ sígnios de acção dos outros. Por isso é que a maior parte dos pensadores jusracionalistas defendem que a instituição da soci­ edade organizada (sociedade política) representa a limitação dos direitos naturais. De facto, levado pela consideração dos interesses da vida em comum, para a qual se sentiam inclinados (Hugo Grócio, John Locke), ou pelo medo de um estado de natureza em que a satisfação dos impulsos naturais gerava contínuas lutas (Th. Hobbes), os homens celebram entre si um pacto, pelo qual limi­ tam a sua liberdade natural, entregando na mão dos governan­ tes o poder de editar regras de convívio obrigatórias. E o "con ­ trato social", cujos germes já se encontram em Suarez, mas cuja teoria é agora amplamente desenvolvida. 361 N em todos. Grócio, ainda muito ligado às autoridades tradicionais, conti­ nua a reconhecer o "appetitus societatis" com o um dos impulsos naturais do hom em . Este agiria impelido pela razão e pelo instinto gregário. E então o direito natural não seria apenas um reconhecim ento dos direitos naturais individuais, m as tam bém a ordem que preside à sociedade hum ana (vin­ culum humanae societatis), v. Solari, 1 9 5 9 ,1 3 ss.. Tam bém Samuel Pufendorf (1632-1694) - um pensador hoje menos conhecido, mas de enorm e influên­ cia na época, nom eadam ente entre os juristas - reconhece uma dim ensão social na natureza do hom em , p rovocad a pela incapacidade h um ana de viver sem o auxílio dos seus congéneres; de onde a conservação individu­ al decorrer tam bém da conservação da com unidade (Burns, 1997, 509-533). 304 António M anuel Hespanha A teoria do "contrato social" não deu lugar, somente, às teorias democráticas que tiveram o seu epílogo na Revolução Francesa. Ela pôde também fundamentar o "despotismo ilumi­ nado", típico das monarquias e principados europeus do sécu­ lo XVIII. Tudo dependia, de facto, do conteúdo do contrato, pois os jusnaturalistas acabavam, como se vê, por depor a faculdade de moldar a constituição política nas mãos dos membros da co­ lectividade. Para uns - os mais pessim istas quanto à natureza hum a­ na, como Thom as Hobbes (1588-1679)362-, os perigos do "es­ tado de natureza" levavam a que os hom ens decidam depor todos os seus direitos na mão do príncipe, a fim de que este zelasse, com o pulso livre, pelo bem com um e pela felicidade individual. A única lim itação do príncipe seria a necessida­ de de governar racionalm ente, ou seja, de forma adequada aos objectivos que tinham estado na origem da instituição da so­ ciedade política ("assegurar a paz e a defesa com um ", Th. Ho­ bbes, Leviathan [...], 1651, cap. 17). Por oposição, o governo despótico e arbitrário seria típico "d o T u rco", im agem muito com um nesta literatura para designar uma form a tirânica de governo. Assim , o soberano poderia legislar e governar sem lim ites, as suas razões ou os seus actos não podiam ser julga­ das pelos súbditos, não estava sujeito a nenhum a "razão do direito" (iurisprudentia, ratio iuris) inventada pelos juristas, era o único intérprete autorizado das leis (ibid., caps. 18,26). Nes­ te caso, o próprio direito natural desaparece com a institui­ ção da sociedade política, justam ente porque, uma vez insti­ tuído o soberano como único legislador, não há lugar para qualquer direito que não tenha origem nele. Leis naturais e costum es valem apenas enquanto não forem contrariados pelas suas leis positivas; e, neste sentido, se não provêm da 362Sobre Hobbes, cf. B um s, 1997; Z arka, 1995. Sobre o pensam ento político in­ glês da sua época, Bum s, 1997; Harrisson, 1995; Burgess, 1992; Carrive, 1994, Álvarez Alonso, 1999, 89 ss.. Cultura Jurídica Europeia 305 vontade positiva do soberano, provêm, pelo menos, da sua paciência (ibid., cap. 26). Uma outra versão do contrato social é a de John Locke (1632-1704), segundo o qual a constituição do estado político não cancela os direitos de que os indivíduos dispunham no estado de natureza. Na verdade, o estado político apenas ga­ rantiria uma melhor administração dos direitos naturais, subs­ tituindo a auto-defesa e a vingança privada pela tutela de uma autoridade pública. Por isso mesmo, o soberano, que não era a fonte nem do direito de natureza nem dos direitos individu­ ais daí decorrentes, estava obrigado a respeitar o direito natu­ ral e os dos direitos políticos dos cidadãos: " [...] sendo o legis­ lativo apenas um poder fiduciário para agir no sentido de cer­ tos fins, continua a permanecer no povo um poder supremo para remover ou alterar o legislativo, quando achar que o le­ gislativo age contrariamente à confiança que se lhe deu [...]. E, assim, a comunidade retém permanentemente o poder su­ premo de se libertar dos atentados e desígnios de qualquer um, mesmo dos seus legisladores, desde que eles sejam tão estul­ tos ou danados para formar ou levar a cabo desígnios contra as liberdades e propriedades dos súbditos" (Two treatises o f government, 1690, II, 13, p. 192). Assim, do ponto de vista das formas políticas, vamos ver o jusracionalismo desdobrar-se em duas grandes orientações: a demo-liberal, inaugurada por John Locke e desenvolvida pelos jusracionalistas franceses, e a absolutista, com origem em Thomas Hobbes e com um representante de nota em Samuel Pufendorf Para além do seu significado na história das ideias políti­ cas, o jusnaturalism o individualista interessa-nos como um 363Samuel Pufendorf (1632-1694) é mais jurista do que filósofo e, por isso, de­ sem penhou um papel de extraordinário divulgador das novas correntes de pensam ento político entre os juristas. A sua obra ( E lem en ta iu risp ru d en tíae universalis, 1660; D e ju r e n a tu rae e t g en tiu m , 1672; D e o fficio h o m in is e t civis secu n d u m legem n atu ralem , 1673) teve edições sucessivas durante o séc. XVIII e serve de base ao despotism o ilum inado europeu, desde a Prússia e a Áus­ tria até Portugal. Cf. Denzer, 1972; Solari, 1959, 62 ss; Bum s, 1997, 509-533. 306 António Manuel Hespanl movimento especificamente jurídico. E, deste ponto de vista, e. apresenta certos elementos bastante significativos para a futui evolução do pensamento jurídico. Percorramos os principais. 7.2.1.1. A teoria dos direitos subjectivos Estamos hoje tão habituados, pelo menos na teoria do d reito privado, a ouvir falar de direitos subjectivos, a equipan o direito (na sua acepção subjectiva) a um poder de vontad garantido a certo sujeito, que nos custa a crer que tal noção t< nha tido um começo. Esta é uma das tais figuras que nos pan cem indispensáveis na dogmática jurídica. Porém, a noção d direito subjectivo nem sempre fez parte do arsenal teórico dc juristas. Ela foi sendo construída pouco a pouco, até atingir a su fase de perfeição com os jusracionalistas. Os direitos subjectivos são, na concepção jusracionalista, c direitos, atribuídos pela natureza a cada homem, de dar livr curso aos seus impulsos instintivos ou racionais. Estão portar to, ligados à personalidade, à sua defesa, à sua conservação, a seu desenvolvimento. Os jusracionalistas pensavam, ainda, que estes direite (também denominados de "naturais", ou "inatos", ou numa te: minologia mais moderna, "da personalidade") não podiam dt senvolver-se plenamente no estado de natureza, pois o livre dc senvolvimento dos direitos de um chocaria com idêntico deser volvimento dos direitos do outro. Por isso, o "estado da nature za", correspondente à livre agregação dos homens, era um es tado de guerra (Th. Hobbes) ou, pelo menos, de insuficiente ga rantia das faculdades individuais (J. Locke). Constituída a soei edade civil através do contrato social, tais faculdades ficariar restringidas - em graus diversos, segundo os autores -, mas o sujeitos ganhariam uma caução pública para os direitos que lhe viessem a ser confirmados. De facto, o alcance do contrato social é a redução dos di reitos inatos a fim de tornar possível a convivência. Em certo autores, partidários do absolutismo - v.g., Hobbes -, tal redução Cultura Jurídica Europeia 307 vai ter uma amplitude enorme.364 Embora noutros - nos repre­ sentantes da orientação liberal365- os direitos subjectivos conti­ nuem a impor-se mesmo perante o Estado. Esta teoria dos direitos naturais (ou subjectivos), que come­ ça por ter aplicações importantes nos domínios do direito pú­ blico, era, na sua natureza íntima, uma teoria de direito priva­ do, pois dizia respeito, originariamente, ao modo de ser das re­ lações entre os indivíduos. E foi, de facto, nos domínios do direito privado que ela teve consequências mais duradouras, fornecendo a base para a cons­ trução doutrinal efectuada pela "pandectística" alemã do sécu­ lo XIX (cf. infra, 8.3.3.). .wpara Hobbes, os cidadãos só conservariam o direito de livre consciência e o de legítima defesa [logo, apenas entre particulares; o único caso de legíti­ ma defesa contra o poder público sendo o do condenado à m orte contra o carrasco] (v. Villey, 1968, cit., 665); por sua vez, Pufendorf, um outro repre­ sentante das tendências absolutistas, defende que os direitos naturais não são "p erfeitos", só se tom ando efectivos depois de positivados pelo E sta­ do. Em Rousseau, os direitos do estado de natureza - que correspondem aos desejos instintivos ( a v o n ta d e p a rticu la r) - desaparecem com a conclu­ são do pacto social, que apenas atribui aos cidadãos direitos racionais, com ­ patíveis com a vontade geral (com a lei) (cf. Rousseu, D o co n tra to so cia l, I, 8). Isto faz com que o poder soberano, que se exprim e por meio da lei, não tenha limites, salvo o de não poder im por aos cidadãos encargos inúteis do ponto de vista da com unidade (racionalidade) e o de não poder dispor senão de forma genérica (generalidade) (ibid., II, 4). 365É o ponto de vista de Locke, o teórico inglês do liberalismo. O optim ism o social e filosófico de Locke fá-lo pensar que, tendo o homem tendência para a felicidade e para a utilidade, é possível instaurar uma ordem social diri­ gida aos instintos hedonistas dos homens. Tal será o "estad o de n atureza" que, longe de ser um a hipótese, é um ideal actualm ente factível, e que, em Locke, correspondia à idealização da sociedade burguesa da Inglaterra do seu tem po. Sendo assim , os direitos subjectivos m antinham -se na socieda­ de civil e deveriam ser respeitados na sua organização, sob pena de os in­ divíduos poderem pôr termo ao Estado tirano que assim se afastava dos fins para que fora constituído ("... the su p re m e po iu er to reversc o r a lte r the lcg isla tiv e, zvhen th ey f i n d the leg islativ e a ct co n tra ry to the tru st rep osed in them ", Locke, O n C iv il G o v ern m en t, XIII). 308 António M anuel H espanha Todo o direito privado vai, então, ser visto como uma for­ ma de combinar e harmonizar o poder que cada um tem de de­ senvolver a sua personalidade. Recordemo-nos, de facto, que a premissa básica do jusnaturalismo individualista era a existência de um direito inato de cada homem ao desenvolvimento da sua personalidade (raci­ onal ou instintiva, não interessa agora). O contrato social visa­ ra, mesmo, garantir esse direito na vida social, criando uma en­ tidade (o Estado) que assegurasse a cada um a satisfação dos seus direitos em toda a medida em que tal satisfação não pre­ judicasse os direitos dos outros. Assim, se pelo contrato social se criava o direito objectivo, não se criavam direitos subjecti­ vos: estes existiam antes da própria ordem jurídica objectiva, sendo o seu fundamento e a sua razão de ser. A origem da sua legitim idade está no carácter naturalm ente justo do poder de vontade (W illensmacht), através do qual o homem desdobra a sua personalidade. No entanto, tendo em vista a sua própria garantia, o Esta­ do e o direito podem comprimir um tanto os direitos de cada um, na medida em que isso seja exigido pela salvaguarda dos direi­ tos dos outros. O direito objectivo aparece, então, como um se­ máforo, dando luz verde ou vermelha aos "poderes da vonta­ de" (que se movem por si), conforme as necessidades do tráfe­ go jurídico. Portanto, na base de todo o direito civil vêm a estar os di­ reitos subjectivos, definidos como "poderes de vontade garan­ tidos pelo direito" ,366 São de tal natureza o direito do credor de exigir a prestação do devedor e de executar o seu património no caso de incumprimento; o direito do proprietário de usar e abusar da sua propriedade com total exclusão de terceiros; o direito de exigir do outro cônjuge, quer abstenções (v.g., o di­ * s "U m poder pertencente à pessoa, um domínio onde reina a sua vontade, e onde ela reina com o nosso aco rd o " (Savignv, System des heutigen römischen Rechts, 1840). Cultura Jurídica Europeia 309 reito à fidelidade conjugal), quer acções (v.g., o chamado "dé­ bito conjugal" e o amparo económico); o direito dos filhos a "alim entos", etc. Todos estes (e outros) direitos subjectivos cor­ responderiam à expressão de uma vontade. Não haveria, mes­ mo, efeitos de direito senão os provocados pela manifestação de uma vontade. Foi esta concepção individualista e voluntarista367(que tam­ bém tem repercussões na teoria das fontes de direito) que se substitui à construção aristotélico-tomista do direito privado e que, já no nosso século, sofreu o embate das concepções institucionalistas;368 e foi também com base nela que se fizeram os có­ 367A influência das doutrinas ética e jurídica de K ant sobre a "teoria da von­ tad e" (Willetheorie) foi muito im portante e contribuiu para o seu definiti­ vo estabelecim ento na dogm ática civilista. K ant realçou, de facto, a au to­ nom ia da vontade e o seu papel criad o r de valores universais, ao mesmo tem po que fez da von tad e (ou da liberdade) o esteio da personalidade m oral. O direito consistia na form a da relação entre os arbítrios das pes­ soas, da relação entre dois arbítrios que, exteriorizando-se se encontram ; a acção justa (ou jurídica) seria, então, a que, segundo um a lei universal, coexistisse com o livre-arbítrio de cad a um. V., sobre os fundam entos da "ra z ã o p rática" e mais concretam ente, sobre os seus ideais ético-jurídicos, Solari, 1959, 202 ss. 368O institucionalismo (cf. infra, 174 ss.) desenvolve-se já nos inícios deste sécu­ lo; trata-se de um transpersonalismo, i.e., de um a doutrina que radica o di­ reito, não nas pessoas individualmente consideradas, m as em realidades englobantes (os grupos hum anos ou certas ideias norm ativas próprias e necessárias). São estas realidades ("instituições", v.g., a família, a proprie­ d ade, o Estado) que, dispondo de um a norm atividade em si, atribuem a cad a um o "su u m " (seu). O direito de cada um é, portanto, derivado e não próprio ou subjectivo (ou seja, radicado ou sujeito). A herança tomista é aqui bem clara; e a sua ligação com a vaga anti-dem ocrática e totalitária do seu tem po (a que forneceram cobertura teórica) não o é menos. Principais re­ presentantes: Otto Gierke (1841-1921), H auriou (1856-1929) e Santi Roma­ no (1875-1947). 310 António M anuel Hespanh; digos civis do século passado369e que está escrita uma boa parti dos nossos manuais de direito privado.370371 7.2.1.2. Voluntarismo Quando nos referimos a voluntarismo, queremos signifi car a doutrina segundo a qual o direito tem a sua fonte, não num; ordem objectiva (da natureza, da sociedade), não em direito: naturais e irrenunciáveis do homem, não numa lógica jurídia objectiva, mas no poder da vontade. Já antes (cf. supra, 5.6.1.1) falámos de "voluntarismo", a pro pósito da filosofia do direito de Santo Agostinho, justamente nes tes termos. Vimos como, para o augustinianismo, tal vontade era primeiramente, a vontade divina, embora, de forma derivada, í própria vontade humana (dos governantes) viesse a ser revesti da de igual dignidade, já que estes o eram por vontade de Deus 369O Código Civil português de 1867 é um exem plo frisante. Logo o art° I o podf ler-se: "Só um hom em é susceptível de direitos e obrigações..."; e no art° 2 define-se "d ireito" como a "faculdade moral de praticar ou deixar de pra ticar certos factos". 370A "teoria dos direitos subjectivos" ou "teoria da von tad e" tem sido subme tida a um a crítica cerrada pela "jurisprudência dos interesses" (R. v. Jhe ring, 1818-1892), pelo institucionalismo e pelas concepções socialistas nc domínio da filosofia social e do direito. As críticas que lhe têm sido feita: são de três tipos: teóricas, pragm áticas e éticas. As prim eiras centram -se n£ falsidade da correspondência entre o direito e a vontade (haveria, na ver dade, direitos a que não corresponderia qualquer vontade válida, v.g., a doí menores ou a dos interditos) ou na inviabilidade de explicar através delí as relações constituídas em certos sectores do direito (v.g., o direito da fa­ mília ou o direito penal). As segundas baseiam-se na alegação de que a vi são subjectiva do direito im pede a adequada apreensão das verdadeira: realidades jurídicas, isolando as relações de direito privado da realidadf social. As terceiras insistem em que o direito subjectivo é a expressão de um individualism o exagerado, para o qual o hom em só tem direito e não também, deveres. Por isso, a sua sobrevivência em m uitos sectores da dog­ mática privatística está hoje de todo com prom etida. Sobre isto, v. a síntes« de Coing, 1964. 371 W iederkesr, 1965, 234 ss., maxime 245-246. Cultura jurídica Europeia 311 Também então se disse que as posições de Santo Agostinho não ficaram sem continuação na história do pensamento jurídico eu­ ropeu, apontando-se-lhe como sobrevivências as teorias franciscanas que, grosso modo, identificámos com o nominalismo. São, de facto, Duns Scotto e Guilherme d'Occam, quem vem retomar a tradição voluntarista, durante alguns séculos submer­ gida pelos pontos de vista jurídicos de São Tomás. Ainda aqui, a restauração da tradição augustirúana está li­ gada ao colapso das teorias de Aristóteles e de S. Tomás. Se, para estes, o fundamento do direito consistia numa ordem do juste inerente à comunidade humana, agora, desfeita a ideia de ordem natural, o direito não pode basear-se senão na vontade dos ho­ mens ou de Deus. E é assim que Scotto funda a lei positiva na con­ venção dos membros da colectividade ("ex communi consensu et electione" [por consenso comum e escolha], Opus Oxoniensis, IV, 15,2, concl. 5). E Occam dá uma volta completa à própria no­ ção de "direito natural", equiparando-o, num sentido, a direite estabelecido (posto) por Deus nas Escrituras ("in Scripturis... continetur" [est.. continetur", está contida nas Escrituras], Dialogus), e noutro, às consequências que decorrem racionalmente de uma convenção (t.e., de um acordo de vontades) entre os homens, ou de uma regra jurídica positiva ("illud quod ex iure gentium ve] aliquo pacto humano evidenti ratione colligitur, nisi de consen­ su illorum quod interest, statuatur contrario [aquilo que se colhe pela evidência racional do direito das gentes ou de algum pactc humano, a menos se estipule o contrário pelo consenso daqueles a quem interessa]". A vontade não está sequer prisioneira da ló­ gica, pois a consequência racional poderá ser ainda afastada pelo acordo dos interesses (v. última parte do texto citado). Tomado no seu conjunto, jusracionalismo moderno é, a este propósito, um tanto paradoxal. Na verdade, a insistência na ra­ zão e a aproximação do direito em relação a saberes como a matemática ou a lógica levaria a valorizar uma justiça objectiva e não arbitrária, correspondente ao carácter não voluntário das proposições das ciências formais, na determinação das quais a vontade não tem qualquer império. E, como veremos, há pen­ sadores que apontam, mais ou menos radicalmente, neste sen­ 312 António M anuel Hespanha tido. No entanto, o racionalismo destas correntes é, antes de tudo, um racionalismo metodológico, ou seja, um método racional de atingir a natureza da sociedade e do homem e de concluir daí o tipo de ordem que preside às coisas humanas. No entanto, concluída esta análise racional, muitos dos au­ tores identificam a liberdade e auto-determinação (ou seja, o po­ der de vontade) como os traços mais característicos da natureza do homem e o contrato como o fundamento da sociedade. Ou seja, um método racionalista de averiguação, desemboca num mode­ lo voluntarista da ordem social, i.e., num voluntarismo axiológico. É a este último aspecto que dedicaremos os parágrafos se­ guintes. Com o jusracionalismo da Época Moderna, o voluntarismo não pode ser senão reforçado. De facto, ainda no "estado de natureza", os direitos de cada um não se fundavam senão no direito essencial do homem à ma­ nifestação da sua personalidade através de "acções livres", sen­ do a liberdade o poder de "querer sem limitações". Daí que os direitos naturais andassem intimamente conexos com a manifes­ tação desta vontade, por ora meramente atenta ao bem estar par­ ticular. Para alguns autores mais radicalmente individualistas, não havia riscos de contradição entre esta vontade e a razão, pois, por um lado, os homens podiam conhecer sem esforço a lei da natureza e, por outro, eram capazes de dominar os seus instintos e querer apenas aquilo que estivesse conforme com a razão.372 Para 372 "6. Porém , em bora este estado seja um estado de liberdade, não o é de licen­ ça; embora o hom em tenha, neste estado, um a liberdade incontrolável para dispor da sua pessoa ou possessões, todavia não tem liberdade para se des­ truir a si m esm o, ou qualquer criatura na sua posse, a não ser que algum uso mais nobre do que a sua m era conservação o exija. O estado de natureza tem uma lei da natureza para o governar, que obriga todos, e a razão, que é esta lei, ensina a toda a hum anidade que a queira consultar que os seres são to­ dos iguais e independentes, nenhum devendo fazer m al a outro, na sua vida, saúde, liberdade ou posse" (JohnLocke, Two treatises o f govemm ent,ll, 2); "63. A liberdade de todos os homens e a liberdade de agir de acordo com a sua própria vontade, baseia-se no facto de ter razão, a qual é capaz de o instruir naquele direito pelo qual ele tem que se governar a si m esm o e de lhe fazer saber de quão longe está da liberdade da sua própria vontade [...]" (ibid., 11,4). Cultura Jurídica Europeia 313 outros, mais pessimistas quanto à bondade natural do homem, não existia qualquer razão superior à vontade. Esta era desenca­ deada mecanicisticamente por estímulos externos, sendo a razão apenas a capacidade de orientar a acção para os fins apetecidos. Ou seja, a razão não era o fim, mas o meio e, por isso, toda a von­ tade era racional.373 Mas, se passarmos a considerar o estado político, a sua radi­ cação na vontade é ainda mais clara, pois o estabelecimento da própria ordem jurídica objectiva se fez através de um acto vo­ luntário dos homens (o "contrato social"), cujo conteúdo é aquele de que eles lhe querem dar para a salvaguarda da vida em co­ mum. E, estabelecido o governo civil, o poder de criar o direito atra­ vés de actos de vontade não tem limites. Pelo menos não lhos reconhece a maior parte dos autores, quer este se situem nas hostes absolutistas, quer pertençam às dos liberais. Toda a diferença entre eles está no modo como concebem esta vontade que dá origem ao direito, bem como as suas rela­ ções com a razão (cf., infra, 8 .2 .). Os liberais (antes de tudo, Locke) procuram combinar von­ tade e razão, com base no carácter racional da vontade indivi­ dual no estado de natureza, a que já nos referimos. Isto porque, por um lado, o advento do estado político não cancelaria essa lei da natureza que iluminava a vontade no estado de natureza e, por isso, continua a constituir um padrão para julgar as leis políticas. Por outro lado, a vontade que está na origem das leis políticas é esse mesma vontade dos indivíduos, de que o Esta­ do não é senão um representante. Na verdade, Locke manteve-se numa concepção tradicio­ nal do pacto político, concebendo-o à maneira de um pacto pri- 375"O direito natural, a que os autores geralmente chamam ju s natu rale, é a liber­ dade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio ju lg a m en to e razão lhe in diqu em com o m eios a d eq u ad o s a esse fim " (Th. Hobbes, Leviathan , cap. 14). 314 António Manuel Hespanha vado (quod omnes tangit, ab omnibus approbari debet, aquilo que toca a todos deve ser aprovado por todos). A vontade que daí resultava era o produto da soma das vontades individuais e nãc uma vontade nova. Daí que aquela sabedoria moral dos indiví­ duos se mantivesse no Estado, o qual podia conhecer as regras racionais de vida em comum e querer (legislar) de acordo corr elas .374 Claro que sempre se pode dizer que esta mesma perma­ nência da lei natural, como orientadora da vontade política, já constitui uma limitação do voluntarismo, da qual resultam, ali­ ás, consequências concretas, nomeadamente quanto ao direitc de resistência ou de revolta .375 374O poder de a maioria impor a sua vontade à minoria era explicado por urr raciocínio mecanicista, im portado da dinâm ica, segundo o qual a vontade do m aior núm ero tem mais força do que a vontade da minoria, arrastande esta quando se forma a vontade do corpo. Locke explica isto nos seguintes termos: "96. [...] Quando qualquer núm ero de homens, por meio do con­ sentim ento de cada indivíduo, constituiu um a com unidade, eles transfor­ m aram por isso mesmo essa com unidade num corpo, com o poder de agii com o um só corpo, o qu e a co n tece a p en a s p e la v o n ta d e e d eterm in ação da m aio­ ria. U m a v ez q u e a qu ilo qu e p õem em m o v im en to u m a co m u n id ad e é a p en as o con ­ sen tim en to dos in d iv íd u os d ela e, u m a v ez qu e co n stitu in d o ela um ú n ico corpo, sc d ev e m ov er n u m a ú n ica direcção, é n ecessá rio qu e o co rp o se p o ssa m o v er nessa d irec çã o com a m aio r fo r ç a qu e h a ja nele, a q u al e o co n sen tim en to da m aioria. De outro m odo seria impossível que ela agisse ou perm anecer com o um sc corpo, com o um a com unidade, com o cada indivíduo que a constitui con­ cordou que fosse; e por isso cada um está limitado por aquele consentimento a ser concluído pela m aioria" (Locke, T w o treatises o fg o v e m m e n t, II, 7, p. 165). Partilhando ainda de certos traços tradicionais (a vontade colectiva como som a das vontades individuais, o soberano com o rep resen ta n te dos cida­ dãos), Hobbes, L eviathan , cap. 17. 375" [ ...] estar subordinados, m esm o assim , sendo o legislativo apenas um po­ der fiduciário para agir no sentido de certos fins, continua a perm anecer no povo um p od er suprem o p ara rem over ou alterar o legislativo, quan­ do ach ar que o legislativo age con trariam en te à confiança que se lhes deu [...]. E assim a com unidade retém perm anentem ente o poder suprem o de se libertarem dos atentados e desígnios de qualquer um , m esm o dos seus legisladores, desde que eles sejam tão estultos ou danados para form ar ou levar a cabo desígnios contra as liberdades e propriedades dos súbdi­ tos" (II, 13). Cultura Jurídica Europeia 315 Os não liberais (absolutistas, jacobinos), pelo contrário, su­ bordinam totalmente a razão à vontade, no sentido de que não reconhecem quaisquer limites para a vontade do soberano. Para eles, a vontade soberana (legislativa, geral) é diferente da soma da vontade das partes. Na verdade, o pacto social daria origem a uma entidade nova, o corpo político, que era o detentor do poder de exprimir os comandos sobre a comunidade. Pertencen­ te a uma pessoa diferente (pessoa moral, ens moralis, na termi­ nologia de Pufendorf), esta vontade legislativa tem característi­ cas diferentes das vontades particulares: deseja sempre o bem geral e, logo, é sempre racional. Embora tenha sido Pufendorf quem primeiro construiu uma teoria acabada da personalidade pública , 376 a construção do carácter soberano e absoluto da von­ tade legislativa foi levada a cabo, de forma exemplar, por Hobbes e por Rousseau. Para ambos, a vontade legislativa era soberana e absoluta. Primeiro, no sentido de que se impunha absolutamente a todos os súbditos, só restando a estes a hipótese de, originalmente, não assinarem o pacto social ou de, subsequentemente, se expatria­ rem. Esta é a opinião de Hobbes, que não reconhece aos súbdi­ tos quaisquer direitos em relação ao soberano. Rousseau, pelo seu lado, define o poder do corpo político sobre os súbditos como absoluto: "Com o a natureza dá a cada homem um poder abso­ luto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus; e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, leva, como disse, o nome de soberania [...]" (Do contrato social, II, 4, p. 74). Depois, a vontade legislativa era absoluta no sentido de que não conhecia limites materiais, ou seja, não estava subordinada a 376Cf. Bum s, 1997, 511 ss. Segundo Pufendorf. a causa rem ota destas pessoa e vontade públicas é Deus, sendo pacto social (a vontade hum ana) apenas a condição (ou causa próxim a) da sua instituição. Daí que o governo político e as suas leis tenham um carácter sem i-sagrado, não podendo ser desobe­ decidas. Já Francisco Suarez tinha encontrado um a form ulação próxim a desta ao origem divina m ediata do poder político (a Dco, per populum, de Deus, por meio do povo). 316 António M anuel Hespanha nenhum preceito exterior a si mesma. Para se compreender bem o alcance desta afirmação é, no entanto, necessário esclarecer que esta vontade pública continha em si mesma o seu objectivo, ou seja, estava intimamente dirigida para a consecução do interesse geral, pelo que era, por definição, sempre justa e racional. Quanto a isto, Hobbes sustentado a tese do primado da von­ tade legislativa sobre o costume, sobre o poder judiciário, sobre a razão jurídica (Levintluin, cap. 26). A única restrição ao poder so­ berano - ainda assim a ser avaliada por ele próprio - era a de que estava racionalmente vinculado a governar de acordo com a fi­ nalidade para que o poder civil tinha sido instituído .377 O tema da coerência forçosa entre a vontade do corpo po­ lítico e a razão é desenvolvido por Jean-Jacques Rousseau (17121778), no âmbito da sua teoria da vontade geral. É aí que expli­ ca esse acto quase místico de criação, pelo contrato social, de uma nova pessoa, o soberano, e de uma nova entidade, a vontade geral, expressa na lei e por definição sempre conforme à razão: "Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma mudança muito notável, substituindo, na sua conduta, a justiça ao instinto e dando às suas acções a morali­ dade que lhes faltava antes. É só então que, sucedendo a voz do dever ao impulso físico e o direito ao apetite, o homem, que até então não tinha olhado senão para si mesmo, se vê forçado a agir com base noutros princípios, e a consultar a sua razão antes de escutar as suas inclinações [...]" (Do contrato social, 1,8 , p. 65 ss.). 377 H á, por isso - com o nota C attaneo, 1966 um a grande diferença entre o despotism o de Hobbes e o despotism o de tipo oriental: é que o Estado de Hobbes constitui um d esp o tism o leg a l, em que a vontade do príncipe é ex­ pressa através de n orm as gerais, salv ag u ard an d o os súbditos, senão do absolutism o, pelo menos da arbitrariedade. Assim , o princípio “ n u llu m cri­ m en sin e lege" e " n u lla p o en a sin e lege" são por ele claram ente estabelecidos ("no law , m ad e a fter a fa c t d on e, can m a k e it a crim e" , L ev ia th a n , cap. 27). A con­ cepção política de Hobbes vem , assim , pôr as bases teóricas do despotis­ m o ilum inado: por um lado, com a afirm ação de um forte poder central do qual em anam as leis; e, por outro, pela instauração do princípio da legali­ dade e da certeza da aplicação das m esm as leis (cf. C attaneo, 1 9 6 6 ,1 9 ss.). Cultura Jurídica Europeia 317 E, por isso, a vontade geral, sendo diferente da soma das vonta­ des, corrompíveis, dos particulares, não pode deixar de ser jus­ ta e racional: "Segue-se que a vontade geral é sempre recta e ten­ de sempre à utilidade pública: mas não se segue daqui que as deliberações do povo tenham sempre a mesma rectidão [...] Há muitas vezes uma grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta não diz respeito senão ao interesse comum; a outra refere-se ao interesse privado, não sendo senão uma soma dos interesses particulares; mas retirai destas mesmas von­ tades os mais e os menos que se destruem entre si, restando a soma das diferenças como vontade geral (Do contrato social II, 3). Para além do mais, a decisão política tomar-se-ia transparente e a justiça evidente .378 Rousseau proclama, assim, a soberania da vontade geral, embora esta pouco tenha em comum com a vontade psicológi­ ca de cada um (a que chama vontade particular), antes constitu­ indo uma vontade racional, dirigida para a prossecução do in­ teresse geral e apresentando, por isso, uma forte componente racional. Rousseau representa, de facto, o triunfo da tendência democrática jacobina , 379 em que a protecção das vontades parti­ 378"L ogo que vários hom ens reunidos se consideram como um único corpo, eles não têm senão um a vontade que se dirige à conservação com um e ao bemestar geral. Então, todos os com andos do Estado são vigorosos e simples, as suas m áxim as são claras e luminosas; não há interesses envolvidos, contra­ ditórios; o bem com um m ostra-se por todo o lado com evidência, apenas exigindo bom senso para ser percebido" (Do contrato social, IV, 1, p. 148). 379 A oposição entre liberais e democratas costuma ser feita nestes termos: en­ quanto os primeiros concebiam as garantias individuais com o um a esfera de acção dos indivíduos liberta da intervenção estadual, com o limite posto à acção do Estado; os dem ocratas (de que se salienta a facção jacobina) enten­ dem-nas como o direito de participar na gestão do Estado, assim tom ado um govem o do povo (dem ocracia). Dentro desta última perspectiva, os limites postos pelos indivíduos à acção estadual perdem todo o significado, pois o Estado e a sua acção são o produto da vontade dos próprios cidadãos; limi­ tar o Estado seria, então, venire contra factum proprium. Deste modo, as demo­ cracias jacobinas põem termo à oposição entre indivíduo e Estado, dando curso à ideia de "disciplina dem ocrática". V., sobre isto, Duverger, 1966. 318 António Manuel Hespanha culares - provenientes do impulso para a satisfação de interes­ ses meramente individuais - vem a atenuar-se perante o dogma absoluto da lei como "volonté générale" - estamos na fase do "despotismo democrático " . 380 "Et qu'est ce qu'une loi? C'est une déclaration publique et solenelle de la volonté générale sur un object d'intérêt commun" [O que é um uma lei ? E uma declaração pública e solene da von­ tade geral sobre um objecto de interesse comum], explica Rous­ seau (Lettres écrites de la Montagne, I, VI). É este o ponto onde se consuma a orientação democrática que triunfa no continente com a Revolução Francesa. A lei (o direito, de que a lei deve ser a única fonte) é uma vontade, mas uma vontade geral, no senti­ do de que (i) deriva de todos, (ii) se refere a problemas de to­ dos, (iii) estabelece a igualdade e liberdade entre todos, (iv) pros­ seguindo o interesse de todos. Esta concepção da lei como norma absoluta estabelecida soberanamente pelo Estado-legislador virá a ser decisiva até aos dias de hoje. 7.2.1.3. Cientificização Por último, realcemos ainda um dos motivos condutores do pensamento jusracionalista, a que já nos referimos, e que con­ siderámos justamente como contrário à anterior ideia de um vol un Laris mo absoluto: o de que o direito constitui uma disci­ plina submetida a regras de valor necessário e objectivo. Na qual há, portanto, verdade e falsidade e não apenas opiniões ou volições. Esta ideia de que o direito é uma disciplina rigorosa, cien­ tífica, não tem as suas raízes nem no pensamento da generali­ dade dos juristas romanos clássicos (que desconfiavam, por sis­ tema, das formulações genérica - "non ex regula ius sumatur" [o 380 Tanto Hobbes com o R ousseau têm um a idêntica concepção da lei com o vontade do soberano. A diferença está no m odo de conceber o soberano. Hobbes identifica-o com o um hom em , o rei. Rousseau com o povo, com a com unidade no seu todo. Cultura jurídica Europeia 319 direito não provém da regra], D .,50,17,1; ou "in iure civili ornnis definitio periculosa est" [em direito, toda a definição é perigosa], D.,50,17,202) nem na doutrina jurídica aristotélico-tomista. Aí, imperava, pelo contrário, a ideia de que o direito é uma arte, di­ rigida por regras, apenas prováveis, de encontrar o justo e o in­ justo. Certezas, não as havia, daí decorrendo esse constante con­ fronto das opiniões a que já nos referimos. A fonte filosófica deste "cientism o", desta aproximação do direito em relação às ciências da natureza, está nessa tendência (já referida) dos estóicos para submeter o mundo humano às leis cósmicas .381 A natureza específica do mundo humano - mundo da contingência, da liberdade, onde as acções deviam ser medi­ das pela régua flexível de chumbo dos lendários pedreiros da ilha grega de Lesbos - era desconhecida; o mundo era, pelo con­ trário, todo da mesma natureza (monismo naturalista), obede­ cendo todos os seres ao mesmo movimento. Os juristas, que, por outras razões , 382 de há muito tinham em projecto a redução do direito a poucos princípios, necessá­ rios e imutáveis, encontram, portanto, nas concepções estóicas sobre uma ordem geométrico-matemática do cosmos, um bom apoio teórico para considerarem estes princípios como verda­ deiros axiomas da ciência do direito, a partir dos quais se pudes­ sem extrair, pelos métodos da demonstração lógica, próprios das ciências naturais (então na sua aurora), as restantes regras da 381 Cf. Ulpianus, D.,1 ,1 ,1 ,3 -4 , " Iu s n a tu rale est q u o d n a tu ra o m n ia a n ím a lia d o cu it; nam iu s istu d n on h u m a n i g en eris p ro p iu m se d o m n ia an im a liu m , qu ac in terra, qu ac in m ari n ascitu r, a v iu m q u o q u e co m m u n e est... v id em u s eten ím cetera qu oqu e a n im a lia fe r a s etia n istiu s iu ris p eritia con seri... Iu s g en tiu m ... a n a tu rali rec e d e r e fa c ile in telleg ere licet..." (o direito natural é o que a natureza ensinou a todos os anim ais; na verdade este direito não é próprio do género hum a­ no, mas de todos os anim ais que vivem na terra e no mar, e tam bém das aves... e vem os tam bém que outros anim ais, m esm o os bravios, têm conhe­ cimento deste direito [...] O direito das gentes [...] é lícito entender que pro­ cede do direito natural). 382 Referimo-nos à necessidade de segurança e de certeza na prática jurídica, em relação à qual a axiom atização do direito era uma resposta altam ente adequada. 320 António M anuel Hespanha convivência humana. E, na falta de axiomas naturais, seriam as próprias normas jurídicas positivas que os substituiriam .383 É claro que este processo de cientificização do direito de­ parou com o cepticismo de alguns; 384 mas, com o advento do op­ timismo cartesiano, ficou basicam ente estabelecido no pen­ samento jurídico (como nas restantes disciplinas filosóficas e morais). Não estava, de facto, nos projectos de Descartes a instau­ ração da certeza, de uma certeza de tipo matemático, em todos aqueles ramos do saber em que, até aí, campeavam a opinião e a dúvida ? 7.2.2. A tradição do jusnaturalism o objectivista Entre o voluntarismo, por um lado, e a tendência para a "cientificização" ou para a fundamentação racional do direito, por outro, existe, em princípio, uma oposição. A mesma que existe entre vontade e razão, entre subjectividade e objectivida­ de. Ela consiste em que, ou o direito é o produto livre da vonta­ de e a sua definição nada tem a ver com uma ordem natural, ci­ entífica ou racional das coisas (pois, repetindo Pascal, "o cora­ ção tem razões que a razão desconhece"), ou existem princípios jurídicos cientificamente, naturalmente ou racionalmente váli­ dos, e então não se descortina a legitimidade da vontade para os destronar. O pensamento jusracionalista esteve consciente deste dile­ ma, daqui derivando a flutuação das suas soluções quanto a uma série de problemas recorrentes - por exemplo, o das relações entre o direito natural e o direito positivo, o da interpretação e integração das leis, da valorização do direito romano, etc. 383Vimos que já O ccam classificava de naturais as regras extraídas racionalmen­ te (evidenti ratione) das norm as jurídicas positivas. ^ Por exem plo, de M ontaigne, de Bacon e de Pascal, cujas observações sar­ cásticas ou angustiadas sobre a contingência do direito são a resposta às pretensões de axiom atização. Cultura Jurídica Europeia 321 Como já vimos, para algumas correntes o problema não se pôs, uma vez que partiam da ficção da "racionalidade da von­ tade" : o direito constitui, é certo, o produto de um acto livre da vontade dos sujeitos, ou de um acto livre do poder; mas só a vontade recta, racional, iluminada, possui a virtude de criar ver­ dadeiro direito. E essa vontade racional tanto podia ser aquela que "agisse de tal modo que a sua acção pudesse ser considera­ da como norma universal" (Kant), como aquela que agisse se­ gundo "um plano científico de obtenção do máximo prazer ou utilidade pessoais" (David Hume), como aquela que se formas­ se tendo em vista o interesse geral (Rousseau). Então, a antino­ mia entre vontade e razão desaparecia, pois a primeira surgia subordinada à segunda, cooperando na realização de uma or­ dem racional e natural. Todavia, houve quem deslocasse o fundamento do direito natural ainda mais para o lado da razão, mas de uma razão ob­ jectiva, radicada não nos indivíduos, mas na ordem cósmica ou na da convivência humana. Enfim, o retomar de um tema da fi­ losofia ecléctica clássica. É isto, que sucede no fim do século XVIII, com autores como Montesquieu, Leibniz e Bentham. O prim eiro (M ontesquieu, Charles Louis de Secondât, Baron de la Brede et de, 1689-1755) revaloriza o conceito de "natureza das coisas", invocando como fundamento do direi­ to objectivo, não a natureza do homem ou a vontade de Deus ou do Príncipe, mas a "necessidade natural", i.e., as consequ­ ências normativas das relações naturais e necessárias que se estabelecem entre os hom ens unidos numa associação políti­ ca . 385 O fim da sua obra mais famosa (L'Esprit des Lois), é mes­ mo a investigação dos factores objectivos (morais, físicos, ge­ ográficos, históricos, sociais) que determinam o modo de ser do direito. 385Sobre esta original (para a época) concepção de direito natural, v. Baratta, 1959,191 e Cattaneo, 1966, 28 ss.; Vergnières, 1993. 322 António Manuel Hespanha Se bem que tal concepção, no que ela tem de histórico-sociológico e de relativista, não pudesse favorecer muito a cons­ trução de princípios fixos para guiar a legislação e a doutrina, o que é certo é que, desistindo de radicar o direito na vontade ou na inteligência individuais, marca um sinal de reacção contra o subjectivismo das doutrinas anteriores. A mesma tendência para a objectivação do direito natu­ ral encontram os em Gottfried W ilhelm Leibniz (1646-1716)386 que, embora partindo de pressupostos filosóficos muito di­ ferentes, concebe um direito natural emanado da razão divi­ na, que se imporia, tanto ao próprio arbítrio de Deus , 387 como a qualquer estatuição voluntária, a qualquer im posição posi­ tiva do Estado. "N em a norma de conduta em si mesma, nem a essência do justo - escreve Leibniz na sua obra Opinião sobre os princípios de Pufendorf (1706)388- dependem da decisão livre de Deus, mas antes de verdades eternas, objectos do intelecto divino, que cons­ tituem, por assim dizer, a própria essência da divindade [...] A justiça não seria, de facto, um atributo essencial de Deus, se ele estabelecesse a justiça e a lei pela sua vontade livre. E, na verda­ de, a justiça segue certas regras de igualdade e de proporciona­ lidade que não são menos fundadas na natureza imutável das coisas do que os princípios da aritmética e da geometria" (cit. por Riley, 1988, 71). A tal direito natural (que constituiria o regime jurídico da optima respublica) seria averiguável exclusivamente pela reflexão e contrapor-se-ia o direito positivo (ius voluntarium), emanado do soberano, em virtude dos poderes tradicionais ou constitu­ cionais de que este está revestido (ius receptum moribus vcl a su- 386Cf. Riley, 1988; Bum s, 1997. 387"E m qualquer ser inteligente, os actos da vontade são sem pre, por nature­ za, posteriores aos actos do seu entendim ento ... isto não quer dizer que haja algo antes de Deus, mas apenas que os actos do entendimento divino são anteriores aos actos de vontade divina" [Carta a Bierling, Duttens, V, 386]. 388Publ. em Duttens, IV. Cultura Jurídica Europeia 323 periore constitiitum [o direito recebido consuetudinariamente ou instituído pelo superior] ) . 389 E aparece mesmo em Leibniz a afirmação - difícil de encon­ trar nos jusnaturalistas contratualistas, que eram levados a acei­ tar como justas todas as consequências normativas do contrato social - de que as leis positivas podem ser injustas .390 Este é o si­ nal de que o direito se liberta do império da vontade, de que, para além do querer dos indivíduos ou dos seus representantes, há normas objectivamente válidas, pelo que o princípio stat pro ra­ tions voluntas (a vontade faz as vezes da razão) "c'est proprement la devise d'un tyran" (Leibniz, Méditation sur la Notion Commu­ ne de Justice, 1693). Esta ideia de que era possível construir, por operações de cálculo, uma ciência do direito e do poder está presente em ou­ tros autores. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) constrói a sua teoria política sobre a base da possibilidade de uma ciência cer­ ta - e largamente matematizável - do poder. Ao discutir as for­ mas de governo, esse ideal de certeza e de verdade faz com que conceba uma ciência rigorosa das formas políticas, as quais es- 389"[A justiça] é um termo fix o , c o m um determ inado sentido [...] este termo ou palavra justiça deve ter certa definição ou certa noção inteligível, sendo que de qualquer definição se podem extrair certas consequências, usando as regras incontestáveis da lógica. É isto precisam ente o que se faz ao cons­ truir as ciências necessárias e dem onstrativas - as quais não dependem de quaisquer factos - mas apenas da razão, tal com o a lógica, a metafísica, a aritm ética, a geom etria, a ciência do movim ento e, tam bém , a ciência do direito. As quais não se fundam na experiência dos factos, antes servindo para raciocinar acerca dos factos e para os controlar antes de se darem . O que tam bém aconteceria com o direito, se não houvesse lei no m undo. O erro daqueles que tornam a justiça dependente do poder deriva, em parte, de confundirem direito com lei. O direito não pode ser injusto, seria uma contradição; m as a lei pode. Pois é o poder que cria e m antém a lei: E se esse poder falha de sabedoria e de boa vontade, ele pode criar ou m anter leis bastante m ás" [...] (em M ed itaçã o sobre o con ceito com u m de ju stiç a (c. 17021703), publ. em G. Mollat, R ec h tsp h ilo so p h isch es au s L eib n iz en s U n g ed ru ck ten S ch riften , Leipzig, 1885, cit. por Riley, 1988, 49-50). 390Em D e T ribu s ju r is n a tu rae e t g en tiu m g ra d ib u s (cit. por Solari, 1959, 65 ss.). António Manuel H espanha 324 capariam, por isso, ao arbítrio dos cidadãos .391 Por isso, seria pos­ sível, por exemplo, estabelecer-se uma relação objectiva entre a dimensão do Estado e liberdade, do tipo: Estado governo _ governo soberano Pelo que, por exemplo, o número de habitantes (Estado), varia na razão inversa da liberdade individual, que, por sua vez, é o inverso da força do governo. Também as relações de poder entre Estado, soberano e governo podem ser objecto do mesmo tipo de cálculo, pois existiria uma proporção entre príncipe e governo semelhante à que existe entre Estado e soberano, da qual se poderiam extrair regras como as seguintes: (i) príncipe (po­ der sobre os magistrados) e soberano (poder sobre os súbditos) variam em sentido diverso (III, 2); (ii) quanto mais os magistra­ dos, mais fraco é o governo, ibid.); (iii) de uma e outra propor­ ção resulta que "a relação dos magistrados com o governo é in­ versa à dos súbditos em relação ao soberano" (ibid.). Mas, quem levou mais longe a ideia de objectivação do di­ reito natural foi Jeremy Bentham (1748-1832) que, partindo da máxima utilitarista de que o direito justo é o que organiza a so­ ciedade de modo a obter o máximo de bem estar para o maior número (“the greatest hapiness o fth e greatest number is the measure ofright and wrong"), concebeu o direito como o produto de um cálculo rigoroso (que ele denomina defelic ific calculus). A legislação torna-se, então, uma ciência tão próxima, na sua na­ tureza, das ciências físicas, que ele não hesita em comparar o princípio da utilidade geral, como fundamento da ciência do 391"C om o não há senão um a m édia proporcional entre cada relação, também não há senão u m bom governo possível num Estado; m as com o mil acon­ tecimentos podem m odificar as relações de u m povo, não apenas diversos governos podem ser bons em diversos povos, m as m esm o n um mesmo povo em diversos m om entos" (111,1, p. 103). Cultura Jurídica Europeia 325 direito, com o princípio de Arquimedes, como fundamento da hidrostática .392 Justamente um dos motivos de interesse que este tipo de jusnaturalismo vem a ter na história do direito moderno é du­ plo: por um lado, ideia de que existe uma ciência do bom go­ verno, da boa polícias; por outro, a ideia de que tais princípios científicos podem ser reunidos em códigos. 7.2.3. A ciência de polícia "Polícia" é um termo que remete etimologicamente para polis, cidade, comunidade organizada. Desde Aristóteles que a palavra "Política" se referia à boa organização da cidade. Tam­ bém desde há muito tempo que o adjectivo "político" significa­ va "bem organizado " . 393 O que há de novo, nestes meados do séc. XVIII, é que o saber da boa organização deixa de estar dis­ perso, pelo direito, pela oikonomia (ou saber do governo domés­ tico), pela prudentia governativa, passando a concentrar-se num saber baseado nas novas ciências da sociedade - a ciência do direito natural, a economia, a higiene, a ciência da legislação -, e designado por ciência da polícia (Policeywissenschaft, science de la police) ou por cameralística (Kameralistik, ou ciência da câma­ ra do monarca ) , 394 cujos primeiros tratados são os de Delamare, 392Cf. Solari, 1959, 298. A fundam entação do direito justo na utilidade remon­ ta ao ep ic u rism o da Antiguidade (cf. Villey, 1968, 4 9 5 ss.). M as, na Idade M oderna, é visível a influência desta ideia nas obras de Hobbes e Locke e, em geral, na teoria jurídico-política do despotismo iluminado que, não acei­ tando ser um "govern o do p ovo", afirm ava ser um "governo para o povo". Todavia, o traço distintivo do epicurism o (ou utilitarismo) de Bentham é o facto de a utilidade a prosseguir não ser a dos indivíduos isolados, mas a utilidade geral, podendo a prossecução desta im plicar algum a limitação do bem estar dos indivíduos u ti sin gu li. As raízes próxim as desta correcção feita por Bentham ao utilitarismo são Beccaria (que, na introdução a D ei delitti e delle p en e [1764] fala da " m a s s im a fe lic ità d iv isa n el m a g g io r n u m ero" ) e Priestley (A n E ssa y o n the F irst P rin cip ies o f G o v ern m en t [1771]). 393René Chopin escreve, em 1662, um T ra ité d e la p o lice ecclésiastiq u e. 394Sobre o tem a, clássico, Schiera, 1968; Stolleis, 1988; Sordi, 2001. 326 António Manuel Hespanh; Traité de la Police, 1729, e de Christian Thomasius, Entwurff eine luohleingerichteten Policey, 1717. Este último enumera os objecto: da nova ciência como os que dizem respeito à organização in terna do Estado (demografia, religiosidade, virtude, educação abastecimento, saúde, e segurança dos súbditos; cadastro e ur banismo ) . 395 São estes tratados que, doravante, vão constituir não apenas um modelo para o governo, mas mesmo uma for ma indirecta de governar, apelando para a disciplina científica como substituto ou complemento da disciplina de governo po meios jurídicos. Mesmo um liberal - adepto de uma acção mí níma do Estado - como Adam Smith (1723 - 1790), dedica bas tante atenção à polícia, nas suas Lectures on jurisprudence ,396 di tadas na Universidade de Glaslow, èntre 1762 e 1763, incluindc nela a regulamentação "da limpeza ou neteté; da aisance, à von tade ou segurança; e do bon marché, ou modicidade das provi sões". A que acrescentava, depois, as questões financeiras, oi dos meios de ocorrer às despesas do Estado .397 Smith constitui, em todo o caso, um dos exemplos mais ní tidos de como a preocupação pela polícia, pode incentivar, nãc uma forma obcessivamente regulamentadora e repressiva, ma: antes uma política de devolução para instituições não estadu ais dás tarefas de conformação da sociedade. Smith tem ideia: acerca das origens dos desarranjos da sociedade. Podem ser lei: obsoletas ou prejudiciais; e, nesse caso, o Estado tem que as re vogar ou modificar; podem ser maus hábitos; e, neste caso, tal­ vez o Estado há que os reformar pela dureza da lei; mas talve; possa preferir a acção mais lenta e suave da educação, para o que poderá ter que criar instituições; ou podem ser apenas questõeí 593Em Portugal, as m atérias "d e polícia" são já consideradas nas obras de Pas coal de Melo ( in stitu tio n es iu ris civ ilis lu sita n i, 1789) e de Francisco de S o u s e e Coelho Sampaio (P relecções d e d ireito p á trio , 1793. Sobre eles v. Seeländer 2001, M arcos, 2001. 396 Adam Smith, L ectu res on Ju r is p ru d en c e (Glasgow Edition of W orks, vol. 5 1762-1766), ed. R. L. Meek, D. D. Raphael and P. G. Stein, Indianapolis, Li­ berty Fund, 1982), ed. electr.: h ttp ://o lI.lib erty fu n d .o rg /T o C /0141-06.p h p ) 397 Lição de 24.12.1762. Cultura Jurídica Europeia 327 de gosto - como a preferência de uma arquitectura desarmónica e rude às formas curvilíneas (que Smith considerava as mais naturais e polidas); neste último caso, bastava esperar (talvez incentivando isso um pouco pelo exemplo das construções pú­ blicas) que o bom gosto se difundisse. Já se aponta, assim, para uma outra técnica de governar. Não se trata, porém, da esperada técnica do não governo (laissez faire). Mas antes de uma regulação das causas, uma regula­ mentação preventiva, em vez de uma regulamentação dos efei­ tos, uma regulamentação repressiva. De considerar são agora factores de ordem social ou económica; modos de viver e, até, circunstâncias geográficas ou climáticas. Estas últimas não po­ deriam, decerto, ser objecto de medidas reguladoras. Mas as primeiras podem ser, embora muito indirectamente. Pela edu­ cação , 398 pela promoção do gosto , 399 por medidas de fomento , 400 pela correcção de leis deformadoras da convivência natural .401 398"T h eir idle and luxurious life in ease and plenty w hen with their masters renders them altogether depraved both in m ind and body, so that they nei­ ther are willing nor able to support themselves by w ork, and have no w ay to live by but by crim es and vices" 399 Even colour, the m ost flimsy and superficial! of all distinctions, becomes an object of his regard. H ence it is that diam onds, rubys, saphires, em erallds and other jewels have a t all times been distinguished from the m ore pe­ bbles of less splendid hues. Figure also is a distinction which is of no small w eight in directing the choice of m an in m an y of his pursuits. A so rt of uniform ity mixed at the sam e time with a certain degree of variety gives him a certain pleasure, as w e see in the construction of a house or building w hich pleases w hen neither dully uniform nor its parts altogether angu­ lar" (ibid., p. 283 s.). 400"C om m erce is one great preventive of this custom . The m anufactures give the p oorer sort better w ages than any m aster can afford; besides, it give<s> the rich an opportunity of spending their fortunes with fewer servants, w hich they n ever fail of em bracing. H ence it is that the com m on people of England w ho are altogether free and independent are the hones test of their rank an y w here to be m et w ith." 401 "I took notice of the great disorders and confusion of the feudal govern ­ ments, w hich in a great m easure proceeded from the numbers of retaints and dependents am ongst them " (ibid., p. 284 ). 328 António M anuel Hespanha Comparada com a polícia à francesa - cuja exuberância regulamentadora Smith critica pode dizer-se, por um lado, que a estratégia de Smith abre mais crédito a medidas regulamenta­ res que, não usando a coerção física tão sistematica e intrinseca­ mente, podiam ser entregues a outras entidades que não ao Es­ tado - a escolas, a academias, à educação pela criação de uma opinião ou de uma estética pública. Mas não se pode dizer que Smith prescinda da acção do Estado ou que deixe de incluir a "polícia" no âmbito das tarefas de governo. Ainda mais interessante parece, contudo, o modo como, capítulos abaixo, Smith considera os direitos do rei em relação aos seus súbditos, matéria que se inclui no direito público, o tal que agora se ocupava destas matérias "de polícia". A introdução, que dá conta das especificidades naturais do direito público, já é perturbadora de uma conceito estrito de rule oflaxv, de um governo jurisdicional, como era habitual nas mo­ narquias corporativas, em que, em caso de litígio com particu­ lares, os reis apareciam despidos de quase todas as prerrogati­ vas, sujeitos às regras do direito comum: "A natureza desse ramo do direito público [...] é tal que não podemos pretender que exista nele a precisão que caracteriza o direito privado nas rela­ ções entre os cidadãos, ou a outra parte do direito público que compreende os deveres dos súditos para com os seus soberanos [...] [E que] não há um tribunal que possa julgar os próprios so­ beranos, uma autoridade soberana em relação aos soberanos, que tenha examinado e tornado certas as acções do soberano para com os súditos [...] que se justificam ou até onde vai o seu poder". E conclui: "O s limites precisos foram pouco considera­ dos, sendo muito difíceis de determiner até onde se estende o poder soberano" (ibid., p. 265). Em suma, neste domínio do di­ reito público, tudo era incerto e fluido. Mesmo na Inglaterra, em que as fronteiras exactas do poder do rei tinham sido razoavel­ mente fixadas desde a Revolução de 1668, quando o rei se apre­ senta como soberano, no exercício das suas competências públi­ cas "ninguém pode pretender determinar até onde vai o seu poder, tal como também acontece em França, em Espanha ou na Turquia (ibid., p. 265). Não é apenas Sm ith quem, nesse C ultura Jurídica Europeia 329 particular território jurídico que é a Inglaterra, se pronuncia pelo carácter natural e dificilmente limitável do poder público, sem­ pre que este se dirige à satisfação do bem público. Na Europa continental contemporânea passava-se o mesrrto. Mas trazer à colação o exemplo inglês tem a vantagem de suspender um pou­ co as certezas habituais sobre as diferenças entre as relações en­ tre o Estado administrativo e os cidadãos administrados, dum lado ou de outro da Mancha. Nas duas margens, de facto, o que estava a nascer era um novo ramo de direito, o direito adminis­ trativo, marcado por uma supremacia natural do público sobre o privado que fazia com que lhe não fossem aplicáveis os prin­ cípios jurídicos ou as jurisdições comuns .402 7.2.4. A ideia de codificação O empreendimento da codificação do direito foi várias vezes posto em prática na história do direito europeu. Normalmente anda ligado à necessidade de fixar o direito vigente, embora tam­ bém seja utilizado para o renovar globalmente, de acordo com aquilo que se entende serem as novas necessidades da época. Todavia, os códigos modernos, que começaram a ser pos­ tos em vigor por toda a Europa nos fins do século XVIII, apre­ sentam traços de marcada especificidade em relação às codifi­ cações anteriores .403 Primeiro, a um nível formal, porque se apresentam como códigos sistemáticos, dominados por uma ordem intrínseca, o que lhes dá, aos nossos olhos, um aspecto "arrumado" que con­ trasta com o plano arbitrário dos códigos anteriores. Depois, quanto ao sentido das suas disposições, porque eles tendem a 402Seelánder, 2001. 403Sobre a codificação: Tarello, 1976: mais recente e interpretativo (no sentido de um a relacionação da codificação com a absolutiza,cão da lei), Clavero, 1991 (e, ainda, a sua com unicação inédita ao colóquio C om p arin g L egal T ra­ d it io n s : R ig id a n d F le x ib le L e g a l S y s tem s in th e H is t o r y o f M e d ite r r a n e a n S o cieties (V e n ic e , 26-27 April 1999): "L a loi et la paix. Rigidez y laxitud como crédito y descrédito constitucionales"). 330 António M anuel Hespanha apresentar-se como conjuntos de disposições libertos das con­ tingências do tempo e, por isso, tendencialmente eternos. Qualquer uma destas características provêm dos pressu­ postos filosóficos de que partiram os seus autores e que eram, de uma forma geral, os da existência de uma ordem jurídica anterior à legislação civil, à luz da qual esta devia ser cientificar mente reformada. Os códigos serão, assim, um repositório não do direito "voluntário", sujeito às contingências e às mudanças da vontade humana, mas do direito "natural", imutável, univer­ sal, capaz de instaurar uma época de "paz perpétua" na convi­ vência humana. Estas ideias constituíam o cerne do pensamento dos auto­ res que acabamos de estudar, que consideravam como urgente a reforma científica da legislação civil através da promulgação de códigos fundados no direito "natural" (qualquer que fosse a ideia que tivessem disso).. No movimento da codificação moderna tem um papel de destaque a obra teórica de Jeremy Bentham. A codificação aparece-lhe como a consequência lógica da ideia de um código uni­ ficado e universal ("an all comprehensive code o f law fo r any nation professing liberal opinions"), fundado numa ciência da legislação orientada pelo "cálculo da felicidade" (v. supra, 7.2.2.). O Código devia ser completo, i.e., formar um sistema fecha­ do de normas, logicamente concatenado, justificável segundo o prin­ cípio científico da utilidade. Embora Bentham não desconhecesse os elementos contigentes e variáveis da legislação, entendia que tais elementos não destruíam a verdade intrínseca dos princípios ci­ entíficos da legislação e, logo, a possibilidade de um código uni­ versal. 404 Estas ideias de uma legislação universal vieram a ter uma enorme repercussão por toda a Europa, tanto mais que se articu­ lavam com a ideia de uma cidadania universal e de direitos cívi­ cos universais (Weltbürgrrechte, direitos do cidadão do mundo), desenvolvida nessa altura por F. Kant no seu projecto de uma organização jurídica e política mundial ("paz perpétua"). 404 Sobre as ideias de Bentham quanto a este ponto, Solari, 1 9 5 9 ,3 1 6 ss. Cultura Jurídica Europeia 331 Um dos primeiros projectos modernos de um código foi o de Leibniz (Corpus iuris reconcinnatum, 1672). Mas os exemplos históricos mais famosos (e levados a cabo) foram os do Código criminal da Toscana (he.opold.ina, 1786), do Código da Prússia (Allgemeines Landrechtf. den preussischen Staaten, A.L.R., 1794); da Áustria (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch, A.B.G.B., 1811); e da França, o famoso Code civil de 1804. Em Portugal, embora se tenha ensaiado - muito precocemente em relação ao resto da Europa - uma nova codificação do direito pátrio no último quartel do século XVIII (projecto do "Novo Código", v. infra, 8.3.1. ), o primeiro grande divulgador da ideia de codificação foi Vicente José F. Cardoso da Costa (1765-1834), em Que lie o Codigo Civil (1822). Nesta memória, di­ rigida às Cortes Extraordinárias e Constituintes (onde o depu­ tado Bastos propusera a abertura de um concurso para a elabo­ ração de um projecto de Código Civil), recolhia e compendiava as mais importantes ideias de J. Bentham (contidas, especialmen­ te, em Vue Générale d'un Corps Complet de Législation). Lá encon­ tramos a ideia de que o Código é um repositório do direito na­ tural "objectivo", pois deve basear-se, não na compilação das leis positivas, mas na observação do "justo" contido nas coisas - "lan­ çar os olhos sobre a cousa, e sobre cada huma das suas faces, e relações, para se lhe accommodarem as Leis convenientes" (p. 31). Por outro lado, as soluções nele contidas devem ser tiradas do princípio da utilidade, concebido pelo autor como "a Álgebra dos Direitos e da Propriedade". A própria ideia benthamiana de um cálculo da utilidade (felicific calculus) aplicado às soluções de direito está aqui presente - "pezaremos cada hum dos artigos, que introduzirmos no nosso Projecto do Codigo; veremos os males que delles resultam, e somente daremos lugar no nosso Codi­ go àquelles que ou só apresentarem resultados benéficos, ou pelo me­ nos mais dos desta natureza, do que dos da outra, que lhes são contrá­ rios" (p. 142). Observados estes cânones metodológicos, o códi­ go não poderá deixar de ser tendencialmente universal e eterno - "hu m Codigo Civil, assim organizado, poderá ser comum a todos os povos? Na maior parte. E carecerá de reformar-se de 332 António Manuel Hespanha século em século? Em muito pouco". As ideias de que o código deve ser sistemático ("remontando-se aos princípios, que fixam as relações entre os homens na vida civil, nos diversos negóci­ os, que nella concorrem", estabelecendo "regras, e Leis, dessa fonte derivadas, para a sua direcção" e compreendendo "em poucas linhas, o que aliás pede muitos parágrafos, nos Codigos casuísticos", p. 57) e completo (não devendo o pensamento do legislador ficar "empacotado" a uma autoridade exterior à co­ dificação, p. 6 6 ) também estão expressas nesta obra. E até o ob­ jectivo "liberal", que encontramos em Bentham a caracterizar o código perfeito, aqui aparece por toda a parte. Todavia, a obra de Cardozo da Costa não é um mero resumo da do filósofo in­ glês. Profundo conhecedor do direito nacional, o nosso jurista esmalta-a com abundantes exemplificações, tiradas do direito nacional e das imperfeições da época em matéria de legislação .405 7 .3 . A prática jurídica Mas nem só os factores ideológicos e filosóficos contribuíram para o moldar das concepções jurídicas modernas. Também a prá­ tica jurídica da época anterior gerou, por reacção, uma série dé idei­ as que vieram a fazer curso no período que estamos a tratar. Já temos uma ideia do estado da vida jurídica nos séculos XVI e XVII nos países do sul da Europa, onde os métodos dos Comentadores continuavam a ter geral utilização. Aí, a vida forense conhecia uma grande desorganização e insegurança. Primeiro, pelo excesso de dissenções doutrinais favorecidas pelo proliferar de opiniões ;406 depois, pela comple­ xidade e morosidade dos trâmites processuais. Por fim, pela complicada organização dos tribunais - inerente à pluralidade 405Sobre o m ovim ento da codificação em P o rtu g al, v . M arques, 1987; Silva, 1991; C lavero, 1991. 406 Apesar do acatam ento, por quase tod a a E u ro p a, da "re g ra do preceden­ te" . É que era sem pre possível encontrar u m p raxista que louvasse a solu­ ção proposta. Cf. Rocha, 1852, 243. Cultura Jurídica Europeia 333 jurisdicional do Antigo Regime407-, que dava origem a intermi­ náveis conflitos de competência. Daí que a actividade dos tribunais fosse olhada, em todos estes países, com imensa desconfiança. Aproveitando o ensinamento de Francis Bacon (1561-1626), segundo o qual "judges ought to remember that their ofice isju s dicere and notjus dare, to interpret the law, and not make orgive de law" (On Judicature, em Essays),408 os mais ilustres juristas da segun­ da metade do século XVIII propõem uma profunda reforma ju­ diciária que ponha termo ao "despotismo dos tribunais" (Condorcet, 1743-1794), depositando exclusivamente na mão do le­ gislador a tarefa de interpretar a lei obscura. E nos países latinos da Europa ocidental que mais se sente a crítica ao estado da prática judicial, dando origem a projectos de reforma judiciária e processual ainda antes da Revolução. Pelo vigor do seu depoimento ,409 é de destacar o italiano Luigi António Muratori (1672-1750), e a sua obra Dei Difeti delia Giurisprudenza (1742). Espontdo os "defeitos da jurisprudência", Muratori reserva o primeiro lugar para o arbítrio dos juizes que, deixados à vontade por uma legislação defeituosíssima e por uma doutrina indisciplinada e "preciosa", tudo resolviam se­ gundo o seu bei prazer, (Dei D ifetti..., IV). O remédio seria, se­ gundo o italiano, o recurso aos princípios fixos do direito natu­ ral, a reforma da legislação, pela edição de códigos, e centrali­ zação da edição do direito nas mãos do príncipe. 407Sobre esta, v. Hespanha, 1992c. M ouzinho da Silveira podia afirmar, no pre­ âmbulo do decreto em que se prom ulga a prim eira reform a judiciária de estilo m oderno (dec. de 16.05.1834), que Portugal era "u m país de juizes". 408 Até em Portugal esse passo de Bacon vem a ter eco: "a m elhor lei", dizia Bacon de Verulamio, "h e a que menos deixa ao arbítrio do Juiz: o melhor Juiz he o que m enos d eixa ao seu próprio arbítrio" (v. Peniz, 1816). No mesmo sentido, Estatutos Pombalinos, Tit. 6, cap. 6, §§ 13-14. 409Em Portugal, M uratori exerce grande influência sobre Luís António Verney, com quem se correspondeu. Correspondência publicada por Moncada, 1950, III, 193 ss. 334 António Manuel Hespan Em França, onde o problema também se punha agudame te - tendo sido denunciado por Montesquieu -, a restrição c poder dos juizes foi levada a cabo no período revolucionári Foram, então tomadas várias medidas nesse sentido: introduçí do júri nos julgamentos penais, (medida de reacção contra a “c tificial reason" [Coke] dos juristas); obrigatoriedade de motiv a sentença (lei de 16/24 de Agosto de 1790); criação do Trib nal de Cassação, para verificar a "legalidade" das decisões j diciais (lei de 27 de Novembro/l de Dezembro de 1790); ins tuição do sistema do référé legislatif, pelo qual os tribunais era obrigados a enviar à Assembleia legislativa as questões juríc cas de duvidosa interpretação (lei citada e Constituições de 17 e do ano III). Todas estas medidas terão os seus símiles no res da Europa, e também em Portugal.410 Encontramos as mesmas queixas, na correspondência Verney para Muratori, bem como nas recomendações por es dirigidas a um seu correspondente português .411 Em Portugal, a reforma da prática jurídica começa aini no século XVIII. Pombal inicia-a com a Lei de Boa Razão e, indirectamen ao reformar o ensino jurídico na Universidade. A Lei da Boa Razão, de 18.08.1769,412ao rever todo o sisl ma de fontes de direito num sentido contrário ao da prática e tabelecida, força esta a uma profunda mudança. O seu senti« geral é o da proscrição do direito doutrinal e jurisprudencial qt 410 Assim o júri é instituído pela Constituição de 1822 ainda com m aior am j tude do que em França (causas crim inais e civis), a "rev ista" (ou seja, o curso invocando ilegalidade da sentença já estava previsto na Ordenaçc I.,4,l) e é reafirmado pela Lei de Boa Razão (§§ 1 a 3) que institui, també um a espécie de référé legislatif (§ 11), tam bém com tradições anteriores. 411 Num docum ento que acom panha um a das cartas, Verney, propõe a refi ma de todos os Tribunais, reform a essa que, ao lado da m udança dos se próprios nomes, devia "proibir tantas autoridades legais, mas aduzir o te> da lei, com dois únicos doutores, ou intérpretes, ou tratadistas". Cf. Mc cada, 1950, 405. 41:2Sobre a qual, v. Silva, 1991, 360 ss. Cultura Jurídica Europeia 335 como se sabe, constituía a espinha dorsal do sistema do ius corntnune. De facto, bane-se a autoridade de Bártolo, de Acúrsio e da opinio communis doctorum, o mesmo acontecendo com a invoca­ ção do direito canónico nos tribunais comuns. Mantém-se a au­ toridade subsidiária do direito romano, mas apenas quando este fosse conforme à Boa Razão, ou seja - como se esclarecerá de­ pois nos Estatutos da Universidade - aos princípios jurídico-políticos recebidos nas nações "polidas e civilizadas". Em contrapar­ tida, restringe-se a faculdade de fixar a jurisprudência aos as­ sentos da Casa da Suplicação, ao mesmo tempo que se nega força vinculativa aos "estilos de julgar" dos tribunais e se estabelecem condições muito rigorosas de validade para os costum es .413 Numa palavra, institui-se o monopólio da edição do direito a favor da lei do soberano, monopólio apenas temperado pela pos­ sibilidade de invocação dos princípios de direito natural, nome­ adamente daqueles que tinham sido incorporados na legislação dos novos Estados iluministas. Os Estatutos da Universidade, de 1772, reformam o ensino do direito no mesmo sentido, restrin­ gindo o estudo do direito romano àquele que tinha tido um "uso moderno" nas nações cristãs e civilizadas da Europa (liv. 2, tit. 5, c. 3, § 6 ); introduzindo o estudo do direito pátrio; e, sobretu­ do, envolvendo todo o ensino jurídico no ideário jusracionalista, bem como numa orientação pedagógica "textualista" (ou seja, mais voltada para o estudo directo das fontes do que para o das opiniões e comentários 414) . 415 As consequências destas reformas foram muito profundas e duradouras, marcando decisivamente os juristas por elas for­ mados. Isto explica que, no plano da prática e da política do direito, depois da década de '70, nada fique como estava. E então que, verdadeiramente, se inaugura uma nova época da 4,3Não contradição da lei positiva; conform idade à "boa razão " e vigência pro­ vada igual ou superior a cem anos. 4,4 As propostas de um ensino textualista rem ontam à Escola H um anista (cf. supra, 174). 415 Cf. Silva, 1991, 365 ss.; H espanha, 1972. 336 António M anuel Hespanha história do direito em Portugal, tanto no plano do imaginário político-jurídico, como no das suas manifestações institucionais e práticas. D. Maria I, por sua vez, ataca directamente o problema da organização judiciária, extinguindo, em 1790-1792, as jurisdições dos donatários .416 Mas nem com isso ficou "perfeita" a justiça portuguesa, pelo que o tema dos seus "defeitos" continua pre­ sente nas primeiras décadas do século seguinte .417 Só as refor­ mas judiciárias do liberalismo (Reforma Judiciária, de 16 de Maio de 1832) irão atenuar estas queixas .418 . . O direito racionalista e as suas repercussões 7 4 A o fechar estes capítulos dedicados ao direito racionalis­ ta, justificam-se algumas considerações sobre o sentido dos seus temas maiores na história do pensamento jurídico e, mesmo, na história da sociedade europeia, bem como se justifica um relan­ ce sobre a sua sorte futura. Com o racionalismo, abrimos uma nova fase na história do direito europeu. Todavia, é incorrecto menosprezar alguns ele­ mentos de continuidade. Se pensarmos que uma das caracterís­ ticas mais destacadas da fase anterior - a fase do direito comum - 416 Cf. H espanha, 1995, 4.4. 41/ "P elo que respeita à fysionom ia, parece que a parte da jurisprudência que tem o nom e de cabala, chicana, rabolice he representada pela im agem de uma m ulher seca e m irrada, de olhos vesgos, unhas agudas, e rodeada de m on­ tes de papéis; um as vezes ella troca estes papéis por m ontes de ouro; ou­ tras devora choupanas e palácios; ora transform a-se em leão e lança-se com toda a avidez à presa, ora disfarçada em serpente insinua-se por debaixo das hervas; em fim, he um m onstro a quem os Reis nunca p oderão cortar as unhas; se algum a vez lhas ap arárão, logo lhe crescerão de novo. Deve este m onstro pois ser sofucado [...] Sei tam bém que he im possível acabar com todos esses juizes de direito, porquanto a E uropa está cheia, demasia­ do cheia de hom ens de lei" (D eputado M argiochi, em Diário das Cortes Geracs, 1821-3, 3621). 418 Sobre as reform as judiciárias do século XIX v. Gilissen, 1988, 504 s. (A. M. H espanha, "N o ta do trad u tor"). Cultura Jurídica Europeia 337 é a da constituição de um direito de tendência universalista, di­ fícil se torna deixar de encarar o jusracionalismo como uma úl­ tima fase (quiçá prolongada ainda na "pandectística " ) 419 do pe­ ríodo anterior . 420 Com o jusracionalismo realça-se, de facto, o carácter uni­ versal do direito. Ligada à "natureza humana" eterna e imutá­ vel, a regulamentação jurídica não depende dos climas ou das latitudes. Os "códigos" são, tendencialmente, universais, pelo que tanto podem ser feitos por um nacional como por um estran­ geiro e podem ser aplicados, livremente, como direito subsidiá­ rio ou mesmo principal de outros países. É isto que explica a ten­ dência para exportar os grandes códigos (nomeadamente o Code civil, de 1804; e, mais tarde, os códigos civis alemão, italiano e suíço) para áreas culturais totalmente estranhas à europeia, como a japonesa (com o reformismo Meiji, nos finais do século XIX), a chinesa (com o movimento ocidentalizador do 4 de maio de 1919) ou a turca (com a revolução de Kamal Ataturk). Este cosmopolitismo do direito e da própria legislação logo se atenua. Por um lado, com o "realismo" que logo cerca as pro­ postas "utópicas" da Revolução francesa, para o qual a razão se enraiza sempre em instituições concretas, ligadas a uma tradi­ ção jurídica particular e a uma sociedade concreta, com as suas instituições próprias. Por outro lado, com o surto nacionalista do romantismo. Então, fascinados pelos elementos tradicionais do direito nacional, os juristas vão reagir contra a importação de sistemas jusracionalistas. Isto acontece sobretudo, na Alema­ nha, onde F. C. v. Savigny ataca violentamente um projecto de código jusnaturalista de A. E. Thibaut (1772-1840) (que, no en­ tanto pretendia ser um compromisso entre o cosmopolitismo e o nacionalismo), com o fundamento de que a codificação "fixa­ va" um direito que devia ser, antes de tudo, vida e de que, os códigos universalistas do racionalismo eram puras abstracções, inaceitáveis pelo "espírito do povo" (cf. infra, 7.2.4.). 4,9 Cf. infra, 174. 420É o que faz Coing, 1967. 338 António Manuel Hespanha Todavia, das concepções iluministas muito se conservou ate hoje. Certos princípios, que foram então estabelecidos, conser­ vam um lugar central na actual teoria do direito: v.g., a afirma­ ção dos direitos individuais e o princípio da legalidade, nome­ adamente no domínio do direito penal. . . O direito racionalista em Portugal 7 5 No período pombalino, recebe se, a um tempo, a influên­ cia de correntes doutrinais que se vinham a desenvolver na Eu­ ropa desde o séc. XVI: • o "textualísmo" (= anti doutrinarismo, digitum ad fontet intendere) do humanismo; • a sistemática do racionalismo; • as novas ideias sobre a função do direito romano da es­ cola alemã do usus modemus pandectarum; • o individualismo e o contratualismo das escolas jusracionalistas, com grande influência na reconstrução de mui­ tos sectores do direito privado; • as inovações, sobretudo em matéria de direito público c ciência da administração, da cameralística alemã; • o humanitarismo italiano em matéria de direito e proces­ so penal. Todas estas influências dão frutos súbitos nas grandes re­ formas pombalinas: do sistem a das fontes de direito (lei de 18.8.1769, "Lei da Boa Razão"), do ensino jurídico (Estatutos Universitários de 1772: introdução, pela primeira vez, de uma cadeira de direito pátrio; de importantes institutos de direito privado; projectos de revisão das Ordenações dos finais do séc. XVIII ("Novo Código"). A tradição jurídica é sujeita a severa crítica; é reafirmando o carácter apenas subsidiário do direito romano, cuja recepção é sujeita à triagem da "boa razão"; bane se a autoridade de Bártolo e Acúrsio, bem como o uso do direi­ to canónico nos tribunais civis; procura se limitar a competên­ cia normativa (assentos) dos tribunais; remete se, em matérias estratégicas na "modernização" da sociedade e do Estado (di­ Cultura Jurídica Europeia 239 reito político, económico, comercial, marítimo), para a legisla­ ção das "Nações christãs, illuminadas, e pollidas". A influência deste complexo de tendências racionalizadoras e renovadoras, que é costume designar por "direito iluminista", prolonga se por toda a primeira metade do século XIX, graças ao impacte da reforma pombalina dos estudos jurídicos e dos compêndios (de Pascoal de Melo (1738-1798) [Institutiones iiiris civilis lusitani, 1789]) a que ela deu lugar. O advento do liberalismo (cujo património teórico e ideo­ lógico é, no domínio do direito, subsidiário do iluminismo) po­ tência ainda o movimento de renovação da ordem jurídica, cujo Leitmotiv é, então, a "codificação" (J. M. Scholz, 1982). A suces­ siva promulgação dos novos códigos (Comercial, 1833; Penal, 1837 e 1852; Civil 1867) e a influência da Escola da Exegese que­ bram o ímpeto renovador que a doutrina tinha tido na primeira metade do século (sobretudo, Manuel Borges Carneiro, José Fer­ reira Borges, José H. Correia Telles, Manuel A. Coelho da Ro­ cha, em que a exposição do direito positivo se acompanha de permanentes propostas de iure condendo). Sobretudo no domí­ nio do direito privado, sobrevêm então uma época positivista, voltada para a exegese (José Dias Ferreira) ou para a construção dogmático conceituai (Guilherme Moreira) (A. M. Hespanha, "Sobre a prática dogmática dos juristas oitocentistas", em A. M. Hespanha, A história do direito na história social, Lisboa 1978, 70 149, N. Espinosa G. da Silva, História..., cit.; Id., História do pen­ samento jurídico, Lições de 1981/1982 na Universidade Católica, Lis­ boa, polic., 1982). 7.5.1. Bibliografia Para o período iluminista e liberal, v., por todos, Nuno Es­ pinosa Gomes da Silva, História..., c it, 263 ss.; A. M. Hespanha, "Sobre a prática dogmática dos juristas oitocentistas", em A. M. Hespanha, A história do direito na história social, Lisboa 1978, 70 149; Homem, 1987;.Marcos, 1990; Subtil, 1996. Temas particu­ lares, António Resende de Oliveira, "Poder e sociedade. A legis­ 340 António Manuel Hespanha lação pombalina e a antiga sociedade portuguesa", em O Mar­ quês de Pombal e o seu tempo, Coimbra 1 9 8 2 ,1, 51 89; Luís Cabral de Moncada, "O 'século XVIII' na legislação de Pom bal", em Estudos de historia e direito, I, Coimbra 1948, 82 ss.; Mário Júlio de Almeida Costa, Debate jurídico e solução pombalina, Coimbra 1983; J. M. Scholz, "Gesetzgebung zum allgemeinen Privatrecht. Portugal", H. Coing, (ed.), Handbuch der Quellen und Literatur..., c it , III.l, 713 s.. 8 . O d ir e i t o n a É p o c a C o n t e m p o r â n e a A metodologia jurídica dos séculos XIX e XX conheceu di­ versas escolas. Em parte, elas respondiam a problemas e neces­ sidades internas ao saber e à prática do direito. Mas, em grande medida, elas reflectiam também as grandes temáticas sócio-políticas, filosóficas e metodológicas da época. Nos capítulos se­ guintes, serão descritas, sinteticamente, algumas delas. 8.1 . O contexto político Depois do seu período "programático e experimental" - des­ crito acima, sob a epígrafe jusracionalista (supra, 7.1.3.) -, a ordem política estadualista chega à sua fase de institucionalização. No plano jurídico, esta fase caracteriza-se pelo movimento legalista e, sobretudo, pela tendência codificadora. Os novos códi­ gos, se, por um lado, procediam a um novo desenho das insti­ tuições, correspondente à ordem social burguesa liberal, insti­ tuíam, por outro, uma tecnologia normativa fundada na gene­ ralidade e na sistematicidade e, logo, adequada a uma aplica­ ção do direito mais quotidiana e mais controlável pelo novo cen­ tro do poder - o Estado. Por fim, a ideia de reunir as leis em códigos sistemáticos e duradouros, correspondia também a essa ideia de aquele "cas­ co do direito" que agora se codificava constituía o núcleo nor­ mativo, perene e consensual, da vida em sociedade. Estadualismo (i.e., identificação da ordem social com a or­ dem estadual), certeza e previsibilidade do direito (i.e., legisla­ ção abstracta) e, finalmente, a fixidez e permanência de um nú­ cleo fundamental de princípios jurídicos (i.e., codificação), vão, assim, de braço dado, permitir a efectivação e a estabilização dos novos arranjos sociais, políticos e jurídicos. Os cem anos que decorrem entre 1750 e 1850 correspondem 342 António Manuel Hespanha ao período de instalação de uma nova ordem política e jurídica, a que se costuma chamar liberalismo. No plano do direito, realizam-se então os seus pressupostos estratégicos - instauração, por meios legislativos, de um novo paradigma de organização política (o Estado liberal-representativo) e de organização soci­ al ("liberalismo proprietário", i.e., identificação da propriedade como condição de liberdade e, logo, de cidadania activa), que a própria lei irá desenvolvendo nos seus detalhes institucionais.421 No plano dos grandes princípios, o novo direito estabele­ ce a liberdade, a propriedade e a igualdade perante a lei. Mas qualquer destes princípios tinha consequências institucionais concretas, que as leis civis e políticas iriam desenvolver. A garantia da liberdade pessoal422 tinha consequências direc­ tas e indirectas em vários domínios do direito. Fundava, desde logo e no domínio do direito constitucional, os direitos políticos e cívicos. Garantia, depois, a liberdade de trabalho e indústria, 423 libertando a iniciativa privada de todas as limitações antes impos­ tas ou pelo corporativismo medieval ou pelo mercantilismo. No direito das coisas, constituía a base da construção jurídica da pro­ priedade como direito ilimitado e inviolável. No direito dos con­ tratos, promovia o voluntarismo e punha termo às limitações éti­ cas e comunitárias ao poder de conformação da vontade sobre os conteúdos contratuais ("teoria da vontade" ,Willenstheorie, cf. in­ fra, 8.3.3.1), permitindo a usura, a desproporção das prestações contratuais, 424 a livre fixação dos preços e salários. A garantia da propriedade - que, como acaba de se ver, é uma extensão da garantia da liberdade - era entendida como o 421 Sobre a ordem jurídica liberal, v . , em geral, Arblasten, 1984, Arnaud, 1973, Costa, 1 9 7 4 ,1 9 8 6 , e C lavero, 1991. Para Portugal (aspectos político-ideológicos), Vieira, 1992; (aspectos constitucionais e jurídicos), J. G. Canotilho, "A s constituições", e Mário Reis M arques, "E struturas jurídicas", em Torgal, 1994, respectivam ente, 149-165 e 176-181; H espanha, 1990 (aspectos estruturais do sistèma político). 422 Cf. Carta constitucional, a rt°145, § 5. 423 Cf. Carta constitucional, art° 145, §§ 23 e 24. 424 Antes interditas pelo instituto da "lesão en orm e". Cultura Jurídica Europeia 343 "direito sagrado e inviolável [...] de dispor à sua vontade de to­ dos os seus bens, segundo as leis" ,425 A sua constitucionalização correspondia àquilo a que C. B. Macpherson chamou o "indivi­ dualismo possessivo": a propriedade como um direito natural e absoluto, livremente usufruível (liberdade de indústria) e li­ vremente disponível, ilimitável por direitos dos senhores (direi­ tos de foral), da comunidade (direitos de pastagem, de rotação de culturas, etc.) ou dos parentes (reservas hereditárias, vinculação). A garantia da igualdade 426 punha fim, por sua vez, a certos estatutos discriminatórios em matéria política (v.g., a exigência de nobreza ou de "lim peza de sangue" para acesso a cargos públicos); devia garantir, em princípio, o acesso de todos à par­ ticipação política (mediante o sufrágio universal); e fixava a igualdade na aplicação da lei, nomeadamente no domínio pro­ cessual (abolição tendencial dos foros privilegiados) e, sobretu­ do, penal, instituindo o princípio da igualdade das penas, inde­ pendentemente do estatuto do criminoso. Como se há-de ver, aqui e ali ao longo da exposição subse­ quente, qualquer destes princípios deparou com limitações, por vezes totalmente descaracterizadoras, no momento da sua con­ cretização constitucional ou legislativa. Sobretudo o princípio da igualdade. Não me refiro apenas à questão da não correspondência entre liberdades formais (i.e., garantidas pela lei) e liberdades materiais (i.e., concretizáveis no plano das relações sociais concretamente vigentes ) . 427 Trata-se de muito mais do que isso: ou seja, da instituição, pela lei, de estatutos discriminatórios, res­ tringindo drasticamente os direitos políticos e civis das mulhe­ res, dos não proprietários, dos nativos coloniais, dos ingressos em ordens religiosas, para não falar já de outras classes de in- 425 C o n stitu içã o de 182 2 , art0 6o; C arta co n stitu c io n a l, art0 145°, § 21°. 426 C o n stitu içã o de 1 8 8 2 , art0 9o; C arta co n stitu cio n a l, art° 145, §§ 12° e 15°. 427Questão que virá a ser central na crítica m arxista e pós-m arxista ao direito liberal (cf., in fra , 8 .5 .1 .). 344 António M anuel Hespanha terdições também elas social ou culturalmente marcadas (lou­ cos, falidos, jogadores, pródigos, menores). Por detrás destas li­ mitações - que, em termos políticos, reduziam dramaticamen­ te, a percentagem de "cidadãos activos" - ,m estão algumas idei­ as fortes, quer sobre a menor capacidade de engenho civil e po­ lítico do género feminino , 429 dos camponeses (rústicos) ou indí­ genas das colónias, quer sobre o modo como a qualidade de pro­ prietário condicionava a seriedade e o empenhamento das ati­ tudes políticas. Afinal, o modelo societário e político subjacente estava ainda muito dependente dos modelos tradicionais de uma sociedade patriarcal em que ao homem (e, por extensão, ao ho­ mem branco "civilizado") competia um poder de direcção so­ bre a "casa", como conjunto de familiares, de dependentes (de animais e de coisas ) . 430 Tão importante como o estabelecimento destes princípios é a sua estabilização legislativa (em códigos) ou doutrinal. Isto é, de uma forma ou de outra, em complexos normativos orgâ­ nicos que escapam à arbitrária volúpia legislativa dos governos e que, com isso, garantam a firmeza e a continuidade das trans­ formações político-sociais. "Propriedade! Propriedade! Centro da união social, quantas vezes não oscila incerta e quase tom a­ da nome pelo vão vício de leis multiplicadas e obscuras", cla­ ma-se, em Portugal, no Manifesto do Governo Supremo do Rei­ no, de 31.10.1820. Enquanto que, já nos finais do século, o juris­ ta português Júlio Vilhena estabelece um vínculo muito estreito entre a certeza do direito e a liberdade política: "a liberdade ci­ 428A lgum as estimativas do peso percentual dos cidadãos activos relativamente aos "nacion ais"de m aioridade apontam p aara taxas inferiores a 1 0 %. Cla­ ro que estes valores ainda baixam mais nos territórios em situação colonial ou pós-colonial (v.g ., os países latino-am ericanos, sobre os quais, cf. Clavero, 1993; 2000). ■“ Cf., sobre a im agem da m ulher no direito tradicional europeu, de que há fortes resíduos no período liberal, H espanha, 1994e. ^ S o b re o modelo tradicional da "casa gran d e" (ganze Haus), cf. Brunner, 1968b; para a época contem porânea, num a situação colonial, m as susceptível de extensão à sociedade cam ponesa europeia, Freyre, 1933. Cultura Jurídica Europeia 345 vil, irmã gémea da liberdade política, não encontrava na redac­ ção obscura da lei, nem na variedade das interpretações, garan­ tias para o seu exercício " . 431 E justamente a esta tensão entre o princípio democrático do primado da vontade constituinte e a aspiração pela estabilida­ de social e jurídica, em torno de princípios estáveis e indisponí­ veis de ordenação social que dedicaremos o próximo número. 8 .2 . Entre vontade e razão 8.2.1. Democracia representativa e legalismo O princípio democrático de que o poder tem origem no povo e deve ser por ele exercido, é uma consequência muito clara da ideia de contrato social, tal como ela foi descrita antes (cf., supra, 7.2.1.). De forma mais ou menos pura, ele vem enformar as revoluções políticas que ocorreram, primeiro, na América do Norte (1776) e em França (1789) e, depois, na generalidade dos países europeus (em Portugal, 1820).432 O princípio democrático vem estabelecer que a única legi­ timidade política é a legitimidade proveniente da vontade po­ pular, manifestada pelos seus representantes eleitos através das votações nos órgãos representativos (por excelência, os parla­ mentos). A hegemonia política absoluta do parlamento - com a con­ sequente concentração nele de toda a capacidade de criar direi­ to - decorria do princípio da soberania do povo. Mas, para além desta justificação teórica, tinha ainda a vantagem "prática" de ser a única forma de evitar a "degenerescência da democracia". Por um lado, impedia a tendência de todas as elites políticas 431Julio Vilhena, Problemas do direito moderno, Coimbra, 1873, cit. por Scholz, 1976,7 45. 432Sobre tudo quanto se segue, de m odo conciso e exem plar, Fioravanti, 1999 ou A lvarez Alonso, 1999. V. ainda, para pontos de vista "fortes", Cia vero, 1991; exposição de conjunto, Renault, 1999. 346 António M anuel Hespanha (mesmo as democraticamente eleitas) para, paulatinamente, se apropriarem do poder político que lhes está delegado, facto a que foram sensíveis, ao longo dos últimos dois séculos, pensa­ dores políticos que vão de Rousseau 433 a Trotski434 ou a Maozedong .435 Por outro lado, constituía a forma mais segura de ga­ rantir que o interesse prosseguido (a felicidade buscada) era o "interesse geral" ou a "felicidade para o maior número", utili­ zando duas formulações - uma de Rousseau e outra de Bentham - utilizadas para justificar a supremacia absoluta do parlamen­ to ("jacobinismo " ) . 436 Perante a legitimidade democrática deviam curvar-se to­ das as antigas formas de legitimidade, desde a legitimidade do direito divino à oriunda da tradição. No plano das fontes de direito, este princípio elevava a lei parlamentar - expressão da "vontade geral" - à dignidade de fonte primeira, se não única, de direito. Ela era o produto da (i) vontade popular e, para mais, de uma (ii) vontade geral, de todo o povo. liberta de despotismo e de espírito de facção, que, por­ tanto, (iii) exprimia o interesse geral e (iv) explicitava as ambi­ ções mais generalizadas de felicidade. Mais tarde - mas já num outro contexto político a que nos referiremos, outros dirão, a seu favor, que a lei é a fórmula que racionaliza interesses privados divergentes, que consubstancia o interesse público, que expri­ ':33Pessimisticamente, Rousseau diagnosticava um princípio de corrupção ine­ rente a todas as sociedades políticas: a vontade geral, que instituía a liber­ dade civil e expulsava o despotism o, estava em perm anente risco de dege­ nerar de novo em "von tad e particular" (e, logo, de "facção "[term o centtral no vocabulário dem ocrático oitocentista], despótica), se não existisse um permanente controlo do executivo pela representação nacional (cf. Fioravanti, 1999, 82 ss.). 434Com a sua ideia de "revolu ção na revolução" (ou "revolução perrm anente"), pondo em causa as elites revolucionárias estabalecidas. 435Ao lançar a "revolução cultural" (prim avera de 1966) contra o aparelho do próprio Partido Comunista. 416Sobre a insistência de Bentham no princípio do controle dem ocrático como forma de garantir a busca da felicidade geral, v. Code constitutionnel, 1830 (cf. Rosen, 1983). Cultura Jurídica Europeia 347 me normas socialmente consensuais. Mas isto já são ulteriores desenvolvimentos do legalismo, muitos deles em reacção a esta justificação democrático-jacobina do absolutismo da lei (Paolo Grossi). Perante a lei, o costume (antes legitimado pela tradição) devia ceder. De alguma forma, ele manifestava - como de há muito se dizia - um "consentimento tácito do povo" e, por isso, podia ser entendido como um "plebiscito de todos os dias". Por isso, os costumes não foram liminar e automaticamente ab-rogados; só que não podiam valer contra a lei parlamentar, essa forma expressa e regulada de o povo manifestar a sua vontade. De resto, na constituição do costume interviera uma Nação con­ cebida trans-historicam ente, feita de passado e presente, de mortos e de vivos. E, agora, a Nação tendia a ser identificada com o povo actualmente existente, capaz de votar e eleger. Como veremos, outros dirão que, justamente, esta é uma ideia muito redutora de Nação, cujos valores e cujo espírito não são propri­ edade da geração presente (cf., infra, 8.3.2. ); mas isto constitui já um ponto de vista crítico sobre o democraticismo jacobino. Também a jurisprudência (legitimada pela competência técnica dos juizes) devia ceder. Pois, de acordo com o princípio democrático, a legitimidade dos juizes é somente indirecta, de­ correndo apenas do facto de se tratar de um poder previsto na Constituição. Para além de conter este vício de origem, a jurisprudência era ainda passível de uma crítica política. Realmente, pelo me­ nos na Europa, a Revolução tinha sido feita também contra a ti­ rania dos juizes que, apoiados no carácter casuísta e flexível do direito tradicional (cf. supra, 5.6., 7.3.), tornavam o direito num saber hermético, cujos resultados eram imprevisíveis e incontroláveis pelos cidadãos. E, assim, os movimentos reformistas da segunda metade do século XVIII (v.g., Luigi Muratori, o Marquês de Beccaria e Gaetano Filangieri, em Itália; ou Luís António Verney e Pascoal de Melo, em Portugal, dirigiam-se, antes de tudo, contra o "governo arbitrário", sendo que nesta ideia de gover­ no arbitrário se compreendiam tanto a autocracia dos soberanos 348 António M anuel Hespanha como a arbitrariedade dos tribunais. No Sul da Europa (Itália, França e Península Ibérica), esta última componente tinha sido ainda mais forte, suscitando um movimento de crítica à incer­ teza e hermetismo do direito doutrinal e jurisprudencial e recla­ mando leis claras e reformas judiciárias que amarrassem os jui­ zes ao cumprimento estrito da lei. Daí que o legalismo e a des­ confiança no direito jurisprudencial - que já vinham de trás e ti­ nham marcado a política do direito do Estado absoluto - se te­ nham transformado em componentes essenciais das propostas revolucionárias .437 Pois, se havia lugar a falar nos perigos do "espírito de facção", era decerto legítimo fazê-lo em relação aos juristas e aos juizes, tanto como em relação aos funcionários ou às elites políticas .438 Princípio democrático e sensibilidade anti-" letrada" expli­ cam que - no contexto europeu (mas não no contexto america­ no)439- as decisões dos juristas e os veredictos dos juizes sejam tidos em suspeição e as suas decisões não possam senão visar a aplicação estrita da lei; agora, os juizes não são mais do que a "longa mão da lei", a "boca que pronuncia as palavras do legis­ lador". Acresce que, de acordo com o princípio da separação dos poderes, form ulado por M ontesquieu e geralmente (embora também variamente) adoptado pelos novos Estados constituci­ onais, os poderes se deviam respeitar mutuamente, não interfe­ rindo nas competências uns dos outros. Por isso, a edição do direito, entendido como manifestação da "vontade geral", de­ via ser exercitada em exclusivo pelo poder legislativo, sem in­ terferência dos outros, nomeadamente do poder judicial. E pre- 437 Referência bibliográfica básica: La torre, 1 9 7 8 ,1 5 3 -1 5 4 ; W ieacker, 1 9 9 3 ,5 2 4 527; sobre o reform ism o judiciário, R. Ajello, 1976, maxime, 275-360. 438Esta reacção contra os "letrad o s" explica a sim patia de que gozaram , num e noutro liado do Atlântico, as figuras dos juizes eleitos e dos jurados; em ­ bora, na E uropa, o legalismo estadualiista tenha limitado progressiva e se­ veram ente m esm o estas form as mais "p o p u lares" de justiça (cf. Clavero, 199 1 ,8 1 ss..). 439Cf. Clavero, 1991, Ioc. cit.; C lavero, 1997. Cultura Jurídica Europeia 349 ciso cruzar o Atlântico ou, na Europa, chegar quase aos nossos dias, para encontrar concepções de Estado e de direito que atri­ buam aos juizes um papel activo na criação do direito ou, inclu­ sivamente, no controlo da legitimidade das leis. A este modelo de uma constituição criada (ou, melhor, revelada, declarada, posta em prática) pelos juizes chamou-se "Estado judicial" (Richterstaat); mas não é a esta constelação de ideias democráticojacobina que ele pertence, mas antes a uma outra, em que o di­ reito é anterior às (e irrevogável pelas) assembleias representa­ tivas .440 Também a doutrina deixa de ter legitimidade para fazer construções autónomas, fundadas na "natureza das coisas", ou nos princípios da razão, como aquelas que tinham constituído o cerne do direito desde as escolas medievais. E que tais cons­ truções eram direito porque se aceitava que uma das fontes de legitimidade deste era a autoridade técnica ou doutrinal dos es­ pecialistas, capazes de revelar um direito que residia nas pró­ prias coisas ou nos princípios abstractos da razão. Agora, no contexto do novo Estado democrático, a única função legítima da doutrina é - em contrapartida - a de descrever a lei, de a in­ terpretar (se possível, de acordo com a vontade do legislador histórico - interpretação subjectiva) e de integrar as suas lacunas, propondo aquela norma que o legislador histórico, se tivesse previsto o caso, teria formulado. Em alguns casos extremos, a interpretação doutrinal chegou a ser proibida, determinando-se o recurso à interpretação autêntica, ou seja, à interpretação le­ vada a cabo pelo próprio órgão legislativo (référé législatif). Para esta perspectiva, todo o direito se reduz à lei, deixan­ do de ser reconhecidas não só quaisquer outras fontes de direi­ to, como quaisquer princípios supra-legislativos a que a lei deva obedecer. Como se verá em breve, este filão legalista-democrático, que é o sintoma jurídico do voluntarismo no plano da filo­ sofia política, tem que conviver, durante estes dois séculos, com ^ S o b re a oposição entre os modelos de constituição "estadualista" ou "con s­ tituição de direitos", Clavero, 1991. 350 António Manuel Hespanha um filão de sentido oposto - que se pode dizer ser o sintoma de várias formas de anti-voluntarismo no plano da filosofia políti­ ca -, sublinhando os limites postos à lei ou pelos "direitos origi­ nários", ou pelo "governo sábio", ou pela "sensibilidade co­ mum", ou pela "natureza das coisas", ou pela força dos valores ou das ideias, ou pela "vida quotidiana". Neste contexto legalista, a ideia de "código" é ambivalen­ te. Por um lado, o "código", como conjunto compactado, sim­ ples, harmónico e sistemático de preceitos normativos, favore­ ce o conhecimento da lei pelos cidadãos e, por isso, potência o controlo destes sobre o direito, inserindo-se assim numa proble­ mática anti-judicialista claramente jacobina. Mas, por outro lado, o "código" constitui um "m onum ento jurídico" que aspira à permanência, ã incarnação da estabilidade da razão jurídica, à corporização dos consensos profundos. E, nesse sentido, preten­ de resistir ao ritmo frenético das decisões parlamentares. E, na verdade, os grandes códigos do séc. XIX - com destaque para o Code Napoléon, de 1804, e o Código Civil Alemão [Bürgerliclíes Gesetzbuch, B.G.B.], de 1900 - têm resistido (pelo menos formal­ mente) ao tempo e às mudanças de regime. Mas, ao pretender este carácter não efémero, a actividade codificadora está a pre­ tender colocar-se num plano superior ao da legislação ordiná­ ria, continuamente reapreciável pelos representantes do povo .441 Alguns dirão, mais tarde que o código é, assim, um produto do trabalho de racionalização das paixões ou dos actos de arbi­ trário voluntarismo dos legisladores, levado a cabo ou pelo sen­ tido público do Estado ou pela ponderação lenta e decantada dos juristas, proporcionando um património de soluções jurídicas fundadas em valores estáveis e consensuais (num idem sentire) . 442 Mas este entendimento pertence já, também ele, a um filão do pensamento político que não é o do democratismo jacobino (cf.infra, 8 .2 .1 .6 ). 441Sobre a problemática da relação entre codificação, direitos individuais, Es­ tado e soberania popular, v., muito agudo, C lavero, 1991, maximc, 81 ss.. 442Cf., rem etendo para um a obra clássica de Cari Schmitt, A m aral, 1996. Cultura Jurídica Europeia 351 8.2.1.1. “Razão jurídica” us. “razão popular” Se há algo que caracteriza o pensamento jurídico dos últi­ mos dois séculos é a sua multiforme reacção contra o domínio do exclusivo da criação do direito pela vontade popular, imedi­ ata e continuamente expressa nas assembleias constituídas pe­ los representantes directos do povo. Se lermos a história do direito como a história de um dis­ curso que exprime o poder social de um grupo ou de especialis­ tas - como o fez P. Bourdieu 443 - este facto não é estranho. No fundo, tratar-se-ia, para os juristas, de salvaguardar um mono­ pólio de dizer o direito, que sempre lhes pertencera e de que a fase mais radical da Revolução francesa (que, em termos cons­ titucionais, se exprime no projecto de Constituição de 1791) os tentara expropriar. No entanto, a explicação parece ter que ser mais vasta, pois nesse esforço de "des-dem ocratização" (lioc sensu) do direito colaboraram também políticos e intelectuais. Neste sentido, a explicação podia provir antes de uma tendência de mais longo curso no sentido de salvaguardar para uma elite cultural (gros­ so modo, os intelectuais, os políticos) aquele poder constituinte que a filosofia política vinha, desde o séc. XVII, entregando nas mãos do povo. Estaríamos, então, perante um dos paradoxos típicos do pensamento político democrático europeu. Por um lado, a filosofia política atribui à vontade dos membros da soci­ edade o poder de estabelecer as regras da convivência social. Mas, por outro lado, essa mesmo filosofia estabelece tais requi­ sitos para a validade política dessa mesma vontade - i.e., para que a vontade seja "racional" e não "arbitrária", para que seja "vontade" e não "paixão" - que apenas muito poucos a podem legitimamente exprimir .444 443Cf., maxime, Bourdieu, 1986. 444Este processo de expropriação do poder constituinte por um pequeno g ru ­ po de intelectuais foi magistralm ente descrito por Zygm und Baumann (Baum ann, 1987). 352 António Manuel H espanha Foi, porventura, Benjamin Constant (1767-1830) quem pri­ meiro e mais claramente definiu esta angústia liberal perante a democracia, ao explicar que a "liberdade dos modernos" não é, como a dos "antigos", a liberdade de participar (directamente) na constituição da ordem jurídica, mas a de manter uma reser­ va de liberdade pessoal em relação a qualquer ordem jurídica, qualquer que ela seja: "Perguntai antes demais, meus Senhores - propunha, em 1819, Constant aos membros do Athénée Royal - o que é que um inglês, um francês ou um americano entendem hoje pelo termo "liberdade". Para qualquer deles é o direito de não estar sujeitos senão às leis, de não poder ser preso nem de­ tido, nem condenado à morte, nem maltratado de qualquer for­ ma pela vontade arbitrária de um ou mais indivíduos. E, para qualquer deles, o direito de dar a sua opinião, de escolher a sua indústria e de a exercer; de dispor da sua propriedade ou de abusar dela; de se deslocar, sem necessitar de autorização, e sem ter que dar conta dos seus motivos ou actividades. E, para qual­ quer deles, o direito de se reunir aos outros indivíduos, quer para discutir os seus interesses, quer para professar o culto que ele e os seus associados preferirem, quer simplesmente para passar . os seus dias e as suas horas de uma maneira mais conforme às suas inclinações e às suas fantasias. Por fim, é o direito, para qualquer deles, de exercer influência sobre administração do Governo, quer no plano da nomeação de todos ou de alguns funcionários, quer por meio de representações, petições, pedi­ dos a que a autoridade é mais ou menos obrigada a prestar aten­ ção. Agora, comparem esta liberdade com a dos antigos. Esta consistia em exercer colectiva e directamente vários aspectos da soberania: deliberando, na praça pública, sobre a paz e a guer­ ra, da constituição de alianças com governos estrangeiros; vo­ tando leis; pronunciando julgamentos; inspeccionando os actos e os préstimos dos magistrados e convocando-os para compa­ recerem perante a assembleia do povo, acusando-os, condenan­ do-os ou absolvendo-os. No entanto, se era a isto que os antigos cham avam liberdade, eles admitiam como compatível com esta liberdade colectiva a completa sujeição do indivíduo à autori­ dade da comunidade. Não encontramos no seu mundo nenhum Cultura Jurídica Europeia 353 dos gozos que acabamos de enumerar como fazendo parte da liberdade dos modernos" (B. Constant, The liberty ofthe ancients compared with that ofth e modem s, 1819).445 Mas, para Constant, a liberdade dos antigos era, além do mais, um fardo insuportável para o homem moderno, dado ao comércio e à indústria, ocupado nos afazeres sua vida privada, sem tempo nem disposição para uma devoção às coisas públicas tão intensa que o privasse da satisfação dos seus gozos privados. Daí as vantagens de um sistema de representação política que delegasse, quase definitivamente, em poucos aquilo de que a multidão não queria mais ocupar-se. Este era o sistema representa­ tivo, em que uns poucos políticos profissionais, escolhidos pelo povo, desobrigavam o comum dos cidadãos de se ocupar do in­ teresse colectivo. Se não fora a tendência dos representantes para se desviarem da cura do interesse público, bem como o perigo de um prejudicial desinteresse de todos pelo governo da república,446 a delegação de poderes bem poderia ser definitiva. Neste discurso, Benjamin Constant apresenta o sistema re­ presentativo sobretudo como uma forma de desonerar a massa dos cidadãos de um encargo que a complexificação das socieda­ des tomara incómodo. E não como o resultado necessário de uma incapacidade do cidadão comum para decidir sobre o interesse geral. No entanto, tanto ele - noutras obras -, como outros auto­ res, eram menos optimistas quanto às capacidades legiferantes e de governo das massas populares. Daí que diversos filões do pen­ samento político contemporâneo se tenham dedicado a explicar porque é que o povo não podia constituir livremente direito (atra­ vés do voto dos seus representantes eleitos) e a imaginar sistemas que prevenissem que isto, de facto, pudesse acontecer. 8 .2.1.2. Tradição. Um desses filões é o da valorização da constituição e do direito como legados da tradição, apenas modificáveis ou actu­ 445Em Fontana, 1988, 311. 446Cf. Md., 326. 354 António Manuel Hespanha alizáveis pelos processos de evolução "natural" das sociedades. Tratava-se, na verdade, de reeditar o pensamento social, políti­ co e jurídico mais tradicional da Europa (cf. supra, 4.2.), que tam­ bém já fora oposto pelas correntes conservadoras ao reformis­ mo iluminista e pós-iluminista e, por estas, ao pensamento li­ beral.447 No plano da filosofia política, o mais característico de­ fensor deste ponto de vista é o irlandês Edmund Burke (17291797; Reflexions on the Revolution in France, 1790), para quem a Revolução, fundada numa falsa ideia de que a constituição (e, por extensão, o direito) pode ser o produto de um contrato, ti­ nha destruído a constituição histórica da França, subvertendc toda a verdadeira ordem social e política ("aquela antiga cons­ tituição 448 que representa a nossa única garantia, a certeza das nossas leis e das nossas liberdades" ) . 449 Esta ideia de Burke acerca da ilegitimidade de uma alteração decisionista, momentânea, revolucionária, da constituição radicava, de facto, numa outra ideia sobre a soberania: esta não era propriedade de uma gera­ ção, mas antes detida apenas por uma tradição de muitas gera­ ções; neste sentido, o princípio de que "a soberania reside na Nação" só é verdadeiro se se entender a Nação como uma reali­ dade trans-histórica, feita de passado, presente e provir, de que a geração presente não é senão uma concretização efémera e, poi isso, desprovida de poderes constituintes. “ E m Portual, por exem plo, é esta a linha de ataque de Pascoal de Melo Freire às críticas, de sentido proto-liberal, apresentadas por António Ribeiro dos Santos ao seu projecto, ainda assim francam ente reform ista, de um Novo Código de Direito Público (1796) (cf., por último, H espanha, 2001). 448Burke está a referir-se à constituição tradicional inglesa, para a qual ele pro­ punha - um tanto paradoxalm ente - uma reforma de sentido parlamenta­ rista; cf., sobre a consttituição tradicional inglesa e a história da sua evolução de um modelo de governo "equilibrado" (expresso na conjunção do princí­ pio monárquico [rei], aristocrático [Câmara dos Lordes] e democrático [ Câ­ mara dos Comüns]) para um modelo parlamentarista, com o apagamento do poder autónomo do rei e a instauração do principio da responsabilidade ex­ clusivamente parlamentar do governo, v. Fioranvanti, 9 7 -9 8 ,1 9 9 9 ,1 0 0 . 449Langford, 1989, vol. 8. Sobre Burke, Fioravanti, 1 9 9 9 ,1 1 8 . Cultura Jurídica Europeia 355 No continente, o romantismo alemão gerava ideias seme­ lhantes. Friedrich Cari von Savigny (1779-1861) tinha uma ideia idêntica acerca da origem do direito, que proviria, não de pac­ tos constitucionais ou de vontades de legislar, mas do "espirite do povo" (Volksgeist), expresso nas suas instituições e manifes tações culturais históricas e captável por meio de uma auseul tação das tradições jurídicas, a cargo das elites cultas (nomea damente, dos académicos) (v. infra, 8.3.2.). Como adiante se diré estes pontos de vista vão promover uma preferência pelo direi to tradicional em detrimento do direito legislativo. Mas nem po isso vão optar pelo direito popular (Volksrecht), tal como era sen tido nas vivências jurídicas espontâneas. Mas antes pelo direit corporizado na tradição do direito letrado, judicial ou académi co (Professorenrecht), recolhendo assim, na Alemanha, a antig tradição pandectística (cf. supra, 6.3.2.), que os juristas da Escc la Histórica Alemã agora liam no contexto da mundividênci social e política do séc. XIX. Esta ideia de que as instituições, os factos e arranjos con eretos da vida social, constituem a verdadeira constituição e < verdadeiro direito, fundamentalmente inabalável pelos golpe de vontade do legislador não é um monopólio da Escola Histó rica Alemã. Vamos encontrá-la, sob vestes diversas e durant todo o século XIX e mesmo no séc. XX, a fundamentar um larg< leque de doutrinas críticas em relação às ideias de contrato sc ciai e de soberania popular. Para estas correntes - que incluen no século XIX, as várias escolas sociológicas e "realistas" (cf. in fra, 8.4.4.), bem como o marxismo (cf. infra, 8.5.1. e 8.5.2.), e, n< séc. XX, conceitos como o de "natureza das coisas" (Na tur de Sache, cf. 8.6.2.) e de direito do quotidiano (cf. infra, 8 .6 .4.1) - tai ideias não podem deixar de ser consideradas como "ficções ju rídicas" (J. Bentham), divagações metafísicas (A. Comte, L. Du guit) ou mistificações ideológicas (K. Marx). O direito devia se antes procurado na vida (direito vivido, lebendiges Recht, E. Ehr lich; laxo in action, J. Austin: everyday life laxo ), nos agregados so ciais surgidos espontaneamente da divisão do trabalho e da so lidariedade social ("instituições"). 356 António M anuel Hespanha 8.2.1.3. Direitos individuais Para outras correntes, as forças que criavam o direito - e que, portanto, resistiam à sua modelação livre pela vontade soberana do povo não eram as coisas, mas os valores ou as ideias. Valores eram, desde logo, os direitos naturais dos indivídu­ os, anteriores ã lei positiva e cuja protecção e manutenção tinha constituído a verdadeira razão do estabelecimento da sociedade civil (ou política) e, portanto, do Estado e da lei (cf. supra, 7.2.1.). Na origem desta tradição estava, como já se viu, o constitu­ cionalismo inglês, 450 com o seu ideal de um governo limitado pe­ los direitos (embora desiguais) dos corpos do reino e equilibrado por mecanismos de compensação de poderes. O bom governo consistiria, então, sobretudo no estabelecimento (i) de uma regra explícita e estável (uma standing rule) sobre o modo de dirimir conflitos de direitos, (ii) de uma instância de julgamento desses conflitos de acordo com tal regra e (iii) de órgãos capazes de im­ por estes julgamentos. Para que o sistema se não perverta, animan­ do os governantes a ir além dos seus estritos limites de guardiões dos direitos, estas três funções deviam estar separadas, compe­ tindo a poderes distintos. São estas, basicamente, as ideias já con­ tidas in ovo no republicanismo inglês (v.g., James Harrington, 16111677; The commonwealth o f Oceania, 1656), mas expressas, de for­ ma acabada, por John Locke (1632-1704, Two treatises on civil govemment, 1790), ao qual corresponde em muito, no continente, o barão de Montesquieu (1689-1755; Esprit des lois, 1748). O que aqui importa destacar é, sobretudo, o facto de, nes­ tes autores, a verdadeira constituição (e, por isso, o núcleo mais fundamental do direito) residir na espontânea combinatória dos direitos individuais, sendo, portanto, anterior e independente de qualquer poder constituído, mesmo que ele fosse uma assem­ bleia representativa. Qualquer intromissão dos poderes consti­ tuídos nesse livre jogo dos direitos individuais, que ultrapassas­ se os limites de tornar clara e estável a regra da sua compatibili- 450Sobre o constitucionalism o inglês, C lavero, 1997; Fioravanti, 1999. Cultura Jurídica Europeia 357 zação, seria, portanto, abusiva e despótica, ainda que ela provi­ esse de um órgão representativo .451 Abusiva fora, na opinião dos colonos ingleses na América do Norte, a intromissão (nomeadamente, fiscal) do Parlamento inglês, não apenas por este órgão carecer de representatividade em relação aos colonos, mas sobretudo porque violava esse livre jogo dos direitos individuais, tão evidente numa sociedade "de fronteira" como era a sociedade colonial. Daí que a ideia liberal de um Estado reduzido ao mínimo necessário para garantir di­ reitos pre-existentes se tenha tomado muito e evidente e popular no constitucionalismo norte-americano, limitando notoriamente outra ideia central da revolução americana, que era a ideia da so­ berania do povo - ou seja, o princípio democrático .452 A compatibilização destas duas ideias foi levada a cabo pelo princípio "republicano" de um governo limitado. Limitado, des­ de logo, pela instituição de uma série de poderes e contra-poderes no topo do Estado (bi-camaralismo, veto presidencial, con­ trolo judicial da constitucionalidade das leis). Mas limitado, tam­ bém, pelo princípio federal, que, embora dotando a União de órgãos políticos centrais fortes (nomeadamente, um presidente dotado de reais poderes), mantinha uma extensa reserva de au­ tonomia aos governos estaduais. Este modelo liberal - teoriza­ do, sobretudo, por Alexander Hamilton (1755-1804) e James Madison (1751-1836)453- introduziu no mundo jurídico-político uma ideia nova, a do controle constitucional das leis, a cargo do poder judicial. E, com isto, construiu uma moldura jurídica con­ creta e eficaz para limitar, no plano jurídico (e não apenas no plano político) a actividade legislativa (das assembleias repre­ sentativas). Mas, com isto, voltava a entregar aos juristas a última pa­ lavra sobre o direito constituído. Embora, no caso americano, se tratasse de uma magistratura electiva e actuando nos limites de 451Sobre o liberalismo clássico, C lavero, 1991; 1997; muito boa sínttese, Fioravanti, 87 ss. 452Sobre o constitucionalismo nnorte-am ericano, v. Clavero, 1997. 453Publicam, em com um , The Federalist, 1788. 358 António M anuel Hespanha uma constituição estabelecida democraticamente (a Constitui­ ção de 1787, algumas vezes emendada). Na verdade, é justamen­ te esta legitimação democrática, quer da Constituição, quer da magistratura , 454 a grande novidade do constitucionalismo ame­ ricano em relação a algum controle judicial da actividade polí­ tica que fazia também parte da tradição inglesa. O liberalismo jurídico norte-americano não deixou de in­ fluenciar o pensamento jurídico e a política do direito na Euro­ pa continental; na verdade, mais no que respeita ao carácter li­ mitado do governo do quanto à solução de um direito quase autonomamente jurisprudencial (judge made law). A ideia do carácter limitado do governo soava familiar aos ouvidos dos europeus. Por um lado, fora esse o modelo tradici­ onal de governo, unicamente apostado em "fazer justiça", ou seja, dirimir conflitos entre particulares (cf., supra, 4.2. ). Num contexto mais próximo da teoria liberal (mas ainda muito depen­ dente de concepções mais antigas), M ontesquieu renovara o tema, insistindo no equilíbrio que devia existir entre, por um lado, o Estado e os "corpos intermédios" e, por outro, entre os poderes constitutivos do Estado ("teoria da separação e indepen­ dência dos poderes"). Foi, no entanto, a experiência da primeira fase da Revolu­ ção francesa, com a sua prática de concentração de todos os po­ deres numa Assembleia Nacional ("governo de assembleia"), que, para mais, se concebia como soberana e absoluta, reavivou 454Realçada, sobretudo, por Thomas Paine (1737-1809; Rights ofman, I-II, 17911792). Por sua vez, as concepções sociais de A dam Smith (1723-1790) - ao inisistirem nos mecanism os naturais da convivência - nom eadam ente no domínio da econom ia (a famosa "M ão invisível") - reconstruíam de uma forma nova ideias antigas sobre a auto-regulação da sociedade e sobre os perigos de um dem asiado intervencionismo governativo. A o contrário dos teorizadores iluministas do Estado de Polícia (Polizeistaat) - que preconiza­ vam uma detalhada regulam entação da sociedade pelo Estado - as corren­ tes fisiocráticas e liberais propunham um modelo diferente de governabili­ dade, em que o Estado deixava livres os mecanismos naturais de regulação, contando com a eficácia do controlo social de que estes dispunhma. Cultura Jurídica Europeia 359 em. muitos a necessidade de se evitar este novo despotismo, reinsistindo-se tanto na prevalência dos direitos originários sobre a vontade dos eleitos do povo (governo "liberal") como na ne­ cessidade de dividir e equilibrar os poderes de Estado (governo "moderado"). Ao mesmo tempo, porém, as necessidades de regulamen­ tação de uma sociedade cada vez mais complexa, já sentidas desde a segunda metade do séc. XIX, remavam justamente no sentido contrário. Ao Estado, cada vez são pedidas mais tare­ fas, de fomento, de educação, sanitárias, de cadastro e de regis­ to, de protecção social, de regulamentação do trabalho. Tudo isto requer - justamente ! - mais administração pública, mais recur­ sos fiscais, mais funcionários, mais regulamentos, mais invasão da vida quotidiana. Talvez não tanto naqueles aspectos cruci­ ais das liberdades que os sécs. XVII e XVIII tinham identifica­ do, mas em coisas, tão comezinhas, como quotidianas e enervan­ tes, como o requerimento, a selagem, a vistoria, o registo, etc .455 A segunda questão - em que se destacam o e Benjam in Constant (1767-1830)456e de Alexis de Tocqueville (1805-1859)457 - interessa mais à teoria política. 455H espanha, 2004. 456Constant foi o teorizador da C arta constitucional francesa de 1814, o u to r­ gad a por Luís XVIII, depois do esm agam ento do processo revolucionário pelos exércitos da Santa Aliança ( P rin cip es de p o litiq u e [...], 1815; outra bi­ bliografia em Fontana, 1988, 329 ss.). C o m o c r ia s e r perigosa a tendência p ara a hegem onia do parlam ento que resultaria do princípio da exclusiva responsabilidade parlam entar do governo, Constant introduz o conceito de mais um poder - o poder m od erad or -, dispondo do direito de vetar as leis, de dissolver o parlam ento e de designar o executivo. O poder m oderador foi introduzido em algum as constituições europeias da "segunda g eração ", com o a C arta C o n stitu cio n a l portuguesa de 1826. 457P ara Tocqueville, a m oderação do governo não decorria tanto do equilíbrio dos poderes quanto da estruturação da sociedade civil em corpos e o rg a­ nism os autónom os, que constituíssem "n o v as aristocracias" (intelectuais, empresariais, proprietáarias) que à maneira das do Antigo R e g im e , m as com um a m atriz aagora m eritocrática, constituíssem contra-poderes, evitando a invasão da sociedade civil pelo p oder burocráticos do Estado (L 'A n cien R ég im e et la R év o lu tion , 1856). 360 António M anuel Hespanha A primeira, por sua vez, é muito relevante para a teoria do direito, pois diz respeito ao problema da origem do direito (com­ binatória dos direitos individuais originários ou vontade do povo expressa na lei do Estado), bem como com à hierarquia relativa entre duas das mais importantes fontes de direito na época contemporânea - a constituição e a lei (tema que aborda­ remos num outro número, cf. infra, 8 .2 .1 .7). Na Europa continental pós-revolucionária, a oposição dos direitos originários à omnipotência parlam entar foi um tema relativamente comum. Mas talvez quem o tenha desenvolvido num sentido mais pleno, muito influenciado pela experiência norte-americana, tenha sido Tocqueville, ao salientar os perigos que resultariam da tendência, que cria já sensível na Europa, de desenvolvimento de uma burocracia estadual tentacular, que invadiria e condicionaria as esferas de liberdade dos indivídu­ os (L'Ancien Régi?7ie et la révolution, 1856). Esta linha de argumen­ tação atinge o clímax na sua violenta diatribe contra o que con­ siderava ser o socialismo embrionário da constituição francesa de 1848, enquanto nela se pretendia a consagração do direito ao trabalho e aos socorros públicos (Discours sur le droit au travail, 1848).458 A barreira contra uma tal consunção da política pelo Estado (e consequente despolitização da sociedade civil) não podia vir de dentro do Estado , 459 mas apenas da própria socie­ dade civil. Não seguramente das massas de cidadãos, uma mai­ oria amorfa e despolitizada, mas da "nova aristocracia civil", constituída pelas associações de interesses ou pelos líderes na­ turais, a que uma imprensa livre poderia dar voz e opor às ten­ dências totalitárias do Estado. Esta desconfiança em relação ao Estado, que caracteriza o liberalism o de todos os matizes (desde o originário norteamericano até ao neo-liberalismo dos nossos dias) crê, afinal, 458A questão ecoa, em Portugal, a propósito da garantia, d ad a na C arta consti­ tucional de 1826, dos "socorros públicos". 4=9 V.g., de um controlo judicial do legislativo, pois as m esm as m aiorias que fazem o legislativo controlam , por meio d a censura d a opinião pública, to­ dos os órgãos do Estado, m esm o os tribunais (cf. Renault, 1 9 9 9 ,1 4 3 ).. C ultura Jurídica Europeia 361 que a sociedade é, ela mesma, a origem e melhor garante de todos os direitos e que não necessita da mediação estadual, nem para os declarar, nem para os garantir , 460 nem para lhes criar condições de gozo e exercício (os chamados "direitos sociais" ou "liberdade mediante o Estado", de que fala Augusto Barbera ) . 4 6 10 direito mais autêntico é, assim, esse que nasce da na­ tural afirmação dos direitos de cada um e das transacções que espontaneamente se geram entre esses direitos no livre curso da actividade social. Porque, finalmente, se crê que a socieda­ de é essencialmente justa, mesmo quando nela uns têm mais poder do que os outros. Uma sociedade destas - assim naturalmente regida - pres­ supõe naturalmente, indivíduos naturais, i.e., optando e agindo racionalmente, calculando as suas condutas segundo regras ra­ cionais (rational choice model). O modelo originário da antropo­ logia liberal é, claramente, o do homem de negócios; o seu mo­ delo de acção, por sua vez, é o do mundo do comércio, habita­ do por profissionais formados num certo modelo de cálculo de vida. Por extensão, o modelo também funcionava adequada­ mente num mundo de proprietários, de pessoas habituadas a calcular racionalmente os riscos e proveitos dos seus actos e empreendimentos. Por outras palavras, baseado em gentlemerís agreements, o modelo liberal é naturalmente adequado ao trato social e político da gentry. Todavia, a extensão deste modelo de conduta racional a outros domínios da vida e a outros estratos sociais (não elitários) pressupunha todo um trabalho de racio­ nalização das condutas humanas, de que a educação, a filantro­ pia, a decência, os bons costumes e as boas maneiras (para já não falar da missão civilizadora da colonização) se ocuparam. Daí 4é0Também conttra a própria sociedade, mediante aquilo que a teoria constitu­ cional alemã chama a Drittwirkung da garantia de direitos, ou seja, a sua efi­ cácia geral, mesmo em relação a forças opressoras da sociedade civil; até ago­ ra, porém, este conceito tem tido um a aplicação reduzida e frequentemente unilateral (em defesa dos interesses estabelecidos contra movimentos civis contestatários (não raro, a Dritttwirkung se transformou em dirty W irkung...). 461Barbera, 1997, 33 362 António Manuel Hespanha que o liberalismo do govemo do Estado tivesse que ser compen­ sado por um governo moral da sociedade muito rigoroso. No caso de insensibilidade da sociedade civil para a assun­ ção e adopção de modelos racionais de conduta ("debilidade" ou "anem ia" [anomia] da sociedade civil, anestesia desta provo­ cada por um prévio controlo estadual excessivo, cultivo de va­ lores "não económicos" em certas áreas do trato social) , 462 o Es­ tado deveria estimular a sociedade, no sentido da adopção de padrões racionais de conduta - o mais evidente dos quais seria o padrão do cálculo económico empresarial -, mesmo naqueles domínios da vida que nada têm a ver com o campo tradicional da economia, como a educação, a saúde, a segurança social. É este aspecto "constru tivista", em que é o Estado que empreen­ de um esforço de construção (ou re-construção) da sociedade civil, que caracteriza o neo-liberalismo, proposto, depois da II Guerra Mundial, na Alemanha, pelos Ordoliberalen, e, na Amé­ rica, pela "escola de Chicago " . 463 8 .2.1.4. Elitismo social O primeiro liberalismo não esconde, de facto, os pressupos­ tos antropológicos de que parte quanto ao modelo dos equilíbrios sociais: a sociedade não era um lugar de igualdade, nem deve tornar-se nisso. Há diferenças, de inteligência, de virtude, de iniciati­ va, de riqueza; nem todos têm o mesmo para dar e nem todos têm o mesmo a perder. Ou seja, a sociedade política não deveria corri­ gir, mas antes ratificar, as desigualdades da sociedade civil. Por isso, como Stuart Mill dirá mais tarde, "não é útil, mas antes prejudicial, que a constituição de um país reconheça à ig­ norância o mesmo poder político e social que ao conhecimen­ to" (On representative goverment, 1861).464 Mill extrai daqui um 462Valores que podem ser tão diversos com o a solidariedade, o nepotismo, o conservadorism o social, a justiça social, o igualitarism o, o elitismo ou a dis­ crim inação (negativa ou positiva). 463Sobre os quais, Barry, 1996. 464Cit. por Barbera, 1 9 9 7 ,1 4 4 . Cultura Jurídica Europeia 363 regime eleitoral digno de nota: as elites disporiam de um "voto múltiplo" ou "plural", o que lhes permitiria compensar a esma­ gadora maioria dos cidadãos "sem qualidades". Esta - hoje desconcertante - proposta de Stuart Mill, era, no entanto, bastante moderada em face de outras que, pura e simplesmente, eliminavam da sociedade política todos esses "cidadãos sem qualidades". Era o que acontecia com todos os que propugnavam a res­ trição dos direitos de participação política aos varões proprie­ tários, ricos, educados e, embora apenas implicitamente, bran­ cos, solução que virá a ser adoptada pela maioria das constitui­ ções europeias do séc. XIX. Enquanto que os requisitos de ser homem e de ser europeu tinham que ver com alegadas inferioridades naturais de inteli­ gência e de cultura políticas das mulheres e dos povos coloni­ ais, o ser proprietário e rico tinham sobretudo que ver com ques­ tões de liberdade e de responsabilidade cívicas. De facto, a pro­ priedade era vista como uma condição de liberdade: não ape­ nas não se estava dependente (não se era criado, arrendatário, trabalhador) de ninguém, como se dispunha dos meios de for­ tuna que permitiam adquirir liberdade de espirito, pela instru­ ção e informação, pelo cultivo das disciplinas intelectuais e pela reflexão sobre os temas públicos .465 Mas a propriedade e a rique­ za (maxime a riqueza imobiliária) eram ainda factores de respon­ sabilidade. De facto, numa óptica utilitarista, quem mais tem, mais arrisca e, logo, pondera melhor as suas decisões políticas. Para além de que, numa perspectiva de pura justiça comutati­ va, quem produz mais riqueza (e quem paga mais impostos, o "sindroma do contribuinte") deve ter mais direitos de partici­ pação política.466. Estes pontos de vista - que foram teorizados, 465Sobre a função política da propriedade no m odelo liberal, extensam ente, Cia vero, 1991. ‘‘“ N ote-se que este princípio de equivalência entre o "com prom isso social" e os "direitos políticos" pode ter um a leitura, não liberal, m as socialista ("o povo é quem mais trabalha, o povo é quem mais ord en a"), fundando, com igual (i)legitimidade, um a "d itadu ra do proletariado". 364 António M anuel H espanha de forma acabada embora não monotónica, por Sieyès, Bentham e Constant, mas sobretudo por Kant467 - deram origem aos sis­ temas constitucionais de democracia restrita, baseadas na exclu­ são do voto das mulheres, dos criados , 468 dos funcionários infe­ riores do Estado e dos membros ordens religiosas , 469 dos nati­ 467Cf., em síntese, Barbera, 1 9 9 7 ,1 3 1 ss.; textos fundam entais, I. Kant, S obre o d itad o p o p u la r ..., 1793, II.3. ed. cons., p. 295; M eta física d o s co stu m es (K ritik d er p ra k tisch en V ern u n ft: G r u n d lg u n g z u r M eta p h y sik d er S itten ), 1797-8, ed. cons. Kant, 1996, p aragr. 46: "O s m em bros de tal sociedade que se unem para legislar (so cieta s civ ilis ), ou seja, os membros de u m Estado, são cha­ m ados cid ad ã os do E sta d o (eiv es). E m term os do direitos, as atribuições de um cidadão, inseparáveis da sua essência (com o cidadão) são: lib erd a d e de acordo com a lei, direito de não obedecer a qualquer lei a que não tenham dado o seu consentim ento; igualdade civil, com o o direito de não reconhe­ cer enttre o povo qualquer superior que disponha da capacidade m oral de im por limitações jurídicas aos outros que não se im ponham a ele m esm o; e in d ep en d ên cia civil, com o atributo de não dever a sua existência e preserva­ ção dos seus direitos e poderes com o m em bro da com unidade ao arbítrio de qualquer outro m em bro do povo. Desta independência d ecorre a sua personalidade civil, o seu direito de não ter necessidade d e ser representa­ do por outrem nos vasos em que estão em questão os seus direitos. A úni­ ca qualificação p ara se ser cidadão é ter capacidade de votar. Porém , esta capacidadde pressopõe a independência daqueles que, integrando o povo, pretendem ser não apenas um a parte dela m as tam bém u m m em bro dela, ou seja, um a parte da com unidade que age de acordo com a sua própria vontade, interagindo com os outros. Esta qualidade de ser independente requer, contudo, a distinção entre cidadãos activos e passivos, ap esar de o conceito de cidadão passivo pareça contradizer o conceito de cidadão. Os exemplos seguintes podem servir para rem over esta contradição: um apren­ diz ao serviço de um m ercador ou artesão; um criado dom éstico (distinto de um servidor público); um m enor (n a tu ra liter [meninos] ou civ iliter [civilmeente equiparados]) todas as m ulheres e, em geral, todos aqueles cuja preservação (o facto de serem mantidos e defendidos) não depende da con­ dução dos seus próprios negócios m as de gestões feitas por outrem (com excepção do Estado). Todas estas pessoas carecem de personalidade civil e a com o sua existência é quase apenas inerência [...] todos eles são meras instrum entos [H an d lä n g er] da com unidade, na m edida em que têm que es­ tar sob a direcção ou protecção de outrém e, por isso, não dispõem de in­ dependência civ il". 4“ Cf. Petit, 1990. '‘“ Pela m esm a razão de falta de liberdade. Cultura Jurídica Europeia 365 vos coloniais, e na instauração de um sistema censitário, em que a participação política estava dependente de certos níveis de fortuna (cf., v.g. e com regimes diferentes, Constituição france­ sa de 1795, Constituição espanhola de 1810, Cárta constitucio­ nal francesa de 1814, Carta constitucional portuguesa de 1826). 8.2.1.5. Estadualism o e “direito igual” Uma forma especial de elitismo social residia também na exigência de uma especial preparação intelectual para discutir as questões públicas e, log o, para criar direito válido (legítimo). Isto explica-se, desde o momento que se creia que o direito é mais do que uma vontade, mas é também mais do que uma combi­ natória estabelecida (espontânea, natural) de direitos individu­ ais originários. Ou seja, desde que se admita que o direito é, an­ tes de tudo, uma ideia (uma ideia de justiça) e que, portanto, uma entidade intelectual com uma lógica própria (como as da mate­ mática, da filosofia ou duas ciências em geral), a ser pensada de forma adequada. Esta forma especializada de pensar as normas sociais con­ sistia, desde logo, para o primeiro liberalismo, em pensar "em geral", de forma abstracta e igual, as situações sociais (maxime, as situações de conflitos de direitos). Ou seja, numa palavra, de pensar "legisticamente" a sociedade. E para este esta capacida­ de " generalizante", "igualizante" que Rousseau, Kant, Tocqueville ou Constant apelam, ao caracterizar a ideia de sociedade livre como a sociedade regulada pela lei geral e igual. E daí a confiança e esperança que eles tinham no papel racionalizador dos juristas (nesse "espírito legístico", atributo do corpo dos ju ­ ristas, a que Tocqueville expressamente se refere como condi­ ção da "form a" e da "ordem " da sociedade civil (De la démocratie en Amérique, 1835).470 O direito, como linguagem regulada e especializada, ganha assim a dignidade de instrumento indispensável para falar da 470Cf. Fioravanti, 199 9 ,1 2 7 . 366 António Manuel Hespanha liberdade, concebida como o império da igualdade. Ou melhor, o direito igual (a lei) torna-se na linguagem que os detentores da soberania têm que falar para a exercerem legitimamente. O Estado liberal torna-se, assim, num Estado de direito (Rechtssataat). E, com isto, a "razão" dos juristas volta a recuperar a he­ gemonia sobre a "vontade" dos detentores da soberania. 8.2.1.6. O “m étodo jurídico” Um passo suplementar pode ser dado, neste sentido de jus­ tificar a supremacia do saber jurídico sobre a vontade política, no plano da criação do direito. Este passo consiste em desamar­ rar totalmente a justiça do direito da ideia de vontade e de con­ trato. Ou seja, consiste em defender que a legitimidade do di­ reito decorre do seu método de abordar as questões, da forma racional de as resolver, independentemente de qualquer relação das normas jurídicas por ele formuladas com o contrato social e a vontade constituinte que dele decorre. A solução jurídica dos conflitos de direitos seria justa por seguir uma regra correcta de compatibilizar ou dirimir direitos individuais contraditórios e não por obedecer à regra querida pelo poder constituinte do povo. Pois, para constituir a justiça, não basta querer, é preciso querer correctamente. E, neste par de vontade e correcção, a correcção (o rigor metodológico e conceituai de um saber especializado) tem a última palavra sobre a vontade. Kant, num opúsculo com um título semi-irónico (Über die gerneinspruch "Das mag in der Theone richtig sein, taugt aber nicht fü r die Praxis" ["Sobre o dito popular: 'Isto pode ser certo em te­ oria, mas não ter utilidade na prática'"], 1793) já defende esta ideia de que uma boa teoria vale mais do que a prática e de que só o povo rude e ingénuo é que pode pensar que as teorias cor­ rectas podem não funcionar na prática. Nesse mesmo escrito, aplica isto expressamente ao direito, ao defender que a consti­ tuição política, mais do que de uma vontade popular, era o re­ sultado da reflexão teórica dirigida a encontra a mais correcta combinação do princípio da liberdade, que autoriza cada um a Cultura ]urídica Europeia 367 procurar a máxima felicidade compatível com a máxima felici­ dade dos outros, com o princípio da igualdade, segundo o qual todos deviam estar igualmente sujeitos à lei. Se esta combinató­ ria correcta fosse encontrada e sistematicamente aplicada, a cons­ tituição e a forma de governo seriam justas, independentemen­ te da forma de regime (monarquia, aristocracia ou democracia) que vigorasse. Com isto, a legitimidade do direito liberta-se subs­ tancial e claramente da hipótese contratualista. Um outro grande filósofo alemão, C. W. F. Hegel (17701831), numa sua obra sobre a constituição alemã (Die Verfassung Deutschlands, 1799-1802) avança ainda mais neste sentido de que a razão jurídica tem uma legitimidade constituinte própria. Reflectindo sobre a situação política alemã, Hegel considera que o grande déficit da sua pátria é constituído pela falta de "sen­ tido de Estado". Ou seja, pela falta de uma ideia integradora que discipline os direitos históricos dos vários Estados alemães, ul­ trapassando a constituição pluralista e atomista do Império ale­ mão no sentido de um Estado unificado. Este diagnóstico sobre a política alemã revela o fio condutor do pensamento de Hegel sobre a constituição e o direito. Uma e outro não podiam ser o produto de contratos entre particulares, tendentes a uma melhor garantia dos seus privados interesses. Mas, pelo contrário, de­ viam ser os portadores da ideia global de Estado, como perso­ nificação de toda a Nação, e os defensores dos correspondentes interesses públicos. O Estado, com a sua burocracia, a sua admi­ nistração, a sua estrutura financeira, o seu exército, era a corporização dessa Nação trans-individual; a constituição era o conjun­ to de princípios políticos que exprimiam as condições da sua existência dessa mesma Nação e que, por isso mesmo, deviam estar acima dos interesses individuais (mas, nas situações limi­ te) abaixo do interesse do Estado; o direito era a concretização, nos vários domínios sociais, dos direitos do Estado-Nação e dos sacrifícios e condicionamentos que ele podia exigir aos interes­ ses dos particulares. No plano do regime político, esta concepção total do Esta­ do destaca a importância dos órgãos que encarnam a ideia de 368 António M anuel Hespanha unidade do Estado (o monarca, monarkisches Prinzip) ou que prosseguem o interesse público (burocracia, exército, adminis­ tração). Já os órgãos representativos (dos interesses particulares) teriam uma função apenas pedagógica, na medida em que pro­ moveriam no seio do povo o sentido nacional e forçariam os re­ presentantes a considerar os seus interesses na perspectiva dos interesses gerais. No plano do direito, Hegel rompe definitivamente com a legitimação contratualista do direito, estabelecendo a ideia de que a lei há-de valer, não por ser o produto da vontade geral, mas por traduzir a "vontade" do Estado, como portador da to­ talidade do interesse público. Nesta perspectiva, o direito tenderia a transformar-se num assunto de monarcas e burocratas, ocupados com a salvaguar­ da e promoção do interesse público. Mas, como o Estado, para além de uma organização de poder, também é uma ideia, um princípio de racionalização do interesse colectivo, uma norma correcta de agir em função deste interesse, o direito deve ser an­ tes concebido como um método racional de construir normas so­ ciais que institucionalizem a prossecução desse interesse públi­ co, de desenvolver no detalhe o direito do Estado (soberania) a orientar a sociedade para o seu fim racional, o interesse públi­ co. Ou seja, o Estado é, antes de mais, uma ideia existente na consciência moral dos indivíduos ("Estado ético") e o direito é, antes de tudo, a emanação de uma teoria - a "teoria do Estado" (Staatslehre). De novo, os juristas estão a comandar o direito, por cima das assembleias representativas e ao lado das elites burocráti­ cas, como acontece na Prússia. Ou mesmo do monarca que, como nas monarquias medievais, está limitado por uma regra de agir; embora, no desenvolvimento desta ideia da supremacia do Es­ tado, sempre pudesse aparecer, como apareceu, quem pensas­ se que o monarca (ou o "ch efe", Führer), como supremo porta­ dor do interesse colectivo, tinha que constituir a última instân­ cia de declaração do direito, o supremo guardião da constitui­ ção (Hüter der Verfassung, CarlSchm itt). Cultura Jurídica Europeia 369 8 .2.1.7. “Positivismo conceituai” e “Estado constitucional” Uma geração mais tarde, as ideias de Hegel sobre o carác­ ter originário do poder do Estado tinham-se vulgarizado nos círculos jurídicos alemães e dado origem a uma completa reinterpretação do direito público (Gerber, Laband, Jellinek, v. in­ fra, 8.3.3.). Este passa a aparecer, então, não como o desenvol­ vimento do contrato social, mas como emanação da soberania do Estado e do correspondente direito deste de regular a vida social em função do interesse público, impondo deveres e cri­ ando direitos. Correspondentemente, a constituição não é já a emanação de qualquer soberania popular constituinte, mas ape­ nas o estatuto jurídico do Estado, compreendendo o elenco dos seus órgãos supremos, a constituição destes, as suas relações mútuas e os direitos e garantias que o Estado concede. Mas, por outro lado, agora que todos os detentores de poder (mesmo o monarca) são órgãos do Estado, limitados e guiados da na sua acção pelo interesse público, o Estado carece da constituição como formalização das atribuições dos seus vários órgãos na prossecução desse interesse. Neste sentido, se não há constitui­ ção sem Estado, também não pode haver Estado sem constitui­ ção . 471 Só que, nestes termos, a inconstitucionalidade dos actos do Estado (nomeadamente, das leis) 472 deixa de poder dizer res­ peito ao seu conteúdo (inconstitucionalidade material), mas pe­ nas ao órgão que o praticou (inconstitucionalidade orgânica) ou à forma adoptada (inconstitucionalidade formal). 471Cf. Fioravanti, 1 9 9 9 ,1 3 9 . 472Dado que os actos não legislativos do Estado deviam , em virtude do prin­ cípio da legalidade, ser actos de execução das leis, o problema da inconsti­ tucionalidade só se punha em relação às leis. Quanto aos "actos de gover­ n o", as decisões m eram ente políticas do Estado, nas suas relações internas ou externas, esses pertenceriam à pura política, domínio de afirmação li­ vre do Estado, sendo juridicam ente insindicáveis. Este princípio - que, na verdade, é característico de um Estado autoritário - continua a vigorara quase indiscutido nos dias de hoje. 370 António M anuel Hespanha A vontade ordenadora (a vontade jurídica) do Estado expri­ me-se na lei - a cargo dos detentores do poder legislativo por­ tadora dos princípios mais estáveis e permanentes da organiza­ ção política da sociedade e estabelecendo, por isso, os limites da actuação do Estado e dos particulares (direitos subjectivos públi­ cos ou privados). Abaixo da lei e a ela subordinada, está a admi­ nistração, actuando também ela nos limites da lei (princípio da le­ galidade) e expressando a sua intenção reguladora numa infinida­ de de regulamentos e medidas administrativas concretas. Neste contexto, a lei ganha uma centralidade nova. Por cima dela já não pairam, nem os poderes constituintes do povo, nem os direitos individuais originários. Paira apenas a vontade do Estado; mas a própria vontade do Estado se tem que expri­ mir de acordo com a lei. O círculo legalista fecha-se. O seu úni­ co limite é puramente formal - a obediência à distribuição de competências estabelecida na constituição (constitucionalidade formal). Ao mesmo tempo que (porque) se autonomiza da política, a lei ganha a natureza de instrumento de estabilização do direi­ to. Nela se depositam as fórmulas normativas mais decantadas, mais estáveis, mais trabalhadas pela elaboração doutrinal. A doutrina, por sua vez, pode agora ser estritamente "jurí­ dica" ("pura"), ou seja, basear as suas construções apenas nos dados legislativos, embora também seja verdade que, como em qualquer ciência, o momento construtivo, de elaboração de con­ ceitos baseados nos factos empíricos (neste caso, nos dados le­ gislativos) seja indispensável. A doutrina é, agora, uma ciência positiva. "Positiva", porque se baseia nos dados objectivos da lei do Estado (e não em abstracções metafísicas como "contrato social" ou "direitos individuais originários"); "ciência", porque generaliza estes dados sob a forma de conceitos ("jurisprudên­ cia dos conceitos", Begrijfsjurisprudenz).i73. 473Cf infra, 8.3.3. Cultura Jurídica Europeia 371 Os conceitos produzidos por esta doutrina ruminadora da (já de si ruminada) lei constituem formas que, pela sua genera­ lidade e abstracção, devem representar o que de mais permanen­ te existe na cultura jurídica de uma nação. Daí que os seus re­ sultados possam e devam ser transcritos em códigos, como mo­ numentos tendencialmente permanentes dessa cultura. E que acontece, em 1900, como Código civil alemão (BGB) que foi ca­ racterizado como a transformação em parágrafos (artigos) de uma obra doutrinal contemporânea que se tinha tornado clás­ sica (as Pandekten de W indscheidt). Este mundo de serena tranquilidade entra em crise, com a inflação legislativa (Gesetzflut) provocada pela necessidade de resposta legislativas às enormes transformações sociais e polí­ ticas dos inícios do séc. XX, e com a repolitização da vida jurídi­ ca (nomeadamente, em virtude da revitalização do princípio democrático depois da segunda Guerra Mundial). A lei, que constituía a pedra do monumental sistema dogmático do direi­ to, passa a exprimir não mais os consensos jurídico-políticos permanentes, mas apenas a oportunidade momentânea da ad­ ministração, o provisório arranjo político ou mesmo o compro­ misso possível entre opções políticas incompatíveis (o "compro­ misso dilatório " ) . 474 A busca da segurança, da estabilidade, da adesão do direi­ to a consensos permanentes, já não podia resultar da lei, nem mesmo do código . 475 Tinha que ser buscada a um nível superi­ or, o da constituição, agora 476 entendida, não apenas como o es­ tatuto do Estado (Konstitution), mas antes como o repositório de valores consensuais (ideni sentire), colocados acima das própri­ as formalizações constitucionais concretas (constituição "m ate­ rial" vs. constituição "formal), representando as aquisições de­ 474A m aral, 1996. 473N oção qque tam bém já se banalizara (códigos fiscais, código da estrada, có­ digo do notariado, código da propriedade horizontal, código dos investm entos estrangeiros). 476N om eadam ente, a partir da constituição alem ã de W eim ar (1919). 372 António M anuel Hespanh« finitivas da vida política (acquis constitutionnel) ou os valores inderrogáveis pelo Estado e oponíveis à lei ordinária (ou mesmc constitucional). É isto que marca o advento do "Estado constitucional" (Ver fassungsstaat), caracterizado pela supremacia da constituição t dos valores nela consagrados (não "constituídos") sobre toda £ actividade do Estado, mesmo a actividade legislativa. E, sobretudo, caracterizado pela instituição de um sis de controlo judicial da constitucionalidade das leis.477 Independentemente de tudo quanto se possa pensar sobre a possibilidade da existência de valores socialmente consensu­ ais (sobretudo em sociedades cada vez mais pluralistas, cf 8.6.4.4), o certo é que esta ênfase no "perm anente", no "consen­ sual", no "m aterial justo", ao mesmo tempo que limita o legis­ lador, depõe de nova na mão dos juristas o papel de oráculos da justiça. Na verdade, quando se proclamam valores consen­ suais, embebidos no próprio trato social, não se está a remeter como acontece com algumas orientações contemporâneas da 477O co n tro lo ,co n situ cio n a l d as leis p re ssu p õ e a d istin çã o e n tre "p o d ei constituinte"e "p o d er legislativo", distinção p ara a qual foi decisiva a evo­ lução do pensam ento político de de Em m anuel-Joseph Sieyès (1748-1836).. Sieyès m anteve posição oscilantes: num a prim eira fase d a sua obra ppolítica (Qu'est-ce que le Tiers État, 1789), foi um defensor da plena sobera­ nia da assem bleia, que m anteria, em perm anência, u m p o d er constituin­ te, podendo elaborar, m oddificar e substituir livrem ente a constituição. Neste sentido, o p oder constituinte não se distinguia do p o d er legislati­ vo ordinário. P orém , num a segunda fase - que corresp on d e à Constitui­ ção francesa do ano III [1795], ela m esm a reacção con tra o radicalism o jaccobino an terior - e de que Sieyès foi inspirador, ele in trodu z a ideia de que o p od er constituinte não perm an ece sem pre nas m ãos do parlam en­ to, sob pena de se d estruir a m ínim a estabilidade política (Opinions de Si­ eyès sur les attributions et l'organisation du Jury Constitutionnel, 3.10.1795). C om isto, Sieyèes distingue de form a clara o p oder constituinte do podei legislativo ordinário, subordinando o segundo ao p rim eiro, e proponde (sem êxito) a in trodução de u m em brião de tribunal constitucional, para avaliar a observância da constituição pelas leis. Sobre a história recentí do controle da constitucionalida, A m aral, 1998 e Fiorovan ti, 1999. Cultura Jurídica Europeia 373 teoria do direito - para a sensibilidade popular (ou "quotidia­ na") ou para as realidades que a vida aceita como dadas (taken fo r granted). Mas para a sensibilidade tecnicamente educada dos juristas, como detentores de um saber prudential capaz de re­ velar os consensos, de lhes dar a forma adequada ou, pelo me­ nos, de estabelecer compromissos que sejam substanciais e não meramente dilatórios.478 A própria dispersão da apreciação da inconstitucionalidade pelos tribunais comuns poderia não garantir suficientemen­ te a depuração prudencial das soluções, pelo que a melhor so­ lução seria a de entregar o controle da constitucionalidade a uma elite de juristas, com assento num tribunal especializado, o Tri­ bunal Constitucional. Embora as coisas possam sempre ter outras leituras, esta leitura da evolução recente dos paradigmas do direito como uma luta em torno da legitimidade de dizer o direito, opondo sobre­ tudo "políticos" (representantes populares) e "juristas", parece ser consistente com os resultados à vista.479 8.2.2. Positivismo e cientismo Resta anotar algumas das condicionantes do discurso jurí­ dico oitocentista, provenientes, desta vez, não do plano das idei­ as políticas, mas do plano das ideias dominantes sobre o saber. A evolução das ciências naturais, a partir dos finais do séc. XVIII, e a sua elevação a modelo epistemológico criaram a con- 478Cf. A m aral, 1996. 479U m estudo de caso muito interessante é o da reacção do corpo dos juristas a uma constituição - com o a portuguesa de 1976 - produto de lógicas em i­ nentem ente políticas. Enquanto que, do lado das forças políticas motoras do processo revolucionário, foi sem pre muito aparente a desconfiança em relação aos tecnicism os do direito, pelo que eles podiam im plicitam nte transportar no seu bojo, da parte dos juristas a reacção foi a de um a quase generalizada condenação da constituição, não tanto em termos políticos, mas em term os técnicos: dem asiada extensão, falta de rigor conceituai, enviesam ento político, carácter com prom issório. Cf. H espanha, 1976). 374 António Manuel Hespanha vicção de que todo o saber válido se devia basear na observação das coisas, da realidade empírica ("posta", "positiva"). De que a observação e a experiência deviam substituir a autoridade e a especulação doutrinária ou filosofante como fontes de saber. Este espírito atingiu o saber jurídico a partir das primeiras décadas do século XIX. Também este, se quisesse merecer a dignidade de ciência, devia partir de coisas positivas e não de argumentos de autoridade (teológica ou académica, como no período do di­ reito comum) ou de especulações abstractas (como no período do jus-racionalismo).. No campo jurídico, este movimento integrava-se harmonicamente na campanha contra a incerteza e confusão do direito tradicional, disperso, casuísta, dependente da teologia e da mo­ ral. Mas atingia também a proliferação de sistemas puramente especulativos de direito natural, surgidos no decurso do século XVIII. Ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à religião e à moral, como contra a sua identificação com especula­ ções de tipo filosófico, como as que eram correntes nas escolas jusracionalistas. Contra uma coisa e contra a outra, proclamavase a necessidade de um saber dirigido para "coisas positivas". Só que as várias escolas entenderam de forma diversa o que fossem "coisas positivas". Para uns, positiva era apenas a lei, pelo que o saber jurídi­ co tinha que incidir unicamente sobre ela, explicando-a e inte­ grando-a {positivismo legalista). Para outros, positivo era o direito plasmado na vida, nas instituições ou num espírito do povo que se objectivava nas for­ mas quotidianas observáveis de viver o direito {positivismo culturalista). Positivo era também o seu estudo de acordo com as regras das novas ciências da sociedade, surgidas na segunda metade de século XIX {positivismo sociológico, naturalismo). Finalmente, para outros, positivos eram os conceitos jurí­ dicos, genéricos e abstractos, rigorosamente construídos e con­ catenados, válidos independentemente da variabilidade da le­ gislação positiva, obedecendo ao novo modelo de ciência como discurso de categorias teoréticas, estabelecido pelo kantismo Cultura Jurídica Europeia 375 (positivismo conceituai). O saber }urídico escaparia, assim, quer ao império da lei positiva, mutável e arbitrária, quer ao subjectivis­ mo do doutrinarismo jus-teológico ou jusracionalista. Com isto, ganhava uma firmeza e universalidade que eram características das outras ciências. Ao mesmo tempo, instituía-se como um sa­ ber acumulativo, i.e., que ia acumulando certezas e progredin­ do sucessivamente - como as outras ciências - para formas mais perfeitas e completas de conhecimento. Ou seja, a ciência jurí­ dica partilhava com as restantes a crença optimista no universa­ lismo e no progressismo dos seus resultados. Todas estas formas de positivismo têm em comum a recu­ sa de quaisquer formas de subjectivismo ou de moralismo. O saber jurídico (agora, a ciência jurídica) deve cultivar métodos objectivos e verificáveis, do género dos cultivados pelas ciência "duras", dela devendo ser excluídas todas as considerações valorativas (políticas, morais). Estes juízos de valor em matéria jurídica teriam, decerto, o seu lugar. Mas esse não era o da ciên­ cia jurídica, mas sim o da filosofia do direito ou da política do direito.480 Por outro lado, o cientismo promove, como se disse, a cren­ ça em que os resultados do saber são universais e progressiva­ mente mais perfeitos. Esta crença foi, no domínio do direito, mais enfatizada pelos positivismos sociológico e conceituai, pois o positivismo legalista estava, deste ponto de vista, demasiado li­ mitado pelo carácter "local" (no espaço e no tempo) da lei naci­ onal. Em contrapartida as duas outras correntes formulavam proposições válidas em geral e que cancelavam progressivamen­ te a validade das proposições anteriores. Esta crença optimista na validade dos resultados da ciência jurídica - que coincidiu com a época áurea da expansão colonial europeia - teve consequências importantes na difusão mundial do direito europeu. Convencidos da validade universal da sua ciên­ 480Referência bibliográfica básica: Latorre, 1 9 7 8 ,1 5 1 -1 5 7 ; W ieacker, 1993, 493 ("positivism o científico"). V. infra, 174. 376 António M anuel H espanha cia jurídica e, ao mesmo tempo, do seu carácter progressista (his­ toricamente mais avançado), os europeus impuseram os seus modelos jurídicos aos povos não europeus. Os direito locais fo­ ram impiedosamente combatidos em nome da civilização e da modernização, o mesmo acontecendo com a organização políti­ ca e judiciária. Mesmo culturas jurídicas e políticas milenares e tão desenvolvidas como a chinesa e a japonesa foram levadas a aceitar a cultura científica e política do Ocidente ("Mr. Science and Mr. Democracy" era o slogan dos movimentos reformistas chine­ ses dos anos '20 do nosso século) em nome do progresso. 8.3. A s escolas clássicas do século X IX . . . A Escola da Exegese. A origem do legalismo 8 3 1 Desde os meados do século XVIII que a lei estadual tendia a monopolizar a atenção dos juristas.481 Este monopólio era, no entanto, temperado pelas ideias jusracionalistas, ou seja, pela crença na existência de um direito suprapositivo com origem na razão. Já nos finais do século XVIII, alguns Estados europeus in­ corporam em reformas legislativas amplas os principais resul­ tados das doutrinas jusracionalistas. Isto acontece com o movi­ mento da codificação, então iniciado (cf., supra, 8.2.4). Na Prússia, aparece, em 1794, o Allgemeines Landrecht fü r die preußischen Sta­ aten (ALR, Compilação do direito territorial geral dos Estados da Prússia). Na Austria, em 1811, o Allgem eines Bürgerlisches Gesetzbuch (ABGB, Código civil geral). A Toscana e a Baviera conhecem também codificações de menor relevo. Em Portugal, prepara-se, a partir de 1778, uma reforma glo­ bal das Ordenações. É nomeada uma Junta do Novo Código, inte­ grada, entre outros, por dois grandes juristas da época, Pascoal de Melo Freire e António Ribeiro dos Santos, que, todavia, en­ 481 Era este, com o já vim os (supra, 258), o sentido da Lei da Boa Razão. Cultura Jurídica Europeia 377 redada em polémicas políticas tornadas muito agudas pelo eclo­ dir da Revolução Francesa, não leva a cabo a sua missão, ape­ sar de ter deixado muitos materiais. Com a advento do libera­ lismo, em 1820, as cortes lançam um concurso para a elabora­ ção dos principais códigos, mas sem resultados.482 Mas foi sobretudo em França que a codificação, produto (embora não na sua fase inicial) da Revolução, mudou mais ra­ dicalmente a face do direito, fazendo tábua rasa do direito ante­ rior e promovendo, por isso, a identificação do direito com os novos códigos. De facto, já a Assembleia Nacional Constituinte de 1790 tinha concebido o projecto de um código que sintetizas­ se, de uma forma acessível a todos, o novo direito revolucioná­ rio. Mas foi só em 1804, já durante o Consulado e sob a influên­ cia directa de Napoleão I, que o Code civil conheceu a sua ver­ são definitiva e foi promulgado (1804). Seguiram-se os Código de processo civil (1806), o Código comercial (1807), o Código penal (1810), etc.483 Os c ó d ig o s napoleónicos constituíam, por um lado, a con­ sumação de um movimento doutrinal que, partindo da doutri­ na tradicional francesa, fora enriquecido com as contribuições do jusracionalism o setecentista.484 Neste sentido, apareciam como uma espécie de positivação da razão. Por outro lado, ti­ 482Sobre o projecto de Novo Código, v. Silva, 1 9 9 1 ,3 7 0 ss.; ou, para maiores de­ senvolvim entos, M arques, 1987; Vieira, 1992. Em todo o caso, é prom ulga­ do, u m pouco mais tarde (1823), um Código penal militar. Os restentes códi­ gos aparecerão ao longo do século XIX - Código administrativo, 1 8 3 6 ,1 8 4 2 , etc.; Código comercial, 1833; Código penal, 1837 e 1852; e, por fim, a coroa da codificação, o Código civil de 1867, ou Código de Seabra, elaborado por Antó­ nio Luis de Seabra, Visconde de Seabra, após 17 anos de preparação. Sobre o movim ento da codificação em Portugal, Gilissen, 1988, 461 (nota do tra­ dutor); A ndrade, 1946. O Código de Seabra manteve-se em vigor até 1966, data em que é substituído por um novo código, que vinha sendo prepara­ do desde os anos '40. Sobre ele, v. M endonça, 1982, 29 ss. 483Sobre todos estes códigos, v. Gilissen, 1988, 451. Sobre a sua difusão m un­ dial, v. ibid., 456 s. 484Cf. Arnaud, 1969. 378 António Manuel Hespanha nham sido o resultado de um processo legislativo conduzido pelos órgãos representativos da nação francesa. Constituíam, assim, a concretização legislativa da volonté générale. Uma coisa e outra contribuíam para lhes dar o ar de mo­ numentos legislativos definitivos, cientificam ente fundados e democraticamente legitim ados. Perante eles, não podiam valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito dou­ trinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorpo­ rado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha sido aceite pela vontade popular. Não o direito tradicional, porque a Revolução tinha cortado com passado e instituído uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juizes não competia o poder de estabele­ cer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar (poder judicial). A lei - nomeadam ente, esta lei com pendia­ da e sistem atizada em códigos - adquiria, assim , o monopó­ lio da manifestação do direito. Por isso, lei de 30 do Ventôse do ano XII [7.2.1804]), que põe em vigor o Code civil de 1804: "A compter du jour où ces lois sont exécutoires, les lois ro­ maines, les ordonnances, les coutumes généra-les ou locales, les statuts, les règlements, cessent d'avoir force de loi géné­ rale ou particulière dans les matières qui sont l'objet des-dites lois composant le présent code". A isto se cham ou legalismo ou positivismo legal (Gesetzpositivismus). Perante esta evolução, à doutrina apenas restava um papel ancilar - o de proceder a uma interpretação submissa da lei, atendo-se o mais possível à vontade do legislador histórico, recons­ tituída por meio dos trabalhos preparatórios, dos preâmbulos legislativos, etc. Quanto à integração das lacunas, a prudência devia ser ainda maior, devendo o jurista tentar modelar para o caso concreto uma solução que pudesse ter sido a do legislador histórico se o tivesse previsto. Esta supremacia estrita da lei sobre a doutrina e a jurispru­ dência já fora proposta por Montesquieu, para quem os juizes deviam ser "a boca que pronuncia as palavras da lei, seres ina­ nimados que não podem moderar nem z. força, nem o rigor dela" Cultura Jurídica Europeia 379 (Esprit des lois, XI, 6) .485Mas, com o advento da Revolução, da le­ gitimidade política que ela trouxera à lei e da desconfiança que lhe é característica quanto ao corpo dos magistrados e dos ju­ ristas, a ideia do primado da lei ganha tanta força que chega a levar à pura e simples proibição da interpretação, obrigando os tribunais a recorrerem ao legislativo "sem pre que entendessem necessário interpretar uma lei" (référé législatif, lei francesa de 1624 de Agosto de 1790).486 Estes pontos de vista tentaram afirmar-se - normalmenti à custa dos apoios dos próprios actos legisltivos - na doutrin; francesa dos inícios do século XIX. Os grandes juristas deveri am limitar-se a fazer uma exposição e interpretação (exegese) do novos códigos. Daí, a Escola da Exegese, cujos principais repre sentantes (Duranton, Demolombe, Troplong) foram autores d grandes comentários ao Code civil. Nada de mais ilusório. Tal como André-Jean Arnaud já pô em evidência, os códigos não eram senão o resultado da re-ela boração de uma longa tradição doutrinal.487Mas não apenas issc os juristas não estavam de modo algum convencidos de que "razão parlamentar" fosse melhor do que a deles, quando s tocava em matérias jurídicas. O célebre Portalis, que presidiu à mais importantes das comissões de legislação do período d, 4X5 A cautela com que M ontesquieu limita os juizes ao papel de aplicadores d lei é contínua: "N ão há qualquer liberdade se o poder de julgar não estive separado do poder legislativo e executivo. Se ele estivesse conexo com i legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrá rio, pois o juiz seria legislador. Se estivesse conjunto com o poder execuli vo, o juiz poderia ter a força de um opressor" (Esprit des lois, XI, c. 5). Isti explica-se pelo poder que a m agistratura ganhara durante o Antigo Regi me, em virtude da estrutura casuísta da ordem jurídica do ius cornmune (cf supra, 120). 486 O référé législatif d eu origem à criação de u m tribunal especial para aferi da legalidade das interpretações da lei pelos tribunais (Cour de cassaiion) t para recom endar a adopção de medidas interpretativas genéricas pelo corpi legislativo. Cf., sobre este tem a, Gilissen, 1988, 505 ss. 497 Cf. A rnaud, 1969. 380 A ntónio M anuel Hespanha codificação napoleónica, afirmava enfaticamente que as leis não eram "puros actos de poder; mas antes actos de sabedoria, de justiça e de razão"; e que o legislador exercia "menos uma au­ toridade do que um sacerdócio" (;ibid.), não devendo nunca "per­ der de vista que as leis [...] se devem adaptar ao carácter, aos hábitos, à situação dos povos para que são feitas".488 Dito isto, já se entende que a tónica estando na razão, o direito está, por sua vez, de novo nas mãos dos juristas. A Escola da Exegese estava intimamente ligada - é certo ao ambiente político e jurídico francês, ou seja, a um Estado na­ cional revolucionário, em corte com o passado, dotado de órgãos representativos e que tinha empreendido uma importante tare­ fa de codificação. Isto determina a disseminação dos princípios desta escola noutros países, retardando-a, nomeadamente, nos casos em que estes requisitos não estivessem realizados. Mas a sua recepção foi sempre mais vocal do que real. A grande opo­ sição entre o "legalism o" francês e o "doutrinarism o" alemão tem, por isso, muito de ecos de uma polémica célebre lançada por Savigny, em que, polemizando com uns imaginários lega­ listas franceses, clamava que - em matéria de direito - os tem­ pos estavam mais a favor da prudência do direito doutrinal do que para um direito legislativo. O balanço da orientação exegética não pode ser feito ape­ nas à luz das ulteriores experiências negativas do legalismo (v. infra, 9.6). Deve começar por se valorizar de forma adequada a medi­ da em que a ideia de um código "civil" geral (i.e., dos cidadãos) reflecte o pathos da ideia de igualdade dos cidadãos, típica dos novos Estados pós-revolucionários, igualdade que os códigos pretendiam garantir justam ente pela sua generalidade e pela estrita subordinação dos juizes aos seus preceitos. Por outro lado, a ideia de um código, compacto, organizado e claro, visa- 488V. tam bém Jean-M arie Étienne Portalis, "D iscours prélim inaire du Code Ci­ vil", em Discours et rapports sur le Code civil, ed. F. Portalis, Paris, 1 8 4 4 ,4 ; cf. ainda, "D iscou rs de présentation du Code civil", ibid., p. 91 ss.. Cultura Jurídica Europeia 381 va facilitar a democratização do direito, pela generalização do seu conhecimento, evitando, deste modo, que os juristas tives­ sem que ser os mediadores forçosos entre o direito e o povo. Para além de que não se deve esquecer que as grandes e rápidas mu­ danças sociais e políticas dos finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX só podiam ser institucionalizadas por via legislativa. De fac­ to, o costume, a jurisprudência ou a doutrina são meios inade­ quados, pela sua própria natureza, para estabelecerem ruptu­ ras revolucionárias. Por outro lado, é cada vez menos claro como se possa jus­ tificar a ideia de que a Escola da Exegese impediu o desenvolvi­ mento de um direito jurisprudencial bastante autónomo em re­ lação aos códigos. Na verdade, para além de que o direito fran­ cês contemporâneo é, de entre os direitos continuais, o que mais se funda em decisões judiciais, teria sido impossível, sem uma jurisprudência criativa, manter em vigor, praticamente inalte­ rado no decurso dos últimos 200 anos, o Coãe Napoléon.m A estes créditos juntam-se, porém, certos pontos negativos. A aceitação da lei como produto da vontade do povo pres­ supunha a transparência democrática do Estado, ou seja, que a lei fosse, de facto, a expressão, tanto quanto possível, directa da vontade geral dos cidadãos. Ora, o carácter restrito da base so­ cial das democracias representativas,490 a partidocracia, a mani­ pulação da vida política pelos governantes, a erupção da medi­ ação dos burocratas, destruíram estes pressupostos. Com o pro­ gressivo alargamento do universo dos cidadãos em contacto com o direito oficial,491 tom a-se mais evidente que este é uma ordem estranha às convicções sociais de justiça. 489Cf. Beignier, 1999. 490E m que a capacidade política e eleitoral era restringida, pelos requisitos cen­ sitários ou de um nível educacional mínimo, a um círculo social diminuto. 491 No Antigo Regime, um a gran d e parte da vida comunitária não era regula­ da pelo direito estadual, m as pelos ordenamentos das com unidades infraestaduais (família, aldeias, entes corporativos). Com o monopólio legisla­ tivo do direito, o Estado passa a pretender regular directamente todas as esferas da vida colectiva. 382 António Manuel Hespanha Paralelamente, a progressiva complexificação e tecnificação do discurso legislativo destruíram esse ideal de colocar, por meio de leis claras e códigos sintéticos, o direito ao alcance do povo. Deve ainda acrescentar-se que as correntes exegéticas limi­ taram bastante a inovação doutrinal, sobretudo se fizermos a comparação com os períodos anteriores. A inovação só podia provir de modificações da vontade política, e esta competia ex­ clusivam ente ao legislador. De resto, grandes codificações tinham um carácter epigonal.492 Na verdade, os có­ digos contemporâneos são um trabalho final de síntese de ciclos doutrinais muito longos, neste caso, o ciclo jusracionalista dos séculos XVII e XVIII.493 Daí que se tenha verificado a tendência para crer que nada mais havia a acrescentar do ponto de vista doutrinal. Por uma razão e por outra, a doutrina perde a sua função de experimentação, de orientação e de inovação. Enquanto a doutrina estiola relativamente, a inovação le­ gislativa faz-se de jacto, a golpes legislativos. Este mesmo facto, depositando o direito na vontade sempre mutável dos legisla­ dores, convida a soluções dependentes das maiorias parlamen­ tares, nem sempre muito amadurecidas e frequentemente ins­ piradas por uma arrogância legislativa pouco atenta aos limites da regulação social por meio da lei. A lei banaliza-se e torna-se efémera. O poder político substitui-se à autoridade científica como fundamento e legitimação do direito. Este fica dependen­ te das maiorias parlamentares, tornando-se perigosamente vi­ zinho da política. Tudo isto dá origem a uma perda de prestígio do direito, quando não a uma desconfiança em relação a ele, in­ duzidas ambas pelo desprestígio da política e desconfiança que ela progressivamente suscita. Sobre a doutrina, porém, tem consequências ambivalentes. 492V. W ieacker, 1993, 528. 493 O Bürgerliches Gesetzbuch (B.G.B., Código civil) alem ão de 1900, a última das grandes codificações, fecha, por sua vez, o ciclo da doutrina alem ã do sé­ culo XIX (pandectística, v. infra). Cultura Jurídica Europeia 383 Por um lado, põe num risco de permanente desactualização. Mas, por outro, transforma-a no depósito das soluções jurídicas duráveis, perante a contínua liquefação do direito legislado. 8 .3 .2 . A Escola Histórica Alemã A vertente organicista e tradicionalista Foi antes referido que um dos pressupostos políticos do legalismo era a existência de um Estado-Nação que os cidadãos reco­ nhecessem como portador dos valores jurídicos da comunidade. Acontece que certas nações europeias, algumas das quais como a Alemanha e a Itália - ocupavam lugares centrais no pa­ norama do saber jurídico europeu, não conheceram um Estado nacional até ao terceiro quartel do século XIX. Nestes casos de privação de identidade política, a consciência nacional não ape­ nas se manifestou de forma mais intensa, cunhando muito forte­ mente todas as áreas da cultura, como reagiu contra a ideia de que o Estado e o seu direito (legislado) pudessem ser a única forma de manifestar a identidade política e jurídica de uma nação. A recusa ao Estado deste papel de demiurgo político e ju ­ rídico da sociedade leva a valorizar as formas tradicionais e es­ pontâneas de organização política, nomeadamente aquelas mais presentes na tradição nacional, como as antigas formas comu­ nitárias de vida ou as comunas e concelhos medievais. Julius Moser, na Alemanha, tal como Joaquin Costa, em Espanha, ou Alexandre Herculano, em Portugal, são três exemplos da reva­ lorização, empolada, idílica e romântica, das formas políticas nacionais anteriores ao Estado. A obra histórica de cada um de­ les foi-lhes dedicada. Mas, é claro, a história serviu apenas de ponto de apoio de projectos de organização política e jurídica voltados para o presente e para o futuro.494 Mas, para esta sensibilidade, as formas "Estado" (e "Códi­ 494 A versão historiográfica do m unícipalism o, tal com o resulta da obra de H erculano, tem um a influência política directa nas propostas de regenera­ ção da sociedade portuguesa com base na reconstituição de um estrutura política descentralizada (A lexandre H erculano, Felix Henrique N ogueira). 384 António Manuel Hespanha go") ainda tinham - para além do inconveniente de não estarem disponíveis em todo o lado ... - uma outra face negativa: o seu universalismo e artificialismo. O Estado, tal como surgira dos movimentos políticos contratualistas, era, de facto, uma abstracção. Produto de um contra­ to idealizado, realizado entre sujeitos puramente racionais, cujo conteúdo decorria das regras de uma Razão a-histórica. O Esta­ do (e o Código) não têm nem lugar, nem tempo. São formas uni­ versais, indiferentes a quaisquer particularidades culturais ou nacionais. Era isto que uma cultura de raízes nacionalistas, anco­ rada nas especificidades culturais dos povos, não podia aceitar. Uma organização política e jurídica indiferenciada, exportável, universalizante, aparecia, quando confrontada com os particularismos das tradições nacionais, como um artificialismo a rejeitar. Este artificialismo decorria precisamente do papel estruturante atribuído à vontade política dos soberanos ou das assem­ bleias representativas, pela teoria constitucional estadualista. Libertos do império da tradição, os órgãos do Estado tinham a ilusão de tudo poderem querer. A Nação, essa realidade intemporal em que os mortos mandavam mais do que os vivos, era identificada com a geração actual ou, mais restritivamente ain­ da, com os órgãos de soberania ou com as assembleias dos elei­ tos do povo. E estes, considerando-se depositários exclusivos dos destinos nacionais, transformavam-se em "fábrica de leis", pen­ sando poder "meter todo o direito em leis" (Gustav Hugo, 17641844). Esta pretensão pan-normativa dos órgãos do Estado se­ ria tanto mais arrogante quanto é certo que - como dizia o mes­ mo Hugo - "os letrados do direito, que apresentam à assinatura do monarca as suas opiniões, não devem ser, em média, mais avisados do que os seus contemporâneos". Na Alemanha, é uma sensibilidade cultural e político-jurídica deste tipo que está na origem da Escola Histórica Alemã, que domina o panorama do saber jurídico alemão durante a primeira metade do século XIX e que, no seu desenvolvimento pandectista, o influencia até aos inícios do século XX. O programa da Escola Histórica495era, justamente, o de bus- Cultura Jurídica Europeia 385 car as fontes não estaduais e não legislativas do direito. A sua pré-compreensão da sociedade - subsidiária da filosofia da cul­ tura organicista e evolucionista de Herder e do ambiente cultu­ ral e político do romantismo alemão - levava-a a conceber a so­ ciedade como um todo orgânico, sujeito a uma evolução histó­ rica semelhante à dos seres vivos, em que no presente se lêem os traços do passado e em que este condiciona naturalmente o que vem depois. Em toda esta evolução, peculiar a cada povo, manifestar-se-ia uma lógica própria, um espírito silenciosamente actuante, o "espírito do povo" (Volksgeist), que estaria na origem e, ao mesmo tempo, daria unidade e sentido a todas as manifes­ tações histórico-culturais de uma nação. O espírito do povo revelar-se-ia nas produções da sua cul­ tura. Na sua língua, desde logo. Também na poesia popular, nas tradições folclóricas, no direito histórico, nas produções dos seus intelectuais, nas suas tradições literárias. Seriam justamente es­ tas manifestações da "alta cultura" aquelas que, um pouco pa­ radoxalmente, melhor revelavam a alma nacional. Pois eram aquelas em que, justamente pela qualidade intelectual dos seus autores, se conseguia atingir, com uma maior profundidade, sistematicidade e plenitude, o espírito de uma nação. Na sua "ino­ cência", o povo exprimir-se-ia numa "multiplicidade" de regis­ tos, que só as elites culturais conseguiam reduzir a um "siste­ ma científico". As consequências de tudo isto do ponto de vista da teoria do direito são, agora, facilmente compendiáveis. A primeira é a do anti-legalismo e, sobretudo, a da reacção contra o movimento de codificação. A lei - e, ainda mais, o códi­ go sistemático - são encarados como factores, não de constru­ ção do direito, mas da sua destruição. Em primeiro lugar, por­ que introduzem um elemento conjuntural e decisionista (a de- 495Sobre a Escola Histórica Alemã e o ambiente cultural e político que a rodeia, v., por todos, Wieacker, 1993,397-491. Principais representantes: Gustav Hugo (1764-1844); Friedrich Carl v. Savigny (1799-1861), System des heutigen römis­ chen Rechts, 1839; G. F. Puchta (1798-1846), Gewohnheitsrechte, 1828-1837. 386 António M anuel Hespanha cisão legislativa tomada, conjunturalmente, por um governo ou uma assembleia) num mundo de normas orgânicas, indisponí­ veis e duráveis (o direito, como emanação do espírito do povo). Em segundo lugar, porque congelam a evolução natural do di­ reito que, como toda a tradição, é uma realidade viva, em per­ manente transformação espontânea. Esta animosidade em rela­ ção à codificação ficou bem traduzida numa famosa polémica entre Savigny e Thibaut, este último favorável a uma codifica­ ção geral do direito alemão, que o primeiro considerava artifi­ cial e "inorgânica" ,496 A segunda consequência é a da valorização dos elementos consuetudinário e doutrinal do direito. Quanto ao primeiro, isso aparece como normal, dado que o costume é a forma paradig­ mática de o direito se manifestar espontaneamente.497 Já para compreender o papel outorgado à doutrina - que fez com que o direito, tal como era definido pela Escola Histórica, se identifi­ casse com um Professorenrecht (direito dos professores) - é pre­ ciso recordar a função que esta escola atribuía aos intelectuais e literatos na revelação organizada e sistemática do espírito do povo. De facto, Savigny, concedendo embora que o direito pro­ vém da alma da nação, salienta o papel que o corpo dos juristas e juizes letrados, bem como a literatura especializada por eles desenvolvida, tiveram na revelação, aperfeiçoamento e trata­ mento orgânico ou sistemático do direito. De facto, embora com outros pressupostos metodológicas, o saber jurídico universitá­ rio alemão vinha desenvolvendo, desde o séc. XVII, em relação à tradição romanística, um trabalho muito semelhante ao que a Escola História propunha se fizesse em relação ao direito alemão. 496 Peças: A. E. Thibaut, Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen Gesetzbuches fü r Deutschland (Sobre a necessidade de um código civil geral para a Alemanha), 1814; F. C. v. Savigny, Vom B eruf unserer Zeit fü r Geset­ zgebung und Rechtswissenschaft (Sobre a vocação do nosso tem po para a le­ gislação e ciência do direito), 1814. 497 De forma emblemática, uma das principais obras de G. F. Puchta intitulase Gewohnheitsrechte (Direito consuetudinário), 1828-1837. Cultura Jurídica Europeia 387 Com base no trabalho das escolas medievais, os juristas do usus modernus panãectarum vinham induzindo dos textos categorias dogmáticas gerais que manifestariam o espírito do direito roma­ no. A romanística, como Savigny e Jhering reconhecem, estava mais adiantada do que a germanística nessa reconstrução do espírito (do "sistem a") do direito. Isto explica a atenção dedica­ da por Savigny ao direito romano, ao direito romano medieval498 e ao usus modemus499alemão, bem como o facto de ter ensaiado - com o seu System des heutigen römischen Recht [Sistema do di­ reito romano actual, 1840] - no âmbito do legado da tradição ro­ manística a tentativa de uma construção orgânica do direito. Bem como explica que o resultado do trabalho desta escola "germanista" venha a ser conhecido como "pandectística", o que realça o peso que nela acaba por ter o legado da tradição roma­ nística alemã e, mais em geral, europeia. A terceira consequência é a da revalorização da história do direito e do seu papel dogmático, como reveladora, não de um passado morto e separado do presente (antiquarismo), mas de um passado que, pela tradição, fecundava o presente.500 Daí que a historiografia influenciada por esta escola, se bem que também tenha os seus monumentos antiquaristas,501 revele evidentes preocupações dogmáticas.502 Finalmente, uma quarta consequência é a da sistematicidade e organicidade da jurisprudência, a que se dedicará o núme­ ro seguinte. 498Cf. a Geschichte des römischen Rechts im Mittelalter [História do direito rom a­ no na Idade Média], 1815. 499Cf. System des heutigen römischen Rechts [Sistema do direito rom ano actual], 1839. 500Sobre isto v. W ieacker, 1993, 501 Como a história de Roma de Th. M om m sen (1817-1903) e os Germaniae monumenta histórica de Freiherr vom Stein. 502Cf. W ieacker, 1 9 9 3 ,4 7 5 ss. 388 António M anuel Hespanha 8 .3 .2 .1 . A cultura jurídica portuguesa da prim eira m etade do séc. X IX A política estadualista do Euminismo - que coincide com consulado do Marquês de Pombal - promove fortemente o pa­ pel da lei no quadro das fontes de direito, insistindo sobre a sua supremacia sobre as restantes e limitando, nomeadamente, a possibilidade de, por via jurisprudencial, se estabelecerem nor­ mas jurídicas genéricas.503 Em todo o caso, o fracasso da elabo­ ração de um código actualizado, tanto por ocasião do projecto do Novo Código, como, depois, já nos primeiros anos do libera­ lismo, fez com que o ideal legalista - latente desde os finais do século XVIII - não pudesse ter realização. No "Prefácio" às suas Instituições de direito civil Português (Coimbra, 1848), Manuel Coelho da Rocha .constata esta impos­ sibilidade do positivismo legalista: "N ão se trata de explicar um código, porque não o temos, nem de reduzir a síntese ou desen­ volver os princípios fixos e constantes de um sistema coerente, porque não o há na nossa legislação civil". Neste contexto, a permanência do doutrinarismo jusracionalista dos finais do sé­ culo XVIII (Martini, Heineccius, Thomasius, Wollf), combinado com a invocação directa dos modernos códigos estrangeiros e da doutrina sobre eles construída (Pothier, Portalis, Demolombe), permitida pela Lei da Boa Razão, mantém-se até 1867. Ten­ do então surgido o Código civil, instaura-se, de facto, uma ori­ entação exegética. No ensino universitário, isto traduz-se pela adopção do texto do código como manual, mesmo para as ca­ deiras de índole filosófica e histórica. Surgem os grandes comen­ 503 Os "estilos" ou praxes de julgar deixam de ter força vinculativa. Quanto aos "assen tos", norm as de aplicação vinculativa estabelecidas por u m tribunal a propósito de um caso concreto (cf. O rd .fil, 1,5,5), restringem -se agora aos do prim eiro tribunal de justiça do Reino, a Casa da Suplicação (Lei da Boa Razão, 18.8.1769). E, em bora não aplicada, m antinha-se a ordenação que m andava recorrer ao rei no caso de dificuldade na interpretação ou inte­ gração das lacunas (L. 18.8.1769, § 11; O rd.fil., III, 64, 2). Cultura Jurídica Europeia 389 tários aos principais códigos.504Embora declarando que isto vale apenas para os comentários à lei, o autor do principal destes comentários (Codigo civil portugez annotado, 1870), José Dias Fer­ reira exprime bem esta intenção puramente exegética da dou­ trina: "Nós limitámos o nosso propósito a explicar o que está nos artigos, e o modo como deve ser executado e completado o pre­ ceito da lei, conquanto não poucas vezes dêmos a razão da lei, e emitamos o nosso juízo sobre o modo de a melhorar [...] Quem recorre aos comentários das leis o que deseja principalmente ,saber é o que está na lei, e como pode ser executada e preenchi­ da a sua provisão; e, quando muito, procura alcançar também a razão da lei. Tudo o mais pode ser útil e conveniente segundo os fins e as circunstâncias; mas é dispensável para quem preten­ de unicamente conhecer e executar a lei" (xi). E, fundamental­ mente, era este último o objectivo dos juristas.505 Já as manifestações expressas de influência da vertente historicista da Escola Histórica Alemã não são abundantes. Em todo o caso, existe um certo parentesco, é certo que por vezes super­ ficial, entre ele e algumas das propostas da literatura jurídica dominante até meados do século XIX. Por um lado, o reformismo político dos finais do século XVIII e inícios do século XIX, pelo menos numa das suas cor­ rentes, invocava a tradição como fundamento das reformas que propunha.506 No entanto, tratava-se de um tradicionalismo de Antigo Regime, baseado no respeito de um passado fixado numa ordem de direitos adquiridos e, nessa medida, estático. E não de um tradicionalismo como o historicista, baseado antes no con­ ceito de evolução orgânica, em que o passado é apenas a mani­ 504Para o Código penal, o de Levy M aria Jordão (1831-1875); para o Código civil, o de José Dias Ferreira (1837-1909); para o Código de processo civil, os deste e de Alves de Sá (1849-1916); para o Código comercial, o de Diogo Forjaz. 505Sobre a evolução da doutrina jurídica em Portugal nesta época, v. biblio­ grafia em Gilissen, 1988, 521 (nota do tradutor). 506Cf. H espanha, 1982a. 390 António M anuel Hespanl festação histórica - e a superar - de uma realidade nacional pa sada, presente e futura. Por outro lado, a inexistência de codificações modernas aü bui à doutrina um papel preponderante na revelação do dire to. Coelho da Rocha constata que, perante a inexistência de foi tes legislativas actualizadas "o escritor [...] é obrigado a tomar vez do legislador: tem de formar o plano; tem de fazer a sele ção das doutrinas; e tem de redigir até as ultimas ilações". IS entanto, nota-se um certo constrangimento nesta liberdade doi trinária: "Esta tarefa complicada [seleccionar a solução jurídi< no universo contraditório do direito tradicional] colocava-nc em um estado de perplexidade: ou (porque o não havemos c confessar?) dava-nos uma arbitrariedade, que sendo vantage: em outros géneros de escritos, é um verdadeiro embaraço n< de direito positivo, em que a razão se deve ocupar antes de co] gir, concordar e filiar os princípios já fixados pelas leis, do qi de os escolher e discutir" -507 Realmente, o coração do autor p rece estar antes com a escola exegética. Onde a comunidade de espírito é maior é no domínio c historiografia e das suas funções político-dogmáticas. Realmei te, Alexandre Herculano não apenas se propõe, em Portugal, realizar os objectivos de disponibilização de fontes históricas qi os historiadores da Escola Histórica Alemã tinham realizado i Alemanha,508 como se inspira na história pátria ao fazer propo tas de reorganização do país.509 De certo modo, o mesmo aco] tece, no campo do direito, com Coelho da Rocha. Não só exis uma certa continuidade entre o seu Ensaio sobre a história da l gislação e governo de Portugal (1841) e as Instituições de direito cii (1848), como estas estão cheias de notas e excursos históricos qi fundamentam as soluções propostas. 51,7 Manuel Coelho da Rocha, "Prefácio" às Instituições de direito civil Portugui Coimbra, 1848. 508 Ao editar, v.g., os Portugalliae monumenta histórica (ab 1856). 509Cf. M erêa, 1941; Saraiva, 1977; sobre o contexto rom ântico, organicista nacionalista, desta geração cultural portuguesa, v. Catroga, 1996. Cultura Jurídica Europeia 391 Em todo o caso, a doutrina dominante continua a sofrer uma forte influência do jusracionalismo, embora numa versão menos individualista e contratualista e, portanto, mais atenta aos tópicos transpersonalistas e tradicionalistas que caracterizam o historicismo alemão. E, por isso, é preciso esperar pelas influ­ ências do positivismo sociológico para encontrar os ingredien­ tes (organicismo, evolucionismo, atenção ao direito espontâneo) que, na Alemanha, a Escola Histórica já tinha avançado. 8.3.3. A Escola Histórica Alemã. A vertente formalista ou conceitualista. A jurisprudência dos conceitos (Beg riffsju risp ru cle nz) ou Pandectística (Pandektenwissenschaft) Com antes se disse, uma das componentes do historicismo é a construção sistemática do direito. Esta componente foi par­ ticularmente desenvolvida por um dos ramos da Escola Histó­ rica Alemã, a pandectística ou jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurispruáenz) ,510 De alguma forma, a sistematicidade do direito decorre do facto de ele ser uma emanação de um todo orgânico, o espírito do povo. As instituições jurídicas teriam uma "alm a" (a "alm a do povo", Volksseele), sentidos ou princípios orientadores que lhes dariam unidade. Princípios esses que, induzidos a partir da observação (descrição) das normas jurídicas concretas, permi­ tiriam que a exposição dos institutos - e, no fim, de todo o direi­ to nacional - fosse feita de forma orgânica e sistemática, organi­ zada por princípios gerais. Destes princípios extrairiam depois, 510Principais representantes: Georg Friedrich Puchta (1798-1846, Cursus der Institutionen, 1841) H. D em burg (1829-1907) e B em h ard W indscheíd (18171892, Lehrbuch der Pandekten, 1862-1891). A designação de "pandectística" deve-se ao facto de que esta escola voltar a valorizar o direito rom ano (pandectas) - sobretudo na m edida em que é nele que se funda a tradição de cons­ trução suistem ática e dogm ática que m arcara a cultura jurídica alem ã dos dois últimos séculos. Referência bibliográfica básica: W ieacker, 1993, 491501 e 511-524, Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 4 0 ss.. 392 António Manuel H espanha agora por dedução, outros princípios inferiores - a tal "pirâm i­ de conceituai" de que fala Puchta -, bem como soluções para casos concretos. Esta ideia de uma exposição e conhecimento do direito, orientados por princípios gerais, não se pode explicar sem refe­ rência a movimentos de ideias típicos desta época. Por um lado, existe nesta ideia de um mundo orgânico de conceitos, apreensível por observação e indução uma evocação das novas ciências da vida. Por um lado, elas induziam concei­ tos e taxonomias a partir da observação dos seres vivos. E, por outro lado, elas lidavam com os seres vivos - totalidades orgâ­ nicas, harmónicas e coerentes, dotadas de uma alma e capazes de gerar novas entidades. Rudolf v. Jhering (cf. infra, 8.4.1.), con­ victo conceitualista na primeira fase da sua obra, exprime essa concepção do sistema conceituai do direito como um ser vivo, orgânico e produtivo, bem como refere, também expressamen­ te, essa aproximação entre a tarefa da jurisprudência "constru­ tiva" (ou superior) e o método "histórico-natural" das ciências da vida: " A m assa com plexa do direito ap arece ag o ra, não com o um sistema de normas, de pensamentos, m as com o um conjunto de existências, de potên­ cias jurídicas. C onsideram os a im agem de um corpo jurídico com o a mais sim ples e natural. C ad a u m destes corpos tem o seu m odelo p a r­ ticular, a sua n atu reza e as suas características, graças às quais é cap az de p rod u zir os seus efeitos. A nossa tarefa perante isto assu m e p o r­ tanto o carácter de uma investigação histórico-natural [...] D evem os, p o r­ tanto, m edir as características e a força do corpo jurídico [i.e., de um instituto jurídico], m o strar o m od o em que nasce e m orre, as con di­ ções e situações em que ele p ode influir, as influências que, em co n ­ trapartid a, sofre, as m etam orofoses de que é cap az; devem os indicar a sua relação com outros corp os jurídicos e as ligações que tece com eles ou os conflitos em que com eles cai; assim , devem os com p reen ­ der num conceito, com o n um ponto focal lógico, obtido co m base de todas as anteriores investigações, a n atu reza do m esm o, a sua indivi­ dualidade jurídica e, enfim , d evem os ord en ar, do m esm o m odo que o cientista classifica os objectos h istórico-naturais, todos os corp os jurí­ dicos em e p ara um sistem a" (Rudolf v. jhering, Unsere Aufgabe, 1857 [em Rudolf von Jhering, La lotta per il diritto e altri saggi, M ilano, Giuffrè, 1989, 9Y). Cultura Jurídica Europeia 393 Por outro lado, este conceitualismo jurídico não se pode explicar sem referência a um novo ideal de ciência, oriunda do formalismo kantiano, que destaca a função estruturante das ca­ tegorias e dos princípios gerais no conhecimento científico. O que garantiria, daqui em diante, a verdade científica, não seria mais a adequação do pensamento a uma realidade externa (adaequatio intellectus rei), mas a coerência interna das categorias do sistema de saber. E o decisivo num saber seria justamente este quadro categorial e não a apreensão atomística e inorgânica da realidade empírica. Transposta para o domínio do direito, esta concepção re­ dunda numa estratégia científica de desvalorização relativa, tan­ to da lei, como dos factos sociais envolventes, muito bem des­ crita por Savigny numa lição sobre metodologia jurídica dada em Marburg logo em 1802: "O particular, que é conhecido com o particular no trabalho filológico, deve ao m esm o tem po ser pensado com o um todo no trabalho sistemá­ tico [...]. O conteúdo do sistema é a legislação, logo, as norm as jurídi­ cas. P ara as conhecerm os, em parte individualmente, em parte no seu conjunto, necessitam os de um meio lógico, a form a, i.e., o tratam ento lógico do conhecim ento de todo o conteúdo da legislação. Todo este tra­ tam ento form al ou deve desenvolver a definição das norm as jurídicas isoladas - cham a-se por vezes a isto definições e distinções - ou organi­ zar a relacionação, quer de várias norm as, quer do seu conjunto. E a isto que se cham a sistema em sentido próprio" (Methodenlehre, 3 7).511 Ou seja, o trabalho intelectual dos juristas devia consistir sobretudo na construção de um sistema de conceitos jurídicos. Mas não se tratava de conceitos obtidos pela reflexão puramente abstracta, como no jusracionalismo. Tratava-se antes de concei­ tos obtidos por indução a partir dar máximas do direito positivo. Rudolf v. Jhering distingue claramente estas duas fases do traba­ lho do jurista. A primeira fase, a que chama "jurisprudência infe­ rior", consistiria pela "ligação imediata à forma com que o direi­ to aparece na lei, graças a uma relação puramente receptiva em relação às fontes" (Unsere Aufgabe, 1857, em Rudolf von Jhering, 511Citado por W ieacker, 1993, 422. 394 António Manuel Hespanha La lotta per il diritto e altri saggi, Milano, Giuffrè, 1989, 7). A partir daqui, desenvolver-se-ia a "jurisprudência superior" que produ­ ziria, por destilação e síntese da matéria prima antes obtida, "uma matéria absolutamente nova" (ibid.), o conceito. A função dos con­ ceitos é, ao mesmo tempo, (i) facilitar a apreensão do direito, já que eles se tomam sintéticos e intuitivos,512e (ii) tomar possível a produção de novas soluções jurídicas por meio do desenvolvi­ mento conceituai, do chamado "poder genético dos conceitos". Ao proceder deste modo, o jurista estaria a adoptar um método semelhante ao dos cientistas da natureza que, a partir da observação do real e da elaboração lógica dos resultados des­ sa observação, extraem princípios gerais subjacentes aos factos empíricos (como a lei da atracção universal, a velocidade da luz, as leis que presidem às combinatórias químicas). Princípios que, por sua vez, não apenas explicam as observações feitas, mas podem ser ainda logicamente combinados, produzindo novos princípios e teorias que, por seu turno, produzem conhecimen­ tos novos sobre a realidade.513 Ou seja, princípios que não são apenas verdadeiros do ponto de vista formal, mas ainda ontologicamente fundados. No caso do direito, os princípios e conceitos, obtidos pelo tratamento formal do material histórico514e legislativo de um 512" [ ...] a configuração plástica, adquirida de tal m odo [pela síntese conceitu­ ai] pela m atéria jurídica to m a-a acessível à capacidade intuitiva jurídica e, por tanto, evita à m em ória a fadiga de im prim ir mecanicam ente um a quan­ tidade enorme de norm as positivas isoladas" (ibid, 10). Jhering insiste na im portância deste elem ento plástico e estético da construção conceituai como pedra de toque da sua aderência aos elementos espirituais mais ele­ vados do direito. O apuram ento jurídico-construtivo produziria um a sen­ sação de gozo estético equivalente - que se experim entaria, por exem plo, na jurisprudência rom ana -, no plano espiritual, à beleza das mais sofisti­ cadas formas de vida natural (ibid, 11 ). 5131.e., permitem antecipar realidade até aí ainda não em piricam ente dem ons­ trada, com o a existência de Plutão ou dos buracos negros. 514 Dentre este material histórico, destaca-se o direito rom ano, que a pandectística volta a tratar com o um cam po fértil de quadros conceituais e dog­ máticos aproveitáveis transtem poralm ente. Sobre o rom anism o da pandectística, v. Wieacker, 1 9 9 3 ,4 7 5 ss. Cultura Jurídica Europeia 395 direito nacional seriam princípios como o princípio da vonta­ de (Willensprinzip) no domínio dos negócios jurídicos, o prin­ cípio da elasticidade no domínio da propriedade, o da irrecuperabilidade da anulação de um acto jurídico, etc. Estes prin­ cípios explicariam e gerariam consequências normativas. Por exemplo, a de que devia ser absolutamente garantida a liber­ dade negociai, a de que ninguém pode ser representado por outrem sem um mandato correspondente, a de que a extinção de um direito real limitado (v.g., uma servidão ou um usufru­ to) reverte a favor do proprietário da coisa sobre que incidia, a de que um negócio jurídico nulo não pode ter quaisquer con­ sequências (nem sequer aquelas com que as partes ou tercei­ ros, de boa fé, contavam) nem ter uma eficácia reduzida ou la­ teral (redução ou conversão de negócios jurídicos). Estas solu­ ções seriam não apenas formalmente lógicas, mas ainda mate­ rialmente justas, porque os princípios de que elas decorriam existiriam, de facto, embora a um nível não explícito, na reali­ dade cultural de que o direito se alimentava. Mas, justamente porque eram princípios realmente existen­ tes (embora implícitos na míriade de normas de que tinham sido destilados), o jurista, ao formulá-los, não estava a criá-los arbi­ trariamente, em função dos seus pontos de vista filosóficos, morais ou políticos. Apenas os estava a identificar e descrever, neutralmente. Por isso, como dizia Bernhardt Windsheid (18171892), "considerações de carácter ético, político ou económico não são assuntos próprios dos juristas, enquanto tais". O saber jurídico devia, justamente, garantir a sua cientificidade por meio deste formalismo, ou seja, desta recusa de, na construção jurí­ dica, ultrapassar as preocupações de rigor conceituai, envolven­ do-se em considerações de fundo sobre a justiça material dos resultados. Do ponto de vista dos valores subjacentes, este formalismo corresponde ao papel que ao direito é reservado no sistema éti­ co de Kant - ao direito não compete estabelecer padrões éticos de conduta, mas garantir a liberdade que, justamente, possibi­ 396 António M anuel H espanha lita uma avaliação ética das condutas.515 E, nessa medida, o for­ ma lism o conceitualista traduz, do ponto de vista histórico-cultural, uma posição, por um lado, individualista, e, por outro, relativista. Individualista, na medida em que os seus dogmas (princí­ pio da existência e primado dos direitos subjectivos, da autono­ mia da vontade, da ilimitação da propriedade, etc.) decorrem logicamente do princípio - retomado do jusracionalismo indivi­ dualista (cf. supra, 7.2.1.1) - de que a sociedade resulta de uma combinatória de actos de vontade de indivíduos livres e titula­ res de um direito originário a essa liberdade (direitos do indiví­ duo e do cidadão, na esfera do direito público; direitos subjectivos, sobretudo na esfera do direito privado).516 Relativista e form alista porque, depois do fracasso dos grandes sistemas ético-políticos de base religiosa ou racionalista, a pandectística se limita a atribuir ao poder a função de esta­ belecer uma forma de organização política que melhor possa garantir a liberdade individual (liberalismo). Desistindo de lhe formular um conteúdo axiológico, ou seja, de lhe prescrever prin­ cípios ético-jurídicos materiais (i.e., dotados de matéria ou con­ teúdo normativo) que guiem o exercício dessa liberdade. Do ponto de vista sócio-político, tem-se realçado de que maneira o formalismo da pandectística possibilitou a neutrali­ 515 Cf., em síntese, W ieacker, 1 9 9 3 ,4 2 7 (estabelecendo um confronto entre esta nova fundam entação ético-form al e a fundam entação ético-m aterial do di­ reito no período jusracionalista). 5,6 É interessante sublinhar esta com ponente individualista da pandectística, sobretudo porque, de form a oposta, a prim eira vaga da Escola H istórica se caracteriza, justam ente, por u m p ensam ento transindividualista. O que acontece é que, enquanto que o historicism o original adopta um organicismo ontológico e institucional (a sociedade é um sistema orgânico de insti­ tuições, no qual os indivíduos estão encerrados), a pandectística entende este organicism o com o apenas organicism o epistem ológico e conceituai (a so­ ciedade é u m conjunto de indivíduos que se deixa descrever por um sistema orgânico de conceitos). E estes conceitos decorrem do axiom a de que exis­ te um indivíduo livre e autodeterm inado (que estava já n a base do jusracionalismo e que inspirará tam bém a econom ia clássica). C ultura Jurídica Europeia 397 dade do direito face aos projectos políticos contraditórios da burguesia alemã. Na verdade, os quadros político-ideológicos da pandectística eram muito largos, podendo identificar-se com aquilo que se poderia classificar de liberalismo: defesa da liber­ dade e igualdade formais do indivíduo e defesa da proprieda­ de, como extensão da liberdade, com os seus corolários dogmá­ ticos (abolição das desigualdades e vinculações corporativas laborais, estatutárias, familiares - de Antigo Regime, liberdade contratual, liberalização da propriedade em relação a vínculos "feudais", liberalização do trabalho em relação a vínculos cor­ porativos, secularização do direito e, em particular, do direito de família). Praticamente apenas excluíam os projectos políticos estatutário-corporativos de Antigo Regime e os projectos polí­ ticos socialistas. Dentro destas margens, a pandectística erigia o seu formalismo e cientificidade como valores supremos, em face dos quais as soluções político-sociais contraditórias podi­ am ser neutral e objectivamente julgadas. Este pathos da neutralidade e da objectividade, combinado com o pathos político estadualista, foi um dos principais facto­ res de legitimação de uma administração - e também de uma administração judiciária - dirigidas pelo princípio da racionali­ dade. A nova ética do burocrata e do juiz - tão bem descrita por Max Weber - é justamente cunhada por esta ideia de que ao Es­ tado e ao direito compete levar a cabo uma tarefa de racionali­ zação social, avaliando as situações em termos neutrais e objec­ tivos, independentemente dos valores político-sociais em debate e da qualidade das pessoas envolvidas. Pelos mesmos motivos, o formalismo reagia também con­ tra a instrumentalização do direito pela política e pelo Estado. Fundando-se o saber jurídico numa ordenação formal ou cien­ tífica da realidade legislativa empírica, a lei, ou seja, a vontade do poder político, constituía apenas o objecto de elaboração. Já as categorias dessa elaboração dependiam totalmente do esfor­ ço intelectual dos juristas doutrinais. Daí que o saber jurídico não fosse apenas independente do poder, como ainda tivesse legiti­ midade para impor os seus critérios de processamento doutri­ nal do material legislativo. Com isto, o direito doutrinal (Profes- 398 António Manuel Hespanhí sorenrecht) readquire a sua tradicional indisponibilidade peran te o poder e, de certa forma, pode legitimamente reclamar aquele papel de árbitro entre governantes e governados que se incor porou tão duradouramente na ideologia espontânea dos juris tas e na auto-representação que eles tinham do seu papel sócio político. Foi isto que deu origem à imagem contemporânea di um Estado dirigido por juizes (Richterstaat) como ideal de orga nização. Independentemente de tudo o que possa haver de forma lista e de conservador (e muito havia)317nesta ideia de neutrali dade e independência do direito e do Estado, o certo é que est legado da pandectística - em que o rigorismo formal do proces so de decisão garante, só por si, a justeza material dos resulta dos - marcou decisivamente a cultura política e jurídica dos nos sos dias. A pandectística teve uma grande expansão, na Europa fora dela. Na Europa, está na origem do Código civil alemão d 1900, a ponto de se ter podido escrever que ele era as Panáecta de Windscheid transformadas em parágrafos.518 Através dest e da doutrina alemã anterior ou subsequente, a pandectístic influenciou muito a doutrina e as codificações ulteriores.519Mes mo no Extremo Oriente, ela influencia decisivamente os projec tos de renovação dos direitos chinês520 e japonês521 nas primei ras décadas do século XX.522 517 A crítica do formalismo jurídico feita pelo m arxism o clássico (K. M arx, nc m eadam ente; v. infra, 8 .5 .1 .) tinha em vista a pandectística. 518 Sobre este código, v., por todos, F. W ieacker, 1993, 536 ss. 5,9E, por exem plo, inegável a influência da doutrina alem ã, de raiz pandectís tica, no Código civil português de 1967, nom eadam ente através do magisté rio, na sua comissão redactora, de Adriano Vaz Serra, Antunes Varela e Pire de Lima. V. M endonça, 1981. 520Os "cinco códigos" da República de Nanquim (1925-1929) são bastante in fluenciados pelo B.G.B.. 521 V. Rõhl, 1959; Kigatawa, 1966. 522Sobre a expansão mundial da pandectística, v. Schw artz, 1935, 425 ss. Cultura Jurídica Europeia 399 8.3.3.I. Os dogmas do conceitualismo Dada a influência que vão ter na evolução subsequente da dogmática jurídica contemporânea, é útil destacar alguns dos resultados mais característicos do doutrina pandectística. (a) A teoria da subsunção (Subsumtionslehre). O primeiro deles é a "teoria da subsunção", ou seja, a teo­ ria segundo a qual a realização da justiça nos casos concretos seria assegurada subsumindo os "factos" ao "direito", nos ter­ mos de um raciocínio de tipo silogístico, em que a premissa maior era um princípio de direito e a premissa menor a situa­ ção de facto (Tatbestand) a resolver.523 A teoria da subsunção - que conhece também uma versão legalista em que a premissa maior é a lei - tende a reduzir a acti­ vidade jurisprudência] a uma tarefa estéril de aplicação automá­ tica dos princípios jurídicos. Mas, por outro lado, teve um im­ portante papel na contenção do arbítrio e do subjectivismo jurisprudencial. (b) O dogma da plenitude lógica do ordenamento jurídico. Embora o conjunto das normas legislativas não cubra todo o campo do juridicamente regulável (i.e., embora o ordenamen­ to legislativo tenha lacunas), o ordenamento jurídico, concebi­ do como sistema conceituai, já o cobriria. Na verdade, o carác­ ter geral dos conceitos e a possibilidade de, por meio de opera­ ções lógicas, obter deles outros conceitos torna-os elásticos. Construído o sistema e definidas as suas regras de transforma­ ção (a sua "gram ática generativa"), pode-se projectá-lo sobre qualquer caso jurídico imaginável, por meio de uma jurispru­ dência "criadora" ou "construtiva". Assim, ao juiz (que também não pode deixar de decidir com fundamento em que não existe direito aplicável) fica vedada, 523Referência bibliográfica básica: Latorre, 1 9 7 8 ,1 0 2 -1 0 4 ; W ieacker, 1993, 494497; Kaufm ann, 1994, 293 ss. 400 António M anuel Hespanha mesmo perante a existência de uma lacuna da lei, a avaliação do caso concreto segundo critérios autónomos de valoração. O que ele deve fazer, nesse caso, é estender, por dedução e combina­ ção conceituai, o sistema normativo, de modo a cobrir o caso sub judice.52i (c) A interpretação "objectivista". A ideia de que o direito formava um sistema coerente de conceitos, auridos do material legislativo empírico, fazia com que o sentido decisivo das normas jurídicas fosse o seu sentido sistemático. Por isso, o sentido de qualquer norma decorria da sua referência ao sistema normativo em que se integrasse. Enquanto que o positivismo legalista propunha uma inter­ pretação da lei de acordo com as intenções do seu legislador his­ tórico, o positivismo conceitualista propõe o recurso à ficção de um legislador "razoável", i.e., de um legislador que vai integran­ do ("rescrevendo", "reinterpretando") continuamente cada uma das normas no seu contexto sistemático, de modo a que o orde­ namento jurídico - de facto constituído por uma miríade de nor­ mas contraditórias - conserve sempre a sua integridade e coe­ rência como sistema conceituai. O sentido da norma decorre, assim, não de intenções subjectivas (do seu legislador histórico), mas dos sentidos objectivos do seu contexto.525 8 .3 .3 .2 . O conceitualismo em Portugal Em Portugal, a influência da pandectística pode já ser de­ tectada em autores dos meados do século XIX, que salientam a necessidade de trabalhar de forma sistemática os dados do di­ reito positivo, como acontece com Coelho da Rocha, um autor tocado pelo espírito da Escola Histórica. Durante a segunda metade do século XIX, a lição de Bluntschli, um representante 524 Referência bibliográfica básica: Latorre, 197 8 ,1 0 0 -1 0 2 ; W ieacker, 1 9 9 3 ,4 9 7 499; Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 6 3 ss.. 525K aufm ann, 1 9 9 4 ,1 4 2 ss.. Cultura Jurídica Europeia 401 suíço da pandectística, tem uma grande influência no ensino universitário. Mas o acto inaugural de um construtivismo de tipo pandectista é a publicação, em 1907, das Instituições de direito ci­ vil português, de Guilherme Moreira, ao propor como critério de resolução jurídica, os "princípios gerais de direito", entendidos como aqueles "que dominam as normas relativas a uma insti­ tuição ou determinado grupo de relações sociais".526 De igual modo, estão aí bem presentes as ideias de organicidade, sistematicidade e produtividade da ordem jurídico-conceitual.527 Mais tarde, já como reacção contra o positivismo sociológico (cf. infra, 8.4.5.), Luís Cabral de Moncada insiste de novo na ideia de que o saber jurídico é, antes de tudo, "um a ciência toda feita de abstracções, de conceitos abstractos e delicados, ligados uns aos outros por uma lógica sui generis" .528 No domínio do direito público, a influência do "método jurídico", de Laband, Jellinek e Otto Mayer, foi retardada pelo impacto do sociologismo nos finais do século XIX e princípios do século XX529 e pela desconfiança em relação ao seu fundo 526 Instituições ..., Coim bra, 1 9 0 7 ,3 3 . 527 "O direito vigente deve ter em si mesm o, com o organism o vivo, a força su­ ficiente para regular todas as relações, incluindo as que não foram previs­ tas pelo legislador. São portanto os princípios em que assenta esse direito e que o enform am que devem constituir fundam entalm ente o direito sub­ sidiário" (ibid,). 528Lições de direito civil (parte geral), Coimbra, 1 9 3 2 ,1 ,7; v., ainda, a sua aprecia­ ção do logicismo conceitualista na interpretação da lei (ibid., 174 ss.). Em todo o caso, C abral de M oncada distancia-se, noutras obras, deste forma­ lismo, ao conceber os sistemas jurídicos com o integrados tam bém por ele­ mentos instintivos e im aginativos, aproxim ando-se, então, tanto do histo­ ricismo com o do idealismo alem ão; v., neste sentido, o seu artigo "O "sé­ culo XVffl" na legislação de Pom bal", em Boi. Fac. Dir. Coimbra, 9(1925-1926), 167 ss. 529N a perspectiva sociologista (v. infra, 174), este isolamento dos momentos jurídicos do seu contexto social correspondia a uma forma de "m etafísica" e de "anti-historicism o". Tal é a crítica que lhe é dirigida por Alberto dos Reis & M arnoco e Sousa, no seu relatório sobre o estado do ensino do di­ reito (A Faculdade de Direito e o seu ensino, Coimbra, 1907, 31 ss.). 402 António Manuel Hespanh, político, pois havia quem visse no "método jurídico" um refle xo do autoritarismo político do Império de Bismarck.530 Mas < justamente a sua adopção, como base de reacção anti-sociológi ca, por uma nova geração de juspublicistas (Fezas Vital, Cario Moreira, Afonso Queiró, Marcelo Caetano), activos nos anos '2i e '30, que renova o panorama do direito e lhe dá uma certa uni dade durante cerca de cinquenta anos.531 Para estes, a constru ção jurídica do Estado não deve ser influenciada pelos aspecto políticos ou sociológicos, devendo ater-se exclusivamente a ca tegorias conceituais do direito. O "m étodo" deve sobrepor-se "política". "Que argumentos! - exclama Marcello Caetano peran te as críticas "políticas" dirigidas ao "método jurídico" (cf. a not anterior) - "E é a partir destes preconceitos e de consideraçõe políticas (o ter permitido justificar a supremacia do imperado sobre as assembleias legislativas) que se condena um méto do [...] !".532 8.4. As escolas anti-conceitualistas e anti-formalistas. Naturalismo, vitalismo e organicismo As construções da pandectística tornaram-se progressiva mente mais elaboradas e dependentes da pura construção con ceitual. Como se disse, a "gramática generativa" que presidia ; este construtivismo lógico-conceitual estava marcada, do pon to de vista formal, pela teoria kantiana das ciências - que fazi, equivaler a verdade ao rigor lógico e à coerência conceituai -, e do ponto de vista material, pelos valores típicos do liberalism< 330N a medida em que identificava o direito com o Estado e negava a existêr cia de direitos subjectivos públicos; cf. A. Cunha Saraiva, A construção juri dica do Estado, Coimbra, 1 9 1 2 ,1, 391 ss. 531 Sobre isto, v. as referências que faço em Gilissen, 1988, 520 ss., bem comi os exemplos textuais aí incluídos (nom eadam ente, para o direito públicc os de Fezas Vital e de M arcelo Caetano). d32 Marcello Caetano, O problema do método no direito administrativo portuguêi Lisboa, 1 9 4 8 ,1 7 s. N um m esm o sentido dogm ático-form alista, v. o seu Tra tado elementar de direito administrativo, 1944. Cultura Jurídica Europeia 403 burguês, nomeadamente a liberdade (concebida como poder de vontade) e a sua extensão, a propriedade. A partir da segunda metade dos século XIX, este panora­ ma de fundo da sensibilidade cultural e política, bem como os contextos sociais começam a mudar. No primeiro plano, o formalismo epistemológico kantiano - que tinha como ponto de referência as ciências físico-matemá­ ticas - cede perante o empirismo e experimentalismo, orienta­ dos pelos progressos das ciências química e biológica. Observa­ ção empírica, experimentação e um novo tipo de explicação fi­ nalista (proveniente, sobretudo, do darwinismo).533 O espectá­ culo dos organismos vivos, em constante evolução, na sua luta pela sobrevivência, é agora a imagem estruturante do saber. No plano do ambiente social e político, quebra-se, pela mesma altura, a unanimidade do primeiro liberalismo. Os mo­ vimentos socialistas manifestam-se vigorosamente na Alema­ nha, em 1848, e em França, em 1870. O desenvolvimento do ca­ pitalismo faz surgir a "questão operária". Começa a impor-se a imagem de uma sociedade percorrida por conflitos de interes­ ses e de grupos. Com tudo isto, era natural que a serenidade olímpica da pandectística - no seu ideal de construir um direito "separado da sociedade" e atento apenas ao rigor construtivo - começasse a chocar os espíritos mais atentos ao devir da sociedade e às pre­ mentes exigências "da vida". Ou seja, a vida começa a deixar de caber no discurso que os juristas faziam sobre ela. Esta não correspondência entre o discurso e o contexto prá­ tico a que visava aplicar-se, acompanhada pela ascensão de um 533 l.e., um a explicação que tem em conta a finalidade dos acontecim entos e não os antecedentes. A im agem científica inspiradora é a de struggle for life, do evolucionism o darw inista - a evolução biológica é com andada pela finalidade da sobrevivência e explicáveis por ela. O acaso genético (que obedece a um a causalidade m ecanicista, do tipo da das ciências físicas) é, no m undo da vida, subordinado a um a cau salid ad e finalista em que o patrim ónio genético é utilizado p ara a finalidade de vencer na co n co rrên ­ cia biológica. 404 António M anuel Hespanha novo modelo de discurso científico, cria as condições favoráveis para que se transplantem para o saber jurídico os modelos de abordagem que dominavam nas ciências naturais. A isto se cha­ mou "naturalism o jurídico". O naturalismo jurídico trata o direito como um facto soci­ al, desvalorizando os seus desígnios normativos - i.e., os momen­ tos em que o direito procura actuar sobre a realidade social, jus­ tamente como factor estruturante, dinâmico - procurando expli­ cá-lo, a partir da realidade psicológica subjacente ou da realidade social envolvente, de acordo com os modelos de explicação uti­ lizados nas ciências da natureza.534 Estes modelos podem ser, basicamente, o modelo mecanicista, em que o direito aparece como a consequência de causas eficientes de natureza psicológica (impulsos vitais, sentimentos jurídicos [Rechtsgefühle]), características físicas ou psíquicas) ou social (força [Macht]), e o modelo biológico, em que o direito se explica a partir de uma "lógica da vida", dominada por interes­ ses e finalidades. Este último foi mais eficaz no domínio do pen­ samento jurídico, estando subjacente à generalidade das esco­ las descritas nos parágrafos seguintes. Um e outro têm, porém, em comum as ideias condutoras de que o direito é, irredutivelmente, um facto social e de que não pode ser estudado senão na perspectiva das suas relações - de variável dependente (sociologismo mecanicista) ou de função (sociologismo funcionalista ou finalista) - com a sociedade envolvente.535 034Sobre o naturalism o, v., por todos, Wieacker, 1993,652-663; Kaufmann, 1994, 143 ss.. 535 p0 ; esta hom ogeneização da realidade, confundindo o plano do "se r" (Sein) com o do "d e v e r ser" (Sollen) que valeu as maiores críticas ao naturalismo jurídico. Se o naturalism o podia dar conta do direito com o simples facto social "b ru to" (i.e., enquanto norm a "v iv id a"), já não poderia d ar conta do direito com o norm a (ideal, modelo) que se pretende im por à realidade so­ cial e que, por isso m esm o, ainda não faz parte dela, nem é por ela explica­ da. O direito pertenceria ao m undo dos valores a realizar e este nada teria a ver com o da sociedade já estabelecida. Cultura Jurídica Europeia 405 8.4.1. Ajurisprudência teleológica Produto da sensibilidade vitalista é a segunda fase da obra de Rudolf v. Jhering (1818-1892; a partir da sua òbra Der Zweck im Recht [O interesse no direito], 1877/1883), dominada pela ideia de que a finalidade e o interesse são as entidades gerado­ ras do direito. Tal como o acaso biológico no processo de evolu­ ção, a vontade é, de facto, a causa genética dos actos humanos de que se ocupa o direito. Mas a avaliação e disciplina jurídica desses actos parte, não desse momento voluntarístico, mas da consideração dos interesses subjacentes, quer dos interesses (ou finalidades) prosseguidas pelos indivíduos, na medida em que eles sejam dignos de protecção, quer, sobretudo, de interesses sociais objectivos que, frequentemente, não fazem parte das volições individuais (boa fé contratual, dimensão social da propriedade, finalidades da instituição familiar, etc.). O direito seria uma cri­ ação orgânica da sociedade, como organismo vivo que esponttaneamente aspira pelo equilíbrio de interesses que promove a harmonia e a preservação da vida social. Transita-se, assim, de uma concepção do direito como produto de um pacto visando a protecção absoluta dos poderes de vontade para uma outra em que o direito serve, antes de mais, para garantir interesses social­ mente úteis. A uma lógica voluntarista e contratualista substituise uma outra utilitarista e transindividual. No plano da ética que subjaz ao direito, esta corrente mar­ ca um retorno à ideia de uma ética material, propondo uma tá­ bua de valores ligada a dados sociais objectivos; neste caso, as constelações de interesses gerados por arranjos objectivos e tí­ picos de interesses sociais, a que chamou "corpos jurídicos" e que correspondem ao que hoje designamos por institutos ou insti tu tições (família, contratos, representação, etc.). A importância de Jhering foi muito grande,536nomeadamen­ te no plano dogmático, ao introduzir a noção de interpretação tele­ ológica, ou seja, de uma interpretação (das normas e dos negócios 536Sobre Jhering, v., por todos, W ieacker, 1993, 514-518; Kaufmann, 1994,1 4 4 . 406 António Manuel Hespanl jurídicos) de acordo com as finalidades ou interesses em prese; ça. No entanto, contrariamente ao que se poderia inferir des ideia de uma organização esponttânea e objectiva das finalidade sociais, Jhering nunca negou ao Estado o monopólio da edição c direito. Isto explica-se, porventura, tanto pelo impacto do pens mento estadualista numa Alemanha que acaba de se unificc como pelo papel que tanto o pensamento organicista como o pe; sarnento hegeliano atribuíram ao Estado. O primeiro encamdo como corporização da sociedade e garante da sua solidariedac (cf. infra 8.4.4.), o segundo como síntese racionalizadora das co: tradições sociais. Daí que o principal legado dogmático desta e cola se situe, como se disse, no plano da teoria da interpretaçã não no da teoria das fontes do direito. Mais tarde - e sobretudo após a sua reelaboração por Pb llip Heck (1858-1943)537- esta linha metodológica vem a desen bocar em duas correntes de ambição diferente. Por um lad numa corrente que se propõe desamarrar o direito do Estado o achamento do direito da exegese legislativa - a Escola do D reito Livre (Freie Rechtschule). Por outro, numa corrente cuj< propostas se situam apenas no domínio da teoria da interpret, ção - a "jurisprudência dos interesses" (Interessenjurispruden que desenvolverá a crítica de Jhering à "jurisprudência dos coi ceítos" (Begriffsjurisprudenz), típica da pandectística. 8.4.2. A Escola do Direito Livre A Escola do Direito Livre constitui um movimento de coi testação mais radical, quer do positivismo conceituai, quer d positivismo lógico, em nome da atribuição ao juiz de uma ma or capacidade de conformação do direito. Na sua origem está constação, feita por um jurista prático - Ernst Fuchs, 1859-192' Die gemeinschadlichkeit der konstruktiven Jurisprudenz (O carácfr 537 Gesetzauslegung und lnteressenjurisprudenz [Interpretação da lei e jurispn dência dos interesses], 1914; Begriffsjurisprudenz und Interessenjurisprudci [Jurisprudência dos conceitos e jurisprudência dos interesses], 1932; sob ele, Kaufmann, 1 9 9 4 ,1 4 5 ss.. Cultura ju rídica Europeia 407 socialmente danoso da jurisprudência construtiva), 1907 -, de que o juiz, no processo de achamento da solução jurídica, parte do seu sentido de justiça (Rechtsgefühl) e não da lei. O contribu­ to de um historiador - Hermann Kantorowicz (1877-1940, Rechtswissensclmft und Soziologie, 1910) - e de um sociólogo do di­ reito - Eugen Ehrlich (1862-1922, Grundlegung der Soziologie dei Rechtes, 1912 ) - contribuíram para dar uma maior consistêncú teórica às propostas de problematização ou abandono do mo­ delo estadual, legalista e racionalista do direito, a caminho dc uma fundamentação "livre", fundada na sensibilidade j uri d ia comunitária, auscultada, caso a caso pelo juiz. Esta ideia de que os juristas decidem com base na sua sen sibilidade, só depois encontrando argumentos racionais ou fun damentos legais corresponde ao senso comum dos juristas, ain da hoje. Mas, no contexto histórico a que nos referimos, esta in sistência no carácter "pessoal" e "não racional" da decisã o nãc pode ser desligado, por um lado, da crise do conceitualismo dc pandectística, mas, também, num âmbito mais geral, de corren tes filosóficas de crítica ao racionalismo, que afirmavam o pri mado da sensibilidade (intuição), da vontade ou da acção (élm vital) como forma de realização do h o m e m , ou o carácter p o líti­ co (i.e ., radicado na vontade de poder) de todos os valores.538 O extremismo das posições metodológicas da Escola dc Direito Livre foi matizado pela limitação desta liberdade de cri ação do direito aos casos em que existissem lacunas da lei. En todo o caso, os seguidores deste movimento insistiam em qu« existia uma lacuna sempre que a interpretação da lei não fosse clara e inequívoca, pelo que, na prática, "tantas lacunas quan tas as palavras da lei" (H. Kantorowicz). Por isso, este movimento - além de ter sido tido como bas­ tante estranho, nos seus interesses e métodos, ao mundo doí 538É clara a consonância de alguns destes pontos de vista com a filosofia, críti­ ca do racionalismo e exaltadora da acção, de Friedrich Nietszche f I 844-1900 ou de H enri Bergson (1859-1941). Sobre N ietszche e o direito, Kaufm ann 1994, 86; Valadier, 1998; Litowitz, 1995, 56-57. 408 António M anuel Hespanha juristas - foi sempre considerado com subversivo para a certe­ za e segurança do direito e da própria comunidade jurídica.539 Não pode, contude, deixar de se sublinhar a ênfase que este movimento deu à natureza política da decisão do juiz (do juris­ ta), insistindo na responsabilização pessoal que lhe está ineren­ te e, com isto, no compromisso ético e social do juiz quando de­ cide, compromisso que tinha sido escamoteado pelo positivis­ mo, ao apresentar o juiz como um autómato executor da lei ou dos princípios científicos do direito. Tal como o crente, na visão protestante da fé e da salvação, o jurista decide livremente e, nes­ sa decissão, ao mesmo tempo que afirma convicções, compro­ mete o seu destino pessoal.540 Mas este decisionismo, que identifica os valores jurídicos como produtos de uma afirmação (proposição) política deu tam­ bém cobertura à teoria jurídica do nazismo e do fascismo,541bem como do estalinismo,542para as quais o direito, mais do que uma ordem racional, é uma manifestação de vontade e um instrumen­ to de poder. 8.4.3. A jurisprudência dos interesses A "jurisprudência dos interesses" tem, em certa medida, um alcance menos ambicioso do que a jurisprudência teleológica de Jhering (ou a "Escola Livre do Direito"). Enquanto que estas da­ vam alguma abertura em relação a formas anti-legalistas de "en- 5WSobre a Escola de Direito Livre, por todos, W ieacker, 1993, 670 ss. e Kauf­ mann, 1 9 9 4 ,1 4 6 ss. Im portante, neste sentido, H erm ann Isay (1873-1938), Rechtsnorm und Ents­ cheidung, 1923. 541 N om eadam ente, o decisionism o político e jurídico de Carl Schm itt (18881985), o mais brilhante e mais cnsistente dos juristas desta corrente, para o qual o direito consistia num a afirm ação dos valores dos com patriotas (Vo­ lksgenossen) contra os estranhos (Fremde). Ao Estado, com o "n o v o Prínci­ p e", cabia a afirm ação destes valores, por meio da lei, mas eventualmente contra a lei, se esta estorvasse conjunturalem ente os interesses colectivos (v., em síntese, Kaufm ann, 1994, 96 s.). 542Cf. infra, 8.5.1. . Cultura Jurídica Europeia 409 contrar" o direito, a jurisprudência dos interesses aceita basica­ mente os pressupostos do positivismo legal e tenta apenas resol­ ver um problema "limitado", a que já o construtivismo pandectista tinha tentado responder - o problema das lacunas do orde­ namento legal - que as grandes mudanças sociais e políticas dos finais do século XIX e inícios do século XX, incompletamente co­ bertas pela legislação, tinham tomado ainda mais evidente. Na verdade, a sua proposta de base é a de que, constituindo qualquer caso jurídico um conflito de interesses, a decisão a atin­ gir se deve basear numa adequada ponderação desses interesses e não a partir da dedução conceituai. Os conceitos teriam uma função apenas heurística ou didáctica. Constituiriam fórmulas sintécticas com auxílio das quais poderia ser descrita a forma tí­ pica ou usual de obter a correcta ponderação dos interesses num determinado tipo de casos. E, por isso, sugeririam provisoriamen­ te uma abordagem do problema a resolver. Mas - ao contrário do que pretendia a jurisprudência dos conceitos - não teriam qual­ quer função decisiva no achamento da solução jurídica. Daí que esta corrente critique o método dedutivo-conceitual como uma inversão ("método da inversão", Umkehrunsmethoãe), pois coloca no ponto de partida da invenção jurídica o que devia estar no fim. Se critica o conceitualismo, a jurisprudência dos interesses mantêm-se nos quadors do legalismo, pois a ponderação dos interesses adequada é feita equivaler à ponderação que se guie pelos critérios de avaliação explícita ou implicitamente feita na lei. Embora não se esteja a decidir de acordo com a letra da lei (porque ela não prevê de todo ou não prevê em termos claros o caso), está-se pelo menos a respeitar a avaliação dos interesses legalmente estabelecidos e a partir dela para um construtivis­ mo de outro tipo. Não o da dedução conceituai, típico da pandectística,543 mas o da análise das valorações legais e da sua ex543Cf. supra, 8.3.3. A crítica dirigida pela jurisprudência dos interesses à juris­ prudência dos conceitos era a de que ela p raticava um "m étodo da inver­ são" - ou seja que colocava no princípio do processo de achamento da so­ lução jurídica (Rechtsfindung) os conceitos, quando estes deviam ser ape­ nas sínteses finais dos resultados justos obtidos 410 António M anuel Hespanh tensão a casos não previstos. Trata-se, por isso, de um constn: tivismo de base mais apertadamente legalista do que o do cor ceitualismo, até porque não deixa de se reconhecer na lei a ún ca fonte de direito (i.e., a única ponderação legítima dos intere: ses) e de se insistir no dever de obediência dos juizes à lei. S que esta obediência teria que ser, para utilizar uma expressã do próprio Ph. Heck, uma "obediência inteligente".544 8.4.3.1. A jurisprudência dos interesses em Portugal Em Portugal, a "jurisprudência dos interesses" começou influenciar a doutrina portuguesa a partir dos anos quarentí Nessa altura, o grande renovador da civilística portuguesa cor temporânea, Manuel de Andrade, acolhe muitos dos seus por tos de vista teóricos545e aplica-os na prática. Também Adrian Vaz Serra, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, M: nistro da Justiça e principal impulsionador da elaboração de ur novo código civil,546 defende uma versão prudente da jurisprt dência dos interesses. Seguidores seus são ainda António A Ferrer Correia, Francisco Pereira Coelho e, em geral, toda a c: vilística da escola de Coimbra. 544Principais representantes da "jurisprudência dos interesses": Ph. Heck (Gi setzauslegung u. Interessenjurisprudenz, 1914; Begríffsbildung u. Interessenji risprudenz, 1932) e a cham ada escola de Tübingen, nom eadam ente, M ax Rt melin, Oertamnn e Müller-Erzbach. Sobre esta corrente, Wieacker, 1 9 9 3 ,661 669; Kaufmann, 1 9 9 4 ,1 4 5 ss.. 545 Em Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Coimbra, 1944. 346Cf. Adriano Vaz Serra, Valor prático dos conceitos e da construção jurídica (m tas para 0 estudo do problema das relações entre a teoria e a prática do direito), Lií boa, 1944. Sobre ele, v. Luís Cabral de M oncada, "Integração das lacunas interpretação do direito", Rev. dir. estudos sociais, 7(1954). Sobre o tema v ainda, Martins; 1989. No dom ínio do direito público, a introdução de per: pectivas metodológicas inspiradas pela jurisprudência dos interesses devt se a Afonso Rodrigues Queiró, O poder discricionário na administração. Tei ria dos actos do governo, 1944. Cultura Jurídica Europeia 411 8 .4 .4 . 0 positivism o sociológico e o institucionalism o A ideia de que o direito está indissoluvelmente ligado à sociedade não era nova no saber jurídico. De alguma forma, o direito natural clássico, na sua versão objectivista (Aristóteles, S. Tomás), ao ligar o direito à natureza das coisas (humanas e sociais), propunha justamente a perspectiva de que o direito, na sua função de manter os equilíbrios sociais estabelecidos, "h a­ bituais" (iustitiam facere), tinha que se orientar para uma justiça imanente nas instituições sociais. O direito e a justiça visavam o bem comum, sendo que este era identificado com os equilíbrios sociais profundos, enraizados pela tradição e estruturantes dos sentimentos comunitários de ordem e de justiça. Mais tarde, Montesquieu (1689-1755) dá a este enraizamen­ to social do direito um tom mais pronunciadamente mecanicista, relacionando a organização política e jurídica das sociedades com factores empíricos como o clima ou o meio geográfico. E, já no século XIX, Savigny volta a esta ideia de que o fundamento do direito tem que ser procurado nos valores que estruturam uma cultura (nacional). E também com a Escola Histórica que como já se disse - surge a ideia de que estas culturas constituem organismos, sujeitos a uma evolução regulada, ou por leis pró­ prias de cada um deles, ou por uma lei geral do progresso his­ tórico.547 No entanto, a primeira manifestação de um positivismo sociológico "científico" - ou seja, obedecendo aos modelos epistemológicos das novas ciências sociais da segunda metade do sécu lo XIX, nomeadamente no que respeita à adopção de mo­ delos mecanicistas ou funcionalistas de explicação - decorre do sociologismo de Auguste Comte (1798-1857). 547 Cf., sobre esta ideia de estádios histórico-jurídicos em Puch ta, W ieack er, 1 993, 455. N a A lem an ha, o principal rep resen tan te do organ icism o juríd ico-político é, no en tan to, O. v. G ierke (1 8 4 1 -1 9 2 1 ), v. W ieack er, 1993, 518 ss. 412 António M anuel Hespanha Comte participa de um modelo de ciência para o qual só existe uma ciência do geral. Só que, agora, "geral" não se opõe apenas a "particular",548 mas também a "individual". Assim, as ciências sociais devem visar a explicação do todo social, com­ preendida como o complexo global e orgânico das relações interindividuais. O indivíduo isolado - que constituíra o objecto de atenção quer da economia clássica (Adam Smith, David Ri­ cardo), quer do jusracionalismo (v. supra, 7.1.2.), quer da pandectística (v. supra, 8.3.3.) - deixa de constituir o ponto de foca­ gem do saber social e passa a ser tido como uma abstracção "m etafísica", realmente inexistente. Real, geral e positiva, era a sociedade, como complexo global de relações entre indivíduos, em que estes apareciam como determinados por constrangimen­ tos objectivos e independentes da sua vontade. Só dirigindo para ela o seu esforço cognitivo, o saber social poderia, portanto, ga­ nhar a generalidade e a positividade das ciências.549 Do ponto de vista da natureza dos saberes sociais, o comtismo é um positivismo. Estes saberes só teriam adquirido o es­ tatuto de ciência ao abandonar a pretensão de explicar as origens ou as finalidades últimas da sociedade e do homem - os "por­ quês?", característicos dos "estados" teológico e metafísico dos saberes - e ao dirigir a sua atenção para a simples descrição dos fenómenos sociais - os "com os?", característicos da fase cientí­ fica ou positiva da evolução do espírito humano. De resto, sen­ do o homem um ser determinado por causas internas (psicologismo) ou externas (sociologismo) e privado de livre arbítrio, uma dimensão valorativa dos saberes sociais deixava de ter sen- 548l.e., exigindo que o conhecim ento científico adopte proposições genéricas e abstractas, com o já acontecia com os saberes sociais desde o jusracionalis­ m o (opostos ao casuísmo e particularism o dos anteriores saberes sobre o h om em [m oral, direito, história - casus, quaestiones, exempla]). Sobre o com tism o, v., por todos, Jean L acroix, La sociologie d'Auguste Comte, P aris, PU F, 1973. Principais obras de C om te: Cours de philosophie positive (1830-1842) (I a fase); Système de politique positive, ou Traité sociologique, insti­ tuant la réligion de l'humanité (1851-1854) (2a fase). Interpretação politicosociológica do seu pensam ento, Fernando C atroga, 1977, max. 287-308. Cultura Jurídica Europeia 413 tido. Pois nem o homem se podia propor outra coisa que não decorresse dos seus factores determinantes, nem lhe podia ser dirigida qualquer censura moral pelos seus actos. A sociologia deixa-se, assim, descrever como uma "fisiologia social", comple­ tamente depurada de intenções normativas (religiosas, éticas).550 O positivismo sociológico de A. Comte - depois desenvol­ vido por discípulos seus, dos quais se destaca E. Littré (18011881)551- constitui (não tanto pelo seu "positivism o",552 mas so­ bretudo pelo seu organicismo) uma crítica directa ao indivi­ dualismo, voluntarismo e contratualismo da pandectística. O indivíduo não era um ser livre e autodeterminado, mas um ser dependente e que só sobrevivia em virtude da solidarie­ dade social. A sociedade não era um conjunto de indivíduos autónomos e auto-regidos, mas uma constelação de relações interindividuais forçosas e indisponíveis, justamente porque baseadas nesse carácter incompleto e fraco do indivíduo e na necessidade, daí decorrente, de especialização, divisão e complementarização do trabalho. A ordem social e política não se fundava num acordo de vontades que melhor garantisse os direitos naturais e prévios dos indivíduos, mas nas condições e exigências objectivas da vida social concretizadas em instituições (transindividuais e indispo- 550H averia, em todo o caso, espaço para uma disciplina norm ativa externa como o direito, pois, ao contrário do com portam ento instintivo dos animais, o com portam ento do h om em não era absolutamente determ inado. Júlio de M atos, um dos representantes da psicologia positiva em Portugal, conclui " I o. - Que o livre arbítrio e a espontaneidade dos actos voluntários são uma quimera, porque a Fisiologia dem onstrou a subordinação destes fenóme­ nos a leis; 2o. - Que os m ovim entos da vontade não são fatais, m as simples­ m ente condicionados, porque nós podem os intervir neles e modificá-los num a direcção p redeterm inada" (cit. por F. Catroga, 1977, 53 n. 1). 551 E. Littré combina o com tism o com o positivismo inglês (de orientação demoliberal) de S. Mill e H. Spencer. Obras principais: Conservationi, révolution, positivisme, 1852; revista Philosiphie positiviste - revue (décadas '60 e '70 do século XIX). 552Cf. supra, 8 .2 .2 .. 414 António Manuel Hespanl níveis) como a família, a paróquia, o município, a província, nação, a federação de povos e, finalmente, a Humanidade. Enquanto não surgissem estas duas últimas formas supr< mas de organização, o Estado representava o cume da organ zação social. Ele, como instituição orgânica, não era um mei garante de direitos e liberdades individuais, mas um portadc dos interesses do organismo social mais elevados e, por isso, ui agente de racionalização social, de educação "científica". Col; borando com a ciência e com uma nova religião racional (a rei gião da Humanidade), na criação de um consenso social em to: no dos princípios de uma política científica e positiva. No domínio do direito, o aplicador das receitas metodolc gicas do comtismo é Émile Durkheim (1858-1917), que leva cabo a crítica da pandectística, tanto sob o ponto de vista da su teoria social implícita (o individualismo contratualista), com sob o ponto de vista da sua teoria do conhecimento jurídico ( formalismo). Do ponto de vista da teoria social, Durkheim cor siderava que a ordem social, política e jurídica não repousav nem no acordo das vontades individuais (como se vinha defer dendo desde o jusracionalismo), nem na vontade disciplinadc ra do Estado (como queriam o legalismo e o estadualismo), ma nas solidariedades sociais objectivas geradas pela especialize ção e pela divisão das funções sociais. As normas jurídicas, coi porizadas em instituições, seriam, assim, "coisas objectivas' indisponíveis e trans-individuais.553 Nesta linha seguiram juristas que tiveram uma grand influência dogmática, nomeadam ente no domínio do direit público. Sobre E. Durkheim, que teve grande influência nos meios universitários d juristas e historiadores, nom eadam ente em França, v. Arnaud, 1 9 8 1 ,1 1 4 s Com informações sobre as escolas institucionalistas ou realistas francesa: decorrentes do seu magistério: Léon Duguit, L'État, le droit objectif et la h positive, 1901; Gaston Jèze, Les principes généraux du droit administratif, 190' R. Saleilles, De la personalitéjuridique (histoire et théorie), 1910; François Gérr Méthodes d'interprétation et sources en droit privé, 1899. Cultura Jurídica Europeia 415 Um deles foi Léon Duguit (1859-1928), constitucionalista e administrativista influente, que tentou uma reconstrução da te­ oria do Estado em moldes positivistas. Esta teoria parte de uma crítica cerrada aos dogmas da teoria liberal do Estado - a ideia de direito subjectivo como entidade originária e fundadora e a ideia de soberania como poder político único, exclusivo e resi­ dindo no Estado. "O homem natural, isolado, nascendo livre e independen­ te dos outros homens e tendo direitos constituídos por esta li­ berdade, por esta independência mesmo, é uma abstracção sem realidade", escreve ele no seu Manuel de droit constitutionnel.55* E continua: "N a ordem dos factos, o homem nasce membro de uma colectividade; sempre viveu em sociedade e não pode vi­ ver senão em sociedade. O ponto de partida de qualquer dou­ trina sobre o fundamento do direito deve ser, sem dúvida, o homem natural. Mas o homem natural não é o ser isolado e li­ vre dos filósofos do século XVIII. É antes o indivíduo preso nos laços da solidariedade social. O que se deve portanto afirmar não é que os homens nascem livres e iguais em direitos, mas antes que eles nascem membros de uma colectividade e sujeitos, por isso, a todas as obrigações que são implicadas pela manutenção e desenvolvimento da vida colectiva". As consequências disto são notáveis e merecem ser realçadas. Em primeiro lugar, esta concepção realista dos vínculos político-sociais leva à ideia de particularismo jurídico. Ou seja, tanto à recusa do carácter eterno e imutável do direito, pois as formas da solidariedade social são diferentes de sociedade para sociedade; como à recusa do dogma da igualdade jurídica ab­ soluta dos homens, introduzindo a ideia de estatutos jurídicopolíticos diferentes correspondentes a lugares diferentes nas redes de solidariedade social (ibid., pp. 5,1 1 ). Como, por fim, à recusa do primado da norma geral e abstracta sobre a solução casuísta e concreta, pois variando até ao infinito as formas con­ 554 Ed. cons., Paris, 1923 4, 5. 416 António M anuel Hespanha cretas de que se reveste a solidariedade social, o papel do juris­ ta é o de determinar que regra se adapta exactamente a uma si­ tuação concreta. Depois, o realismo político-social leva à recusa do prima­ do dos direitos subjectivos sobre o direito objectivo. Pelo con­ trário, seria o direito objectivo que criaria e instituiria os direi­ tos subjectivos, concebidos agora como os direitos (derivados) de cada um a realizar aquilo que lhe compete no quadro da di­ visão de tarefas instituído, em cada sociedade, pela solidarieda­ de social. "Um a vez que o direito objectivo se funda na solidari­ edade social, o direito subjectivo deriva dele directa e logicamen­ te. Com efeito, se todo o indivíduo é obrigado pelo direito ob­ jectivo a cooperar na solidariedade social, daí resulta necessari­ amente que ele tem o direito de praticar todos os actos pelos quais ele coopera na solidariedade social e de impedir quem quer que seja de lhe pôr obstáculos ao papel social que lhe compete [...] É porque existe uma regra de direito que obriga cada homem a desempenhar um certo papel social que cada homem tem direi­ tos, os quais têm então por princípio e medida a missão que ele deve desempenhar" (ibid., p. 12). Uma aplicação interessante deste princípio do carácter derivado dos direitos subjectivos é a construção do direito de propriedade, que é apresentado como "o poder de certos indivíduos colocados numa posição econó­ mica determinada de desempenhar livremente a missão que lhes incumbe em face dessa sua situação especial" (ibid-, p. 13). O que o leva a recusar as concepções liberais da propriedade como di­ reito absoluto e a optar pelo conceito de uma propriedade limi­ tada pela sua função social. Por fim, o realismo leva à crítica da soberania nacional, con­ cebida como o produto da delegação das vontades individuais operada pelo sufrágio universal. Tal como o indivíduo isolado, essa delegação era uma abstracção indemonstrada e indemonstrável. O Estado era um facto em si mesmo, objectivo, natural, correspondente a uma constante das sociedades humanas, o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. Dogmas como o da origem divina do poder, do pacto social ou da soberania na- Cultura Jurídica Europeia 417 cional eram "outros tantos sofismas com os quais os governan­ tes queriam enganar os súbditos e com os quais muitas vezes se enganam a si mesmos" (ibid., p. 25). No entanto, esta divisão entre governantes e governados também não escapa à lei geral da divisão de tarefas e da solidariedade social. A função dos governantes é justamente a de impor a ordem, uma ordem des­ tinada a manter e aperfeiçoar a solidariedade social. Daí que, nos termos de uma política positiva ou realista, os limites do poder do Estado não provenham de direitos individuais pré-estatais, mas das leis objectivas da solidariedade social, que o Estado visa promover (ibid., p. 31 ss.). A linha anti-individualista na compreensão do poder e do direito foi também seguida por Maurice Hauriou (1856-1929), a quem se deve uma desenvolvida teoria da instituição com gran­ de influência nos meios jurídicos.555 Hauriou definiu a instituição como uma "ideia ou obra ou empreendimento que encontra realização e consistência jurídi­ ca num meio social". A sociedade estaria constituída por agre­ gados sociais modelados por certas ideias directivas. Ou, dizen­ do de outro modo, na sociedade, uma infinidade de ideias or­ ganizadoras - desde a caridade à salvaguarda de uma comuni­ dade nacional, passando pela realização de negócios - congre­ gam e organizam os indivíduos, pondo-os ao seu serviço. Estas ideias não apenas modelam a organização das instituições como se insinuam nos seus membros, levando-os a lutar pela sua con­ secução. Por outro lado, o dinamismo destas ideias faz com que elas mesmas se desenvolvam, ganhando progressivamente no­ vos contornos, de acordo com uma lógica própria de desenvol­ vimento. Daí que a ordem jurídica (como conjunto de instituições) seja bifronte. Por um lado, consiste em normas já positivadas 555 "L a théorie de l'institution et de la fondation (essai de vitalisme social)", Cahiers de la nouvelle journée, 1925, n. 4; Précis de droit administratif, 1907; Précis de droit public, 1910; A ux sources du droit: le Pouvoir, l'Ordre et la liberté, 1933; Teoria dell'istituzione e délia findazione, Milano, Giuffrè, 1967. 418 António Manuel Hespanha (ínstitutions-choses); mas, por outro lado, em ideias condutoras, que "puxam" pelo direito estabelecido em direcção a novos ob­ jectivos, dando-lhe vida (institutions-personnes). O institucionalismo cultiva, de facto, um "vitalismo jurídico", dando aos cor­ pos sociais uma "alm a" que transcende as suas manifestações actuais e os faz aspirar por novos objectivos.556 "Já sabemos escreve Hauriou (Teoria da instituição e da fundação, 1925) - que são três os elementos de uma qualquer instituição corporativa. 1 ) a ideia da obra a realizar num grupo social; 2) o poder orga­ nizado para a realização desta ideia; 3) as manifestações comu­ nitárias que se produzem no grupo social, em ligação com a ideia e a sua realização" (p. 14 da ed. italiana, citada). Com esta contraposição entre um direito socialmente esta­ belecido ("instituições-coisas") e um direito em devir, em pro­ cesso de institucionalização ("instituições-pessoas", "ideias di­ rectivas"), o institucionalismo responde à crítica de que o natu­ ralismo ignorava o elemento dinâmico (de programa, de projec­ to, de dever ser) do direito, considerando apenas o direito já enraizado na sociedade e redundando, por isso, numa atitude conservadora do status quo. Ganha, assim, um tom anti-positivista que o aproxima tanto do idealismo hegeliano (desenvol­ vimento objectivo das ideias) como do espiritualismo neo-tomista (um princípio espiritual presidindo aos movimentos das coi­ sas humanas) e que irá seduzir algumas correntes anti-positivis­ tas, nomeadamente o jusnaturalismo católico e o pensamento 356"O elemento mais im prtante de qualquer instituição corporativa consiste na ideia da obra a realizar num grupo social ou em seu proveito. Qualquer corpo constituído tam para realizar um a obra ou em presa. U m a sociedade anónima é a realização de um negócio, ou seja de um em preendim ento de especulação; um hospital é um estabelecimento constituído para a actua­ ção de um a ideia caritativa; u m Estado é u m corpo constituído p ara a rea­ lização de um certo núm ero de ideias, as mais simples das quais se resu­ m em na seguinte fórm ula: ""activ id ad e de protecção de um a socieddae ci­ vil nacional desenvolvida por um poder público de base territorial, que está separado da propriedade da terra, de m odo a deixar um a grande m argem de liberdade aos súbditos" (M. H auriou, Teoria delVistituzione ..., cit., 15). Cultura Jurídica Europeia 419 corporativista, nomeadamente em Itália, em Espanha e em Por­ tugal. E, por isso, apesar do seu estreito parentesco com o posi­ tivismo naturalista, pode considerar-se já um primeiro movi­ mento de crítica anti-positivista. A crítica positivista à pandectística teve consequências muito importantes na configuração que o saber jurídico ganha nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX.557 Por um lado - no seu momento antí-formalista -, ao aproxi­ mar o saber jurídico em relação às ciências sociais, dá origem a disciplinas jurídicas novas,558 como a sociologia do direito, a antropologia jurídica ou a criminologia, todas elas permitindo uma compreensão do lugar do direito nos processos de normação e de disciplina sociais, e chamando a atenção dos juristas para o direito vivo, espontâneo ou praticado (lebendiges Recht, Imu in action). Num plano mais recuado, o positivismo chamou a atenção para a importância do conhecimento das circunstân­ cias concretas da vida do direito no estabelecimento das solu­ ções jurídicas ou legislativas.559 Esta influência "cientista" e "sociologizante" do positivis­ mo é muito nítida no domínio do direito criminal. Prescindin­ do - ou considerando-as apenas muito marginalmente - de idei­ as da teoria penal tradicional que considera "metafísicas" (como "responsabilidade", "culpa", "expiação", "retribuição"), o po­ sitivismo procura, por um lado, identificar factores criminogéneos objectivos (as "causas do crime") e, por outro, adequar-Lhes terapêuticas (não necessariamente penais) correctivas. Tal como o médico identifica factores patogênicos e os combate com mei­ os terapêuticos ou cirúrgicos. Assim, acolhem-se, na teoria do crime, as explicações a partir de características antropológicas 557Sobre este ponto, para o país europeu em que o positivismo teve um m aior im pacto sobre o direito, cf. Grossi, 1999, 2000 (sobre os quais, v. as minhas recensões alargadas, em Themis, 3(2001), 457 ss.). 558Cf. W ieacker, 1993, 662 ss. 559 Cf. W ieacker, 1993, 658 ss. 420 A ntónio M anuel Hespanha (anátomo-fisiológicas, psico-biológicas)560ou de factores sociais e ambientais.561 E, na teoria dos fins das penas, adoptam-se pers­ pectivas funcionalistas, em que a pena visa exclusivamente uma função de prevenção: prevenção geral, desincentivando, em ge­ ral, a prática do crime pelo temor da pena; reeducativa em rela­ ção ao criminoso. Em contrapartida, as ideias de que o crime é um acto livre, susceptível de uma censura moral, e de que a pena poderia encerrar, por isso, uma finalidade de expiação ou de re­ tribuição social do mal eram consideradas como metafísicas. Por outro lado - no seu momento anti-legalista e anti-estadualista -, o positivismo recusou a identificação entre direito e lei, chamando a atenção para um direito surgido das próprias instituições sociais, existente para além da vontade estadual ex­ pressa na lei e num plano que lhe era superior. Em todo o caso, a insistência posta por algum positivismo na função regulado­ ra do Estado, como expressão política de um organismo social superior (nação), atenua sensivelmente o alcance deste aspecto. E, assim, algumas das correntes que se podem filiar no positi­ vismo acabam por conceder à lei um papel determinante na constituição do direito, nos quadros de um estadualismo auto­ ritário, de que é exemplo o fascismo. Por fim - no seu momento anti-individualista o positivismo armou metodologicamente a crítica aos fundamentos ideológicos individualistas e contratualistas da pandectística, tanto no domí­ nio do direito público, como no domínio do direito privado. Mas o positivismo contribuiu, também, para algumas no­ vidades no plano da dogmática, quer do direito público, quer do direito privado. 560Sob a influência das teorias antropológicas de C esare Lom broso, que filia­ va a prática do crim e em características físicas (v.g., bossas cranianas) dos indivíduos, criando a figura do "crim inoso n ato" e aproxim ando o trata­ mento penal da psiquiatria (Uuomo delinquente, 1871). 561 Sob influência de escolas positivistas italianas e francesas (Ferri, Garofalo, Lacassagne, Tarde). Sobre o elenco destes factores, com elementos estatísti­ cos comprovantes, Caeiro da Matta, Direito criminal português, Coimbra, 1911. Cultura Jurídica Europeia 421 No domínio do direito público, o positivism o orienta-se para a crítica da form a individualista, democrática e liberal de Estado, baseada no sufrágio e nos direitos naturais dos in­ divíduos, propondo formas de organização política baseadas no primado dos grupos (desde logo, do grupo Estado, como emanação dos interesses gerais do corpo social) sobre os in­ divíduos.562 Uma delas é o corporativismo, que parte da ideia de que as entidades políticas naturais ou primárias (família, empresa, m unicípio), que estão na base da organização natu­ ral da sociedade, devem estar também na base da organiza­ ção do Estado e que, assim, devem ser os seus representantes - e não os representantes dos indivíduos - a integrar as assem­ bleias representativas. Por outro lado, a solidariedade e organicidade sociais exigiriam que o despique destrutivo ("sub­ versivo") entre forças económ icas (concorrência capitalista desenfreada) e sócio-políticas (luta partidária, luta sindical, luta de classes) desse lugar a formas de organização econó­ m ica e política que promovessem a coesão social (planifica­ ção e concertação económ ica, Estado forte, partido único, proibição da greve e do lock out). No domínio do direito privado, o positivismo tende a mo­ derar o primado do princípio da vontade. E justificando, do pon­ to de vista teórico, limitações à autonomia da vontade no direi­ to dos contratos e da propriedade, reintroduz a ideia da existên­ cia de estruturas normativas objectivas (como a família, a em­ presa), que escapavam ao poder da vontade. Estes pontos de vista adequavam-se bem às tendências políticas anti-liberais, de matriz socialista ou conservadora, que pretendiam corrigir a competição individual desenfreada instituída pelo capitalismo "selvagem". Assim, o direito subjectivo passa a ser definido, não como um "poder de vontade" (Willensmacht), mas como um "in­ 562Sobre o sentido anti-dem ocrático (nom eadam ente, anti-sufragista) do po­ sitivismo com teano ortodoxo, v. C atroga, 1977, 76. O sufrágio - sujeitando o todo à vontade do m aior núm ero - contradiria a hierarquização natural dos organism os. 422 António Manuel Hespanha teresse juridicamente protegido".563 E, sobretudo, passa a ser realçado como a concessão de direitos subjectivos visa a reali­ zação de uma certa ordem social, pelo que tais direitos estão sem­ pre limitados pela sua função social. Esta questão da "sociali­ zação" do direito privado ganha um grande interesse político social a partir do advento das ideias socialistas, com a sua críti­ ca à propriedade privada. Além disso, no âmbito do direito pri­ vado, o positivismo teve ainda influência na teoria das fontes do direito. Neste domínio, criticou o legalismo, revalorizando a ideia de que há fontes extralegais do direito, sejam elas o costu­ me, sejam os ideais jurídicos vigentes numa certa comunidade e averiguados pela doutrina jurídica. O positivismo sociológico teve, em geral, apropriações po­ liticamente contraditórias. No século XIX, ele valeu como um movimento de ideias de sentido crítico564das instituições e valores estabelecidos. Na ver­ dade, ele era um "progressismo", cria no devir necessário das sociedades e, por isso, era contrário a todo o conservadorismo. Propunha a substituição das ideias teológicas e metafísicas pe­ las ideias positivas e procurava substituir as formas estabeleci­ das de organização social e política por outras de natureza "ci­ entífica". Neste sentido, deve-se-lhe a laicização da vida públi­ ca, a instituição ou expansão do ensino oficial não confessional, a crítica aos excessos do liberalismo económico, um certo com­ prometimento com os movimentos socialistas no sentido de melhorar as condições das classes trabalhadoras (em nome da solidariedade social). Mas, por outro lado, a sua posição em relação ao demoliberalismo político era muito ambígua. Dissolvendo o indi­ víduo na sociedade, permitia extrapolações de carácter anti­ democrático como, por exemplo, a negação do sufrágio como 563Cf. Guilherme Moreira, Instituições de direito civil português, Coimbra, 1 9 0 7 ,4 ss. 564Embora, em geral, não revolucionário, pois a sua ideia central de evolução é contraditória co m a de revolução. Q uando m uito, as revoluções eram entendidas com o mom entos críticos da evolução. Cultura Jurídica Europeia 423 forma de representação política. Além de que o seu cientis­ mo aceitava m al que as decisões sobre o destino colectivo pudessem deixar de estar nas mãos dos cientistas sociais ou, pelo menos, de políticos adestrados no cultivo de uma polí­ tica "positiva" ou "cien tífica". O m ovimento alemão do "so ­ cialismo catedrático", que se desenvolveu sob o autoritaris­ mo político do II Império (1870-1917), é típico deste reform is­ mo autoritário e paternalista, em que o príncipe, assessora­ do por cientistas, introduz reformas sociais que protegem os mais fracos. Como já se disse, esta era, de resto, a função do Estado científico: regular o inevitável poder dos mais fortes (governantes) sobre os mais fracos (governados) em função do interesse geral. Não adm ira, por isso, que o positivism o pudesse constituir, caldeado com outras influências, um dos pontos de apoio das ideologias autoritárias das quatro prim ei­ ras décadas do século XX. Assim, tanto na privatística como na publicística, o positi­ vismo está na origem, tanto da reacção anti-liberal das primei­ ras décadas do século XX, normalmente designada por adven­ to do Estado social, como dos regimes autoritários anti-democráticos, como o fascismo ou o Estado Novo português.565 No domínio do direito, esta ambivalência também se veri­ ficou, dando lugar a apropriações tanto de sentido liberal, como a outras de sentido conservador e mesmo reaccionário. Assim, se o positivismo denunciou o formalismo e abstraccionismo da igualdade, tal como vinha a ser construída pelo di­ reito das Luzes e da pandectística, o certo é que, ao insistir na desigualdade natural dos homens, abriu uma caixa de Pandora de onde saíram, por exemplo, justificações jurídicas do sexismo, do racismo e do expansionismo europeu. Quanto ao sexismo, 565 N a origem do nazism o estão m ovim entos ideológicos mais especificam en­ te alem ães, mas igualm ente m arcados pela crítica ao individualism o contratualista em nom e da ideia de organicism o e de um a ordem material de valores ("ord in alism o co n creto ", O. Spann; C. Schm itt), d eclarad a pelo Führer (decisionismo). 424 António M anuel Hespanha muitos positivistas566justificavam a discriminação jurídica e po­ lítica (nomeadamente, em termos de capacidade eleitoral) da mulher com uma análise das especificidades psicológicas da mulher, rica no plano sentimental, mas diminuída na capacida­ de de efectuar escolhas racionais. Quanto ao racismo, apesar da ideia de uma solidariedade universal, o que é certo é que a ideia da organicidade e diversidade de cada povo levava necessaria­ mente, pelo menos, à ideia de especialização e, pelo mais, à ideia de hierarquização. E nesta última, os europeus, portadores do "facho da civilização e da ciência", não podiam deixar de ocu­ par o primeiro lugar.567 No que respeita ao colonialismo, ligado estreitamente ao que se disse antes, o sucesso ideológico do po­ sitivismo coincide com o abandono do universalismo das Luzes, com as propostas de integração plena do ultramar na ordem política e jurídica da metrópole, com a adopção de políticas de desenvolvimento jurídico e político separado, e com a atribui­ ção de capitis deminutiones não apenas aos indígenas, mas aos próprios europeus residentes no ultramar.568 No domínio do direito privado, o positivismo procurou temperar o individualismo e liberalismo ferozes, protegendo as partes mais fracas das relações jurídicas (trabalhadores, crian­ ças). Permitiu e deu voz a sujeitos jurídicos colectivos (como os sindicatos) destinados a reforçar o poder negociai de certos su­ jeitos individuais. Laicizou a constituição da família e introdu­ ziu medidas no sentido da igualdade dos cônjuges. Mas a tudo isto subjazia uma concepção organicista, que tendia a anular o indivíduo perante a tutela do grupo ou, mesmo, do Estado, como garante da harmonia social. Isto tornou-se particularmente ní­ 566 N ão todos. Por outro lado, alguns faziam -no por razões tácticas, com o a de recear o peso co n serv ad o r do voto feminino. Cf., sobre o fem inism o e o sufragismo no ideário positivista, F. C atroga, 1991, II, 287. 567 A própria ideia evolucionista e biologista fornecia im agens adequadas: a do "n egro infantil", a do "tu rco am olecido e sensual", a do "ind ian o efe­ m inado" e a da "C h in a doente e adorm ecida". 568É certo que esta desigualdade não é irrem ediável, com batendo-se pela edu­ cação e pela civilização. Cultura Jurídica Europeia 425 tido com os desenvolvimentos corporativistas destas ideias, no­ meadamente sob os regimes conservadores e autoritários esta­ belecidos no centro e sul da Europa. Os sindicatos são coloca­ dos sob tutela do Estado (sindicalismo de Estàdo) e a família, como "célula social básica" ("Deus, Pátria, Família", era a divi­ sa do Estado Novo português), é rodeada de cuidados públicos para garantir, não apenas o seu bem estar económico,569mas tam­ bém a sua sanidade moral. No que respeita às fontes de direito, o sociologismo valori­ za, por um lado, a pluralidade de instâncias normativas da so­ ciedade e reage contra o monopólio estadual da edição do di­ reito (legalismo). Mas, por outro lado, ao insistir no papel regu­ lador do Estado, na sua missão de garantir a solidariedade na­ cional, acaba por atribuir à lei a categoria de fonte última e de­ cisiva de direito. "A soberania - escreve Manuel Rodrigues (18891946), Ministro da Justiça (1932-1940) de Salazar, em 1934 - per­ tence ao Estado. Quere dizer: não há poder transcendente, o poder pertence à Nação organizada. Daqui resulta que ao Esta­ do pertence criar a norma da sua existência e dos elementos que a constituem... O Estado é a fonte de toda a regra normativa... O cidadão não pode recorrer a um princípio estranho ao seu país, nem mesmo invocar as regras da humanidade [,..]".570 Isto não era senão um corolário da afirmação de Mussolini (1883-1945) de que "a Nação é um organismo dotado com vida própria, com os seus fins e meios de acção, que a tornam, na sua força e dura­ ção, superior aos seus membros, quer isolados, quer agrupados; ela é uma unidade moral, política e económica que se realiza integralmente no Estado fascista" (Carta dei Lavoro). Desta política de sacralização do Estado e de subordinação a ele do direito e da justiça faz ainda parte uma regulação mais estrita da justiça: estatutos judiciários que amarrem completa­ 569Neste plano, chega-se a reintroduzir instituições tradicionais para garantir a indivisibilidade e inalienabilidade do patrim ónio familiar (como, em Por­ tugal, o "casal de fam ília"). 570Política, direito e justiça, Coimbra, 1934, 41. 426 António M anuel Hespanha mente o juiz à lei,571 controle das organizações profissionais dos advogados, nomeadamente atribuindo-lhes poderes de nature­ za pública (em Portugal, 1926) e sujeitando-as a tutela legal, in­ trodução de mecanismos de disciplina da jurisprudência pelos tribunais superiores,572 etc. Finalmente, embora tenha introduzido muitos elementos válidos para a análise do direito como fenómeno social e para o traçado de políticas do direito, o naturalismo positivista tendeu a "coisificar" o homem, transformando-o num mero objecto de influências causais. Por outras palavras, ignorou a dimensão "in­ terior", a capacidade de escolha e, consequentemente, a ética da liberdade e da responsabilidade que se liga a ela. Isto foi particu­ larmente nítido no direito penal. O criminoso foi desresponsabilizado pessoalmente, mas, ao mesmo tempo, privado da sua dig­ nidade de ser autónomo. De um sujeito livre que escolheu (porven­ tura mal) foi transformado num doente carecido de tratamento. Quando isto acontece, o problema da pena deixa de ter qualquer fundamento ético e, rigorosamente, podem ser objecto dela indi­ víduos que, não tendo cometido qualquer crime, são diagnosti­ cados - pela suas características psico-somáticas ou pelos meios em que vivem - como criminosos natos ou em potência. A puni­ ção passa a ser um problema de mera polícia científica. Mas esta coisificação do homem e das relações sociais instau­ rou, em geral, um instrumentalismo jurídico em que o direito - como simples técnica de engenharia social, ao lado de outras - pode ser posto ao serviço de uma qualquer política. Exemplos dramáticos desta instrumentalização produziram-se nos regimes totalitários europeus deste século. Mas podem detectar-se também, embora sob formas menos chocantes, nas tecnocracias contemporâneas. Este balanço mostra já que tipo de reacções (adiante referi­ das) pode ter levantado o naturalismo sociológico. 571 Como o Estatuto judiciário português de 1928 (dec.-lei 15344, dec. 10.4), que estabelece que o juiz não pode recusar a aplicação da lei com o fundam en­ to de que ela lhe pareça injusta ou im oral (art° 240°). 372Como os Assentos portugueses, reintroduzidos em 1926. Cultura jurídica Europeia 427 8 .4 .4 .I. Positivismo sociológico e institucionalismo em Portugal Em Portugal, as últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX constituem uma época marcada profun­ damente pela influência do positivismo sociológico de Comte e de Littré, combinada com outras contribuições filosófico-metodológicas de sentido anti-individualista, anti-formalista e antijusracionalista.573 O cientismo positivista surge, inicialmente, na área das ci­ ências físico-naturais, em instituições como as recém criadas Es­ colas Politécnicas (Lisboa, Porto, 1837). Ai deu origem as estudos que influenciaram o direito nomeadamente o direito penal.574Mas cedo transitou para o domínio da política e do direito. No domínio da política, transformou-se na coluna vertebral da ideologia republicana;575 o seu corifeu universitário foi Teófilo Braga (1843-1924), publicista e doutrinário infatigável em todos os domínios das ciências literárias e sociais576 e primeiro 573 Resíduos do organicism o da Escola Histórica (Savigny, Burke), influências d o solidarism o de K rause, evolucionism o de H. Spencer e D arw in. Cf. M oncada, 1937-1938, 145 ss.; 1938-1939, 25 ss.; F. C atroga, "O s inícios do positivism o em P o rtu g a l...", cif., 26, n. 1 . 574E m Portugal, esta corrente surge com trabalhos de médicos e psiquiatras, com o Basílio Freire (Os degenerados, 1886; Os criminosos, 1889); Júlio de M a­ tos (Os alienados nos tribunais, 1902-1907); Miguel Bombarda (A consciência e 0 livre arbítrio, 1897); e, Ferreira D eusdado (Estudos sobre a criminalidade e a educação, 1889). Os primeiros juristas penalistas a adoptarem pontos de vista sociologistas foram Henriques da Silva (Elementos de sociologia criminal e de direito penal, 1905) e, sobretudo, Afonso Costa (Comentário ao Código Penal português. I. Introdução. Escolas e princípios da criminologia moderna, 1895). Sobre esta escola penalista, C orreia, 1 9 6 3 ,1 2 4 ss.; M aldonado, 1960. Sobre a reacção anti-positivista (nom eadam ente, de Beleza dos Santos), v. C or­ reia, 1955, 412 ss.. 575 Cf. C atroga, 1977; C atroga, 1991, max., II, 193 ss. 576 Incursões no domínio do direito: Poesia do direito, 1865; Theses sobre diversos ramos do direito, Coimbra, 1868; Espírito do direito civil moderno: direito subsi­ diário, propriedade, contractos, 1870. 428 António M anuel Hespanha presidente da República. Também a Maçonaria e outras socie­ dades secretas que militavam no campo republicano (como a Carbonária) professavam doutrinas sociais de forte cunho posi­ tivista.577 No domínio do direito, o positivismo domina o ensino uni­ versitário, nomeadam ente no campo da história e do direito público, desde a década de '70 do século passado. Manuel Emídio Garcia (1838-1904) é o seu primeiro representante, logo a partir do seu Curso de Ciência da Administração e Direito Adminis­ trativo, 1865.578 Aí adopta uma metodologia voltada para o es­ tudo global e empírico-experimental da sociedade e adopta o organicismo e evolucionismo como princípios de explicação e previsão dos fenómenos sociais.579 A todos eles é comum o na­ turalismo jurídico-social,580 a adopção de um ponto de vista evolucionista, quer da sociedade, quer das ciências sociais e jurídi­ cas,581 a recusa do individualismo, da ideia de pacto social como origem do Estado, do primado dos direito subjectivos sobre os direitos objectivos e, correspondentemente, a defesa do carác­ ter natural e objectivo das instituições sociais, nomeadamente 577 F. C atroga, 1 9 9 1 ,1 ,135 s. 578 Depois, Apontamentos de algumas prelecções de sciencia política e direito políti­ co, 1893. Sobre ele, v. C atroga, 1982. Outros nom es im portantes de profes­ sores da Facu ld ade de Direito de Coim bra influenciados pelo positivismo são José Frederico Laranjo, M am oco e Sousa e Afonso Costa. 579 Outros nom es de positivistas m arcantes, num a im portante galeria de pro­ fessores da Faculdade de Direito de Coim bra (m as com um a intervenção académ ica vastíssim a, desde a história do direito, à econom ia e finanças e ao direito eclesiástico) são: José Frederico Laranjo (Princípios e instituições de direito administrativo, 1888; Princípios de direito público e direito constitucio­ nal português, 1898); Abel de Andrade (Administração e direito administrati­ vo, 1893); G uim arães Pedrosa (Curso de ciênría da administração e direito ad­ ministrativo, 1904); M am oco e Sousa (Direito político. Poderes do Estado, 1910). 5)111 "A separação entre fenómenos físicos e m orais é m eram ente arbitrária; não existe antinom ia entre eles" (Teófilo Braga, Systema de sociologia, 1 9 0 8 ,3 3 ). 581 Cf. a classificação feita por M am oco e Sousa, das teorias da soberania em "teológicas, metafísicas e positivas", de acordo com a conhecida lei comteana dos três estados" (Direito político. Poderes do Estado, Coim bra 1 9 1 0 ,7 ss.). C ultura Jurídica Europeia 429 do Estado que, assim, apareceria como a verdadeira fonte, tan­ to do direito objectivo, como dos direitos subjectivos.582 Esta influência positivista está bem expressa na reforma dos estudos jurídicos de 1901 (24.12), em cujo relatório se pode ler: "Pertencendo os fenómenos jurídicos à grande categoria dos fe­ nómenos sociais, não pode fazer-se o seu estudo sem o conheci­ mento dos princípios gerais da sociologia que, fundada por Augusto Comte como uma especulação de carácter meramente histórico, tende a constituir-se organicamente". E neste mesmo espírito que a nova Faculdade de Direito de Lisboa, fundada em 1911, se irá chamar (até 1918) "Faculdade de Estudos Sociais e de Direito". "O individualismo desenfreado que serviu de base às co­ dificações modernas está posto de parte no ensino do direito positivo, onde se procura subordinar o indivíduo à sociedade e absorver o direito privado no direito social", escrevem Marnoco e Sousa e Alberto dos Reis, em 1907.583 Jaime Gouveia - recolhendo a inspiração de L. Duguit (La transformation âu ãroit privé, la propnété fonction sociale, 1912) defende o carácter socialmente funcional da propriedade priva­ da e as suas consequentes limitações (Construção jurídica da pro­ priedade, 1919); e, nas suas lições de 1939, empreende uma críti­ ca sistemática dos fundamentos individualistas do direito pri­ vado, subordinando o princípio da liberdade ao da igualdade.584 No pano das fontes de direito, reintroduz-se alguma distanciação em relação ao legalismo. Na verdade, a discussão so­ bre o elenco das fontes de direito era estimulada pelo facto de o 582O Estado - escreve G uim arães Pedrosa - é um "facto natural e necessário, e não o m ero acto livre de vontades individuais, visto que a convivência hu­ m ana, fenómeno que determ ina necessariamente o Estado, é igualmente um fenómeno natural e necessário, que deriva de um impulso irresistível da natureza hum ana - a sociabilidade" (Curso de ciência da administração e di­ reito administrativo, 1908, 2 a ed., 41). 583Em A Faculdade de direito e o seu ensino, 1908,105. 584Jaime Gouveia, Direito civil, 1939, 543 ss. 430 António Manuel Hespanha Código civil de 1867 (no seu art° 16o)585 dispor que as questões sobre direito e obrigações seriam resolvidas "pelo texto da lei, pelo seu espírito, pelos casos análogos previstos noutras leis" ou, na sua falta, "pelos princípios de direito natural, conforme as circuns­ tâncias do caso". Todos estavam de acordo que esta referência nãc podia ser entendida no sentido de aceitar o jusnaturalismo clás­ sico ou o jusracionalismo, completamente destronados pelas ideias positivistas. Mas, enquanto que, sob a influência combi­ nada do legalismo e da pandectística, a opinião dominante in­ terpretava esta referência ao direito natural como equivalendo a uma remissão para os "princípios gerais de direito",586 outros58: viam nesta expressão um reconhecimento da existência de fon­ tes não legislativas de direito, embora vinculadas às manifesta­ ções sociais espontâneas de criação ou de reconhecimento dc direito.588 A influência das escolas realistas e institucionalistas fran­ cesas e italianas, nomeadamente de L. Duguit, G. Jèze, M. Hauriou e Santi Romano foi mais tardia (a partir da segunda déca- 585Sobre a interpretação (torm entosa) deste artigo, v. João M. Antunes Varels e Fernando A. Pires de Lim a, Noções fundamentais de direito civil, Coimbra, 1973 (6a éd.), 1 ,176 ss.; e, num a perspectiva histórica, Scholz, 1982, 771. 586Cf. Guilherme M oreira, Instituições de direito civil português, Coimbra, 1907, 30 ss.; Caeiro da M atta, Direito civil português. I. Parte geral, Coimbra, 1909, 160 ss. 587Com o Jaime Gouveia, Direito civil, 1939, 66: "o nosso direito adm ite o cos­ tume, o costum e consagrado pela jurisprudência que lhe deu origem por virtude da prática repetida de certos actos, acom panhados da "opinio ne­ cessita tis'"'. 588V., neste sentido, Jaime Gouveia, Direito civil, Lisboa, 1939. Jaime Gouveia inspirava-se na cham ada "escola científica", lançada por F. Gény (La scien­ ce et la technique en droit positif, 1896; Méthode d'interprétation et sources en droit privé français, 1899), que revalorizou o costum e, a jurisprudência e a dou­ trina com o fontes de direito, com um valor autónom o e, eventualmente, superior ao da lei. Os seus pressupostos são, em geral, positivistas, pois estas fontes são legitimadas a partir da constatação do seu enraizam ento social. Sobre esta corrente, v. Gilissen, 1988, 518 s. Cultura Jurídica Europeia 431 da do século XX),589mas muito duradoura, tendo-se mantido até aos anos cinquenta,590 sobretudo entre os cultores do direito público, âmbito em que constituem a cobertura dogmática do corporativismo do Estado Novo. A influência laicizante do positivismo foi responsável pela laicização do Estado e do direito após a implantação da Repú­ blica (1910), nomeadamente das leis de separação entre a Igreja e o Estado (1910) e das leis da família.591 A influência anti-individualista explica a "legislação social" da República e do Esta­ do Novo (nomeadamente, em domínios como o direito do in­ quilinato, o direito do trabalho, o direito de propriedade, o di­ reito económico).592 5)19L. Duguit esteve em Coimbra, em 1910 e em 1923 (testem unho sobre a sua influência em Jaime G ouveia, Direito civil, Lisboa, 1939, 23; mas o persona­ lismo de M. H auriou estava mais de acordo com o fundo neo-tom ista da ideologia política do Estado Novo. 590Traços explícitos de influência em muitos publicistas: Lobo d'A vila, Lições de direito político, Coimbra, 1911-1912 (influência de Durkheim e de Duguit); Rocha Saraiva, Lições de direito administrativo, 1914-1915 (um eclético, que procura com binar o m étodo indutivo [histórico-sociológico] com o método dedutivo [racional-dogm ático, jurídico] nos quadros de um a orientação as­ sum ida com o "p o sitiv a" [anti-especulativa, m as atenta às conexões das norm as jurídicas entre si]); Fézas Vital, Acto jurídico, 1914; M agalhães Collaço, Concessão de serviços públicos, 1914 (com binação de realismo com dog­ m atism o). H istoriadores com o Paulo M erêa, L. Cabral de M oncada e M ar­ cello Caetano, apesar de pertencerem basicamente a outras orientações, não escaparam tam bém a algum a influência positivista; cf. A. M. Hespanha, "L 'h istoire juridique et les aspects politico-juridiques du droit (Portugal, 1 900-1950)", Quaderni ftorentini per la storia dei pensiero giuridico moderno, 10(1981), 425-428. 591 Em Portugal, leis do divórcio (3.11.1910) e da família (25.12.1910); abolição do dever de obediência ao m arido (cf. art 01185° do Código civil de 1867). 592V., para uma panorâm ica, H espanha, 1981, M endonça, 1981, Gilissen, 5405 42 ("nota de tradu tor"). 432 António M anuel H espanha 8 .4 .5 . A reacção anti-naturalista. V alores e realidade Até aos finais da I Grande Guerra, a vaga sociológica exer­ ceu, sobretudo na Europa do sul, um domínio absoluto sobre o mundo intelectual. "A lei dos três estados - como já se escreveu593 - era aceite com muito mais fé do que o Mistério da Santíssima Trindade é aceite pelos católicos ". Daí que, desde os meados da década de '10 se tenham notado sinais de reacção, nomeadamen­ te no campo da filosofia do direito. Um dos seus pontos de partida era a distinção entre ciênci­ as da natureza (Naturwissenschaften ) e ciências da cultura (Kultunvissensclwften), reclamando para estas um objecto (os valo­ res, os sentidos) e um método próprios. Ou seja, no domínio da actividade humana, como o direito, as condutas não seriam descritíveis nem explicáveis apenas "do exterior". Seria, pelo con­ trário, indispensável recorrer aos dados interiores que dão sen­ tido aos comportamentos. "O s homens em sociedade - escreve o jus-filósofo português, Luís Cabral de Moncada, sintetizando estes pontos de vista594- obedecem a normas [...] Estas leis não são, porém, o mesmo que as chamadas "leis naturais" ou cien­ tíficas, a que todos os seres obedecem, inclusive o homem, ce­ gamente, passivamente, sob uma impulsão exterior, como a da pedra que cai ou a do líquido que toma a forma do recipiente. Sabido é que o hom em é também espírito; tem uma vontade consciente; é neste sentido um ser autónomo. Por isso, as leis a que ele obedece na sua actividade consciente, enquanto homem, isto é, enquanto ser espiritual, são antes "leis finais", ou seja, regras que ele a si mesmo se propõe em vista de fins que a sua inteligência concebe, querendo-os e autodeterminando-se por aquelas [...] As normas [jurídicas] pertencem, portanto, ao rei­ no do espírito, da consciência; ou, socialmente, ao reino da cul­ tura, contraposto ao reino da natureza". 593Francisco Reis Santos, "O movim ento republicano e a consciência nacional", História do regime republicano em Portugal, Lisboa, 1 9 3 0 -1 9 3 2 ,1, 80. 594 Lições de direito civil (parte geral), Coimbra, 1 9 3 2 ,1,11. Cultura Jurídica Europeia 433 Daí que, a partir das primeiras décadas do século XX, uma das preocupações dos metodólogos e filósofos do direito595 te­ nha sido o de reencontrar as bases da autonomia gnoseológica e metodológica da sua disciplina, preservando aquilo que o di­ reito teria de específico frente às ciências que apenas descreviam a realidade social - o facto de ser uma disciplina cultural, de li­ dar com n orm as, de impor valores à realidade ou de referir a rea­ lidade a valores. Como não se pretendia voltar a cair num dis­ curso filosófico e metafísico acerca dos valores jurídicos, a linha de rumo tinha que ser a de procurar definir as condições de va­ lidade que eram específicas do conhecim ento jurídico e que permitiriam que este pudesse utilizar métodos intelectuais di­ ferentes dos métodos das ciências sociais, sem deixar, por isso, de ser cientificamente válido. Uma vez que se continuava a considerar que o fundamen­ to de qualquer conhecimento científico era a definição das con­ dições de validade das suas proposições, e uma vez que o siste­ ma das ciências estabelecido (também das ciências sociais) era aquele que Kant fundamentara na sua C rítica da R azão Pura, pa­ receu que a chave para a construção de uma ciência jurídica au­ tónoma exigia uma averiguação das especificidades do conhe­ cimento jurídico em relação ao conhecimento das ciências soci­ ais e das condições de validade deste novo tipo de conhecimen­ to. Ou seja, exigia retomar a crítica de Kant, mas agora aplicada a um tipo diferente de saber. Foi esta a tarefa a que se propuseram as escolas neo-kantianas alemãs de Marburg (Cohen, Nartorp) e de Baden (ou sudocidental, Rickert, G. Radbruch), ao empreenderem o estudo das consequências metodológicas da distinção entre as ciências do esp írito (G eistesw issen schaften ; ou da cultura, K ultu rw issen schaf­ ten; ou ideográficas) - a que pertenceria o direito - e as ciências da n atu reza (N atu n vissen schaften ; ou nomotéticas) - a que perten­ ceriam as ciências naturais e, também, as ciências sociais, en­ 595 V. infra, 8.4.5. 434 António M anuel Hespanh quanto lidam com os fenómenos humanos numa perspectiv puramente externa (comportamentos). A distinção entre uma e outras ciências decorria da natureza do seu objecto. Enquanb que as ciências da natureza lidam com um mundo de objectoí alheio ao homem, cognoscível na sua exterioridade e redutíve a leis gerais, as ciências do espírito lidam com o mundo da cul tura, com as significações que os homens atribuem às coisas, con o modo como eles se apropriam espiritualm ente delas. Est mundo não só não é externamente cognoscível, como não pod ser encerrado em leis gerais, pois cada acto cultural tem sigrtifi cados únicos, que só se desvendam a partir de uma actividad espiritual orientada para os valores que ele encerra (e não par. o seu invólucro comportamental externo).596 Qualquer tentativa de fundar a procura dos valores jurídi cos na realidade do direito constituiria um salto metodológici impossível entre o mundo do dever ser e o mundo do ser. As consequências dogmáticas destes pontos de vista sobr a autonomia do jurídico e da actividade intelectual que dele s ocupasse foram várias. Por um lado, abalaram o anti-metafisismo dominante, re introduzindo ideias como a de direito natural, em versões reli giosas (como o jusnaturalismo católico, de fundo neo-tomista) ou em versões laicizadas. Por outro lado, no plano mais estritamente metodológicc abalaram o cientismo dominante, insinuando a ideia de qui podia haver modelos intelectuais diferentes dos das ciências fí sico-naturais e mais adequados para tratar o direito. Por exem pio, modelos que utilizassem não o método dedutivo (que esta va na base da ideia de subsunção597), mas métodos de aborda gem casuística (como o que tinha sido utilizado pela tópica598) modelos que lidassem não com a noção mecanicista de causali dade, em que um fenómeno se explica pelos antecedentes (v.g. 596 Sobre o neokantismo e a "filosofia dos valores", v. W ieacker, 1993, 679 ss. 597 V., supra, 8.3.3.I. 398 V., supra, 5.6.2.3. Cultura Jurídica Europeia 435 explicai um contrato ou um comportamento pelo conteúdo das vontades dos agentes), mas, por exemplo, com a de finalidade (v.g., explicar um contrato ou comportamento pelas suas finali­ dades sociais);599 modelos que se baseassem numa lógica espe­ cífica (lógica jurídica ou deôntica [i.e., dos valores]); modelos que não reduzissem a interpretação (de uma norma, de um acto ju ­ rídico) a uma investigação do substracto psicológico desse acto, mas que descubram o seu sentido "hum ano", ou seja, a constela­ ção de valores que lemos nesse acto ou que lhe imputamos, in­ dependentemente da intenção subjectiva dos agentes, etc.600 Por outro lado, levaram a tentativas de "purificação" do saber jurídico, distinguindo cuidadosamente os aspectos jurídi­ cos das questões, dos seus aspectos políticos, por um lado, e socio-psicológicos, por outro. Os juristas deveriam produzir um discurso que se fundamentasse a si próprio e que evitasse con­ taminar o discurso jurídico com considerações de ordem político-ideológica ou empírico-sociológica. Foi esta a linha condutora da Teoria pura do direito (reine Rechtslehre), formulada pelo juris­ ta austríaco Hans Kelsen.601 8.4.6. O apogeu do formalismo. A T eo ria p u r a d o direito Como se viu (cf. infra, 8.4.4.), o positivismo sociológico, que dominou o pensamento jurídico europeu a partir dos anos '70 do século XIX, fez da crítica ao formalismo da pandectística o 599É esta última ideia que está na base da interpretação teleológica ou finalista, que procura interpretar os actos jurídicos (tam bém os actos legislativos) de acordo com as suas finalidades sociais. 600Lim itam o-nos a esta brevíssima alusão a correntes diversas da m etodolo­ gia do direito (desde a "teoria da argu m en tação" (Th. Viehweg, Ch. Perelm an) à herm enêutica (H. G. G adam er, E. Betti), passando pelos desenvol­ vim entos da lógica jurídica (G. Kalinowski, U. Klug, K. Engisch): cf. Kauf­ m ann, 1 2 2 ,1 2 4 ,1 0 5 , respectivam ente. Obras principais: Allgemeine Staatslehre (1925), Reine Rechtslehre (1927); re­ ferência bibliográfica básica: La torre, 1978,159-164; Wieacker, 1993, 682-683; Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 5 0 ss.. 436 A ntónio M anuel Hespanha seu principal cavalo de batalha e orientou o saber jurídico para um discurso de tipo sociológico, em que o direito era dissolvi­ do nos "factos sociais" e o próprio discurso jurídico corria o ris­ co de se dissolver no discurso sociológico. Este ideal de "purifi­ cação" do método jurídico foi levado às útlimas consequências pelo jurista austríaco Hans Kelsen, na chamada Teoria pura do direito (reine R echtslehre). Kelsen considerou o direito como um especial sistema de normas, cujo fundamento não estava noutros sistemas norma­ tivos, como a religião ou a moral; mas também não estava na ordem dos factos (por exemplo, numa política, na utilidade). Ou seja, uma norma jurídica não teria vigência por ser moral ou útil, mas porque e apenas porque é uma norma jurídica, i.e., confor­ me ao direito. Ser conforme ao direito é, afinal, ser obrigatória em virtude do comando de uma norma superior. Daí que o di­ reito constitua uma pirâmide normativa (Stufentheorie), no topo da qual se encontra a Constituição. Mas como a própria Consti­ tuição carece de um fundamento jurídico, a construção teórica de Kelsen obriga a pressupor uma "norm a fundam ental" ('Grundnorm), que valida a Constituição, e cujo conteúdo pode­ ria ser assim formulado - "Toda a norma jurídica legítima (i.e., estabelecida de acordo com o direito) deve ser observada". Uma norma destas é auto-referencial, ou seja, aplica-se a si mesma; e, com isto, legitima-se a si própria e a todas as outras. A teoria pura do direito teve a virtude de, num período de intenso debate político-ideológico (os anos '30 a '50 do século XX), ter sublinhado a autonomia do saber jurídico e a sua relati­ va indisponibilidade em relação aos projectos de poder. Nessa medida, culminou as preocupações da pandectística em estabe­ lecer que nem tudo quanto é querido pelo poder, útil ao povo ou a uma classe, ou funcional em relação a um objectivo social, é automaticamente aceite como justo (i . e conforme ao direito). A jurisdicidade parece decorrer de valores internos ao discurso do direito, valores que a vontade política ou a utilidade social não podem substituir. Neste sentido, embora se possa acusar a teoria pura do di- Cultura Jurídica Europeia 437 reito de aceitar como direito tudo o que provém da vontade do Estado, o certo é que o seu sentido mais profundo é o de consti­ tuir um manifesto contra os totalitarismos políticos do seu tem­ po, que, num sentido ou noutro, procuravam funcionalizar o direito em relação às conveniências do poder, legitimando-o a partir de considerações políticas, como o domínio de classe (es­ talinismo) ou as necessidades vitais de uma raça (nacional-socialismo). Há quem pense que este manifesto é ainda útil con­ tra outro tipo de funcionalizações do direito, nomeadamente, a tendência para justificar como justas as medidas - formal ou in­ formalmente correctas - de um poder legitimado pelo voto, ou as medidas dirigidas à consecução de finalidades de desenvol­ vimento social ou económico.602 8 .4 .6 .1 . A reacção anti-sociologista em Portugal Em Portugal, manifesta-se uma reacção anti-sociologista a partir da segunda década do séc. XX, de que é pioneiro Manuel Paulo Merêa (1889-1976), professor de História do Direito em Coimbra, numa conferência aí proferida em 1910, publicada depois sob o significativo título "Idealismo e direito" .603 Nesta curta intervenção, que desempenhou um papel decisivo no meio jurídico português, descrevia-se o positivismo como uma cor­ rente redutora, que impunha como único meio de acesso à rea­ lidade a razão científica (monismo), desconhecendo que o espí­ rito humano dispõe de uma multiplicidade de formas (desde a acção até à intuição e a reflexão espiritual) ,de a apreender. E denunciava-se a desumanização a que tinha conduzido o dog­ matismo cientista das correntes sociológicas. "Sob o influxo ti­ rânico das ciências naturais - escreve Merêa (97) - "a vida trans­ portara o seu centro de gravidade para o objectivo" [citações de Schiller], e entretanto tudo o que se passa na alma do indivíduo 602Encarando-se qualquer controle jurídico das medidas dirigidas a esse de­ senvolvim ento com o manifestações de formalismo anti-progressista. 603Coimbra, 1913. 438 António Manuel Hespanha fora considerado como acessório, a sua felicidade e a sua situa­ ção tornaram-se cada vez mais indiferentes, o "sujeito" tom a­ ra-se cada vez mais um elemento desdenhável, uma "gota de água no oceano". O positivismo, numa palavra, escravizara o homem às coisas; o moderno idealismo "rehabilita o homem", ressuscitando, sob uma nova forma, o ideal antropocêntrico" -604 No campo do direito, esta nova atenção aos valores levou a uma revalorização do "jurídico", ou seja, dos elementos pro­ priamente normativos do direito, no sentido - já antes (supra, 8.4.6.) referido - de uma "purificação" do conceito de direito, excluindo dele os momentos não normativos, não lógico-racionais ou, mesmo mais radicalmente, não legais (não positivos, mas agora no sentido de estranhos ao direito positivo). Este movimento conduz ou a uma revalorização do conceitualismo pandectista ou a adopção de uma orientação positivista-legalista. Em Portugal, a jurisprudência dos conceitos (ou "método jurídico") foi inicialmente restabelecida, como já se disse (cf. su­ pra, 8.3.2.1), no domínio do direito privado, seu campo originá­ rio de cultura, a partir do magistério de Guilherme Moreira (1861-1922). No direito público, adquire direito de cidade um pouco mais tarde (cf. supra, ibid); mas, a partir dos anos '30, cons­ titui o método inspirador das m onografias mais ambiciosas, 604 Do livro fazem ainda parte duas outras intervenções, um a de crítica à teo­ ria dos direitos subjectivos de Duguit (em nome, ainda, de um hum anis­ mo que vê na luta individual pelos direitos a raiz do direito subjectivo) e outro, de crítica à escola penalista positiva. V., ainda, um a apreciação a H auriou, "O "pluralism o" no direito público. (A propósito de um livro de H au riou)", em Dionysios, sér. 1(5), 1912, 277-282. Esta última revista consti­ tui o órgão de um grupo (integrando outros professores de direito com o M am oco e Sousa, Cabral de M oncada, Caeiro da M ata, M agalhães Collaço) com prom etido na luta anti-positivista e na afirm ação vigorosa da "exis­ tência irredutível da nossa individualidade, tão deprim ida e apagada pelo cientismo”, v. Simeão Pinto de M esquita, "Positivism o e idealism o", Dio­ nysios, 2(1912), 68. Outra revista com o m esm o sentido é a Águia, de Leo­ nardo Coimbra. Sobre este m ovim ento, v. Ribeiro, 1951; Teixeira, 1 9 8 3 ,1 1 1 ss. Sobre todo este movimento, v., por último, Torgal, 1996. Cultura Jurídica Europeia 439 nomeadamente das teses dos concursos universitários (Maga­ lhães Collaço, Manuel Rodrigues, Marcelo Caetano, Cabral de Moncada, Afonso Queiró). Uma outra linha de reacção anti-sociologista foi a do posi­ tivismo legalista. Pode dizer-se que um acentuado respeito e apagamento perante a lei caracterizou continuamente a doutrina jurídica portuguesa durante os séculos XIX e XX. Vários factores o ex­ plicam. Por um lado, os velhos tópicos legalistas da reforma pombalina do ensino jurídico de 1772 (cf. supra, 7.5.), combina­ dos, já no século XIX, com os dogmas do Estado democrático, que identificavam a lei com a vontade popular. Por outro lado, os receios de agravamento do arbítrio e subjectivismo judiciári­ os. Por fim, o ideal de substituição de uma regulação políticoideológica (correspondente ao período de instabilidade política do primeiro constitucionalismo, 1834-1851) pela regulação "neu­ tral" do Estado (correspondente ao clima de "estabilização" política promovido pelos grupos dirigentes depois de 1850; "re­ generação", de 1851; "rotativismo político"). A partir de 1925, aparecem novos elementos favoráveis ao positivismo legalista. O mais importante foi a leitura estatalista a que conduzia uma certa versão do positivismo sociológico, ao insistir na ideia de que o Estado constituía a forma política do organismo nacio­ nal, cabendo-lhe a racionalização da organização social global, na perspectiva das formas mais elevadas da solidariedade (cf. supra, 8.4.4.). O positivismo sociológico era, naturalmente, passível de outras leituras, que desvalorizavam o direito do Estado peran­ te os "mecanismos jurídicos espontâneos", os "equilíbrios prá­ ticos", o "direito da vida".605 Lido neste sentido, o sociologismo teria suportado uma política do direito anti-legalista, descentralizadora, que reconhecesse o carácter criativo da jurisprudência 605V. Manuel Paulo M erêa, "O "pluralism o" no direito público", Dyonisios, sér. 1(5), 1912,277-28 2 . 440 António M anuel Hespanha e da doutrina. E, na verdade, foi esta a orientação que, do ponto de vista teórico, legitimou o discurso jurídico anti-democrático e anti-parlamentar do "Integralismo Lusitano", que protagoni­ zava a luta da "Alm a Nacional" contra a "ditadura centraliza­ dora, estrangeirada e jacobina" da República.606 Depois da con­ quista do poder, na sequência do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 ("Revolução N acional", origem do "Estado N ovo"),607 o pensamento jurídico conservador mudou, no entanto, de sen­ tido, aderindo cada vez mais às teses (opostas a esta leitura "institucionalista") da identificação entre o "direito da Nação" e o "direito do Estado", pois o Estado, sobretudo agora, não seria senão a própria Nação organizada.608 Aquilo a que antes se cha­ mava "instituições primárias" era agora engolido pelo Estado; o direito "plural" estatiza-se e a função do Estado - que o pen­ samento conservador tinha identificado, na esteira do pensa­ mento pré-revolucionário de Antigo Regime, como a "justiça", no sentido de "realização da harmonia entre corpos políticos autónomos" - transforma-se, progressivamente, na manutenção da ordem.609 No domínio da política do direito, esta política "or­ deira" manifesta-se, nomeadamente, em reformas legislativas visando a certeza do direito e a "dignificação" da justiça.610 606Tais são os pontos de vista do "Integralism o lusitano", sobre o qual v., por todos, Cruz, 1982; Pinto, 1989. 607 V., sobre a história político-ideológica do Estado N ovo, Rosas, 1994. 608 V., sobre o tema, C ruz, 1988. 609 Cf., Caetano, 1941, 6 ss.: a justiça com o meio de coordenar as acções hum a­ nas em vista de um a finalidade últim a, a ordem . 610 V.g., a dita reform a do C ódigo civil de 1867, em 1930, cf. sobre o seu real alcance, Manuel de A ndrade, "Sobre a recente evolução do direito privado p ortu gu ês", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 22(1946) 286 ss.; a reintrodução dos "a s ­ sentos" do S.T.J., com o m eio de disciplinar a jurisprudência, em 1926, bem com o as m edidas tendentes a a u m e n ta ra rapidez e eficácia da justiça ("R e­ forma judiciária", de 1926; Código de processo civil, de 1939). Cf., sobre a po­ lítica da justiça do Estado N ovo, M anuel Rodrigues, A justiça no Estado Novo, Lisboa, 1933. Cultura Jurídica Europeia 441 Este novo legalismo influenciou também as concepções sobre a função do jurista (e do professor de direito). O modelo do jurista deveria ser aquele implicitamente proposto por Fezas Vital (1888-1953) - professor de direito público em Coimbra, com muita notoriedade nos anos '306u- aquando do elogio de um co­ lega "[...] para ele, como jurista, fora das normas queridas e san­ cionadas pelos governantes, não há direito [...]. Toda a críti­ ca do direito vigente será, portanto, não crítica de jurista, mas de moralista, de sociólogo, de político, de filósofo [...]. Ao juris­ ta, como tal, incumbe portanto apenas interpretar e reduzir a sistema essas normas [legais] procurando a sua explicação ló­ gica em construções jurídicas abstractas, é certo, mas só legíti­ mas se assentes em realidades e em factos".612 Na prática, isto implicava um controle político bastante estreito sobre o ensino universitário do direito. Em 1940, Jaime Gouveia, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, foi afastado em virtude de ter feito críticas nas aulas à Concordata com a Santa Sé; o mesmo aconteceu, por razões semelhantes, a Barbosa de Magalhães, professor da mesma Faculdade, alguns anos depois. Mas o legalismo reflectiu-se ainda, tanto nos problemas clássicos da interpretação da lei e de integração das lacunas, como em questões mais particulares da dogmática do direito privado. No domínio da interpretação, provocou uma certa ten­ dência para a defesa da interpretação subjectiva.613 No domínio da integração, por sua vez, originou uma desconfiança extrema em relação a qualquer teoria que outorgasse ao jurista um pou­ co de liberdade em face da lei, desconfiança que explica o ultrapositivismo de Marcello Caetano, quando apostrofava a "juris- 611 Sobre ele, Cruz, 1 9 7 5 ,1, 613 ss. e bibl. aí citada (v. 639, n.1400). 612"Elogio do Prof. João Tello de M agalhães C ollaço", em Boi. Fac. Dir. C oim ­ bra, 13(1932-1933), 335. 613Cf. M anueí de A ndrade, "Sobre a recente e v o l u ç ã o d o d i r e i t o p r i v a d o p or­ tuguês ", B oi..F ac. D ir. C oim bra, 22(1946), 284 ss.; Manuel Rodrigues, "D is­ curso proferido na sessão com em orativa do centenário do S.T.J.", P olítica, d ireito e ju s tiç a , Lisboa, 1934, 77 ss. 442 António Manuel Hespanha prudência dos interesses, mesmo na versão moderada então adoptada pela doutrina nacional (submissão do intérprete às valorações legais dos interesses; cf. supra, 8.4.3.),614 de "falsa e socialmente perigosa". Mas esta desconfiança perante a outor­ ga ao juiz de autonomia de apreciação do caso concreto, preju­ dicou também a aceitação pela doutrina dominante de novas figuras da dogmática do direito privado que, justamente, reme­ tiam para o juiz a apreciação da justeza da solução concreta ou uma tarefa de concretização "activa" dos princípios gerais. Era o que se passava com a doutrina do "abuso de direito",615 com a teoria da imprevisão616ou com a admissão da relevância jurídi­ ca de cláusulas gerais (como, v.g., a boa fé).617 8.5. A s e s co la s críticas A s aqui denominadas escolas críticas têm como assunção fundamental a de que as normas jurídicas não constituem pro­ posições universais, necessárias ou, sequer, politicamente neu­ tras. Pelo que, antes de tudo, importa compreender o funciona­ mento do direito (e do saber jurídico) em sociedade, para des­ vendar os seus compromissos sociais e políticos, bem como a violência e discriminação a ele inerentes.618 6,4 Marcello Caetano, O problema do método no direito administrativo português, Lisboa, 1946, 34. Tam bém no seu curso de direito penal de 1938-1939, o mesm o autor afirma que "o direito positivo é justo até prova em contrário, porque a autoridade donde dim ana [o Estado] é um princípio racional de ordenação social". 615 Que admitia que direitos concedidos em geral pudessem ser objecto de um uso concreto ilegítimo, a avaliar pelo juiz. 6,6 Que adm ite a rescisão legítima de u m negócio jurídico no caso de se altera­ rem drasticam ente - de acordo com a avaliação concreta a fazer pelo juiz as condições que serviram de base ao acordo. 617Que obriga os sujeitos jurídicos a com portam entos correspondentes às ex­ pectativas gerais, ^também avaliáveis em concreto pelo juiz. 6,8 Note-se que algum as das escolas anteriorm ente referidas - nom eadam en­ te, as escolas sociológicas - incluíam um a dim ensão crítica do direito vi­ gente que as aproxim a daquelas que serão descritas neste capítulo. Só que, nestas últimas, a intenção crítica é m ais force. Cultura Jurídica Europeia 443 8.5.1.0 sociologismo marxista clássico no domínio do direito K. Marx (1818-1883) foi, desde o século passado até hoje, o inspirador mais contínuo da crítica ao pensamento jurídico do­ minante. Marx não foi um jurista, nem sequer se dedicou especial­ mente à crítica do direito. Foi, isso sim, um cientista social ou pensador político que, nos quadros de uma interpretação glo­ bal da sociedade, fortemente crítica do statiis quo, se pronunciou também sobre o direito. Como se sabe, Marx empreendeu aquilo a que chamou um estudo científico das sociedades humanas do qual conclui que o processo histórico era explicável pela dinâmica gerada pela oposição de grupos sociais ("classes") cuja existência conflitual era explicada pelo facto de o controle da produção dos bens materiais estar desigualmente repartido entre os homens. Do facto de uns possuírem esse controle e outros estarem dele pri­ vados decorreria uma dinâmica social ("luta de classes") na qual a classe dominante tentava manter e perpetuar a sua posição hegem ónica, contra os esforços da classe dominada para se emancipar. Nesta luta "to tal", todos os meios, desde o poder económico até à ideologia, eram utilizados. Pelo que, em últi­ ma instância, todas as manifestações da história do hom em se explicariam por esta tensão fundamental gerada pela forma de organizar socialmente a produção ("modo de produção"). A luta de classes só teria fim com uma repartição igualitária do con­ trole da produção, garantida por uma apropriação colectiva dos meios de produção ("socialism o"). Com isto se atingiria uma sociedade sem classes de onde estaria excluído o domínio de uns homens sobre os outros. Para além de uma explicação global da história humana, Marx forneceu ainda uma teoria mais aprofundada do estádio actual de evolução da sociedade (o "capitalism o", caracteriza­ do pela apropriação privada dos meios de produção e pela dis­ tribuição do produto social por meio dos mecanismos do "m er­ cado"). Do ponto de vista político, o marxismo é, por isso, para 444 António M anuel Hespanha além de uma teoria social, uma proposta política revolucioná­ ria, centrada na crítica da sociedade capitalista e no objectivo da sua substituição por uma sociedade socialista. E neste quadro geral que se insere a crítica que o marxis­ mo dirige ao pensamento jurídico estabelecido.619 Nesta crítica, há que considerar dois aspectos. Um deles, de recorte mais teórico, lida, em termos globais, com a questão da explicação social do direito. Outro, de sentido mais pragmático, com a crítica do direito capitalista (ou "burguês"). Quanto à questão da natureza social do direito, o marxis­ mo aplica aqui a sua teoria geral de que todas as manifestações da vida social são determinadas pela organização social da pro­ dução ("modo de produção"), ou seja, pelo modo como os ho­ mens se relacionam para levar a cabo a produção de bens mate­ riais ("materialismo histórico"). O direito - quer as leis, quer as proposições doutrinais -, tal como a cultura ou a arte, reflectiria esse nível fundamental ("infra-estrutura") da organização soci­ al, defendendo os interesses e exprimindo os pontos de vista das classes aí dominantes. Ou seja, o direito não seria algo de natu­ ral ou de ideal, mas antes uma ordem socialmente comprome­ tida, um instrumento de classe. Já se vê que uma teoria deste tipo não podia deixar de ele­ ger o idealismo e o formalismo das escolas clássicas do pensa­ mento jurídico oitocentista (nomeadamente, o jusnaturalismo herdado do iluminismo ou o conceitualismo pandectísta) como um alvo central de crítica. De facto, o mais característico destas escolas é o facto de apresentarem o direito como um sistema de princípios e conceitos produzidos pela razão e, nesse sentido, libertos, se não da história,620 pelo menos das contradições soci­ 619 Sobre o pensam ento jurídico m arxista v., além da m inha nota "A lgum as indicações sobre a cultura do direito na obra de M arx e E ngels", em Hes­ panha, 1978a, 64-69; Guastini, 1973; C erroni, 1962; Reich, 1972; Meireles, 1990. Panoram a sinóptico sobre o m aoism o e o direito em H espanha, 1996. 620 De facto, a pandectística oitocentista continuava (com o herdeira da Escola H istórica) a aceitar im plicitam ente que o sistem a dos conceitos jurídicos decorria de um a certa cultura ou de um certo direito positivo históricos. Cultura Jurídica Europeia 445 ais. As categorias jurídicas, como as do pensamento em geral, seriam "naturais" e, por isso, partilháveis por todos os membros da sociedade. As soluções do direito seriam "técnicas", consti­ tuindo respostas neutras e científicas aos conflitos de interesses. Os juristas seriam engenheiros, politicamente descomprometi­ dos do social, falando a linguagem de uma ciência rigorosa. Fi­ nalmente, o Estado, o pai da legislação e o garante do direito, seria a incarnação do interesse geral, obedientemente dirigido pela lei-vontade geral, geral e abstractamente (i.e., igualmente) aplicada a todos. Tudo isto é decididamente posto em causa por K. Marx, ao definir o direito como um facto essencialmente classista, por meio do qual os grupos dominantes exercem o seu poder sobre os demais e o perpetuam. Este carácter classista do direito revelar-se-ia em dois mo­ mentos. Por um lado, o direito estabelece directamente o domínio de classe, ao impor normas de conduta que favorecem directamen­ te os dominantes e subjugam os dominados. Num artigo de ju­ ventude, Marx estuda esta questão a propósito do roubo de le­ nha dos bosques renanos. A nova classe dominante, a burguesia, reduzira à propriedade privada as florestas, antes comuns. Ao promulgar legislação proibindo e punindo a apanha de lenha nos bosques - até aí permitida, tal como outros usos comunitários estava a proteger a propriedade agora adquirida e a privar as co­ munidades da sua posse tradicional sobre estes meios de produ­ ção. A mesma natureza classista teria a generalidade das normas jurídicas, nomeadamente, de direito político, de direito penal, de direito do trabalho, de direito da propriedade, pois todas elas pro­ tegeriam juridicamente direitos dos grupos dominantes e impo­ riam aos dominados a obediência correspectiva. Por outro lado, o direito burguês funcionaria também como ideologia de cobertura. Ou seja, criaria uma imagem falseada das relações de poder, ocultando sob a capa da igualdade jurídica garantida, nomeadamente, pela generalidade e abstracção da lei - as reais desigualdades sociais. Marx denuncia esse primado majestoso da igualdade promovida pela lei geral, "la majestueu- 446 António Manuel Hespan’ se égalité des lois qui interdit au riche comme au pauvre, de co cher sous les ponts, de mendier dans les rues et de voler du paii (Anatole France). Para K. Marx - e, mais tarde, para autor marxistas como o soviético E. Pashukanis (1891-1937) - a gen ralidade e a abstracção eram, de facto, a peça central dos pass de mágica do direito burguês. Ao dispor em geral e em abstra to (i.e., considerando os indivíduos como intermutáveis), o c reito burguês estava a criar a forma mais eficaz de ocultar o fa to de que, na realidade, os indivíduos concretos não eram igua mas antes inevitavelmente hierarquizados pelas respectivas co dições económicas e políticas. Mas esta função ideológica c ocultamento era completada pela ficção jurídica da liberdad nomeadamente, da liberdade negociai. Também aqui, o direi construía uma realidade imaginária - a de indivíduos senhor das suas vontades, negociando paritariamente -, totalmente co: traditória com a realidade efectiva, que era antes a de indivíd os condicionados pelos constrangimentos económico-sociais negociando em posições desiquilibradas. O exemplo típico des mistificação era a do contrato de trabalho assalariado, nas co: dições sociais do capitalismo oitocentista, em que o patrão, ec nomicamente forte e dispondo de uma grande capacidade c escolha entre uma grande oferta de trabalho, se confronta co: um assalariado economicamente débil e com escassas possibi] dades de encontrar quem o admita. A crítica marxista dirige-se, assim, tanto contra o conteúi do direito burguês como contra a sua forma. No plano das alternativas, no entanto, o pensamento ma xista foi menos produtivo. Quanto às alternativas "de conteúdo", propunha, natura mente, um direito que protegesse as classes trabalhadoras e c mais desprotegidos. Isso foi surgindo, justamente por influênc do movimento operário, a partir dos finais do século XIX, nomi adamente no domínio do direito do trabalho. Mais tarde, a part de 1917, com o advento da U.R.S.S., criou-se aí um direito qv protegia os interesses que o Partido Comunista definia como sei do os das classes trabalhadoras e que, em contrapartida, sujeit; Cultura Jurídica Europeia 447 va os "inimigos de classe" à "ditadura do proletariado". O direi­ to passa a ser entendido como uma arma política ao dispor da clas­ se operária e dos seus aliados na sua luta pela construção do so­ cialismo. Este carácter instrumental do direito - que identificava a justiça com a utilidade política conjuntural - foi sobretudo enfati­ zado durante o estalinismo (1924-1953; pós-estalinismo, 19541988), tendo sido teorizado pelo então procurador-geral do Esta­ do soviético, A. Vychinski (1883-1954).621 Quanto às alternativas no plano "d a form a", a insistência no carácter burguês das características da generalidade e abs­ tracção da norma jurídica fez com que se tendesse para consi­ derar o direito - que, na sua forma contemporânea, se caracteri­ zava justamente por ser constituído por normas (e categorias doutrinais) gerais e abstractas - como um modelo burguês de regular a sociedade. Em contrapartida, o direito sociaista devia ser mais aten­ to à adequação às situações do que ao respeito pela exigêcia for­ mal da igualdade, atribuindo deveres desiguais ("de cada um segundo as suas possibilidades", bem como direitos desiguais ("A cada um segundo as suas necessidades").622 Isto explica a 621 Sobre o pensam ento jurídico soviético, v. Cerroni, 1969. 622Confrone-se, a este propósito, a parábola dos trabalhadores: "O reino dos céus é sem elhante a um pai de família que saiu de m ad ru gad a, a fim de con tratar trabalhadores para trabalhar na sua vinha; tendo acertado com os trabalhadores que eles teriam uma m oeda por sua jornada, m andou-os vinha. Saiu ainda na terceira hora do dia, e tendo visto outros que estavam na praça sem sem nada fazer, lhes disse: Ide vós tam bém , vós outros, para a minha vinha e eu vos darei o que for razoável; e eles para lá se foram. Saiu ainda na sexta e na nona hora do dia, e fez a m esm a coisa. E tendo saído na décim a prim eira hora, encontrou outros que estavam sem nada fazer e lhes disse: P or que perm aneceis aí durante todo o dia sem trabalhar? E disseram -lhe, porque ninguém nos contartou; e ele lhes disse: Ide vós também, vós outros, p ara a minha vinha. A tarde tendo chegado, o senhor da vinha disse àquele que tinha a incumbência dos seus negócios: Cham ai os traba­ lhadores e pagai-lhes, com eçando desde os últimos até os primeiros. Aque­ les, pois, que não tendo vindo para a vinha senão quando da décim a pri­ m eira h ora esta v a p ró xim a, receb eram um a m oed a cad a um . Os que 448 António M anuel H espanha desconfiança dos regimes socialistas perante qualquer form a­ lização jurídica genérica e a preferência por uma regulação casuísta e decisionista, baseada em directivas concretas, pontu­ ais, provenientes da ponderação política de cada situação in­ dividual. A tantas vezes referida ausência de uma "legalidade socialista" explica-se, do ponto de vista teórico, por esta recu­ sa de uma normação geral que era associada pelos marxistas a um direito historicamente ultrapassado. Embora também se re­ lacione com a concepção, já antes referida, de que o direito, a existir nos Estados socialistas, devia ter sempre um carácter pu­ ramente instrum ental em relação à política, ao julgam ento de oportunidade por parte do Estado. E, sendo assim, o facto de este julgamento ser feito casuisticamente - i.e., sob a form a de uma directiva política - ou de forma genérica - i.e., sob a forma de uma norma legal genérica e abstracta - constituía um deta­ lhe pouco relevante. foram contratados prim eiro, vindo a seu turno, creram que se lhes daria m ais, mas não receberam além de um a m oeda cada um; e, ao receber, eles m u rm uravam contra o pai de família, dizendo: Estes últimos não trabalha­ ram senão um a hora e vós os tom ais iguais a nós que carregam os o peso do dia e do calor. Mas em resposta, ele disse a um deles: M eu am igo, eu não vos fiz injustiça; não acertastes com igo um a m oeda pela vossa jorna­ da? Tom ai o que vos pertence e ide; por mim quero dar a este últim o tanto quanto a vós. N ão me é, pois, perm itido fazer o que quero? e os vossos olhos são m aus porque eu sou bom? Assim , os últimos serão os prim eiros, e os prim eiros serão os últimos, porque há muitos cham ados e poucos escolhi­ dos (São M ateus, cap. XX, v. de 1 a 16). Independentem ente de outros sen­ tidos, aborda-se aqui a crítica da desigualdade: o pai de família estava a tra­ tar desigualm ente os trabalhadores ao pagar igualmente trabalho desigual. No entanto, a sua resposta aponta para valores diferentes da m era igual­ dade: consideração das circunstâncias de cada caso (nom eadam ente, im­ possibilidade de alguns trabalhadores de terem encontrado trabalho mais cedo); bem com o a ideia dessa justiça suprem a que é a justiça distribuiva face à simples justiça com utativa. Cultura Jurídica Europeia 449 8.5.2. O marxismo ocidental dos anos sessenta O marxismo ocidental distanciou-se claramente, a partir dos finais da década de '60 do determinismo economicista que caracterizava o marxismo "oficial" da Terceira Internacional. O Estado e o direito seriam, decerto, quando globalmente consi­ derados, instrumentos de classe servindo os interesses globais dos grupos dominantes. A sua funcionalização político-social não seria, porém, absoluta. A sociedade era irremediavelmente complexa e mesmo contraditória. As classes dominantes não conseguiam estender o seu domínio a todos os recantos da vida social. Existiam sem­ pre espaços sociais - quer no domínio das relações sócio-políticas, quer nos domínio das representações e do imaginário soci­ al - espaços dominados por lógicas diferentes e contraditórias com os interesses e mundividências dominantes. A própria exis­ tência do movimento operário e das suas organizações políticas, em plena sociedade capitalista, aí estavam a prová-lo. O mes­ mo se passaria com a cultura juvenil e underground (populari­ zada pelos grandes nomes da cultura pop contestatária dos anos sessenta, como James Dean, Jack Kerouac, Andy Wharrol ou The Beattles, e bem expressa nos temas pacifistas, alternativos e soli­ dários da geração hippy), com o movimento contestatário dos estudantes (Maio de '68), com os movimentos feministas. Ou, no plano da grande política internacional, com a existência de um bloco de Estados socialistas, mas, sobretudo, com os relati­ vos êxitos do movimento dos países "não alinhados"; dos mo­ vimentos guerrilheiros e anti-imperialistas da América Latina (Che Guevara e Fidel Castro) e do Vietname; ou dos movimen­ tos africanos anti-apartheid e de libertação, nomeadamente na África do Sul (Nelson Mandela), nas antigas colónias portugue­ sas (Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane e Samora Machel). Do ponto de vista teórico, a existência deste relativo plura­ lismo político-social justificou-se por um entendimento novo da ideia de determinação da vida social pela lóg ica d as relações 450 António Manuel Hespanha económico-sociais (do modo de produção económico social). Autores marxistas como António Gramsci, Louis Althusser ou Nicos Poulantzas vêm propor, com diversas apresentações teó­ ricas, a ideia de que o "nível económico" apenas exerce uma determinação "em última instância", permitindo que, nos res­ tantes níveis (como o político, o jurídico, o cultural, o da relação entre os sexos), se desenvolvam lógicas de organização ou ima­ ginários sociais relativamente autónomos e, até, provisoriamente contraditórios com a lógica global do sistema. O sistema social global seria determinado pelo "económ ico", mas sobre-determinado (i.e., suplementarmente, ulteriormente, localmente determi­ nado) pelas relações sociais específicas que se desenvolveriam em cada um dos restantes níveis da prática humana. Outros pegam na ideia de "modo de produção" - até aí re­ servada ao modo de produção económico - e aplicam-na autono­ mamente a cada um dos níveis específicos da produção social (produção jurídica, produção cultural, etc.). O resultado é uma imagem teórica do social como constituído por diversos sistemas de produção, cada qual dominado por uma lógica autónoma e interagindo todos uns com os outros no seio de um mesmo espa­ ço social, embora o conjunto acabasse por ser dominado pela ló­ gica do nível mais decisivo, aquele em que se produziam as rela­ ções económicas de poder (o modo de produção económica). Outros, ainda, explicam esta relativa autonomia e eficácia própria dos níveis antes designados de "supra-estruturais" (entre os quais se encontra o direito) por efeitos de retomo (feedback), que fariam com que eles pudessem, por sua vez, agir sobre a infra-estrutura, condicionando-a ou mesmo modificando-a. As consequências da evolução do marxismo ocidental no domínio do pensamento social e das próprias práticas políticas foi muito grande. De facto: (i) permitiu uma análise marxista da sociedade e do poder que não reduzia tudo ao "económ ico" ("anti-reducionism o", "anti-econom icism o"), permitindo dar conta da complexidade dos mecanismos de criação e de reprodu­ ção das relações de poder; Cultura Jurídica Europeia 451 (ii) problematizou a ideia de um sistema rígido e monóto­ no nas relações sociais, introduzindo não só a ideia de sistemas sociais com vários centros, abertos ao ambiente e à indeterminação, como a da importância da prática política concreta e individual ("ousar pensar, ousar ven­ cer", "a imaginação ao poder", slogans de Maio de '68). No domínio jurídico, esta corrente de ideias valoriza de novo o direito, permitindo encará-lo, não apenas como um re­ flexo inerte das determinações económicas, mas como um nível autónomo, (i) que devia ser explicado em si mesmo (e não a par­ tir das determinações sociais, políticas ou económicas) e (ii) a partir do qual se podia influir no desenho das relações sociais e políticas. 8.5.3. A “crítica do direito” O primeiro aspecto leva a uma nova preocupação de com­ preender o modo como o direito cria sistemas de classificação e de hierarquização, normas e imagens, que condicionam ou até instituem, relações de poder na sociedade. Trata-se das escolas de "crítica do direito" (critique du droit, criticai legal studies, Rechtskritik), que se desenvolvem sobretudo em França, nos Estados Uni­ dos e na Alemanha a partir dos meados da década de '70.623 Embora os movimentos da "crítica do direito" - sobretudo em França - tenham dependido muito da crítica marxista do di­ reito, pode encontrar-se para elas uma inspiração mais especí­ fica no pensamento da Escola de Frankfurt que, nos anos ses­ senta, empreendeu uma desmontagem bastante sistemática dos pressupostos ideológicos da cultura (entendida no seu sentido 623 Sobre estas escolas, a m elhor síntese é a dos artigos "C ritique du droit" (Michel Miaille) e "Criticai legal studies" (R. Abel), em Arnaud, 1988. Ou­ tras sínteses: sobre o ram o am ericano (talvez o mais interessante), "C riti­ cai legal studies sym posium ", S ta n fo rd law review , 36 (1-2), 1984; Unger, 1983; sobre o ram o francês, P ou r u n e critiq u e du d roit, Paris, PUG-M aspéro, 1978. Revistas: P rocès, K ritisch e Ju stiz , C ritica dei d iritto. 452 António M anuel H espanha mais vasto, desde a música ao senso comum) do mundo ociden­ tal. No plano mais especificamente político, a Escola de Frank­ furt procurou identificar as raízes mais profundas do modelo ocidental das relações de poder, tais como os sistemas de conceptualização e de classificação, as modalidades da comunica­ ção, os modos de produção do saber, a geometria dos afectos, a organização familiar, o sistema escolar, etc. Todos estes níveis de produção do poder são concebidos como artefactos culturais, i.e., como produto de uma organiza­ ção (ou "construção") "local" da realidade social levada a cabo por grupos sociais num certo momento histórico. Também o direito é o resultado de uma produção arbitrá­ ria, local, histórica, de grupos sociais. Mas, para além disso, ele é também um instrumento de construção de representações (o sujeito de direito, o contrato, a propriedade, o Estado), de cate­ gorias (o louco, o criminoso, a mulher, o negro) e das hierarqui­ as sociais correspondentes. A função da crítica do direito é, por um lado, desvendar os impensados sociais que estão na raiz das representações jurídi­ cas, desmitificando os pontos de vista de que o direito é uma ordem racional, neutra e fundada objectivamente na realidade social (i.e., na natureza das coisas). Mas, por outro lado, compete à crítica do direito revelar os processos por meio dos quais o direito colabora na construção das relações de poder. De que modo, por exemplo, contribuiu para criar a imagem social da mulher - como ser fraco, menos capaz e subordinado - que fundamenta os processos sociais de discriminação sexual (Teresa Beleza). Ou de que modo contri­ buiu para criar a realidade social do "louco" ou do "crim inoso" e os processos sociais da sua marginalização (M. Foucault).624Ou, finalmente, de que modo a fixação da atenção na coerção jurídi­ 624 Sobre a crítica do direito em M ichel Foucault, v. M áiz, 1978; Serrano González, 1987b; Fitzpatrick, 1985. Sobre a valorização foucaultiana do direito e do Estado liberais, v. Goldstein, 1993, C aputo, 1993; Barry, 1996. Cultura Jurídica Europeia 453 ca e estadual (i.e., a ideia da centralidade do direito e do Estado) ocultam a violência das formas "doces" de disciplinamento, como a família, os círculos de amizade, o envolvimento afecti­ vo, o saber, a assistência pública. 8.5.4. O “uso alternativo do direito” Como se viu, o neomarxismo insistiu no carácter comple­ xo e relativamente pluricentrado do sistema sócio-político. No domínio do direito, isso levou a pensá-lo como uma ordem não absolutamente vinculada aos interesses das classes dominantes, mas relativamente contraditória e, portanto, passível de vários usos políticos. Este carácter contraditório do direito decorreria de dois aspectos. Por um lado, o domínio das classes dominantes seria sem­ pre "incompleto", pois os grupos dominados conseguiam fazer valer, em espaços limitados, pontos de vista próprios. A socieda­ de seria, assim, irredutivelmente contraditória, partilhada entre projectos e valores político-sociais divergentes, embora hegemo­ nizados pelos das classes dominantes. O direito e o Estado - es­ ses "resumos" da luta de classes, como lhes chamara K. Marx seriam também caracterizados por essa natureza contraditória da sociedade. Embora globalmente dominados pelos poderes soci­ almente estabelecidos e funcionalizados aos seus interesses, não deixariam de reflectir o carácter "incompleto" das relações de dominação e os compromissos a que os grupos dominantes ti­ nham, por isso, sido obrigados. Exemplos disto seriam aqueles ramos do direito em que os movimentos progressistas tinham conseguido impor normas de protecção dos grupos mais fracos. Era o caso, nomeadamente, do direito do trabalho e das garanti­ as que ele tinha fixado a favor dos trabalhadores (horário de tra­ balho, descanso semanal, direito à associação sindical e à greve, etc.), fruto das lutas operárias, d esd e os finais d o sécu lo XIX. Mas era tam bém o caso d as garantias e liberd ad es individuais, bem com o das garantias jurídicas dos mais desprotegidos (crianças, 454 António Manuel Hespanha mulheres, pobres, doentes e diminuídos, inquilinos, etc.) fixadas na legislação do Estado-providência (ivellfare State, Wohlfahrtstaat), a partir dos anos '30. Todos estes casos davam exemplo dos compromissos existentes no seio do direito, impostos pela ousa­ dia e combatividade dos grupos dominados, e contraditórios com os interesses das classes dominantes. Este carácter compromissório do direito ainda seria mais forte pelo facto de a própria ideia de direito estar orientada para um ideal de igualdade, de equilíbrio (de "justiça"), de proscrição da violência aberta ou da opressão explícita de uns sobre os outros. E de, consequentemente, o jurista tender a imaginar o direito como a ponderação justa ("razoável") de interesses políticos contraditórios e a imaginar-se a si mesmo como o agente neu­ tro dessa ponderação. Acresce que, nessa tarefa d e ponderação (em abstracto doutrina; ou em concreto - jurisprudência) dos interesses em presença, o jurista dispõe de uma larga margem de liberdade (ou discricionariedade), dado o carácter genérico, ambíguo e fre­ quentemente contraditório das proposições jurídicas. Liberda­ de que, então, devia ser utilizada para contradizer, corrigir e compensar,625 nos planos doutrinal e, sobretudo, jurisprudencial, os pressupostos classistas do direito (maxime, do direito le­ gislado, oriundo do poder político). São fundamentalmente estas ideias que estão na base da pro­ posta de um "uso alternativo do direito", tal como foi feita em Itá­ lia no início da década de '70626e que inspirou duradouramente a doutrina crítica italiana, estando seguramente na origem do protagonismo que a magistratura ganhou em Itália, como agente de reformas da vida cívica e política, nas décadas '80 e '90. 625 Tal com o o pretor, em Roma, auxiliava, corrigia e supriu os defeitos do di­ reito civil em vista da utilidade pública (adjuvandi, corrigendi vel supplendi ius civile propter utilitatem publicam). 626 A expressão foi cunhado num congresso d e 1972, ein Catania, na Sicília; actas, Barcellona, 1973. Cultura Jurídica Europeia 455 A ideia de um uso alternativo do direito é, em certa medi­ da, mais recuada do que as propostas de u m criticismo radical das escolas críticas. Hla íurvda-se na ideia de que o uso do direi­ to não é irremediavelmente repressor e favorável aos grupos dominantes, sendo possível levar a cabo, desde dentro do pró­ prio direito e com instrumentos jurídicos, tarefas de sentido pro­ gressista e libertador. Para isso, no entanto, seriam necessárias certas condições, umas metodológicas, outras institucionais. No plano metodológico, deveria, por um lado, ser favore­ cida a capacidade do jurista de ter uma visão menos mítica, mais esclarecida e mais crítica do direito, de modo a torná-lo consci­ ente do funcionamento não neutro, comprometido ("parcial", "local") das instituições jurídicas, bem como do carácter "local" (i.e., não "racional", "natural" ou "evidente") dos seus pressu­ postos ou do seu impensado (i.e., da "ideologia espontânea dos juristas"). Isto seria favorecido pela inclusão na formação jurí­ dica de disciplinas - como a sociologia, a antropologia ou a epistemologia crítica - que treinassem o futuro jurista numa atitude crítica (i.e., não conformista, não pietista) em relação ao direito. Mas, por outro lado, deveria ser cultivada uma metodolo­ gia do direito que aumentasse a liberdade do jurista perante a lei, dando-lhe espaço para construir de forma mais independente (do poder político estabelecido) soluções doutrinais ou jurisprudenciais alternativas. Isto conseguir-se-ia insistindo nos pontos de vista anti-positivistas - nomeadamente, (i) combate ao méto­ do da subsunção e reivindicação da liberdade jurisprudencial e (ii) insistência sobre o carácter inelutavelmente individual da solução jurídica. O primeiro ponto de vista valoriza decisivamente a função doutrinal e jurisprudencial, tal como o vinham fazendo algumas escolas jurídicas do pós-guerra. Em todo o caso, com alguma originalidade. Na verdade, esta valorização do direito doutrinal e jurispru­ dencial (contra o direito legislativo) pode relacionar-se com dois pontos de vista. O primeiro deles é a crença em que é mais fácil impor pontos de vista progressistas no campo da doutrina e da 456 António M anuel Hespanhí jurisprudência do que no campo do poder político estadual (le­ gislação). Isto prendia-se, por um lado, com as características muito especiais do contexto político italiano dos anos setenta.62: Mas decorria também de um novo entendimento de uma via de­ mocrática para a reforma das instituições. A democracia seria essencialmente, o triunfo da igualdade, sem a qual não existiria liberdade. Ora, se nas democracias populares a insistência m igualdade comprometera inaceitavelmente a liberdade, nas demo­ cracias representativas, a preservação da liberdade política leva­ ra a que os interesses económicos e partidários subjugassem com­ pletamente o funcionamento das instituições, instituindo uma nomenklatura político-partidária (primeiro a Democracia Cristã, depois a coligação "penta-partidária"), económico-financeira e mediática (o "império Berlusconi") que governava sobretudo em favor de si mesma (a "Roma latrona"), sacrificando a igualdade (senão mesmo a liberdade) numa rede de corrupção política, de troca de favores e de violência (o "polvo"). No meio desta crise institucional, os juristas universitários e os juizes apareciam como um meio menos contaminado e menos contaminável pela corrupção das instituições (a "m ala vita"). Menos contaminado, porque seleccionado por processos "corpo­ rativos", mais transparentes e menos dependentes do poder po­ lítico central (as provas académicas e os concursos para a magis­ tratura). Menos contaminável, porque mais disperso, até regio­ nalmente, tomando muito mais difícil o estabelecimento de uma rede de corrupção ou de domínio do que no caso da burocracia político-estadual ou partidária, hierarquicamente organizadas. 627 Em que, por um lado, as forças de esquerda (nom eadam ente, o Partido C om unista Italiano) viam bloqueado o seu acesso ao poder político pela hegem onia da D em ocracia Cristã e pelos constrangim entos da política in­ ternacional (a Itália era um pilar fundam ental da OTAN). Mas em que, por outro, a esquerda hegem onizava o meio intelectual e universitário, poden­ do, por isso, condicionar as novas gerações de juristas e juizes. A cresce que os juizes italianos se distinguiram , durante os anos '80 e '90, - por vezes com sacrifício da própria vida - na luta contra a Mafia e a corrupção, o que os tornou em heróis (matti pulite, m ãos limpas) da opinião pública. 457 C ultura Jurídica Europeia Daí que se passasse a pensar que era justamente nestes juristas e juizes - mas sobretudo nos últimos, dado o seu poder institucio­ nal (magistratura) - que residia a única esperança de reforma po­ lítica, institucional e cívica. Protegidos do governo pela sua inde­ pendência estatutária, libertos - em virtude do sistema da sua designação - das inãuências partidárias e dos compromissos eleitoralistas dominados por um ideal de justiça como igualdade e equilíbrio e formados num ambiente intelectual e universitário progressista, os juizes deveriam estar em condições de realizar um "direito igual", mesmo numa sociedade de classe.629 Ponto era que - e aqui aludimos brevemente aos condicionalism os institucionais a que antes nos referimos - (i) a in­ dependência da magistratura estivesse eficazmente garanti­ da em relação ao poder governamental e mesmo parlamen­ tar, nomeadam ente no que respeita ã independência (não governam entalização) dos órgãos de gestão da carreira dos ju i­ zes e magistrados do ministério público e (ii) que os juizes e m agistrados tivessem meios efectivos de realizar as suas ta­ refas (nomeadamente, acesso à informação governamental e bancária, controlo da actuação policial). Daí o ênfase posto por esta corrente nas questões da sociologia da justiça e da organização judiciária, bem como a influência que teve nos m ovim entos profissionais e sindicais dos magistrados, sobre­ tudo nos países da Europa da sul. Por sua vez, o carácter inelutavelmente individual da so­ lução jurídica permitiu a este projecto de "uso alternativo do direito" valorizar, tam bém ele, a perspectiva de que o direito se colhe da observação da realidade, tal como tinha sido pro­ posto pela ideia de "uso alternativo do direito". Porém, en­ quanto que a ideia de natureza das co isa s tinha levado, fre­ quentem ente, a propostas conservadoras, aceitando a reali­ dade como um dado estático, o uso alternativo do direito vem p r o p o r q u e a solução jurídica seja inspirada por uma análise 628Cf. Coturri, 1978. V. ainda, sobre este tema, do mesmo, Cotturi, 1974. 458 António Manuel Hespanha dinâmica e crítica da realidade. Ou seja, que o jurista compre­ enda a realidade social como algo de ainda im perfeito, per­ corrido por tensões e interesses conflituais, que importa re­ gular em vista de objectivos politicamente libertadores e pro­ gressivos. E que sejam, justam ente, estes objectivos, presen­ tes na consciência mais crítica e mais libertadora da época, a dirigir a solução; mais do que os equilíbrios empiricamente observáveis, que, normalmente, tenderão para a conservação do status quo. Noutros países, sobretudo na Alemanha e nos Estados Unidos, a ideia de um uso alternativo do direito e da justiça com­ binou-se com a de inventar e pôr em prática formas alternati­ vas de direito ou mesmo de criar alternativas ao direito e à jus­ tiça oficiais cómo instrumentos de normação social e de resolu­ ção de conflitos.629 Esta proposta parte da constatação da crise actual do direito e da justiça nos países do primeiro mundo. Crise que é tanto uma crise institucional como uma crise de legitimidade. A crise institucional traduz-se na progressiva falta de efi­ cácia da lei, como instrumento de normação social, com o con­ sequente aparecimento de zonas cada vez mais extensas que fogem ao controlo do direito oficial. Quer zonas de a-legalidade, em que se prefere a regulação informal, como os acordos de cavalheiros, as formas de arbitragem privada, a negociação po­ lítica. Quer zonas de ilegalidade, em que se foge ou se recusa a disciplina legal, como os mundos juridicamente submergidos do racket, da mafia, da corrupção, do trabalho ilegal, da economia paralela, da fraude fiscal. O fracasso das políticas repressivas de "aplicação da legalidade" (laiv inforcement), baseadas no refor­ ço das medidas policiais (law and order policies), mostra até que ponto a crise é profunda e ultrapassa as possibilidades de tera­ pêutica dentro do modelo estabelecido de direito e de justiça. 629 Cf. Blankenburg, 1980; Cappelletti, 1984; H espanha, "Lei e justiça: história e prospectiva de um parad igm a", em H espanha, 1993a, 7-58. Cultura Jurídica Europeia 459 Também a justiça oíicial, baseada rva resolução de confli­ tos por tribunais estaduais clássicos atravessa uma cxise çroíunda, cujo sintoma mais evidente é o da lentidão da máquina ju­ dicial. Aparentemente, o aparelho judicial - cujos custos estão já no limite das possibilidades de Estados com constrangimen­ tos financeiros cada vez maiores - foi saturado pelo afluxo de litígios a que a própria política de promoção do acesso à justiça (" democratização da justiça") - proposta nos anos' 60 e ' 70 como parte integrante das políticas de democratização de bem estar típicas do Estado Providência - dera lugar. Mas a crise não é apenas institucional. É também uma crise de confiança, por parte dos cidadãos, nas instituições jurídicas e judiciais (crise de "legitimidade"). Os cidadãos não só ignoram massivamente o direito, como não se reconhecem nele, ou seja, não o reconhecem como meio idóneo de realizar os seus ideais de organização social ou de resolução dos conflitos. As leis e os regulamentos, elaborados por um mundo político cada vez mais fechado sobre si mesmo, envolvidos numa linguagem tecnicista e hermética, constituindo um mundo imenso e impossível de abar­ car, aparecem como um universo normativo sem sentido, dis tante dos problemas reais das pessoas, monopolizado por uma clique de iniciados, suspeito de proteger interesses inconfessáveis. Quan­ to à justiça, a sua lentidão, o seu preço, a impenetrabilidade da sua linguagem, fizeram com que o recurso aos tribunais se tor­ nasse num jogo, caro, e de resultados aleatórios.630 A proposta de formas alternativas de direito e de justiça parte justamente destes sintomas de crise e procura outras for­ mas, mais eficazes e mais aceites de estabelecer normas de com­ portamento e de resolver os conflitos. No plano do estabelecimento de normas de comportamen­ to, as propostas têm sido várias. Para uns, a regulamentação do Estado deve dar lugar à concertação privada. 630Quanto a todos estes aspectos, v. o meu texto antes citado e os restantes a r­ tigos da colectânea, nom eadam ente os de M arc Galanter e R. Auer. 460 António M anuel Hespanha Trata-se, tipicamente, da estratégia proposta pelas correntes neoliberais, integradas numa estratégia de redução do papel de intervenção social do Estado. Note-se, em todo o caso, que a jus­ tiça das soluções obtidas por "concertação" supõe que as partes concertantes têm um idêntico poder negociai, que os pontos de vista de uma (v.g., dos consumidores ou dos trabalhadores) não serão "naturalmente" esmagados pelos da outra (v.g., das gran­ des empresas ou dos patrões). Sem isso, a livre contratação das normas de conduta, no seio da sociedade civil, conduzirá a um férreo domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. E por isso que parece muito indesejável que o Estado, como entidade encarre­ gada de compensar as desigualdades da sociedade civil, deixe de regulamentar matérias como as das relações de trabalho, da ven­ da de produtos médico-farmacêuticos, da qualidade do ensino, da segurança dos consumidores, da defesa do ambiente, etc.631 Para outros, o estabelecimento de normas sociais poderá ganhar muito com a adopção de novas tecnologias da informa­ ção e com um uso adequado dos media. Nestas propostas - com alguns interessantes aspectos "futuristas" - as novas tecnologias (nomeadamente, a criação de redes de comunicações muito po­ derosas, as chamadas "auto-estradas da comunicação") permiti­ ria uma direcção eficaz, personalizada, inter-activa, quase "conversacional", das condutas sociais.632 Mas, mais limitadamente, poderia tomar muito mais eficaz a publicitação dos normativos actuais, criando, por exemplo, bases de dados, facilmente consul­ táveis e permanentemente actualizadas, do direito em vigor. Para outros, finalmente, haveria que voltar a avaliar formas não coactivas de direcção de condutas, baseadas, por exemplo, nos laços afectivos, de solidariedade 611. 631 Para um a irónica crítica do m odelo neoliberal de direito e de justiça, v. o excelente texto de Johnson , 1984. 632V., sobre isto, Toffler, 1990. Antecipações desta regulamentação "comunicacional" da sociedade são, por exemplo, as "informações" e "conselhos" da rádio sobre a situação do trânsito, as instruções e regras de funcionamento das ATM, os sistemas periciais de auxílio à decisão sobre aplicações financeiras, etc. 633 Cf. H espanha, 1992a. Cultura Jurídica Europeia 461 No domínio da composição de conflitos, tem-se criticado a absoluta concentração da decisão dos litígios em instituições estaduais e proposto a descentralização destas funções em or­ ganismos espontâneos, surgidos da própria sociedade civil, como os centros de justiça comunitária (community justice centers) experimentados nos E.U. A., as Bürgerinitiativen, ensaiadas na Alemanha, as comissões de moradores ou outras "organi­ zações populares de base", previstas na Constituição portugue­ sa de 1976, ou, ainda, as instituições de justiça popular, v.g., de Cabo Verde. Instituições deste tipo, surgidas da própria popu­ lação e em permanente contacto com ela, poderiam resolver, desde que dotadas de meios e assessoradas por juristas e téc­ nicos sociais, de uma forma mais rápida e socialmente aceitá­ vel, uma gama muito vasta de litígios, desde as questões de vizinhança até à pequena criminalidade.624Mas, por outro lado, tem vindo a ser destacado como estas instituições - de que o modelo mais clássico, é ainda o júri nos tribunais oficiais - são extremamente vulneráveis ao condicionamente pelos poderes estabelecidos ou, ainda mais, pelos meios de comunicação de massa (mass media). Neste último caso, já foi realçado como os meios de comunicação: (i) antecipam o julgamento formal; (ii) condicionam decisivamente o seu resultado; e (iii) criam pro­ cessos cognitivos - i.e., esquemas de apreensão e nálise - dife­ rentes dos tradicionais.625 A adopção de novas formas de normação e de composição de conflitos não se esgota em inovações de natureza institucio­ nal. Na verdade, estas novas instituições de realização do direi­ to implicariam também, não apenas novas formas de argumen­ tar sobre o direito e de atingir a solução jurídica, como a relacionação do saber jurídico com outros saberes. Quanto ao primeiro aspecto, tem sido realçado que a realização do direito em meios 634Sobre estas instituições e as dificuldades da sua im plantação em concorrên­ cia com a justiça oficial, v. Galanter, 1993. 635Refiro-me ao interessantíssimo livro de Richard K. Sherwin (Sherwin, 2000). 462 António Manuel Hespanha menos rigorosamente profissionalizados e ritualizados do que os tribunais letrados oficiais aproximaria o discurso jurídico da linguagem comum e a discussão judicial da negociação (bargai­ ning) corrente.626 Quanto ao segundo aspecto, tem-se verificado que o tratamento de casos jurídicos em instituições comunitári­ as de justiça (dispute institutions) exige uma estreita cooperação entre juristas, sociólogos, psicólogos, assistentes sociais e, até, médicos, pois raro é o conflito cuja resolução não envolva aspec­ tos que nada têm a ver com o direito. 8.5.4.1. As correntes críticas em Portugal Em Portugal, os temas de uma justiça e direito alternativos estiveram especialmente em voga nos anos imediatos à "Revo­ lução dos cravos" (1974). Na verdade, a instauração da demo­ cracia e a denúncia da anterior ditadura originaram uma pro­ funda crise de legitimidade das instituições e do direito627ante­ riores, que a opinião pública classificava frequentemente de "fas­ cistas" . Por outro lado, tinha-se gerado uma imagem nova acerca do modo de gerir os negócios públicos e decidir das questões sociais e políticas. Entendia-se agora que estas decisões deviam ser tomadas, não "nos gabinetes", pelos "burocratas", mas "p e­ las bases", "perante o povo". A democracia representativa e a legitimidade que daí decorria para os órgãos do Estado não pa­ recia garantir suficientemente a prossecução dos autênticos in­ teresses populares. Foi a época das assembleias e dos plenários (de operários, de estudantes, de soldados, de vizinhos).628 636Sobre a relacionação da retórica jurídica com o ambiente institucional de decisão, v. Santos, 1980b. 637Que, com excepção das disposições legais abertam ente contrárias à ordem dem ocrática, continuavam em vigor. M antiveram , de facto, a sua vigência, v.g., o Código administrativo, o Estatuto disciplinar dos funcionários, as leis de organização judiciária e o Estatuto judiciário. A própria Constituição de 1933 não foi expressam ente revogada. 638Sobre este assunto, v. H espanha, 1986. Legislação ulterior e a própria Cons­ tituição de 1976 acabam por d ar cobertura a um a parte destas "o rg an iza­ ções populares de base". Cultura 'Jurídica E uropeia 463 N o domínio do direito e dayisüça, isto teve consequências diiectas, abrindo um a época de grande riqueza de experiências alternativas, quer no domínio da regulação, quer no da resolu­ ção de conflitos. No domínio da regulação, estabeleceu a ideia de que as movimentações populares (manifestações de massa, assemblei­ as, etc.), as formas pelas quais elas se institucionalizavam (or­ ganizações populares de base, comissões, grupos de trabalho) e as decisões que daí saíam (moções, restruturações, ocupações de fábricas, empresas e terras, ocupações de casas) gozavam de uma legitim idade prim eira ("O povo é quem mais ordena"), que emanava directam ente de uma "legalidade revolucionária", uma espécie de "força das coisas" do processo revolucionário (a "dinâmica do processo revolucionário em curso", as "conquis­ tas da Revolução"), de algum modo formalizada nos documentos-guia emanados do M.F.A. ou do Conselho da Revolução.639 Apesar de tudo isto carecer de reconhecimento por parte do di­ reito oficial,640instalou-se a ideia de que, pelo contrário, era o di­ reito oficial que devia ser aferido, na sua legitimidade, pela sua conformidade com o novo direito revolucionário. Este novo direito, que se revelava espontaneamente nas "acções de massas" e nas "lutas populares", exigia uma nova forma de ensino, ensaiado, nos anos de 1975 e 1976, pela direc­ ção maoista da Faculdade de Direito de Lisboa (ela mesma sur­ gida de uma "luta popular" não reconhecida oficialmente), que "saneou" todos os antigos professores e assistentes, substituin­ do-os por trabalhadores, militantes políticos e juristas compro­ metidos nas lutas populares, e que estabeleceu um "curso po­ pular" de direito, orientado para a aprendizagem do direito vi­ vido, entremeado de testemunhos de casos e de estágios nos tri­ bunais.641 639 Cf., sobre este tem a, M oreira, 1975; M iranda, 1975. 640Cf. H espanha, 1 9 8 6 ,1 1 4 (com bibliografia sobre o tema). 641N a prática, a com ponente m arxista-leninsta era muito superficial; depois de um a algo m onótona e vu lgar introdução político-ideológica, entrava-se rapidam ente na m atéria, de acordo com as lições dos antigos mestres. 464 António M anuel Hespanha Mas exigia, também, uma nova forma de justiça que garan­ tisse, por um lado, a participação popular e, por outro, a preva­ lência de um novo espírito de justiça dirigido pelos ideais da revolução. Quanto ao primeiro aspecto, a crítica corrente dirigida à jus­ tiça oficial era a de que, para além do seu conservadorismo polí­ tico, os juizes constituíam um grupo fechado e corporativo, jul­ gando segundo um direito incompreensível, cheio de subtilezas e formalismos, sem qualquer controle popular ou da opinião pú­ blica democrática. A resposta oficial a esta reivindicação de uma justiça mais próxima do povo foi a de reintroduzir o júri nas cau­ sas criminais (DL 605/75, de 3.11; Constituição de 1976, art° 216); de instituir juizes populares ("juizes de paz" nas freguesias, para o julgamento de questões módicas no domínio do arrendamento rural, direito dos menores, direito de trabalho) (L 82/77; Consti­ tuição de 1976, art° 217);642 inclusão (mitigada) de não juizes no Conselho Superior da Magistratura (L 85/77; Constituição de 1976, art° 223); e, finalmente, a criação do Provedor de Justiça (DL 212/75, de 21.4; Constituição de 1976, art° 24), como instituição desburocratizada e universal de recurso por parte dos cidadãos. Mas as reivindicações dos sectores mais radicais iam muito para além disto. O que se pretendia era uma verdadeira alternativa à justiça oficial - considerada como cara, acessível a poucos, acadé­ mica, afastada das massas populares e marcada pelo espírito de casta -, surgida das próprias organizações populares de base (como as comissões de bairro, as comissões de trabalhadores) e integrada por magistrados de carreira e elementos populares.643 De alguma forma, este projecto teria suporte no Documento-guia, aprovado pelo Conselho da Revolução na primavera de 1975, que institucionalizava uma estrutura política constituída por uma pi­ râmide de organizações populares participativas, desde o âmbi­ W2 V. A participação popular na administração dajustiça. Actas do colóquio, Lisboa 1980. 643 Cf. A m adeu L. Sabino, "D epoim ento", Revista da Ordem dos Advogados, 1976, 191. Cultura Jurídica Europeia 465 to da freguesia até ao nacional. Em todo o caso, a organização de uma "justiça popular" - suspeita a muitos juristas, mesmo de es­ querda644- nunca foi levada a cabo.645 Quanto à necessidade de infundir na justiça Um novo espíri­ to, a reivindicação era a de uma jurisprudência mais criativa na apreciação os casos concretos, mais liberta em relação à lei e mais conforme com a nova ordem de valores (democrática e socializante) estabelecida pela Revolução. O tópico da "libertação anti-legalista da jurisprudência" já vinha de antes da Revolução, tendo sido nomeadamente lançado, com muita ênfase, por António Castanheira Neves, nas suas lições (muito influentes na formação dos novos juristas) de "Introdução ao estudo do direito" na Faculdade de Di­ reito de Coimbra. Mas agora toma-se numa palavra de ordem de uma camada mais jovem de juizes, muito activa no repensamento e reestruturação da vida judicial,646 que a combinam com a ideia, importada de Itália, de um "uso alternativo do direito".647 O exemplo mais conhecido de tentativa de um "uso alterna­ tivo do direito", em que o juiz invertia a legalidade estabelecida em homenagem aos valores jurídicos revolucionários, foi o do "caso do juiz Dengucho". Este magistrado, então juiz na Marinha Gran­ de, zona de fortes tradições anarco-comunistas, tentou introduzir uma prática de justiça menos distante da vida, mais comprometi­ 644Pode dizer-se que o projecto de um a "justiça popular" era activamente apoi­ ado apenas pelos grupos radicais de esquerda; os juristas comunistas per­ m aneceram sem pre muito indecisos quanto a este ponto. 645 Realizaram -se muito poucos "julgam entos populares". O mais conhecido foi o "caso José D iogo", em que um trabalhador rural m atara, na sequência de um a discussão, o proprietário das terras em que trabalhava. No dia do julgam ento oficial, um a multidão ocupou o tribunal e, substituindo-se aos juizes (que decidiram adiar o julgamento, transferindo-o para outra com ar­ ca), constituiu um tribunal popular e condenou... o morto, classificando o hom icídio com o um acto de legítima defesa. Sobre a justiça popular em Portugal, nesse época, v. Santos, 1980a. 646Entre eles, Ferreira, 1972; Ferreira, 1974; Ferreira, 1978; Nascimento, 1979; Almeida, 1980. W7 Cf. Ferreira, 1 9 8 0 ,1 1 4 ss. 466 António Manuel Hespanha da com as realidades quotidianas e mais aberta à consideração dos projectos de mudança social estabelecidos pela revolução. Reunia com a câmara, as comissões de trabalhadores e as comissões de moradores, oferecendo a colaboração do tribunal na resolução de assuntos de interesse geral; criou no tribunal um comité de apoio à reforma agrária e, depois da promulgação da Constituição de 1976, começou a indeferir in limine as acções de despejo, considerandoas contrárias à garantia do direito à habitação consagrado na Cons­ tituição. Acusado pelos sectores conservadores, na imprensa e nos meios judiciais de comprometido político, Celso Dengucho acaba por ser punido pela sua "ousadia"643ao ser demitido pelo Conse­ lho Superior da Magistratura (apesar do reconhecimento da sua in­ teligência, saber e honestidade) por falta de "idoneidade moral", bem como do "bom senso, equilíbrio e sensatez" necessários para o exercício da magistratura.649 8 .6. As esco la s an ti-leg alista s Um dos legados jurídicos do século XIX foi, como se viu, o legalismo. Já vimos como ele corresponde a um imaginário que estava em desenvolvimento na cultura política europeia desde há muito - o estadualismo - e como se reforçou com o advento da ideia de democracia representativa (cf. supra, 8.1. "O contex­ to político.").650 Pode, no entanto, dizer-se que, mal se estabeleceu, o lega­ lismo começou a ser objecto de contínuas críticas. Vindas, em primeiro lugar, dos críticos do estadualismo, que não reconhe­ ciam ao Estado (à vontade dos governantes) a legitimidade para definir, em termos absolutos, as normas da justiça. Vindas, de­ pois, dos críticos da democracia representativa, que não reco- 648Realmente, as decisões do juiz Dengucho não foram objecto de crítica jurí­ dica interna, tendo sido apenas classificadas de "o u sad as". W9Sobre este caso, v. Hespanha, 1 9 8 6 ,1 2 5 e 127 e bibliografia aí citada. S5ÍISobre o tema, um a das melhores sínteses é Zagrebelsk, 1992, maxime, cap II, "Dello stato di diritto alio Stato costituzionale" Cultura ]uríà\ca Europeia 467 nheciam ao Estado demo-liberal (ao "v o to ", a uma " geração do povo") a legitimidade para íalar em nome do "p o v o ". Vindas, depois, dos críticos da "form a estatal" do direito (genérica e abs­ tracta, coactiva, centralizada, homogénea, fechada), a que não reconheciam a virtualidade de regular justamente a inesgotável riqueza e variedade das situações e conflitos da vida. 8.6.1. Sentidos gerais do anti-legalism o contemporâneo São, assim, vários os sentidos do anti-legalismo contempo­ râneo. O primeiro é o de recusar à vontade do Estado - qualquer que ele seja - a capacidade de definir critérios de justiça e, logo, de estabelecer, de forma absoluta e sem apelo, os conteúdos do direito. Esta orientação não é mais do que uma actualização de um tema sempre presente na história do direito europeu - o tema da existência de um direito natural, indisponível para os poderes políticos e, por isso, superior a eles. Mas ganhou um novo vigor numa época em que as pretensões de regulação do Estado se es­ tenderam mais do que nunca, tendo alcançado, com os totalitarismos do século XX (nazismo, fascismo, estalinismo), o extremo de um propósito de regular "totalmente" a vida. Perante estas formas extremas de legalismo,651 a preocupação de estabelecer li­ mites - formais (i.e., reservas de liberdade) ou materiais (i.e., prin­ cípios normativos inderrogáveis) - à actividade do Estado tornamse muito mais imperiosa. Podem ser filiadas neste sentido do antilegalismo, orientações filsosófico-metodológicas muito variadas, 651Realmente, o carácter legalista das formas apontadas de Estado é problemá­ tica: no nazism o im perava um "decisionism o", que fazia da "vontade do Führer" a última fonte de direito; no fascismo, o legalismo esteve sempre sob suspeita de constituir uma marca distintiva do demo-liberalismo, devendo ser substituído por uma referência às "instituições" naturais da sociedade; e no estalinismo, os interesses de classe, formulados pelo "com issário" sem­ pre deveriam prevalecer sobre a lei (apesar desta ser uma emanação de um Estado que se definia como uma "ditadura do proletariado"). 468 António Manuel H espanha destacaremos, sobretudo duas - o jusnaturalismo laico (cf., 8.6.2. ), insistindo na existência de uma ordem de valores (seja qual for a sua origem) que se impõe ao legislador estadual, e o jusnatura­ lismo cristão (cf., 8.6.3.) este sublinhando (também) limites ma­ teriais da criação estadual do direito. O segundo sentido do anti-legalism o é o de sublinhar o carácter artificial (e, eventualmente, parcial e enviesado [biased]) da regulação estadual perante a regulação forçosa e natural da própria vida. Em termos tais que o direito estadual ficaria sem­ pre condenado a observar princípios externos de justiça, neste caso não transcendentes, mas imanentes às próprias relações sociais. Neste tópico confluíram as correntes sociologistas e institucionalistas já referidas (cf. supra, 8.4.4.), bem como algumas correntes críticas (cf. supra, 8.5.). Mas podem ser ainda incluídas aqui, aquelas correntes que acham que, embora haja princípios superiores de justiça que cabe ao Estado (democrático) definir, a lei é uma forma inadequada - porque rígida, fechada e monó­ tona na sua aplicação - para exprimir esses princípios. Quan­ do muito, eles deveriam estar na Constituição, como meros prin­ cípios orientadores, sem sequer definirem exactamente o seu campo de aplicação (fattispecie), cabendo aos juizes avaliar da sua pertinência e hierarquizá-los em cada caso concreto; é esta a ori­ entação prevalecente no constitucionalismo norte-americano e em alguma da doutrina constitucional europeia mais recente.652 Não falta, é claro, quem chame a atenção para os preços a pa­ gar, em termos políticos e em termos de política do direito, des­ ta orientação: não só se abre enfraquece substancialmente o prin­ cípio democrático de que compete ao legislativo estabelecer o direito, como se abandona na mão dos juizes aquilo que é mais fundamental no reconhecimento da existência de uma ordem superior de valores - a sua aplicação à vida, que é isso que real­ mente interessa do ponto de vista da justiça deste mundo.653 652Cf. a bela síntese de Am aral, 1998, maxime, 314 ss.; A m aral, 2002. 653Sobre um a interpretação sócio-juridica deste novo constitucionalismo, Ferrarese, 2002 (cf. a minha recensão e com entário, em Themis, IV.7(2003). Cultura Jurídica Europeia 469 O terceiro sentido do anti-legalismo, diz sobretudo respei­ to à forma abstracta, geral e imperativa das nomias da lei. A uma concepção do direito como ciência das leis (como na Escola da Exegese) ou como ciência dogmática dos princípios que delas decorrem (como no conceitualismo) opõe esta corrente a velha ideia do direito como prudentia, como "saber prático", no qual o encontrar da solução não decorre do silogismo judiciário, mas de uma espécie de auscultação normativa do caso concreto (cf. supra, 5.6.2. A estrutura discursiva.) (ou, pelo menos, de uma aplicação não-monótona de princípios normativos flexíveis a cada caso concreto) (cf. Zagrebelsky, 1992,163 ss.).654 O quarto sentido do anti-legalismo é o de problematizar a adequação da tecnologia disciplinar legalista-estadualista à re­ gulação da vida social, insistindo na pluralidade, quer das situ­ ações sociais a regular, quer das instâncias sociais de regulação. 8.6.2. Em busca de uma “justiça material” O vigor anti-legalista das décadas que se seguiram à II Grande Guerra não é uma simples consequência de movimen­ tos de natureza filosófica no domínio do direito. O trágico con­ texto político (ou mesmo civilizacional) dos totalitarismos con­ temporâneos e do cortejo de catástrofes por eles causadas - di­ taduras ferozes, genocídio, guerra - teve um enorme impacto sobre a consciência jurídica e obrigou a repensar a função do direito como garante de valores civilizacionais. Uma coisa ficou clara. O formalismo da pandectística, com o relativismo axiológico que lhe andava ligado (cf. supra, 8.3.3.), não armava suficientemente os juristas para, enquanto juristas, se oporem a projectos políticos e jurídicos que negassem os valo­ res fundamentais da cultura europeia. A demonstração disto vi­ nha da observação da realidade alemã, no período de entre guer­ ras. A constituição e a cultura jurídica da república de Weimar 651Com ;á se disse, estes princípio constituem norm as sem uma delimitação da sua esfera de aplicação (sem fattispecie). 470 António Manuel Hespanha eram filhas da ética formalista e axiologicamente neutral do kantismo e da pandectística. Qualquer que fosse a intenção teórica original, a Teoria pura do direito ainda reforça este fechamento da dogmática a considerações de ordem política ou ética. A legi­ timidade do direito (e do poder) fundava-se exclusivamente no facto de ser estabelecido de acordo com os processos constitucio­ nalmente prescritos. Os seus valores de referência eram despro­ vidos de conteúdo (uma ética, um sistema de valores, uma cren­ ça religiosa, um sistema filosófico, uma visão mundo) e aponta­ vam apenas para a necessidade de observar uma forma (constitucionalidade orgânica e formal). Onacional-socialismo subiu ao poder respeitando basicamente essa forma e, uma vez no poder, instaurou uma nova forma que, por sua vez, legitimava a sua ac­ ção política. Mesmo descontando os que activamente colabora­ ram com o nazismo e, nomeadamente, com a sua política antisenmita,655 manietados pelo formalismo, raros foram, por isso, os juristas alemães que recusaram a legitimidade de um direito que, 653 Cari Schmittt (1888-1985), por exemplo, organizou, em 1936, uma conferên­ cia sobre "A judiaria e o direito alem ão", onde, para além de enaltecer o "m ag ­ nífico com bate" de Julius Streicher, delegado de Hitler para a questão judai­ ca e condenado à forca por crimes de guerra no Tribunal de Nuremberga, fez aprovar uma moção no sentido de omitir qualquer referência a académicos judeus. Numa série de seis volumes destinados a identificar as nefastas in­ fluências da "judiaria" sobre o direito alemão, era expressam ene assinalada a origem judaica de Hans Kelsen, o que explicaria o carácter abstruso da sua teoria pura. Quando a Faculdade de Direito de Colónia pediu, em 1933, que Kelsen fosse poupado à política de arianização do direito, Schmitt agiu em conformidade com o seu anti-semitismo, tendo sido o único professor a re­ cusar-se a assinar a petição (cf. Detlev F. Vagts, 2002, 2157 ss.). A sequência da vida de Kelsen sob o nazismo é assim contada por um seu biógrafo" Te­ mendo o resultado se a polícia o encontrasse em sua casa, o professor de di­ reito envolveu o seu velho revolver do serviço militar numa casca de banana e deitou-o ao Reno. Fugiu com a família para Praga, onde, na sua primeira liçao, fascistas apinhados no hall gritavam: "Tudo menos judeus e comunis­ tas ! Rua !". Ele continuou a ensinar, sob a protecção da polícia. No entento, tendo sido descobertis planos para o assassinar [...]. fugiu com a família para os EUA, em que lhe foi dada uma cátedra de ciência política, mas não de di­ reito" (Stewart, 1990. 273). CuVUira^UT\à\c&'Europeia progressivamente, se foi afastando, no plano internacional (direito internacional, direito da guerra) e no plano interno (direito cons­ titucional, direito penal), das aquisições mais fundamentais da cultura jurídica e política europeia. Nos restantes países sujeitos a regimes totalitários ou autoritários, a situação foi semelhante, embora a situação alemã se apresentasse como mais dramática, em virtude do carácter monstruoso do nazismo, contraposto ao tradicional brilho da cultura jurídica germânica. No fim da Guerra, gerou-se, portanto, um movimento es­ pontâneo de refundamentação do direito em valores supra-positivos, indisponíveis para o legislador. Os grandes julgamen­ tos dos criminosos de guerra (de Nuremberga e de Tóquio) já pressupunham a existência de um direito supra-positivo, em face do qual pudessem ser consideradas como criminosas acções permitidas pelas ordens jurídicas à sombra das quais tais acções tinham sido praticadas. Mas a Lei Fundamental (1949) da Repú­ blica Federal Alemã estipulava expressamente, nos seu s §§ 20, II/III, a vinculação do legislador ao direito, tendo sido entendi­ do, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, que esse di­ reito não era tanto o direito positivo (o que seria trivial e com­ patível com uma visão estritamente positivista), mas um direi­ to não escrito depositado na consciência colectiva. Nem a Cons­ tituição escaparia a esta vinculação. Como se referiu numa de­ cisão (de 1953) do Tribunal Constitucional da R. F. A., "O direi­ to constitucional não consiste apenas nas proposições isoladas da constituição escrita, mas também em certas proposições fun­ damentais e ideias condutoras, entre si internamente coerentes, que se impõem a ela" ,656 Claro que isto podia não significar muito mais do que a submissão aos quadros dogmáticos de uma or­ dem jurídica estabelecida, com o que o significado supra-posi­ tivo dos princípios ficava muito problemático.657Mas podia tam- 656 Cit. por Gõrlitz, 1972, II, 276; sobre as posições jusnaturalistas dos tribunais superiores alem ães, v. síntese em W ieacker, 1993, 701 s. 657O entendim ento mais corrente - e não de todo arbitrários - Teoria pura do direito orienta-se neste sentido (cf. Stewart, 1990, 297 ss..). 472 António Manuel Hespanha bém remeter para princípios claramente supra-positivos e supradogmáticos, presentes na consciência colectiva.658 Por outro lado, nos Estados Unidos da América, esta mes­ ma re-valorização de sentimentos imanentes de justiça (e de bom governo) - que, de facto, sempre escorara a interpretação extre­ mamente inovadora da Constituição - recebeu um novo folgo do pensamento dito "comunitarista" . Um dos seus mais conhecidos representantes, Amitai Etzioni,659 faz deste tema da existência de um direito imanente e não redutível ao direito do Estado um dos elementos daquilo que ele crê constituir o maior problema políti­ co-social dos nossos dias. Uma atitude individualista teria dissol­ vido a percepção dos laços comunitários e deformado os senti­ mentos éticos (nós diríamos sentimentos jurídicos espontâneos) dos membros da comunidade, cujo ideal de bom governo se ori­ entaria agora exclusivamente no sentido de uma reclamação dirigida à justiça oficial - unilateral de direitos, sem uma consci­ ência dos deveres correspondentes. Por isso mesmo, a regulação dos deveres sociais teria entrado num estado de dependência em relação a uma definição legislativa das obrigações. O diagnósti­ co de um anterior livro de Mary Ann Glendon,660 tecnicamente mais elaborado, vai no mesmo sentido. O liberalismo teria empo­ brecido a linguagem (e a sensibilidade política), reduzindo-a a um "discurso [paleio] reivindicativo" (rights talk), desconhecedora dos deveres e constrangimentos objectivos das relações sociais e obri­ gando, por isso, a um pouco económico esforço do Estado, no sen­ tido de impor pelo direito oficial atitudes que deveriam decorrer de impulsos espontâneos. O que não era muito fácil era fundamentar filosoficamen­ te este novo direito natural, cujo regresso se festejava.661 658Cf., v.g., a posição de E m st Bloch (1885-1977). Bloch, 1961. “ ‘'E tz io n i,1995. ^ G len d o n , 1991. 661 Cf. Leo Strauss, Natural law and history, 1953. Cultura Jurídica Europeia 473 É certo que não faltavam as críticas ao formalismo da ante­ rior filosofia do direito, de raiz kantiana, que se esgotava numa exigência de liberdade individual.662 Mas substituir isto - que per­ mitia que, em nome das vontades individuais dominantes, da vontade das maiorias, se impusesse um qualquer sistema de va­ lores - por uma referência axiológica com conteúdo material era difícil. Pois a cultura europeia - com excepção das correntes liga­ das ao cristianismo, nomeadamente ao catolicismo (cf. infra, 8.6.3.) - propendia para deixar de acreditar em sistemas religiosos ou filosóficos de validade geral. E, com isso, era reticente em reco­ nhecer princípios jurídicos de valor absoluto e universal.663 Daí que, o novo jusnaturalismo tenha tomado uma de três orientações. Uma delas foi a de considerar que, nos termos de uma teo­ ria evolucionista e progressista da história (inspirada em Hegel), existiam aquisições ético-jurídicas irreversíveis da humanidade, ligadas, nomeadamente, a uma progressiva revelação da digni­ dade humana. E que essas aquisições não poderiam ser postas em causa pela lei positiva, constituindo antes uma medida da legitimidade desta.664 A actual tendência de criar um direito supra-estadual, em matéria de direitos humanos ou de crimes con­ tra a Humanidade, radica neste (problemático e, de qualquer modo, susceotível de uma série de leituras enviesadas e etnocentristas) optimismo progressista. 662 Cf. E. Kaufm ann, K ritik d er n eok a n tisch en R ech tsp h ilo so p h ie, 1921, 684; sobre a sua crítica ao formalism o ético de Kant, v. W ieacker, 1993, 684 ss. 663 V., sobre isto, W ieacker, 1993, 712 (referindo, com o exem plo, as perplexi­ dades e discussões em tom o do aborto, da esterilização, do auxílio ao sui­ cídio, do divórcio, dos poderes parentais, das relações entre os sexos). V. ainda, Kaufm ann, 2002, C.3. 664Foi a posição defendida, nomeadamente, pelo jusfilósofo marxista Em stB loch (N a tu rrech t u n d m en sch lich e W ü rd e [Direito natural e dignidade hum a­ na], 1961). H á reflexos disto na ideia de "acquis constitucional", que subja­ zia à teoria de não revisibilidade de certos artigos da Constituição portu­ guesa de 1976 (relativos às então cham adas "conquistas revolucionárias"). 474 António Manuel Hespanha Outra orientação foi a dos que apelavam para os ditames da consciência jurídica de cada um que, perante situações con­ cretas, não podia deixar de ditar uma solução justa.665 Ou, pon­ do a questão de outra maneira, apelavam para os valores de que as próprias situações da vida eram em si mesmas portadoras. O direito decorreria, assim, da própria "natureza das coisas (Natur der Sache) " ,666 que tanto resistiria às intenções normativas "artificiais" (eventualmente, contra natura) do legislador, como seria capaz de sugerir, positivamente, soluções jurídicas adequa­ das ("ajustadas", gerechtige, "justas", richtige) ,667 As "coisas" tor­ nam-se, assim, numa fonte de direito, de onde decorreria um "direito natural concreto". Em todo o caso, as coisas a que esta corrente se refere não são as realidades sociais empíricas obser­ váveis nos termos da sociologia descritiva. Compreendem tam­ bém uma dimensão não empírica, normativa: o apelo para uma certa ordenação, uma ideia condutora, uma "lógica" interna, uma expectativa de desempenho de certos papéis pelos agen­ tes envolvidos. E isso que dá a estas "coisas" uma dimensão nor­ mativa e as transforma em elementos de ordenação (e não ape­ nas de mera reprodução da ordem existente).668 665 Neste sentido, já M ax Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, 1927; v. W . W ieacker, 1993, 685 ss., 700 ss.; textos significativos dos propugnadores desta ética material em A. Kaufm ann e W . Maihoffer, Die ontologische Begründung des Rechts, D arm stadt, 1965. 666/.e., do hom em concreto em situações existenciais de relação tam bém con­ cretas. Cf. Kaufm ann, C., 2.2.4.4.3. 667V. Arthur Kaufmann, Analogie und Natur der Sache, 1965; E. Maihofer, Recht und Sein. Prolegomena zu einer Rechtsontologie, 1954; Vom Sinn menschlicher Ordnung, 1929. Com um sentido ligeiramente diferente, outros autores (H. Welzel, Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, 1962) falam de "estruturas 16gico-materiais" (i.e., de exigências de um a lógica, objectiva dos valores jurí­ dicos que se imporia a todo aquele que quisesse pensar ou falar sobre o di­ reito); cf. Wieacker, 1993, 688 ss.;103 s., 226 ss; Kaufmann, 2002, C., 2.2.4.4.3. 668Esta observação pretende problem atizar os pontos de vista daqueles que acham que o pensam ento da "n atu reza das coisas" é, por natureza, conser­ vador. Cultura Jurídica Europeia 475 Outras correntes defendem que a pulverização e antinomia dos valores jurídicos se deve apenas a mal-entendidos provo­ cados "erros de linguagem", por formas pouco rigorosas ou "so­ físticas" de expressão, já denunciadas por Bentham como usu­ ais no discurso jurídico. Daí que a clareza dos princípios jurídi­ cos pudesse ser estabelecida por uma rigorosa análise da lingua­ gem do direito. É esta a proposta dos que, influenciados pela fi­ losofia analítica da linguagem e pela lógica jurídica, apostam num novo positivismo que reduzisse pretensas questões filosó­ ficas ou metafísicas a questões de "polícia da linguagem ". Em­ bora a intenção destas escolas "positivistas" não seja reconstruir um "direito natural", elas acabam por instituir critérios (pelo menos formais) para validar as proposições jurídicas e, também, as proposições legislativas.669 Ainda outra orientação foi a dos que, na impossibilidade de encontrarem valores certos e absolutos que limitassem o ar­ bítrio do legislador, mas não querendo, por outro lado, deixar este completamente livre de estabelecer qualquer direito, con­ sideraram que, na falta de valores "naturais" que legitimassem e limitassem o direito, deveriam valer como tal os valores "con­ sensuais" . Algumas das correntes consensualistas partem de uma re­ novação do contratualismo primo-liberal, propondo que os va­ lores supra-positivos da ordem jurídica são o produto de um contrato estabelecido entre indivíduos racionais e que, pelo fac­ to de o serem, têm que convir num catálogo de princípios racio­ nais de convivência. Para garantir que este contrato não está vi­ ciado, nem enviesado por interesses particulares ou pela desi­ gualdade real dos contratantes, estabelecem uma série de pres­ supostos processuais que devem presidir ao contrato: (i) ou que cada contraente desconhece â sua situação real em relação aos outros (o que o leva a decidir-se por princípios que não o pos­ sam prejudicar seja qual for essa situação - o famoso "véu de “ 9Sobre as escolas analíticas, v. Kaufm ann, 2002, 476 António M anuel Hespanha ignorância" proposto por John Rawls);670 ou que (ii) que o diá­ logo que precede o estabelecimento dos princípios de convivên­ cia seja "transparente e igualitário" (J. H aberm as).671 Apesar destas cautelas, não é fácil escapar à crítica de que estes autores partem da hipótese idealizada de um indivíduo (uni)racional, ideia que contende com a existência de uma pluralidade de vi­ sões do mundo e, portanto, de "racionalidades" que convivem no seio de uma mesma sociedade (mesmo de uma sociedade "nacional" - conflitos de valores geracionais, conflitos de valo­ res relacionados com o género, com a oposição "urbano" - "su­ burbano" - "ru ral", etc.). Outras correntes consensualistas simplesmente naturali­ zam o senso comum, tomando a-poblematicamente. Isto é típi­ co de uma época em que a massificação da cultura e da infor­ mação - quer extensivamente, ao mundializar a comunicação,672 quer intensivamente, ao incrementar brutalmente o impacto dos meios de comunicação de massa sobre os indivíduos - reduziu drasticamente os dissensos,673 criando uma cultura de base, ex­ pressa pelo senso comum, suficientemente forte para poder ser­ vir de apoio a tecnologias disciplinares duras como o direito. A esta cultura superficial pertencem noções ingénuas de "direitos humanos", "dem ocracia", "globalização", "multiculturalismo", "ambientalismo", "terrorismo", sobre as quais se pretende cons­ truir uma ordem indiscutida (e, freqüentemente, considerada como indiscutível). Embora os consensualismos cultivem um relativismo de base, negando-se a afirmar o carácter absolutamente racional ou 670 O consenso através de um a hipotética negociação em condições de "igual­ dade de op ortu n id ades": A th eory o f ju s tic e , 1972; trad. port., U m a teoria da ju stiça , Lisboa, Presença, 1993. 671 O consenso ideal através de um hipotético "d iálogo livre de dom ínio de todos com tod os": V orstu d ien u n d E rg ä n z u n g en zu e in e r T h eo rie d es kom m u ­ n ik ativ en H a n d eln s , 1984. 672C riando um a com unidade de com unicação e de cultura que tendencialmente abrangeria todo o m undo, a cham ada "aldeia global" (M. M cLuhan). 673 Culturas étnicas, culturas de grupo, idiossincrasias individuais. Cultura Jurídica Europeia 477 natural das suas opções normativas, naturalizam (ou racionali­ zam) pelo menos a ideia de que "se deve viver consensualmente".674 Assim, por exemplo, as posições de A. Etzioni - a que já nos refereimos -. Pretendendo refrerir-se a valores abrangentes, co­ muns, resvalam com facilidade para um moralismo baseado numa visão pouco crítica do senso comum, ou mesmo para um naturalismo (ou essencialismo) moral conservador, Nesta crítica não incorre o pensamento neo-republicano, para o qual o núcleo de princípios comuns de convivência con­ siste num conjunto mínimo - historicamente mutável e sem quaisquer pretensões ontológicas ou naturalistas - de regras co­ muns de vida, estabelecidas na constituição (numa constituição formal ou numa constituição "aberta", sempre provisória e ac­ tualizável), cujos conteúdos teriam que ser encontrados, sempre arriscadamente, perante os casos concretos (v., supra, 3.3. "Uma nota sobre "relativismo metodológico" e "relativismo moral" e sobre o papel dos juristas, neste contexto). Em diversas obras de grande profundidade e expressi­ vidade, o filósofo Zygm unt Bauman675salienta o modo como se instaurou, por um processo continuado de atomização e in­ dividualização da sociedade, uma "liquefacção dos valores", um indiferentism o moral, que teriam permitido estabelecer form as despóticas de poder. Embora ele se refira sobretudo à com unicação social, o diagnóstico pode fundamentar tam­ bém o triunfo de um consensualism o sem limites, nem con­ cessões ao dissenso. Do que se pecisaria, então, era de aumen­ tar a capacidade de reflexão, de vigília e de crítica em rela­ ção ao senso com um (dissem inado pelos códigos ou pelos media), de modo a restaurar a complexidade da realidade (nes­ te caso, dos valores sociais conflituais, vigentes numa socie­ dade). E, redescoberta esta com plexidade, seria necessário 674 Crítica do consensualism o (visando, nom eadam ente, J. Habermas e J. Ra­ w ls), m ostrando o carácter "arbitrário" mesmo das ideias mais "sensatas" e "con sen su ais" (com o as de dem ocracia, meritocracia, justiça distributi­ va) em W alzer, 1994; Zolo, 1987; Bauman, 2001. 675Baum an, 2000, 2001, 2002. 478 António Manuel Hespanha revalorizar das capacidades autênticas de julgar de que cada um, "em situação" (ou seja, de acordo com contextos cultu­ rais, existenciais e situacionais), dispõe. È neste sentido que se pode falar de uma revalorização da tópica jurídica ou teoria da argumentação. A tópica é, como já se disse, o nome dado pela antiga teo­ ria do discurso (cf. supra, 5.6.2.3) à técnica de encontrar soluções no domínio dos saberes problemáticos, ou seja, dos saberes em que não existem certezas evidentes, como o direito, a moral, etc. Nestes casos, a legitimação da solução encontrada não decorre tanto da validade das premissas em que esta se baseia como no consenso que suscitou no auditório. Aplicada ao direito, esta ideia vem a colocar o juiz (ou o jurista) na primeira linha da ac­ tividade de achamento ou de declaração do direito, o qual, para decidir um caso concreto, lança mão de argumentos (tópicos) disponíveis (princípios doutrinais, precedentes, disposições le­ gislativas), no sentido de ganhar o assentimento (das partes, mas também do público em geral) para a solução. Neste contexto, a lei é apenas um dos argumentos, cuja eficácia argumentativa dependerá tanto da sua consonância com o sentido concreto de justiça vigente no auditório como do prestígio de que a forma "lei" (e, em geral, a entidade "Estado") aí goze.676 Para além de constituir uma crítica ao legalismo, a tópica constitui também uma crítica ao normativismo, ou seja, à ideia de que a norma geral e abstracta está no princípio de um processo de subsunção (cf. supra, 8.3.3.1) que conduziria ao achamento do direito. Pelo contrário, a tópica defende que é o caso, com o seu carácter concreto e situado, que sugere os argumentos ou pontos de vis­ ta relevantes, bem como que os permite hierarquizar. 676Obras clássicas da orientação tópica: Th. Viehweg, Toptk u n d Jurispru denz, 1953; J. Esser, G ru n dsatz u n d N orm in der rechtlichen F ortbildu n g des P rivatrechts (Prin­ cipio e norm a no desenvolvimento jurídico do direito privado), 1956. A teo­ ria da arg u m en tação 'd ev e muito, tam bém , a Ch. P erelm an ( T r a ité de Vargu m en tation , 1958 [em colaboração]); cf. sobre a teoria da argum entação, no âmbito da teoria de aplicação das normas, Kaufmann, 2002, F.14. Para o mundo jurídico americano, v. as notáveis obras de Jam es Boyd White (Whi­ te, 1 9 7 3,1984,1990) sobre o carácter argum entativo e retórico do direito. Cultura Jurídica Europeia 479 A tópica parece representar, além disso, uma perspectiva bastante adequada para analisar a função de julgar nos dias de hoje. 'Em que o juiz está, pot dever de oíicio - e, até, pela sua si­ tuação proíissional - dependente dos critérios valor ativos do Estado, expressos na lei. M as não está menos sujeito à influên­ cia e controlo da opinião pública, potenciados pelos media. Por um lado, ele é objecto das múltiplas influências valor ativas dis­ paradas pela sociedade (por uma sociedade pluralista e comuni­ cativa). Por outro, a sua visibilidade mediática sujeita-o às reac­ ções da opinião pública em relação às suas decisões.677 Finalmente, há quem duvide dos consensos e que prefira assumir claramente a existência de valores plurais irredutíveis na sociedade. 8.6.3. Os jusnaturalism os cristãos Como se viu (cf. supra, 7.1.1.), a ideia de que existem com­ ponentes indisponíveis na organização social e política (e, logo, no direito) foi uma constante do pensamento cristão. Deus, ao criar a natureza e o homem, estabelecera uma ordem e um pla­ no que não competiria ao homem refazer. O direito supra-positivo proposto pelo cristianismo é, assim, essa norma que provém dos desígnios de Deus.678 Na Época Medieval, o jusnaturalismo cristão baseava-se so677Sobre o im pacto da intensíssima m ediatização do direito nos EU A sobre o direito e a justiça (v.g., o caso O. J. Simpson) (v. inform ação em h ttp :// w w w .law .u m k c.e d u /fa c u lty /p ro je cts/ftria ls/S im p so n /sim pson.htm ), v. Sherwin, 2000. 678Encontrar inequivocam ente valores relativos à vida social e política na Re­ velação e na Tradição não é tarefa fácil. O próprio conteúdo de uma e ou­ tra são muito discutidos pelos teólogos (v., recentem ente, a notável síntese das tradições teológicas, eclesiais e políticas, no seio do catolicismo de co­ nhecido teólogo católico Hans K ü n g ,, Küng, 2001). Igual dignidade de to­ dos os hom ens, dignidade da m ulher, dignidade do trabalho, separação entre religião e política, mom ento do início da vida, dignidade do sexo, li­ berdade religiosa e de consciência, eis um a série de questões para as quais pode haver, no seio da tradição cristã [ou m esm o católica; ou m esm o no m agistério papal], várias respostas). 480 António M anuel Hespanha bretudo na revelação (direito divino) e na autoridade eclesiásti­ ca (direito canónico), impondo-se, por isso, apenas aos crentes. Embora se tendesse a crer que, na respublica christiana, lhe de­ vesse estar subordinado o direito temporal (cf. supra, 5.2.2.). Na Época Moderna, a progressiva laicização da sociedade e do po­ der levou a que se tornasse progressivamente inadmissível uma tal subordinação.679 As Igrejas cristãs conformaram-se com esta separação entre o plano religioso e o plano temporal e, conse­ quentemente, deixaram de insistir na subordinação do direito temporal ao direito e moral religiosos.680 Mas, em contraparti­ da, passaram a insistir em que o núcleo dos princípios religio­ sos tinha um carácter "natural", obrigando, por isso, todos os homens, independentemente das suas crenças. A Igreja Católica depois de ter tentado, durante a primeira metade do século XIX, combater frontalmente o "modernismo" (religioso) e o "liberalismo" (político) - ou seja, a laicização do poder político temporal (separação entre a Igreja e o Estado, li­ berdade religiosa, registo e casamento civis, a-confessionalidade do ensino)681- acabou por adoptar uma posição mais recuada, que 679 Cf., em Portugal, a proibição do uso do direito canónico nos tribunais civis decretada pela Lei da Boa Razão (cf. su p ra , 174). “ "C om excepção das correntes "integristas" (que se conservaram até hoje, quer no m undo católico, quer no m undo protestante). Estas continuam a defen­ der que a dimensão religiosa cobre, p o r in teiro , na ín teg ra, a vida hum ana, nada lhe sendo alheio e, portanto, nada se podendo alhear do magistério divino. Daí que condenem todas as form as de "liberalism o" (v.g., a liber­ d ade religiosa, o carácter laico e a-confessional do Estado) e que conside­ rem que o direito está limitado pelos princípios da religião. 681 O liberalismo foi condenado pelo Syllabus e pela encíclica Q uanta cu ra (1864), de Pio IX, ratificados pelo concílio do Vaticano I (1869-1870), o que não impe­ diu o desenvolvimento de um movimento católico liberal (La Mennais, Lacordaire, Montalembert), que está na origem da democracia cristã. O modernis­ mo - ou seja, tudo o que, desde a exegese bíblica até ao darwinismo e, em ge­ ral, o cientismo, passando pelo liberalismo, pela democracia e pela liberdade religiosa, fosse contrário ao ensinamento tradicional da Igreja, baseado no neotom ism o - foi condenado na encíclica P a s cen d í D om in ici G reg is, de Pio X (8.9.1907), que o definiu como "a síntese de todas as heresias". A situação só se inverte com o concílio do Vaticano II (1962-1065). Sobre o modernismo católi­ co e a reacção que suscitou, por parte da hierarquia, cf. Schoof, 1970; Daly, 1980. Cultura Jurídica Europeia 481 se traduziu em sublinhar a ideia da subsidiaridade do Estado pe­ rante os direitos naturais da pessoa e da família. Na realização das finalidades humanas, o papel principal caberia à própria iniciati­ va da pessoa e à célula social básica que era a família. Ao Estado, por direito natural, apenas caberia proteger e apoiar o desenvolvi­ mento pessoal e familiar, suprindo eventuais insuficiências des­ tas células sociais básicas (princípio da subsidariedade). Daí que as esferas de actuação da pessoa e da família fossem considera­ das como zonas garantidas contra a intromissão do Estado, garan­ tidas por direito natural. Fundamentalmente, o que a Igreja preten­ dia era salvaguardar para os católicos (no plano do ensino, da po­ lítica da família, etc.) um "espaço livre" do império de um Esta­ do que era, em princípio, laico e indiferentista, mas - na prática frequentemente, ateu ou anti-religioso.682 Este "renascimento do direito natural"683baseava-se funda­ mentalmente na releitura que os teólogos oitocentistas tinham feito de S. Tomás de Aquino ("neo-tomismo"), releitura que su­ blinhava os seus aspectos personalistas (i.e., centralidade da pessoa humana, na sua dupla dimensão física e espiritual, defi­ nida como ente aberto aos outros e ao sobrenatural). Esta dupla abertura à Humanidade e à Transcendência faria com que a dig­ nificação da Pessoa fosse inseparável da dignificação da Huma­ nidade e da dignificação do Sobrenatural. Daí que, em nome da dignidade da pessoa, se deveriam corrigir os "excessos" do in­ dividualismo que pudessem pôr em causa os outros dois valo­ res. As principais linhas de força deste jusnaturalismo persona­ lista foram as seguintes.684 682Com o a Igreja não reconhece clara e abertam ente a liberdade religiosa se­ não com o Concílio Vaticano II, a sua posição não era a mesma nas situa­ ções em que os poderes tem porais eram católicos e a dissidência não cató­ lica. Aí, as concordatas não apenas ou torgavam privilégios à Igreja como im portavam frequentemente restrições à liberdade de outras confissões. V., sobre o tem a da liberdade religiosa, M achado, 1996. 683A expressão é retirada do título de um livro que fez época, L. Chamont, La renaissance du droit naturel, 1910. 684 Sobre o jusnaturalism o protestante, cf. W ieacker, 1993, 695 ss. 482 António Manuel Hespanha Antes de tudo, a ideia de que o direito deve servir valo­ res éticos superiores, decorrentes da dignidade da pessoa hu­ mana, da dignidade do género humano e da dignidade do so­ brenatural. No plano da liberdade pessoal, a doutrina social da Igreja defendia que ao Estado competia proteger a pessoa humana, nas suas dimensões física (incluindo proprietária) e espiritual. Os direitos pessoais inerentes à dignidade humana (direito à vida incluindo a intra-uterina - ,685 à liberdade pessoal, à integridade física, etc.) foram definidos como direitos naturais, que se im­ punham ao Estado e ao seu direito. Também a liberdade do es­ pírito, nomeadamente, a liberdade de pensamento e da sua ex­ pressão, foi considerada como um direito natural, embora com as restrições acima apontadas. Dada a naturalidade da dimen­ são religiosa do homem686, aqui se incluía ainda (uma certa con­ cepção da) liberdade religiosa, bem como a liberdade de ensino católico (incluindo o dever de o Estado laico o subsidiar). Em todo o caso, o aberto reconhecimento das liberdades políticas e culturais pelo pensamento católico foi muito retardado pelas já referidas condenações do liberalismo e do modernismo; e, fre­ quentemente, enfraquecido pela constante insistência na ideia de que o gozo dessas liberdades estava naturalmente limitado pelo "bem comum", ideia que legitimava restrições muito im­ portantes ao alcance prático do reconhecimento destes direitos naturais. A mesma dignidade de direito natural teria a propriedade privada, posta em causa pelas correntes socialistas,687 mas ago­ ra considerada como uma extensão da liberdade pessoal. N'3 Condenação do aborto. A Igreja tam bém condena a eutanásia. Em contra­ partida, não condena a pena de morte nem a guerra. 6f"’ Esta naturalidade fundar-se-ia na referida abertura da pessoa hum ana ao transcendente. M7 Condenadas, em nome da "doutrina social da Igreja", pelas encíclicas Rerum novarum (1891), de Leão XIII, e Quadragésimo anno (1931), de Pio XI. Cultura jurídica Europeia O ^usnaturalismo católico insiste ainda rvo fundo natural da instituição familiar. Acima da lei estariam a indissolubilidade do casamento,688 a liberdade de procriar689e a de educar os filhos.690 Por outro lado, no plano do direito público, as ideias-força são três. A primeira é a da já referida limitação do Estado e do seu direito pela moral e pelo direito natural. A segunda é a da fun­ ção subsidiária do Estado, que o impede, nomeadamente, de se colocar a si mesmo ou à sociedade como o fim da vida política. Por isso, a Igreja condenou (embora com ritmos e ênfases dife­ rentes) todas as formas de totalitarismo contemporâneo/’91 que subordinavam o destino pessoal a objectivos colectivos. A ter­ ceira é a de que a actividade do Estado deve estar orientada para o bem comum, por isso lhe cabendo, não apenas limitar os ex­ cessos do individualismo, como desenvolver acções tendentes à protecção dos mais fracos. Neste sentido, a doutrina social da Igreja orientou-se na direcção, contemporaneamente proposta por outras correntes, de um "Estado social" (ou "Estado provi­ dência", ivellfare State, Wohlfahrtsstaat). 688E, por isso, se condenava o divórcio, m esm o para os casam entos civis. Em Portugal, o divórcio "civil" não existiu, para os casam entos católicos, entre 1940 (Concordata com a Santa Sé) e 1975. 689 E, por isso, a ilegitimidade de quaisquer políticas públicas de planeam ento da natalidade. 690O que explica a contínua luta da Igreja pelo reconhecim ento do direito ao ensino particular; mas tam bém , a sua reacção contra as organizações de juventude de conteúdo ideológico totalitário ou dirigista (com o as organi­ zações de juventude nazis ou fascistas, condenadas por Pio XI, em 1931 (Non abbiarno bisogno) e 1937 (M it brcnncnder Sorgc); em Portugal, a Igreja não viu com bons olhos a criação da M ocidade Portuguesa, em 1936. 6,1 D urante o pontificado de Pio IX. Mas foi muito menos nítida a oposição prática da Igreja aos regimes totalitários (fascismo, nazism o) e autoritários conservadores (nomeadamente, franquismo e salazarismo), durante o longo pontificado de Pio XII. Alguns deles reclam avam -se abertam ente da pro­ tecção e apoio da Igreja. Era o caso das ditaduras ibéricas e de muitas dita­ duras conservadoras latino-am ericanas. 484 António M anuel Hespanha 8.6.3.1. O jusnaturalism o em Portugal Em Portugal, a doutrina social da Igreja teve uma forte in­ fluência - e, na verdade, mais de sentido integrista do que de sen­ tido democrata-cristão - na ideologia do Estado Novo.692 No pla­ no das limitações do direito, a Constituição de 1933 dispõe que o Estado reconhecia como limites "na ordem interna, a moral e o direito" (art° 4o), embora este preceito nunca tivesse sido muito valorizado, em termos de eficácia normativa, pela doutrina das fontes de direito. E, porventura, no domínio do direito da família que as influências do jusnaturalismo católico foram mais longe. Embora não tendo posto em causa a laicidade do casamento, in­ troduzida pelo Código civil de 1867, nem a existência do divór­ cio para os casamentos civis, tal como resultava das leis republi­ canas da família (cf. supra, 174), a Concordata de 1940 impôs o regime canónico (de casamento indissolúvel) a todos os casamen­ tos celebrados canonicamente. Chi seja, depois da completa des­ vinculação em relação à Igreja, operada pelas leis republicanas da família, e da separação entre a Igreja e o Estado, a ordem jurídica portuguesa voltou a prescindir da sua autonomia, entregando a um ordenamento jurídico externo a regulação de importantes domínios da vida social e introduzindo uma distinção entre os cidadãos baseada nas sua crenças (o que contrariava a constitui­ ção laica do Estado e o conceito de liberdade religiosa). Na doutrina jurídica, a inspiração do jusnaturalismo católi­ co marca a obra de alguns juristas destacados, como Guilherme Braga da Cruz693e Manuel Gomes da Silva,694 mas também Marcello Caetano, Cabral de Moncada e José de Oliveira Ascensão. Em todo o caso, ela não desempenhou um papel relevante na su­ peração do positivismo legal do Estado Novo. De facto, uma vez que a hierarquia da Igreja apoiava o Estado Novo e que a maior 692 V., sobre o tem a, Cruz, 1992. 693 Cf. Direitos da família, da Igreja e do Estado, s.l., s.d. 694 Esboço de uma concepção personalista do direito, 1964. Cultura Jurídica Europeia 485 parte dos juristas católicos se situava também na sua área ideoló­ gica, a invocação do direito natural foi mais utilizada para legiti­ mar o direito do regime, como "expressão da tradição cristã" e da doutrina social da Igreja,695 do que para o pôr em causa. Muito mais influente e eficaz no sentido da correcção dos excessos do legalismo foi, a partir dos finais dos anos '60, o antilegalismo proposto, em nome da Justiça como valor regulativo supra-positivo, por António Castanheira Neves, que tem forma­ do, do ponto metodológico, gerações de juristas.696 Já depois da revolução de 1974, o jusnaturalism o teve uma voga algo inesperada. Perante as inovações, quer do pe­ ríodo pré-constitucional, quer da Constituição de 1976, for­ mou-se uma corrente doutrinal que defendia que os critérios do legislador não constituíam os únicos, nem porventura os decisivos, padrões de decisão jurídica. Por outras palavras, nem o Estado, nem a Revolução, eram donos da Justiça. Esta pairava como uma ideia ou princípio regulador, de contor­ nos algo indefinidos, mas portadora de exigências norm ati­ vas concretas, que os juristas, como seus sacerdotes, deveri­ am explicitar nos casos concretos. Essas exigências eram, des­ de logo, as postas pela dignidade da pessoa humana, tal como era concebida na área cultural a que Portugal pertencia, a Europa ocidental; mas tam bém a dignidade e independência (em relação ao Estado e à sociedade) dos tribunais, a não re­ troactividade das leis, a garantia de um processo justo, etc.697 Este jusnaturalism o (em que comungavam alguns que eram 695 M oncada, 1966. 696O ensino de C astanheira Neves dirigiu-se, inicialmente, contra o legalismo dom inante nos anos '6 0 e '70 (Questão de facto e questão de direito, Coimbra, 1976; O papel do jurista no nosso tempo, Coimbra, 1968); mas, depois, também contra a legalidade revolucionária (que considerava ofensiva de componen­ tes do princípio da justiça: autoridade do Estado, competência responsá­ vel, estabilidade, objectividade, igualdade) e mesmo contra a constitucionalidade pós-revolucionária. Cf. Neves, 1976, 34 ss. 697Cf. Neves, 1 9 7 6 ,1 4 , 22 s., 34 s., 220. 486 António Manuel Hespanha legalistas convictos no período do Estado Novo) voltou-se mesmo contra a Constituição de 1976, que - com o seu pro­ jecto socialista - violaria uma "ord em de valores", a do Esta­ do de direito euro-ocidental, considerada como civilizacionalmente adquirida. Alguns autores chegavam mesmo a pensar que, dada a sua carga social-m arxista, a Constituição contra­ riava a natureza pacífica e doce do povo português...698 Foi neste contexto que se difundiu, em Portugal, a ideia de "cons­ tituição m aterial" (não escrita) em face da qual a constituição positiva podia ser inconstitucional.699 8.6.4. O pós-modernismo jurídico A ideia das inevitáveis limitações do direito estadual está também presente nesse estilo cultural do último quartel do sé­ culo XX a que se tem chamado "pós-m odernism o".700 O pós-modernismo representa, em geral, uma reacção con­ tra as tendências generalizadoras e racionalizadoras da "moder­ nidade", ou seja, da época da cultura europeia em que - desde o Ihiminismo até ao cientismo triunfante (no domínio das ciênci­ as duras e no domínio das ciências sociais) da nossa época - se 698 H õrster, 197 7 ,1 2 4 . 699V., sobre o tema, Taylor, 1989, maxime, cap. Ill ("The affirmation of ordina­ ry life"); Canotilho, 1978, 16 ss. Sobre a m esm a ideia, acerca da situação constitucional na República Federal Alem ã, cf supra, 174. 700Sobre o pós-m odernism o em geral, a bibliografia é, hoje, inabarcável. Tex­ to fundador, Lyotard, 1979; panoram a, Jencks, 1992; impacto nas ciências sociais, Rosenau, 1991; crítica, Callinicos, 1990 (de um ponto de vista m ar­ xista); Centore, 1991 (crítica dos fundam entos filosóficos); do ponto de vis­ ta da ética, Bauman, 1993. Em Portugal, v. Ribeiro, 1988; Hassan, 1988 (todo este núm ero da revista se ocupa do pós-m odernism o, tendo outros textos de interesse). Sobre o pós-m odernism o político, v. A. M. H espanha, "O poder, o direito e a justiça num a era de p erplexidades", A dm inistração. Revista da administração pública de M acau, 15(1992) 7-21; Santos, 1994, 69140. Sobre o pós-m odernism o jurídico, v. Canotilho, 1991, 9-23; Santos, 1988a, 1988b, 1989, 2000; Gonçalves, 1988, Douzinas, 1991; Minda, 1995; Litow itz, 1997; Santos, 1995, 2000. Cultura Jurídica Europeia 487 crê, por um lado, que o nível mais adequado para conhecer e organizar é o geral, o global, e que, por outro lado, esse conhe­ cimento e essa organização são progressivos e aditivos, repre­ sentando vitórias sucessivas sobre a irracionalidade e a desor­ dem. Os seus valores centrais são, portanto, a generalidade e a abstracção, a racionalidade, a planificação e a hetero-disciplina, a funcionalidade. A reacção pós-modernista dirige-se contra tudo isto. Ao geral, opõe o particular; ao gigantismo do "gran­ de" opõe a beleza do "pequeno" (small is beautiful); à eficácia da perspectiva macro opõe a subtileza da perspectiva micro; ao sis­ tema opõe o "caso "; à hetero-regulação, a auto-reguíação; ao funcional opõe o lúdico; ao objectivo opõe o subjectivo; à "ver­ dade" opõe a "política" (o "testem unho", o "com prom isso").701 Neste "espírito de época" - que domina a cultura ociden­ tal desde os inícios da década de '80 - confluem muitas influên­ cias, por vezes desencontradas. De Friedrich Nietzsche, sobretudo através de Michel Fou­ cault, o pós-modernismo herda um relativismo radical, em re­ lação à validade, quer do conhecimento, quer dos valores.702 No plano existencial, isto dá origem a uma atitude de espírito que se exprime mais sob a forma da crítica irónica ou de uma super­ ficialidade provocadora do que sob a forma da angústia. Como não há a certeza de nada, mas como - apesar de tudo - se deve continuar a viver, o melhor é brincar com tudo, tratar o impor­ tante como se fosse banal. No plano dos saberes sociais, este relativismo leva à recu­ sa de teorias gerais que tenham a ambição de fundar universal­ mente os valores ou os métodos ("grandes narrativas, meta-narrativas", J. Derrida), bem como à valorização do multiculturalismo, do pluralismo, da heterogeneidade, da conflitualidade de paradigmas e de valores. Mas leva também, tanto a uma leitura política de todos os discursos (não podendo ser verdade, são 701Síntese da agenda pós-m odem ista: Litowitz, 1997, 7-19. 702Sobre Nietzsche e o direito, Valadier, 1998; Litow itz, 1 9 9 7 ,4 2 -6 4 ; sobre Fou ­ cault, Litowitz, 1997, 64-86; H unt, 1994. 488 António M anuel Hespanha instrumentos de manipulação), como à rejeição do vanguardismo, à valorização do lúdico, à reapreciação do quotidiano e do senso comum (popular culture) e a um certo decadentismo. Ainda a M. Foucault (mas também a Clifford Geertz), vaise buscar a ideia, ligada estreitamente ao referido relativismo, de que os paradigmas culturais e epistemológicos têm um ca­ rácter histórico e aleatório, de que não são "regimes de verda­ de" (mas apenas, como dizem os lógicos ou engenheiros do co­ nhecimento, "universos de crença"). Esta ideia de que os saberes, os discursos, constituem sis­ temas aleatórios de sentido, em que não existem relações neces­ sárias entre os significantes e os significados é responsável por aquilo a que se tem chamado a "viragem linguística" (linguistic turn) e que tem caracterizado a cultura pós-moderna, do direito à história. Saberes, sistemas de valores, modelos de comporta­ mento, são encarados como discursos, obedecendo a códigos "locais" que devem ser desmontados para se desvendar o códi­ go que os pre-formam e lhes dá sentido. Ou seja, toda a "cons­ trução" (de verdade, de rigor, de bondade, de justiça, de bele­ za) que, com essas práticas se quis fazer, toda a sua estratégia visando aparecer como sólidas e credíveis, são sujeitas a uma crítica que visa desvendar o arbitrário que está na sua origem. E a esta intenção de crítica, desmitificadora (e desmistificadora) ligada à "viragem linguística" que se tem chamado "desconstrutivismo". Todas as imagens, intuições e conceitos que orien­ tam o quotidiano e os saberes são tratados como figuras do dis­ curso, como topos literários, e sujeitos a um rigoroso escrutínio. Exemplar é toda a crítica que se vem fazendo, desde os traba­ lhos de M. Foucault à noção de "sujeito", i.e., à ideia de que, su­ portando os nossos actos e dando-lhes coerência e continuida­ de, existe um substrato pessoal caracterizado pela unidade, pela racionalidade e pela consciência. Privados de qualquer substrato ontológico e de qualquer referência à verdade, os saberes são devolvidos para a categoria de discursos de tipo literário, de narrativas; regulados, sim, mas por uma gramática objectiva dos próprios textos, embora esta se possa relacionar, de diversas maneiras, com a natureza da produção destes (cf. supra, 3.2.4.). Cultura Jurídica Europeia 489 No estudo das culturas, a viragem linguística teve um pa­ ralelo na insistência no carácter "local" dos valores culturais, ou seja, das representações, crenças, disposições emotivas ou cate­ gorias da sensibilidade. Valores que devem ser identificados a partir de uma interpretação "densa" (thick) ou "profunda" (deep) dos comportamentos (deep interpretation, C. Geertz), de uma es­ pécie de "psicanálise da vida quotidiana" (E. Goffman) das di­ versas culturas. Este ponto de vista retira qualquer necessidade ou universalidade aos valores de uma qualquer cultura, nome­ adamente, aos valores da cultura ocidental; e torna-se, assim, numa crítica a todas aquelas leituras da história que a vêem como um processo de evolução dirigido para o modelo ociden­ tal conhecido como "sociedade moderna" (como, por exemplo, a "teoria da modernização", Modemisierungstheorie). A esta tendência cultural para recusar valores universais e para ligar os valores a contextos culturais ou discursivos "locais", que contem em si mesmos cs seus sistemas de sentido, e que, a partir deles, interpretam as coisas e os comportamentos, cons­ tróem as suas imagens locais, e lhes dão significados e avaliações também locais, correspondeu o desenvolvimento de uma teoria dos sistemas, que realça justamente estes traços de "fechamento" dos sistemas e que se tomou, por isso, num dos suportes teóricos adequados à teorização do pós-modemismo. Trata-se da teoria dos sistemas auto-poiéticos,703 a que nos referiremos mais tarde e que constitui um modelo muito adequado para pensar os novos objectos culturais criados pelo pós-modemismo. Finalm ente, do ponto de vista sociológico,704 tem-se dito que o capitalism o de consumo e o impacto das novas tecno­ logias da com unicação criaram uma cultura m assificada, pe­ riférica ou autónom a em relação a qualquer tipo de dirigis- 703Auto-poiesis é um term o de origem grega que significa auto-criação. Foi in­ troduzido na linguagem sociológica contem porânea pelo construtivismo radical (N . M aturana, F. Varela, N. Luhmann). Sobre a sua aplicação ao di­ reito, v. A m au d , 1993. ™Cf., v.g., Turner, 1991, 5 ss. 490 António M anuel Hespanha mo elitista ou vanguardista, auto-centrada e dotada, para mais, de uma capacidade de influir na própria cultura das elites. Dito de outro modo, a cultura das elites, dependente de sistemas de consumo e de com unicação m assificados (au­ diências, número de espectadores, top ten, número de alunos inscritos num curso), tem que se adaptar às expectativas do público consumidor. Com o que se atinge o paradoxo de os fazedores de opinião (políticos, jornalistas, intelectuais) serem obrigados a assumir os valores do senso comum, tal como eles resultam das sondagens e dos volumes de vendas dos produ­ tos culturais (níveis de audiência televisiva e radiofónica, ní­ veis de venda dos livros [top-ten]. Com isto, a cultura das eli­ tes tende para a assunção dos valores da cultura popular. Muitas vezes, justifica-o com a invocação dos valores da de­ mocracia (populismo), criando no público o sentim ento de que ele é o verdadeiro criador cultural, perante o qual qual­ quer outro perde a legitim idade. O bom, o belo e o verdadei­ ro tem que ser, ao mesmo tempo, fácil, popular, esperado e acessível. Ou, mais radicalm ente, tudo o que é fácil, popular, esperado e acessível é, por isso mesmo, bom, belo e verdadei­ ro.705 Dada esta hegem onia da periferia sobre o centro, do re­ ceptor sobre o criador, a cultura pós-moderna - por um ale­ gado (mais ou menos cínico) respeito democrático ou por uma assunção da criatividade hum aná que se exprime no irreflec­ tido da vida de todos os dias - tende a criticar (ou a problematizar) tudo o que possa ser visto como uma imposição ao quotidiano e ao senso comum: uma m ensagem cultural mais exigente, um efeito estético menos esperado, um projecto de reorganização ou de racionalização social. Um outro efeito desta dependência da cultura das elites em relação a um au- 705É contra este tipo de indiferença cultural a que se dirige a crítica de Z. Baum an em Comrnunity, quando denuncia a nova trahison des clercs, que con­ sistiria na indiferença (ou no quietismo) éticos, na demissão de um papel crítico do senso com um e orientador do diálogo sobre os valores na socie­ dade contem porânea (cf. Baum an, 2001). C ultura ]u rídica Europeia 491 ditório de massas é o cultivo de expedientes emotivos capa­ zes de suscitar a adesão. Com o que a cultura moderna se aproxim a da busca da em otividade excessiva que caracteri­ zou, tam bém, a cultura barroca (e, de certo modo, a cultura rom ântica).706 O utras vezes, porém, o pós-m odernism o apresenta-se como menos conformado e mais crítico em relação ao senso comum, procurando uma via crítica pelo exagero e caricatu­ ra do senso e gosto com uns (kitsch) ou por uma utilização brincalhona dos símbolos da vida e da cultura quotidianas (v.g., em brulhar monumentos [como o faz Cyril Christos] tal com o, no quotidiano, se em brulham as m ercadorias). Pode dizer-se, com alguma razão, que o cepticism o (ou mesmo nii­ lismo) que caracteriza a atitude pós-m oderna não deixa gran­ de espaço para uma atitude crítica perante os valores dom i­ nantes no sentido comum. Este espaço situar-se-ia, em todo o caso, algures entre o descrédito da razão e um desprezo senso-com um , mais ou menos acompanhado pelo sentido do seu poder, actualmente esmagador, e da impotência (mesmo episte m o ló g ic a ) p e ra n te ele. Por outro lado, se o senso com um representa uma adesão ingénua e a-crítica a valores, a atitu­ de pós-m oderna reclama esse direito também para os que re­ flectem e criam (numa palavra, os intelectuais): também eles terão legitim idade para afirmar e querer, sem ter que ju stifi­ car racionalm ente as suas opões. Com a vantagem ética e po­ lítica de que, assumindo as suas opções como isso mesmo meras opções - não caem no dogmatismo típico de alguns dos neo-racionalism os contem porâneos, mesmo os mais liberais. E por isso que - por muito que isto irrite os seus opositores o pós-m odernism o nem sempre é sinónimo de niilismo, cons­ tituindo, em alguns autores, o fundam ento de uma ética (v.g., Bauman, 1993) ou de uma política (v.g., Santos, 2000) (cf., ain­ da, 3.3. "). 706T u m er, 1991, 5-8. 492 António Manuel H espanha No domínio do direito, esta sensibilidade desdobra-se em diversas perspectivas, todas elas convergentes no sentido de des­ valorizar o direito - geral, abstracto, heterónomo, planificador 707 - do Estado. Salientaremos alguns destas perspectivas.708 8 .6.4.1. Direito do quotidiano Característico desta constelação estilhaçada de sistemas jurídicos autónomos seria o direito do quotidiano.709 A vida quo­ tidiana constitui, de facto, um mundo de múltiplos níveis e formas de organização; de uma organização ao mesmo tempo irreflectida (espontânea) e dada como assente (takenfor granted). Para as concepções jurídicas tradicionais, cabia ao direito regu­ lamentar (racionalizar) este mundo dos factos (brutos). É certo que já tinha havido propostas de uma certa valorização jurídica desta dimensão "factual" da vida, nomeadamente pelas corren­ tes da metodologia jurídica que insistiam em que os factos eram, em si mesmos, portadores de valores embebidos que não podi­ am ser ignorados pelo direito (v.g., ideia de "natureza das coi­ sas"; cf., supra, 8.6.2. ). Mas, agora, os pontos de vista são mais radicais. A vida quotidiana (everyday life) constitui o mais autên­ tico (justamente porque espontâneo, não mediado por projectos culturais heterónomos, enraizado nas condições concretas da existência) e mais real e efectivo dos mundos humanos. As nor­ mas que aí se produzem e enformam (melhor do que dirigem) os comportamentos constituem, por isso, o mais autêntico e efec­ tivo direito, justamente porque é a-problemático (taken fo r gran­ ted), irreflectido e perfeitamente adequado às situações.710 707Em vários sentidos: no de que aplana (tom a plana, norm alizada) a realida­ de; e tam bém no de que a planifica (i.e., lhe im põe fins, em nom e de um a evolução racional). 708Para um útil p anoram a, com referência, sobretudo, à literatura am ericana, Schepelle, 1994. 709Cf. Sarat, 1993. 710Cf. Sarat, 1993, 2 ss. (conceito de quotidiano). Cultura Jurídica Europeia 493 Austen Sarat sintetiza muito expressivamente este novo modelo de transacções entre o direito e o quotidiano: "Visto des­ te modo, o quotidiano é um domínio de acção tanto como de acon­ tecimentos, tanto de produção como de consumo. Uma vez que ele é o palco de acção e de produção, podemo-nos voltar para o quotidiano para ver de que modo o direito é aí restabelecido e refeito, muito fora dos seus claramente reconhecidos e marcados locais oficiais de elaboração. O direito procura colonizar o quoti­ diano e dar-lhe substância, capturá-lo e mantê-lo sob o seu do­ mínio, amarrar-se a si mesmo à solidez do quotidiano e, ao fazêlo, solidificá-lo ainda mais. Mas, uma vez que o quotidiano é uma força em movimento e um choque de forças que nunca se reve­ lam totalmente, o direito nunca o pode capturar ou organizar com­ pletamente. O direito, muito simplesmente, não acontece ao quo­ tidiano; ele é produzido e reproduzido nos encontros do quotidi­ ano.711 Como afirma Michel de Certeau, os cidadãos-consumidores fazem "dos rituais, representações e leis que lhes são impos­ tas algo de muito diferente do que os seus autores tinham em m ente"" ("Editorial introduction", Law in everyday life, 7 s.). Assim, o mundo do quotidiano é: (i) Um mundo de produção de normas. Umas, completa­ mente autónomas, surgidas dos mecanismos da vida de todos os dias (normas de comportamento familiar, nos grupos de amigos, no quotidiano profissional, nas rela­ ções entre os sexos, etc.). Outras, partindo de normas de direito oficial, mas transformando-as, adaptando-as, re­ agindo contra elas.712 (ii) Um mundo não coerente de normas. Já que as práticas humanas se organizam numa infinidade de cenários - a família, a profissão, o lazer, as relações formais, as relações 711Cita Yngevsson, quando este afirma "o espírito do direito, embora corpori­ zando as preocupações de um a elite profissional poderosa e dominante, não é simplesmente inventado neste topo, mas transform ado, desfiado e rein­ ventado em práticas locais". 712Referimo-nos aqui às múltiplas refracções que o direito oficial sofre na prá­ tica. 494 António Manuel Hespanha informais - cada qual gerando padrões de comportamen­ to autónomos e não transferíveis nem generalizáveis, cu­ jas aceitação e adequação ao contexto são apenas "locais", (iii) Um mundo de normas "não intencionais". Na vida quo tidiana, de facto, o peso da rotina e do senso comum faz com que as pessoas se demitam da reflexão sobre as situações assim como de projectos bem claros de acção. Esta é sobre­ tudo produto de automatismos. Mas a própria rotina e senso comuns que encaminham a acção também não são estru­ turas reflectidas ou funcionais. Estão aí e são aceites como tal. As suas normas assemelham-se a regras aleatórias de jogo, a rituais, a acasos, a algo que funciona por e para si mesmo, como que cego a racionalidades e a finalidades. Para além disso, neste nosso mundo contemporâneo de infor­ mação super-abundante, também os mass media constituem "reali­ dade". Através, nomeadamente, do cinema e da televisão, criamse imagens ou representações da "realidade" que se transformam, para os espectadores-consumidores na própria realidade. O mun­ do e a vida são substituídos pelas imagens do mundo e da vida cri­ adas pelos media. Com um impacto até agora desconhecido, pois as novas imagens em movimento podem ser repetidas e exporta­ das sem limites de tempo e de espaço. As suas potencialidades de modelar a percepção e o imaginário foram imensamente reforça­ das, em relação ao que acontecia quando a comunicação era ape­ nas escrita, ou mesmo, apenas impressa. Para mais, como refere Richard Sherwin,713 "A proliferação de imagens visuais [...] na so­ ciedade contemporânea foi acompanhada por uma mudança cog­ nitiva importante. O estilo linear de pensar (ou fluência interpretativa) característica da cultura baseada na imprensa compete agora com o que pode ser denominado de estilo cognitivo "associativo", um estilo característico da nossa sociedade actual, saturada de ima­ gens. Como escreve Richard Lanham, estamos mais habituados a vaguear na superfície dos écrans. Olhamos para os sinais e para os símbolos que fluem mais do que através das palavras impressas para 713 Sherwin, 2000 Cultura ]ur\d\ca Europeia 495 os sentidos que elas possam oferecer [ .. Ou, como gostam de di­ zer certos pós-modemistas, se o lá existe algum sentido, ele está todo na superfície: aparecendo e desaparecendo, sendo criado e recria­ do pelo produtores de imagens e pelos espectadores à medida que vamos podendo controlar o fluir das imagens que vemos e a or­ dem pela qual as vimos."714 Esta tendência é-nos familiar. Todas as noites - zapping pelos canais da TV ou seguindo o estilo hiperquinético e fragmentário doe mais recentes estilos de narração fílmica (v.g., nos filmes do Oliver Stone, como JFK, 1991, The Doors, 1991, ou Natural Bom Killers, 1994; ou no filme de Wong Kar Wai, Chumking Esxpress, 1994), em que os cortes rápidos substituíram a composição de sequências longas e explicadas usadas por realiza­ dores mais tradicionais, como John Ford ou Otto Preminger 715 -, habituamo-nos a uma visão do mundo caracterizada por (i) uma percepção fragmentada e pluralista da realidade (ii) uma recusa de normas fixas de (iii) uma necessidade de "compreensão" (um pro­ cessamento mental) instantânea, (não reflectida, "superficial") das imagens (iv) um pensamento "associativo", que corresponda à na­ tureza multilateral, paralela da informação que nos é fornecida. Tudo isto criando uma "consciência mais aguda da contingência, do acaso, da incerteza, da multiplicidade (da verdade e da razão, bem como de nós próprios e da chamada realidade social" (Sherwin, 2000, 235) e reprimindo o pensamento dicotômico que caracterizou o Duminismo (e o direito). Podemos seguramente fa­ lar de uma "queda do Império" - como uma narrativa única e ofi­ cial feita de Verdade e de Direito.716 No livro que vimos citando, Richard Sherwin estuda o impac­ to desta civilização dos media, designadamente, da TV e do cinema sobe o direito. Segundo ele, à actual "popularização do direito" corresponde uma adaptação, não apenas das normas, mas também do próprio estilo judicial de formação da convicção, ao estilo de 714Sherwin, 2000, 6. n5 Id, ibid., 19. 716Cf. A rthur Austin, The Empire Strikes Back. Outsiders and the struggle over le­ gal education, New York, NYU Press, 1998 496 António Manuel Hespanha narrativa que domina os filmes e as séries televisivas, nomeadamen­ te aquelas que se ocupam do mundo jurídico e judicial ou que o têm como ambiente. Jurados e júris tendem a compreender o caso jurídico de acordo com clichés e estereótipos aprendidos na cultu­ ra televisiva e fílmica mais popular. E, por isso, os próprios opera­ dores jurídicos - advogados, promotores de justiça, juizes - tendem a expor os seus casos utilizando esses mesmos modelos.717 8 .6 .4 .2 . O direito com o universo simbólico Para as correntes do pós-modernismo é, como se disse, muito forte a consciência de que a produção dos resultados dos saberes (e, também a do saber jurídico) não é facilmente impu­ tável, apenas, à reflexão ou às intenções dos seus cultores. Cada saber é o produto de uma prática específica (ou "local") da qual fazem parte preconceitos, tradições intelectuais, redes de comu­ nicação, finalidades práticas, micro-conflitos simbólicos ou sócio-profissionais. Tudo isto lhe é específico e condiciona os seus resultados. E inútil, portanto, ver por detrás dos conceitos, teo­ rias e propostas de acção formulados por um saber uma qual­ quer racionalidade superior; como é inútil acreditar demasiado na eficácia externa (i.e., sobre a realidade) das suas propostas. 7,7Sherwin não crê que esta dissolução do direito na super-abundâncis de sen­ tido desta hiper-realidade frenética de um a hiper-realidade criada pelos me­ dia (com a consequente indiferença axiológica) benéfica em si m esm a. Mas crê, um pouco na linha, antes apontada de Z. B aum an (cf., supra, 3.3. "U m a nota sobre "relativism o m etodológico" e "relativism o m oral" e sobre o pa­ pel dos juristas, neste contexto.) que ela pode favorecer uma tentativa de construir valores com uns sobre o sentido da diferença de valores presen­ tes na com unidade, justam ente confrontando os valores acríticos com os sentidos "reflectidos" da tradição jurídica (quer no plano dos conteúdos precedentes, princípios e tópicos; quer no plano processual - técnicas de raciocínio e de avaliação da prova). C om o escreveu Derrida: "ler de outro modo ... significa sem pre passar pela disciplina clássica e nunca abandoná-la ou banalizá-la" (Derrida, 1998). Neste sentido, o direito actuaria como um rem édio contra a insegurança e o cepticism o e poderia, tam bém pelo seu im pacto mediático, prestigiar form as não arbitrárias (raciocinadas, ra­ zoáveis, previsíveis) de resolução de conflitos. Cultura Jurídica Europeia 497 Tudo isto se reflecte na tendência para destacar, ao anali­ sar o saber jurídico, as suas dimensões não reflectidas e não fun­ cionais. Os resultados da dogmática jurídica nem são fruto de uma razão jurídica universal, nem têm um grande impacto di­ recto sobre a vida. Esta perspectiva tem algumas conseqüências importantes. Por um lado, o destaque dado aos aspectos meramente sim­ bólicos ou não regulativos do direito. Ou seja, de que muitas nor­ mas ou conceitos jurídicos não têm qualquer eficácia regulativa, do ponto de vista da disciplina directa das relações sociais.718 Mas, em contrapartida, desempenham um importante papel simbólico, constituindo puras afirmações de valores ou instru­ mentos de modelação do imaginário social. Por vezes, este fun­ cionamento simbólico do direito é consciente e procurado; ou­ tras vezes, já não o é, tendo mesmo efeitos contrários àqueles para que o seu conteúdo normativo apontava. Assim, as normas que, para a protecção de grupos marginalizados, lhes garantem certos privilégios (v.g., a garantia de certas quotas de mulheres, de negros ou de deficientes, nos empregos) contribuem para disseminar a ideia da inferioridade de tais grupos.719 Por outro lado, aplica-se ao direito a análise que já antes vimos aplicada ao quotidiano. O direito letrado (no saber jurí­ dico dos juristas profissionais) é, também ele, "quotidiano"; i.e., também ele auto-produzido, enraizado na prática, conflitual e aleatório. O que remete para um conceito de saber jurídico em que, na produção de resultados dogmáticos ou de propostas de política do direito, os "motivos nobres" (fins em vista, coerências teóricas, construções dogmáticas) correntemente afirmados pelos juristas jogam menos do que os acasos, as rotinas doutri­ nais, as lutas simbólicas internas ao grupo. Esta visão do saber jurídico não pode deixar de pôr em causa a missão racionaliza718 V.g., a m aior parte das leis que proíbem o aborto, a mendicidade, a prosti­ tuição; ou as que reconhecem um direito à habitação, à saúde, etc. Num caso, com o no