Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milênio

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CULTURA JURÍDICA
EUROPEIA
Síntese de um milénio
António Manuel Hespanha
A cultura jurídica européia é apre­
sentada pelo autor a partir de uma
aprofundada e estimulante reflexão
sobre qual deva ser o objeto de uma
história do direito e das instituições
políticas que, ao mesmo tempo, se in­
tegre numa formação jurídica aberta
aos ambientes do direito e, também
por isso, permita aos historiadores
não juristas entender melhor os im­
pactos sociais do direito.
ANTÓNIO MANUEL HESPANHA,
Professor Catedrático de História do
Direito na Universidade Nova de
Lisboa, foi Presidente da Comissão
para a Comemoração dos Descobri­
mentos Portugueses, docente em vá­
rias Faculdades portuguesas, de
Direito, História e Ciências Sociais, e
docente convidado nas Universi­
dades de Totilpuse, Madri, Messina,
Macau, Yale e Pablo O lavid e' de
Sevilha, e na École des Hautes Études en
Sciences Sociales, em Paris. Fundou e
dirigiu a revista Penélope. Fazer e des­
fazer a história e a revista Themis, da
"Creio que o verdadeiro trabalho político, numa sociedade
como a nossa, é o de criticar o funcionamento de
instituições que parecem neutrais e independentes:
criticá-las de modo que a violência política que sempre se
exerceu, obscuramente, por meio delas seja desmascarada
e possa ser combatida."
Michel Foucault
Human nature: justice versus power
(debate with Noam Chomsky)
Ín d ic e
Prefácio / 1 7
1. A história do direito na formação dos ju rista s/21
1.1. A história do direito como discurso legitimador/ 22
1.2. A história critica do direito/33
1.2.1. A percepção dos poderes "periféricos" / 35
1.2.2. O direito como um produto social/ 38
1.2.3. Contra a teleologia/41
2. A importância da história
jurídico-institucional como discurso histórico/4 5
3. Linhas de força de uma nova
história política e institucional / 49
3.1. O objecto da história político-institucional.
A pré-compreensão do "político" / 49
3.1.1. A crise política do estadualismo/ 49
3.1.2. A pré-comprensão pós-moderna do poder/52
3.1.3. Contra uma história
político-institucional actualizante / 54
3.1.3.1. A política implícita da ideia
de "continuidade" (Kontinuitàtsdenken) / 54
3.1.3.2. A crítica do atemporalismo/ 56
3.1.4. A descoberta do pluralismo político/62
3.2. Uma leitura densa das fontes/ 69
3.2.1. Respeitar a lógica das fontes/ 70
3.2.2. A literatura ético-jurídica, como fonte
de uma antropologia política
da Época pré-Contemporânea / 75
3.2.3. "Cálculos pragmáticos" conflituais
e apropriações sociais dos discursos / 82
3.2.4. Texto e contexto. Modelos políticos
e condicionalismos práticos.
A sociologia histórica das formas políticas/85
3.2.5. Interpretação densa dos discursos,
história dos dogmas e história das ideias / 88
3.3. Uma nota sobre "relativismo metodológico"
e "relativismo moral" e sobre o papel dos
juristas, neste contexto/89
4. O imaginário da sociedade e do p o d e r/99
4.1. Imaginários políticos/ 99
4.2. A concepção corporativa da sociedade/101
4.2.1. Ordem e criação/101
4.2.2. Ordem oculta, ordem aparente/104
4.2.3. Ordem e vontade/105
4.2.4. Ordem e desigualdade /108
4.2.5. Ordem e "estados" /111
4.2.6. Ordem e pluralismo político/ 114
4.3. A dissolução do corporativismo
e o advento do paradigma individualista/116
5. A formação do "direito comum" /121
5.1. Factores de unificação dos direitos europeus/123
5.1.1. A tradição romanistica /123
5.1.1.1. Direito romano clássico,
direito bizantino e direito romano vulgar /123
5.1.1.1.1. Súmula das épocas
históricas do direito romano /127
5.1.1.1.2. Sistematização e método
de citação do Corpus luris Civilis/ 129
5.1.1.1.3. Sistematização e método
de citação do Corpus luris Canonicis /131
5.1.1.1.4. Os estudos romanísticos no
quadro da formação dos juristas /132
5.1.1.1.5. Súmula cronológica da
evolução do direito romano/139
5.1.1.2. O direito romano na história
do direito português/140
5.1.1.3. A recepção do direito romano/141
5.1.1.4. A influência do direito romano
na própria legislação local /147
5.2. A tradição canonística/148
5.2.1. O lugar do direito canónico
no seio do direito comum/152
5.2.2. O direito canónico como limite
de validade dos direitos temporais /153
5.2.3. O direito canónico na
história do direito português /155
5.2.4. Direito recebido e direito tradicional/158
5.3. Resultado: uma ordem jurídica pluralista /160
5.3.1. Uma constelação de ordens normativas/163
5.3.2. Direito canónico e direito civil/166
5.3.3. Direito comum e direitos dos reinos/166
5.3.4. Direitos dos reinos
e direitos dos corpos inferiores /168
5.3.5. Direito comum e privilégios/171
5.3.6. Direito anterior e direito posterior /172
5.3.7. Normas de conflito de "geometria variável" /173
5.3.8. Uma ordem jurídica flexível / 174
5.3.8.1. Flexibilidade por meio da graça/175
5.3.8.2. Flexibilidade por meio da equidade/179
5.4. Direito do reino em Portugal.
Épocas medieval e moderna /183
5.4.1. Direito visigótico/183
5.4.2. Feudalismo e direito feudal/183
5.4.2.1. Bibliografia/189
5.4.3. O costume/189
5.4.4. A legislação/190
5.4.4.1. Bibliografia/196
5.5. A unificação pela "cientificização".
As escolas da tradição jurídica medieval /197
5.5.1. A Escola dos Glosadores/197
5.5.2. A Escola dos Comentadores/ 209
5.6. O modelo discursivo do direito comum europeu/220
5.6.1. Génese do modelo do
discurso jurídico medieval / 220
5.6.1.1. Factores filosóficos / 222
5.6.1.2. Factores ligados à natureza
do sistema medieval das fontes de direito/ 226
5.6.1.3. Factores institucionais/ 228
5.6.2. A estrutura discursiva/229
5.6.2.1. A oposição do "espírito" à "letra" da lei/230
5.6.2.2. A interpretação lógica/231
5.6.2.3. A utilização da dialéctica aristotélicoescolástica e, especialmente, da tópica / 233
5.6.2.4. Conclusão/242
. A crise do século XVI e as
orientações metodológicas subsequentes/ 245
6.1. Uma nova realidade normativa/ 245
6.2. O desenvolvimento interno
do sistema do saber jurídico / 251
6.3. As escolas jurídicas tardo-medievais e modernas/255
6.3.1. Escola culta, humanista ou
"mos gallicus iura docendi" / 255
6.3.2. Escola do "usus modernus Pandectarum" / 259
6.4. Ius commune e common law/ 262
6.5. A cultura jurídica popular / 270
6.6. A doutrina em Portugal
(épocas medieval e moderna) / 279
6.6.1. Bibliografia/ 286
7. As escolas jurídicas seiscentistas e setecentistas:
jusnaturalismo, jusracionalismo,
individualismo e contratualismo / 289
7.1. Os jusnaturalismos / 289
7.1.1. O jusnaturalismo da escolástica tomista / 289
7.1.1.1. A Escola Ibérica de Direito Natural/291
7.1.2. O jusnaturalismo
racionalista (jusracionalismo) / 293
7.1.3. O jusracionalismo moderno/ 296
7.2. Algumas escolas jusnaturalistas / 297
7.2.1. Os jusnaturalismos individualistas/ 301
7.2.1.1. A teoria dos direitos subjectivos/306
7.2.1.2. Voluntarismo/310
7.2.1.3. Cientificização/ 318
7.2.2. A tradição do jusnaturalismo objectivista/ 320
7.2.3. A ciência de polícia/325
7.2.4. A ideia de codificação/329
7.3. A prática jurídica / 332
7.4. O direito racionalista e as suas repercussões / 336
7.5. O direito racionalista em Portugal/338
7.5.1. Bibliografia / 339
8. O direito na Época Contemporânea / 341
8.1. O contexto político/341
8.2. Entre vontade e razão/ 345
8.2.1. Democracia representativa e legalismo/ 345
8.2.I.I. "Razão jurídica" vs. "razãopopular"/351
8.2.1.2. Tradição/353
8.2.1.3. Direitos individuais / 356
8.2.1.4. Elitismo social/ 362
8.2.1.5. Estadualismo e "direito igual"/365
8.2.1.6. O "método jurídico"/366
8.2.1.7. "Positivismo’conceitual"
e "Estado constitucional"/369
8.2.2. Positivismo e cientismo/ 373
8.3. As escolas clássicas do século XIX/376
8.3.1. A Escola da Exegese. A origem do legalismo/ 376
8.3.2. A Escola Histórica Alemã.
A vertente organicista e tradicionalista / 383
8.3.2.1. A cultura jurídica portuguesa
da primeira metade do séc. XIX/ 388
8.3.3. A Escola Histórica Alemã. A vertente
formalista ou conceitualista. A jurisprudência
dos conceitos (Begriffsjurisprucknz)
ou Pandectística (Pandektemvissenscluift) / 391
8.3.3.1. Os dogmas do conceitualismo/ 399
8.3.3.2. O conceitualismo em Portugal/400
8.4. As escolas anti-conceitualistas e anti-formalistas.
Naturalismo, vitalismo e organicismo / 402
8.4.1. A jurisprudência teleológica/ 405
8.4.2. A Escola do Direito Livre/406
8.4.3. A jurisprudência dos interesses/ 408
8.4.3.1. A jurisprudência
dos interesses em Portugal / 410
8.4.4. O positivismo sociológico
e o institucionalismo / 411
8.4.4.1. Positivismo sociológico
e institucionalismo em Portugal/ 427
8.4.5. A reacção anti-naturalista.
Valores e realidade/432
8.4.6. O apogeu do formalismo.
A Teoria pura do direito / 435
8.4.6.1. A reacção
anti-sociologista em Portugal/437
8.5. As escolas críticas / 442
8.5.1. O sociologismo marxista
clássico no domínio do direito / 443
8.5.2. O marxismo ocidental dos anos sessenta/449
8.5.3. A "crítica do direito"/451
8.5.4. O "uso alternativo do direito"/453
8.5.4.1. As correntes críticas em Portugal/462
8.6. As escolas anti-legalistas / 466
8.6.1. Sentidos gerais do
anti-legalismo contemporâneo / 467
8.6.2. Em busca de uma "justiça material" / 469
8.6.3. Os jusnaturalismos cristãos / 479
8.6.3.1. O jusnaturalismo em Portugal/484
8.6.4. O pós-modernismo jurídico / 486
8.6.4.1. Direito do quotidiano/492
8.6.4.2. O direito como universo simbólico/496
8.6.4.3. Um direito flexível/499
8.6.4.4. O pluralismo jurídico/ 502
8.6.4.5. Construtivismo auto-referencial/507
9. Bibliografia/513
P r e f á c io
O texto que agora lhes apresento tem sido utilizado, em
sucessivas versões provisórias, nos meus cursos de História do
Direito e, nessas mesmas versões, tem circulado entre pessoas
próximas. Depois destes vários anos de curso provisório, em que
foi crescendo e sendo posto à prova, parece que passou os tes­
tes mínimos e que pode ser editado.
Decidir editar mais um manual de história do direito care­
ce de uma boa razão. Creio que posso apresentar algumas para
justificar a edição deste.
É, em primeiro lugar, um texto que me parece inverter a
tendência comum de privilegiar, na história do direito, as épo­
cas mais recuadas, com sacrifício das mais recentes. Neste tex­
to, pelo contrário, os séculos XIX e XX ocupam quase metade do
texto. Podendo, por outro lado, dizer-se que os últimos capítu­
los tratam exclusivamente do presente, para não dizer que tra­
tam do futuro.
Isto porque, tendo eu muito gosto e muito respeito pela
história - minha profissão e minha devoção - neste livro estou
menos interessado em invocar antiqualhas do que em desper­
tar os leitores para uma reflexão sobre o direito de hoje e sobre
os seus problemas. Neste sentido, como explico na introdução,
este livro é, à sua maneira, mais uma obra de propedêutica jurí­
dica do que um simples manual de história. E, se não me enga­
no, é esta uma segunda boa razão para o editar.
Finalmente, o texto está concebido como uma introdução
histórica ao direito da Europa. Na verdade, de uma certa Europa.
Por um lado, está dele excluída a Europa de Leste, subsidiária
de uma comum matriz romanista, mas marcada por uma cisão,
ao mesmo tempo linguística, política e religiosa, que lhe confe­
riu um perfil histórico absolutamente distinto do Ocidente. De­
pois, o mundo anglo-saxónico ainda mal é tocado, embora, na
18
António Manuel Hespanha
descrição dos fundamentos políticos do direito contemporâneo,
o legado inglês (e norte-americano) seja necessariamente referi­
do. Por fim, o mundo do Sul da Europa (incluindo a Ibéria, a Itá­
lia e, parcialmente, a França) ganha, na economia desta exposi­
ção, um relevo muito pronunciado; n ão se esquecendo, todavia,
o peso importantíssimo que tem tido, nas suas configurações
jurídicas mais recentes, o contributo da doutrina alemã do di­
reito e do Estado.
A opção por uma descrição "europeia" - e não "nacional"
- da história do direito não se deveu, por certo, a preocupações
editoriais de rentabilizar o investimento, nem, tão pouco, ao
modismo europeísta. Pelo contrário, tem a ver mesmo com o
objecto de estudo. Como se verá, em quase toda a sua história,
o direito desta Europa foi um direito comum, em que alguns esti­
los e especificidades locais apenas se destacavam sobre um es­
magador fundo de características partilhadas. Encerrar a histó­
ria do direito da Europa nas fronteiras dos Estados é, por isso,
um artificialismo e uma fonte de apreciações erradas.
Alguns colegas e amigos leram este livro e trabalharam com
ele. A sua actual versão pôde beneficiar muito das suas suges­
tões. Entre eles estão, naturalmente, os colegas que, há vários
anos, colaboram nos meus cursos: a Ana Cristina Nogueira da
Silva, o Luís Nuno Rodrigues, a Maria Carla Araújo, a Maria
Catarina Madeira Santos, a Joana Estorninho. Mais recentemen­
te, o Zhang Yong Chun, que também ajudou na preparação da
versão chinesa deste texto. Em Espanha, os Professores Carlos
Petit (Huelva) e António Serrano González (Barcelona) testaramno com os seus alunos e deram-me sugestões importantes, ten­
do este último preparado, com todo o saber e paciência que tem,
a edição castelhana. E, em Itália, o mesmo fizeram vários cole­
gas, dos quais destaco, pelo labor de revisão da tradução italia­
na, o Prof. Aldo Mazzacane. Fico-lhes muito grato por isso. Agra­
deço também ao Francisco Lyon de Castro a afectuosa insistên­
cia na edição deste livro.
Finalmente, aos meus futuros leitores - temo que quase to­
dos meus futuros alunos - peço que não responsabilizem esta mão
cheia de bons amigos pelos enfados que o livro vos puder trazer.
Cultura Jurídica Europeia
19
As necessidades de adaptação provocadas pela preparação
das edições chinesa, italiana e espanhola deste livro, levaram a
empreender revisões do seu texto, de resto também sugeridas
pela experiência de quase cinco anos de uso académico.
Nesta segunda edição portuguesa, foram inseridas, no fim
de cada grande secção, referências mais directas à história jurí­
dica portuguesa, dispensáveis em edições internacionais.
Algumas secções foram revistas e actualizadas, nomeada­
mente no plano bibliográfico. Outras foram introduzidas de
novo, mesmo em relação às recentíssimas edição espanhola e 3a
ed. italiana. Sempre que possível, as formulações foram clarifi­
cadas. Alguns capítulos foram amigamente lidos por colegas, a
quem agradeço a colaboração, e a quem se devem muitos aper­
feiçoamentos.
Dedico esta edição do livro ao Prof. Nuno Espinosa Gomes
da Silva, um dos mais sábios historiadores do direito que Por­
tugal tem tido. Como não partilhamos exactamente dos mesmos
gostos historiográficos'nem escrevemos, no nosso mister, coisas
muito aparentadas, logo se vê que estas linhas que escrevo para
ele se explicam por coisas - relativas à maneira serena, discreta
e elegante de ser e de viver a vida académica - muito mais pro­
fundas e decisivas do que as meras maneiras e modas de escre­
ver a história.
Lisboa, Janeiro de 2003.
1. A
HISTÓRIA DO DIREITO NA FORMAÇÃO DOS JURISTAS
Muito se tem escrito sobre a importância da história do di­
reito na formação dos juristas. Que ela serve para a interpreta­
ção do direito actual; que permite a identificação de valores ju­
rídicos que duram no tempo (ou, talvez mesmo, valores jurídi­
cos de sempre, naturais); que desenvolve a sensibilidade jurídi­
ca; que alarga os horizontes culturais dos juristas. Para além dis­
so, a vida de todos os dias ensina-nos que os exemplos históri­
cos dão um certo brilho à argumentação dos juristas e, nesse sen­
tido, podem aumentar o seu poder de persuasão, nomeadamente
perante uma audiência forense...
Frequentemente, toda esta discussão acerca do interesse
pedagógico da história jurídica limita-se à simples afirmação de
que ela é, para os futuros juristas, uma disciplina formativa. Mas
raramente se diz exactamente porquê.
A opinião adopta:da neste curso é a de que a história do
direito é, de facto, um saber formativo; mas de uma maneira que
é diferente daquela em que o são a maioria das disciplinas dog­
máticas que constituem os cursos jurídicos.
Enquanto que as últimas visam criar certezas acerca do di­
reito vigente, a missão da história do direito é antes a de problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas,
ou seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessá­
rio, o definitivo. A história do direito realiza esta missão subli­
nhando que o direito existe sempre "em sociedade" (situado,
localizado) e que, seja qual for o modelo usado para descrever
as suas relações com os contextos sociais (simbólicos, políticos,
económicos, etc.), as soluções jurídicas são sempre contingen­
tes em relação a um dado envolvimento (ou ambiente). São, nes­
te sentido, sempre locais.
Esta função crítica pode ser seguramente assumida por ou­
tras disciplinas, no âmbito da formação dos juristas. A sociolo-
22
António Manuel Hespar
gia ou a antropologia jurídica ou certa teoria do direito (mesmo
a semiótica ou a informática jurídicas) podem, seguramente,
desempenhá-la. No entanto, o conservadorismo da maior parte
das Faculdades de Direito oferece uma resistência muito
sensível - que também pode ser explicada sociologicamente (cf.
Bour-dieu, 1986) - à inclusão destas disciplinas, uma vez que
elas poriam em risco essa natureza implicitamente apologética
que os estudos jurídicos ainda têm. Além de que - no dizer dos
juristas mais convencionais - dissolveriam o estudo das
normas, de que o jurista se deveria exclusivamente ocupar, no
estudo de factos sociais, que constitui o tecido dos saberes
sociais empíricos, como a sociologia e a antropologia. Uma vez
que a ideia de rigorosa separação (Trennungsdenken) entre os
factos (Sein) e as normas (Sollen), provinda da teoria jurídica
do século passado (cf. 8.3.3.1), continua a formar o núcleo da
ideologia espontânea dos juristas (Bourdieu, 1986), esta
intromissão de conhecimento social empírico no mundo dos
valores
jurídicos
é
ainda
largamente
inaceitável.
Por tudo isto é que, de um ponto de vista táctico, a história do
direito, que constitui uma disciplina tradicional nos currículos
jurídicos, pode preencher - talvez com algumas vantagens
adicionais - o papel que aquelas disciplinas indesejadas iriam
desempenhar.
Naturalmente que, para desempenar este papel, a história do
direito não pode ser feita de qualquer maneira. Pois, sem que se
afine adequadamente a sua metodologia, a história jurídica
pode sustentar - e tem sustentado - diferentes discursos sobre o
direito.
í.i.
A
história
do
direito
como
discurso
legitimador
Realmente, a história do direito pode desempenhar um papel
oposto àquele que se descreveu, ou seja, pode contribuir para
legitimar
o
direito
estabelecido.
O direito, em si mesmo, é já um sistema de legitimação, i.e., um
sistema que fomenta a obediência daqueles cuja liberdade
Cultura Jurídica Europeia
23
vai ser limitada pelas normas. Na verdade, o direito faz parte
de um vasto leque de mecanismos votados a construir o consen­
so acerca da disciplina so cial.
Porém, o próprio direito necessita de ser legitimado, ou seja,
necessita de que se construa um consenso social sobre o funda­
mento da sua obrigatoriedade, sobre a necessidade de se lhe
obedecer. Como se sabe desde Max Weber (1864-1920), a legiti­
mação dos poderes políticos - ou seja, a resposta à pergunta
"porque é que o poder é legítimo ?" - pode ser obtida a partir
de vários complexos de crenças ("estruturas de legitimação"),
organizadas em torno de valores como a tradição, o carisma, a
racionalização (Weber, 1956) - ou seja, "porque está estabeleci­
do há muito", "porque é inspirado por Deus", "porque é racio­
nal ou eficiente". No âmbito do mundo jurídico, alguns destes
processos de legitimação - nomeadamente, a legitimação "tra­
dicional" - dependem muito de argumentos de carácter histó­
rico 1.
A história do direito desempenhou este papel legitimador
durante um longo período da história jurídica europeia, como
se poderá ver neste livro. No Antigo Regime, prevalecia uma
matriz cultural tradicionalista, segundo a qual "o que era anti­
go era bom". Neste contexto, o direito justo era identificado com
o direito estabelecido e longamente praticado - como o eram os
costumes estabelecidos ("prescritos"), a opinião comummente
aceite pelos especialistas (opinio communis doctorum, opinião co­
mum dos doutores), as práticas judiciais rotinadas (styli ciiriae,
"estilos do tribunal"), o direito recebido (usu receptum, usu firmatum), os direitos adquiridos ("iura radicata”, enraizados), o
conteúdo habitual dos contratos (natura contractus). Então, a his­
tória do direito (o "argumento histórico") desempenhava um
papel decisivo de legitimação das soluções jurídicas, pois era por
meio da história que essa durabilidade das normas podia ser
1Outros sistemas de legitimação da ordem são: a religião (o que Deus [os deu­
ses] quis), a tradição (os "bons velhos tem pos"), a natureza (o que tem que
ser), a rotina (o que sem pre se faz), o contrato (a "p alavra dada").
24
António Manuel Hespanha
comprovada. Mas permitia ainda a identificação das normas tra­
dicionais e, logo, legítimas, pois era a história que permitia de­
terminar a sua antiguidade. O mesmo se diga em relação aos
direitos que se deviam considerar como adquiridos, qualidade
que só o tempo - e, logo, a história - podia certificar. Os primei­
ros estudos de história do direito - como os de Hermann Conring, De origine iuris gennanici [sobre a origem do direito alemão],
1643 (v., adiante, 6.3.2.) (cf. Fasold, 1987) - tinham claramente
como objectivo resolver questões dogmáticas, como a de deter­
minar se certas normas jurídicas tinham tido aplicação anterior
e, logo, se estavam vigentes no presente, a de interpretar o seu
conteúdo, a de estabelecer hierarquias entre elas, a de determi-.
nar a existência de certos direitos particulares, etc..
Um uso da história deste tipo foi corrente até ao séc. XIX.
Mesmo hoje, podemos encontrar propostas semelhantes sobre
o interesse da história jurídica. Nomeadamente, quando se diz
que ela pode ajudar a definir o conteúdo da constituição - como
pretendeu uma boa parte do constitucionalismo dos inícios do
sec. XIX2 a identidade (ou o "espírito") jurídica ou política de
uma nação.
O núcleo da filosofia jurídica da Escola Histórica Alemã,
no início do século XIX (cf. 8.3.2.), era precisamente constituído
por esta ideia de que o direito surge do próprio espírito da Na­
ção (Volksgeist), depositado nas suas tradições culturais e jurí­
dicas. Por isso, a história jurídica devia desempenhar um papel
dogmático fundamental, tanto ao revelar o direito tradicional,
como ao proteger o direito contemporâneo contra as inovações
(nomeadamente, legislativas) arbitrárias ("anti-naturais", "antinacionais"). Nos anos '30 e '40 deste século, estes tópicos volta­
ram a ser recuperados pelo pensamento jurídico conservador,
ao reagir contra os princípios liberais em nome de valores naci­
onais imorredoiros ou de conceitos também nacionais de justi­
ça e de bem estar (cf. infra, 8.6.1.).
2 Por exemplo, em Portugal, os primeiros constitucionalistas buscaram na his­
tória os modelos para a constituição a fazer (ou a restaurar, a "regenerar'');
cf. Hespanha, 1982a.
Cultura Jurídica Europeia
25
Nos nossos dias, com o impacto da ideia de "progresso", a
tradição deixou de ser a principal estrutura de legitimação e, por
isso, a história do direito perdeu uma boa parte dos seus crédi­
tos como oráculo do espírito nacional. Pelo menos no Ocidente,
pois no Oriente - desde o Irão até Singapura ou à China - a bus­
ca de uma teoria do direito liberta de categorias ocidentais, cul­
turalmente estranhas, tende a atribuir à história um importante
papel na revelação daquilo que se considera especificamente
nacional.
Encarar a história como uma via para a revelação do "es­
pírito nacional" - se tal coisa de facto existisse3- levantaria pro­
blemas metodológicos muito sérios. Na verdade, a consciência
metodológica está hoje bem consciente de que a história, mais
do que descrever, cria (cf., infra, 1.2.3. ). Ou seja, aquilo que o
historiador crê encontrar como "alma de um povo", na verda­
de é ele - com as suas crenças e preconceitos - que o lá põe. A
prova a partir da história - sobretudo, a prova histórica de enti­
dades tão evanescentes como o espírito nacional ou a cultura
jurídico-política nacional - constitui uma construção intelectu­
al que, portanto, diz mais sobre os historiadores seus autores do
que sobre as crenças e as culturas do passado que se supõe es­
tarem a ser descritas.
De qualquer modo, o argumento histórico não abandonou
totalmente os terrenos do raciocínio jurídico, já que ele pode ser
inserido noutras estratégias discursivas dos juristas.
Por um lado, a história tem podido ser usada para provar
que certa categoria do discurso jurídico - v.g., "Estado", "direi­
to público e privado", "pessoa jurídica" - ou uma solução jurí­
dica - v.g., a protecção legal do feto ou o princípio de que os con­
tratos devem ser cumpridos ponto por ponto - pertencem à "na­
tureza das coisas" ou decorrem de categorias eternas da justiça
ou da razão jurídica. Aqui, a história pode servir para mostrar
3Sobre a difícil sustentabilidade da ideia de "espírito nacional" perante o evi­
dente pluralismo de valores das sociedades, nomeadamente das de hoje, v.
infra, 8.6.4.4.
26
António Manuel Hespanhe
que, por exemplo, até já os juristas romanos ou os grandes dou­
tores medievais teriam estado conscientes destas categorias e
lhes teriam dado uma certa formulação.
Numa perspectiva já um tanto diferente - e com uma dife­
rente genealogia ideológica - a história poderia demonstrar, pelo
menos, que se foram firmando consensos sobre certos valores
ou sobre certas normas, e que esses consensos deveriam ser res­
peitados no presente. Era a isto que os juristas romanos se refe­
riam quando definiam o costume como “mores maiorum" (cos­
tumes dos antigos, continuamente ratificado por uma espécie de
plebiscito tácito (tacita civium conventio)) (D.1,3,32-36) e lhe atri­
buíam, por isso, um valor de norma. A história seria, assim, o
fórum de um contínuo plebiscito, em que os presentes partici­
pariam, embora numa posição enfraquecida pela soma de "vo­
tos" já acumulada pelos passados. De alguma forma, esta ideia
de um contínuo plebiscito verificável pela história subjaz tam­
bém à ideia, a que nos referiremos abaixo, de ela pode documen­
tar o espírito de um povo.
Como se depreenderá de seguida, esta ideia de plebescito
pressuporia que, passados e presentes, estariam a abedecer ao
que está estabelecido pelas mesmas razões; ou seja, que dariam
o mesmo sentido aos seus "votos". Se isto não puder ser prova­
do, não se pode falar de "consenso".
Embora muitos conceitos ou princípios jurídicos sejam
muito mais modernos do que geralmente se supõe, é verdade
que há outros que parecem existir, com o seu valor facial (i.e., re­
feridos com as mesmas palavras ou como frases), desde há muito
tempo. Realmente, conceitos como pessoa, liberdade, democra­
cia, família, obrigação, contrato, propriedade, roubo, homicídio,
são conhecidos como construções jurídicas desde os inícios da
história do direito europeu. Contudo, se avançarmos um pou­
co na sua interpretação, logo veremos que, por baixo da super­
fície da sua continuidade terminológica, existem rupturas deci­
sivas no seu significado semântico. O significado da mesma pa­
lavra, nas suas diferentes ocorrências históricas, está intimamen­
te ligado aos diferentes contextos, sociais ou textuais, de cada
Cultura Jurídica Europeia
27
ocorrência. Ou seja, o sentido é eminentemente relacional 'ou lo­
cal. Os conceitos interagem em campos semânticos diferente­
mente estruturados, recebem influências e conotações de outros
níveis da linguagem (linguagem corrente, linguagem religiosa,
etc.), são diferentemente apropriados em conjunturas sociais ou
em debates ideológicos. Por detrás da continuidade aparente na
superfície das palavras está escondida uma descontinuidade
radical na profundidade do sentido. E esta descontinuidade se­
mântica frustra por completo essa pretensão de uma validade
intemporal dos conceitos embebidos nas palavras, mesmo que
estas permaneçam.
Alguns exemplos desta falsa continuidade. O conceito de
fnmüin, embora use o mesmo suporte vocabular desde o direito
romano (familia), abrangia, não apenas parentelas muito mais
vastas, mas também não parentes (como os criados ou os escra­
vos \famuli]) e até os bens da "casa" 5. O conceito de obrigação
como "vínculo jurídico" aparece com o direito romano; mas era
entendido num sentido materialístico, como uma vinculação do
corpo do devedor à dívida, o que explicava que, em caso de não
cumprimento, as consequências caíssem sobre o corpo do deve­
dor ou sobre a sua liberdade (prisão por dívidas). O conceito de
"liberdade" começou, na Grécia clássica, designar a não escra­
vidão, no âmbito da comunidade doméstica, distinguindo os filhos-família dos escravos; mais tarde, na Roma republicana,
designa, a não dependência de outro privado, no âmbito da co­
munidade política (na polis, respublica); em seguida, com o cris­
tianismo, designa, a exclusiva dependência da fé em Deus, sen­
do compatível, então, com a dependência temporal, mesmo com
a escravatura; só muito mais tarde, incorpora a ideia de direito
de auto-determinação, de liberdade de agir politicamente; ou
4 /.e., relacionado com o de outros conceitos próximos que ocorram numa cer­
ta época da história do discurso (v.g., "liberdade" com "escravidão", ou com
"despotism o", ou com "anarquia"; "dem ocracia", ou com "m onarquia", ou
com "aristocracia", ou com "d itadu ra", ou com "anarquia", ou com "totali­
tarism o").
5Cf. Hespanha, 1984b.
28
António Manuel Hespanha
mesmo, ainda mais tarde, de receber do Estado o apoio neces­
sário (económico, cultural, sanitário) para exercer, de facto, essa
virtual auto-determinação 6. A palavra "Estado" (status) era uti­
lizada em relação aos detentores do poder (status rei romanae,
status regni); mas não continha em si as características conceitu­
ais do Estado (exclusivismo, soberania plena, extensos privilé­
gios "de império" relativamente aos particulares [jurisdição es­
pecial, irresponsabilidade civil, privilégio de execução prévia])7
tal como nós o entendemos. A propriedade já foi definida pelos
romanos como uma faculdade de "usar e abusar das coisas"; mas
a própria ideia de "abuso" leva consigo esta outra de que existe
um uso normal e devido das coisas, que se impõe ao proprietá­
rio, o que exclui a plena liberdade de disposição que caracteri­
zou, mais tarde, a propriedade capitalista 8.
Assim, essa alegada continuidade das categorias jurídicas
actuais - que parecia poder ser demonstrada pela história - aca­
ba por não se poder comprovar. E, caída esta continuidade, cai
também o ponto que ela pretendia provar, o do carácter natural
dessas categorias. Afinal, o que se estava a levar a cabo era a tão
comum operação intelectual de considerar como natural aquilo
que nos é familiar (naturalização da cultura).
Mas a história jurídica pode ser integrada numa estratégia
de legitimação ligeiramente diferente. De facto, há quem julgue
ser possível usar a história para provar a linearidade do progres­
so (neste caso, do progresso jurídico).
Partamos de um modelo histórico evolucionista. Ou seja,
de um modelo que conceba a história como uma acumulação
progressiva de conhecimento, de sabedoria, de sensibilidade.
Nesta perspectiva, também o direito teria tido a sua fase juvenil
de rudeza. Contudo, o progresso da sabedoria humana ou as
descobertas de gerações sucessivas de grandes juristas teriam
6Barberis, 1999.
7 Cia vero, 1982.
8Cf. Grossi, 1992.
Cultura Jurídica Europeia
29
feito progredir o direito, progressivamente, para o estado em que
hoje se encontra; estado que, nessa perspectiva da história, re­
presentaria um apogeu. Nesta história progressiva, o elemento
legitimador é o contraste entre o direito histórico, rude e imper­
feito, e o direito dos nossos dias, produto de um imenso traba­
lho agregativo de aperfeiçoamento, levado a cabo por uma ca­
deia de juristas memoráveis.
Esta teoria do progresso linear resulta frequentemente de
o observador ler o passado desde a perspectiva daquilo que aca­
bou por acontecer. Deste ponto de vista, é sempre possível en­
contrar prenúncios e antecipações para o que se veio a verificar
(cf., infra, 1.2.3.). Mas normalmente perde-se de vista tanto to­
das as outras virtualidades de desenvolvimento, bem como as
perdas originadas pela evolução que se veio a verificar. Por
exemplo, a perspectiva de evolução tecnológica e de sentido in­
dividualista que marca as sociedades contemporâneas ociden­
tais tende a valorizar a história do progresso científico-técnico
da cultura europeia, bem como as aquisições político-sociais no
sentido da libertação do indivíduo. Deste ponto de vista, a evo­
lução da cultura europeia deixa ler-se como uma epopeia de
progresso e a sua história pode converter-se numa celebração
disto mesmo. Mas o que se perde é a noção daquilo que, por cau­
sa deste progresso, se fechou como oportunidade de evolução
ou que se perdeu. Como, por exemplo, o equilíbrio do ambien­
te, os sentimentos de solidariedade social.
Enfim, a história progressista promove uma sacralização do
presente, glorificado como meta, como o único horizonte possí­
vel da evolução humana e tem inspirado a chamada "teoria da
modernização", a qual propõe uma política do direito baseada
num padrão de evolução artificialmente considerado como uni­
versal. Neste padrão, o modelo de organização política e jurídi­
ca das sociedades do Ocidente (direito legislativo, codificação,
justiça estadual, democracia representativa, etc.) é proposto
como um objectivo universal de evolução sócio-política, para­
lelo à abertura do mercado no plano das políticas económicas
(Wehler, 1975; Baumann, 1993,2001; cf., também, infra, 8.6.4.4).
30
António Manuel Hespanha
Estas duas últimas estratégias - a "naturaüzadora" e a " pro­
gressista" - de sacralização do direito actual por meio da utili­
zação da história repousam numa certa forma de a contar. De
facto, as matérias históricas relevantes são identificadas a partir
do leque dos conceitos e problemas jurídicos contemporâneos. Isto
leva a uma perspectiva deformada do campo histórico, em que
os objectos e as questões são recortados a partir do modo de ver
e conceber o direito nos dias de hoje. Assim, o presente é imposto
ao passado; mas, para além disso, o passado é lido a partir (e
tornado prisioneiro) das categorias, problemáticas e angústias
do presente, perdendo a sua própria espessura e especificida­
de, a sua maneira de imaginar a sociedade, de arrumar os temas,
de pôr as questões e de as resolver.
Esta ignorância da autonomia do passado leva, pelo menos,
a perplexidades bem conhecidas da investigação histórica: como
a grelha de interrogação das fontes é a dos nossos dias, é frequen­
te que estas não possam responder às nossas (anacrónicas) ques­
tões. Por exemplo, para aqueles que não estejam conscientes de
que uma boa parte da teoria constitucional do Antigo Regime
tem que ser buscada na teoria da justiça e da jurisdição, as fon­
tes jurídicas doutrinais das épocas medieval e moderna podem
parecer mudas sobre a problemática do poder político supremo.
O mesmo se diga da teoria da administração, que não poderá
ser encontrada nessas fontes doutrinais, a não ser que se procu­
re ou na teoria do judicium (i.e., na teoria da organização judicial)
ou na teoria (moral) do governo doméstico (oeconomia) (cf., v.g.,
Cardim, 2000). É também na tratadística moral sobre as virtu­
des (como a beneficentia, a gratitudo ou a misericórdia) que podem
ser encontrados os fundamentos da teoria das obrigações, da
usura ou, mesmo, do direito bancário (cf., v.g., Clavero, 1991).
Contudo, a vinculação do passado ao imaginário contem­
porâneo pode levar a consequência ainda mais sérias. Possivel­
mente, a uma total incompreensão do direito histórico, sempre
que a sua própria lógica for subvertida pelo olhar do historia­
dor. Por exemplo, isto acontece quando se lêem as cartas régias
que, na Idade Média, protegiam a inviolabilidade do domicílio
Cultura Jurídica Europeia
31
(enquanto expressão territorial do poder doméstico) como an­
tecipações das modernas garantias constitucionais de protecção
da privacidade individual. Na verdade, o que então estava em
jogo era a autonomia da esfera doméstica frente à esfera políti­
ca da respublica, no âmbito de uma constituição política plura­
lista, em que os poderes periféricos competiam com o poder cen­
tral. Bem pelo contrário, nada estava mais fora de causa do que
a ideia de proteger direitos individuais, os quais eram então com­
pletamente sacrificados no próprio seio da ordem doméstica.
Outra ilustração do mesmo erro seria uma leitura "representa­
tiva" (no sentido de hoje) das antigas instituições parlamenta­
res (as "cortes" ibéricas ou os parlamentos franceses de Antigo
Regime); embora se tratasse de assembleias que "representa­
vam" o reino, a ideia de representação que aqui domina é, não
a actualmente corrente na linguagem política, mas antes a cor­
rente hoje na linguagem do teatro - os actores tornam visíveis
(apresentam publicamente) os personagens, mas não são seus de­
legados, seus mandatários, não exprimem a sua vontade; do
mesmo modo, os parlamentos visualizam o corpo político (mís­
tico e, por isso, de outro modo invisível) do reino. Também o
vincar a sistematização contemporânea do direito civil (parte
geral, obrigações, direitos reais, direito da família, direito das
sucessões) na descrição do direito antigo impõe a este relações
sistemáticas que não eram então perceptíveis: v.g., as matérias
de família não se liam como separadas das matérias sucessórias.
Num plano ainda mais fundamental, o direito hoje dito "civil"
não se distinguia fundamentalmente do direito hoje dito "pú­
blico", porque - nos sistemas jurídicos de Antigo Regime - o
príncipe não tinha, em geral, as prerrogativas jurídicas especiais
que depois foram atribuídas ao Estado (nomeadamente, a po­
dia ser chamado por um particular perante a jurisdição ordiná­
ria, não podia, em geral, impor unilateralmente o sacrifício de
um direito particular); em suma, era, para a generalidade dos
efeitos, um particular, cujas relações com os súbditos eram re­
gidas pelo direito comum (civil). Num plano ainda superior,
seria completamente absurdo projectar sobre o passado as ac-
32
António Manuel Hespanha
tuais fronteiras disciplinares entre direito, moral, teologia e fi­
losofia, procurando, por exemplo, isolar o direito dos restantes
complexos normativos.
Deve anotar-se que a questão da submissão da narrativa do
historiador aos conceitos e representações do presente tem sido
muito discutida desde o século passado. Há quem, com razão,
(i) considere que esta situação é inevitável, já que o historiador
nunca se consegue libertar das imagens, preconceitos (pré-compreensões) do presente. E há também quem - nomeadamente no
domínio da história do direito - (ii) considere que esta leitura
"actualizante" (present minã approach) da história é a condição
para que os factos históricos nos digam algo, sejam inteligíveis,
permitam tirar lições9. A primeira posição (i) aponta a impossi­
bilidade radical de um conhecimento histórico objectivo, que
subjaz também, de forma muito sensível, a esta nossa introdu­
ção metodológica. Só que, do nosso ponto de vista, isto é uma
limitação e não uma vantagem do conhecimento histórico. A
segunda questão (ii), porém, suscita todas as objecções referidas
no texto. Que podem ser resumidas nesta: o alegado "diálogo
histórico" que se obtém por uma perspectiva actualista é, de fac­
to, um monólogo entre o historiador e uns sujeitos históricos
desprovidos de autonomia, uns bonecos de ventríloquo em que
ele transforma os actores do passado, dando-lhes voz, empres­
tando-lhe palavras e impondo-lhe pensamentos.
Uma última estratégia legitimadora nos usos da história do
direito segue um caminho diferente. O que nesta está em jogo já
não é a legitimação directa do direito, mas a da corporação dos
juristas que o suportam, nomeadamente dos juristas académi­
cos.
Na verdade, os juristas têm uma intervenção diária na ad­
judicação social de faculdades ou de bens. Isto confere-lhes uma
papel central na política quotidiana, embora com o inerente pre­
ço de uma exposição permanente à crítica social. Uma estraté­
9 Cf. Grossi, 1998, 274, referindo-se a uma obra clássica de Emílio Betti, Diritto
romano e dogmatica odiema, 1927, hoje publicada em Betti, 1991.
Cultura Jurídica Europeia
33
gia de defesa deste grupo é a de desdramatizar ("eufemizar",
Bourdieu, 1986) a natureza política de cada decisão jurídica e,
por isso, o seu carácter "político" ("arbitrário", no sentido de que
depende de escolhas de quem decide e não de leis ou princípios
imperativos). Ora, uma forma de "despolitizar" ("despotenciar",
"eufemiziar") a intervenção dos juristas é apresentar o veredic­
to jurídico como uma opção puramente técnica ou científica,
distanciada dos conflitos sociais subjacentes.
Esta operação de neutralização política da decisão jurídica
tornar-se-á mais fácil se se construir uma imagem dos juristas
como académicos distantes e neutrais, cujas preocupações são
meramente teóricas, abstractas e eruditas. Uma história jurídi­
ca formalista, erudita, alheia às questões sociais, políticas e ideo­
lógicas e apenas ocupada de eras remotas, promove seguramen­
te uma imagem das Faculdades de Direito como templos da ciên­
cia, onde seriam formadas tais criaturas incorpóreas. A onda de
medievismo que dominou a historiografia jurídica continental
até aos anos '60 - contemporânea do manifesto de Hans Kelsen
no sentido de "purificar" a ciência jurídica de ingredientes po­
líticos (cf. infra, 8.4.6.) - teve esse efeito de legitimação pela ciência,
justamente numa época de fortíssimos conflitos político-ideológicos em que os juristas tiveram que desempenhar uma impor­
tante função "arbitrai" 10.
1 .2 . A história crítica do direito
Os objectivos gerais de uma história crítica do direito fo­
ram evocados antes. Tratar-se-á agora da questão das estratégias
científicas e das vias metodológicas mais convenientes (Scholz,
1985; Hespanha, 1986a, 1986b).
A primeira estratégia deve ser a de instigar uma forte cons­
ciência metodológica nos historiadores, problematizando a concep­
ção ingénua segundo a qual a narrativa histórica não é senão o
10V., sobre isto, para Portugal, Hespanha, 1981.
34
António Manuel Hespanha
simples relato daquilo que "realmente aconteceu". É que, de fac­
to, os acontecimentos históricos não estão aí, independentes do
olhar do historiador, disponíveis para serem descritos. Pelo con­
trário, eles são criados pelo trabalho do historiador, o qual selec­
ciona a perspectiva, constrói objectos que não têm uma existên­
cia empírica (como curvas de natalidade, tradições literárias,
sensibilidades ou mentalidades) ou cria esquemas mentais para
organizar os eventos, como quando usa os conceitos de "causa­
lidade", de "genealogia", de "influência", de "efeito de retorno"
(feedback). A única coisa que o historiador pode verificar são se­
quências meramente cronológicas entre acontecimentos; tudo o
resto são inferência suas (v.g., transformar uma relação de precedente-consequente numa relação de causalidade [post ergo
propter] ou de genelogia-influência [prior ergo origo]). Os historia­
dores devem estar conscientes (i) deste artificialismo da "reali­
dade" historiográfica por eles criada, (ii) da forma como os seus
processos mentais modelam a "realidade" histórica, ou seja, do
carácter "poiético" (criador) da sua actividade intelectual e (iii)
das raízes social e culturalmente embebidas deste processo de
criação.
Esta estratégia leva naturalmente a uma crise de ideais
como o de "verdade histórica", a ponto de alguns autores não
hesitarem em classificar a história como um género literário,
embora (tal como os outros géneros) dotado de uma organiza­
ção discursiva específica, ou seja, de regras que permitem vali­
dar os seus resultados (White, 1978,1987; Hespanha, 1990a). É
por esta última razão que a classificação do saber histórico como
um género literário não significa que o ele repouse na arbitrarie­
dade; significa, antes, que o rigor histórico reside mais numa
coerência interna do discurso - numa observância de "regras de
arte" convencionais - do que numa adequação à "realidade" his­
tórica. Afinal, esta proposta não representa mais do que a apli­
cação à própria história jurídica do mesmo método - de desven­
dar as raízes sociais e culturais das práticas discursivas - que ela
pretende aplicar ao discurso que forma o seu objecto - no nosso
caso, o discurso jurídico.
Cultura Jurídica Europeia
35
A segunda estratégia é a de eleger como objecto da histó­
ria jurídica o direito em sociedade.
Esta linha de evolução, que domina a historiografia contem­
porânea a partir da École des Annales (com a sua ideia cie uma
"história total") leva a unia história do direito intimamente li­
gada à história dos diversos contextos (cultura, tradições literá­
rias, estruturas sociais, convicções religiosas) com os quais (e nos
quais) o direito funciona.
Este projecto - que não põe em causa, como alguns parece
temerem - a especificidade da história jurídica, como se verá pode ser decomposto numa série de linhas de orientação.
1.2.1. A percepção dos poderes “periféricos”
Antes de mais, as normas jurídicas apenas podem ser en­
tendidas se integradas nos complexos normativos que organi­
zam a vida social. Neste sentido, o direito tem um sentido me­
ramente relacional (ou contextuai). O papel da regulação jurí­
dica não depende das características intrínsecas das normas do
direito, mas do papel que lhes é assignado por outros sistemas
normativos que formam o seu contexto. Estes sistemas são inú­
meros - da moral à rotina, da disciplina doméstica à organiza­
ção do trabalho, dos esquemas de classificar e de hierarquizar
às artes de sedução. O modo como eles se combinam na cons­
trução da disciplina social também é infinitamente variável.
Algumas das mais importantes correntes da reflexão polí­
tica contemporânea ocupam-se justamente com estas formas
minimais, persuasivas, invisíveis, "doces", de disciplinar (Foucault, 1978,1980,1997; Bourdieu, 1979; Santos, 1980b, 1989,1995;
Hespanha, 1983; Serrano González, 1987a, 1987b; Levi, 1989;
Boltanski, 1991; Thévenot, 1992; Cardim, 2000). Muitas destas
formas não pertencem aos cumes da política, vivendo antes ao
mais baixo nível (au ras du sol, Jacques Revel) das relações quo­
tidianas (família, círculos de amigos, rotinas do dia a dia, inti­
midade, usos linguísticos). N esse sentido, estes mecanismos de
normação podem ser vistos "direitos do quotidiano" (cf. infra,
36
António Manuel Hespanha
8.6.4.1; Sarat, 1993), gerado por poderes "moleculares" (Felix
Guattari), "microfísicos" (Michel Foucault), dispersos por todos
os nichos das relações sociais. Contudo, estes poderes e estes
direitos manifestam uma resistência que falta à generalidade das
normas e instituições do direito oficial.
Esta imagem da sociedade como auto-organizada num es­
quema pluralístico de ordens jurídicas não é novo. Nasceu - se
considerarmos apenas a época contemporânea - no século XIX,
pois foi então que apareceu a ideia de que a sociabilidade hu­
mana estava organizada objectivamente em instituições imanen­
tes e necessárias perante as quais a ordem do Estado era quase
impotente (cf. infra, 8.2.1.3 e 8.4.4.). Estes pontos de vista tinham
sido antes preparados pelo pensamento reaccionário do século
XIX, que continuava temáticas da teoria política do Antigo Re­
gime (cf. infra, 4.2.). Já no nosso século, tanto as correntes antiliberais e anti-democráticas (É. Lousse, O. Brunner, J. Evola),
como as correntes liberais, deixaram também a sua marca neste
pensamento político anti-estatalista.
Embora bebendo de outras fontes e inspirações, a teoria
política mais recente volta a este imaginário pluralista da ordem
política e à consequente tendência para descentrar o direito ofi­
cial no seio de uma constelação inorgânica de mecanismos de
disciplina, sublinhando, em contrapartida, o papel conformador
de humildes e discretos mecanismos normativos da vida quoti­
diana.
A "teoria crítica" da Escola de Frankfurt problematizou a
ideologia da neutralidade política e insistiu em que qualquer
actividade humana tem uma componente política e disciplinadora, nomeadamente, as do nível cultural e simbólico. Nesta
mesma linha, M. Foucault referiu-se ao carácter molecular do
poder, à sua omnipresença na sociedade ("pan-politização") e
à necessidade de a teoria política se assumir, para captar o po­
der em toda a sua extensão, como uma "micro-física" do poder
(Foucault, 1978). Da antropologia jurídica, chegou a ideia de
"pluralismo", da coexistência de diferentes ordens jurídicas, le­
gais ou costumeiras, no mesmo espaço social (Hooker, 1975;
Cultura Jurídica Europeia
37
Geertz, 1963,1983; Chiba, 1986; cf. infra, 8.6.4.4). Finalmente, o
pós-modernismo trouxe uma nova sensibilidade em relação às
formas implícitas, informais e quotidianas de poder (Toffler,
1990; Hespanha, 1992a; Santos, 1994,1995; Sarat, 1993; Bauman,
1993; cf. infra, 8.6.4.), tendo chamado também a atenção para a
forma como o Estado - a grande criação da "modernidade" procurou desarticular essas formas ou, pelo menos, tomar in­
visível essa dimensão micro da política (Bauman, 2001: páginas
de antologia, 26 ss.). É por isso que se pode dizer que a historio­
grafia jurídica dos nossos dias se apoia tanto em temas provin­
dos da mais académica reflexão teórica como numa pré-compreensão do mundo com raízes na mais recente cultura contempo­
rânea.
Foi daqui que resultou a sensível tendência actual dos his­
toriadores do direito para alargarem o seu campo de pesquisa
para além do âmbito do direito oficial, integrando nele todos os
fenómenos de normação social, independentemente das suas
habituais etiquetas. Desde as normas religiosas, aos costumes,
desde as regras de organização (management) às formas mais
evanescente e difusas da ordem. Embora esta vaga esteja a che­
gar aos estudos de história jurídica contemporânea - em que a
ideia de pluralismo jurídico desafia cada vez mais ousadamen­
te a antiga ideia de que o direito se reduzia à constituição, ao
código e à lei do Estado -, a mais profícua massa de estudos con­
tinua a incidir sobre a sociedade e política de Antigo Regime: o
direito informal, o direito das comunidades rústicas e campo­
nesas, o amor e a amizade como sentimentos políticos (Clanchy,
1993; Hespanha, 1983, 1993b; Clavero, 1993; Cardim, 2000), a
organização d.o saber (Avellini, 1990; Petit, 1992), a organização
do discurso (Grossi, 1992; Costa, 1969, 1986; Beneduce, 1996;
Petit, 2000), a disciplina doméstica (Frigo, 1985a), a caridade e a
assistência (Serrano González, 1992) n.
11Sobre esta evolução, cf. De Benedictis, 1990; Schaub, 1995.
38
António Manuel H espanha
1.2.2. O direito com o um produto social
Contudo, o direito em sociedade não consiste apenas em
considerar o papel do direito no seio de processos sociais (como
o da instauração da disciplina social), mas também em conside­
rar que a própria produção do direito (dos valores jurídicos, dos
textos jurídicos) é, ela mesma, um processo social. Ou seja, algo
que não depende apenas da capacidade de cada jurista para
pensar, imaginar e inventar, mas de um complexo que envolve,
no limite, toda a sociedade, desde a organização da escola, aos
sistemas de comunicação intelectual, à organização da justiça,
à sensibilidade jurídica dominante e muito mais.
Este tópico obriga a que se considere o processo social de pro­
dução do próprio direito na explicação do direito. Sublinhámos
"próprio" para destacar que não estamos a aderir a modelos de
explicação muito globais, desses que relacionam qualquer fenó­
meno social com um único centro de causalidade social (v.g., a
estrutura económica, como do determinismo economicista de
um certo marxismo, ou o subconsciente individual, como do
determinismo psicanalítico de Freud) (cf. Bourdieu, 1984).
Na verdade, parecem muito mais produtivos modelos de
explicação sociológica de muito mais curto alcance, que relaci­
onam os efeitos (culturais, discursivos) com a dinâmica especí­
fica do espaço (ou nível, instância) social particular em que eles
são produzidos. No nosso presente caso, a ideia é a de relacio­
nar o direito com os espaços sociais ("campos", para usar a ter­
minologia de Bourdieu 12, "práticas discursivas" ou "dispositi-
12Resumindo grosseiramente, Pierre Bourdieu relaciona cada prática de produ­
ção de sentido ("práticas simbólicas") com os seus contextos sociais de pro­
dução (a que cham a "cam pos") e com as lutas e conflitos entre os agentes de
produção que se desenvolvem em cada cam o (cf. aplicação ao direito, Bour­
dieu, 1986). "L e pouvoir symbolique est un pouvoir qui est en mesure de se fai­
re reconnaître, d'obtenir la reconnaissance ; c'est-à-dire un pouvoir (économi­
que, politique, culturel ou autre) qui a le pouvoir de se faire méconnaître dans
sa vérité de pouvoir, de violence et d'arbitraire. L'efficacité propre de ce pou­
voir s'exerce non dans l'ordre de la force physique, mais dans l'ordre
Cultura Jurídica Europeia
39
vos", para utilizar a de M. Foucault)13, explicando a partir daí
os efeitos (jurídicos) produzidos.
du sens de la connaissance. P ar exem ple, le noble, le latin le dit, est un nobilis , un hom m e "co n n u ", "re c o n n u "", "D évoiler les ressorts du p ou vo­
ir", ininterventions — Science sociale et action politique, A gone, 2002, p p .173176) ; Dans un champ, les agents et les institutions luttent, su ivan t les ré­
gularités et les règles constitutives de cet espace de jeu (et, dans certaines
conjonctures, à propos de ces règles m êm es), avec des d egrés divers de
force et par là, des possibilités diverses de succès, p our s'ap p ro p rier les
profits spécifiques qui sont en jeu dans le jeu. C eux qui dom in en t dans un
ch am p donné son t en position de le faire fonctionner à leur avan tage, mais
ils d oivent toujours com p ter avec la résistance, la contestation, les reven ­
dications, les prétentions, "p olitiques" ou non, des d om in és." (Réponses,
Seuil, 1992, p .78); "C o n tre l'illusion de l'"intellectuel sans attaches ni raci­
n es", qui est en quelque sorte l'idéologie professionnelle des intellectuels,
je rappelle [...] que l'appartenance au champ intellectuel implique des inté­
rêts sp écifiq u es, n o n s e u le m e n t, à P aris c o m m e à M o sco u , des p o stes
d 'acad ém icien ou des contrats d 'édition, des com p tes-ren du s ou des pos­
tes universitaires, m ais aussi des signes de reconnaissance et des gratifi­
cations sou vent insaisissables p our qui n 'e s t pas m em bre de l'univers mais
p ar lesquelles on donne prise à toutes sortes de contraintes et de cen su ­
re s.", (Questions de sociologie, M inuit, 1 9 8 4 , p .70). (Sobre Bourdieu, coin dos
bio-bibliográficos, textos e um glossário elem entar: h t t p : / / w w w .h om m em o d e rn e .o rg /s o c ie te /s o c io /b o u rd ie u / [2002-08-15].
13E m term os muito genéricos, M. F o u cau lt considera que cad a discurso tem
as suas regras de form ação (a sua "o rd e m ") e que esta não d epende do au ­
tor m as do próprio processo de escrita, sendo que este está relacionado com
condições m ateriais e objectivas ("disp o sitiv o s") da escrita (da "c ria ç ã o "),
aqui se com preendendo as tradições literárias em que o d iscu rso se desen ­
volve, o m odelo de divisão do trabalho intelectual dom inantes nesse m o­
m ento, os objectos que su rgem com o m aterial de ob servação, etc.. A este
estudo do discurso com o confluência de determ in ações extern as ao au to r
ch am a F ou cau lt "arq u eo lo g ia" (m odelo de estudo que ele opõe, tanto ao
m odelo biográfico, centrado no au tor, e ao estudo genealógico, centrado
n a "in flu ê n cia ". O livro fu n d am en tal de F o u ca u lt, so b re este tem a, é
L'archéologie du savoir, 1969. T rad u ção p ortu gu esa de alguns textos im por­
tantes de Fou cault (nom eadam ente, para os efeitos presentes, "A ordem
do d iscu rso " e "O m nes e tsin g u la tin - para um crítica da razão p olítica",
em h ttp ://w w w .fou cau lt.h p g.ig.com .b r/biblio.h tn il [2002-08-15].
40
Antonio M anuel Hespanha
Por isso, a história do direito será a história do "cam po
ju rídico", das "práticas discursivas dos ju ristas", dos "d isp o­
sitivos do direito", pois todas estas expressões são algo equi­
valentes. A prim eira, sublinhando as lutas entre os agentes
para hegem onizar um cam po particular; a segunda e tercei­
ra dando ênfase à força estruturante de entidades objectivas,
como o próprio processo de escrita (o "texto ") ou a organiza­
ção das práticas. Seja com o for, a ideia com um a qualquer
delas é a da autonomia do direito em relação aos momentos não
jurídicos das relações sociais. A que acrescentaríam os mes­
mo - para realçar o aspecto conform ador que o discurso ju rí­
dico tem sobre outros discursos (mais numas épocas do que
noutras) - a ideia ainda mais forte de que o im aginário ju rí­
dico - produzido pelas condições específicas dos discursos e
rituais do direito - pode mesmo modelar im aginários sociais
m ais abrangentes, bem com o as práticas sociais que deles
decorram.
Esta última ideia é ainda mais decisiva se considerarmos
que os valores jurídicos perduram no tempo. São produzidos
uma vez, mas são continuam ente (re)lidos (ou recebidos). De
acordo com a "teoria da recepção" (Holub, 1989), receber um
texto (tom ada a p alav ra no seu sentido m ais vasto) é
(re)produzi-lo, dando-lhe um novo significado, de acordo
com a nova m aneira como ele é integrado no universo inte­
lectual (e em ocional) do leitor. Como os textos jurídicos par­
ticipam desta abertura a novos contextos, a história do direi­
to tem que evitar a reificação do significado dos valores, ca­
tegorias ou conceitos, já que estes - por dependerem menos
das intenções dos seus autores do que das expectativas dos
seus leitores - sofrem perm anentes m odificações do seu sen­
tido (contextuai).
Mas - neste processo de contínuas re-leituras - alguma coisa
de permanente resiste a estas sucessivas re-apropriações; daí o
peso da tradição jurídica, com a força das palavras e dos con­
ceitos do passado sobre os seus usos no presente. Daí a impor­
tância que, em contrapartida, deve também ser atribuída ao ha-
Cultura Jurídica Europeia
41
bitu s14inculcado pela tradição literária em que o leitor se formou
(e em que o próprio texto está integrado) (v., já a seguir, "C on­
tra a teleologia.").
E por isso que há uma certa circularidade na hermenêuti­
ca histórica dos textos. Eles são apropriados por um leitor for­
mado por uma tradição textual de que os mesmos textos fazem
parte (contexto inter-textual). Porém, existe também um momen­
to dinâmico neste círculo, pois a nova leitura também é confor­
mada por outros factores contextuais que estão fora desta tra­
dição textual (momentos extra-textuais), empurrando o leitor
para outras paisagens intelectuais (outros discursos ou tradições
literárias, outros imaginários culturais, outras expectativas so­
ciais, outros interesses).
1.2.3. Contra a teleologia
A terceira estratégia de uma história crítica do direito é a
de insistir no facto de que a história jurídica (como a história em
geral) não constitui um desenvolvimento linear, necessário, pro­
gressivo, escatológico.
Isto significa, em primeiro lugar, que na história há descontinuidade e ruptura - ideia bastante consensual entre os his­
14 O conceito é, de novo, de P. Bourdieu: "E strutura estrurante que organiza
as práticas e a percepção das práticas ; o habitus é também uma estatura es­
truturada : o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percep­
ção do m undo social é, ele próprio, o produto da incorporação da divisão
em classes sociais", (La Distinction, Minuit, 1979, p.191); "O s condicionamen­
tos associados a um a classe particular de condições de existência produzem
hábitos, sistemas de disposições duráveis e transmissíveis, estruturas estru­
tu rad as predispostas a funcionar com o estruturas estruturantes, ou seja,
com o princípios geradores e organizadores de práticas e de representações
que podem ser objectivamente adaptadas os seus fins sem supor a orienta­
ção consciente para esses fins e o domínio expresso das condições necessá­
rias para os atingir, objectivamente "regu lad as" e "regulares" sem serem ,
de form a algum a, o produto de obediência a regras e sendo tudo isto colec­
tivam ente orquestrado sem ser o produto de um a acção organizadora de um
m aestro", (Le sens pratique, Minuit, 1980, p.88).
42
António Manuel Hespanha
toriadores. Mas os juristas (e os historiadores do direito) tendem
a crer que o direito constitui uma antiga tradição agregativa, em
que as novas soluções se somam às mais antigas, aperfeiçoan­
do-as ou actualizando-as.
Se se destacar a ideia de descontinuidade, o papel da tra­
dição - que sempre foi tido como tão importante em direito precisa de ser clarificado. Na verdade, na ideia de ruptura já
estava implícito aquilo que acabámos de dizer acerca da natu­
reza contextuai do sentido. Se os sentidos (ou os valores) são
relacionais, estando sempre ligados com os seus contextos, qual­
quer mudança no contexto do direito corta-o da tradição prévia.
A história do direito será assim constituída por uma sucessão
de sistemas jurídicos sincrónicos, fechados uns em relação aos
outros. O sentido de cada instituto ou de cada princípio deve ser
avaliado pela sua integração no contexto dos outros institutos e
princípios que com ele convivem contemporaneamente; e não
nos institutos ou princípios que o antecederam (na sua "genea­
logia" histórica). Ou seja, o direito recompõem-se continuamente
e, ao recompor-se, recompõe a leitura da sua própria história,
da sua própria tradição, actualizando-as.
Mas, por sua vez, a tradição é também um factor de cons­
trução do direito actual. Porque, se o direito actual recompõe
(relê) a tradição, o certo é que é com os instrumentos (intelectuais,
normativos, rituais, valorativos) que uma certa tradição intelec­
tual lega ao presente, que o d ireito d o presente é pensado. Nes­
te sentido, a tradição parece estar muito presente no direito, e
sob diversas formas - tradições literárias, casos decididos, leis
que se mantêm no tempo, costumes que continuam vigentes,
cerimónias e rituais herdados do passado. E o trabalho de pro­
dução de novos efeitos jurídicos (novas normas, novos valores,
novos dogmas) é levado a cabo com ferramentas recebidas da
tradição: ferramentas institucionais (instituições, papéis sociais),
ferramentas discursivas (linguagem técnica, tópicos, modelos de
argumentação e de prova, conceitos e dogmas), ferramentas comunicacionais (bibliotecas, redes académicas ou intelectuais). É
desta forma que o passado modela o presente. Não pela impo­
Cultura Jurídica Europeia
43
sição directa de valores e de normas, mas pela disponibilização
de uma grande parte da utensilagem social e intelectual com que
se produzem novos valores e novas normas (ou seja, à la Foucault, como fornecedor de componentes dos "dispositivos" da
criação actual do saber jurídico).
Estabelecida esta ideia - com a crítica que ela traz implícita à
ideia de progresso linear, de genealogia e de influência -, o pre­
sente deixa de ser o apogeu do passado, o último estádio de uma
evolução que podia ser de há muito prevista. Pelo contrário, o
presente não é senão mais um arranjo aleatório, dos m uitos q u e a
bricolage dos elementos herdados podia ter produzido.
Contudo, a ideia de descontinuidade, se nos dá uma pers­
pectiva sobre o presente, também influencia o nosso modo de
observar o passado. Este deixa de ser um precursor do presen­
te, um ensaiador de soluções que vieram a ter um completo de­
senvolvimento no presente. E, com isto, deixa de ter que ser lido
na perspectiva do que veio depois. O passado é libertado do
presente. A sua lógica e as suas categorias ganham espessura e
autonomia. A sua diferença emerge majestosamente. Esta emer­
gência da diferença, dessa estranha experiência que nos vem do
passado, reforça decisivamente o olhar distanciado e crítico so­
bre os nossos dias (ou, no nosso caso, sobre o direito positivo),
treinado-nos, além disso, para ver coisas diferentes na aparente
monotonia do nosso tempo.
2.
A
IM PORTÂNCIA DA H ISTÓ RIA
JU R ÍD IC O -IN S T IT U C IO N A L COMO DISC U RSO H ISTÓ RICO
Como disciplina histórica, a história jurídica e institucional
está hoje a recuperar do ostracismo a que tinha sido condenada
pela primeira geração da École desAnnales 15. A evolução da teo­
ria e metodologia da história institucional - que implicou um
redesenho do seu objecto (cf, antes, "A percepção dos poderes
"periféricos".")- desempenhou aqui um papel muito importan­
te. Contudo, também os historiadores gerais estão hoje, passa­
da a vaga de economicismo que dominou até aos anos '70, cada
vez mais conscientes da centralidade e omnipresença do poder
e da política.
Se isto é verdade na sociedade dos nossos dias, é-o mais
evidentemente ainda na sociedade de Antigo Regime que, como
diremos (cf., infra, "A concepção corporativa da sociedade."), se
via e descrevia a si mesma de acordo com imagens e evocações
importadas do mundo do direito e onde a estrutura social se
expressava nas distinções e hierarquias do direito 16. Na sua obra
clássica Das deutsche Genossenschaftsrecht (O direito alemãò das
corporações, 1868-1913) 17, Otto Gierke (1841-1921) mostrou
como a teoria política medieval e moderna é basicamente expres­
sa com recurso aos termos da teoria jurídica. Mais recentemen­
te, o medievista russo Abraham Gurevich destacou que este tom
jurídico da imaginação social ("uma sociedade construída sobre
o direito") estava difundido por todos os grupos sociais. Por
meio de tópicos e clichés, a ideia de que a sociedade e a própria
vida eram construções jurídicas tinha embebido até a cultura
15Cf. H espanha, 1986c, 211.
16 Cf., com o síntese do estado das questões quanto à historiografia sobre o
Antigo Regime, H espanha, 1984b; Benedictis, 1990; Schaub, 1995.
17Tradução parcial inglesa, M aitland, 1938.
46
António M anuel Hespanha
popular. Se, entre os letrados, a teoria social e política estava
contida na teoria da jurisdição e da justiça 18, para os leigos, a
mais visível expressão da ordem social e do poder era a admi­
nistração da justiça nos tribunais. Por isso, o processo judicial e
a parafernália dos tribunais (rituais, cerimónias, fórmulas) eram
tidos como constituindo o modelo mais fiel do exercício do po­
der político. A própria vida era também expressa na metáfora
do processo judicial, culminando num acto tipicamente foren­
se, o Juízo F in al19. As situações sociais - patrimoniais, mas tam­
bém pessoais ou mesmo simbólicas, tal como a hierarquia, o tí­
tulo, a precedência - eram reguladas juridicamente (como iura
quaesita ou iura radicata, direitos adquiridos ou enraizados) e
podiam ser objecto de reclamação judicial. Por isso, o formalis­
mo documental e a litigiosidade constituem um fenómeno muito
visível, a ponto de já ter sido descrito como um traço cultural
distintivo desta sociedade que já foi descrita como "a civiliza­
ção do papel selado" [civiltà delia carta bollata] (F. Chabod).
Esta centralidade do direito pode ser explicada pela estrei­
ta relação que existia entre a ordem jurídica e as outras ordens
normativas, muito diferentemente do que se passa hoje.
O primeiro destes sistemas normativos quase jurídicos era
a religião. O direito divino (ius divinum) - que decorria directa­
mente da Revelação - estava tão intimamente embebido no di­
reito secular (ius civile) que o último não podia contrariar no es­
sencial os comandos do primeiro. Daqui decorriam as limitações
ético-religiosas do direito secular (v. infra, 5.2.2., "O direito ca­
nónico como limite de validade dos direitos temporais."), a fun­
damental indistinção entre crime e pecado 20, a competência in­
distinta de ambas as ordens para üdar com certas situações, bem
co m o o seu apoio mútuo (cf., infra, 5.3.2. "Direito canónico è di­
reito civ il.)21.
18Muito mais do que nos escritos políticos, com o a Política de Aristóteles.
19Cf. H espanha, 199Òc.
20Cf. Tomás y Valiente, 1990.
21 A religião legitimando o direito secular; o último protegendo a prim eira e
impondo deveres religiosos, Bianchini, 1989; sobre o tem a, cf. 5 .2 .2 ..
Cultura Jurídica Europeia
47
O direito mantinha uma relação também muito estreita com
a moral. Não apenas a moral religiosa, mas também com a ética
secularizada que regulava as virtudes, nomeadamente as virtu­
des sociais, como a beneficência, a liberalidade ou a gratidão. Dar
podia, nesta perspectiva, ser uma quase-obrigação jurídica (qunsi
debitum), em termos de criar um quase-direito a favor dos bene­
ficiários da oferta. Tal era o caso da esmola, que nascia da virtu­
de da caridade e que era frequentemente considerada como de­
vida ao pobre 22. O mesmo ocorria com o dever de compensar
serviços, provindo da gratidão (gratitudo), ou com o dever de
generosidade ou de magnificência, provenientes da liberalida­
de, liberalitas, ou da magnificentia, que impendiam sobre os ricos
e poderosos 23.
Mas - acima de tudo - o direito incorporava ainda ideias
muito mais profundamente enraizadas quanto ao modo de orga­
nizar e controlar as relações sociais. Isto acontecia, por exemplo,
com o chamado direito natural (ius naturale), um direito que de­
correria da própria "natureza das coisas", i.e., de imagens então
evidentes acerca da sociedade e da humanidade. Todas estas ima­
gens, profundamente presentes na consciência social, eram evo­
cadas quando os juristas se referiam às características naturais
(naturalia) de diferentes papéis sociais (o rei, o pai, a mulher) ou
instituições (como os diversos contratos ou a propriedade). Ou
quando elegiam a "boa e recta razão" (bona vel recta ratio) como
critério supremo para avaliar a justiça de uma situação. Recta ra­
tio, tanto como aequitas (cf., infra, 5.3.8.2Flexibilidade por meio da
equidade."), eram um equivalente do que hoje chamamos seixso
comum, do sentido comum sobre a boa ordem e a justiça.
Contudo, o direito e a doutrina jurídica não se limitavam a
receber o senso comum e ideias difusas. Uma vez recebidos,
desenvolviam e elaboravam estes materiais "brutos" (ruda aequi­
tas, equidade rude) numa teoria harmónica e argumentada24. De
22Cf. Serrano González, 1992.
23Cf. Pissavino, 1988; H espanha, 1993d ; C lavero, 1991; Cardim , 2000..
24 Vallejo, 1992.
48
António M anuel Hespanha
certo modo, os juristas tornavam explícito aquilo que a vida
quotidiana mantinha implícito, se bem que activo. Tal como os
psico-analistas, que revelam em discursos explicados o incons­
ciente individual, eles explicitavam em teorias o inconsciente
social. E, feito isto, devolviam-no à sociedade sob a forma de uma
ideologia articulada que se convertia em norma de acção, refor­
çando ainda o primitivo imaginário espontâneo. Muitas vezes,
fazem isto sob a forma de uma literatura altamente sofisticada;
outras vezes, apenas por meio de ditos soltos (brocarda), de mne­
mónicas, de formulários documentais ou de ritos processuais.
De uma forma ou de outra, eles desempenham um papel impor­
tantíssimo na reprodução de padrões culturais e na construção
de esquemas mentais que permanecerão activos, durante sécu­
los, na cultura europeia. E é por isto que a história do direito não
pode ser ignorada sempre que se tenha em vista a compreensão,
global ou sectorial, da antiga sociedade europeia2S.
25Sobre a im portância da história do direito para a com preensão da sociedade
de Antigo regime, v. Schaub, 1995; 1996.
3- L in h a s d e f o r ç a d e u m a n o v a
H IST Ó R IA POLÍTICA E INSTITU CION A L
3 .1 . O objecto da história político-institucional.
A pré-com preensão do “político”
Nunca foi fácil nem unânime definir o que fosse o poder
ou mesmo as instituições. No entanto, passando por cima das
inquietações e dúvidas sempre latentes em correntes menos con­
formistas, a teoria política liberal tinha, de mãos dadas com o
positivismo jurídico, estabelecido um conceito segundo o qual
o poder político tinha a ver com o "Estado", sendo relevantes
do ponto de vista da história e da ciência política apenas as ins­
tituições/ os mecanismos e organizações instituídos por ele 26.
Tudo isso parece estar, hoje, de novo em causa. E as conse­
quências no plano da definição do objecto da história política e
institucional não podem deixar de se fazer sentir. É este o tema
dos próximos números.
3.1.1. A crise política do estadualismo
Há alguns anos, o malogrado historiador italiano R. Ruffilli27
relacionava as temáticas (e também as perplexidades) da história
política (no sentido de história do poder) dos nossos dias com aquilo
que ele chamava a crise das instituições do Estado liberal represen­
tativo, nomeadamente em Itália.
Para os que assistem à dissolução das formas estabelecidas
do exercício do poder dito oficial, seja na ordem interna, seja na
ordem internacional, falar de crise é seguramente um eufemis-
26Cf. Chevalier, 1978.
27 Ruffilli, 1979. Ruffilli - que, além de prestigiado historiador, se empenhou
num corajoso combate pela reform a e dignificação da vida política italiana
- m orreu às m ãos das Brigade rosse.
50
António Manuel Hespanha
mo. Debaixo dos nossos olhos, a instituição Estado, tal como ti­
nha sido construída pela teoria política liberal, dissolve-se e de­
saparece. E, com ela, uma série de modelos exemplares de vi­
ver a política ou de ter contacto com o poder (o sufrágio, os par­
tidos, a lei, a justiça oficial) 2S. Mesmo o imaginário ligado ao
paradigma Estado está em crise: a igualdade, como objectivo
político, vê-se confrontada com as pretensões de garantia da di­
ferença; o interesse geral tende a ceder perante as pretensões
corporativas ou particularistas; o centralismo debate-se com to­
das as espécies de regionalismo; o império da lei é atacado, tan­
to em nome da irredutibilidadç de cada caso e da liberdade de
apreciação do juiz a isso ligada, como em nome das ideias de
concertação e de negociação, que fazem com a lei seja, cada vez
mais, um contrato pactado entre o Estados e grupos particula­
res; a intenção "racionalizadora" capitula diante das pretensões
liberais mais radicais 29. O próprio Estado, a braços com crises
de eficiência e de legitimidade, parece que não pode, não care­
ce de, e não quer, manter a sua missão ordenadora30. Em suma,
o Estado abandona progressivamente o imaginário político.
Este modelo Estado tinha sido desenhado de acordo com
uma arquitectura precisa 31, que previa:
(i) a separação rigorosa entre a "sociedade política" (a po­
lis, i.e., o Estado e as suas instituições munidas de imperiurti) e a "sociedade civil" (o quotidiano e os seus arran­
jos "privados", contratuais, de poder);
28 Cf. H espanha, 1992a, 1993a.
29Cf. Zagrebelsky, 1992, 20-38 (sobre as características fundam entais do Esta­
do de direito liberal); 4-8; 39-47 (em geral, sobre a dissolução da soberania,
com o característica do Estado liberal e do seu direito);. Trata-se de um a bri­
lhante síntese sobre o tem a, no âmbito de um livro, que já se tom ou clássi­
co, sobre as transform ações mais recentes da natureza do direito actual na
Europa ocidental.“ Baum an, 1 9 9 5 ,1 3 8 ss..
31 V., sobre o desenho liberal do Estado, Chevalier, 1978 ou Zagrebelsky, 1992,
citado antes.
Cultura Jurídica Europeia
51
(ii) distinção da natureza dos poderes, consoante se trata de
poderes de que o Estado é titular (poderes públicos) ou
poderes na titularidade dos particulares (poderes priva­
dos);
(iii) a instituição de uma série de mecanismos de mediação,
fundados no conceito de "representação" (concebido
como um produto da vontade, instituído por contrato
[mandato]), por meio dos quais os cidadãos, vivendo na
sociedade civil, participavam na sociedade política;
(iv) a identificação do direito com a lei, concebida como
exprimindo a vontade geral dos cidadãos, cuja corporização era o Estado;
(v) a instituição da justiça oficial, como a única instância de
resolução de conflitos.
Do ponto de vista da política, este modelo, com as conse­
quências políticas que ele comporta, suscita cada vez menos
entusiasmo.
Critica-se o gigantismo e impessoalidade da política ao ní­
vel do Estado 32; considera-se que ela toma impossível a parti­
cipação dos cidadãos. Rejeita-se a ideia de representação, reconhecendo-se os cidadãos cada vez menos nos seus representan­
tes eleitos. A abstenção eleitoral cresce, manifestando a falta de
adesão aos modelos representativos. Desconhece-se a lei, defrau­
da-se a sua letra, contestam-se as suas imposições em nome de
interesses particulares e procura-se substituí-la por pactos (concertação) entre o Estado e os grupos sociais (mais fortes). Sus­
peita-se da justeza da justiça oficial, propondo-se a sua substi­
tuição por outras formas de composição.
Por outro lado, a um nível superior ao do Estado, criam-se
instâncias supra-estaduais de regulação - ONU, União Europeia,
Mercosul -, organismos oficiais que condicionam decisivamen­
te as políticas estaduais - FMI, entre outros - ou até formas su­
32Sobre a oposição entre a personalização dos laços com unitários e a im pesso­
alidade dos laços estaduais, característicos da m odernidade, cf., Baum an,
2001, brilhante análise de toda o contexto ideológico desta oposição.
52
António Manuel H espanha
pranacionais de punição - como o Tribunal Penal Internacional.
Aos condicionamentos oficiais das políticas estaduais acrescem
os condicionamentos pelas grandes empresas ou grupos econó­
micos multi-nacionais 33.
Mas, ao mesmo tempo que o imaginário estatalista do li­
beralismo recua, descobre-se que, finalmente, não se tratava, na
verdade, de muito mais do que de um imaginário, por detrás do
qual fervilhavam mecanismos múltiplos de organização e de
disciplina sociais - a educação dos sentimentos (a moral), o sen­
so comum, as rotinas, a organização do trabalho, a família, os
círculos de amigos, enfim, a "comunidade". Pela intimidade dos
amores, pelos mecanismos viscosos da rotina, pela acção do dis­
curso, pelos jogos da evidência e da verdade, pelos constrangi­
mentos da domesticidade e da amizade, a sociedade continua
tão firme e espontaneamente organizada como antes. E, por lon­
ge que estejam dos cumes da política, os homens a as mulheres
têm, todos os dias, os seus momentos de poder. Enfim, afinal fazse política como se respira.
3.1.2. A pré-comprensão pós-m oderna do poder
Esta nova descoberta de uma "política ao nível do solo" (J.
Revel, 1989) - ou, se se preferir Lenine, de uma política ao alcance
da porteira - pode ser relacionada com uma temática teórica ti­
picamente pós-modema: horror ao gigantismo e atracção pela
pequena escala, desconfiança dos modelos globais, das tecno­
logias pesadas e das grandes organizações, revalorização das
componentes pessoais e da vida quotidiana, preferência por uma
ética do prazer em vez de uma ética da responsabilidade. Esta
antipatia em relação às formas "m acro" do modelo político li­
beral tem uma genealogia bastante longa, na qual se podem en­
contrar, quer Karl Marx, quer Cari Schmitt, antes de chegar às
33Sobre o seu im pacto sobre as políticas estaduais, cf. o testemunho de um in­
sider em Soros, 2000, 2002; Ferrrese, 2000, 2002.
Cultura Jurídica Europeia
53
análises micro-físicas de Michel Foucault ou aos diagnósticos
sobre a mudança das fontes, dos níveis e das tecnologias do po­
der e da organização nas sociedades omni-comunicativas, des­
critas por Alvin Toffler.
Quaisquer que sejam as genealogias, o que interessa é que
o diagnóstico ou o anúncio do fim do Estado como modelo de
organização política se tomaram usuais na teoria política mais
recente
É por isso que a evolução mais recente da historiografia do
direito e das instituições não pode ser separada, quer da evolu­
ção dos movimentos da sensibilidade política antes descritos,
quer das últimas novidades da teoria política. Uns e outras criam
interesses existenciais que dirigem o conhecimento (Erkenntnisleitende Interessen) ou, para escolher uma outra formulação, que
modelam uma pré-compreensão ( Voruerstandniss) do político, a
qual antecipa os resultados da actividade historiográfica.
No entanto, não se pode dizer que, nos finais dos anos ses­
senta, quando o movimento de contestação da historiografia jurídico-política tradicional começou a tomar forma, estes sinais
de dissolução das formas contemporâneas de normação e de
disciplina já fossem abertamente visíveis.
E, sobretudo, não se pode de forma alguma dizer que fos­
sem eles que estavam na origem do mal-estar da então mais ino­
vadora historiografia jurídica.
MLim itando-m e a exem plos dos últimos anos, vindos de cantos opostos da
reflexão sobre a política: P. Legendre, no âmbito de um a já longa reflexão
sobre a forma estatal (desde L'amour du censeur, 1974, até Les enfants du texte.
Étude sur la fonction parentale des États, 1992, até ao Trésor historique de l'État
en France. L'administration classique, 1992), prognostica "a sua dissolução do
interior, deixando lugar a outra coisa" (Trésor..., 13). Do lado das teorias do
management - cujo papel dogm ático (i.e., legitimador das relações políticas
estabelecidas) é colocado p o r P. Legendre ao lado do direito dos Estados
contem porâneos - , tom am os o exem plo de A. Toffler (Toffler, 1990) que vê
nas actuais deslocações do poder (pozvershift) o sinal do advento de uma nova
época civilizacional, dom inada por formas moles e flexíveis de organização
(flex-organisations).
54
António Manuel Hespa
O q u e en tão d esem p en h o u u m p a p e l d eterm in an te fo
crítica da fam iliaridade" com a qual a historiografia estabe
cida lidava com o passado.
3 .1.3 . Contra uma história politico-institucional actualizante.
3 .1 .3 .1 . A política implícita da ideia de “continuidade”
(Kontinuitatsdenken)
Para aqueles que tinham tido contacto com a historiogra
fia geral mais moderna, nomeadamente com o movimento do
Annales, a falta de distanciamento histórico era naturalmente
chocante.
Mas tomava-se ainda mais, quando se analisava a polític
implícita nesta historiografia "da continuidade". Com efeito ,,
ideia de uma continuidade, de uma genealogia, entre o direit»
histórico e o direito do presente era tudo menos inocente, do
ponto de vista das suas consequências no plano da política do
saber (jurídico).
A continuidade dos dogmas (dos conceitos, das classifica
ções, dos princípios) jurídicos constitui, de facto, a via real para a
naturalização do direito e dos modelos estabelecidos de podei para
a aceitação de um direito natural, de uma organização política
racional, fundados no primado de um espírito humam transtemporal, que permitiria o diálogo dogmático entre os ju ristas do
presente e os do passado. A história teria, então, un
papel essencialmente dogmático. Como saber que lida com <
tempo, ela teria a função de permitir a comunicação trans-tem
poral, tornando possível o diálogo espiritual entre os de hoje 1
os de ontem. Nesse diálogo, o presente enriquecia-se mas, so
bretudo, justificava-se. Porque o passado, ao ser lido (e, portan
to, apreendido) através das categorias do presente, tornava-si
numa prova muito convincente do carácter intemporal - e, por
tanto, racional - dessas mesmas categorias. "Estado", "represen
tação política", "pessoa jurídica", "público/privado", "direit(
subjectivo", eram - lendo a história desta maneira - encontra
Cultura Jurídica Europeia
55
das por todo o lado na história. Não podiam, por isso, deixar de
ser formas contínuas e necessárias da razão jurídica e política. Que
esta continuidade fosse o próprio produto do próprio olhar do
historiador era questão de que não se parecia estar consciente.
Mas, além de poder ser lida neste registo da "perm anên­
cia", a continuidade também pode ser lida no registo da "evo­
lução". Neste caso, trata-se de assistir ao nascimento e secular
aperfeiçoamento de um conceito ou de um instituto. A "conti­
nuidade" é concebida como a continuidade dos seres vivos, que
crescem e desabrocham, em flores e, finalmente, em frutos. A
sabedoria político-jurídico da Humanidade, justamente porque
continuaria o passado e não perderia os seus ensinam entos,
aperfeiçoar-se-ia - i.e., progrediria linearmente por acumulação.
A partir desta ideia, institui-se uma visão progressista da histó­
ria do poder e do direito, que transforma a organização institu­
cional actual num ómega da civilização política e jurídica. O
Estado liberal-representativo e o direito legislado (ou, melhor
ainda, codificado) constituiriam o fim da história, o termo últi­
mo de todos os processos de "modernização".
A visão histórica, ainda aqui, servia para documentar essa
saga, essa contínua luta pelo direito (Kam pfum Recht). Os dog­
mas do direito histórico não são já, como no caso anterior, teste­
munhos da justeza dos do presente. Mas testemunhos da acti­
vidade de libertação da Razão jurídica em relação à força, aos
preconceitos e às doenças infantis 3S.
Pressuposto deste uso legitimador da história era, num caso
ou noutro, a ideia de continuidade. Ou seja, a ideia de que o sa­
ber do presente se enraizava no saber do passado e que recebia
deste as categorias fundamentais sobre as quais trabalhava. De
facto, a chave do sucesso da tradição romanística, desde os glosadores até à pandectística alemã, foi sempre o mascarar do ca­
rácter inovador da "recepção", o facto de esta repousar sempre
sobre uma duplex interpretatio.
Com efeito, ficcionava-se que o sentido pelo qual se tomavam
35 Abordei esta tem ática em H espanha, 1986c.
56
António M anuel H espanha
os conceitos ou as normas herdadas do passado era o sentido cu­
nhado pelos seus autores ou o ligado aos seus contextos originais.
Nem os próprios textos, nem as condições da sua produção e apro­
priação, disporiam de espessura suficiente para provocar refracções
no seu sentido. Pelo contrário, a limpidez cristalina e a plena dis­
ponibilidade dos textos deixariam reinar, soberano, o único con­
texto que seria preciso ter em conta, o contexto intemporal - e, por­
tanto, comum ao passado e ao presente - da Razão jurídica. Esta
crença na intemporalidade do sentido e na possibilidade de uma
hermenêutica sem limites conduzia a um achatamento ou a uma
negação da profundidade histórica e a um sentido de familiarida­
de com o passado que, por sua vez, levavam a uma trivialização
da "diferença" deposta nos textos jurídicos históricos.
3 . 1 .3 . 2 . A crítica do atem poralism o
Não se pode dizer que a questão das rupturas, nomeada­
mente das rupturas dogmáticas, fosse desconhecida dos histo­
riadores do direito. Nos anos '20 e '30, alguns romanistas, rea­
gindo justamente contra a apropriação actualizante do direito
romano, operada pela pandectística, tinham denunciado o erro
que seria o ignorar do trabalho criativo, poiético, das diversas
recepções dos textos romanísticos (duplex interpretatio), o seu
progressivo distanciamento em relação aos sentidos originais.
Desta denúncia, do carácter ilusório das aparentes continuidades terminológicas decorria a ilegitimidade de aplicar, no tra­
balho histórico, as categorias jurídicas actuais.36
Mas a crítica da ideia da "continuidade" (da "familiarida­
de") mais decisiva para os desenvolvimentos recentes da histo­
36 O preço pago por esta orientação foi uma inevitável "historicização" das cor­
rentes romanísticas e a sua perda de peso nas Faculdades de Direito. Por isso,
alguns sectores rom anistas propuseram um estudo "jurídico" (actualizante) do
direito rom ano, reactivando as intenções dogmáticas da pandectística (zurück
zu Savigny, zu dem heutigen System des römischen Rechts). V., neste último senti­
do, o "m anifesto" de Cruz, 1989b, 113-124. Para a crítica, v. infra, 5 .I.I.I.4 .
Cultura Jurídica Europeia
57
riografia jurídico-institucional veio mais tarde, no decurso dos
anos '70. Apesar da diversíssima identidade ideológica dos ac­
tores, não parece muito arriscado dizer-se que se tratou de um
movimento de crítica do triunfalismo da política estabelecida o Estado liberal-representativo e o seu direito legislado -, que
amarrara a história institucional e jurídica ao seu carro de triunfo
37. O que, de vários lados, se tentou fazer, foi desamarrar daí o
passado, mostrando como ele, se o deixassem falar a sua pró­
pria linguagem, se dessolidarizaria das formas estabelecidas do
presente e exprimiria a inenarrável mobilidade das coisas hu­
manas.
No domínio da história político institucional, esta missão
foi preparada pelos trabalhos pioneiros de Otto Brunner 38- que,
tal como Otto v. Gierke, Émile Lousse ou Julius Evola, perten­
cia aos grupos tradicionalistas, críticos da "situação política" -,
ao destacar a alteridade das representações de Antigo Regime
sobre o poder e a sociedade 39. A influência de Brunner, combi­
nada com sugestões anteriores e disseminada por esta nova his­
toriografia, provocou um movimento historiográfico, hoje muito
amplo, de problematização da justeza de aplicar categorias e précompreensões contemporâneas à história do poder das Épocas
Medieval e M oderna40.
No domínio da história do direito, a crítica da continuidade
prometia maiores dificuldades, de tal modo esta era essencial, não
apenas à manutenção da ideia de uma ratio iuris intemporal, mas
37V., no m esm o sentido, em bora com diferente argum entação, Levi, 1998.
38 Indicações bibliográficas, avaliação global e nota sobre os precursores, Hespanha, 1984b, 31 ss.
39A fortuna que este autor veio a ter na historiografia da época m oderna (sécs.
XV-XVIII) deve bastante à sua recepção pela historiografia político-institucional crítica (m as, desta vez, "d e esquerda") italiana dos anos '70 e ao des­
taque que é dado à sua obra nos prefácios de duas antologias que então es­
tiveram muito em voga, a de Schiera-Rottelli e a de A. Musi (Rottelli, 1971;
Musi, 1979). O mesm o destaque lhe foi dado por mim, em H espanha, 1984b.
40 V. Blockmans, 1993.
58
António Manuel Hespanh;
ainda à defesa da razoabilidade de dispositivos técnicos como é
"regra do precedente" ou a "interpretação histórica" 41.
Foi justamente o culto da "continuidade" que explica as
tensões que acompanharam o aparecimento, em 1977, de uir
número da revista lus commune, publicação institucional de urr
dos templos da historiografia jurídica alemã, o Max-Planck-lnstitut fü r europäische Rechtsgeschichte, de Frankfurt/Main, coorde­
nado por um investigador do Instituto, Johannes-M ichael
Scholz, e subordinado ao tema Vorstudien zur Rechtshistorik42. Js
o título era tudo menos inocente, ao jogar no contraste provoca­
dor entre a designação clássica da disciplina - Rechtsgeschichte e o neologismo francisante - Rechtshistorik. A intenção iconoclasta
estava abertamente explicada no estudo de abertura de J.-M
Scholz ("Historische Rechtshistorie. Reflexionen anhand franzö­
sischen Historik" [Uma história histórica do direito. Reflexões
a propósito da historiografia {historicizante} francesa], 1-175).
Tratar-se-ia justamente de "historicizar a história do direito",
importando para a disciplina as sugestões metodológicas da
Escola dos Annales, nomeadamente a de promover a observa­
ção do direito no seu contexto social e a de introduzir aí, com
toda a sua imponente majestade, a consciência da dimensão tem­
poral, de um tempo marcado pela ruptura.
O passado jurídico devia ser, portanto, lido de forma a res­
peitar a sua alteridade, dando conta do carácter "local" do sen­
tido dos problemas, da justeza das soluções, da racionalidade
dos instrumentos técnico-dogmáticos utilizados. Ou seja, do
modo como todos estes elementos dependiam de condições his­
tóricas concretas de produção de sentido, quer estas condições
41 Que requerem que a passagem do tem po e a evolução dos contextos não
prejudique a similitude (a "continuidade") das situações. As coisas são, na
realidade, mais profundas: é a ideia de continuidade (das coisas e das pes­
soas) que suporta o essencialismo que, por sua vez, suporta o direito. Sem
ela as nossas coisas desvanecer-se-iam continuam ente; as prom essas estari­
am sem pre a perder os seus garantes, e por aí fora.
42 V. Klosterm ann, Frankfurt/M ain, 1977.
Cultura Jurídica Europeia
59'
se ligassem aos contextos sociais da prática discursiva/quer si
relacionassem com os particulares universos culturais dos acto
res históricos.
Já o convite a um comércio mais intenso com a história so
ciai provocava mal-estar a uma historiografia que vivia sobre ;
ideia de "separação" (Trennungsdenken, O. Brunner) entre o di
reito e a sociedade 43. Mas, por cima disto, o corte com as conti
nuidades da tradição jurídica dissolvia esta "fam iliaridade" di
que se tem falado, suspendia a trivialização dos dogmas jurídi
cos do passado e fazia correr o risco de introduzir um histori
cismo que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por afectar o pre
sente. Porque, na verdade, o carácter "estranho" do passadi
corresponde, como num espelho, ao carácter também histórica
mente enraizado - e por isso, reactivo - do presente. Tal como
passado nos parece estranho, o presente pareceria estranho ao
nossos antepassados, como o parecerá aos nossos vindouros.
Este
programa
de
recuperação
dos
sentidos
"autênticos' ("locais") das instituições do passado não seria fácil de
levar cabo, a menos que se ignorassem os problemas metodológico;
postos por este desígnio de descrever o passado jurídico em si
mesmo. Ou seja, a menos que se supusesse que o fechamento do
passado nas categorias do presente é um facto intencional e qui
pode, portanto, ser evitado por uma espécie de redução volun tária
dos preconceitos actualistas. As coisas tornam-se mais pro
blemáticas justamente porque os quadros de apreensão não são
deliberados, mas o produto de pré-juízos imanentes ao próprio.
wMais tarde (cf. 8.4.6. O apogeu do form alism o. A Teoria pura do direito.), vere
m os com o a "ideia de sep aração" estava de acordo com teorias jurídicas qu
propunham um a nítida separação entre o estudo do "s e r" (Sein; a socieda
de) e o "d ev er ser" (Sollen; o direito).
44 As propostas metodológicas de J.-M. Scholz dirigiam -se, antes de tudo, con
tra a história dos dogm as (Dogmengeschichte). Mas era claro que elas nãse dirigiam menos contra a história "m ilitan te" dos anos sessenta, politi
cam en te com p rom etid a, pronta a denunciar, em nom e dos valores do pre
sente, as aberrações do passado, sobretudo aquelas que se p rolon gavar
no presente, ou de que se podia fazer u m uso, directo ou m etafórico, ri
luta cívica ou política.
60
António Manuel H espanha
olhar do historiador. Scholz estava consciente disto. Nem as
deform ações epistem ológicas dos historiadores tradicionais
eram intencionais, nem a história poderia nunca trabalhar com
categorias neutras de apreensão que deixassem viver, em toda
a sua liberdade e auto-determinação, o objecto sobre que inci­
dissem. E, assim, ele tentava escapar ao impasse recorrendo ao
conceito, então desenvolvido pela teoria alemã da história, de
quadros de conceptualização sugeridos pelo próprio objecto de
estudo (Gegenstnndsbezogene Kategorien), quadros que possibili­
tariam uma adesão distanciada e não pietista em relação às autorepresentações dos agentes históricos. Uma questão à qual te­
remos que voltar mais abaixo.
O programa que J.-M. Scholz traçara neste seu "m anifes­
to" 45 estava já a ser levado a cabo, no domínio da história do
direito privado, pelo jus-historiador florentino Paolo Grossi, um
dos exemplos mais interessantes de uma historiografia jurídica
que, mantendo cuidadosamente todas as distâncias em relação
à Dogmengeschichte tradicional, levava a sério os textos46. Ou seja,
Grossi recusava-se a ver nos textos históricos do direito e nas
suas figuras discursivas os antecedentes de uma história futu­
ra. Não sobrestimava as aparentes continuidades formais (pa­
lavras ou elementos normativos isolados do contexto), nem trivializava os elementos estranhos e inesperados47. 0 interessante
do projecto é justamente o facto de suspender a continuidade
45 E que ilustrava com alguns artigos de jus-historiadores "d e ru p tu ra".
’"Sobre Grossi e outros representantes desta historiografia jurídica "d e rup­
tura" (H espanha, Petit, Clavero, Grossi), v. Vallejo, 1995.
47Os seus estudos sobre os direitos sobre as coisas (maxime, no seu livro Le situazione reali nelVesperienza giuridica medievale, 1968, continuado em II dominio e le
cose. Percezione niedievali e modeme dei diritti reali, 1992) inauguram, neste domí­
nio, uma forma nova de tratar a dogmática jurídica medieval e moderna. Par­
tindo do estudo da dogmática medieval sobre as relações entre os homens e as
coisas e relacionando-a com as suas raízes na teologia, P. Grossi tenta desven­
dar um sistema diferente do contemporâneo de pensar estas relações. Um sis­
tema em que, entre os homens e as coisas, se tecem laços variados e sobrepos­
tos, muito mais complicados do que os laços bi-unívocos (uma coisa é proprie­
dade de uma pessoa, uma pessoa é proprietária de um a coisa) do modelo libe­
ral de uma propriedade concebida como um poder exclusivo de uso.
Cultura Jurídica Europeia
61
aparente dos conceitos familiares (como o de dominium), subli­
nhando, de um só golpe, a natureza cultural dos conceitos em­
pregues, tanto pelo sistem a dogmático do direito medieval,
como pelo do direito liberal. Ao fazer isto, P. Grossi não fica pri­
sioneiro, nem dos quadros dogmáticos actuais (que ele recusa
como grelha de reconstrução histórica), nem dos da época. Li­
mita-se a observar estes últimos, buscando as suas origens no
seio do discurso teológico-jurídico e evidenciando as suas con­
sequências no plano da percepção das relações sociais. Em suma,
põe em prática essa leitura dos textos "por de cima do ombro
daqueles que os escreveram", de que falam os antropólogos. Lê
o que eles liam, com um olhar paralelo; mas lê, também, o pró­
prio acto de leitura (ou de escrita) original.
Para dar um outro exemplo deste género de "leitura parti­
cipante", provinda também do grupo brilhante de discípulos de
Paolo Grossi, poder-se-ia citar o exemplo de Pietro Costa, autor,
nos já longínquos anos sessenta, de um livro inesperado que, ao
contrário dos ensaios correntes de história das ideias políticas,
procurava apanhar as categorias do político nos tratados jurí­
dicos sobre a jurisdição 48.
■“ Cf. Costa, 1969. O empreendimento historiográííco de P. Costa era duplamente
inovador. Em primeiro lugar, ele reconstituía, na sua alteridade, o sistema me­
dieval do saber relativo ao poder, mostrando, assim, que o lugar do discurso
político, no seio de uma sociedade que se cria fundada sobre a justiça, se arru­
m ava no lugar onde se tratava da capacidade para fazer a justiça, ou seja, no
discurso dos juristas sobre a jurisdição. E, consequentemente, considerava que
o lugar central da prática política era o tribunal; o que explica muito da impor­
tância da litigiosidade no quadro das lutas políticas (cf. Hespanha, 1993e, 451
ss.).. Depois, ele revela a eficácia, textual e contextuai, dos sistemas vocabulares
(dos campos semânticos) contidos nos textos jurídicos, como, v.g., o vocabulá­
rio jurídico medieval sobre o poder, ou essas fugas intermináveis de definições
e de classificações em tom o de palavras como iurisdictio ou imperium. Era no seio
destes jogos vocabulares que era apreendida e encerrada toda a realidade
social, aí sujeita a operações de tratamento intelectual que obedeciam a uma
lógica estritamente textual. E, de novo, era proposta "a o mundo" como um
modelo, uma matriz, destinados a enquadrar as questões políticas e a servir de
norma para elas Eu próprio documentei esta função política das classificações
doutrinais do imperium e da iurisdictio em Hespanha, 1984a (versão castelhana
em Hespanha 1993b); v. a sua ulterior valorização por Vallejo, 1992.
62
António Manuel Hespan
3.1.4. A descoberta do pluralism o político
Uma das principais consequências da problematização do
imaginário político liberal foi, justamente, o abandono dos por
tos de vista historiográficos que apenas consideravam (na hitória
ou na sociologia do poder) o nível estatal do poder e o nivel
oficial (legislativo, doutrinal) do direito.
Antes da brutal redução do imaginário político operad pela
ideologia estatalista, no início do século XIX, a Europa vivera
num universo político e jurídico plural49. Mas, sobretudc estava
consciente disso. Consciente, quer da multiplicidade dc vínculos
sociais, quer da diversidade dos níveis de normaçã social, quer
das diferentes tecnologias pelas quais as norma
eram impostas.
Coexistiam, em primeiro lugar, diferentes centros autónc
mos de poder, sem que isto pusesse problemas, nem de order
prática, nem de ordem teórica. A sociedade era concebida com
um corpo; e esta metáfora ajudava a compreender que, tal com no
corpo, há muitas relações, dependências e hierarquias funcionais.
Nem tudo está dependente, única e exclusivamente, da cabeça.
Depois, compreendia-se também facilmente que os d: ferentes
órgãos corpóreos, assim os diversos órgãos sociais, pu dessem
dispor da autonomia de funcionamento exigida pel desempenho
da função que lhes estava atribuída na economi do todo 50.
Depois, neste mundo de poderes - sobrenaturais, naturais e
humanos - distintos e autónomos, a normação realizava-s também
a vários níveis. Existia uma ordem divina, explicitad pela
Revelação. Mas, independentemente desta ordem primei ra, a
própria Criação estava ordenada, possuindo "as coisas uma lógica
própria de organização, que as relacionava natural mente entre si,
independentemente da vontade dos homens e
'■'Sobre o tema, muito expressivo, Clavero, 1991; sobre a estratégia da sua de<
truição, no nível do imginário e no nível da prática, v. Bauman, 2001, 7-39
50 Sobre isto, v., em síntese, Hespanha, 1993b, 122 ss.
Cultura Jurídica Europeia
(x
poder-se-ia até dizer, da vontade de Deus, já que Ele as tinhc
criado assim. Finalmente, os homens tinham acrescentados í
estas ordens supra-humanas diversos complexos normativo:
particulares. Embora houvesse uma hierarquia entre estas dife
rentes ordens, ela não privava as inferiores da sua eficácia pró
pria, que predominava nos âmbitos que lhes eram próprios.
Este pluralismo jurídico não era específico do Antigo Re
gime. Pelo contrário, ele ainda se verifica no mundo político do
nossos dias. O carácter artificial da ideia de Estado e os custo
desta construção foram muito bem ilustrados por Z. Baumar
ultim am ente num belo livro sobre a decadência do espírit
comunitário com o advento da modernidade 51. Eu próprio, nur
artigo mais recente, sugeri que apesar do imaginário da unide
de instituído pelo estatalismo, as revoluções do século passad
criaram mecanismos novos de periferização do poder (como
burocracia)52. Mas foram sobretudo os sociólogos da justiça qu
revelaram a multiplicidade de mecanismos de normação e d
resolução de conflitos nas sociedades contemporâneas 53.
Em todo o caso, esta ideia de que a normação social se efec
tua a múltiplos níveis já encontrou aplicações notáveis na mai
recente historiografia político-institucional do Antigo Regime
Sirvo-me do exemplo de Bartolomé Clavero, um dos mais inte
ressantes historiadores do direito dos nossos dias 54. A partir d
1979 (Derecho comun, Sevilla, 1979), Clavero desenvolveu ur
modelo alternativo e não anacrónico para descrever o univers
político do Antigo Regime. Esse modelo encontrou-o ele, quas
explícito, na literatura jurídica da época. Esta literatura não fa
lava do Estado, mas antes de uma pluralidade de jurisdições
de direitos, direitos no plural, estreitamente dependentes d
51 Sobre os aspectos civilizacionais e éticos da construção do Estado, cf. a nc
tável síntese de Baum an, 1 9 9 5 ,1 1 9 -1 3 8 ; Baum an, 2001, caps. 1-3.
52 Cf. H espanha, 1990b; sobre a pluralidade dos poderes e das tecnologias pc
líticas dos nossos dias, v. H espanha, 1992a.
53 Inform ação bibliográfica em H espanha, 1993a ("In tro d u ção "). V. tambéi
Cappelletti, 1984; e, Spittler, 1980.
54Cf. Vallejo, 1995.
64
António Manuel Hespanha
outras ordens normativas (como a moral religiosa ou os deve­
res de amizade). Nos seus trabalhos, Cia vero insiste em dois tó­
picos:
• a ordem jurídica de Antigo Regime tem um carácter natural-tradicional; o direito, uma vez que não é o produto
do Estado, mas de uma tradição literária, tem fronteiras
fluidas e m ovediças com outros saberes norm ativos
(como a ética ou a teologia);
• a iurisdictio, faculdade de dizer o direito, i.e., de assegu­
rar os equilíbrios estabelecidos e, portanto, de manter a
ordem aos seus diferentes níveis, é vista como dispersa
na sociedade, não sendo a summa iurisdictio senão a fa­
culdade de harmonizar os níveis mais baixos da jurisdi­
ção.
O resultado é um modelo intelectual do mundo político que
se adequa muito bem aos dados das fontes e muito explicativo
em relação ao universo institucional da época. A partir daqui, a
autonomia dos corpos (família, comunidades, Igreja, corpora­
ções), as limitações do poder da coroa pelos direitos particula­
res estabelecidos, a arquitectura antagonística da ordem jurídi­
ca, as dependência do direito em relação à religião e à moral,
deixam-se compreender sem esforço 5556.
55 A influência deste m odelo - que tam bém foi proposto, ainda que de forma
menos sistem ática, em Itália, por historiadores contem porâneos de Clavero, com o P. Schiera - é hoje grande em Itália, Espanha e Portugal, sobretudo
entre os m odernistas (cf. apreciação, em Levi, 1998). A historiografia ingle­
sa sem pre lhe esteve mais próxim a, com o tam bém certas correntes da histo­
riografia alem ã. Em todo o caso, tanto na A lem anha com o em Fran ça, o
m odelo estatalista ainda dom ina. P ara um a panorâm ica dos pontos de vista
mais recentes sobre o "E stad o m od ern o", v. Blockmans, 1993.
36 Os efeitos desta leitura da história jurídico-política são chocantes para os
partidários de um a história jurídica, institucional e política centrada sobre
o Estado e que insista na ideia de centralização, com o característica das m o­
narquias europeias da Época M oderna. E m Espanha, esta im agem era tri­
butária do centralism o político da época de Franco (Espana, una, grande, li­
bre). Mas algum a da historiografia pós-franquista não deixa de com ungar
desta visão centralizadora. O que explica, em certa m edida, o tom polémi­
co que envolve, ainda hoje, a obra de C lavero no seu próprio país.
Cultura Jurídica Europeia
65
Esta visão pluralista do poder e do direito atrai, desde logo,
a atenção para universos institucionais claramente não estatais,
como a família e a Igreja.
Já é trivial sublinhar a importância da rèdescoberta, por
Otto Brunner (cf. Brunner, 1939,1968a, 1968b), de um facto que
seria evidente, se não foram os efeitos de mascaramento da ide­
ologia estatalista - a centralidade política do mundo doméstico.
Não apenas como módulo autónomo e auto-referencial de or­
ganização e disciplina sociais dos membros da família, mas tam­
bém como fonte de tecnologias disciplinares e de modelos de
legitimação utilizados noutros espaços sociais 57.
No que diz respeito à Igreja, os estudos sobre as tecnologi­
as disciplinares próprias multiplicaram-se. Em primeiro lugar,
sobre os mecanismos eclesiásticos de coerção típicos, como a
confissão, a inquisição ou as visitas paroquiais 58. Depois, sobre
o núcleo de legitimação do discurso jurídico canónico, a frater­
na correctio ou o am o r59. O estudo do amor como dispositivo legitimador e como tecnologia disciplinar ultrapassa em muito os
limites do direito canónico. Mas foram os historiadores deste
direito quem inaugurou um campo de investigação que pode
tomar-se de enorme importância para a compreensão dos me­
canismos políticos - a disciplina dos sentimentos ou a disci­
plina pela educação sentimental. Voltaremos ao tema. De 'mo­
mento, basta-nos sublinhar a importância heurística, apesar do
seu carácter por vezes herm ético, dos trabalhos de Pierre
Legendre 60 sobre as relações entre o poder e o amor 61.
57 Este papel m odelar da família e da disciplina dom éstica foram objecto de
estudos recentes de - para citar um exem plo notável - Daniela Frigo (1985a,
1985b, 1991).
58 Cf. Turchini, 1985; Turrini, 1991 e, sobretudo, Prosperi, 1996.
59Sobre esta relação entre am or divino, graça e poder, v. Prodi, 1992.
“ Legendre, 1 9 7 4 ,1 9 7 6 ,1 9 8 3 .
61 Sobre o contexto emocional e afectivo da política, v. também, Ansart, 1983;
ou, fundam ental, Baum an, 1995, 82-109. Por último, exaustivo tratamento,
para Portugal, em Cardim , 2000.
66
António M anuel Hespanl
Mas, como se disse, esta leitura pluralista do poder e d
disciplina na sociedade de Antigo Regime ultrapassa o direitt
tal como este é hoje concebido. Na verdade, este direito const
tuia (constitui) uma ordem mínima de disciplina, envolvida pc
outras mais eficazes e mais quotidianas.
Por exemplo, aquilo a que se chamava, na literatura do di
reito comum, o direito dos rústicos (iura rusticorum) 62, ou sejc
estas práticas á que o direito comum nem sequer outorgava ;
dignidade de costume, mas que constituíam a norma de com
portamento e o padrão de resolução de conflitos nas comunida
des camponesas. Os trabalhos empíricos de Yves e Nicole Cas
tan provam bem a sua eficácia, por muito difícil que seja avali
ar o seu impacto através de uma leitura ingénua das fontes jurí
dicas letradas (Hespanha, 1983).
Mas a normação e disciplina sociais são sobretudo garan
tidas pela "domesticação da alma".
Não pode deixar de se pensar em Michel Foucault quandc
se evoca este tema das "tecnologias de si" (cf. Martin, 1992). Ma;
o interesse por estes temas de investigação decorre também di
pistas teóricas mais antigas (desde Max Weber a Norbert Elias
sobre os mecanismos de interiorização da disciplina social (Dis
ziplinierung). Por outro lado, o estudo dos "sentimentos políti
cos" tem avançado muito com os estudos histórico-antropoló
gicos sobre o dom, a liberalidade e a gratidão, como cimento:
ideológicos das redes de amigos e clientes.
Uma primeira corrente, que tem levado a estudar a educa
ção sentimental, quer a moderna, quer a contemporânea, na:
suas relações com o mundo do direito e do poder 63, apenas dei
os primeiros passos 64.
62 Cf. Andreas Tiraquellus, Tractatus de privilegiis rusticorum, Coloniae Agrip
pinae, 1582; Renatus Chopinus, De privilegiis rusticorum, Parisiis, 1575; De.
privilèges des persònnes vivant aux champs, Paris, 1634 (cf. Hespanha, 1983).
63 Sobre a função política da educação sentim ental no contexto da sociedadi
laicizada dos séculos XVIII e XIX, v., por todos, Schiera, 1985; Schings, 1987
64V., pioneiro, Petit, 1997.
Cultura Jurídica Europeia
67
Uma outra corrente, cujo ponto de partida é constituído
pelos estudos de Clyde Mitchel e G. Boisevain65sobre as redes
de amigos na Sicília contemporânea, explorou as virtualidades
disciplinares das normas da moral tradicional (nomeadamen­
te, de Aristóteles e de S. Tomás; mas ainda muito presentes em
certas bolsas tradicionalistas da Europa de hoje) sobre domíni­
os aparentemente tão livres como os da liberalidade e da graça.
Num texto de há uns anos (Hespanha, 1993e), tentei mostrar de
que forma um campo tão importante como o da liberalidade
régia estava sujeito a uma gramática rígida, que constrangia a
liberalidade e graça e que quase tirava ao rei toda a sua liberda­
de, neste domínio do juridicamente não devido. Ao mesmo tem­
po, Bartolomé Clavero publicou o seu livro Antidora [...], que
explorava, na sequência de trabalhos anteriores, a teoria jurídi­
ca da usura na Época Moderna, encontrando aí um exemplo
magnífico desta complementaridade entre o direito e a moral.
Nesse livro, que revolucionou muito o campo da história do
pensamento económico, Clavero mostrou como a disciplina de
instituições hoje tão "am orais" e impessoais como os bancos e o
empréstimo de dinheiro repousavam sobre as normas da m o­
ral beneficiai - da graça e do dom - e não sobre as normas do
direito 66.
Ao falar de amizade, de liberalidade, de gratidão, estamos
a falar de disposições sentimentais que não podem ser observa­
das directamente. Por isso, as correntes historiográficas que têm
que se ocupar delas são obrigadas a trabalhar sobre os textos
normativos acerca dos sentimentos e das emoções. A hipótese
de que se parte é a de que estes textos modelam, em primeiro
lugar, o modo como entendemos e classificamos os nossos esta­
dos de espírito e, depois, os comportamentos que daí resultam.
Neste sentido, a literatura ética, disseminada pelas obras de
vulgarização, pela parenética e pela confissão, constituiria uma
65 Cf. Mitchell, 1973; Boisevain, 1978.
66 C lavero, 1991.
68
António M anuel H espanha
tecnologia de modelação (inculcação) dos sentimentos particu­
larmente importante para a realização da ordem na Época Mo­
derna.
Mas também a literatura jurídica que, nuns domínios mais
do que noutros, se ocupa dos sentimentos, das emoções ou dos
estados de espírito. Os exemplos clássicos são, no domínio do
direito penal mas também do direito civil, os estados psicológi­
cos como a culpa (culpa), o dolo (dolus), o estado de necessidade
(necessitas), a mentira, a loucura, a amizade, etc. Referindo-os e
utilizando-os, como pressupostos para a aplicação de normas
jurídicas, o direito institui uma "anatom ia da alma" (uma "geo­
metria das paixões", Mario Bergamo) que fixa os contornos de
cada sentimento. A partir deste momento, o discurso já não se
limita a descrever, estabelecendo também normas que discipli­
nam a sensibilidade e os comportamentos.
Se listámos exemplos de formas "não jurídicas" de contro­
le e de normação, todas elas originárias do mundo medieval e
moderno, isto não quer dizer que só então se possam encontrar
destas formas "doces" de disciplina. Também a época contem­
porânea está cheia delas. No séc. XIX, os pensadores liberais re­
feriram-se a elas utilizando a expressão "m ão invisível", cunha­
da por Adam Smith para descrever as regras da economia de
mercado, tal como eram então entendidas, a época moderna 67.
E, de facto, o Estado liberal apenas pôde propor um programa
de não intervenção, de deixar de regular directamente pela lei,
porque os seus adeptos contavam com os mecanismos automá-
67"E v ery individual necessarily labours to render the annual revenue of the
society as great as he can. H e generally neither intends to prom ote the pu­
blic interest, nor knows how m uch he is prom oting it...He intends only his
ow n gain, and he is in this, as in m any other cases, led by an invisible hand
to prom ote an end which w as no part of his intention. N or is it alw ays the
w orse for society that it w as no part of his intention. By pursuing his ow n
interest he frequently promotes that of the society m ore effectually than when
he really intends to prom ote it. I have never know n m uch good done by those
w ho affected to trade for the public good ." (An Inquiry into the Nature and
Causes of the Wealth of Nations, 1776)
Cultura Jurídica Europeia
69
ticos de auto-regulação da sociedade, alguns dos quais eram apesar do seu alegado automatismo - promovidos pela educa­
ção e ela imposição de estritas regras de comportamento moral
ou cívico. Lembremo-nos do moralismo da "época vitoriana" 68.
Por outro lado, o Estado contemporâneo, se não regula por leis,
cria meios de permanente observação dos cidadãos - o censo, o
registo civil, os registos policiais, os outros, variados registos em
que cada um tem que se inscrever (nomeadamente, para rece­
ber prestações do Estado); para não falar da recolha massiva de
informação sobre cada um realizada pelos Estados policiais e
totalitários (desde a PIDE portuguesa à STASI alemã) ou até, em
momentos de histeria securitária, pelos próprios Estados demo­
cráticos 69. Foi Michel Foucault quem sublinhou esta transição
nos métodos de controlo estadual da sociedade da disciplina
legal nas monarquias absolutas, para a observação nos Estados
contemporâneos 70.
3.2. Uma leitura densa das fontes
Tratada a questão da definição do objecto da história do
poder, cumpre esclarecer a questão dos métodos de abordagem
desse objecto. E o que se fará no presente número.
68Sobre a evolução dos m ecanism os de disciplina económ ica do capitalismo
nos finais do sec. XX, cf. o expressivo livro de Jean-Luc Boltanski, Le nouvel
esprit du capitalisme, 2000 (Boltanski, 2000).
69Cf. o cham ado tips program, projectado nos EU A depois dos atentados de 11
de Setembro de 2001, convidando os cidadãcs a denunciarem às autorida­
des actividades suspeitas TIPS (Terrorism Information and Prevention Sys­
tem): "M ost leads that neighbors would pass along in the governm ent's pro­
posed netw ork of anti-terrorism tipsters will produce little, a top Justice De­
partm ent official predicted Saturday. Assistant Attorney General Michael
Chertoff, the adm inistration's lead anti-terrorism prosecutor, defended the
program as a legitimate w ay to protect Am ericans, despite criticism it in­
fringed upon their civil liberties" (Associated Press, 1 1 /0 8 /2 0 0 2 ).
70Prim eiro em Surveiller et punir, 1975; depois, em IIfaut défendre la société, 1997.
Sobre este aspecto da obra de Foucault, Serrano, 1987a, 1987b.
70
António Manuel Hespanl-
Ao referir as obras de Paolo Grossi e de Pietro Costa, subi:
niiámos a sua especial metodologia de leitura das fontes, nome
adamente das fontes jurídicas. Salientámos então como estes doi
autores tomavam os textos a sério. Não os desvalorizavam comc
metáforas, nem como contendo sentidos figurados; mas, sobre
tudo, evitavam lê-los através das categorias do presente. Con
isto, pretendiam preservar a lógica original das fontes, mesmc
que esta não coincidisse com a actual. A frescura da visão que
delas colhiam decorria justamente desse esforço em não trivializar os testemunhos do passado filtrando-os pelas categorias
do senso comum do historiador.
O carácter não trivializante desta leitura distanciada das
fontes deve ser sublinhado.
3 . 2 . 1 . R e sp e ita r a ló g ica d as fo n te s
Na verdade, os textos que constituem a tradição literária eu­
ropeia sobre o poder e o direito têm sido objecto de um constante
trabalho de reinterpretação. Nomeadamente, os textos jurídicos.
Uma tradição centenária de juristas, que acreditavam que
nestes textos se depositava a ratio scripta, foi-os relendo sob a influ­
ência de novos contextos e procurando encontrar neles os sentidos
"adequados" a estes. Por outras palavras, foi-os inovando. Por sua
vez, uma tradição de historiadores, sobretudo de historiadores do
direito, educados na lição da história dos dogmas jurídicos (Dogmengeschichte), foi-os lendo retrospectivamente, procurando neles
a prova de que os conceitos e institutos actuais já tinham aflorado
no passado. Por outras palavras, foi-os recuperando.
Hoje, a frescura do sentido original está por isso obscure­
cida por camadas sucessivas de inovação e recuperação. O estra­
nho converteu-se em familiar, o inesperado em banal, o chocante
em esperado. A leitura corrente encontra as palavras esperadas
nos lugares previsíveis. As palavras estão cheias do sentido co­
mum, o que quer dizer que não têm qualquer sentido específi­
co. O presente olha para o passado e encontra lá a sua imagem,
como quem se vê ao espelho.
Cultura Jurídica Europeia
71
A obra, já citada, de Paolo Grossi sobre as situações reais
na experiência medieval é significativa do que acaba de ser dito.
Porque as fontes em que ele reencontrou os sentidos antigos que
fazem da sua narrativa uma novidade não tinham cessado de
ser invocadas, ao longo dos últimos duzentos anos, embora reinterpretados o sabor das sucessivas concepções do mundo, jus­
tamente para provar o carácter tradicional, ou mesmo natural,
dos conceitos (dogmas) vigentes, neste caso, do conceito de di­
reito de propriedade 71. A arte de Paolo Grossi foi a de saber ul­
trapassar as evidências, em busca dos sentidos perdidos.
Uma outra forma de banalizar os textos históricos é eufemizar o peso do que é dito, atribuindo-lhe o estatuto de metáfo­
ra ou dispositivo meramente retórico: o autor originário não
poderia querer mesmo, literalmente, dizer aquilo que disse. Es­
taria a utilizar uma imagem, a enfeitar o discurso com um arti­
fício de eloquência ou, mesmo, a querer enganar o leitor, escon­
dendo a dura realidade com o manto diáfano da fantasia. Cabe­
ria, então, ao historiador interpretá-lo habilmente (cum grano
salis), descobrindo, sob o que era o dito, aquilo que era pensa­
do, dando-lhe o seu "verdadeiro" sentido.
Um exemplo desta leitura "perspicaz" é a que normalmente
é feita das contínuas referências que se encontram nos textos
jurídicos às ordens superiores da ética e da religião. Uma atitu­
de comum dos historiadores do direito, para não falar dos his­
toriadores do social que frequentam os textos jurídicos, é a de
considerarem estas referências, completamente estranhas à ac­
tual compreensão de um direito e de um poder completamente
71 Li há bastantes anos que, quando elaborava o borrão da encíclica Quadragé­
simo anno, o C ardeal De Gasperi, preocupado em encontrar um a fundam en­
tação histórica e tradicional para a doutrina da Igreja de defesa da prop rie­
dade privada contra os "e rro s" do com unism o, saudara com um a entusiás­
tica anotação "E cco il diritto di proprietà \" um passo de S. Tom ás onde se
falava de dominium no sentido não exclusivista e não individualista que o
termo então tinha. E um exem plo de com o as preocupações contextuais agem
sobre a leitura. M as, geralm ente, os processos de contextualização social da
leitura são menos directos.
72
António M anuel H espanha
secularizados, como artefactos retóricos desprovidos de senti­
do "real" ("p rático ")72. Ora, pelo contrário, no caso dos textos
de direito medievais e modernos, essas referências são o sinal
de uma ligação que eles entendiam como ontológica entre o di­
reito e a religião, sem a qual, esses textos não podem ser enten­
didos; tal como não pode ser compreendido o sentido global da
ordem jurídica, nem muitos dos seus detalhes 73.
O mesmo se passa no que diz respeito às referências ao
amor. Neste caso, a operação de banalizarão apresenta duas ver­
tentes. Por um lado, reinterpreta-se o conceito de amor. Com
efeito, amor não haveria senão um, o que corresponde à nossa
gramática dos sentimentos, o amor pelo amante, quando muito
pelos pais ou pelos filhos. Já um amor pelos governantes, pela
ordem, pela justiça, um amor que está na origem da ordem ou
na origem da justiça, não seriam mais do que maneiras metafó­
ricos de dizer, dispositivos retóricos sem conteúdo social. Esta
aproximação que então se fazia de sentimentos afectivos (e das
correspondentes atitudes) em relação a pessoas tão diferentes
como o rei, os pais, os companheiros de viagem ou os amantes
não diria nada da realidade política "real", podendo ser deixa­
da de lado na análise histórica dos efeitos políticos 74.
Pelo contrário, uma leitura em profundidade (uma leitura
"densa", para retomar uma terminologia já proposta para des­
crever preocupações do mesmo género 75), que respeite tudo o
q u e é dito (e não dito), que recuse o sentido comum, que sub­
verta uma leitura calmante do passado, mostrará como estes tex­
tos que se referiam ao amor repousavam sobre (construíam, di­
fundiam) uma diferente gramática dos sentimentos, uma outra
anatomia deli'anima (Mario Bergamo), que constituía o impensa-
72 Ou melhor, dotados de um sentido pragm ático (i.e., destinado a com over o
leitor) e não sem ântico (i.e., destinado a denotar objectos).
73 Cf., neste sentido, o testem unho do principal responsável pela dissem ina­
ção, em termos novos, desta ideia, Bartolom é Clavero (Clavero, 1991).
74 Para a análise do am or com o sentimento político, v. Legendre, 1974; Boltanski
1990; Cardim, 2000.
75 Cf. Geertz, 1973; M edick, 1984.
Cultura Jurídica Europeia
73
do do direito, bem como do conjunto dos saberes sobre o homem
e a sociedade, e dava, portanto, um sentido específico ("local")
às suas proposições.
O trabalho de recuperação dos sentidos originais é, como
se vê, penoso. O sentido superficial tem que ser afastado para
deixar lugar às camadas sucessivas de sentidos subjacentes.
Como na arqueologia, a escavação do texto tem que progredir
por camadas. Os achados de cada uma delas têm que fazer sen­
tido a esse nível. O modo como eles foram posteriormente reinterpretados pode também ser objecto de descrição; mas isso é já
uma outra história - é a história da tradição textual.
A cada nível, portanto, o esforço é o de recuperar a estra­
nheza, não a familiaridade, do que é dito; o esforço de evitar
deixar-se levar por leituras pacíficas; o de ler e reler, pondo-se
porquês a cada palavra, a cada conceito, a cada proposição, a
cada "evidência" e procurando as resposta, não na nossa lógi­
ca, mas na própria lógica do texto. Até que o implícito deste se
tenha tom ado explícito e possa ser objecto de descrição. Nessa
altura, o banal carrega-se de sentidos novos e inesperados. O
passado, na sua escandalosa diversidade, é reencontrado 7b.
76Autores ligados à história da escrita, da im prensa e do livro têm vindo a sa­
lientar que o sentido original, para ser encontrado tem que ser objecto de
múltiplas contextualizações: não apenas necessário conhecer o contexto au­
toral, cultural, textual em que a obra é produzida; é preciso ainda conhecer
o seu contexto "escribal" - ou seja, os sentidos que a própria m aterialidade
do suporte do que é escrito cria nos leitores. Donald Francis M cKenzie, um
dos m aiores representantes da cham ada "bibliografia material", salienta esta
função do escrito (impresso) físico, afirm ando (McKenzie, 2002) que " a for­
m a afecta o sentido" (p. 13): "th e physical form s through which texts are
transm itted to their readers (or their auditors [censors, ideological police]
affect the process of the construction of m eaning" (p. 28) e propondo que a
sociologia dos textos se ocupe tanto da sociologia da criação, com o desta
sociologia da bibliografia, que abarcaria a fixação do sentido em textos com
um a certa m aterialidade, um a certa difusão um certo m ercado, um certo
público (cf. Mckenzie, 1997, 2002). Esta atenção à m aterialidade dos supor­
tes do sentido rem onta aos estudos de M arshall M cLuhan (M cLuhan, 1962),
W alter O ng (Ong, 1958), Jack Goody (Goody, 1977) e Roger Chartier (Chartier, 1987), que a teorizaram largam ente, com resultados muito im portan­
tes, m as ainda pouco explorados, tam bém para a história do direito.
74
António Manuel Hespan
Este escutar das profundidades do texto é também un
sondagem às zonas limite do universo da interpretação. Pod
mos - e se sim, como - reconstituir a geometria da alma d(
agentes históricos, essa geometria que explica as suas reacçõe:
Na verdade, na base dos comportamentos ou das prátia
passadas encontram-se opções humanas em face de situações. E;
tas situações são avaliadas pelos agentes de acordo com dispos
ções espirituais, cognitivas ou emocionais. São estas que ditam tarr
bém o tipo das suas reacções. A menos que se adira aos pontos d
vista de uma natureza inata e comum destas disposições, elas e:
tão fora do alcance do nosso conhecimento exterior, pois estão er
cerradas no seu mundo mental, que não é o nosso. O máximo qu<
então, se pode fazer, nesta hermenêutica das raízes da prática,
anotar as manifestações exteriores, sejam elas comportamentos o
discursos (nomeadamente, discursos que auto-representem os ei
tados de espírito), descrevê-los com todo o detalhe e fidelidade e,
partir daí, tentar identificar as disposições espirituais aí embebida
a origem dos sentidos autênticos das práticas 7778. Mas, dada a nã
77 A expressão "forte" sentidos autênticos da prática significa que não se adi
re aqui a concepções da história, para as quais é o historiador que dá o sei
tido autêntico aos actos hum anos, reconduzindo-os ou a um a cadeia esc;
tológica de tipo providencialista/finalista, ou a um encadeam ento causal d
tipo cientista; mas não pretende criar ilusões quanto à validade final do c<
nhecimento histórico, com o se conclui da nota seguinte.
78Cf. (no mesmo sentido de um trabalho, não de reconstituição dos sentimento
mas de leitura das formas simbólicas - palavras, imagens, instituições, compo
tamentos - a partir das quais as pessoas se vêem umas às outras) Geeríz, 1986;
75. Esta proposta apresenta, evidentemente, problemas epistemológicos sér
os, pois não é fácil encontrar um fundamento, neste plano, para o optimism
de se conseguir atingir esse nível irredutivelmente individual em que se fund
cada acção. Os problemas atenuam-se se se orientar a pesquisa, não para c
puros proposita in mente retenta (as disposições puramente interiores), mas par
estados de espírito "d e algum modo objectivados" em discursos ou comporte
mentos, de modo a possibilitar, por um a espécie de procedimento reconstrui
vo, a reconstituição de uma disposição espiritual objectiva, que, na verdade, nã
é de ninguém, mas que se induz daquilo que os indivíduos que participam num
cultura depositam nos seus actos externos, comunicativos. Mas os conhecidc
problemas do círculo hermenêutico não desaparecem com isto. Pois esta recoru
tração funda-se nas experiências subjectivas culturais do intérprete... Igua
mente céptico, embora por razões diferentes,
1985.
Cultura Jurídica Europeia
75
correspondência entre os seu mundo mental e o nosso, os resulta­
dos desta empresa são problemáticos. Ao fim e ao cabo, quase não
poderemos fazer mais do que supor que por detrás dos seus actos
estavam intenções diferentes das nossas e, por isso, desconfiar da
aparente continuidade do sentido entre as suas reacções (os seus
comportamentos, os seus escritos) e os nossos.
3 . 2 . 2 . A lite r a tu r a é tic o -ju ríd ic a , c o m o fo n te de
u m a a n tro p o lo g ia p o lític a d a É p o c a p ré -C o n te m p o râ n e a
Se considerarmos, porém, os géneros literários ético-jurídicos específicos da Época Moderna, a probabilidade de os tex­
tos conterem mais do que fantasias ou pios votos aumenta bas­
tante. Porque há quem pense que, se existem vias de acesso para
o impensado social da Época Moderna, a via real de entre todas
elas é justamente a dos textos da teologia, da moral e do direito.
Esta é a posição de Bartolomé Clavero, nas suas repetidas
propostas de uma antropologia da Época Moderna fundada nos
textos jurídicos 79ou, na versão mais recente, também nos tex­
tos teológico-morais 80.
A partir do conjunto de preceitos da literatura ético-jurídi­
ca e do levantamento da lógica política profunda da sociedade
pré-contemporânea que ela permite, obter-se-ia a mesma sen­
sação experimentada por Leonardo Sciascia em relação à socie­
dade siciliana, uma vez descoberta a sua chave mental. As sur­
presas, ao nível das atitudes dominantes, acabam. Tudo se tor­
na lógico e previsível81.
Porquê ?
79 Cf. C lavero, 1985.
80Cf. Clavero, 1991, "P refácio ". O pessim ism o que repassa este texto não de­
riva de dúvidas "locais" quanto ao valor histórico dos textos ético-jurídicos
para a reconstrução do im aginário social moderno, m as d e dú vidas " gera is"
quanto à pertinência de qualquer reconstrução.
81 N o plano pedagógico, isto tem a vantagem de permitir a substituição de uma
exposição atom ista da história institucional, em que cada instituição é des­
crita de per si, por um a exposição dos grandes quadros da cultura instituci­
onal subjacente.
76
António M anuel H espanha
Desde logo, a teologia moral e o direito constituem, até ao
século XVIII, os saberes mais importantes relativos ao homem
e à sociedade. Saberes prolixos, de mais a mais. Basta um relan­
ce de olhos sobre a bibliografia dos títulos impressos ao longo
da Época Moderna para nos darmos conta do domínio esmaga­
dor destes saberes no conjunto do teatro dos conhecimentos.
Na verdade, a teologia moral e o direito representam, na
Época Moderna, uma tradição longamente sedimentada. Ou
seja, uma tradição na qual se recolhem esquemas culturais de
representação do homem e do mundo muito experimentados e
consensuais. A contínua discussão intelectual de um mesmo
universo literário pusera à prova a consensualidade das inter­
pretações e das leituras e a adequação destas aos dados vividos.
Por outro lado, o mesmo carácter provecto da tradição fi­
zera com que ela tivesse embebido os esquemas mais fundamen­
tais de apreensão, instituindo grelhas de distinção e de classifi­
cação, maneiras de descrever, constelações conceituais, regras
de inferência, padrões de valoração. Esquemas que se tinham
incorporado na própria linguagem; que se tinham tomado co­
muns numa literatura vulgar ou em tópicos e brocardos; que se
exteriorizavam em manifestações litúrgicas, em programas iconológicos, em práticas cerimoniais, em dispositivos arquitectó­
nicos. E que, por isso, tinham ganho uma capacidade de repro­
dução que ia muito para além daquela que decorria dos textos
originais em si mesmos. A tradição literária teológica, ética e
jurídica constituía, assim, um habitus de auto-representação dos
fundamentos antropológicos da vida social. Neste sentido, a sua
acção conformadora antecedia mesmo qualquer intenção nor­
mativa, pois inculcava um conjunto de esquemas intelectuais
profundos que acabavam por modelar a totalidade apreensão
da vida social.
Porém, esta literatura era tudo menos puramente descriti­
va, tudo menos a-normativa. A sua carga preceptiva era enor­
me, tanto porque as suas proposições apareciam ancoradas, ao
mesmo tempo, na natureza e na religião, como porque a sua in­
tenção não era descrever o mundo, mas transformá-lo. De fac-
Cultura Jurídica Europeia
77
to, o que aparece descrito nos livros de teologia e de direito apa­
rece ou como dado inevitável da natureza ou como dado invio­
lável da religião. Os estados de espírito dos homens (affectus), a
relação entre estes e os seus efeitos externos (effectüs), eram apre­
sentados como modelos forçosos de conduta, garantidos a mon­
tante pela inderrogabilidade da natureza e, a jusante, pela ame­
aça de perdição.
Estes textos têm, ao nível da sociedade, uma estrutura se­
melhante à do habitus, tal como é concebido por Pierre Bourdieu.
Por um lado, constituem uma realidade estruturada (pelas con­
dições de uma prática discursiva embebida em dispositivos tex­
tuais, institucionais e sociais específicos), que incorpora esque­
mas intelectuais cuja adequação ao ambiente fora comprova­
da 82. Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que
continua a operar para o futuro, inculcando esquemas de apre­
ensão, avaliação e acção.
Tanto os intuitos práticos, como o apelo a valores univer­
sais como a natureza e a religião, favoreciam a difusão dos mo­
delos mentais e pragmáticos contidos nestes textos por auditó­
rios culturalmente muito diferentes do grupo dos produtores.
Para além disso, os ambientes institucionais em que os textos
eram produzidos dispunham de "interfaces de vulgarização"
muito eficazes (a parenética, a confissão auricular, a literatura
de devoção, a liturgia, a iconologia sagrada, para a teologia; as
fórmulas notariais, a literatura de divulgação jurídica, os brocar­
dos, as decisões dos tribunais, para o direito), por meio dos quais
os textos-matriz obtinham traduções adequadas a uma grande
multiplicidade de auditórios.
E este secular embebimento que tomou a moral e o direito
em saberes consensuais. De resto, esta consensualidade em tor-
82Esta é um a vantagem deste corpo literário sobre a tradição literária ficcio­
nal ou puram ente ensaística. E que, aqui, os mecanism os de controle de ade­
quação prática das proposições ou não existem ou têm muito menos força
reestruturante. U m a personagem psicologicamente inverosímil não obriga
necessariam ente o autor a reescrever um a novela.
78
António Manuel Hespari
no das suas proposições fundamentais constituía uma vocação
central destes discursos, que decorria, quer do ambiente em que
eles se desenvolviam, quer das funções sociais que lhes estavam
atribuídas.
Esta vocação para a consensualidade provém, antes de mais, das
próprias condições de produção da tradição literária em que os
textos se incluem. Trata-se, com efeito, de uma tradição que,
durante vários séculos, tinha trabalhado sobre bases textuais
imodificadas e que tinha podido produzir, como que por
sedimentação, as opiniões mais prováveis, i.e., as mais aceitáveis
pelo auditório. Esta sedimentação tinha cristalizado o acquis
consensual em tópicos, brocarda, dieta, regras, opiniones
conimunes. Era aí, portanto, que estavam depositadas as
opiniões mais comuns e mais duráveis do imaginário sobre o
homem
e
a
sociedade.
Mas provinha também da intenção prática a que antes já nos
referimos. A educação pela persuasão não se pode levar a cabo
senão a partir de um núcleo de proposições geralmente aceites.
O carácter consensual deste núcleo de representações
fundamentais não excluía, evidentemente, visões conflituais,
sobre as quais era preciso optar, em vista da formação de uma
regra de comportamento (v., infra, 3.2.3. "Cálculos pragmáticos"
conflituais e apropriações sociais dos discursos.). Porém, o saber
teológico-jurídico tinha desenvolvido métodos de encontrar a
solução justa que, por um lado, deixavam aparecer a pluralidade
de visões conflituais e que, por outro, deixava a opção entre elas
aos consensos possíveis, elegendo a solução aceite mais
geralmente (opinio communis) como a solução provável (embora
não forçosa). Estes processos metodológicos eram, por um lado,
o esquema expositivo da quaestio, ou seja, um esquema lógico
de colocar uma questão controversa, em que estava garantida a
consideração e confrontação das perspectivas possíveis. E, por
outro lado, a combinação da tópica (ars topica) e da opinião
comum, ou seja, do método sistemático de encontrar todos os
argumentos que podiam ser produzidos de uma e outra parte e o
Cultura Jurídica Europeia
79
modo de encontrar aqueles que eram susceptíveis de colher mais
consensos (cf., infra, 5.6.2. "A estrutura discursiva."). Com o re­
positório das quaestiones, o historiador adquire, portanto, um
capital de proposições discutidas (quaestiones disputatae) que dá
conta dos conflitos provenientes de diferentes interpretações /
apropriações dos textos. Com a tópica, acede ao catálogo das
bases consensuais de qualquer discussão, i.e., aos topoi social­
mente aceitáveis. Mas a tópica garantia ainda que a solução fi­
nal, registada para a posteridade como opinião comum, era a
solução mais consensual, tomada de futuro como base de novos
desenvolvimentos textuais.
Quaestio e topica são, assim, dois poderosos mecanismos de
enraizamento dos textos teológico-jurídicos nos contextos sociais,
que transformam estes textos em testemunhos particularmente
fiáveis acerca dos dados culturais embebidos na prática. O lugar
central ocupado pelo imaginário jurídico na representação da
sociedade e do poder são disso uma prova convincente.
Mas não será que justamente este intuito preceptivo da te­
ologia, da moral e do direito prejudica a relevância dos seus tex­
tos como testemunhos das relações sociais? Ou seja, nestes tex­
tos o pathos normativo não os fará estar mais atentos ao dever ser
do que ao ser? Não lhes dará uma coloração mistificadora, "id e­
ológica", que os inutilize como fontes idóneas da história?
Alguns reparos feitos por historiadores à utilização destas
fontes insistem justamente neste ponto.
Para uns, a estas fontes carregadas de intenções seriam de
preferir fontes não intencionais, subprodutos brutos da prática,
como peças judiciais, petições, descrições e memoriais. Ou seja,
textos que não foram escritos para constituir modelos de acção,
mas antes que foram escritos sob a modelação da acção. Para
outros, o decisivo seria o estudo das situações concretas, nas
quais, sob o impacto de interesses momentâneos e efémeros, os
agentes optariam casuisticamente, contextualizadamente, sem
recurso a qualquer modelo valorativo permanente e geral.
Estas objecções, porque são diversas, devem ser abordadas
separadamente.
80
António M anuel Hespanha
Quanto à preferência por "fontes meramente aplicativas"
a "fontes doutrinais", é provável que a preferência pelas primei­
ras, do ponto de vista da sua "fidelidade ao real", repouse num
conceito de ideologia como consciência deformada e do discur­
so ideológico como discurso mistificador, discurso que poderia
ser oposto a outros meramente denotativos, que reproduziriam,
sem mediações, o "estado das coisas". Este conceito de ideolo­
gia não reúne hoje muitos sufrágios, pois não se aceita geralmen­
te que, por oposição ao discurso ideológico, existam discursos
não deformados, dando neutralmente conta da realidade. E, as­
sim, entre um texto explicitamente normativo e um texto apa­
rentemente denotativo, a diferença que existe é apenas a de duas
gramáticas diferentes de construção dos objectos. Porque, afinal,
a realidade dá-se sempre como representação. Com a desvan­
tagem de que, nos discursos não explicitamente normativos, esta
gramática se encontra escondida, encapsulada em actos discur­
sivos aparentemente neutros, ou fragmentada em manifestações
parciais, pelo que as suas explicitação e reconstrução globais
constituem um trabalho suplementar. Até por razões de econo­
mia da pesquisa, vale mais a pena ler o que os teólogos e juris­
tas ensinavam, longa e explicadamente, sobre, por exemplo, a
morte, do que procurar, através da leitura de milhares de testa­
mentos, perscrutar a sensibilidade comum sobre ela.
Já a oposição por alguns realçada entre uma história das
sensibilidades (das mentalidades, das culturas) baseada em "ca­
sos" 83 e uma mesma história feita a partir de modelos doutri-
83Cf. Levi, 1985; Curto, 1994. As posições dos dois autores - que tom am os ape­
nas com o exem plo de correntes mais vastas - são diferentes. Levi insiste no
"casu ísm o"(ou "m icro-h istória") porque acha que, em bora existam valores
ou visões do m undo gerais e estruturadas (por exem plo, um a visão católica
da política, na época m oderna, cf. Levi, 1998), elas são sem pre funcionalizadas ou relativam ente deform adas funcionalizadas pelos agentes, em função
de conflitos sociais concretos. C urto, pelo seu lado, acha que as situações
concretas são tão estruturantes das sensibilidades, dos interesses e das raci­
onalidades, que a referência a quaisquer modelos gerais de sensibilidade ou
de com portam ento reduz inaceitavelm ente a com plexidade do m undo.
Cultura Jurídica Europeia
81
nais estruturados, a questão que se põe é de outra natureza. E
pode ser formulada assim: será que, nos negócios da vidá, há
algum discurso - alguma norma, alguma racionalidade - perma­
nente a orientar a acção das pessoas envolvidas ? Ou não será
que é a situação, o caso, que, na suas características irrepetíveis
e irredutivelmente complexas, constrói os sujeitos da acção (ou
seja, os põe em acção) ? Melhor ainda, os põe em acções, já que a
complexidade das situações e dos sentidos que os contextos en­
volvem é múltipla e inesgotável84.
Uma posição metodológica deste tipo tem consequências
historiográficas diametralmente opostas às que aqui se defen­
dem favoráveis à relevância do discurso ético-jurídico como fon­
te de história social.
A primeira é a de que todas as evocações de quadros ge­
rais de referência - ou horizontes de expectativas, ou quadros
de avaliação, ou padrões de valoração - são deliberadamente
suspensos (ou mesmo definitivamente excluídos). Cultura de
elites, cultura popular, sistemas de crenças, modelos de religio­
sidade, de disciplina, de poder e de resistência, regularidades
disciplinares, quadros institucionais e, evidentemente, sistemas
jurídicos, tudo isto seriam formas de iludir o verdadeiro senti­
do doa actos humanos, justamente porque são modelos gerais
pelos quais a acção individual e concreta nunca se deixa mol­
dar;
A segunda é a de supor, nos actores em situação, uma ca­
pacidade criadora de sentidos ilimitada e arbitrária. Ou porque
se considera não existirem sistemas gerais de referência ("cosmovisões", "modelos do mundo", "horizontes de leitura"), ou
84"[...] os discursos na sua natureza dispersa e fragm entada constituem-se em
fonte de inspiração para as abordagens interessadas em analisar o significa­
do plural dos actos - incluindo os actos de linguagem - considerados políti­
cos [...]. E m esquem a, pode dizer-se que actos, negócios, experiências ou
práticas não poderão separar-se dos significados, representações ou discur­
sos, que os agentes em relação produzem em diferentes situações, necessaria­
mente contingentes" (Curto, Diogo R., cit., cit., p. 2).
82
António Manuel Hespar
porque, ainda que se admita a existência destes, se confere "aos
agentes, aos grupos ou às audiências, uma capacidade de
conferir significados a uma ordem social, a um sistema de
crenças ou a um simples acto, significados que não se encontram
previamente
determinados"
(Curto,
1994,179).
A terceira é a de que, para esta metodologia microscópica, a
única escala de observação é, portanto, a pequena escala - diria
mesmo, a escala 1:1, como na história dos cartógrafos chineses
contada por Jorge Luís Borges -, aquela que reconstrui, de forma
tendencialmente integral, aquela situação concreta que, por sua
vez, constrói os actores, os lances (enjeux) e as estratégias.
A quarta é a de que a interpretação das situações nunca fornece
chaves que ultrapassem essa situação, uma vez que os contextos
são irrepetíveis. Quando muito, facilita "alusões" (que bem se
podem transformar em "ilusões" ...). A reconstrução de um
"objecto geral" - como "cultura política", ou "cultura jurídica" surge assim como um problema metodológico central que fica
por
resolver.
A quinta é que, vista esta irrepetibilidade dos contextos e a
inextensibilidade dos modelos interpretativos, a narrativa
histórica é inverificável. Por muito que se sobrecarreguem os
textos de citações eruditas e de papelada de arquivo, ou por
muito enfáticas, fortes ou mesmo terroristas que sejam as
afirmações dos autores, as conclusões a que chega são apenas
problemáticas e provisórias alusões a sentidos inatingíveis, locais
e
efémeros.
3.2.3. “Cálculos pragmáticos” conflituais e apropriações sociais
dos
discursos
A vocação da literatura teológico-jurídica para chegar a soluções
consensuais, a que nos referimos, não excluía, porém, que na
sociedade moderna convivessem representações diversas dos
valores que, por sua vez, comandavam práticas de sentidos
diversos
ou
até
abertamente
conflituais.
A sociedade moderna não era, evidentemente, uma socie-
Cultura Jurídica Europeia
83
dade unânime. As pessoas não actuavam sempre da m esm a
maneira, mesmo em contextos práticos objectivamente equiva­
lentes. Ou seja, os seus sistemas de apreensão e avaliação do
contexto, bem como os de eleição da acção e de antecipação das
suas consequências não eram sempre os mesmos.
Alguns destes conflitos situam-se a um nível mais superfi­
cial de avaliação e decisão, no seio de um espaço de variação
deixado pelos modelos mais profundos de representação e de
avaliação veiculados pela tradição teológico-jurídica. Ou seja, os
actores sociais tiram partido da própria natureza argumentativa do discurso teo-jurídico, optando por um ou por outro tópi­
co, mais coerente com os outros seus sistemas particulares de
cálculo pragmático (v.g., a mundividência nobiliárquica, a mundividência feminina, a mundividência plebeia).
Estas situações não escapam, porém, a análise discursiva
proposta. Por um lado, estes sub-modelos "tópicos" são apenas
opções possíveis dentro de um sistema de categorias mais pro­
fundo. Pode optar-se pela preferência das "arm as" sobre as "le ­
tras" ou, pelo contrário, pela das "letras" sobre as "arm as" e
construir-se, sobre cada uma das opções, uma estratégia discur­
siva e prática própria. Mas o catálogo dos argumentos a favor
de cada posição e até as formas alternativas de os hierarquizar
estão fixadas num meta-modelo comum que contém as bases
culturais de consenso que, justamente, permitem que as suas
posições dialoguem 85. Ou seja, as diferentes apropriações do
conjunto contraditório de tópicos que integram o sistema discur­
sivo do direito não saltam para fora da sua sistematicidade, a
um nível mais profundo, tal como as posições contraditórias das
partes num processo não destruem as normas de decisão pro­
cessual 86.
Não cremos, no entanto, que seja prudente erigir o mode-
115M as que, por exem plo, exclui um a discussão do m esm o género sobre a pre­
ferência do estado "n ob re" e do estado "m ecânico".
86 O u as estratégias opostas de dois jogadores não dessoram o patrim ónio co ­
m um das regras do jogo.
84
António M anuel Hespanha
lo cultural subjacente ao espírito das instituições e da literatura
doutrinal que delas trata como um modelo global, um pouco
como faz Louis Dumont para os quadros mentais subjacentes às
hierarquizações sociais da cultura hindu 87. Existem, evidente­
mente, modelos de representação estranhos ao discurso dos te­
ólogos e dos juristas. Por exemplo, para a época primo-moderna peninsular, o dos chamados "políticos" (basicamente, inspi­
rados em Maquiavel), fundado em valores (como o da oportu­
nidade ou da eficácia, concebidas como adequação a um único
ponto de v ista)88que são claramente antipáticos aos fundamen­
tos da imagem da sociedade que enforma o discurso da teolo­
gia moral e do direito.
O discurso dos teólogos e dos juristas apenas permite o
acesso a estas outras constelações cognitivas e axiológicas "dis­
sidentes", na medida em que com elas polemiza. E nem isso,
quando nem sequer é obrigado a polemizar com elas, limitan­
do-se a desqualificá-las pelo silêncio ou pelo desdém 89.
Naturalmente que estes modelos "variantes" (no primeiro
caso) ou "alternativos" (no segundo) devem ser considerados
pelo historiador ao traçar o quadro dos paradigmas de organi­
zação social e política da sociedade moderna.
A sua eficácia em meios sociais determinados deve ser contextualizada. Não necessariamente nos termos de uma contextualização "social", sobretudo atenta aos "interesses" dos gru­
pos, mas de uma contextualização cultural, que tenha em conta
os sistemas cognitivos e axiológicos próprios desses grupos de
que, justamente, decorrem os seus "interesses" 90.
87 Dumont, 1966.
88 V.g., a oportunidade ou eficácia do ponto de vista do interesse da coroa,
deixando inatendidos os pontos de vista de outros interesses, cuja conside­
ração conjunta e equilibrada constituía, precisam ente, a justiça.
89C om o acontece com o "direito dos rústicos", ignorado ou referido depreci­
ativam ente com o os usos dos ignorantes ou dos rudes; cf. H espanha, 1983.
90N ote-se que se inverte aqui a costum ada relação entre "interesse" e "rep re­
sentação" (a representação é considerada com o gerando os interesses, e não
o contrário ...) (cf., infra, 3.2.3. "C álcu los pragm áticos" conflituais e apropri­
ações sociais dos discursos.).
Cultura Jurídica Europeia
85
Porém, os respectivos peso e difusão sociais - e, logo, a sua
capacidade para dar sentido (para "explicar") as práticas - des­
tes modelos alternativos de cálculo pragmático devem ser tidos
em conta.
Ora, pelas razões já antes referidas, parece-me que os dis­
cursos alternativos à teologia moral e ao direito são, durante toda
a Época Moderna, francamente minoritários. Não devendo ser
sobrevalorizados quando se trata de descrever condutas massivamente dominantes, são, em todo o caso, muito importantes
para explicar as resistências aos poderes estabelecidos e, tam­
bém, os processos de ruptura e desintegração do universo cul­
tural moderno que conduzem à substituição pelo universo cul­
tural contemporâneo.
Se não bastasse o argumento da impossibilidade (e inutili­
dade epistemológica) de uma história feita assim, à escala 1:1,
algumas considerações do número seguinte poderão responder
às alegadas dificuldades de uma história que tome por base "vi­
sões do mundo" ou "modelos estruturados e acção", como os
que é possível reconstruir com base na literatura ético-jurídica.
3 . 2 .4 . T e x to e c o n te x to . M o d e lo s p o lítico s e c o n d ic io n a lis m o s
p rá tic o s . A so cio lo g ia h is tó r ic a d a s fo rm a s p o lítica s
Alguma historiografia opõe, como se vê, a uma história dos
modelos de acção - sejam eles éticos, jurídicos ou, genericamen­
te, culturais (se é que a distinção faz sentido) - aquilo a que se
poderia chamar os "condicionalismos práticos", as "situações
concretas", os "interesses da vida", as "condições objectivas" ou
a "força das coisas".
Com qualquer destas expressões pretende-se referir cir­
cunstâncias "objectivas", "forçosas", que se impõem ou condi­
cionam a avaliação e livre decisão dos sujeitos "em situação":
os seus interesses objectivos, a lógica da realidade, uma manei­
ra de agir ou de reagir disparada pelo contexto concreto.
Apenas queria insistir em que, por um lado, os contextos
da acção são sempre subjectivamente avaliados, que os interes­
ses decorrem de traçados pessoais de estratégias, enfim, de op-
86
António Manuel Hespa
ções; e que, por outro lado, as "coisas" têm a força que os
sujeitos lhes decidem atribuir. A perspectiva aqui proposta
visa, justamente, reagir contra várias formas de mecanicismo
objectivista que tendem a explicar a acção humana a partir de
um jogo de determinantes puramente externas, sejam elas a
necessidade fisiológica, as leis do mercado, os ritmos dos
preços, as curvas de natalidade ou as estruturas de produção.
Insistimos, pelo contrário, em que as práticas de que a história
se ocupa são práticas de homens, de alguma forma decorrentes
de actos de cognição, de afectividade, de avaliação e de volição.
Em qualquer destes níveis da actividade mental pressuposta
pela acção se encontram momentos irredutíveis de escolha, em
que os agentes constróem versões do mundo exterior, as
avaliam, optam entre formas alternativas de reacção,
representam os resultados e antecipam as consequências
futuras. Todas estas operações pertencem à esfera do mundo
interior. São operações irredutivelmente intelectuais, baseadas
em representações construídas pelo agente, eventualmente a
partir de estímulos (de muito variada natureza) recebidos do
exterior. No entanto, estes são reprocessados por mecanismos
puramente intelectuais, constituídos por utensílios mentais
como grelhas de apreensão e de classificação, sistemas de
valores, processos de inferência, baterias de exemplos, modelos
típicos de acção, etc. Enfim, tudo representações. Quando, por
exemplo, Karl Polanyi insiste no carácter "antropologicamen-te
embebido" do mercado não está a salientar outra coisa senão
que as "leis do mercado" não constituem lógicas de
comportamento forçoso, decorrentes ou de uma lógica das
coisas ou de uma razão económica, mas modelos de acção que
se fundam sobre sistemas de crenças e de valores situados
numa cultura determinada (de uma época, de um grupo social)
91. Do mesmo modo, quando M. Bakhtin defende que o mundo
não pode ser apreendido senão como um texto 92 e que,
portanto,
a
Polanyi, 1944 (apreciação recente, Fazio, 1992, maxime,
91
107-116).
92
Cf., sobre esta ideia de pan-textualidade, Bakhtin,
Zyma,
1980
(cap.
"Gesellschaft
als
Text").
Cultura Jurídica Europeia
87
relação entre "realidade" e representação tem que ser necessa­
riamente entendida como uma forma de comunicação intertextual, está apenas a insistir nesta ideia de que todo o contex­
to da acção humana, ao qual esta acção necessariamente res­
ponde, é algo que já passou por uma fase de atribuição de sen­
tido.93 A realidade, ao ser apreendida como contexto de acção
humana, foi consumida pela representação.
Há, porém, uma ideia que convém ainda salientar, agora
para afastar qualquer tipo de idealism o ou de essencialismo
psicologista. Estas raízes mentais da prática não são inatas, mas
externamente dependentes. As operações intelectuais e emo­
cionais comportam momentos de relação com o mundo exte­
rior (a que alguns chamam momentos cognitivos). Nesta me­
dida, a mente está sujeita a processos de incorporação de da­
dos ambientais, processos a que, sim plificadam ente, cham arí­
amos "d e aprendizagem" - ou, mais radicalmente, no sentido
de um construtivismo proposto, por exemplo, por Humberto
Maturana ou por Niklas Luhmann - , 94 "d e construção" ou de
auto-poiesis.
E é justamente a ideia de existência de tais quadros mentais
de avaliação (de tais "horizontes de leitura" das situações, de tais
"guiões" [scripts, Schank, 1977] de acção) que exclui a ilimitada
liberdade de escolha, de opção, de justificação, de discurso, dos
agentes em situação, pressuposto por alguns dos defensores mais
radicais do método dos case studies ou (hiper) micro-história.
Mas esta mesma ideia de que há modelo intelectuais (ou de
sensibilidade) que condicionam a acção humana, a montante
mesmo dos circunstancialismos externos leva também a uma
posição crítica em relação a uma boa parte das tentativas de in­
terpretação sociológica das formas políticas e jurídicas (nomea­
93 Que a transform ou em "te x to "; ou seja, em realidade significativa, dom ina­
da por um código.
94M aturana, 1979,Hejl, 1978, Luhm ann, 1 9 8 2 ,1 9 8 4 ]. Boa introdução ao sistem ism o construtivo em Schmidt, 1988. P ara o direito, Teubner, 1993.
88
António M anuel Hespanha
damente, "Estado m oderno",95 "liberalism o", etc.). Na verdade,
descontando já a simplificação brutal a que muitos dos mode­
los obrigam (mas que poderá ser conatural a qualquer tentativa
de modelização), a contextualização que aí normalmente se faz
das formas políticas e jurídicas consiste em inseri-las em ambi­
entes económicos, geo-demográficos, tecnológicos, militares.
Ausente está quase sempre o contexto específico deste univer­
so de entidades mentais que constituem a forma de "ler", repre­
sentar, imaginar, as relações de poder, pois este contexto espe­
cífico é formado por outras representações mentais, vizinhas ou
a montante. E, por isso mesmo, tudo se passa, nesses ensaios,
como se as condições externas agissem directamente, por um
processo não explicado e dificilmente explicável, sobre as dis­
posições interiores dos agentes políticos.
3 . 2 . 5 . I n te r p r e ta ç ã o d e n s a d o s d is c u rs o s ,
h is tó ria d o s d o g m a s e h is tó ria d a s id e ia s
Em que é que se distingue, então, este processo de interpre­
tação, dirigido sobretudo aos textos dos métodos das discipli­
nas tradicionais neste domínio, como a história das ideias (polí­
ticas)96ou a história dos dogmas (jurídicos)?
Justamente numa atitude que aquelas não cultivavam e que
é central nesta última - o "distanciamento" (Entfremdung) do his­
toriador em relação ao seu objecto de estudo. Na verdade, a crí­
tica mais pertinente que se pode fazer à história jurídica tradici­
onal não é tanto a do seu form alism o, mas sobretudo a do seu
dogmatismo. Enquanto que o primeiro pode mesmo constituir
uma atitude positiva, no sentido de salvaguardar a autonomia
95Para uma visão panorâmica actualizada, v. Biockmans, 2993, maxime os artigos
de Wim Biockmans; G. Galasso; Ch. Tilly; M. Bentley; W . Weber; R. Evans; P. F.
Albaladejo; e C.-O. Carbonell. Eu próprio, já ensaiei tentativas do género, tanto
no artigo "O Estado absoluto. Problemas de interpretação histórica", em Estu­
dos de homena-gem ao Prof. ].]. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1978; como no manual
História das instituições [..], 1982, maxime, 1 0 7 ss. e 187 ss. (Hespanha, 1982b).
96Sobre um a visão do que hoje é corrente fazer-se em "história das ideias",
Duso, 1999; Pocock, 1972; Kosellek, 1975; Kelley, 1990.
Cultura Jurídica Europeia
89
do nível jurídico-institucional e de evitar cair em determinismos
redutores, o segundo impede toda a contextualização histórica,
pois as instituições ou os dogmas doutrinais aparecem como
modelos necessários (e, logo, a-históricos) decorrèntes da natu­
reza das coisas ou da evidência racional. Em contrapartida, a
orientação proposta, ao relativizar os modelos jurídico-institucionais, convida a uma sua perspectivação histórica, a uma sua
leitura no contexto da história das formas culturais e, naturalmen­
te, do enraizamento destas em contextos práticos .97
Pode acrescenta-se, ainda, que a história das ideias cultiva
uma centralidade do sujeito (do "autor") que está completamen­
te ausente da perspectiva aqui proposta. Ao sujeito substituiuse o discurso, os contextos discursos, a força dos textos como
esquemas que modelam a percepção e a avaliação dos autores,
os próprios dispositivos materiais de comunicação (a forma
impressa, o modelo de paginação, etc.). Nada pode estar mais
longe da concepção tradicional de que o autor era decisivo na
compreensão da história dos saberes.98
3.3. Uma nota sobre “relativismo metodológico” e “relativismo
moral” e sobre o papel dos juristas, neste contexto
"To think sociologically can render us more sensitive and
tolerant o f diversity... thus to think sociologically means
to understand a little more fully the people around us in
terms o f their hopes and desires and their worries and
concerns."
(Zigmunt Bauman & May,
Thinking Sociologically, Blackwell, 2001,11).
97 Para um m odelo de contextualização, que ainda me parece razoavelmente
válido, do discurso jurídico, v. Hespanha, 1978a. Há um a certa proxim ida­
de entre o modelo aqui proposto e o modelo da Begriffsgeschichte, de O Brun­
ner, W. Conze e, sobretudo, R. Koselleck (sobre o qual, por último, Com i,
1998, M azza, 1998 e Duso, 1999.
98Com o já se disse, confluem aqui tópicos que vêm de Foucault, de Bakhtin,
de Luhm ann, de M cKenzie ou de Chartier.
90
António Manuel Hespari
Este livro foi concebido como um manual, destinado à formação
de estudantes de direito. Por isso, não é descabido que -ao terminar
uma introdução metodológica bastante corrosiva para as certezas que
nos confortam a todos, mas, antes de todos, costumam confortar os
juristas -, se abordem as consequências ético-profissionais destas
posturas metodológicas.
Postas as coisas em termos correntes, o que nesta introdução se
insinua sobre o direito (e mesmo sobre a história) identifica-se com
um bastante acentuado relativismo: não há valores permanentes,
sendo a justiça ou injustiça das situações produto de avaliações
(leituras) "locais" ou "contextuais". Não há um progresso histórico,
fluindo a história em geral (e a história jurídica, em particular)
segundo um percurso marcado pelo arbitrário das rupturas. Nem,
em rigor, há um conhecimento "verdadeiro" do passado, pois a
história é uma permanente construção e reconstrução dos seus
objectos pelo olhar do historiador.
No meio de toda esta incerteza sobre o justo e o verdadeiro, parece
não sobrar espaço para qualquer projecto de "racionalização" ou
"rectificação" da sociedade, tão típicos da política do direito e das
intenções dos juristas. Será assim, de facto ?
A primeira observação que deve ser feita é que do que aqui se trata é
de um "relativismo metodológico”. Ou seja, da crença de que é
aparentemente impossível fundamentar os valores jurídicos na
"natureza", na "razão" ou na "ciência". Mas já não se afirma que não
se possam fundamentar na crença (nomeadamente, nas crenças
religiosas; mas também nas convicções polí-tico-ideológicas), no
senso comum, na tradição.
A segunda observação a fazer é a de que este tipo de relativismo
metodológico é muito antigo e tem sido muito permanente na
tradição cultural europeia, sendo hoje largamente partilhado pela
teoria das ciências, e não apenas das ciências sociais. Realmente, as
próprias ciências físico-naturais abandonaram a ideia de verdade
(como correspondência com uma realidade exterior fixa, adequcitio
intelelectus rei, i.e., o conhecimento como cópia intelectual de coisas
exteriores) pelas ideias de "coerência interna", de "paradigma" (como
modelo [mutável] de saber), de "universo de crenças", de "eficácia ou
elegância explicativas".
Cultura Jurídica Europeia
91
E, no entanto, nem no passado, nem nos dias de hoje, dei­
xou de haver juízos éticos, empenhamentos científicos e compro­
missos políticos, mesmo da parte daqueles que assumem estes
pontos de vista relativistas.
É que o relativismo metodológico não impede a adesão
pessoal a valores, nem enfraquece a força desta adesão. Como
também não prejudica a observância de regras metódicas con­
vencionais (ou geralmente aceites) de investigação. Nem, por
fim, constitui um obstáculo à aceitação pragmática de valores
consensuais. Tudo reside, afinal, no modo como se entendem
esses vários padrões de conduta.
Realmente, as certezas que nos fazem mover não têm que
ser certezas verificáveis pelo método cien tífico. Algumas das
mais fortes e quotidianas - como os afectos, a fé, os gostos, as
regras dos jogos - são impossíveis de fundar em certezas objec­
tivas e partilháveis. E, no entanto, impõem-se, subjectivamen­
te, com uma força capaz de se ser capaz de morrer por elas. São
as tais razões do coração que a razão desconhece e que fazem
com que, - paradoxalmente, como refere Zygmund Baum an
(Bauman, 1993) - mesmo numa era de grandes incertezas (como
a nossa), nas grandes questões pessoais normalmente não tenha­
mos grandes dúvidas.
Assim, o relativismo metodológico não tem nada a ver com
o relativismo moral e, longe de constituir um factor de dissolu­
ção e permissividade, esta atitude metodológica contém uma
forte carga ética."
Em primeiro lugar, pelo que comporta de risco pessoal. Os
valores afirmados por cada um, na base da sua experiência subjec­
tiva, constituem uma "opção", um "lance", um "risco", para o qual
não temos nenhuma garantia objectiva. A responsabilidade por eles
recai totalmente sobre nós e por eles teremos que responder sem
quaisquer álibis (como a Ciência, a Verdade, o Direito Natural...).
Por isso é que, do ponto de vista ético, o relativismo promove a co" E m contrapartida, as atitudes baseadas em valores necessários são eticam en­
te tão pobres com o aquelas que "to m am o s" por constrangim entos físicos ou
fisiológicos (respirar, com er, andar com os pés assentes na terra).
92
António Manuel H espanha
ragem e a autoresponsabilização na afirmação dos valores de cada
um. E obriga, evidentemente, a cautela e reflexão dobradas sobre
as opções ou propostas pessoais.100 No caso concreto dos juristas,
sobre as avaliações quanto à justiça ou injustiça das situações ou
sobre as propostas quanto à política do direito.
Em segundo lugar, o relativismo metodológico constitui um
princípio de tolerância. As opções e os valores são apenas evidên­
cias pessoais. Não se podem impor. Nem se podem fazer passar
por algo mais do que aquilo que são. Nomeadamente, não se po­
dem apresentar como valores universais ou naturais, desqualifican­
do os dos outros como "errados" ou "anormais". E justamente esta
exclusão da certeza objectiva que deixa espaço para a afirmação das
certezas subjectivas, de que já se falou. De tal modo que, num mun­
do que cultive este relativismo metodológico, não seja, de facto,
preciso que ninguém "morra pelas suas crenças". Na história do
direito, como se verá, as épocas dominadas pela ideia de uma ra­
zão única e unidimensional foram épocas de violência (explícita ou
surda, estadual ou difusa) sobre a pluralidade das razões de cada
um, de violência do direito sobre os direitos (cf. Ciavero, 1991). O
que se explica bem: porque se se crê que há possibilidade de pro­
var a existência de valores humanos naturais - isto comuns a to­
dos os seres dotados de natureza e razão humanas -, então todos
os dissidentes desses valores ou não são homens ou, sendo-o, são
irracionais (dementes, anormais). E, de facto, o discurso sobre a
demência dos dissidentes tem uma história trágica e recente, e não
apenas na ex-União Soviética. Resta acrescentar - para que nos
demarquemos de algum "liberalismo totalitário" que quer à força
educar toda a gente a ser liberal (tal como entendem a palavra, cla­
ro está) - que a violentação das consciência não provém apenas do
Estado, através da lei; pode provir também da sociedade, através
da imposição de cânones opressivos de comportamento (regras "de
pensar" e de "actuar politicamente", regras "de decência", regras
"de trato", "de vestir", "de falar", etc.).
Finalmente, o relativismo, se é o fundamento da tolerância,
' “ P a ra utilizar u m expressão de B oaventura Sousa Santos, prom ove u m a " ra­
zão màoYetvte" (Santos, 2000).
Cultura Jurídica Europeia
93
é também o fundamento do diálogo, pois a aquisição de posi­
ções comuns, que permitam a convivência das diferenças indi­
viduais, só pode ser obtida pelo confronto de opiniões, pela tran­
sacção de compromissos, pelo ganho de consensos, abertos,
pragmáticos e provisórios.
Mas, sendo assim, que lugar fica para o direito, para a im­
posição de valores de convivência social? Embora esta seja uma
questão que não pertence ao campo da história do direito, o tema
será debatido nas últimas páginas do livro, a propósito da cul­
tura jurídica contemporânea.
Apenas se adianta um princípio de reposta.
A convivência exige a existência de um mínimo de regras
comuns.
Estas devem ser, por um lado, consensuais. E, quanto a isto,
os problemas que se colocam não são poucos. Consensuais, não
quer dizer, por um lado, únicos, simplificadores da variedade
social, opressores da liberdade dos indivíduos ou dos grupos
que compõem a sociedade. Consensuais, quer dizer, desde logo,
que foram objecto de uma negociação política, em que todos ti­
veram a oportunidade de participar de forma equilibrada, ou
seja, com a igual possibilidade de exprimirem os seus pontos de
vista e com a igual oportunidade de serem atentamente ouvi­
dos. Estas condições não se realizem automaticamente, ou seja,
não se verificam sem uma intervenção da "república" no senti­
do de "melhorar as oportunidades de vida e de maximizar a li­
berdade humana" (Bauman, 2001,140, citando Jeffrey Weeks).
Consensuais, não quer dizer, por outro lado, "plebiscitários",
obtidos por qualquer meio empobrecido 101 de sondagem da opi­
101Com empobrecido quer-se dizer qualquer meio que não corrija o desenraizamento, a atom ização, a desorientação, a superficialidade, dos indivíduos
na actual sociedade massificada, im ersa no excesso e consequente relativização e indiferença da inform ação. Neste sentido, pobres são os referen­
dos ou eleições partidocráticos, as sondagens de opinião, a m edida das
audiências televisivas. Ricos serão, em contrapartida, todas as formas de
discussão política substancial, informada, que coloque as pessoas face a face
e as provoque a um a discussão política profunda sobre temas que abar­
quem, mas dos quais se possa partir conscientemente para generalizações.
94
António Manuel Hespar
nião pública, que ratifique, no plano político, o estilhaçamento
individualista da sociedade. Porque isto não conduz a um reforço da
autonomia individual, mas antes à desorganização dos indivíduos
perante forças que, essas sim, permanecem organizadas, à expressão
individualizada das angústias e da insegurança, não atendendo às suas
raízes sistémicas m. Consensuais, quer dizer obtidos a partir da
multiplicidade dos pontos de vista pessoais, entendidas como pontos de
vista sobre o bem comum, mas seguidas de uma discussão política
"substantiva", que confronte essas perspectivas e as avalie
dialogicamente.
Por outro lado, devem ser minimamente substanciais (quase
integralmente processuais), para deixarem conviver valores diversos.
Por outro lado, devem ser tidos como provisórios, susceptíveis de
revisão e, eventualmente, não monótonos na sua aplicação, ou seja,
variáveis de acordo com um cuidada interpretação de cada situação 103.
102Cf., ainda aqui, Bauman, 2001,125 ss. (numa suma de todo o livro
[que, por sua vez, já condensa o que ele escrevera em The individualized
society, 2001), sobre a individualização como ("cada um por si") como a
condição para exercício de novas formas de poder e de dominação e
sobre as políticas públicas dirigidas para a satisfação das ansiedades
individuais como "to seek biographical solutions to sistemic
contradictions"
(cita
Ulrich
Beck).
103 A proposta permanece, evidentemente, um pouco vaga. No intuito
de a esclarecer um pouco, volto a recorrer a Z. Bauman, na sua descrição
do processo de encontrar valores comuns: "[It] implies the solidarity of
explorers: while we all, singly or collectively, are embarked on the
search for the best form of humanity, since we would all wish eventually
to avail ourselves of it, each of us explores a different avenue and brings
from the expedition some-what different findings. None of the findings
can a priori be declared worthless, and no earnest effort to find the best
shape for common humanity can be discarded in advance as misguided
and undeserving of sympathetic attention. On the contrary: the variety
of findings increases the chance that fewer of the many human possibilities will be overlooked and remain untried. Each find-ing may benefit
all explorers, whichever road they have themselves chosen. It does not
mean that all findings are of equal value; but their true value may only
be established through a long dialogue, in which all voices are allowed
to be heard and bona fide, well-intentioned comparisons can be
conducted.
In
wer
words,
recognition
of
cultural
Cultura Jurídica Europeia
95
Perante princípios deste género, os juristas têm dois impor­
tantes papéis a desempenhar.
Por um lado, os juristas, como especialistas, têm garantir a
vigência destes princípios - a que chamaremos constitucionais
- contra a sua deterioração quotidiana.
Sem prejuízo de que se trata de princípios mutáveis e aber­
tos, eles constituem um núcleo muito firme de regras de convi­
vência, cujo estabelecimento (positivação, constitucionalização)
foi rodeado de uma série de cautelas, destinadas justamente a
garantir que eles exprimem o sentido comum da "república". A
sua alteração é possível, mas deve obedecer a processos igual­
mente cuidadosos. Não pode, em contrapartida, decorrer de ju-
variety is the beginning, not the end, of the m atter; It is but a starting point
for a long and perhaps tortuous, but in the end beneficial, political process"
(Baum an, 2 0 0 1 ,1 3 5 /1 3 6 ). Não creio que isto ande muito longe, na intuição
e nos resultados, do processo proposto por G. Zagrebelsky, em II diritto mite,
2000): "L'insiem e dei principi costituzionali [...] dovrebbe costituire u n so rta
di "senso com une" dei diritto. II terreno d'intesa e di reciproca com prensione in ogni discorso giuridico, la condizione per Ia risoluzione dei contrasti attrav erso la discussione invece che attra v e rso la sopraffazione. Essi
dovreb-bero svolgere il ruolo degli assiom i nei sistemi dom inati dalla ló­
gica form ale. Ma, m entre questi ultimi restano quelli che sono, fino a tanto
che si resta nel medesimo sistema, nelle scienze pratiche i loro assiomi, com e
il senso com une nella vita sociale, sono soggetti al lavorio dei tem -po [...]
La pluralità dei principi e dei valori cui rinviano è 1'altra ragione di im pos­
sibilita di un formalismo dei principi. Essi non si strutturano, di regola, secondo una "gerarch ia dei valori" [...] La pluralità dei principi e 1'assenza di
una gerarchia formalmente determ inata com porta che non vi possa essere
una scienza delia loro composizione ma una prudenza nel loro bilanciamento. La "p ratica concordanza" cui si è falto cenno, o la "pesa dei beni giuridici indirizzata al princípio di proporzionalità" (Güterabwügung ausgerichtete am Verhãltnismassigkeitgrundsatz) di cui parla Ia dottrina tedesca rientrano in questa prospettiva. Ma, per quanti sforzi le giurisprudenze costituzi­
onali abbiano fato per form alizzare i procedim enti logici di questo bilanciam ento i risultati - dal punto di vista di una scientia juris - sono deludenti.
Forse, 1'unica regola formale di cui si può p arlare è quella delia "ottim izzazione" possibile di tutti i principi; m a com e ottenere questo risultata è ques­
tione em inentem ente pratica e "m ateriale" (Zagrebelski, 1 9 9 2 ,1 7 0 -1 7 1 '.
96
António M anuel Hespanha
ízos de oportunidade conjuntural de uma maioria no poder; nem
de inorgânicos, pouco testados e emocionais movimentos de
opinião pública. Aos juristas cabe, esta vigilância para que o es­
trutural e permanente não flutuem ao sabor do conjuntural e
momentâneo. Isto envolve, por sua vez, duas tarefas. A primei­
ra é da identificar, de entre os valores emergentes, quais corres­
pondem ou (i) a meras reivindicações de uma parte da socieda­
de (de um grupo contra o todos; dos restantes grupos (" do todo)
contra um grupo 104; ou (ii) a valores efémeros (por exemplo, o
desejo exacerbado de segurança que acompanha um estado de
insegurança social); ou (iii) a valores oportunistas dos que go­
vernam (v.g., a necessidade de fazer reformas deve justificar a
omissão das formas constitucionais; os garantes da legalidade
são "forças de bloqueio", para utilizar uma expressão recente­
mente em voga).
Esta tarefa de fixar normas de convivência e de bom gover­
no é ainda mais importante no mundo de hoje, em que a globa­
lização (em termos espaciais) e a super-abundância e frenética
sucessão dos sentidos (em termos tem porais)105criou, partir da
diferença dos valores, uma indiferença sobre os valores. Ao mes­
mo tempo que, no plano da normação social, a ilusão da livre
escolha fez com que a sedução e a tentação se tendam a substi­
tuir à normação (Pierre Bourdieu). Como observa Z. Bauman glosando a "retirada de Deus" da explicação da ordem do mun­
do, operada pelos nominalistas e pelos humanistas (cf., infra, 4.3.
"A dissolução do corporativismo e o advento do paradigma in­
lw A diferença é que os "restan tes grupos" não form ulam a sua reivindicação
num sentido generalizável, que possa incluir m esm o o grupo visado. Por
exem plo, podem ser opostos aos hom icidas os valores de todos os que o
não são, porque estes valores aproveitaram aos próprios hom icidas. Podem
ser opostos aos que fogem ao fisco os valores dos que p ag am impostos,
porque o p agar im postos reverte a favoT de todos. ]á os valores racistas da
maioria não p odem ser opostos a um a m inoria, porque esta n ão aproveita­
ria deles.
1(6O zapping dos valores tem u m a certa similitude com o zapping dos canais de
televisão ...
Cultura Jurídica Europeia
97
dividualista.") é como se a sociedade deixasse de contar na re­
gulação social (etiamoi sociatem non esse), tudo ficando entrega a
uma anárquica, fugaz, superabundante e irreflectida profusão
de valores (Bauman, 2001,130 ss.).
Cabe, então, aos juristas re-enraizar as pessoas em valores
comuns e reconstruir, assim, a ordem social (e o sentido de co­
munidade e de segurança).
A especial legitimidade dos juristas para levar a cabo este
diagnóstico decorre, da sua especialização técnica; mas, sobre­
tudo (ou exclusivamente) se esta incidir sobre o "direito em so­
ciedade", pois só a consideração da técnica jurídica e do conhe­
cimento da sociedade podem abalizar a uma avaliação correcta
dos valores a eleger como valores constitucionais. A referência
ao "direito em sociedade" envolve também a consciência do
próprio reconhecimento da inserção social dos próprios juristas
e da natureza politicamente determinada (em vários planos) do
seu discurso.
Por outro lado, cabo aos juristas procurar estabelecer roti­
nas para aplicação destes princípios. Ou seja, ir testando sequ­
ências de processos e de raciocínios (regulae artis) que garantam
maior probabilidade na boa aplicação desses princípios jurídi­
cos. Distinguindo situações, interpretando casos, testando a apli­
cação de regras, formulando conceito que sintetizem resultados
adquiridos. Sempre tendo presente a ideia de que todos estes
processos e conceitos são provisórios, não tendo, tão pouco, um
sucesso garantido no enésimo caso (o cão futuro, não experimen­
tado).
4- 0
IMAGINÁRIO DA SO C IED A D E E DO PO D ER
4.1. Imaginários políticos
Uma concepção ingénua do direito tende a vê-lo apena
como um sistema de normas destinadas a regular as relaçõe
sociais, assegurando aqueles padrões mínimos de comporta
mento para que a convivência social seja possível. Neste senfc
do, o direito limitar-se-ia a receber valores sociais, criados pc
outras esferas da actividade cultural e a conferir-lhes uma forç
vinculativa garantida pela coerção.
Na verdade, a eficácia criadora {poiética) do direito é muit
maior. Ele não cria apenas a paz e a segurança. Cria, tam bén
em boa medida os próprios valores sobre os quais essa paz
segurança se estabelecem. Neste sentido, o direito constitui um
actividade cultural e socialmente tão criativa como a arte, a ide
ologia ou a organização da produção económica.
De facto, antes de a organizar, o direito im agina a socie
dade. Cria modelos m entais do homem e das coisas, dos vín
culos sociais, das relações políticas e jurídicas. E, depois, pau
latinamente, dá corpo institucional a este im aginário, crian
do também, para isso, os instrum entos conceituais adequa
dos. Entidades como "p essoas" e "co isas", "h om em " e "m u
lher", "contrato", "E sta d o ", "soberan ia", etc., não existirar
antes de os juristas os terem im aginado, definido conceitua]
mente e traçado as suas consequências dogmáticas. Neste sen
tido, o direito cria a própria realidade com que opera. O "fac
to" não existe antes e independentem ente do "d ire ito ". O
"casos ju ríd icos" têm realm ente muito pouco a ver com o
"casos da v id a", com o aliás se torna evidente logo que s
transpõem as portas de um tribunal ou do escritório de un
advogado.
O grande poeta inglês P. B. Shelley (1792-1822) não debcoi
de intuir este aspecto essencialmente criativo do direito, ao de
100
António M anuel H espanha
finir as grandes construções políticas e jurídicas romanas como
obras primas da tradição poética do Ocidente. E, nos nossos dias,
este aspecto criador do direito e do saber jurídico tem sido des­
tacado, quer por antropólogos como Clifford Geertz,106quer por
sociólogos como Niklas Luhmann.107
É por isto que, ao longo deste curso, a descrição das gran­
des etapas da evolução do saber jurídico no Ocidente é antece­
dida por um panorama do imaginário mais profundo que dá
sentido à criação jurídica. Imaginário que, durante quase toda a
história do pensamento social e político europeu, foi, em gran­
de parte, da responsabilidade dos próprios juristas, como "p o­
etas" e pensadores da sociedade e do poder, podendo ser colhi­
do por uma "interpretação densa" (thick interpretation, C. Geertz)
das suas obras.108
106 " a tom ada de consciência de que os factos jurídicos são fabricados e não
n ascem assim , são socialm ente co n stru íd o s, com o diria u m an tro p ó lo ­
go, p or tod o um conjunto que inclui reg ras de p ro v a, a etiqueta do tri­
bunal e as tradições de acertam en to do d ireito, até às técnicas de a leg a­
ção, a retó rica dos juizes e a escolástica da form ação nas F acu ld ad es de
D ireito [...] [O direito com o] um a form a de im ag in ar o real [...] u m m u n ­
do em que as descrições jurídicas têm um sen tid o " (G eertz, 1986b , 2 1 4 /
215).
107 Sobre este im portantíssim o sociólogo do direito dos nossos dias e a sua con­
cepção do direito com o um sistem a "au to-poiético", v. A m au d , 1993.
'“ Tam bém no sentido da im portância da história dos im aginários políticos,
v., por último, Albuquerque, 2002. A divergência que o A. nota com posi­
ções minhas (cf. p. 19 ss.) - quando eu valorizo a dim ensão institucional, a
ponto de dizer que, perante ela, certas questões teóricas podem perd er a
sua relevância - não é tão significativa com o isso,. Apenas quis então dizer
que, se nas práticas institucionais (do Estado m oderno) certos princípios
doutrinais (com o, por exem plo, o de um a nítida suprem acia do p oder real)
não obtém tradução, estas princípios são inúteis p ara o traçado do m odelo
institucional (do Estado m oderno). Em bora a sua perm anência a nível dou­
trinal se possa sem pre vir a enraizar em instituições (com o, de facto, veio a
acontecer neste caso).
Cultura Jurídica Europeia
101
4 .2 . A concepção corporativa da sociedade
O pensamento social e político m edieval109110é dominado
pela ideia da existência de uma ordem universal {cosmos), abran­
gendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas
para um objectivo último que o pensamento cristão identifica­
va com o próprio Criador.111 Assim, tanto o mundo físico como
o mundo humano, não eram explicáveis sem a referência a esse
fim que os transcendia, a esse telos, a essa causa final (para utili­
zar uma impressiva formulação da filosofia aristotélica; o que
transformava o mundo na mera face visível de uma realidade
mais global, natural e sobrenatural, cujo (re)conhecimento era
indispensável como fundamento de qualquer proposta política.
4 . 2 . 1 . O rd e m e c r ia ç ã o
Numa sociedade profundamente cristã, o próprio relato da
Criação (Génesis, I) não pode ter deixado de desempenhar um
papel estruturante. Aí, Deus aparece, fundamentalmente, dan­
109A descrição dos grandes paradigm as do pensamento político medieval, com
continuidade na Época M oderna, está magistralmente feita por Villey, 1961;
1968 (com o que se pode, em grande parte, dispensar a leitura de clássicos
como Otto v. Gierke ou Émile Lousse). Há, no entanto, outras obras: umas
clássicas (K antorow icz, 1957; Brunner, 1939; Post, 1964), outras de exposi­
ção sistemática (Gilmore, 1941; Bum s, 1997), outras, recentes, m as com re­
visões importantes das questões (Wyduckel, 1984; Bertelli, 1990; Prodi, 1993;
Krynen, 1993; Grossi, 1995; Fioravanti, 1999). Constitui um a síntese elegante,
Dolcini, 1983. W ieacker, 1980 (ou, mais recente e especificam ente, de Stolleis, 1988), tratam dos pensadores políticos centro-europeus da Época Mo­
derna. .
110Para Portugal, as obras de base para a história do pensam ento político-so­
cial m oderno são as seguintes. P ara os séculos XVI e XVII, Albuquerque,
1968 ,1 9 7 4 ; Torgal, 1981. Dispensam, em geral, a consulta de autores ante­
riores. Para o século XVIII, M oncada, 1949; Langhans, 1957; Dias, 1982; Pe­
reira, 1 9 8 2 ,1983. V., ainda, Hespanha, 1992, 71.
111Sobre várias m anifestações dá ideia de ordem no pensam ento político oci­
dental pré-contem porâneo, v. Donnelly, 1998.
102
António Manuel Hespí
do ordem às coisas: separando as trevas da luz, distinguindo o
da noite e as águas das terras, criando as plantas e os anirr
"segundo as suas espécies" e dando-lhes nomes distintos, or
nando as coisas umas para as outras (a erva para os animais,
tes e os frutos para os homens, o homem e a mulher, um pai
outro e ambos para Deus).
Esta narrativa da Criação - ela mesmo resultante de u
antiquíssima imagem do carácter esponttaneamente organi
do da natureza - inspirou seguramente o pensamento so<
medieval e moderno, sendo expressamente evocada por te*
de então para fundamentar as hierarquias sociais. Nas Orde
ções afonsinas portuguesas (1446), esta memória da Criaçã
Ordenação aparece a justificar que o rei, ao dispensar graça
com isso, ao atribuir hierarquias políticas e sociais entre os s
ditos, não tenha que ser igual para todos: "Quando Nosso
nhor Deus fez as criaturas assi razoáveis, como aquelas que
recen da razão, não quiz que dois fossen iguais, mas estab<
ceu e ordenou cada uma em sua virtude e poderio departic
segundo o grau em que as pôs. Bem assim os Reis, que em
gar de Deus na terra são postos para reger e governar o pc
nas obras que hão-de fazer - assim de justiça, como de graç
mercê - devem seguir o exemplo daquilo que ele fez [...]" (C
A f, 1,40, pr.).
Também a filosofia grega e romana confirmavam este
rácter naturalmente organizado do universo natural e huma
Para Aristóteles (384 a.C - 322 a.C.), o mundo estava fi
listicamente organizado. As coisas continham na sua próp
natureza uma inscrição (um gene, por assim dizer) que "m
cava" o seu lugar na ordem do mundo e que condicionava, i
somente o seu estado actual mas também o seu futuro des
volvimento em vista das finalidades do todo. Era este gene c
criava nas coisas "apetites" (affectus, amor, philia) internos c
as encaminhavam espontaneamente para a ocupação dos s<
lugares naturais e para o desempenho das suas funções no to
No caso dos homens, este gene determinava o seu instinto g
gário (affectus societatis), a sua natureza essencialmente polítd
Cultura ] uri dica Europeia
103
o desempenho dos seus papéis políticos no seio de uma socie­
dade organizada em vista do bem comum. Neste sentido, era
legitimo falar de um equilíbrio natural ou de um justo por natu­
reza (dikaión physikon) (cf. Villey, 1968). Os estóicos insistiam na
existência de um poder criador e ordenador (pneuma, logos), que
daria movimeento ao mundo e que o transformaria num mun­
do ordenado (cosmos ).112
O pensamento medieval herda tudo isto, fundindo ambas
as concepções num sincretismo por vezes difícil de deslindar.
Fundamentalmente, na famosa polémica entre "realistas" e "nominalistaas", que domina o pensamento escolástico, o que os
"realistas" querem sublinhar é que da essência das coisas faz
parte a sua natureza relacional, no conjunto do todo da Criação.
Que - em particular -, no mundo humano, não há "indivíduos",
isolados e socialmente incaracterísticos. Mas que há "pais", "fi­
lhos", "professores", "alunos", "hom ens", "m ulheres", "france­
ses", "alem ães", essencialmente relacionados uns com os outros
por meio de pedículos essenciais, predicados, atributos, que os
referiam, por essência, uns aos outros, que os marcavam, por
natureza, como membros determinados da cidacfe, como sujei­
tos políticos.
O direito, como em geral a organização da cidade (grego,
polis), tinham como fundamento a ordem divina da Criação. Por
isso, os juristas identificavam a justiça com a natureza e esta com
Deus. Num célebre texto do Digesto (D.,1,1,1,3) em que se defi­
ne o direito mais fundamental e inderrogável - o chamado "d i­
reito natural" - explica-se que "o direito natural é o que a natu­
reza ensinou a todos os animais" (ius naturale est quod naturn
omnia animalia docuit). E um comentador medieval do texto es­
clarece, numa curta glosa à palavra "natureza", que esta não é
senão Deus (natura, id est Deus). Daí o êxito de um outro texto
do Digesto que definia a prudência (= saber prático) do direito
(que, então, desempenhava o papel de teoria política) como uma
"ciência do justo e do injusto, baseada no conhecimento das coi-
112Villey, 19 6 8 ,4 2 8 -8 0 .
António Manuel Hespanha
104
sas divinas e humanas" (divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia, D, 1,1,10,2). E foi por isso também
que os juristas foram tidos como quase sacerdotes, também na
esteira de um texto do início do Digesto.113
4 . 2 . 2 . O rd e m o c u lta , o rd e m a p a re n te
Para além das concepções reflectidas dos filósofos e dos
juristas, a ideia de uma ordem objectiva e indisponível das coi­
sas dominava o sentido da vida, as representações do mundo e
da sociedade e as acções dos homens. Antes de ser uma norma
de direito formal, a ordem era uma norma espontânea de vida.
Honestidade, honra, verdade e bondade, palavras centrais na
linguagem política e jurídica da época, remetiam para esta ideia
corrente de que o comportamento justo era o que guardava a
proporção, o equilíbrio, o modo (moderação) ou a verdade do
mundo, das personas, das coisas. Viver honestamente - que pas­
sava por ser um dos preceitos básicos do direito (cf. D., 1,1,10,
pr.) - era aderir à natureza das coisas, da ordem natural do mun­
do. Ser honrado era respeitar a verdade das coisas e esta era a
sua natureza profunda, à qual devia corresponder a sua aparên­
cia. Porque o comportamento manifestava a natureza, a hones­
tidade e a verdade eram as qualidades daquele que se portava
como devia, como lhe era pedido pela sua natureza. Assim, o
nobre não se devia comportar como plebeu, se queria manter a
honra. Que a mulher honesta (que respeita a sua natureza) se
devia comportar como tal, sob pena de não ser tida como hon­
rada. E por aí adiante. Ao passo que a bondade - a qualidade
de quem era capaz de intuir o sentido da ordem - era a qualida­
de principal daquele que tivesse o encargo de julgar
113 " O direito é a arte do bom e do equitativo. Pe\o que h á quem nos [aos juris­
tas^ cham e sacerdotes
sobre este carácter quase sacerdotal da profis­
são \und\ca, d . Kyt\\o, 1 9 7 6 a , M l s., com citações muito im pressivas (u.g.,
" m agistratus a O eo positi sunt, düque vocantvir” Vos m agistrados são pos­
tos por D eus e cViamam-se àeu se s\ ,N .T o p iu s,1 6 5 5 y
Cultura Jurídica Europeia
105
Deste imperativo de honestidade e de verdade resulta a
importância atribuída aos dispositivos que visam tomar aparen­
te a ordem essencial das coisas e das pessoas: títulos e tratamen­
tos, trajes "estatutários" (i.e., ligados a um estatuto - clérigo, ca­
valeiro de ordem militar, juiz, notário, mulher honesta, prosti­
tuta), hierarquia de lugares, precedências, etiqueta cortesã. As
cortes e sociedades ibéricas eram justamente célebres pelo seu
pontilhismo formalista e classificatório. A linguagem corrente
das sociedades de Antigo Regime é, por isso, muito rica nas for­
mas de tratameno (de classificação, de hierarquização).114
Condenáveis (mesmo penalmente) era, assim, todas as for­
mas de falsidade: falsificar documentos, moeda, metais ou piedras preciosas, mas também usar nomes o títulos alheios, travestir-se de outro sexo ou de outra qualidade, simular a gravi­
dez. Condenável era também esse tipo de cultura da afectação
e do simulacro conhecida como a dissimulação, que os círculos
intelectuais das cortes italianas (Baldasare Castiglione [14781529], II cortegiano [1528]) propunham agora como modelo de
comportamento áulico (cf. Villari, 1987). Contra ela reagiam, em
Espanha, Portugal e Itália, as vozes casticistas, opondo a esta
cultura cortesã da mentira a simples e verdadeira cultura aldeã
("corte de aldeia", v.g., António de Guevara, Menosprecio de cor­
te e alabanza de aldea, 1539; Francisco Rodrigues Lobo, Corte de
aldeia ou noites de inverno, 1618). No Portugal nostálgico do iní­
cio do séc. XVII, lamentavam-se ainda as novidades sospeitas
das modas de corte importadas de Madrid, como os cabelos com­
pridos dos homens ou a profusão de rendas nos seus trajos,
ambas contrárias ao que se designava como "o estilo severo por­
tuguês antiguo", a capa e o chapeirão negros.
4.2.3. Ordem e vontade
Uma outra forma de invenção, que nos remete já para uma
114O português, em particular, caracteriza-se por ter conhecido até há muito
pouco uma enorme variedade de formas de se dirigir aos outros (vossa ex­
celência, vosselência, o senhor, o senhor doutor, o sr. dr., etc.).
106
António Manuel Hespa
problemática diferente,, era ainda condenável reinventar uma ordem
para o governo do mundo, a golpes de imaginação política ou de
textos
legais.
Salientava-se então, de facto, a ideia do carácter natural da constituição
social, i.e., de que a organização social depende da natureza das coisas
e de que está, por isso, para além do poder de disposição da vontade.
As leis fundamentais ("constituição") de uma sociedade (de um reino)
dependeriam tão pouco da vontade como a fisiologia do corpo
humano ou a ordem da natureza. E certo que soberano e vassalos
podem temporariamente afas-tar-se das leis naturais de ordenação
social, pela tirania ou pela revolução; mas o mau governo, "contra o
qual as próprias pedras clamarão", é sempre um episódio político
passageiro. O que os povos já poderão é eleger - embora de acordo,
também, com características objectivas das várias nações, por sua vez
ligadas às particularidades da terra e do clima - as formas de governo:
a monarquia, a aristocracia, a democracia ou qualquer forma de
governo misto, proveniente do cruzamento destes regimes-tipo
referidos por Aristóteles. Como podem explicitar e adaptar às
condições de cada comunidade, através do direito civil (ius civile, isto
é, do direito da cidade) os princípios jurídicos decorrentes da natureza
das sociedades humanas (direito natural, ius naturalé). Mas a
constituição natural conserva-se sempre como um critério superior
para aferir a legitimidade do direito estabelecido pelo poder, sendo tão
vigente
e
positiva
como
este.115
Nestes termos, o direito - todo ele, mas sobretudo o natural desempenha uma função constitucional. Impõe-se a todo o poder. Não
pode ou, pelo menos, não deve ser alterado. E isto porque se funda nos
princípios necessários de toda a convivência humana (affectio
societatis). E não porque se fundamente num pacto primitivo ou num
pacto histórico estabelecido, por exemplo, em cortes, como supõem os
historiadores que sobrevalori-zam o "pactismo" medieval ou moderno.
Em virtude desta função constitucional do direito, toda a actividade
política
aparece
115
Cf.
Hespanha,
2000a.
Cultura Jurídica Europeia
107
subsumida ao modelo "jurisdicionalista". Ou seja, toda a acti­
vidade dos poderes superiores - ou mesmo do poder supremo é tida como orientada para a resolução de um conflito entre es­
feras de interesses, conflito que o poder resolve "fazendo justi­
ça". Caso contrário, o governo será tirania(tirania quanto ao exer­
cício, tyranía in exercitio), podendo (e devendo) ser objecto de
resistência.
A intervenção da imaginação e da vontade nas coisas do
governo, ainda que não estivesse excluída de princípio, deveria
ser mínima. Neste contexto, o príncipe só excepcionalmente como que à maniera dos (raros) milagres de Deus - se devia des­
viar da razão dos conselheiros, peritos e letrados, pelos quais e não pela sua vontade impetuosa e arbitrária - devia corrrero
gow erno ordinário.
"O Supremo Senhor - escreve o jurista luso-galaico João
Salgado de Araújo, citando Frei Juan de Santa Maria -, por quem
reinam os Príncipes da terra, fez causas principais do governo
deste mundo visível os anjos, céus, estrelas e elementos, obran­
do por estas causas segundas os efeitos naturais, a não ser que
queira mostrar a sua omnipotência. E por imitar a Deus os Prín­
cipes, encarregaram o governo de seus Impérios, e Reinos a sá­
bios e prudentes varões, deixando correr o despacho pelo o curso
ordinário da consulta e sábias determinações que tomam os seus
conselheiros, ainda quando o Príncipe fazia alguns milagres,
obrando sem dependências, como dono do governo, para que
soubesse o povo, que o seu Rei tinha caudal para tudo, e que era
poderoso para fazer por si só o que no seu nome fazia o mais
destro conselheiro" (Juan Salgado de Araújo, Ley regia de Portu­
gal, Madrid, 1627, n. 120 , p. 44).
Deste texto (directamente inspirado na teoria escolástica das
causas segundas) resulta claro que o governo ordinário - i.e., diri­
gido à manutenção do ordem das coisas e organizado segundo
os procedimentos estabelecidos e ordinários - deve constituir a
norma. E que, ao revés, a inovação, a criação de feitos políticos
inusitados, a eleição de vias singulares de governo, são como que
milagres que o rei deve utilizar apenas como ultima ratio. Eram
108
António Manuel Hespanha
considerações deste tipo que condenavan os projectos e estilos
políticos dos arbitristas. Estas figuras típicas do pessoal político
ibérico do século XVII imaginavam planos e expedientes (artifíci­
os) para reformar a politica. A própria designação deste género
de literatura politica ("alvitre", do latin arbitrium) já denota o seu
carácter artificial e artificioso - i.e., não natural, já que arbitrium se
opõe a ratio, razão, equilíbrio, sentido do ordem.
4 . 2 .4 . O rd e m e d e sig u a ld a d e
A unidade dos objectivos da criação não exigia que as fun­
ções de cada uma das partes do todo, na consecução dos objec­
tivos globais da criação, fossem idênticas às das outras. Pelo con­
trário, o pensamento medieval sempre se manteve firmemente
agarrado à ideia de que cada parte do todo cooperava de forma
diferente na realização do destino cósmico. Por outras palavras,
a unidade da criação não comprometia, antes pressupunha, a
especificidade e irredutibilidade dos objectivos de cada uma das
"ordens da criação" e, dentro da espécie humana, de cada gru­
po ou corpo social.
Nesta ordem hierarquizado, a diferença não significa - pelo
menos numa perspectiva muito global da criação, que tem em
conta a sua origem primeira e o seu destino último - imperfei­
ção ou menos perfeição de uma parte em relação às outras. Sig­
nifica antes uma diferente inserção funcional, uma cooperacão,
a seu modo específica, no destino final (escatológico) do mun­
do. Assim, em rigor, subordinação não representa menor dig­
nidade, mas antes apenas um específico lugar na ordem do
mundo, que importa a submissão funcional a outras coisas. Os
próprios anjos, seres perfeitos, não escapavam à ordem, estan­
do organizados em nove graus distintos.
No plano da teologia política, esta ideia da idêntica digni­
dade de todos os homens levava a uma explicação optimista dos
laços de submissão. Estes não decorreriam do pecado original
(como queria a teologia política alto-medieval) mas antes da
própria natureza ordenada do mundo.
Cultura Jurídica Europeia
109
Esta compatibilização entre a perfeição do homem e a exis­
tência de desigualdades e de hierarquias políticas não deixava
de criar uma aparente paradoxo. De facto, como se explicaria que
Deus, o Ser Perfeito, criando o homem à Sua imagem e seme­
lhança, tivesse introduzido diferenças entre os homens ? Por
outras palavras, como explicar que os homens, que antes da
queda eram a imagem da perfeição, tivessem conhecido entre
si a desigualdade. Como se explica que houvesse dissemelhanças entre seres que eram a imagem da Identidade ?
Francisco Suarez trata este tema no seu curto tratado De Deo
uno et trino (1599), como introdução a uma discussão sobre o
modo de viver dos homens no estado de inocência, isto é, se não
tivesse havido pecado original (cf. 1. V, "D e statu quem habuissent in hoc mundo viatores, se primi parentes não peccassent"
[Da condição que teriam os passantes neste mundo se os seus
primeiros pais não tivessem pecado]; cf. também S. Tomás, Sumtna theol, Illa, I, qs. 91 a 95).116 Mesmo nesta ordem perfeita, Su­
arez imaginava que haveria desigualdade de estados, assim
como governo político. No entanto, a desigualdade de estados
não poderia derivar de alguma imperfeição intrínseca, pois os
homens seriam todos perfeitos. Derivava antes "da circunstân­
cia dos elementos, da influência dos céus, da diversidade dos ali­
mentos e dos humores" (n. 3). O governo e sujeição políticos (dominium iurisdictionis) - que também implica desigualdade (des­
de logo, entre governantes e governados) -, por sua vez, decor­
reria dos vantagens da associação (entre pessoas diferentes e
complementares) e da necessidade natural de governo que a
associação supõe (n. 11, p. 238). Embora este governo fosse não
coactivo (porque os homens perfeitos não poderiam sofrer pe­
nas), mas só directivo e aceite esponttaneamente por mero de­
116H á muito de curioso neste ensaio de imaginação antropológica. Como se re­
produziriam, que comeriam, com o se vestiriam, como consumiriam o tem­
po, os homens em estado de natureza perfeita. Por outras palavras, o que seria
a perfeição humana. Neste momento, interessa-nos sondar brevemente o ide­
al de perfeição política na pristina utopia imaginada por Suarez.
110
António Manuel Hespar
sejo de perfeição ([pg. 238]). A ordem, e a desigualdade que ela
comporta, seriam, assim, compatíveis com a plenitude e a perfeição.
Não importando um menor valimento de uns seres em relação aos
outros, pelo menos numa visão escatológica da criação. O mesmo
tipo de raciocínio já ocorria em S. Tomás de Aqui-no, quando ele
discute a compatibilidade entre a perfeição e unidade da Igreja e a
existência de diferentes estados no seu seio (cf. S. Tomás, Summa
tlteol., Ila.Iiae, q. 183, a. 2). Como aí se explica, a diferenciação dos
estados corresponde à única forma de traduzir, no plano das coisas
naturais, a imensa perfeição de Deus: "nas coisas da natureza, a
perfeição, que em Deus se encontra de forma simples e uniforme, na
universalidade das criaturas não pode encontrar se a não ser de
modo disforme e múltiplo" (ibid.)
Esta ideia de que todos os seres se integram, com igual dignidade, na
ordem divina, apesar das hierarquias aí existentes, explica a
especialíssima relação entre humildade e dignidade que domina o
pensamento social e político da Europa medieval e moderna. O
humilde deve ser mantido na posição subordinada e de tutela que lhe
corresponde, designadamente na ordem e governo políticos. Mas a
sua aparente insignificância esconde uma dignidade igual à do
poderoso. E, por isso, o duro tratamento discriminatório no plano
social (na ordem da natureza, do direito) é acompanhado de uma
profunda solicitude no plano espiritual (no plano da graça, da
caridade, da misericórdia). Este pensamento - que se exprime na
parábola evangélica dos lírios do campo e se ritualiza nas cerimónias
dos lava pés - explica, ao lado das drásticas medidas de
discriminação social, jurídica e política dos mais humildes
(miserabiles pessoae, pobres, mulheres, viúvas, órfãos, rústicos,
indígenas africanos ou americanos), a protecção jurídica e a solicitude
paternalista dos poderes para com eles, protecção que inclui uma
especial tutela do príncipe sobre os seus interesses: foro especial,
tratamento jurídico mais favorável (favor), por exemplo em matéria
de descul-pabilização perante o direito penal, de prova, de presunção
de inocência ou de boa fé.
Cultura Jurídica Europeia
111
4 .2 . 5 . O rd e m e “e s ta d o s ”
Qualquer que tenha sido a força desta ideia de que todos
os seres tinham, no plano global da ordem da criação, uma igual
dignidade, uma avaliação mais matizada exige que se diga que
- a ideia de ordem sugeriu também outras perspectivas mais
hierarquizadoras. Nomeadamente, a perspectiva de que a cria­
ção era como que um corpo, em que a cada orgão competia uma
função, e que estas funções estavam hierarquizadas segundo a
sua importância para a subsistência do todo.
Este tópico já levava a uma visão diferente da criação, legi­
timando uma distinção das coisas e das pessoas em termos de
hierarquia e de dignidade.
As criaturas não eram apenas diferentes. Eram também
mais o menos dignas, em função da dignidade do ofício que
naturalmente lhes competia. Isto queria dizer que, existindo na
Criação um modelo de perfeição que é o próprio Deus, este
modelo não se reflectia igualmente em todas as criaturas. O ho­
mem, por exemplo, fora criado "à im agem e sem elhança de
Deus". Já a mulher não teria essa natureza de espelho divino. A
sua dignidade seria menor; a sua face podia (e devia) andar co­
berta, enquanto que a face do homem - imagem de Deus - não
deveria ser velada. E entre os homens, alguns - os nobres e ilus­
tres - teriam uma especial dignidade, constituindo a parte mais
sã da sociedade a que devia pertencer o governo (respublica a
saniore [meliore, digniore] est gubernanda).
No plano do direito, as diferenças entre pessoas eram tra­
duzidas pelas noções de "estado" e de "privilégio", ou direito
particular.
"O estado é a condição do homem que é comum a vários"
ensina Antonio de Nebrija ( Vocabidarium, 1601). Em princípio,
um estado - palavra que remete, na sua origem etimológica, para
a ideia de equilíbrio - corresponde, como vimos, a um lugar na
ordem, a uma tarefa ou dever (officium) social.
Na sociedade tradicional europeia, identificavam-se três
ofícios sociais: a milicia, a religião e a lavrança. "Defensores são
112
António M anuel Hespanha
huns dos tres estados, que Deus quis, per que se mantivesse o
mundo, ca bem assy como os que rogan pelo povo se llaman
oradores, e aos que lavran a terra, per que os homes han de vi­
ver, e se manteem, são ditos mantenedores, e os que han de de­
fender são llamados defensores", pode ler-se nas Ordenações ajbnsinas portuguesas (1446), inspiradas nas Partidas (I, 2, 25, pr.).
Mas esta classificação das pessoas podia ser mais diversifi­
cada e, sobretudo, menos rígida. De facto, ela era apenas uma fór­
mula, muito antiga na cultura occidental (G. Dumézil, La réligion
archaïque romaine, Paris, 1967), de representar a diversidade dos
estatutos jurídicos e políticos das pessoas. No domínio da repre­
sentação em cortes, manteve-se basicamente a classificação tripar­
tida até aos finais do Antigo Regime. Já noutros planos da reali­
dade jurídica (direito penal, fiscal, processual, capacidade jurídi­
ca e política), os estados eram muito mais numerosos. Nos dis­
tintos planos do direito, constituiam-se, assim, estatutos pessoais
ou estados, correspondentes aos grupos de pessoas com um mes­
mo estatuto jurídico (com os mesmos privilégios).
A concepção do universo dos titulares de direitos como um
universo de "estados" (status) leva à "personificação" dos esta­
dos. Ou seja a considerar que uma mesma pessoa tem vários
estados e que, como tal, nela coincidem várias pessoas. Fenóme­
no tornou-se conhecido, para a realeza, depois do célebre livro
de Kantorowicz sobre os vários corpos do rei (Kantorowicz,
1957). Mas esta pluralidade de pessoas num só indivíduo era
algo de muito mais geral. Como escreve o jurista português
Manuel Álvares Pegas (Pegas, 1669, XI, ad 2,35, cap. 265, n. 21),
"nem é novo, nem contrário aos termos da razão, que um e o
mesmo homem, sob diferentes aspectos, use de direitos diferen­
tes". O exemplo teológico deste desdobramento da personalida­
de era o do mistério da Santíssima Trindade, em que três pesso­
as distintas coexistiam numa só verdadeira. O mesmo se passa­
va no exemplo, bem conhecido e já evovcado, dos "corpos do
r e i". N a mesma pessoa íísica do monarca coexistiam a sua "pes­
soa privada" e a sua "pessoa publica". Ou ainda mais pessoas,
como, D.g., se o rei íosse, como toi, a certa altura, em Portugal,
Cultura Jurídica Europeia
113
grão-mestre dos ordens militares; ou Duque de Bragança; neste
caso, já era posível distinguir nele quatro pessoas, "cada qual
retendo e conservando a sua natureza e qualidades, devendo ser
consideradas como independentes umas das outras" (cf. Pegas,
1669, ibid).
Frente a esta multiplicidade de estados, a materialidade fí­
sica e psicológica dos homens desaparece. A pessoa deixa de
corresponder a um substracto físico, passando a constituir o ente
que o direito cria para cada aspecto, face, situação ou estado em
que um indivíduo se lhe apresenta. A veste torna-se corpo. "Pes­
soa - escreve ainda o tradicionalista Lobão no século
pasado (Lobão, 1828,1, tit. 1, 1) - é o homem considerado como
em certo estado", ou seja, considerado sob o ponto de vista de
certa qualidade "conforme à qual [...] goza de direitos diversos
dos que gozam outros homens" (ibid.). A final, tal como decorre
do significado original da palavra persona,117 a "pessoa"é o ho­
mem (ou mulher) enquanto desempenha um "papel social".
Então, se são as "qualidades" (os papéis sociais), e não os
seus suportes corporais-biológicos, que contam como sujeitos de
direitos e obrigações, estes podem multiplicar-se, dando carne
e vida jurídica autónoma a cada situação ou veste em que os
homens se relacionem uns com os outros. A sociedade, para o
direito, enche-se de uma plétora infinita de pessoas, na qual se
espelha e reverbera, ao ritmo das suas multiformes relações
mutuas, o mundo, esse finito, dos homens. A mobilidade dos
estados em relação aos suportes físicos é tal que se admite a con­
tinuidade ou identidade de uma pessoa, ainda que que mude a
identidade do indivíduo físico que a suporta. Tal é o caso da
pessoa do defunto que, depois da morte, incarna no herdeiro;
mas é também o caso do pai, que incarna nos filhos, mantendo
a sua identidade pessoal ("O pai e o filho são uma e a mesmo
pessoa no que toca ao direito civil", Valasco, 1588, cons. 126, n.
12). A relação entre estado e indivíduo chega a aparecer inverti­
n7Que designava a m áscara teatral (grega), com a qual um actor se transforma
num papel.
114
António Manuel Hespa
da, atribuindo-se ao estado (à qualidade) o poder de mudar o aspecto
físico do indivíduo; diz-se, por exemplo, que o estado de escravidão
destrói a fisionomia e majestade do homem (cf. Carneiro, 1851, pg. 69,
nota
a).
Nestes casos, a realidade jurídica decisiva, a verdadeira pessoa jurídica,
é esse estado, que é permanente; e não os indivíduos, transitórios, que
lhe conferem momentaneamente uma face (cf. Clavero, 1986, max., 36).
Homem que não tenha estado não é pessoa. De facto, há pessoas que,
por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não
têm qualquer status e, logo, carecem de personalidade. Tal é o caso dos
escravos ("Quem não tenha nenhum destes estados [civil, de cidadania
ou familiar, status civilis, civi-tatis, familiae] é havido, segundo o
direito romano, não como pessoa, mas antes como coisa", escreve
Vulteius
(Vulteius,
1727,
cit.
por
Coing,
1985,1,170).
Tal é a sociedade de estados (Stündesgesellschaft, società per ceti,
sociedad estamental), característica do Antigo Regime e que antecede a
actual
sociedade
de
indivíduos.
4.2.6.
Ordem
e
pluralismo
político
Ligada a esta, estava a ideia da indispensabilidade de todos os órgãos
da sociedade e, logo, da impossibilidade de um poder político
"simples", "puro", não partilhado. Tão monstruoso como um corpo que
se reduzisse à cabeça, seria uma sociedade em que todo o poder
estivesse
concentrado
no
soberano.
O poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem
governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia
político-jurídica (iurisdictio) dos corpos sociais. A função da cabeça
(caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social
(partium corporis operatio própria, o funcionamento próprio de cada
uma das partes do corpo), mas por um lado, a de representar
externamente a unidade do corpo e, por outro, a de manter a harmonia
entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que Ibe é
próprio (ius suum cuiqiie
Cultura Jurídica Europeia
115
tribuendi); garantindo a cada qual o seu estatuto ("foro", "direi­
to", "privilégio"); numa palavra, realizando a justiça(iustitia est
constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi [a justiça é
a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu],
D., 1,1,1,10,1). E assim é que a realização da justiça - finalidade
que os juristas e politólogos tardo-medievais e primo-modernos
(séculos XIV-XVI) consideram como o primeiro ou até o único
fim do poder político - se acaba por confundir com a manuten­
ção da ordem social e política objectivamente estabelecida.118
Por outro lado, faz parte deste património doutrinal a ideia,
já antes esboçada, de que cada corpo social, como cada órgão
corporal, tem a sua próprio função (ojficium), de modo que a cada
corpo deve ser conferida a autonomia necessária para que a pos­
sa desempenhar. A esta ideia de autonomia funcional dos cor­
pos anda ligada, como se vê, a ideia de autogoverno que o pen­
samento jurídico medieval designou por iurisdictio e na qual
englobou o poder de fazer leis e estatutos (potestas lex ac statuta
condendi), de constituir magistrados {potestas magistratus constituendi) e, de um modo mais geral, julgar os conflitos (potestas ius
dicendi) e emitir comandos (potestas praeceptiva).
Mas pode falar-se de pluralismo ainda num outro sentido
- o de que a ordem tem várias fontes de manifestção, não po­
dendo ser reduzida ao direito formal.
Realmentge, um aspecto da ordem era o de estabelecer vín­
culos tão necessários entre as coisas que se podia dizer que os
comportamentos correspondentes a estes vínculos se converti­
am em comportamentos devidos em virtude da própria "natu­
reza das coisas".
E nesta perspectiva que S. Tomás define o débito como "o r­
dem de exigir, ou necessidade de alguém em relação ao que está
ordenado [= posto em ordem]" (Summ. tlieoi, Ia, q. 21, 1 ad 3).
Como existe uma ordem entre as criaturas que cria dívidas re­
cíprocas entre elas, pode dizer-se que as relações estabelecidas
nessa ordem constituem deveres. E, logo, que a ordem institui
118Cf. Petit, 1994, III, 732 ss.
116
António Manuel Hespanha
um direito, um direito natural. E como a soma dos deveres das
criaturas entre si é também devida à ordem, ou seja, a Deus, o
cumprimento dos deveres recíprocos é, em certa medida, um
dever para com Deus e, logo, o tal direito natural acaba por ser
um direito divino: "É devido a Deus que se realize nas coisas aqui­
lo que a sua sapiência e vontade estabeleceu e que a sua bonda­
de manifesta ... E devido a cada coisa criada que se lhe atribua o
que lhe foi ordenado [...] e, assim, Deus faz justiça quando dá a
cada um o que lhe é devido segundo a razão de sua natureza e
condição" (cf., também, Summ. theol., Ia-Iae, q. 111,1 ad 2).
Este carácter natural da ordem fazia com que ela se manifestsse de muitas formas - pelas tendências naturais (amores),
com o tempo concretizadas em costumes (consuetudines vel mo­
res, practicae, styli), pelas virtudes morais (amicitia, liberalitas),
pela revelação e também pelo direito formalizado pelos juristas,
como peritos na observaçãoe memória das coisas sociais, ou
mesmo pela vontade do rei, como portador de um poder nor­
mativo de origem divina.119
4.3. A dissolução do corporativismo
e o advento do paradigma individualista
Embora se lhe possam encontram antecedentes mais recua­
dos (oposição entre filósofos estóicos e aristotélicos, entre a teolo­
gia inspirada em Santo Agostinho e a inspirada em S. Tomás de
Aquino), a genealogia mais directa do paradigma individualista da
sociedade e do poder deve buscar-se na escolástica franciscana
quatrocentista (Duns Scotto, 1266-1308; Guilherme d'Occam, 1300c.1350).120 É com ela - e com uma célebre querela filosófica, a ques-
119Sobre este pluralism o de fontes, v. infra, 5.3. ).
120A escolástica franciscana representa um a visão teológica difundida por te­
ólogos franciscanos (sobretudo, séculos XIV e XV), que, no plano do conhe­
cimento de Deus, valoriza a fé em detrimento da razão; e que, no conheci­
mento das coisas naturais, desvaloriza a ideia de ordem em relação à de
individualidade de cada coisa. A sua inspiração teológica mais longínqua
pode encontrar-se em Santo Agostinho.
Cultura Jurídica Europeia
117
tão "dos universais" - que se põe em dúvida se não é legítimo, na
compreensão da sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos.
Na verdade, passou a entender-se que aqueles atributos ou quali­
dades ("universais") que se predicam dos indivíduos (ser -paterfa­
milias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações sociais
em que estes estão integrados não são qualidades incorporadas na
sua essência, não são "coisas" sem a consideração das quais a sua
natureza não pudesse ser integralmente apreendida - como queri­
am os "realistas". Sendo antes meros "nomes", externos à essên­
cia, e que, portanto, podem ser deixados de lado na consideração
desta. Se o fizermos, obtemos uma série de indivíduos "nus", incaracterísticos, intermutáveis, abstractos, "gerais", iguais. Verda­
deiros átomos de uma sociedade que, esquecidas as tais "qualida­
des" agora tomadas descartáveis, podia também ser esquecida pela
teoria social e política. Esquecida a sociedade, i.e., o conjunto de vín­
culos inter-individuais, o que ficava era o indivíduo, solto, isola­
do, despido dos seus atributos sociais.
Estava quase criado, por esta discussão aparentemente tão
abstracta, um modelo intelectual que iria presidir a toda a refle­
xão social durante, pelo menos, os dois últimos séculos - o indi­
víduo, abstracto e igual. Ao mesmo tempo que desapareciam do
proscénio as pessoas concretas, ligadas essencialmente umas às
outras por vínculos naturais; e, com elas, desapareciam os gru­
pos e a sociedade (cf. infra 7.2.).
Para se completar a revolução intelectual da teoria política
moderna só faltava desligar a sociedade de qualquer realidade
metafísica, laicizando a teoria social e libertando o indivíduo de
quaisquer limitações transcendentes.121
Essa revolução levou-a a cabo um novo entendimento das
relações entre o Criador e as criaturas. A teologia tomista, sobretu­
do através da "teoria das causas segundas" - ao insistir na relativa
autonomia e estabilidade da ordem da criação (das "causas segun­
das") em relação ao Criador, a "causa primeira" -, garantira uma
121 Um a análise fundam ental das im plicações políticas e m orais desta revolu­
ção do im aginário social foi magistralm ente feita por Zygm unt Baum an (,
1987,1995).
118
António Manuel Hesp
certa autonomia da Natureza emface da Graça e, consequentemente,
do saber temporal em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma
recaída no fideismo, na concepção de uma completa dependência do
homem e do mundo em relação à vontade absoluta e livre de Deus
que levou a uma plena laicização da teoria social. Se Deus se move
por "impulsos" (teoria do impetus, de raiz estóica), se os seus
desígnios são insondáveis, não resta outro remédio senão tentar
compreender (racionalmente ou por observação empírica) a ordem
do mundo nas suas manifestações puramente externas, como se
Deus não existisse, separando rigorosamente as verdades da fé das
aquisições intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde Hugo
Grócio a Tomás Hobbes (v. infra, 7.1.) - que a liberta de todas as
anteriores hipotecas à teologia moral, do mesmo passo que liberta os
indivíduos de todos os vínculos em relação a outra coisa que não
sejam as suas evidências racionais e os seus impulsos naturais.
Esta laicização da teoria social e a colocação no seu centro do
indivíduo, geral, igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tem
consequências centrais para a compreensão do poder.
A partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa
ordem objectiva das coisas; vai ser concebido como fundado na
vontade. Numa ou noutra de duas perspectivas. Ou na vontade
soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente,
pelo seu lugar tenente - o príncipe (providencialismo, direito divino
dos reis). Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos
e insegurança da sociedade natural, ou pelo desejo de maximizar a
felicidade e o bem estar, instituem, por um acordo de vontades, por
um pacto, a sociedade civil (contratualis-mo). A vontade (e não um
equilíbrio
ratio
preestabelecido)122é,
122 Na verdade, os nominalistas deixaram também de crer na
existência de qualquer vínculo entre vontade e razão. Uma vez que
existia, no plano epis-temológico, uma radical diferença entre a
realidade objectiva e a sua representação mental (cf. Coleman, 1991),
o mundo objectivo não tinha qualquer poder de conformação sobre o
mundo mental. E, assim, não existia nenhum apetite natural pelo
bem, nenhuma direcção da vontade pela razão, como queria S.
Tomás. V., sobre este tema, Sève, 1991, 64 ss.
Cultura Jurídica Europeia
119
também, a origem do direito. Guilherme d'Occam descrevera-o
ou como o que Deus estabeleceu nas Escrituras, ou como o qui
decorre racionalmente de algum pacto. E, laicizada a teoria jurí­
dica, Rousseau (cf. 7.2.1.2) definirá a lei como "uma declaraçãc
pública e solene da vontade geral" ("une déclaration publique e
solemnelle de la volonté générale sur un objet d'intérêt commun"
Lettres écrites de la Montagne, 1,6).123
Perante este voluntarismo cedem todas as limitações decor­
rentes de uma ordem superior à vontade (ordem natural ou so
brenatural). A constituição e o direito tornam-se disponíveis e c
sua legitimidade não pode ser questionada em nome de algun
critério normativo de mais alta hierarquia. Daqui se extrai (ns
perspectiva providencialista) que Deus pode enviar tiranos pan
governar os homens (pecadores, duros), aos quais estes devem
apesar de tudo obedecer. Extrai-se também que as leis funda
mentais, como todos os pactos, são disponíveis, i.e., factíveis £
alteráveis pelos homens, num dado momento histórico. E, final
mente, que todo o direito positivo, bem como todas as conven
ções, enquanto produto directo ou indirecto de pactos, são jus
tos ("positivismo jurídico").124
Para além destes pontos comuns, o paradigma individua
lista e voluntarista na concepção da sociedade e do poder des­
dobra-se em certas correntes típicas. Por um lado, no providen
cialismo, que concebe o poder como produto da livre vontade dc
Deus, exercitada na terra pelas dinastias reinantes, que assin
eram revestidas de uma dignidade quasi-sagrada. Por outre
lado, no contratualismo absolutista, que concebe o pacto socia
como transferindo definitivamente para os governantes todos
os poderes dos cidadãos. Esgotando-se os direitos naturais na­
123 Mas, já antes dele, Marsílio de Pádua a definira como "preceito coercitivo" e
Samuel Puffendorf com o "com ando proveniente da vontade do legislador"
124 Note-se, no entanto, que a ideia de um pacto na origem das sociedades civií
não era estranha à teoria política tradicional. Só que, com o vim os, este pactc
apenas definia a forma de governo (que Aristóteles considerara mutável); nãc
já a forma do poder. E mesmo aquela, uma vez estabelecida, consolidava-se
em direitos adquiridos (iura radicata) impossíveis de alterar.
120
António M anuel H espanha
queles transferidos e não se reconhecendo outra fonte válida de
obrigações (nomeadamente, a religião), o soberano ficava, en­
tão, livre de qualquer sujeição (a não ser a de manter a forma
geral e abstracta dos comandos, o que distinguiria o seu gover­
no da arbitrariedade do governo despótico). Por fim, neste qua­
dro apenas sinóptico, o contratualismo liberal, para o qual o con­
teúdo do contrato social estaria limitado pela natureza mesma
dos seus objectivos - instaurar uma ordem social e política maximizadora dos instintos hedonistas dos homens - pelo que, os
direitos naturais permaneceriam eficazes mesmo depois de ins­
taurada a sociedade civil.125
Também no domínio do direito privado, o individualismo
vem a ter as suas consequências. Desde logo, a dissolução de que
os pactos e contratos tinham uma natura (natura, substantia) in­
disponível, ligada à própria natureza das coisas. Depoisque as
mesmas coisas, de que os homens se serviam, tinham usos na­
turais que não podiam ser ignorados e, portanto, que a proprie­
dade tinha limites., podendo, assim, ser objecto de "abuso" (um
dos quais seria, por exemplo, o não uso absoluto, privando a
comunidade das utilidades que decorriam do do normal uso das
coisas, das suas "funções sociais").
115 Sobre estas correntes, com bibliografia suplem entar, X avier, 1 9 9 3 ,1 2 7 . So­
bre as escolas do pensam ento político m oderno, ibid., 127 ss.
5-
A
FORMAÇÃO DO “ DIREITO COMUM”
A doutrina jurídica dos séculos XV, XVI e XVII tem recebi­
do designações muito variadas - "bartolism o", "escolástica ju ­
rídica", "m os italicus", etc.; mas a sua designação mais correcta
é a de "direito comum" por se revelar menos unilateral do que
qualquer das anteriores e por nos dar, desde logo, esta ideia: a
de que ela apresenta, como característica primeira, a unidade (i) quer enquanto unifica as várias fontes do direito (direito justinianeu [cf. infra, 5.1. ], direito canónico [cf. infra, 5.2. ] e direi­
tos locais); (ii) quer enquanto constitui um objecto único (ou co­
mum) de todo o discurso jurídico europeu; (iii) quer ainda en­
quanto "trata" este objecto segundo métodos e estilos de racio­
cinar comuns; (iv) forjados num ensino universitário do direito
que era idêntico por toda a Europa; e (v) vulgarizados por uma
literatura escrita numa língua então universal - o latim.126
Para a formação desta comunidade jurídica europeia con­
tribuem vários factores.
Por um lado, uma constelação de factores que gera uma certa
tendência para a unidade dos vários ordenamentos jurídicos europeus.
Um deles é a reconstituição do Império (primeiro, do Im­
pério de Carlos Magno, século IX, dando origem à classificação
de Carlos Magno como senhor universal, "regnator in orbe"
(Alcuíno); depois, do Sacro Império Romano-Germânico, sécu­
lo X), unidade política inspirada, quer pela memória do "im pé­
rio universal" que era o Império Romano, de que os novos im­
peradores francos ou germânicos, seriam os sucessores127quer
126Teorização do conceito, em Calasso, 1970., maxime 33-136.
127Cf. de um edito imperial de 864 (Edidtum postensis): "N aquelas regiões nas
quais se julgava segundo a lei dos rom anos, os litígios continuarão a ser jul­
gados por essa mesma lei, pois os nossos antecessores] não estabeleceram
qualquer capitular suplementar ou contrária a essa lei, nem nós mesmos [de
Carlos II, im perador dos francos] o fizemos" (apud Calasso, 1970,41).
122
António Manuel Hesp
pela existência, no plano religioso, de uma Igreja ecuménica que reunia
toda a cristandade. Quer o Império, quer a Igreja, tinham ordenamentos
jurídicos unificados, embora coexistissem paralelamente. Daí que a tríade
"uma religião, um império, um direito" (una religio, iinum imperium,
unum ius) parecesse apontar para algo de natural na organização do
género humano - uma certa comunidade de governo (respublica christiana)
e
uma
certa
unidade
do
direito
(ius
communé).
Por outro lado, o sentimento de unidade do direito foi -em grau não menor
- suscitado pela homogeneidade da forraa-ção intelectual dos agentes a
cargo de quem esteve a criação do saber jurídico medieval - os juristas
letrados. Tratavam-se de universitários com uma disposição intelectual
comum, modelada por vários factores que se verificavam em toda a área
cultural europeia centro-ocidental. Primeiro, o uso da mesma língua
técnica - o latim -, o que lhes criava, para além daquele "estilo" mental que
cada língua traz consigo, um mesmo horizonte de textos de referência
(numa palavra, a tradição literária romana). Depois, uma formação
metodológica comum, adquirida nos estudos preparatórios universitários,
pela leitura dos grandes "manuais" de lógica e de retórica128utilizados
nas Escolas de Artes de toda a Europa. Finalmente, o facto de o ensino
universitário do direito incidir unicamente - até à segunda metade do
século XVIII - sobre o direito romano (nas Faculdades de Leis) ou sobre o
direito canónico (nas Faculdades de Cânones), pelo que, nas escolas de
direito de toda a Europa central e ocidental, desde Cracóvia a Lisboa, desde
Upsala a Nápoles, se ensinava, afinal, o mesmo direito. O mesmo direito,
na mesma língua, com a mesma metodologia. É do trabalho combinado
destes factores - a unificação dos ordenamentos jurídicos suscitando e
possibilitando um discurso jurídico comum, este último potenciando as
tendências
unificadoras
já
128 Dos quais, o principal foi, até ao século XVI, as Summae logicales do
português Pedro Hispano (depois, papa João XXI, m. 1272).
Cu\tura ] uri dica Europeia
123
latentes no plano legislativo e judiciário - que surge o direito
comum, ius commune.129
5 .1 . Factores de unificação dos direitos europeus
Vejamos, mais detidamente, a primeira série de factores, i.e.,
as circunstâncias a partir das quais se foi gerando a unificação
dos ordenamentos jurídicos europeus.
5 . 1 . 1 . A tr a d iç ã o r o m a n ís tic a
5 .1.1.1. Direito rom ano clássico, direito
bizantino e direito rom ano vulgar
A memória do direito de Roma foi, porventura, o princi­
pal factor de unificação dos direitos europeus.
Entre os séculos I a.C. e III d.C., o Império Romano esten­
deu-se por toda a Europa meridional, tendo ainda atingido al­
gumas zonas mais a norte, como a parte norte da Gália (a actual
França) e o sul de Inglaterra. No oriente europeu, o Império ro­
mano estendia-se pelos Balcãs e pela Grécia e prolongava-se,
depois, pela Ásia Menor.
O direito conheceu então uma época áurea.130
129 N ote-se, desde já, que o direito comum é um fenóm eno mais de natureza
doutrinal do que legislativa. Isto é notório quando, a p artir da Baixa Idade
Média (séculos XIII e ss.) se cria um a espécie de costume doutrinal (opinio
communis doctorum) que passa a ser decisivo - mais do que as próprias fon­
tes dos direitos dos reinos - na orientação da jurisprudência. Em Portugal,
por exem plo, apesar de as Ordenações conferirem ao direito rom ano um lu­
gar apenas subsidiário no quadro das fontes do direito (O rd.fil, III, 64), na
prática ele era o direito principal, sendo m esm o aplicado contra o preceito
expresso do direito local (Cruz, 1 9 5 5 ,1 0 ; Costa, 1 9 6 0 ,2 5 ; e M erêa, 1939, 539
ss.). Com o o direito rom ano constituía a base da form ação dos juristas e
juizes de então e era o direito veiculado pela doutrina vigente e aceite nos
tribunais, forma-se um costum e doutrinal e judicial contra legem, mas d o ­
tado de verdadeira opinio iuris (i.e., sentido com o obrigatório).
130Sobre a história do direito romano, suas épocas e principais características, v.
Gilissen, 1988,80-100. Para maiores desenvolvimentos, D'Ors, 1973; Kaser, 1959.
124
António M anuel H espanha
Na base de umas poucas leis - desde a arcaica Lei das XII
Tábuas (meados do século V a.C.) até às leis votadas nos comíci­
os no último período da República (séculos I e II a.C.)131- e das
acções (legis actiones, acções da lei) que elas concediam para ga­
rantir certas pretensões jurídicas, o pretor, magistrado encarre­
gado de administrar a justiça nas causas civis, desenvolvera um
sistema mais completo e mais maleável de acções (actiones praetoriae), baseado na averiguação das circunstâncias específicas de
cada caso típico e na imaginação de um meio judicial de lhes dar
uma solução adequada.
Nesta tarefa de extensão e de afinação do arcaico "direito
dos cidadãos", ius civile - formalista, rígido, desadaptado às no­
vas condições sociais -, os pretores criam um direito próprio, o
"direito dos pretores", ius praetorium. Inicialmente, socorrem-se
dos seus poderes de magistrados (imperium), dando às partes
ordens que modificavam as circunstâncias de facto e que, por isso,
excluíam a aplicação de uma norma indesejável ou possibilita­
vam a aplicação de outra mais adequada à justiça material do
caso.132 Mais tarde, a partir da Lex Aebutia de formulis (149 a.C.),
o pretor adquire a possibilidade de criar acções não previstas na
lei (actiones praetoriae). Cada acção consiste numa formula, espé­
cie de programa de averiguação dos factos e da sua valorização
jurídica. A partir daí, é a fórmula específica de cada situação, e
não a lei, que dita a solução para o caso em análise. Com isto, a
jurisprudência dos pretores autonomiza-se completamente das
leis e torna-se numa fonte imediata de direito. A partir dos me­
ados do século II d.C., os pretores completam a sua tarefa de
131 Existiam ainda, com o fonte de direito, alguns resíduos de direito consuetudinário e as determ inações legislativas do Senado, os senatusconsulta, al­
guns dos quais com certa relevância em m atéria jurídica.
132 O rdens deste tipo são: as stipulationes praetoriae [efectivação de prom essas
forçadas pelo pretor], as restitutiones in integrum [ordem de reposição do
estado anterior], as missiones in possesionem [entregas forçadas], os interdicta [proibições de agir ou ordens de exibir, restituir]. C om elas, o pretor cri­
ava situações de facto que alteravam os pressupostos de aplicação do di­
reito.
Cultura Jurídica Europeia
125
renovação do velho ius civile. O Edictum perpetuum (c. 125-138
d.C.) codifica as acções do direito pretório.
O direito ganha, desta forma, um carácter casuístico que
incentiva uma averiguação muito fina da justiça de cada caso
concreto. Para além disso, o momento da resolução dos casos é
muito criativo, pois a lei não amarra, de modo nenhum, a inven­
tiva do magistrado, que fica bastante livre para imaginar solu­
ções específicas para cada situação. Isto explica, porventura, o
desenvolvimento de uma enorme produção literária de juristas,
treinados na prática de aconselhar as partes e o próprio pretor,
que averiguam e discutem a solução mais adequada para resol­
ver casos reais ou hipotéticos. Designam-se a si mesmo como
técnicos na distinção entre o justo e o injusto, sabedores práti­
cos do direito (iuris-prudentes) e produzem, na época áurea da
sua actividade (entre 130 a.C. e 230 d.C.) centenas de milhares
de páginas de consultas e opiniões, de resolução de questões, de
regras de direito, de comentários ao édito do pretor.
Fora de Roma, no entanto, este direito letrado e oficial pou­
ca aplicação teria. Aí, pontificavam usos locais e formas tradici­
onais de resolver os litígios. Em algumas províncias de cultura
mais específica, como o Egipto ou a Grécia, o direito local tinha
particularidades muito importantes que resistiam aos padrões
do direito romano clássico. Noutras, menos romanizadas (como
a Germania, certas zonas da Gália e da Hispania), o direito ofi­
cial de Roma mal chegava. Deste modo, a iurisprudentia roma­
na clássica, se contribuiu para a unificação dos direitos europeus
até aos dias de hoje, não foi por causa da sua difusão pelo Im­
pério, no período do seu maior brilho, mas porque constituiu um
tesouro literário em que, mais tarde, se vieram a inspirar os ju­
ristas europeus.
A crise do Império Romano, a partir do século III d.C., e a
ulterior queda do Império do Ocidente (em 476) põem em crise
este saber jurídico, cujo rigor exigia uma grande formação lin­
guística, cultural e jurídica, e cujo casuísmo impedia uma pro­
dutividade massiva. Num Império vasto, mal equipado em téc­
nicos de direito, longe da acção dos pretores urbanos de Roma,
126
António Manuel Hespc
o que progressivamente foi ganhando mais importância foram as
leis imperiais (constitution.es principum). O direito como que se
administratizou. De um saber de uma elite cultivada numa longa
tradição intelectual passou para uma técnica burocrática de
aplicação, mais ou menos mecânica, de ordens do poder.133 Ganha
em generalidade e automatismo aquilo que perde em fineza
casuística e apuramento intelectual. Dizer o direito torna-se numa
actividade menos exigente e mais simplificada, acessível mesmo
aos leigos. O saber jurídico perde o rigor e a profundidade de
análise. O direito vulgariza-se. Esta vulgarização é mais
pronunciada nas províncias, em virtude das corruptelas
provocadas pela influência dos direitos locais. Aí, forma-se um
direito romano vulgar (Vulgarrecht), que está para o direito
romano clássico como as línguas novilatinas ou românicas estão
para o latim.
No Império Oriental, por sua vez, o direito clássico deixou-se
contaminar pelas influências culturais helenísticas e pelas
particularidades do direito local. Muitos dos comentadores
passaram a escrever em grego, a língua oficial da corte bizantina.
Em todo o caso, o gosto pela reflexão intelectual em matérias
jurídicas não se perdeu, continuando a produção doutrinal dos
juristas clássicos a ser apreciada.
Tanto que, nos meados do século VI, o Imperador Justini-ano, um
apaixonado pela cultura clássica e um nostálgicos das antigas
grandezas de Roma, empreende uma tarefa de recolha de textos
jurídicos da tradição literária romana, desde as obras dos juristas
romanos clássicos, que mandou reunir numa compilação a que
chamou Digesto (i.e., resumo, selecção) ou Pandec-tas (i.e., obra
enciclopédica), 533 d.C., até à legislação imperial dos seus
antecessores, que foi recolhida no Código (i.e., livro), 529 d.C. A sua
obra de recolha foi completada por um manual de introdução, as
Instituições, 530 d.C., e por uma compilação póstuma, as Novelas,
565 d.C., as "constituições novas" promulgadas pelo próprio
Justiniano depois da saída do Código.
133 Petit, 1994, III, 728 ss.
'127
Cultura Jurídica Europeia
É este conjunto de livros - a que, a partir cio século XVI, se
dá o nome de Corpus iuris civilis - que vai constituir a memória
medieval e moderna do direito romano, pois a generalidade das
obras dos jurisconsultos clássicos, que continuava a existir nas
grandes bibliotecas do Próximo Oriente (Beirute, Alexandria,
Constantinopla), perdeu-se posteriorm ente, nom eadam ente
com a conquista árabe desses centros.134
5.I.I.I.I. Súm ula das épocas históricas do direito romano
É p o ca a rc a ic a
(753 a.C . - 1 3 0 a .C )
•
In d istin ção ius-fas-mos.
•
O c a rá c te r s a c ra l d o d ire ito :
•
R itu ais ju ríd ico s - a emptio
venditio fu n d i.
•
F ó rm u la s m á g ic a s a stipulatio.
A Lei das X II Tábuas (c. 4 5 0 a.C )
(ex. S .C ., p . 185)
•
O p rim a d o d o c o s tu m e .
A n a tu re z a a p e n a s
e x p lic ita d o ra d a s leis.
In d e rro g a b ilid a d e e
fo rm a lis m o d o s in s tru m e n to s
ju ríd ico s - a s legis actiones.
•
O s a b e r ju ríd ico p ru d e n c ia l
•
A n a tu re z a o ra c u la r d o
d iscu rso ju ríd ico - pontífices
•
A a p re n d iz a g e m do
d ire ito p e la p rá tic a
(pontem facere) e ju ristas.
ju n to d o s p erito s.
(cont.)
134 A tal ponto que, até aos inícios do século XIX - data em que se descobre um
manuscrito das Institutiones de Gaio, um jurista dálm ata do século III - , não
se conhecia nenhum a obra completa, dos milhares das provavelm ente es­
critas por juristas rom anos.
António M anuel Hespanha
128
(cont.)
Época clássica
(130 a.C - 230 d.C)
Ascensão e auge do direito
pretório (ius praetorium est quod
praetores introduxerunt adiuvandi
vel corrigendi vel supplendi iuris
civilis gratia propter ütilitatem
publicam, Papinianus, D.,1,1,7,1);
Decadência do direito pretório:
•
a ossificação do direito
pretório - o Edictum
perpetuum (130 d.C.);
•
a generalização da ddadania
romana (com Caracala, 212 d.C);
A inventiva doutrinal
(iurisprudentia): non ex regula ius
sumatur, sed ex iure quod est
regula fiat
Epoca pós-clássica (230-530)
•
Expedientes do pretor
baseados no imperium: ex. a
stipulation praetoria, as
restitutiones in integrum (ob
metum, ob dolum, ob errorem, ob
aetatem), os interdicta possessoria
(uti possidetis, unde vi);
• Expedientes baseados na
iurisdictio (depois da Lex
Aebutia deformulis, c. 130 a.C.):
•
actiones praetoriae (in
factum conceptae, utiles);
•
a fórmula (Tiius iudex
esto. Si paret Numerium
Negidium Aulo Agerio
centum dare oportere,
condemnato. Si non paret,
absolvito)
•
exceptiones.
A eficácia disciplinar do direito
legislado:
Vulgarização;
•
centralização;
•
Oficialização (lei e critérios
•
generalidade;
oficiais de valorização da
doutrina);
•
codificação (Codex
Theodosianus, 438 d.C.)
• Codificação;
Helenização.
A ratificação imperial (<
imperium ) da autoridade
(auctoritas) dos juristas: o ius
respondendi ex auctoritate principis
(Augusto, c. 25 a.C.)); a
equiparação da doutrina à lei
(Adriano, c. 220 d.C.); a Lei das
Citações (426 d.C.)
Cultura Jurídica Europeia
129
5.1.1.1.2. Sistematização e método
de citação do Corpus Iuris Civilis
Instituições (533 d.C.)
4 livros (.personae, res,
obligationes, actiones):
• divididos em títulos e estes,
C ódigo (534 d. C.)
12 livros :3
•
constituições ou leis e estas,
por vezes, em parágrafos;
por vezes, em parágrafos;
•
•
citação: I[nst.), [liv.] 1 , [tit.]
10, [parag.] pr[oemium J;1
•
citação: C[odex Iustinianit.],
[liv.] 9, [tit.] 7, [constituição]
5, [parag.]
•
cit. antiga: (Cod. lust..),
cit. antiga: (Inst .), l[ex], pr.,
De nuptiis.2
divididos títulos, estes em
l[ex]. 1, Si quis imperatori
maledixerit.
(cont.)
1 O proemium ou principium é, de facto o primeiro parágrafo. O parágrafo 1 é,
portanto, o segundo na ordem do texto.
2De nuptiis é a epígrafe do tít. 10 do livro 1 das Institutiones.
3Na Idade Média, os três últimos livros do Código eram frequentemente agru­
pados nos chamados tres libri, formando, juntamente com outras fontes me­
nores (Institutiones, Authenticum e Librifeudorum) o Volumen paruum (livrinho).
4Como antes se disse, o parágrafo 1 é, de facto, o segundo na ordem do texto.
130
António Manuel Hespanh
(cont.)
D igesto (ou Pandectas)
N ovelas (534-565 d.C.):
(533 d.C.) - 50 livros ;5
•
•
•
divididos em títulos (salvo os
livros 30 a 32, De legatis et
divididas em
constituições ou leis;
•
a mais importante das
fideicommissis), estes em frag­
colecções medievais
mentos (ou "leis") e estes,
por vezes, em parágrafos;
de novelas é o Líber
Authenticum, composto
citação:
por 134 novelas latinas.
•
D., 2,1,3: D[ig.], [liv.] 2,
[tit.] 1, [frag.] 3, [parag.]
(frag. não dividido em
parágr.);
citação antiga:
I. Imperium,6
f f 7 De iurisdíctione;8
D., 1,1,10,1: D[ig.], [liv.]
1 , [tit.] 1 , [frag.] 10,
[parag.] 1 (frag. dividido
•
•
em parágr.);
citação antiga:
l. Iustitia,
f f De iustitia et de iure;
• D., 31,6: D[ig.], [liv.] 31,
[frag.] 6, [parag.] - (livro
não dividido em títulos);9
• citação antiga: l. grege,
ff De legatis et
fideicommissis.
•
5Na Idade M édia, o Digesto aparecia dividido em Digestum Vetum (livs. '
24,3,2); Digestum novum (livs. 39-50) e Digestum Infortiatum (livs. 24,3,3-38)
6Primeira palavra da "lei".
7 O nome grego do Digesto com eçava pela letra P (pi) que, m anuscrita se a
semelhava a dois f. E foi assim que os copistas m edievais a copiaram .
“Epígrafe do título.
9E fragmento não dividido em parágrafos.
5.1.1.1.3. Sistem atização e método
de citação do Corpus Iuris Canonicis
Decretum (c. 1140).
Decretais (1 2 3 4 ) - 5 livros.
•
•
divisão:
I a parte -
101 distinctiones;
d iv id id a s e m títu los
e cap ítu lo s.
•
2a parte - 36 causae,
divididas em quaestiones;
cita çã o :
c. [nc d o ca p ítu lo ], X (o u in
X ), ne d o tit. o u su as
3a parte
p rim e ira s p a la v ra s ,
(De consecratione) distinctiones.
e x .: c. 1, X , V , 7
(= c. 1, in X , D e haereticis)
5
• citação:
I a parte - c. [n° do cânone],
d. [na da dist.]
Sextum (= Liber sextum
D ecretalium ) (1 2 9 8 ) - 5 liv ro s.
ex.: c. 13, d. XXXVIII
«
2a parte - c. [n° do cânone],
C. [n2 da causa],
q. [na da quaestio]
ex.: c. 8, C. XII, q. 2
3a parte (De consecratione )
e 2a parte, Tractatus De
poenitentia. - c. [n° do
cânone], d. [n° da dist.],
De cons. (ou De poen.).
ex.: c. 46, d. 1, De poen.
•
•
cita çã o :
ig u a l a o a n te rio r, se n d o
a sigla V I o u in V I
Clem entinas (Clem entis V
constitutiones) (1 3 1 4 ) - 5 liv ro s.
•
d iv id id a s e m títu los
•
e ca p ítu lo s.
cita çã o : ig u a l a o an terio r,
citação antiga: a indicação
dos números dos cânones,
distinctiones ou quaestiones
é substituída pela das suas
primeiras palavras, o que
obriga a recorrer a índices
d iv id id o e m títu los
e cap ítu lo s.
sen d o a sigla Ciem. o u in Ciem.
Extravagantes de João XXII
(1 2 3 4 ).
•
d iv id id a s e m títu lo s; sig la E xtrav. Iohann. X X II
que acompanham as edições.
Extravagantes comuns
(séc. X V ).
•
d iv id id a s em títu lo s; sig la Extrav. Comm.
132
António Manuel H espanha
5.1.1.1.4. Os estudos romanísticos
no quadro da form ação dos juristas
Na economia desta exposição, o direito romano interessa-nos
apenas como uma experiência histórica, culturalmente localiza­
da. E, sobretudo, na medida em que constituiu uma referência,
sempre relida e reinterpretada, da ulterior tradição jurídica.
No entanto, há outras perspectivas sobre o seu interesse,
que aqui interessa avaliar.
O estudo do direito romano, como disciplina "dogmática"
- i.e., dotada de um interesse formativo de natureza "prática" no âmbito das licenciaturas de direito tem sido justificado fun­
damentalmente com base em dois argumentos: o da perfeição
do direito romano e o da importância do seu legado ainda no
direito actual.
Com o tópico da "perfeição do direito romano" quer-se
dizer que os romanos tiveram uma especial sensibilidade para
as coisas do direito, tendo criado conceitos e soluções cuja jus­
teza (no sentido de adequação, ajustamento, à natureza das coi­
sas ou das relações humanas) ou justiça (no sentido de confor­
midade com um padrão ideal do justo) se teriam imposto à usura
do tempo.135
Com o tópico da importância do direito romano na confor­
mação do direito europeu (ou, mais em geral, ocidental) de hoje
pretende-se sublinhar o interesse do direito romano para a in­
terpretação do direito actual (no âmbito da chamada "interpre­
tação histórica" ou "elemento histórico" da interpretação).
A ideia de uma especial perfeição do direito romano (ou de
qualquer outro direito histórico ou actual) repousa na ideia de
que existem padrões universais de justiça na regulação das re­
lações humanas, dos quais as várias épocas ou culturas se apro­
ximariam mais ou menos. Tratar-se-ia, então, de uma perfeição
n5 Em blem ático, r\a detesa destes pontos de vista, C ru z, 1989a, ""Prólogo" e
"R azões yastificativas da utilidade do ensino do dueito rom ano nas actu­
ais "Faculdades de D ireito ".
Cultura Jurídica Europeia
133
"material". Ou, vendo as coisas de um ponto de vista "form al",
que existiriam técnicas também intemporais de tratar as ques­
tões jurídicas, tais como maneiras de organizar a justiça (v.g., a
valorização da decisão do juiz sobre um caso concreto), mode­
los de raciocínio (v.g., o raciocínio a partir de casos), formas de
repartir as funções entre os vários operadores do direito (juris­
tas, magistrados, legisladores; v.g., a autonomização da autori­
dade racional dos juristas em relação à vontade política do legisla­
dor). A ideia da existência de padrões universais e eternos de
justiça baseia-se, por sua vez, na de que existe uma natureza
humana transtemporal e transcultural.
Da perspectiva das correntes de pensam ento que desta­
cam o carácter construído, cultural, local, das representações e
dos valores que dominam cada época (muito comuns entre
os historiadores, os antropólogos e os sociólogos) tem sido
destacada a dificuldade de valores, de princípios ou de téc­
nicas jurídicos que tenham vencido o tempo ou a diversida­
de cultural. O princípio da reciprocidade nas prestações (do
ut des [dou para que dês]), que é a chave da actual ideia de
justiça (justiça "com u tativa"), não valeu em sociedades em
que se entendia que bom e justo era dar sem pedir nada em
troca, distribuir livre ou arbitrariamente (princípio da "libera­
lidade", da "g raça" ou do "d om "; justiça "distributiva"). O
princípio do carácter sagrado e indisponível da vida huma­
na também não vigorou nem vigora nas culturas que sobre­
põem ao respeito pela vida humana outros valores, como a
segurança social, a retribuição do mal praticado. Conceitos
fundamentais do direito actual, como os de direito subjecti­
vo, de pessoa jurídica, de relação jurídica, de generalidade da
norma, de não retroactividade das leis, de igualdade jurídica
e política, de prim ado da lei, de Estado, são relativam ente
modernos na cultura jurídica europeia, não existindo de todo
noutras culturas jurídicas.
Frequentemente, esta descontinuidade e inovação na histó­
ria jurídica é encoberta pela própria maneira de fazer história.
Os historiadores do direito fazem, frequentem ente, uma
leitura do direito passado na perspectiva do actual, procuran­
134
António Manuel Hespar
do lá os "prenúncios", as "raízes" dos conceitos, dos princípios e das
instituições actuais. Por exemplo, se estudam o Estado, procuram nos
direitos da tradição europeia, nomeadamente no direito romano,
entidades que dispusessem de certos atributos (mas não de outros,
como o monopólio de criação do direito, ou um poder de plena
disposição em relação à ordem jurídica) do Estado actual (por
exemplo, o conceito de popidus romanus, o conceito de imperator);
ou, se estudam a propriedade, pegam na história do dominium sobre
as coisas, conceito que, em algumas definições romanas (ius utendi ac
abutendi), parece corresponder à actual propriedade individualista.
Num caso ou noutro, um estudo da lógica originária do conceito, bem
como da sua integração no seu contexto conceituai ou institucional de
então, mostraria que, se se respeitar a autonomia do conceito
histórico, este não corresponde, de forma alguma, ao actual.
Outras vezes, os historiadores ocupam-se do estudo dos conceitos ou
instituições com um nome igual ("obrigação-ob/z-gatio",
"representação-repraesentatio",
"matrimónio-matrimo-nium").
Também aqui, um estudo mais preocupado com os conteúdos do que
com os nomes chegará facilmente à conclusão de que, por detrás da
continuidade das palavras, se verificaram rupturas decisivas de
conteúdo. As própria palavras evocavam, então, ideias e imagens
diferentes,
que
nem
sequer
nos
ocorrem
hoje.
Também a utilidade do estudo do direito romano para a interpretação
do
direito
actual
é
problemática.
É certo que o direito actual é o herdeiro, nas suas palavras, nos seus
conceitos, nas sua instituições, de uma longa tradição na qual os
textos de direito romano tiveram um lugar central. Mas a primeira
coisa que é preciso dizer é que, ao longo dessa longa tradição, os
textos romanos sofreram reinterpretações contínuas, ao mesmo tempo
que, da imensa mole de textos disponíveis, os que. protagonizavam o
discurso jurídico iam sucessivamente mudando. Pode mesmo dizer-se
que, se não fosse essa contínua alteração silenciosa do direito romano
invocado
pela
Cultura Jurídica Europeia
135
tradição romanística, este não teria podido sobreviver às enor­
mes transformações culturais e sociais da sociedade europeia
durante mais de dois milénios. O "herdeiro" do direito, formalista, romano não foi o mesmo do direito, linhagista, feudal e
senhorial ou do direito, igualitarista, da Época Contemporânea.
A "equidade" romana clássica, inspirada na filosofia aristotélica ou estóica, não foi a mesma dos direitos cristianizados, pósclássico, medieval ou moderno, nem a mesma do direito, indi­
vidualista e laicizado, dos nossos dias. Isto apesar de as pala­
vras "herdeiro-heres" e "equidade-aequitas" - e os textos roma­
nos que se lhes referiam - terem estado continuamente presen­
tes na reflexão jurídica de dois mil anos.
No entanto, o que é importante realçar é que cada insti­
tuto jurídico ou cada conceito de direito faz parte de um siste­
ma ou contexto, do qual recebe o seu sentido. Mudado o con­
texto, os sentidos das peças isoladas recompõem-se, nada ten­
do a ver com o que elas tinham no contexto anterior. Isto mos­
tra já até que ponto são frágeis os argum entos históricos na
interpretação das normas jurídicas. Pode mesmo dizer-se que
só porque esquecemos os sentidos originários dos conceitos ou
das instituições é que elas podem continuar a funcionar, nesta
contínua readaptação que é a sua história. Só porque esquece­
mos o sentido originário das palavras romanas que significam
"obrigação" (obligatio - atar em volta de) ou "pagam ento" (solutio - desatar) é que alguns textos de direito romano que se lhes
referem, podem continuar a ser invocados (depurados, como
é evidente, dos seus sentidos, explícitos ou implícitos, origi­
nais). Só porque esquecemos o conteúdo originário de concei­
tos romanos como paterfamilias (ou mesmo fam ilia) ou actio (ac­
ção) é que podemos continuar a tirar partido de alguns princí­
pios de direito romano que se lhes referem. A própria ideali­
zação que por vezes se faz, por exemplo, da natureza criativa
e autónoma da jurisprudência (no sentido, originário, de dou­
trina) ou da actividade do pretor só é ainda hoje atraente por­
que se esquece todo o seu contexto político e social. Seguramen­
te que não poderíamos hoje aceitar que um grupo de juristas
136
António M anuel H espanha
dispusesse de uma quase total discricionariedade de conforma­
ção do direito, nem que um magistrado utilizasse a sua auto­
ridade burocrática para decidir em que casos garantia protec­
ção jurídica (como o fazia o pretor através da concessão ou ne­
gação de actiones praetoriae)136 ou para nos forçar a praticar ac­
tos que alterassem o nosso estatuto jurídico ou o estatuto jurí­
dico das nossas coisas (como nos expedientes do pretor basea­
dos no seu imperium).137
Como se pode, então, justificar o lugar que ainda vem sen­
do atribuído ao direito romano nas Faculdades de Direito de um
grande número de países, nomeadamente na Alemanha, em Itá­
lia, em Espanha e em certos países da América Latina? Desde
logo, pelo peso da tradição e das próprias estruturas universi­
tárias, pois a própria existência de cátedras, com o seu pessoal,
é um factor de continuidade.
Depois, pelo impacto das anteriores ideias. Nomeadamente
no imediato pós-guerra, a crise provocada pela constatação da
impotência do direito, mesmo no país clássico dos estudos jurí­
dicos (a Alemanha), para impedir a implantação de regimes que
negavam alguns dos princípios básicos da cultura jurídica oci­
dental, fez surgir projectos de reforma profunda do direito. No
quadro destes projectos, os romanistas apresentaram então o
direito romano, com a sua estrutura anti-legalista e com o seu
embebimento ético (?), como um possível modelo capaz de evi­
tar aquele "totalitarismo da lei" ("absolutismo da lei", chamalhe Paolo Grossi), com o qual se tinha relacionado os males ocor­
ridos. Tratava-se de uma época em que se reagia fortemente con­
tra a redução do direito à lei, contra a inexistência de critérios
supra-positivos para aferir da legitimidade das leis, contra a dis­
solução da especificidade do caso concreto numa abstracta nor­
ma geral. O direito romano - com o seu carácter doutrinal e jurisprudencial; com as suas referências à aequitas, à natura rerum
(natureza das coisas) e ao ius nnturale (direito natural); com o seu
136V. Cruz, 1989a, 332 ss.
137 Ibid., 302 ss.
Cultura Jurídica Europeia
137
casuísmo - seria justamente o antídoto contra tais males.138Con­
temporaneamente, surgiram, porém, correntes de pensamento
jurídico - as que valorizavam métodos casuístas (J. Esser), as que
propunham processos apenas "probabilistas" de raciocínio (Th.
Viehweg), as que criticavam o papel conservador da dogmática
jurídica estabelecida e propunham uma intervenção mais cria­
tiva dos juizes ("uso alternativo do direito") - que propunham
vias de superação da crise que não passavam por um mais que
problemático retorno a um direito de há dois milénios.
Ao direito romano fica, porém, um inegável interesse his­
tórico, nos quadros de uma história do direito de intenção críti­
ca, ou seja, que vise mostrar o carácter apenas local da actual cul­
tura jurídica, revelando o carácter radicalmente diferente e al­
ternativo de outros modos de imaginar e pensar o direito.
Ora o direito romano é, justamente, um bom exemplo de
uma cultura jurídica diferente. Nos seus pressupostos culturais, na
sua técnica de lidar com os problemas jurídicos, nos seus concei­
tos e princípios, nas suas instituições e, finalmente, na forma de
organizar a prática jurídica. As melhores exposições de direito
romano são, por isso, aquelas que, libertando-se das categorias
jurídicas actuais, conseguem dar uma visão, historicamente mais
autentica, do direito romano como um sistema jurídico domina­
do por uma lógica alternativa, ou mesmo oposta, à do actual. Basta
ler os primeiros parágrafos de um manual como o do prestigia­
do romanista espanhol Alvaro d 'O rs139para nos darmos conta de
que modo era diferente a maneira de pensar o direito e de orga­
nizar o seu estudo entre os romanos: o direito consistia na dou­
trina jurídica; direito, verdadeiramente, era só o direito privado;
a sua exposição centrava-se no direito processual; a "sistematiza­
ção germânica" do direito civil era desconhecida.
No quadro seguinte, sintezam-se algumas dessas diferenças.
138"O principal objecto da nossa docência deve ser libertar o jurista moderno
da servidão do positivismo legalista e instruí-lo nos hábitos mentais de uma
jurisprudência cuja independência continua a ser exem plar" (D'Ors, 1973).
139Derecho privado romano, 1973, 3 ss.
138
António Manuel Hesp
Direito romano
Crença num direito imanente
(natura rerum, ius naturale)
• "é da natureza das coisas que
aquele que beneficia das
vantagens sofra também os
inconvenientes" (D., 50,17,10).
Casuísmo: a justiça como a
solução ajustada de um caso
concreto.'
• "a regra é aquilo que enuncia
brevemente uma coisa. Não é a
partir da regra que se extrai o
direito; mas a partir do direito
que existe que se faz a regra [...];
a qual, quando se não verifica
em alguma coisa, perde a sua
força" (D., 50,17,1).
• "toda a definição em direito
civil é perigosa, pois é raro que
não possa ser subvertida"
(D.,50,17,202).
Carácter jurisprudendal ou
doutrinal: o direito como
criação dos juristas, a partir
do seu saber-prático.
Autonomia da autoridade dos
juristas (ex própria auctoritate).
O direito como um saber prático
(como uma prudentia ou arte de
agir).
Direito actual
Concepção positivistavoluntarista do direito:
• o direito como vontade
(arbitrária, artificial) do poder
expressa em declarações solenes
(leis).
Normativismo (a justiça como
critério geral e abstracto):
• o direito como norma geral
e abstracta;
• o justo como critério genérico.
Carácter legal.
Dependência da autoridade dos
juristas (ex auctoritate principis):
• o juiz como longa mão da lei;
• o jurista como aplicador da lei;
• o saber jurídico como técnica
de aplicação da lei.
O direito como a expressão de
uma vontade ou como um saber
especulativo.
• o direito como ciência ou das
leis (positivismo legalista) ou
dos princípios gerais de direito
(positivismo conceituai).
1 Apesar da raiz casuísta da "invenção jurídica" rom ana, deve notarse o esforço "con strutivo" da jurisprudentia, procurando estabele­
cer modelos gerais (regulae, figuras, tipos ou conceitos), a partir dos
quais as soluções particulares ganhassem coerência e fossem expli­
cáveis de um a form a generalizante.
Cultura jurídica Europeia
139
5.1.1.1.5. Súmula cronológica
da evolução do direito romano
753 a.C.
Fundação de Roma. O direito baseava-se exclusivam ente
nas "acçõ es" previstas e tipificadas na lei
(nom eadam ente, na "L ei das XII Tábuas", legis actiones).
367 a.C.
C riação da m agistratu ra dos pretores, en carregad a da
adm inistração d a justiça nas causas civis. Início do ius
praetorium, constituído pelas m odificações introduzidas
pelo pretor no direito civil, com base nos seus poderes
genéricos (i.e., com uns a todos os m agistrados) de itnperium, i.e., de d ar ordens (stipulationes praetoriae [pro­
m essas], restitutiones in integrum [reposição no estad o a n ­
terior], missiones in possesionem [entregas forçadas], interdicta [proibições de agir ou ordens de exibir, restituir]).
242 a.C.
C riação do p retor p eregrino; fim do período de vigência
exclusiva do ius civile.
Lex Aebutia deformulis - atribui ao pretor a possibilidade de
redigir um a formula, espécie de program a de averiguação
dos factos e de sua valorização, segundo a qual 0 iudex leva­
va a cabo 0 iudicium (ou fase apud iudicem, junto do juiz, do
processo), ou julgamento do diferendo; a par-tir daqui, 0
pretor leva a cabo a sua missão de corrigir e adaptar 0 ius
ríirile com recurso a meios propriamente "judiciais" (i.e., com
base em poderes que lhe são espe-cíficos - a iurisdictio - e
não comuns a todos os magistrados - como era 0 imperium).
Com pilação do Edictum perpetuum, a cargo de Salvius
lulianus, que constitui um a codificação, com carácter
definitivo, dos éditos anuais dos pretores e que, deste
m odo, representa um a consolidação do ius praetorium.
Term o convencional da época clássica (130 a.C. - 230), 0
período de vida e actu ação dos m aiores juristas, com o Q.
M. Scaevola ( t 132 a. C .), Labeo ( t c .10), Iavolenus ( t 98),
Iulainus ( t 168), Gaius ( t c.180), Papinianus ( t 212),
Paulo ( t c.226), Ulpiano ( t 228), M odestino ( t 240).
Divisão definitiva do Im pério.
Lei das Citações, limitando a autoridade da jurisprudência aos
juristas Papiniano, Paulo, Ulpiano, Modestino e Gaio, e
erigindo Papiniano em critério de decisão, no caso de empate.
Codex Theodosianus.
149 (?) a.C.
130 d.C.
230 d.C.
395 d.C.
426 d.C.
438 d.C.
530 d.C.
530-565 d.C.
Início do reinado de Justiniano I.
Elaboração do Corpus iuris civilis.
140
António Manuel Hespanha
5.1.1.2. O direito romano na história do direito português
O direito romano vigente na Península Ibérica, a aprtir do
início da romanização (218 a.C.) era:
a) Para os cidadãos romanos, estabelecidos nas cidades ro­
manas (colonias, municípios), o ius civile. Após o edito de
Caracala (212 d.C.), que outorgou a cidadania a todos os
habitantes do Império, o ius civile passou a ter uma vigên­
cia tendencialm ente generalizada. O direito civil era
adaptado às características da vida provincial pela acti­
vidade do magistrado encarregado de administrar a jus­
tiça (governador, praesis provinciae), dando origem a um
direito provincial com bastantes especificidades. Por ou­
tro lado, era menos técnico, socorrendo-se de formas sim­
plificadas (direito romano vulgar, Vulgarrecht).
b) Para os não cidadãos (a maioria), os seus direitos, quase
sempre costumeiros, pois apenas os Tartesos (na costa SE
da Península) parece terem tido leis escritas. Estes direi­
tos eram reconhecidos pelos romanos, nos termos de de­
clarações unilaterias ou dos tratados paz estabelecidos
com as comunidades indígenas.
c) Para as relações entre romanos e não romanos, o ius gentium, que os romanos reconheciam como um direito co­
mum a todas as nações (gentes).
A história do direito romano na Península Ibérica tem sido
abordada quer por historiadores espanhóis, quer por portugue­
ses. Quanto aos primeiros v., por último e com indicações bibli­
ográficas, Juan Antonio Alejandre Garcia, Derecho primitivo e romanización jurídica, Sevilla 1979; Francisco Tomaz y Valiente,
Manual de historia dei derecho espanol, Madrid, Tecnos, 1981 (3a
ed.), 71 96. Quanto aos segundos, Nuno Espinosa Gomes da Sil­
va, Historia do direito português, Lisboa, Gulbenkian,1985,31 36,
A. M. Hespanha, História das instituições. Epocas medieval e mo­
derna, Coimbra, Almedina, 1982, 69-80.
As fontes jurídicas especificas da Península (leges de coló­
nias e municípios) estão publicadas nas Fontes iuris romani anteiustitniani (FIRA), Firenze 1941,1. Leges (2.a ed., a cargo de Ric-
Cultura Jurídica Europeia
141
cobono). Também tiveram uma edição portuguesa em Colecção
de textos de direito peninsular. I. Leis romanas Coimbra 1912. As
Leges metalli Vipascenses têm tido várias edições, traduzidas e
comentadas, a última das quais é a de C. Domergue, em "La
mine antique d'Aljustrel (Portugal) et les tables de bronze de
Vipasca", Conimbriga, 22 (1983) 5 193. O Codex theodosianum foi
editado por Mommsen e Meyer, Theodosiani libri XVI, cum constitutioniobus sirmondianis et leges novellae aã Theodosianam perti­
nentes, 2 vols.,., Berolini 1905 (reimpr. 1954). Do Corpus Iuris civilis existe uma edição crítica, a cargo de Mommsen, Krüger,
Schõll e Kroll (revisão de W. Kunkel), 3 vols., Berolini 1965. Existe
uma tradução espanhola recente, dirigida por A. d'Ors (Pamplona 1965 ss.). Muitos excertos das fontes jurídicas (e literári­
as) romanas, com a respectiva tradução, foram incluídos na
Antologia de juentes dei antiguo derecho (= Manual de historia dei
Derecho, II vol.), de Alfonso Garcia Gallo, Madrid, Taurus, 1967.
5.1.1.3. A recepção do direito rom ano
Com a restauração do Império do Ocidente (Carlos Mag­
no, 800 d.C. [Império carolíngio]; Otão I, 962 d.C. [Sacro Impé­
rio Romano-Germânico]), surge a ideia de que o antigo Império
Romano revivescera, sendo os seus atributos políticos, nomea­
damente a universalidade do seu poder político, transferidos
para os novos imperadores (translatio imperii). Para mais, o Im­
pério aparecia como uma criação providencial ("qui est a Deo",
que deriva de Deus, dirá o jurista Baldo de Ubaldis, [século
XIV]), destinada a ser o suporte político (o gládio temporal) da
Igreja, correspondendo a universalidade do Império à catoliciâade (i.e., carácter ecuménico ou universal) da Igreja.
Os resíduos de direito romano então conhecidos e, sobre­
tudo, os seus principais livros, redescobertos no Norte de Itália
no século XII, são então tidos como direito do Império, de voca­
ção universal; logo, como direito comum.U0
,J0Sobre a form açao e evolução do direito com um , v. C avanna, 1982, 33-75;
Clavero, 1979,17-84.
142
António Manuel Hesp
No entanto, o território do Império não era um espaço
juridicamente vazio. Nos jovens reinos medievais, nas cidades
(sobretudo em Itália), nos senhorios e noutras corporações de base
pessoal (universidades, corporações religiosas, corporações de
artífices) existiam e continuavam em pleno desenvolvimento direitos
próprios, fundados em tradições jurídicas romano-vulgares,141
canónicas e germânicas142 ou simplesmente nos estilos locais de
normação e de resolução de litígios. Assim, a pretensão de validade
universal do direito comum do Império (então identificado ainda
apenas com o direito romano) - defendida pelo Imperador e,
também, pelos juristas universitários que o ensinavam - não podia
deixar
de
originar
tensões.
A vigência dos direitos locais foi inicialmente fundada numa
pretensa permissão (permissio) ou reconhecimento tácito (tacitus
consensus) do imperador.143 Depois, dir-se-á que o rei (ou a cidade)
que não reconhece superior é como imperador no seu território (rex
superiorem non recognoscens in regno suo est imperator, Azo,
Guilherme Durante), com isto se justificando a pretensão das grandes
monarquias da Europa ocidental (França, Inglaterra, Sicília, depois,
as
monarquias
ibéricas,
como
141 I.e., com origem no direito romano vulgarizado (ou deturpado)
em vigor no ocidente da Europa depois do século V (Vulgarrecht).
,42Os direitos das várias "nações" ou tribos germânicas que invadem
e percorrem a Europa, entre os séculos III a VIII, eram de natureza
consuetudinárias. Mas foram frequentemente coligidos em
compilações que imitavam as codificações de constituições imperiais
romanas do Baixo Império (séculos IV e V). Chamou-se, mais tarde, a
estas compilações "leis dos bárbaros" (leges barbarorum). São
exemplo delas as leges visigothorum, dos reinos visitados de França
e da Península Ibérica; a lex baiuvariorum, dos bávaros do sul da
Alemanha; a lex borgundionum, dos brunidos ou borgonheses do
leste da França; a lex salica, dos francos; o Edito de Rotário, dos
lombardos,
etc.
143 O texto invocado era um dos capítulos da paz de Constância:
"Nós, Frederico, Imperador, e o nosso filho Henrique, Rei dos
Romanos, concedemo-vos, a vós cidades, lugares e comunidades, os
nossos direitos reais e costumes [...] de modo que nessa cidade
tenhais tudo como até agora tendes ou tenhais tido [...]" (Liber de
pace
Constanliae,
2).
Cultura jurídica E uropeia
Castela e Portugal) a não reconhecerem a supremacia im peri­
al (exemptio imperii, isenção em relação ao Império) nem, con­
sequentemente, a obrigatoriedade política do seu direito. Final­
mente, com base num texto do Digesto - a "lei" om nes populi
(D.,1,1,9), que se tornará central para a forma de conceber as
relações entre direito comum e direitos próprios, acaba por se
reconhecer que os povos têm, naturalmente, a capacidade de
estabelecerem o seu próprio direito. Já no século XIV, o jurista
Baldo exprim irá de forma acabada este carácter natural do
poder normativo dos corpos políticos infra-imperiais - "os po­
vos existem por direito das gentes [i.e., natural] e o seu gover­
no tem origem no direito das gentes; como o governo não pode
existir sem leis e estatutos [i.e., leis particulares], o próprio facto
de um povo existir tem como consequência que existe um go­
verno nele mesmo, tal como o animal se rege pelo seu próprio
espírito e alm a".
A vigência do direito comum tem, assim, que se com pa­
tibilizar com a vigência de todas estas ordens jurídicas reais,
municipais, corporativas ou mesmo familiares. Esta compatibilização não pode ocorrer senão por uma forma. Considerar
que, no seu domínio particular de aplicação, os direitos pró­
prios têm a prim azia sobre o direito comum, ficando este a
valer, não apenas como direito subsidiário, mas também como
direito modelo, baseado nos valores mais permanentes e gerais
da razão humana (ratio scripta, ratio iuris), dotado por isso de
uma força expansiva que o tornava aplicável a todas as situa­
ções não previstas nos direitos particulares e, ao mesmo tem­
po, o tornava num critério, tanto para julgar da razoabilidade
das soluções jurídicas nestes contidos, como para reduzir as
soluçãoes, variegadas e dispersas dos direitos locia, a uma or­
dem "racional"..
A partir do século XIII, primeiro em Itália e, depois, um
pouco por toda a parte, o direito romano passa a estar integra­
do no sistema de fontes de direito da maior parte dos reinos eu­
ropeus, mesmos naqueles que não reconheciam a supremacia do
imperador, embora, nestes casos, apenas quando se verificasse
144
António M anuel Hespanha
nao estar a matéria em causa regulamentada pelo direito local.144
O mesmo aconteceu na Alemanha, onde a recepção foi mais tar­
dia (séculos XV/XVI).
Esta recepção do direito romano nos direitos dos reinos
europeus pode ser explicada a partir de várias circunstâncias.
Na perspectiva de uma história "social" do direito, costu­
ma dizer-se que a recepção do direito romano estava de acordo
com as formas de vida económica em desenvolvimento na Eu­
ropa de então. Os séculos da recepção (XIII-XVI) são, de facto,
os do desenvolvimento inicial da economia mercantil e mone­
tária europeia.145 A este novo tipo de relações económicas seri­
am necessárias três coisas no plano jurídico - um direito estável,
que garantisse a segurança jurídica e institucional necessária à
previsão e ao cálculo mercantil, um direito único, que possibilitasse
o estabelecimento de um comércio inter-europeu, e um direito
individualista, que fornecesse uma base jurídica adequada à ac­
tividade do empresário, livre das limitações comunitaristas que
os ordenamentos jurídicos medievais tinham herdado do direi­
to germânico. O direito romano constituiria, precisamente, um
ordenamento jurídico dotado de todas estas características: a sua
abstracção (i.e., o facto de as situações visadas pelas normas es­
tarem nelas descritas através de formas muito estilizadas e, por­
tanto, gerais) opor-se-ia ao casuísmo dos direitos da Alta Idade
Média; depois, era aceite como direito subsidiário comum a to­
das as praças comerciais europeias, constituindo uma língua fran­
1+1 As questões jurídicas deviam , portanto, ser resolvidas "secu n d um formam
statuti, ubi sunt statuti, et statutis deficientibus, secundum legus romanae" (Es­
tatutos de N ovara, 1227). Em Castela, as Siete Partidas de Afonso X, obra
doutrinal de forte influência rom anista, adquirem , em 1348, a força de di­
reito subsidiário em C astela, havendo notícia da sua aplicação em Portu­
gal (v. M erêa, 1 9 2 5 ,1 2 4 ). Em Portugal, um a lei de D. João I (1426) põe em
vigor um a parte do C ódigo de Justiniano, com a correspondente glosa de
Acúrsio e com entário de Bártolo, em bora a validade geral - se bem que
subsidiária - do direito justinianeu só venha a ser consagrada nas Ordena­
ções Afonsinas (1447), con sagração ratificada, m ais tarde, nas Ordenações
Manuelinas (1521) e Filipinas (1603).
w5Cf., breviter, Ellul, 1956, vol. II, 207 ss. e 263 ss.
Cultura Jurídica Europeia
145
ca de todos os mercadores, usada desde as cidades da Hansa, nas
costas europeias do Báltico e do Mar do Norte, até às da faixa
mediterrânica. Por último, os grandes princípios do sistema jusromanista coincidiriam, no fundam ental, com á visão capi­
talista das relações mercantis - liberdade de acção negociai, ga­
rantida pelo princípio da autonomia da vontade;146 possibilida­
de de associações maleáveis e funcionais, facultada pelas figu­
ras romanísticas da personalidade jurídica ou colectiva (universitas, corpora, etc.); extensão ilimitada do poder de lançar os bens
e capitais no giro mercantil, facultada por um direito de propri­
edade que desconhecia quaisquer limitações sociais ou morais
ao uso das coisas.147
Não parece, em todo o caso, que se deva insistir muito nes­
tes tópicos. Na verdade, o direito romano nem se caracterizava
(tal como o direito comum), como veremos, pelo seu carácter
abstracto; nem era ele que garantia a comunicação jurídica en­
tre as grandes praças comerciais europeias;148 nem, finalmente,
o direito romano conseguira fazer inverter o sentido anti-indi­
vidualista dos direitos medievais europeus, antes servindo bem
o seu reforço.
As causas são possivelmente de buscar noutros planos.
Por um lado, a já referida restauração do Império ociden­
tal, no século IX, gerara a ideia - assim expressa pelo bispo Agobardo de Lion - de que “ut sub uno piissimo rege una lege omnes
regerentur" (como os súbditos vivem sob a autoridade de um
piissimo rei, devem reger-se todos pela mesma lei), ou seja, de
que a unidade política e até religiosa do Império exigia a sua
unidade jurídica.149 E esta não podia ser construída senão sobre
o direito do Império por excelência, o Império Romano.
146O u rlia c,1 9 5 7 ,9 7 ss.
147Sobre a inadequação do direito m edieval ao individualismo e "am oralism o" da econom ia capitalista, v. Villey, 1 9 6 1 ,106-107.
148Nas matérias comerciais, o direito com um ente usado, a título principal ou a
título subsidiário (lex mercatoria) era, mais do que o direito romano (lex Rhodia), o direito de algumas praças comerciais europeias mais importantes (v.g.,
o Livro do Consulado do Mar, de Barcelona, ou os Costumes de Olerorí).
149Calasso, 1954,152.
146
António Manuel Hesp
Por outro lado, onde a autoridade do direito romano não
pudesse provir da autoridade do imperador - por lhe não ser devida
vassalagem - aquele continuava a impor-se em virtude da superior
perfeição que lhe era atribuída. Realmente., as fontes do direito
romano eram muito mais completas e sofisticadas do que as dos
direitos germânicos alto-medievais ou dos direitos locais. Com a sua
fina e riquíssima casuística, cobria a generalidade das situações.
Tinha, além disso, sido objecto de uma elaboração doutrinal. As suas
soluções apareciam "explicadas" e "justificadas" pelos juristas. Estes
tinham, por outro lado, elaborado uma série de argumentos gerais,
como a razão do direito (ratio iuris), a equidade (aequitas),150 a
utilidade (utilitas), que constituíam como que linhas de orientação
do saber jurídico, permitindo dar coerência às várias soluções
casuísticas e encontrar outras novas. Por tudo isto, o direito romano,
respondia - directamente ou mediante interpretação extensiva - à
generalidade das questões; mas, além disso, respondia-lhes de
forma razoável e convincente. Devido a esta perfeição ou
racionalidade, o direito romano podia valer não apenas em virtude
da submissão política (ratione imperii, em razão do império), mas
também pela aceitação (voluntária) da sua razoabilidade (império
rationis, por imperativo da razão).
Esta crença na perfeição do direito romano era, para mais, ainda
potenciada pelo empenhamento dos juristas letrados, formados no
saber jurídico universitário baseado no direito romano.151 Que,
naturalmente, divulgavam nos círculos mais elevados do poder
(imperial, papal, real, citadino) a excelência das fontes jurídicas com
que trabalhavam. O direito romano, ao lado da filosofia grega, das
belas letras clássicas e da medicina gre-co-romana, integrava assim
um modelo intelectual que os círculos cultos europeus, mesmo antes
do Renascimento, nunca deixaram de venerar.
150
Não a ruda aequitas (equidade rude) do povo comum, mas a
equidade extraída das fontes elaboradas do directo (a aequitas
civilis, a equidade "civilizada").
151
Sobre as universidades ibéricas e a recepção, v. Pérez
Martin, 1980.
Cultura jurídica Europeia
147
5.í.i.4. AAnfhièn.cia do direito romano
na própria legislação local
Mas mesmo nos domínios regulados pelo direito local, a
uniformização estava em marcha, provocada por uma influência
crescente dos princípios romanistas sobre o próprio legislador.
Inicialmente, tal influência processava-se através das colec­
tâneas legislativas da Alta Idade Média, v.g., o Breviário de Alarico, uma colectânea de direito romano organizada, no início do
século VI, por ordem de um rei visigodo, para a população romanizada do seu reino. Alguns notários utilizavam tam bém
conhecimentos rudimentares de direito, obtidos em textos de
direito romano vulgar, para redigirem fórmulas negociais. Reu­
nidas em colectâneas, essas fórmulas circularam por toda a Eu­
ropa ocidental. Nas mãos de notários e escrivães, constituíram,
entre os séculos V e X, os únicos documentos de uma cultura
jurídica escrita, altamente prestigiada num mundo em que do­
minava o analfabetismo.152 Mais tarde, a recepção do direito ro­
mano vai ter como agentes os letrados presentes nas chancela­
rias reais, que utilizam as fórmulas deste direito para fazer va­
ler as pretensões políticas de reis e imperadores. Assim, se rios
aparecem fontes de direito régio fortemente imbuídas de prin­
cípios romanistas, sobretudo a partir do século XIII,153 surgem
também enfáticas afirmações doutrinais, de juristas formados no
direito romano, de que este deve ser o cânone interpretativo da
própria legislação dos reinos.154
152Cf., sobre o tema, Padoa-Schiopa, 1 9 9 5 ,1 6 1 ss.
153 V.g., o Liber Augustalis (1231) de Frederico II von Hohenstaufen; a legisla­
ção inglesa de Eduardo I (m eados do século XIII); a lei dinam arquesa de
1241; e, na Península, o Fuero Real (1250-1260) e as Siete Partidas (1265). Em
Portugal, esta influência é muito notória na legislação de Afonso 111. M as
verificava-se já desde os inícios do século XIII.
154Por exem plo: ao propor um a certa solução para um a questão (em m atéria
de apropriação de um bem depositado pelo depositário) em que o direito
lom bardo era diferente do direito rom ano, dois juristas do italianos do séc.
XII (Guilherme e o seu filho H ugo, defendiam que "a reintegração do d e­
positante se fizesse segundo a lei rom ana, quer as partes sejam rom anas,
quer lom bardas, pois esta é geral para todos" (apud Calasso, 44).
António M anuel Hespanha
148
5 .2 . A t r a d i ç ã o c a n o n í s t i c a
O direito canónico é o direito da Igreja cristã.155
Como instituição, a Igreja sempre teve um direito que, ini­
cialmente, decorreu quase inteiramente da vontade de Deus,
revelada nos livros sagrados (Antigo e Novo Testamentos). Nos
tempos apostólicos, os cristãos alimentaram a esperança de po­
der resolver, quer os problemas de disciplina interna da Igreja,
quer as relações entre os crentes, apenas com base na palavra
de Deus, nos ensinamentos de Cristo e nas exigências do amor
fraternal. O carácter clandestino do cristianismo nos seus três
primeiros séculos tornavam, de resto, praticamente impossível
a existência de aparelhos jurídicos e judiciários. A Igreja cura­
va, então, mais da difusaõ da palavra (dos dons "proféticos") do
que das matérias organizativas e disciplinares.156
Tudo se modificou, porém, com a outorga da Uberdade de
culto pelo imperador Constantino, em 313 d.C. A jurisdição do
Papa e dos bispos sobre os fiéis pode, agora, ser abertamente
exercida, sendo mesmo fomentada pelo poder imperial, que atri­
bui força de julgamento às decisões episcopais sobre litígios que
lhes tivessem sido voluntariamente sujeitos e reserva para a ju­
risdição eclesiástica o julgamento das infracções puramente re­
ligiosas. A partir do século V, o Império - e, depois, os restantes
poderes temporais - reconhece à Igreja o privilégio de foro, atri­
buindo-lhe uma jurisdição privativa sobre os clérigos. No sécu­
lo X, a Igreja arroga-se a jurisdição sobre todas as matérias rela­
tivas aos sacramentos, nomeadamente, sobre o casamento.
Esta progressiva extensão do domínio jurídico-jurisdicional da Igreja foi ainda facilitada pela derrocada das estruturas
políticas, jurídicas e jurisdicionais no Ocidente europeu conse-
155 Sobre o direito canónico, v., em síntese, Gilissen, 1988,133-160; para maio­
res desenvolvim entos, v. Le Bras, 1955; Berm an, 1983.
156Sobre a história da Igreja, realçando estas oposições entre profetismo e dis­
ciplina, v . o fundam ental ü v t o à e H ans K üng, O Cris ticmismo. Essên cio e história[1994], trad. port., Lisboa, Ciclo de Leitores, 2002, nom eadam ente, cap.
C.1L.
Cultura Jurídica Europeia
149
quente à queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e às
invasões germânicas. Cada vez mais prestigiada culturalmente
- pelo seu domínio quase exclusivo da cultura escrita - e cada
vez mais forte e organizada no plano institucional, a Igreja ten­
de a hegemonizar os mecanismos políticos e jurídicos, impon­
do-se aos reis e tutelando as organizações políticas periféricas
(cidades e comunidades locais).
Esta expansão institucional da Igreja obriga-a a constituir
um corpo normativo muito mais complexo do que o dos primei­
ros tempos, pois o conteúdo dos Livros Sagrados já não pode
regular uma sociedade com problemas e cultura diferentes dos
da sociedade hebraica dos tempos bíblicos ou mesmo da comu­
nidade judaico-romana dos tempos de Cristo.
Uma das fontes desta nova regulação são os decretos dos
concílios, ecuménicos, regionais, provinciais ou diocesanos, as­
sembleias dos bispos de toda a cristandade ou de uma região,
província ou diocese particulares, respectivamente. Em cada
diocese, podem ainda ser promulgados constituições ou estatu­
tos diocesanos, aprovados pelos sínodos (assembleias de ecle­
siásticos) locais.
Outra fonte do direito canónico é constituída pelas deterr
minações papais. De facto, embora inicialmente o poder norma­
tivo da Igreja estivesse atribuído aos órgãos colectivos que eram
os concílios e o Papa apenas interviesse para esclarecer ou apli­
car concretamente as normas conciliares, o papado - socorrendo-se frequentemente da imagem, paralela, do Imperador e das
prerrogativas deste segundo o direito romano - foi, progressi­
vamente, aumentando a sua capacidade de edição do direito,
emitindo decretais ou constituições pontifícias. De acordo com uma
tipologia, que tem tanto a ver com as temáticas como com as suas
finalidades, as constituições podem designar-se por encíclicas,
bulas ou breves. Este crescente poder legislativo dos Papas - e a
inerente capacidade para derrogar o direito tradicional - consti­
tui, por sua vez, um modelo para os monarcas medievais e uma
fonte de legitimação da sua reivindicação de inovar, por via le­
gislativa, os ordenamentos jurídicos dos reinos.
150
António Manuel Hesif
A partir de certa altura, este novo direito escrito da Igreja
passa a constituir uma mole normativa apreciável, a necessitar de
compilação e de concatenação. Isso é feito, por iniciativa privada,
durante os séculos VI a VIII, destacando-se delas uma colecção feita
no reino visigótico da Hispania . No século XII, um monge
professor de teologia em Bolonha, Graciano, elabora uma
compilação que se iria impor a todas as anteriores e permanecer
como um grande repositório de direito canónico praticamente até à
actualidade - a Concordantia discordantium canonum [concórdia
dos cânones discordantes, c. 1140], mais conhecida por Deeretum
Gratiani [Decreto de Graciano]. Aí reúne cerca de 4000 textos de
relevância jurídica, desde passos de Padres da Igreja até cânones
conciliares, organizados por matérias e brevemente comentados ou
apenas
sintetizados
(num
dictum)}57
Com o contínuo desenvolvimento do direito da Igreja, o Decreto foise
desactualizando,
tornando
necessárias
compilações
complementares. Em 1234, Gregório IX encarrega o dominicano
espanhol Raimundo dè Penhaforte, também professor em Bolonha,
de completar a compilação de Graciano. O resultado foram as
Decretales extra Decretum Gratiani vacantes [Decretais que
extravasam o Decreto de Graciano], divididas em cinco livros.158
Em 1298, Bonifácio VIII completa-as com mais um livro, o chamado
Liber sextum (ou simplesmente Sextum). Clemente V acrescentalhes as Clementinas (1314). João XXII, as Extravagantes de João XXII
(1324). E, nos finais do século XV, aparecem ainda uma outra
colecção oficial, as Extravagantes comuns. Ao conjunto destas
colecções passou a chamar-se Corpus iuris canonici, à semelhança
do nome dado à compilação justinianeia de direito civil.159
107 Graciano é contemporâneo dos primeiros glosadores (v. infra,
146); os seus dieta correspondem às glosas ao Corpus iuris civilis.
158 Esta sistematização tomou-se num modelo para compilações
jurídicas seguintes. E, por exemplo, a utilizada nas Ordenações
portuguesas.
1=9 O Corpus iuris canonici manteve-se em vigor até 1917, data de
publicação do Codex iuris canonici [Código de direito canónico].
Sistematização e m étodo de citação
do Corpus Iuris Canonici
1 Decretum (c. 1140).
• divisão:
I a parte - 101 distinctiones;
2a parte - 36 causae,
divididas em quaestiones;
3a parte (De consecratione) 5 distinctiones.
■D e c r e ta is
•
e ca p ítu lo s.
® cita ç ã o :
c. [n B d o ca p ítu lo ], X
(ou in X ), n Qd o tit. ou
su a s p rim e ira s p a la v ra s ,
e x .: c. 1, X , V , 7 (= c. 1, in X ,
• citação:
I a parte - c. [n° do cânone],
d. [nQda dist.]
ex.: c. 13, d. XXXVIII
2a parte - c. [n° do cânone],
C. [nQda causa],
q. [n° da quaestio]
ex.: c. 8, C. XII, q. 2
3a parte (De consecratione ) e
2a parte, Tractatus De
poenitentia. - c. [na do
cânone], d. [n° da dist.].
De cons. (ou De poen.).
ex.: c. 46, d. 1, De poen.
D e h a eretiá s)
Sextum (= Liber sextum
D ecretalium ) (1 2 9 8 ) - 5 liv ro s.
•
•
cita çã o :
ig u a l a o a n te rio r, se n d o
a sig la V I o u in V I
Clem entinas (Clem entis V
constitutiones) (1 3 1 4 ) - 5 liv ro s.
•
d iv id id a s e m títu los
e cap ítu lo s.
•
distinctiones ou quaestiones
é substituída pela das suas
primeiras palavras, o que
d iv id id o e m títu los
e cap ítu lo s.
• citação antiga: a indicação
dos números dos cânones,
(1 2 3 4 ) - 5 liv ro s.
d iv id id a s e m títu lo s
cita çã o : ig u a l ao an terio r,
se n d o a sigla d e m . o u in d e m .
Extravagantes de João XXII
obriga a recorrer a índices
(1 2 3 4 ).
que acompanham as edições.
•
d iv id id a s e m títu lo s; sig la Extrav. Iohann. X X II
Extravagantes comuns
(séc. XV).
•
divididas em títulos; sigla -
Extrav. Comm.
152
António M anuel Hespanha
5.2.1. O lugar do direito canónico no seio do direito com um
O direito comum foi basicamente um direito romano-canónico, apesar de nele estarem também inseridos institutos dos
direitos tradicionais dos povos europeus (cf. infra,5.3.2. ). No seu
seio, o direito canónico desempenhou um papel menos impor­
tante do que o direito romano.160 Em todo o caso, a sua influên­
cia foi determinante em alguns pontos, que nem sempre se re­
lacionavam com a religião ou com a fé. Na verdade, o direito
canónico representava, não apenas o direito da Igreja e das coi­
sas sagradas, mas ainda um direito mais recente do que o direi­
to romano, uma espécie de direito romano reformado.
Assim, é notória a influência canonística: (i) em matéria de
relações pessoais entre os cônjuges; (ii) na valorização da von­
tade (em vez da forma) no direito dos contratos; (iii) na desformalização do direito sobre as coisas (valorização da posse em
relação à propriedade); (iv) na valorização da sucessão testamentária e na desformalização do testamento; (v) na exigência de boa
fé para a prescrição;161 (vi) na valorização das soluções de equi­
dade (aequitas) contra as decisões de direito estrito (stricti iuris,
rigor iuris, ápices iuris) (cf., infra 5.3.8.2) (vii) em matéria proces­
sual, na promoção da composição amigável e da arbitragem;
(viii) em matéria processual penal, no estabelecimento do pro­
cesso inquisitório, com uma maior preocupação da averiguação
da verdade material.162
160Sobre o direito canónico medieval, v., por último, Berm an, 1983, maxime 199
ss.
,£>i A fonte são duas decretais, uma de Alexandre III, outra de Inocêncio III,
Ajello, 1976b, 333.
'62Fundanvse na aequilas\ a interpretação não literal da lei (u.g., a partir da ra­
tio legis), a exigência da culpa nos delitos, a valorização da boa fé e da in­
tenção das partes no direito negociai, a adm issão do carácter verdadeira­
mente jurídico e accionável dos nuda pacta (i.e., dos contratos informais).
Cultura Jurídica Europeia
153
5 .2 .2 .0 direito canónico como limite
de validade dos direitos temporais
A teoria canónica das fontes de direito proclamava a subor­
dinação dos direitos humanos (secular e eclesiástico) ao direito
divino, revelado pelas Escrituras ou pela Tradição.163 Estes direi­
tos humanos eram considerados como dois modos complemen­
tares de realizar uma ordem querida por Deus.
Todavia, este precário equilíbrio entre os dois direitos ter­
renos rompeu-se com as grandes lutas que opuseram o Impera­
dor e o Papa (séculos X a XII),164 o primeiro tentando estabele­
cer uma tutela sobre a Igreja (reclamando, nomeadamente, a
investidura e a deposição dos bispos), o segundo procurando
salvaguardar o autogoverno eclesiástico. Na teoria canónica das
fontes de direito, esta ruptura não podia deixar de ser no senti­
do de estabelecer a supremacia do direito canónico que, pela sua
própria origem e destino, estaria mais próximo do direito divi­
no. E, assim, o Papa Gregório VII estabelece, num conjunto de
proposições normativas (Dictatus Papae, 1075), o primado do
Papa (da Igreja de Roma) sobre os bispos;165a autonomia da Igre­
ja e dos clérigos face aos poderes temporais; bem como, por úl­
timo, a sujeição destes à tutela de Roma. Estes dois últimos pon­
tos eram, do ponto de vista das relações entre os direitos canó­
nico e civil, os mais importantes. A autonomia da Igreja e do clero
163A "trad ição " é constituída pelo conjunto de costum es ou de escritos dos
Padres da Igreja que vão interpretando a verd ad e revelada nas Sagradas
Escrituras.
lwO auge desta luta é constituído pela contenda entre o Im perador Henrique
IV (1056-1106) e o Papa Gregório VII (1073-1085), a propósito das investi­
duras, que termina pela submissão, embora apenas tem porária, do Impe­
rador.
165Dictatus Pape: "Só o Pontífice Romano se díz, por direito, universal" (c. 2);
"Só ele pode depor bispos e readm iti-los" (c. 3); "O legado do Papa presi­
de a todos os bispos nos concílios"; "A s causas mais importantes de qual­
quer igreja devem ser trazidas à Sede Apostólica" (c. 21); "A Igreja Roma­
na nunca errou" (c. 22); "N ão é católico aquele que não estiver de acordo
com a Igreja R om ana" (c. 23).
154
António Manuel Hespa
em face dos poderes temporais, se excluía a nomeação e deposição
dos bispos e padres pelos leigos (reis, senhores ou simples
particulares), fundava a isenção dos clérigos em relação ao foro
temporal e a consequente reclamação de um "foro especial" ou
"privilégio de foro" para os eclesiásticos. A sujeição dos poderes
temporais ao poder eclesiástico atribuía ao Papa o poder de depor os
reis ou de libertar os súbditos do dever de lhes obedeceram.166
Em todo o caso, esta supremacia do direito canônico - típica da
doutrina jurídica de Santo Agostinho (século VII) e retomada, agora,
pelos papas Nicolau II, Gregório VII e Urbano II e pelos primeiros
canonistas, nos séculos XI e XII - é posta em causa no século XIII,
quando a teologia começa a insistir na ideia de que, na esfera
temporal, se prosseguem fins próprios, que não têm a ver a salvação
post-mortem, mas apenas com a boa ordem terrena. Começa então a
ser claro que a intervenção correctiva do direito canónico apenas
deveria verificar-se quando a regulamentação temporal pusesse em
causa aspectos decisivos da ordem sobrenatural, tal como a
intervenção de Deus (pelo milagre) apenas tinha lugar quando, de
todo em todo, o funcionamento da ordem da natureza comprometia
o
plano
da
salvação.167
Na sequência disto, canonistas e civilistas168 procedem a uma
elaboração mais cuidada da questão e - embora afirmando a
independência mútua dos ordenamentos civil e canónico ("nec papa
in temporalibus, nec imperator in spiritualibus se debeant immis166
Dictatus Pape: "Os príncipes só devem beijar os pés ao
Papa" (c. 9); "É lícito ao Papa depor os imperadores" (c. 12); "O Papa
pode libertar os súbditos dos injustos de lhes obedecerem" (c. 27).
167
Sobre
isto,
v.
Villey,
1968,109
ss.
168
As primeiras gerações de civilistas (ou legistas) mostram um
relativo desprezo em relação ao direito canónico, que careceria de um
contínuo recurso ao direito romano ("legum suffragio implorare";
mais duros eram, ainda, em relação aos modestos ordenamentos
comunais, que Odofredo classificava como "escritos por burros" (In
Dig. Vet.J, 3, de leg. etsenatusc. (apud Calasso, 1970, 59)
Cultura Jurídica Europeia
155
cere" [nem o Papa se deve imiscuir nas matérias temporais, nem o
Imperador nas espirituais], afirma o jurista Acúrsio, cf. infra, 5.5.1.)
- reconhecem que, nos casos em que entre eles surgisse um conflito
grave, a última palavra pertencia ao ordenamento da Igreja. Assim,
o direito canónico apenas vigoraria, como padrão superior, nos
casos em que da aplicação das fontes jurídicas terrenas resultasse
pecado ("critério do pecado", inicialmente formulado por
Bártolo,169 um destacado jurista do século XIV [cf. infra, 5.5.2. ];
cf., em Portugal, Ord.fil., III, 64).
Tudo isto, e ainda a ideia muitas vezes afirmada de que entre o
direito dos reis e o direito da Igreja deve existir uma "specialis
coniunctio" (especial parentesco) - pois, aos olhos dos teólogos e dos
juristas cristãos da Idade Média, o Império e a Igreja "dicuntur
fraternizare" (diz-se que são irmãos, Bártolo) - constituíam factores
muito poderosos no sentido da uniformização dos direitos locais, à
sombra de um modelo único que, sob este aspecto ultimamente
focado, era mais o direito canónico do que o romano (ou, dado que
o direito romano fornecia a ossatura do canónico, continuava a ser
o direito romano através do modelo do canónico).
5.2.3. O direito canónico na história do direito português
A evolução do direito canónico em Portugal corresponde, nos seus
traços gerais, à europeia. Há algumas notas a destacar.
169Bártolo: "aut loquimur in spiritualibus et pertinentibus ad fidem
etstamus canoni...; aut loquimur in temporalibus, et tunc in terris
subiectis Ecclesi-ae, etsine dubio stamus decretalibus; aut in terra
subiectis Império, et tunc, autservare legem est inducere peccatum...
et tune stamus canonibus...; aut non inducit peccatum...et tunc
stamus legi..." [ou nos referimos a coisas espirituais e pertencentes à
fé e observamos os cânones ou falamos de coisas temporais e
estamos em terras sujeitas ao poder temporal da Igreja, e então
observamos sem dúvida as decretais, ou estamos em terras sujeitas
ao Império e então, se observar as suas leis induzir em pecado,
observamos os cânones; ou, se não induzir, observamos a lei] (Super
Cod., 1, 2 de sacr. eccles., 1 priv.). Sobre isto, bem como sobre a
restante matéria desta alínea, Calasso, 1954,177-9 e 487-90.
156
António M anuel H espanha
O beneplácito régio foi introduzido em Portugal pouco
antes de 1361, data em que os prelados já se queixam dele em
Cortes (Eivas, 1361, doc. em J. Gilissen, Introdução ..., doc. 8, pg.
156), embora D. Pedro o mantenha, tal como fará o seu filho, nas
cortes de Santarém de 1427 (v. doc. em J. Gilissen, Introdução...,
doc. 9, pg. 156), e D. Afonso V. (Ord. a f , II, 12: onde se especifi­
cam os casos normais de denegação - falsidade, sub repção, ofen­
sa da jurisdição e direitos do rei). Abolido em 1487, foi, na prá­
tica, restabelecido em 1495 e sucessivamente estendido no seu
âmbito (cf. Ord. fil., II, 14 e 15; Const. 1822, art. 123, Xll; Carta
const., art. 75, § 14); entre os muitos documentos pontifícios a que
foi negado (lista em Bemardino Joaquim da Silva Carneiro, Ele­
mentos de direito eclesiástico portuguez, Coimbra 1896, 25), conta
se a célebre "Bula da ceia" (In coena Domini, na ceia do Senhor).
Bibliografia: Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia,
I, Lugduni, 1673, 363; Manuel Chaves e Castro, O beneplácito ré­
gio em Portugal, Coimbra 1885; Marquês de S. Vicente, Conside­
rações relativas ao beneplácito, Rio de Janeiro 1873; art. "Beneplá­
cito régio" no Dicionário de história de Portugal (dir. Joel Serrão),
Porto, 1963.
Quanto aos privilégios do foro. Embora em Portugal te­
nham sido recebidos os respectivos princípios do direito canó­
nico, desde cedo o poder temporal reclamou para si a compe­
tência jurisdicional sobre eclesiásticos, em certas circunstânci­
as. Uma lei dos meados do séc. XIV, transcrita no Livro de leis e
posturas (pg. 380), bem como os artigos das concordatas dos tits.
1 a 7 do Liv. II das Ord af. são significativos da política real de
restrição da jurisdição da Igreja. As Ord. fil., II, 1 fazem uma lis­
tagem extensa destes casos (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução...,
doc. 10, pg. 157). Os princípios gerais na matéria são os seguin­
tes: quanto à sujeição (ou não) ao direito temporal: completa
isenção nas matérias puramente espirituais e eclesiásticas, sub­
missão nas temporais; quanto ao foro competente: isenção com­
pleta nas matérias temporais, mesmo nas patrimoniais e penais.
As excepções, neste último plano, são as constantes do citado
texto das Ord. fil. (II, 1). É só no século XIX que a Igreja perde o
Cultura Jurídica Europeia
157
principal da sua jurisdição: os privilégios de foro são abolidos
pela Const. 1822, art. 9 e pela Carta Const., art. 145, § 15 e 16; os
casos m ixtifori são abolidos pelo art. 177 do dec. 24, de 16/3/
1832 e, depois, pela Reforma Judiciária, parte II, art. 70. Bibliogra­
fia: Baptista Fragoso, Regimen reipublicae christianae, Colonia Allobrogum, 1737, pt. 1 ,1. II, d. IV; Gabriel Pereira de Castro. Tractatus..., cit.; Pascoal de Melo Freire, Institutiones iuris civilis lusitani, Conimbricae, 18 1 8 ,1, tit. V (maxime, § 14 e 15); Alves de Sá,
O catholicismo e as nações catholicas - das liberdades da Igreja portu­
guesa, Coimbra, 1881; Bernardino Joaquim da Silva Carneiro,
Elementos de direito eclesiástico ..., cit.
Quanto às relações entre o direito civil e o direito canóni­
co, matéria abundantemente tratada pela historiografia, v, por
último, Guilherme Braga da Cruz, "O direito subsidiário na his­
tória do direito português", Rev. port. hist. 14 (1973); António
Manuel Hespanha, História das instituições. Épocas medieval e mo­
derna, Lisboa, 1982; Portugal moderno. Político e institucional, Lis­
boa, Universidade Aberta, 1994; Nuno Espinosa Gomes da Sil­
va, História do direito português, cit.; Martim de Albuquerque e
Ruy de Albuquerque, História do direito português, Lisboa, 1984/
5. Sobre as relações entre direito temporal e direito canónico
depois do concílio de Trento, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lo­
bão), Notas [...] a Melo, ed. util, Lisboa, 1865,1,132; Marcelo Cae­
tano, "Recepção e execução dos decretos do Concílio de Trento
em Portugal", Rev. Fac. Dir. Lisboa, 19 (1965). As principais fon­
tes do direito eclesiástico estão reunidas nas citadas obras de
Pereira de Castro e de Silva Carneiro e ainda em Joaquim dos
Santos Abranches, Bullae et breviae pro Lusitaniae..., Ulissipone,
1856, 2 tom.; Fontes do direito ecclesiastico portuguez. Summa do
bullario portuguez Coimbra, 1895; António Garcia Ribeiro de Vas­
concelos, "Nova chronologia das constituições diocesanas por­
tuguesas até hoje impressas", O Instituto 58 (1911) 491,505; Ave­
lino de Jesus Costa e Maria Alegria Fernandes, Bulário portugu­
ês: Inocêncio III: 1198-1216, Coimbra, INIC, 1989. Sobre a canonística portuguesa medieval, António Garcia y Garcia, Estúdios
sobre la canonísitica portuguesa medieval, Madrid, Fundación Uni-
158
António Manuel Hespanhol
versitaria Espanola, 1976 (maxime, "Canonistas portugueses
medievales", 95-134).
5.2.4. Direito recebido e direito tradicional
A recepção do direito romano não foi um facto trivial. Pelo contrário.
Por muito forte que tivesse sido a romanização dos direitos dos povos
europeus durante a Alta Idade Média, os costumes gerais ou locais
dos vários povos europeus (iura própria) contrastavam fortemente,
em muitos domínios, com o direito romano.
Num breve conspecto, podemos identificar algumas áreas normativas
em que este contraste se verificava.170
No domínio do direito das pessoas, o direito europeu alto-medieval
caracterizava-se pela diferenciação dos estatutos jurídicos pessoais,
típica daquilo a que se tem chamado uma sociedade de estados
(ständische Gesellschaft). As pessoas apareciam repartidas em
"estados", uns ligados à dignidade (nobres vs. vilãos), outros à religião
(clérigos vs. leigos), outros às profissões (militares, estudantes,
lavradores, profissões vis), outros ao sexo e idade (homens, mulheres,
anciãos). Por outro lado, entre as pessoas podiam estabelecer-se laços
de dependência que limitavam o estatuto jurídico dos subordinados
(senhores, vassalos; marido, mulher). Em contrapartida, o direito
romano, embora conhecesse o instituto da escravidão e diferenciasse
os estrangeiros dos cidadãos, era basicamente igualitário quanto aos
estatuto destes últimos, mesmo no que diz respeito ao tratamento
relativo de homens e mulheres.
No domínio dos direitos patrimoniais, os direitos locais europeus
caracterizavam-se por estabelecerem fortes restrições à
disponibilidade do património, nomeadamente da terra (bens de raiz).
Este encontrava-se frequentemente vinculado a uma família, não
podendo ser dela alienado inter vivos sem o consen-
Cultura Jurídica Europeia
159
timento dos parentes e estando reservado para estes na altura
da sucessão por morte do seu detentor. Frequentemente, eram
estabelecidas, por contrato (v.g., por convenção antenupcial,
contrato de enfiteuse, etc.) ou por testamento normas quanto à
sucessão dos bens (fideicomissos, morgados), vinculando-os a
uma determinada linha sucessória. Nestes casos, o proprietário
acabava por ser apenas um administrador vitalício de uma mas­
sa de bens que devia manter íntegra para um sucessor prefixa­
do. Mas um bem podia ainda estar sujeito a pessoas diferentes
que dele usufruíam rendas ou outras utilidades (cultivo, caça,
apanha de lenha, pastoreio). Como todos tinham um certo po­
der de disposição sobre a mesma coisa, esta estava sob o domí­
nio de vários (o domínio estava "dividido", a coisa "servia" vá­
rios) e não podia ser usufruída ou alienada plenamente por nin­
guém. A liberdade contratual e testamentária de bens imóveis
estava, por isso, fortemente limitada. Já o direito romano atri­
buía ao proprietário uma capacidade de plena disposição, sen­
do o dominium definido como o direito de usar e de abusar da
coisa (ius utendi acabutendi). O direito de propriedade presumiase não dividido e liberto de quaisquer servidões a favor de ou­
trem ou da colectividade. A liberdade de testar era a regra e a
ordem sucessória, na falta de testamento, estava estabelecida em
geral e não dependia da natureza dos bens.
Ainda neste domínio das relações patrimoniais, o direito
medieval conhecia uma íntima relação entre o domínio sobre as
coisas e o domínio político sobre as pessoas. Referimo-nos àquilo
a que se costuma chamar a "patrimonialização dos direitos polí­
ticos". Os direitos políticos (Hoheitsrechten, direitos de comando,
jurisdicionais, fiscais) são concebidos como atribuições patrimo­
niais dos senhores, incorporadas nos seu património e susceptí­
veis de serem objecto de negócios jurídicos (compra e vendas,
doações, cessões precárias, arrendamentos, penhores). Em con­
trapartida, a titularidade de direitos sobre a terra incorpora, fre­
quentemente, atribuições de natureza política. Esta mistura en­
tre direitos sobre o solo e direitos políticos é tal que se dizia que
não existia propriedade que não fosse senhorio, pelo que toda a
António M anuel Hespanha
160
terra tinha um senhor (nulle terre sans seigneur). O direito roma­
no, pelo contrário, mantinha uma distinção nítida entre as prer­
rogativas públicas (do Senado e do Povo Romano [SPQR, Senatus PopulusQue Romanus], do Imperador) e os direitos dos par­
ticulares sobre os seus bens, não concebendo que as primeiras
pudessem ser objecto de negócios jurídicos de direito privado.
A estas divergências normativas entre o direito romano e
os direitos locais, soma-se ainda uma outra dificuldade na re­
cepção do primeiro. Ao contrário do direito actual, sistemático
e codificado, constituindo, por isso, um package normativo que
pode ser transmitido e recebido globalmente,171 o direito roma­
no consistia numa colecção de soluções casuísticas, fracamente
estruturadas entre si. A sua recepção pressupunha, por isso, uma
incorporação atomizada, caso a caso, não decidível ou regulá­
vel por um acto do poder político. Só um paulatino trabalho
doutrinal e jurisprudencial podia estabelecer, casuisticamente,
as soluções do direito romano, criando entre os homens de di­
reito e, em geral, entre os destinatários do direito, um consenso
acerca da bondade de cada uma delas. Os próprios glosadores,
embora basicamente romanistas, tinham em conta o vizinho di­
reito lombardo, que algumas constituições imperiais tentavam
definir - muito convenientemente - como "ius commune" ,172
Em todo o caso, e como já se disse, esta busca de equilíbrios casuísticos entre o direito tradicional e o direito recebido (o
romano e o canónico) não deixava de ser bastante limitada por
uma crescente tendência para a unificação jurídica, sob a égide
dos direitos cultos, que aspiravam a uma validade universal.173
5 .3 . Resultado: uma ordem jurídica pluralista
Dos parágrafos anteriores já resulta que, na sociedade eu­
ropeia medieval, conviviam diversas ordens jurídicas - o direi171 Por exem plo, pela adopção por via legislativa de u m código estrangeiro,
com o o que aconteceu co m o C ódigo Civil G erm ânico de 1 9 0 0 no Japão.
172Cf. Calasso, 1 9 7 0 ,5 1 ss..
171 Cf. C alasso, 1 9 7 0 ,4 0 -4 9 ).
Cultura Jurídica Europeia
161
to comum temporal (basicamente identificável com o direito
romano, embora reinterpretado), o direito canónico (direito co­
mum em matérias espirituais) e os direitos próprios.174
A esta situação de coexistência de ordens jurídicas diver­
sas no seio do mesmo ordenamento jurídico chama-se pluralismo
jurídico.175
Por pluralismo jurídico quer-se, portanto, significar a situa­
ção em que distintos complexos de normas, com legitimidades e
conteúdos distintos, coexistem no mesmo espaço social. Tal situ­
ação difere da actual - pelo menos tal como ela é encarada pelo
direito oficial -, em que uma ordem jurídica, a estadual, pretende
o monopólio da definição de todo o direito, tendo quaisquer ou­
tras fontes jurídicas (v.g., o costume ou a jurisprudência) uma le­
gitimidade (e, logo, uma vigência) apenas derivada, ou seja, de­
corrente de uma determinação da ordem jurídica estadual.176
Para a visão medieval do mundo, a ordem era - como se
disse - um dóm originário de Deus. S. Tomás de Aquino, que
exerceu enorme influência, antes e depois do Concílio de Trento (1545-1563), e mesmo nos países reformados - tratou detida­
mente o tema da ordem. A ordem mantinha-se, antes de mais,
pela existência dessas forças íntimas que atraem as coisas umas
para as outras, de acordo com as suas simpatias naturais (amo­
res, affectiones) transformando a criação numa rede gigantesca dé
simbioses ou empatias. Numa quaestio sobre o amor (Sum. theol,
lla.llae, q. 26, a. 3, resp), S. Tomás define o amor como o (plural,
diversa) afecto das coisas pela ordem do todo. Sublinha que:
(i) Estes afectos não são monóotonos, mas decorrentes da
174 Note-se que, também no seio do direito canónico se podem distinguir di­
reito com um (as norm as em anadas de uma jurisdição geral, com o o Papa e
os concílios ecuménicos) e direitos próprios (em anados de autoridades ecle­
siásticas regionais com o os concílios regionais, os bispos, etc.
175Sobre o tema da arquitectura do ordenam ento jurídico medieval, exem plar­
mente, Grossi, 1995; Costa, 1999.
176A unidade e exclusividade do direito oficial corresponde à unidade e indi­
visibilidade do poder político (soberania), tal com o o concebe o im aginário
estadualista.
162
António Manuel Hespanhol
diferente natureza de cada coisa, da sua diferente relação, quer com
o todo, quer com as outras coisas: e (ii) Exprimem-se através de
diferentes níveis de sensibilidade (intelectual, racional, animal ou
natural).
Esta ideia central de uma ordem global, auto-sustida por impulsos
naaturais e plurais constitui a chave para entender o lugar do direito
nos mecanismos da regulação do mundo.
Explica, desde logo, a proximidade e estreita relação entre
mecanismos disciplinares que hoje são vistos como muito distantes
(direito, religião, amor e anizade).
Uma vez que a Ordem é um acto de amor e que as criaturas estão
ligadas umas às outras por afectos, o direito humano (civil) constitui
apenas uma forme externa, rude e grosseira, de corrigir défices
ocasionais dessa simpatia universal. Para os níveis mais elevados - e
menos externos - da ordem, existem mecanismos mais subtis, como
a fé ou as virtudes, que disparam sentimentos (de amizade, de
liberalidade, de gratidão, de sentido de honra, de vergonha)
ordenadores. Num certo sentido, estes macanismos estão ainda mais
próximos da justiça, como virtude que "dá a cada um o que é
seu" (ius suum cuique tribuit), ou do direio natural, como aquele que
a natureza ou Deus ensinaram a cada animal (quod Natura [gl. id est
Deus] omnia animalia docuit). E por isto que os tee-ólogos e os
juristas definem este conjuntode deveres como quase legais (quasi
legali) (cf. Clavero, 1991; Hespanha, 1993c), esbatendo as fronteiras
entre os respectivos territórios normativos.
Os juristas são os guardiões deste mundo multi-ordenado, autoordenado.
O seu papel não é o de criar ou rectificar a ordem. Nem tão pouco o
de declarar o justo de uma forma autoritária e dogmática. Mas antes
o de sonddear o justo a partir da natureza, tirando partido de todos
os recursos (virtus) da sensibilidade humana ((amor, bonitas,
intellectus, sensus), numa época em que os métodos intelectuais de
encontrar o direito ainda não estavam expurgados de perspectivas
trans-racionais.177
177Cf. Hespanha, 1992f, 1997b (v. os ensaios incluídos em Petit,
1997).
Cultura ]urídica Europeia
A poiesis jurídica não é com eles. Com eles é anotar, inquirir,
sentir, crer, lembrar, ruminar e interpretar ordens existentes, in­
teriores e exteriores, acima ou abaixo do humano. É com eles, por
outras palavras, levar a cabo uma hermenêutica ilimitada de Deus,
dos homens e da natureza. E encontrar vias para transformar os
resultados desta hermenêutica em consensos comunitários.
5 .3 .1. Um a constelação de ordens normativas
O amor era, como se viu, o principal cimento da ordem do
mundo e, também, da ordem das sociedades humanas (cf., su­
pra, 3.2. ). Mais exacto seria, no entanto, falar de amores (philiae), cada um dos quais correspondendo a um tipo de relação (co­
municação, comunhão) social.
S. Tomás de Aquino (Summa theologica Secunda secundae, qu.
26) lista um leque vasto de afectos humanos:
(i) O amor familiar, surgido da comunicação da fa m ília
natural;
(ii) O amor filial ou parental, fundado na ngeração;
(iii) O am or p o r co-nu trição, p r o m o v id o p o r u m a infância
e criação comuns;
(iv) O amor por eleição, baseado em empreendimentos co­
muns;
(v) O amor por vassalagem, que decorre da insstituição do
governo da república;
(vi) O amor por con-cidadania, que existe entre os patríci­
os de uma mesma república;
(vii) O amor por cannaradagem, que se tece enntre compa­
nheiros d e armas;
Todos estes amores criavam obrigações. E a estas ainda se
podiam acrescentar as que surgiam da religião (ou seja, do amor
para com Deus e, através dele, para com todas as suas criatu­
ras, animais, plantas e inanimados incluídos). Bem como as afei­
ções que Deus imprimiu nas nossas mentes (afectos intelectu­
ais) ou nos nossos desejos (afectos sensitivos).178
178Sobre o relevo da ordem am orosa no direito, cf. Hesparvha (19921),
164
António Manuel H espanha
Entre todos estes amores, uma hierarquia existia, à qual S.
Tomás dedica justaente esta questão 26a da Secunda secundae da
Summa theologica, em que explora o modelo de relações netre os
deveres domésticos, de amizade, políticos ou puramente pragmátticos (ou seja, ligados à acção corrente do dia a dia)..
Em princípio, a proximidade em relação à fonte da ordem
(Deus, natureza) - era um critério decisivo para estabelecer esta
hierarquia. A revelação e o direito divinos deveriam, por isso,
dispor de um lugar de topo no conjunto das ordens normativas.
Seguia se o direito canónico "positivo", dado que era mais ex­
terno e dependente da vontade dos homens. Em alguns casos,
como veremos, a ordem divina afastava a ordem humana (v.
5.2.2.), como nos caos em que esta induzisse a pecar.179 Noutros
casos, a ordem divina apenas teperava o rigor da ordem civil
(como no caso do adequação do direito civil às posições mais
maleáveis da aequitas canónica).Finalmente, o direito era sensí­
vel a outros estímulos que vinham de baixo: por exemplo, os
juizes criminais tinham que compensar a ferocidade da lei pe­
nal (rigor legis) com a misericórdia (misericórdia).180
Depois do direito divino vinham estas ordens normativas
em que a natureza "fala grosso", como a ordem doméstica, par­
cialmente subsumida à anterior ordem divina, devido ao carác­
ter sacramental do casamento. Aqui, as normas decorriam da
própria "natureza" (natura, honestas), sendo transcritas para o
corpo do direito os comandos contidos no "direito do corpo" (na
sexualidade, na feminilidade, na masculinidade): a fraqueza, a
indignidade e a maldade das mulheres; a natureza da sexuali­
dade humana (monogâmica, hetero, vaginal: vir cum foemina,
recto vaso, recta positio); a natureza da comunidade doméstica
(unitária, patriarcal).181
179M esm o aqui, a regra não era absoluta: a prostituição em bora pecado, era
perm itida para evitar um a difusão ainda m ais prom íscua e desregulada da
sexualidade (coítus uugus).
180Cf. Hespanha, 1988b.
m Hespanha, 19% g;, Hespanha, \994e').
Cultura Jurídica Europeia
165
Como a família não era a única instituição natural, outras
relações humanas tinham pretensões "naturais" em relação ao
direito; mesmo no caso daquelas instituições que a cultura ac­
tual considera como perfeitamente arbitrárias e disponíveis,
como os contratos. O conceito cunhado para exprimir estas nor­
mas implícitas e forçosas contidas em certos tipos de relações era
o de "natureza dos contratos" (natura contractus) ou de "vestes"
dos pactos (vestimenta pacti, \, como que dizendo que, sem cer­
tos atributos formais, os acordos [nús] não podiam valer) (cf.
Grossi, 1968; Beneduce, 1990; Violante, 2001).
Esta necessidade e possibilidade de transcrever normas de
uma ordem na outra torna ve-se possível pela existência de con­
ceitos genéricos que serviam como que de "canais de comuni­
cação" entre elas. Entre a ordem política e o direito, as importa­
ções e expotações faziam através de canais como "utilidade pú­
blica" (publica utilitas), bem comum (bonum communem), poder
absoluto ou extraordinário (absoluta vel extraoráinaria potestas),
posse de estado {possessio status); direitos adquiridos (iura quaesita), estabilidade das decisões jurídicas (stare decisis), razão ju­
rídica (ratio iuris).182
Como as hierarquias entre as diferentes ordens normativas
eram sensíveis ao contexto (case-sensitivé) e os modelos de trans­
ferência (ou transcrição) não eram fixos, o resultado era uma
ordem entrecruzada e móvel, cujas particularizações não podi­
am ser antecipadamente previstas. É a isto que se pode chamar
a "geometria variável" do direito comum (ius commune).Em vez
de um sistema fechado de níveis normativos, cujas relações es­
tavam definidas uma vez por todas (como os sistemas de fontes
182Ou seja, valores políticos eram transform ados em valores jurídicos porque
o direito permitia que valores externos fossem recebidos em nome de con­
ceitos genéricos [vazios, indeterm inados], com o "utilidade pública", "bem
com um "; ou porque o direito reconhecia com o jurídicos os valores já ad­
mitidos pelos dados da vida social ("posse de estado"); ou ainda porque o
direito incorporava os com andos de um a razão natural acerca das relações
humanas.
166
António Manuel Hespanhol
de direito do legalismo contemporâneo), o direito comum constituía
uma cconstelação aberta e flexível de ordens cuja arquitectura só
podia
ser
fixada
em
face
de
um
caso
concreto.
Nesta constelação, cada ordem normativa ( com as suas soluções ou
seus princípios gerais: insãtuta, dogma ta, rationes) era apenas um
tópico heurístico (ou perpsectiva) cuja eficiência (na construção do
consenso comunitário) havia de ser posta à prova. Daí que coubesse
ao juiz fornecer um solução arbitrada183 em tomo da qual a
harmonia pudesse ser enconttrada (interpretatio in dubio est
faciendam ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnan
tiarn)}M
5.3.2.
Direito
canónico
e
direito
civil
Num plano superior, está o direito canónico que, como direito
directamente ligado à autoridade religiosa, pretende um papel de
critério último de validação das outras ordens jurídicas, em
obediência ao princípio da subordinação do governo terreno aos fins
sobrenaturais de salvação individual. Embora, como já vimos, esta
superioridade dos cânones não fosse automática, antes se regulando
pelo
critério
do
pecado
(cf.,
supra.,
5.2)
5.3.3.
Direito
comum
e
direitos
dos
reinos
Como "direito geral", vigora o ius commune, constituído por um
enorme conjunto de normas tidas como provenientes da razão
natural (cf. D., 1,1,9: "Todos os povos, que se governam por leis e
costumes, usam de um direito que em parte lhes é próprio e em
parte comum a todos os homens. É que aquilo que cada povo para si
estabelece em comum como direito é próprio dessa mesma cidade e
chama-se direito civil, como que a significar próprio da mesma
cidade.
Pelo
contrário,
aquilo
que
a
razão
1M"Arbitrium iudex reünquitur quod in iure definitum non est".
184
Cf.
Grossi,
1995,
223-236;
infra,
5.Ó.2.3
Cultura Jurídica Europeia
167
natural estabelece entre todos os homens é observado por toda
a parte e chama-se direito das gentes [rus gentium], como que a
significar o que todas as nações [gentes] usam "). O facto de pro­
virem da razão não garantia a estas normas uma vigência supe­
rior, pois da mesma razão decorria a faculdade de cada cidade
ou de cada nação corrigir ou adaptar, em face da sua situação
concreta, o princípio estabelecido em geral pela razão. Pois,
embora a razão natural tenha em vista aquilo que resulta justo
ná generalidade dos casos, a realidade é tão multiforme185que
bem se pode conceber que alguma utilidade particular exija a
correcção da norma geral (D.,1,2,16: " o direito singular é aquele
que foi introduzido pela autoridade do legislador, tendo em vista
alguma utilidade particular, contra o teor da razão").
Assim, o direito comum vigoraria apenas para os casos em
que um direito particular não o tivesse afastado; ou seja, como
direito subsidiário.
Mas, sendo fundado na razão, dispunha de uma vigência
potencialmente geral. Isto queria dizer que se aplicava a todas as
situações não cobertas pelos direitos próprios ou particulares.
Mesmo estes, não deixavam de sofrer as consequências da sua
contradição com o direito comum. Não deviam ser aplicados a
casos neles não previstos (por analogia); não podiam constituir
fundamento para regras jurídicas gerais (D.,1,2,14: "aquilo que foi
recebido contra a razão do direito não pode ser estendido às suas
consequências [indirectas]"); deviam ser interpretados de forma
estrita. E, embora existisse um princípio segundo o qual "as re­
gras do direito [comum] não podem ser seguidas naqueles domí­
nios em que foi estabelecida [por um direito particular] uma con­
tradição com a razao do direito", D., 1,2,15), o certo é que os juris­
tas, formados na dogmática do direito comum e crentes na sua
intrínseca racionalidade, tendiam a aplicar ao direito particular
os cânones interpretativos e conceituais do direito comum.
185 "Plures sunt casus quam leges" (os casos da vida são mais do que as leis);
"n em as leis nem os senatusconsultos podem ser redigidos de forma a com ­
preender todos os casos que algum a vez ocorram ; basta que contenham
aqueles que ocorrem o mais das vezes", pode ler-se em D.,1,2,10.
168
António M anuel Hespanha
O próprio direito comum não era único. Pois, ao lado deste
direito comum geral, existiam direitos comuns especializados,
referentes a certas matérias. Tal é o caso do direito canónico, que
era comum em matérias atinentes à religião, ou o direito mercan­
til (lex mercatoria), que era comum no que respeitava à regulação
da actividade mercantil. Entre estes direitos comuns, nem tudo
era harmonia, existindo entre eles princípios contraditórios.
Mas, sobretudo, o direito comum coexistia, em equilíbrio
indeciso, com os direitos próprios. Completava-os nas suas la­
cunas. Mas, uma vez que estes não continham uma teoria pró­
pria da norma jurídica, logo a definição do seu âmbito de apli­
cação (e, por isso, a decisão sobre existência ou não de lacunas)
cabia ao direito comum. Como lhe cabia a formulação de todas
as teorias gerais, que não podiam ser deduzidas de normas par­
ticulares. O que queria dizer que pertencia ao direito comum (à
doutrina nele fundada) a constituição do fundamental do apa­
relho dogmático do direito. Em todo o caso, como veremos, a
teoria que o direito comum criou sobre as suas relações com os
direitos particulares não deixa de ser muito favorável a estes
últimos. Na verdade, a Glosa [de Acúrsio], ao tratar da decisiva
questão da validade dos direitos feudais (recolhidos nos Libri
feudorum) regista que "os costumes em matéria feudal sobrepõem-se às leis", embora se acrescente "no entanto, entendo isto
dos costumes justos, e não dos injustos" (consuetudo infeudis vincit leges [...] sed hoc intelligo de aequa, non de iniqua consuetudine)
(glosa a LF, II, 1, de feudi cognitione)
"Direitos próprios" são, desde logo, uma realidade também
plural, já que sob este conceito podem ser subsumidos: (i) os
direitos dos reinos; (ii) os estatutos das cidades; (iii) os costumes
locais; (iv) os privilégios territoriais ou corporativos.
5 .3 .4 . Direitos dos reinos e direitos dos corpos inferiores
Comecemos pelos direitos dos reinos. Desde o século XI que
os direitos dos reinos pretendem, no domínio territorial da ju­
risdição real, uma validade absoluta, semelhante à do direito do
Cultura Jurídica Europeia
169
Império (rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator [o rei que não reconhece superior é imperador no seu reino],
Azo, Guilherme Durante), definindo-se como "direito comum
do re in o ".186 O fundamento doutrinal desta ideia pode encon­
trar-se num texto do Digesto que afirma que "o que agrada ao
príncipe tem o valor de lei; na medida em que pela Lei regia, que
foi concedida ao príncipe sobre o seu poder político [imperium],
o povo lhe conferiu todo o seu poder e autoridade", D.,1,4,1).187
Isto não tinha grandes implicações práticas nas relações
entre o direito do reino e o ius commune. Levava, de certo, a uma
afirmação de que este último não vigorava internamente por
força de critérios políticos, mas apenas por força da sua racio­
nalidade intrínseca ("non ratione império sed império rationis",
não em razão do império, mas por império da razão), o que even­
tualmente acabaria por conduzir à distinção entre normas do
direito comum conformes à boa razão e outras que não o eram.188
Como levava à conclusão de que, sendo comum, o direito do rei­
no continha, tal como o ius commune, uma ratio iuris que vigora­
va no seu seio189e da qual se podiam extrair consequências nor­
mativas, com o que adquiria alguma da força expansiva do di­
reito comum imperial. Mas, com as limitações daqui decorren­
tes, todas as anteriores regras relativas às relações entre ius com­
mune e iura própria se aplicam ao direito reinícola.
Note-se, porém, que a estreita relacionação entre o direito
dos reinos e o poder real fazia com que nas relações entre o di­
reito real e os direitos locais inferiores vigorassem normas que
não funcionavam nas relações entre direitos próprios e ius com-
186Cf. C avanna, 1982, 70; Pennington, 1993.
187Ou seja, nom eadam ente, todo aquele poder que, nos termos da lei "O m nes
populi" (D.,1,1,9), lhe cabia de estatuir direito.
188As primeiras sendo incorporáveis no direito do reino, mas não as segun­
das. Esta consequência subjaz à teoria do direito da escola do Usus moder­
nus pandectarum e é afirm ad a, em P o rtu g a l, pela Lei da Boa Razão, de
18.08.1769.
189Que, em todo o caso, não anulava a ratio iuris communis, que permanecia
com o critério superior (ius naturale).
170
António Manuel Hespanhol
mune, já que a supremacia deste não decorria da superioridade
política, mas do seu enraizamento na natureza. Assim, a
supremacia do poder real sobre os súbditos ("superioritas
iurisdicti-onis", superioridade quanto à jurisdição) traduzia-se
numa máxima que não podia valer nas relações entre o ius
commune e os ium própria - a de que "a lei inferior não pode
impor-se à lei superior" ("lex superior derrogat legi inferiori", a lei
superior derroga a inferior; "inferior non potest tollere legem
superioris", o inferior não pode derrogar a lei do superior), tal
como o inferior não pode limitar o poder do superior. Assim, o
direito do reino é, politicamente, supra-ordenado aos direitos
emanados de poderes inferiores do reino, o que não acontecia
com o ius commune em relação aos iura própria.
Porém, esta supra-ordenação em termos políticos não exclui a
acima referida preferência do especial em relação ao geral. Sendo
o direito do rei o direito comum do reino, valem em relação a ele
as mesmas regras que valiam quanto ao ius commune nas suas
relações com os direitos próprios. E, assim, a afirmação da
supremacia política não excluía que, desde que esta não estivesse
em causa, pudessem valer dentro do reino, nos seus respectivos
âmbitos, direitos especiais de corpos políticos de natureza
territorial ou pessoal. A salvaguarda da supremacia política do rei
seria garantida, então, por um princípio de especialidade,
segundo o qual a capacidade normativa dos corpos inferiores não
podia ultrapassar o âmbito do seu autogoverno.190
Esta prevalência dos direitos particulares dos corpos tinha um
apoio no direito romano. De facto, a "lei" Omnes popul, do
Digesto (D., 1,1,9) reconhecia que "todos os pobos usam de um
direito que em parte lhes é próprio, em parte comum a todo o
género humano". No entanto, a primeira geração de legistas fora
muito prudente em retirar daqui um argumento em favor da
190 Para além de se reconhecer que todo o súbdito, mesmo
integrado num corpo jurídico inferior, tinha o direito de apelar
para o rei, caso se sentisse injustiçado; mas o rei teria que decidir
de acordo com o direito corporativo desse súbdito.
Cultura Jurídica Europeia
171
supremacia dos direito comunais (que Odofredo, depreciativa­
mente, dizia "serem feitos por burros") que, quando muito, va­
leriam numa esfera estritamente local. Finalmente, o que esta­
va em causa, não era apenas a subversão do novo direito impe­
rial (em relação ao qual os juristas nem sempre eram muito res­
peitosos), mas sobretudo o direito romano, do estudo do qual
eles tiravam o seu prestígio social e político.
É preciso esperar por Baldo degli Ubaldi para que a vali­
dade do direito local adquira uma justificação teórica robusta:
"Populi suntde iuregentium, ergo regimen populi estde inregentium:
sed regimen non p otestesse sine le-gibus et statutis, ergo eo ipso quod
popnlus habet esse, habet per consequens regimen in suo esse, sicut
omne animal regitur apro prio spiritu et anima ” 191 ("os povos exis­
tem por direito das gentes [i.e., natural] e o seu governo tem ori­
gem no direito das gentes; como o governo não pode existir sem
leis e estatutos [i.e., leis particulares], o próprio facto de um povo
existir tem como consequência que existe um governo nele mes­
mo, tal como o anim al se rege pelo seu próprio espírito e
alm a").192
5 .3 .5 . Direito comum e privilégios
Abaixo do plano do reino, proliferavam as ordens jurídi­
cas particulares já referidas, todas elas protegidas pela regra da
preferência do particular sobre o geral. Em alguns casos, vigo­
ravam ainda normas suplementares que asseguravam o respei­
to pelos direitos particulares. Por exemplo, as normas que pro­
tegiam os estatutos (ou direitos das comunas, cidades, municí­
pios), considerando-os, nos termos da lei "om nes p op u li",193
como ius civile ("dicitur ius civile quod unaqueque civitas sibi
constituit", [diz-se direito civil o que cada cidade institui para
si], Odofredo, século XII), ou seja, com dignidade igual à do di­
191 In Dig. Vet., 1,1, de iust et iure, 9, n.4.
192Cf. Calasso, 1 9 7 0 ,5 9 ss..
193Cf. H espanha, 1989, 239 s., 285 ss.
172
António M anuel Hespanha
reito de Roma. Ou as que protegiam o costume (nomeadamen­
te, o costume local), cujo valor é equiparado ao da lei ("também
aquilo que é provado por longo costume e que se observa por
muitos anos, como se constituísse um acordo tácito dos cidadãos,
se deve observar tanto como aquilo que está escrito", D.,1,3,34;
v. também os frags. 33 a 36 do mesmo título).194 Ou, finalmente,
o regime de protecção dos privilégios, que impedia a sua revo­
gação por lei geral ou sem expressa referência; ou mesmo a sua
irrevogabilidade pura e simples, sempre que se tratasse de pri­
vilégios concedidos contratualmente ou em remuneração de
serviços ("privilegia remuneratoria").195 Ou seja, em todos estes
casos, ainda que as normas particulares não pudessem valer
contra o direito comum do reino enquanto manifestação de um
poder político, podiam derrogá-lo enquanto manifestação de um
direito especial, válido no âmbito da jurisdição dos corpos de que
provinham. E, nessa medida, eram intocáveis. Pois decorrendo
estes corpos da natureza, a sua capacidade de autogoverno e de
edição de direito era natural e impunha-se, assim, ao próprio
poder político mais eminente.
5 .3 .6 . Direito anterior e direito posterior
Se o ordenamento jurídico era pluralista no sentido de que
nele conviviam normas emanadas de centros normativos coe­
xistentes no mesmo espaço, era-o também no sentido de que a
própria sucessão das leis no tempo não implicava, como hoje, a
cessação da vigência de umas quando sobreviessem leis novas
em contrário. A lógica de combinação temporal das normas ju­
rídicas era menos exclusiva, pois permitia que as leis antigas
conservassem uma certa vigência no presente. De facto, consi­
194 "L ex est sanctio sancta, sed consuetudo est sanctio sanctior, et ubi consuetudo loquitur, lex m anet sopíta" [a lei é um a sanção santa, m as o costume
ainda é mais santo, e onde fala o costum e, cala-se a lei] (Consuetudines amalfitenscs); Hespanha, 1989, 291 ss.
195 Cf. H espanha, 1989, 399 ss.
Cultura Jurídica Europeia
173
dera-se que as leis antigas sobrevivem nas mais recentes
(D., 1,3,26 e 27) e que as mais recentes devem ser tomadas perti­
nentes em relação às mais antigas, a menos que abertamente as
contradigam (D.,1,3,28). Logo, direito novo e direito antigo, ain­
da que divergentes, acumulam-se em camadas sucessivas, po­
dendo ser conjuntamente chamados a resolver um certo caso.
5 .3 .7 . Normas de conflito de “geometria variável”
A ordem jurídica apresenta-se, assim, como um conglome­
rado de normas de proveniência diversa, eventualmente incom­
patíveis, desprovido, por outro lado, de um conjunto fixo de
normas de conflitos, i.e., de regras que decidam qual a norma a
aplicar num caso concreto. É certo que existem princípios gerais,
aos quais já nos referimos, que estabelecem algumas directivas
(o "critério do pecado"; o princípio de que a norma especial der­
roga a geral; o princípio de que o direito comum é subsidiário
em relação ao direito próprio).196 Mas, mesmo assim, coexistem
normas contraditórias, sem que a preferência de nenhuma de­
las possa ser decidida por estes princípios.
Na arquitectura do ius commune, a primeira preocupação
não é reduzir à unidade esta pluralidade de pontos de vista
normativos. A primeira preocupação é torná-los harmónicos,
sem que isso implique que alguns deles devam ser absoluta­
mente sacrificados aos outros ("interpretatio in dubio facienda est ad evitandam correctionem, contrarietatem, repugnantiam", a interpretação deve ser feita, em caso de dúvida, no
sentido de evitar a correcção [de umas normas pelas outras],
a contradição, a repugnância). Pelo contrário, todas as nor­
mas devem valer integralm ente, umas nuns casos, outras nos
outros. Assim, cada norm a acaba por funcionar, afinal, como
196Outros princípios (por vezes contraditórios entre si!): "lex superior derrogat inferior"; "lex tendens ad bonum publicum praefertur tendenti com modo privatorum "; "lex specialis derrogat generali" (D .,50,17,80); "lex pos­
terior d errogat priori"; "leges in corpore pareferuntur extravagantes" (cf.
Coing, 1 9 8 9 ,1,128 s.).
174
António Manuel Hespanhol
uma perspectiva de resolução do caso, mais forte ou mais fraca
segundo essa norma tenha uma hierarquia mais ou menos
elevada, mas, sobretudo, segundo ela se adapte melhor ao caso
em exame.197 Ou seja, as normas funcionam como "sedes de
argumentos" (topoi, loci, v. infra, 5.6.), como apoios provisórios de
solução; que, no decurso da discussão em torno da solução, irão
ser admitidos ou não, segundo a aceitabilidade da via de solução
que
abrem.
A regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurídica
pluralista não é, assim, uma regra formal e sistemática que
hierarquize as diversas fontes do direito, mas antes o arbítrio do
juiz na apreciação dos casos concretos ("arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbítrio do juiz
aquilo que não está definido pelo direito). E ele que, caso a caso,
ponderando as consequências respectivas, decidirá do equilíbrio
entre as várias normas disponíveis. Este arbítrio é, no entanto,
guiado. Pelos princípios gerais a que já nos referimos. Mas,
sobretudo, pelos usos do tribunal ao julgar questões semelhantes
(stylus curiae), usos que, assim, se vêm a transformar num
elemento decisivo de organização (casuística) do complexo
normativo
deste
direito
pluralista.
É sobre este ordenamento que vai incidir a actividade de uma
doutrina jurídica europeia, obedecendo aos mesmos cânones
metodológicos, e potenciando, portanto, a tendência para a
unificação.
5.3.8.
Uma
ordem
jurídica
flexível
Já antes (cf., supra, 5.3.1. referimos a flexibilidade como a primeira
característica ds ordem jurídicá pluralista do direito comum.
Explicaremos agora melhor quais os procedimentos técnicos
através dos quais essa flexibilidade era conseguida.
Sobre a estratégia casuísta, v. a límpida exposição deTau
Anzoategui, 1992.
Cultura Jurídica Europeia
175
5.3.8.I. Flexibilidade por meio da graça
A flexibilidade jurídica não decorria apenas da pluralida­
de de ordens normativas e do carácter aberto e casuístico da sua
hierarquização.
Resultava também da ideia de que o território do direito era
uma espécie de "jardim suspenso", entre os céus e a vida quoti­
diana. Entre o domínio sobrenatural da religião e o domínio das
normas jurídicas terrenas.
Na verdade, as normas jurídicas, as máximas doutrinais e
as decisões judiciais constituíam as regras da vida quotidiana.
Normalmente, cumpriam bem o seu papel. No entanto, elas não
constituíam o critério último de normação.
Passava-se com o direito o que se passava com a natureza.
Tal como a lei que Deus imprimira na natureza (causae secundae
[causas segundas], natura reruni [natureza das coisas]) para os
seres não humanos, também o direito positivado (nas institui­
ções, nos costumes, na lei, na doutrina comum) instituíra uma
ordem razoavelmente boa e justa para as coisas humanas.
No entanto, acima da lei da natureza, tal como acima do
direito positivo, existe a suprema, embora frequentemente m is­
teriosa e inexprimível, ordem da Graça, intimamente ligada à
própria divindade (Causa prima, Causa incausata).
Por causa da sua influência na compreensão desta relação
entre os níveis da ordem, é útil relembrar aqui a teologia da Cri­
ação, tal como foi exposta pelos grandes teólogos ibéricos (e ita­
lianos) da primeira época moderna. Servimo-nos de Domingo
de Soto (De iustitia et de iure, Cuenca, 1556, liv. I, q. 1, art. 1.). O
acto de Criação, como acto primeiro, fora um acto incausado e
livre, um acto de pura (absoluta) vontade, um acto de Graça. No
entanto, uma vez que Deus é a Suma Perfeição, a Criação não
constituíra um processo arbitrário. E certo que a Criação não é
boa por corresponder a uma bondade anterior a Deus e que este
tivesse que ter em conta; mas também é, paradoxalmente, ver­
dade que Deus, sendo Bom, não podia ter querido outra coisa
senão o bem. Em suma, a Criação não sendo "devida", sendo e
176
António M anuel Hespanha
livre e "gratuita", não é arbitrária. Pois há como que uma ordem,
uma regra, nos próprios actos arbitrários.
Para além deste acto primeiro .de criação, pelo qual Deus
estabeleceu (gratuitamente, livremente) a ordem do mundo, esta
ficou a valer, tanto em relação às coisas não humanas, como às
coisas humanas. E, dentro destas, deu origem a um direito - o
direito natural, que já os juristas romanos tinham definido como
"aquele que a natureza ensina a todos os animais". De facto, Ulpianus define o direito natural como "[...] Aquele que a natureza
ensina a todos os animais. Na verdade, este direito não é próprio
do género humano, mas comum a todos os animais que vivem
na terra e no mar, incluídas as aves. Daqui decorre a união entre
macho e fêmea, a que chamamos matrimónio, a procriação e edu­
cação dos filhos. Vemos, na verdade, que os restantes animais,
mesmo as feras, mostram ter conhecimento deste direito" (D.,
1,1,1,3). Outros juristas acrescentavam como pertencentes a este
direito que a natureza ensinou aos homens (ius gentium [direito
das gentes], que restringiam ao género humano): o amor por Deus,
pelos pais e pela pátria (Pomponius, D, 1,1,2); a auto-defesa, de
onde decorria que aquilo que se fizeste em defesa do próprio cor­
po, seria legítimo; a proibição da falsidade no seio das relações
humanas (Florentinus, D.1,1,3); a liberdade humana (Ulpianus,
D,1,1,4); o direito da guerra, a divisão das nações, a constituição
dos reinos, a divisão da propriedade, a generalidade dos contra­
tos (Hermogenianus, D,1,1,5). Porém, esta ordem "estabelecida"
não é finita, porque Deus desenvolve a ordem (acrescenta mais
ordem à ordem) por meio de outros actos, também não devidos ou
livres, outros actos de Graça (dos quais se destacam os milagres).
A tendência geral da teologia católica, depois de Trento, foi
a de restringir o arbítrio divino, tomando-o menos soberano no
domínio dos actos de Graça (menos soberano "no dar"), ao in­
sistir no carácter justificador (logo, condicionador das dádivas
de Deus, nomeadamente, da dádiva da Salvação) das acções dos
homens. Para a sensibilidade católica,198 as acções constituíam
''“ Sobre o carácter estruturante da religião católica nos países da Europa me­
ridional, justam ente no dom ínio do direito, Levi, 2000.
Cultura Jurídica Europeia
177
factos palpáveis, contabilizáveis, objectivos, que forçavam a von­
tade de Deus na sua "gestão da Graça".
No nível político-constitucional, os actos incausados (como
as leis ou os actos de graça do príncipe), reformatando ou alte­
rando a ordem estabelecida, são, por isso, prerrogativas extra­
ordinárias e muito exclusivas dos vigários de Deus na Terra os príncipes. Usando este poder extraordinário (extraordinaria
potestas), eles im itam a Graça de Deus, fazendo como que
milagres, (cf., infra, 5.5.1. e, como fontes dessa graça terrena, in­
troduzem uma flexibilidade quase divina na ordem humana.199
Como senhores da graça, os príncipes:
• Criam novas normas (potestas legislativa) ou revogam as
antigas (potestas revocatoria);
• Tornam pontualmente ineficazes normas existentes (dis­
pensa da lei, dispensatio legis);
• Modificam a natureza das coisas humanas (v.g., eman­
cipando menores, legitimando bastardos, concedendo
nobreza a plebeus, perdoando penas);
• Modificam e redefinem o "seu" de cada um (v.g., conce­
dendo prémios ou mercês).
De certo modo, esta prerrogativa constitui a face mais visí­
vel do poder taumatúrgico dos reis, a que a tradição europeia
tanto recorre.200Teorizando esta actividade "livre e absoluta" dos
reis, João Salgado de Araújo, um jurista português dos meados
do séc. XVII, usa expressamente a palavra "m ilagre" (João Sal­
gado de Araújo, cf. Araújo, 1627, p. 44), enquanto que outro de­
clara que o príncipe, através da graça, "pode transformar qua­
drados em círculos" (mutare quadratos rotundis, cf. Pegas, 1669,
t. IX, p. 308, n. 85.), na sequência de fórmulas que vêm dos pri­
meiros juristas medievais que discutiram os poderes dos papas
e dos reis (cf., infra, 5.5.1.).
199Cf. H espanha, 1993f.
200De facto, era corrente acreditar-se, durante a Idade Média que is reis esta­
vam dotados do poder de fazer m ilagres, mesmo no plano físico, com o cu­
rar doenças. (Bloch, 1924)
178
António Manuel Hespanhol
No entanto, esta passagem do mundo da Justiça para o mundo da
Graça não nos introduz num mundo de absoluta flexibilidade. Por um
lado, a graça é um acto livre e absoluto ((z.e., como se diz do poder
absoluto ou pleno do rei: plenitudo potes-tatis, seu arbitrio, nulli
necessitate subjecta, nullisque juris publicis limitata, [um poder ou
vontade absolutos, livre de qualquer necessidade, não limitado por
quaisquer vínculos do direito público], Cod. Just., 3,34,2). Mas, por outro
lado, a graça não é uma decisão arbitrária, pois tem que corresponder a
uma causa justa e elevada (salus & utilitas publica, necessitas, aut justitiae
ratió). Nem isenta da observância da equidade, da boa fé e da recta razão
("aequitate, recta ratio [...], pietate, honestitate, & fidei data"), nem do
dever de indemnizar por prejuízos colaterais causados a terceiros.201 Em
contrapartida, pode tornar-se como que "devida" , em face de actos
também gratuitos (favores, serviços) que os vassalos tenham feito ao rei, e
que, assim, forçavam os reis à atribuição de recompensas ou mercês.202
Como a graça não é o puro arbítrio e antes configura um nível mais
elevado da ordem, a potestas extraordinaria dos príncipes aparece, não
como uma violação da justiça, mas antes como uma sua versão ainda mais
sublime.203 Para Salgado de Araújo (Ley regia de Portugal, Madrid,
1627), o governo por estes meios extraordinários da graça - ou seja, tirado
fora dos mecanismos jurídico-administrativos ordinários - representa
uma forma última e eminentemente real de realizar a justiça, sempre que
esta não pudesse ser obtida pelos meios ordinários (Araújo, 1627,46).
Este tipo de flexibilidade correspondia, portanto, à existência de vários e
sucessivos níveis de ordem. Quanto mais elevados eles estivessem, tanto
mais escondidos, inexplicitáveis e não generalizáveis seriam. A
flexibilidade era, então, a marca da insuficiência humana para esgotar,
pelo menos por meios racionais e explicáveis, o todo da ordem da
natureza e da humanidade.
201 Cf., com mais detalhes, Hespanha, 1993f; Dios, 1994, 264 ss..
202Sobre esta economia da mercê, v., por último, Monteiro, 1998,
maxime, 545 ss.. 2(13 Por isso é que a graça corresponde à justiça
distributiva, que não se pauta -como a comutativa - por uma regra
automática e geral.
Cultura Jurídica Europeia
179
5.3.8.2. Flexibilidade por meio da equidade
A equidade era um outro factor de flexibilidade. A discus­
são sobre a equidade foi longa na tradição jurídica europeia,204
relacionando-se com várias questões.
No séc. XII, Graciano ligou esta questão à da legitimidade
dos privilégios, i.e., normas singulares que se opunham à nor­
ma geral: "Por isso, concluímos do que antecede que a Santa
Madre Igreja pode manter a alguns os seus privilégios e, mes­
mo contra os decretos gerais, conceder benefícios especiais, con­
siderada a equidade da razão, a qual é a mãe da justiça, em nada
diferindo desta. Como, por exemplo, os privilégios concedidos
por causa da religião, da necessidade, ou para manifestar a gra­
ça, já que eles não prejudicam ninguém" (Decretam de Graciano,
II, C. 25, q. 1, c. 16).
A equidade aparece aqui como uma "justiça especial", não
geral e não igual, mas mais perfeita do que a justiça igual (da
qual a equidade seria a mãe).
Um passo suplementar e mais elaborado, é dado por S.
Tomás, na sua discussão sobre equidade e justiça (Summa theologica, Ila.IIae, qu. 80, art. 1). O ponto de partida é a declaração
de Aristóteles de que a equidade (epieikeia) era uma virtude anexa
à justiça. Usando a sua peculiar técnica de raciocinar (quaestio,
progredindo de um problema particular para questões cada vez
mais gerais) (cf., infra, 5.6.2.3), S. Tomás interroga-se sobre uma
questão mais geral acerca da natureza de um tipo de conheci­
mento que designa por gnome (Il.IIae, qu. 51, no. 4, "Se a gnome
é uma virtude especial"): "Respondo que os hábitos de conhe­
cer são distintos, conforme se baseiam em princípios mais ele­
vados ou menos elevados. Por isso, o conhecimento das coisas
especulativas lida com princípios mais elevados do que os das
ciências. Essas coisas que estão para lá da ordem dos princípios
inferiores ou causas estão evidentemente dependentes da ordem
204Vallejo, 1992; Padoa-Schioppa, 1999.
180
António Manuel Hespanha
dos princípios mais elevados: por exemplo, se a explicação dos
monstros está para lá da ordem das forças activas do sémen, isso
quer dizer que ela se situa no nível de princípios mais elevados,
como a influência dos corpos celestes ou, para além disso, a or­
dem da Providência divina [...] No entanto, acontece às vezes
que é necessário fazer algumas coisas que estão acima da ordem
dos actos comuns [...] e, por isso, neste caso devemos julgar as
acções por princípios que estão acima das normas comuns [...]
Para julgar de acordo com estes princípios mais elevados, ne­
cessita-se de uma outra virtude judicativa, chamada gnome, a
qual requer uma certa perspicácia de julgamento [..
Este relance sobre as concepções psicológicas implícitas de
S. Tomás que confirma o que se disse sobre os distintos níveis
da ordem - permite também um distinção mais rigorosa entre
justiça (geral) e equidade (particular).205 Ou seja, ao passo que a
justiça geral era o produto de uma forma menos refinada e pro­
funda de conhecimento, a justiça particular (ou equidade) de­
corria dessa forma superior de entendimento das coisas que
alcançava níveis superiores e mais escondidos da ordem do
mundo - a gnome.
Depois da secularização do mundo e do triunfo do racionalismo (cf., infra, 7.1.2.), perdeu o sentido a ideia de uma esfe­
ra de ordem sobrenatural e oculta, da qual fluíam os critérios
para temperar o rigor da lei. A graça, como um critério ilimita­
do de ajustar a lei geral ao caso particular, foi expulsa do direi­
to. Aquilo que dela restou (perdão e amnistia) foi atribuído ape­
nas ao poder supremo (chefe de Estado), um pouco como resí­
duo daqueles anteriores poderes taumatúrgicos dos reis. Mas,
mesmo aqui, limitadamente, de acordo com critérios objectivos
e gerais.
E contrapartida, no Antigo Regime, esta ideia de percep­
ções não racionais, não discursivos e não generalizáveis, nos
205Sobre o tem a, v. ainda S. Tom ás (Summa theologica, Ila.IIae, qu. 80, art. 1, to
ns. 4 and 5; Ila.IIae, qu. 120, art. 2).
Cultura Jurídica Europeia
181
níveis supremos da ordem estavam na base de da teoria do di­
reito concebida como uma teoria argumentativa (cf. infra, 5.6.2.),
da verdade jurídica como uma verdade "aberta" e "provisória",
da teoria do poder de criação jurídica dos juizes (arbitrium iudicis),206 bem como dos traços fundamentais da deontologia dos
juristas.207
O conceito de equidade (equity) teve uma evolução e impac­
to muito particulares no direito inglês, que aqui convirá desta­
car.208
Um pouco como no direito civil (ius civile) romano, o direi­
to medieval inglês (common law) - de origem normanda - era,
sobretudo, um sistema muito estrito e formalizado de acções
(writs). Um queixoso não poderia fazer valer os seus direitos se
não encontrasse uma acção na qual pudesse integrar a sua pre­
tensão (ubi remedium ibijus [só se houver um remédio processu­
al, haverá um direito]). O grande jurista inglês Henry Bracton,
no seu Tractatus de legibus et consuetudines Angliae, (c. 1256; I a ed.
impressa 1569) refere que "há tantos géneros de acção [de pro­
cessos de garantir direito] quantas as fórmulas dos writs" ["tot
erunt formulae brevium quot sunt genera actionum", fl. 413 b).209 Já
nos finais do séc. XVIII, Adam Smith considerava, com orgulho,
que a liberdade dos ingleses repousava principalmente no es­
casso poder dos juizes, ao explicar, alterar ou estender, corrigir
o sentido das leis, e na grande exactidão com a qual estas têm
que ser observadas de acordo com o significado literal das suas
palavras ("the little power of the judges in explaining, altering,
or extending or correcting the meaning of the laws, and the gre­
at exactness with which they must be observed according to the
“ Cf. Hespanha, 1988f,
207Cf. Tao Anzoategui, 1992.
208Cf., sobre o tem a, Plucknett, 1 9 5 6 ,6 7 1 ss.
209E muito interessante a sem elhança com o sistema rom ano das acções pretorias, em que a tutela do direito estava dependente da concessão de uma
fórmula processual pelo pretor [actionis datio].
182
António Manuel Hespanhol
literall meaning of the words, of which history affords us many
instances", Lectures on jurisprudence [10.3.1763].210
Este sistema - que se manteve até aos Judicature acts (1873-1875)
provocou uma grande rigidez no direito, tanto mais que se começou
a manifestar, por volta do séc. XIV, uma resistência dos senhores
feudais à concessão de novos tipos de acções (writs), nos quais viam
potenciais garantias de direitos das populações que poderiam limitar
o seu arbítrio. A forma de superar este conservadorismo jurídico foi
um progressivo recurso à equidade,211 que - embora com alguma
expressão mesmo nos tribunais clássicos do common laiu - teve um
impacto maior naqueles tribunais em que os juízos de oportunidade
ou a pretensão régia de corrigir o direito em função da justiça (v.,
supra, 6.3.8.1) eram dominantes. Isto passava-se, nomeadamente,
com tribunais reais mais especializados, como o King's Council ou a
Court of Chancery (tribunais reais por excelência) ou a Court of
Admiralty (que üdava com matérias comerciais, normalmente
usando o direito da tradição ro-manista continental). Dada esta
separação institucional, a equity acabou por se constituir num ramo
de direito relativamente autónomo em relação ao common law.212
210
E continua: "The first cause of the great strictness of the law
is the ordinary method of proceeding in the courts, which must be
commenced by taking out a writ in Chancery, according to which
they must form the suit and pronounce sentence without any
deviation from the exact words of the brief; or if the action be
founded on any particular statute, the words of the statute must be
adhered to exactly. Nor can they alter or falsify any thing in the
proceeding or the sentence different from the brief, as the records
which 1 are kept very exactly must bear it openly. Another thing
which curbs the power of the judge is that all causes must be tried
with regard to the fact by a jury. The matter of fact is left intirely to
their determination".
211
Teorizada, sobretudo, por Christopher St. Germain (em
Doctor and student, 1523-1530), que propunha a equidade - na
esteira de Aristóteles e do direito canónico - como uma forma de
compatibilizar o direito com a veriabili-dade dos tempos e das
situações. V., sobre o tema, Caenegem, 1999.
Cultura jurídica Europeia
183
5.4. Direito do reino em P o rtu gal. É pocas m edieual e m oderna
5 .4 .1 . D ireito v isig ó tico
A história do direito visigótico na Península Ibérica tem
sido abordada por historiadores alemães, espanhóis e portugue­
ses. Dos espanhóis, por último e com indicações bibliográficas,
Luís Garcia Valdeavellano, Curso de historia de las instituciones
espanolas, Madrid 1973 (5a ed.), 163 216; Francisco Tomaz y Valiente, Manual de historia dei derecho espanol, Madrid 1981 (3.aed.),
97 112. Quanto aos segundos, Nuno Espinosa Gomes da Silva,
História do direito português, Lisboa 1985, 37 64.
As fontes jurídicas visigóticas foram editadas: a Lex ro­
mana zuisigothorum, por G. H anel, Lex romana w isigothorum ,
Leipzig 1849; os códigos visigóticos por K. Zeumer, Leges w i­
sigothorum antiquiores. M onumento Germanize histórica, Hannover Leipzig 1849; ou, entre nós e de forma mais cómoda, por
Manuel Paulo Merêa, Textos de direito visigótico, I (Codex Euricianus, Lex ivisigothorum sive Liber Iudiciorum), Coimbra 1923,
e II (Glosas ao Liber iudiciorum. lei de Teudis, Fragmentos de HoIkham, Form ulas visigóticas, etc.), Coim bra 1920. Existe uma
versão castelhana do Liber..., em Los códigos espanoles concor­
dados y anotados, Madrid 1872-3, ou em Fuero juzgo en latin y
castellano, Madrid 1815.
5 .4 .2 . Feudalismo e direito feudal
A questão da existência ou não do feudalismo em Portu­
gal constitui um debate clássico da historiografia portuguesa.
O termo "feudalismo" foi utilizado para descrever o siste­
ma político e social medieval português ainda no séc. XVIII.
Pascoal de Melo, por exemplo, usa-o (com conotações negativas)
para classificar as prestações forais. Mas é o eco que a obra de
Francisco Cárdenas (Ensayo sobre la historia de la propriedad terri­
torial en Espana, 1873 5) origina em Alexandre Herculano ("Da
existência ou não do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e
Portugal", Opúsculos, V) que lança entre nós o debate. Hercula-
184
António M anuel Hespanha
no pronuncia se negativamente; o mesmo faz Gama Barros (His­
tória da administração pública..., I , 162 ss.), fundando se:
a) na não obrigatoriedade do serviço militar nobre;
b) na não hereditariedade dos feudos;
c) na utilização excepcional, nas fontes, da palavra "feudo";
d) na permanência dos laços de vassalagem "geral", i.e., na
sujeição de todos os habitante do reino ao rei, como seu
senhor "natural";
e) e na consequente não assunção pelos senhores feudais
de todos os direitos majestáticos (regalia, Hoheitsrechte).
Manuel Paulo Merêa e Torquato de Sousa Soares aderiram
às anteriores posições, ficando estabelecida entre nós a opinião
da especificidade dos modelos portugueses da organização po­
lítico social na Idade Média - dominados por um modelo "se­
nhorial", mas não "feudal". Importa realçar - pois não se trata­
rá de um facto acidental na sua fortuna - a adequação desta ideia
de uma especificidade da sociedade medieval portuguesa à ide­
ologia dominante nos círculos politicamente moderados ou con­
servadores durante os séculos XIX e XX: o alegado papel unifi­
cador, regulador e arbitrai da coroa (do Estado, cf., infra, 8.4.4.)
legitimou, sucessivamente, a ideologia monárquica do cartismo
("poder moderador"), o cesarismo dos fins do séc. XIX (v. O Prín­
cipe Perfeito, de Oliveira Martins), o nacionalismo monárquico
do Integralismo Lusitano (o rei, fundador e protagonista da "cons­
ciência nacional"), a ideologia integracionista, anti-plutocrática
e "estadualista" do corporativismo fascizante dos anos trinta e
quarenta (o rei, ao lado do "povo", contra o "egoísm o" dos no­
bres; o rei, garante do equilíbrio social e do interesse nacional).
Os anos sessenta e setenta, pelo contrário, são marcados
pela influência entre nós da reflexão dos historiadores e teóri­
cos marxistas sobre o feudalismo, compendiada no célebre ca­
derno do Centre d'Études et recherches à la lumière du marxisme, Sur
le féodalisme, 1963, e aplicada a Portugal pela obra de Álvaro
Cunhal ("La lutte de classes en Portugal à la fin du moyen age",
em Recherches internationales à la lumière du marxisme, 37 (1963)
93 122; trad. port., 1974). As especialidades do nível jurídicopolitico foram desvalorizadas, a distinção "senhorialismo-feu-
Cultura Jurídica Europeia
185
dalismo" foi obliterada, e e. estrutura social portuguesa foi sub­
sumida ao modelo geral de um sistema económico-social "feu­
dal". Nesta perspectiva convergiram as interpretações de, entre
outros, A. H. Oliveira Marques (História de Portugal, I, Lisboa
1972), Armando Castro (Evolução económica de Portugal (...), 1,146
ss., 324 ss.), António Borges Coelho (por último, Questionar a his­
tória. Ensaios sobre a história de Portugal, Lisboa 1983) e A. M. Hespanha (História das instituições. Épocas medieval e moderna, Lisboa
1982); nesta obra, no entanto, não só se punha em causa o mo­
delo marxista clássico do feudalismo (definindo - com um acer­
to problemático... - a coerção "extra-económica" como uma ca­
racterística "não essencial" - de degenerescência - do sistema, p.
92 ss.), como se apontava para outras tipologias classificativas
dos sistemas "de dominação" (Herrschaftsysteme), de raiz weberiana (v.g., a oposição entre "feudalismo" e "patrimonialismo ou "patriarcalismo" -, como subtipos da "dominação tradicio­
nal (traditionale Herrschaft) [pg. 87]).
Coube a José Mattoso, o mérito de (por último em Identifica­
ção de um país, Lisboa 1985, rnaxime 1,47 ss., 83 ss.) ter renovado a
impostação do problema, ao distinguir dois planos: o das relações
entre os grupos sociais dominantes e os grupos sociais domina­
dos (pelas quais os primeiros se apropriam, nomeadamente, dos
excedentes produzidos pelos segundos) e o das relações que es­
truturam o interior dos grupos dominantes (que organizam o blo­
co social dominante). O primeiro plano seria o domínio de vigên­
cia do regime "senhorial", com uma definição próxima da que lhe
é dada pela historiografia marxista (temperado, apenas, o exclu­
sivismo economicista de algumas das suas versões). O segundo,
o da vigência do regime "feudal", como forma de organização
interna dos grupos dominantes, neste plano sem diferenças deci­
sivas em relação aos modelos centro-europeus.
A explicação de José Mattoso é, na sua simplicidade, mui­
to produtiva, pois tem a vantagem de se harmonizar com pro­
cessos conhecidos da teoria social e, até, da teoria social marxis­
ta que, frequentemente, lida com esta ideia de que os grupos
sociais dominantes possuem processos internos de organização
(v.g., no capitalismo concorrencial, o regime parlamentar) com
186
António Manuel Hespanhol
os quais, ao mesmo tempo, se desorganizam os grupos dominados.
Alguma especificidade (debilidade) do sistema feudal português
apenas obrigaria a estudar a eficácia, entre nós, de formas vicariantes
de organização das classes dominantes (como, v.g., as estruturas
familiares ou a acção reguladora e mediadora da coroa).
As Partidas (v. doc. em J. Gilissen, Introdução ..., doc. 2, p. 193), bem
conhecidas em Portugal no séc. XIV, definem o feudo como "bien
fecho queda el Senor algund ome, porque se torne su vassalo, e el faze
omenaje dele ser leal.. (IV, 26,1: cf. a definição dos feudistas -feudum
est benevola concessio libera et perpetua rei immobilis, vel
aequipolentis, cum transactione utilis dominii, pro-prietate retenta,
cumfidelitatisprestatione, etexhibitione servitii (Curtis); fetudum sive
beneficium est benevola atctio tribuens gaudium capienti, cum
retributione servitii [Baldo]). Distinguem depois entre o feudo sobre
bens de raiz, irrevogável salvo comisso, e o feudo "de câmara",
consistindo numa quantia e revogável ad nutum. Na lei seguinte, as
Partidas fixam se no foro de Espanha e nos correspondentes
peninsulares (castelhanos) das concessões feudais. A "terra" seria o
correspondente do feudo "de câmara"; a honra, o correspondente do
feudo sobre bens de raiz. Com uma diferença: ao contrário dos
vassalos ultra-pirenaicos, os vassalos por foro de Espanha não
estariam obrigados a serviços concretos, especificados no pacto
feudal ("postura"), mas antes sujeitos a uma obrigação genérica de
serviço leal.
O mais famoso comentador das Partidas, o quinhentista Gregório
Lopez bem observou (glosa d) a IV, 26, 2; cf. doc. em J. Gilissen,
Introdução..., doc. 2, pg. 193) que esta distinção não estava certa, pois
o direito feudal comum conhecia feudos sem especificação de serviço
(feuda recta; nos franca et libera não haveria, pura e simplesmente,
obrigação de serviço, cf. glosa e) à mesma lei). Mas esta ideia da
especialidade do regime vassalá-tico peninsular fez curso. Também S.
Tomás [De rebuspublicis et principum institutione, ed. cons.
Lugduni Batavorum, 1651, 1,3, c. 22, pg. 293] a corrobora, ao afirmar
que, nas Espanhas, e principalmente em Castela, todos os principais
vassalos do rei se chamam ricos-homens, porque o rei provê com
dinheiro a cada
Cultura Jurídica Europeia
187
barão segundo os seus méritos, não tendo a maior parte deles
jurisdições ou meios bélicos senão por sua vontade, pelo que o seu
poder depende absolutamente das quantias dadas pelo rei. Embora as
situações de facto não sejam fundamentalmente diferentes das ultrapirenaicas, a imagem de um regime vassalá-tico diferente plasma se
enfaticamente, como veremos, na legislação portuguesa quatrocentista
sobre as concessões de bens da coroa, nomeadamente na Lei Mental, e
permanece como um tópico corrente da doutrina seiscentista.
A Lei Mental (Ord. man, II, 17; Ord.fil., II, 35) fixa, desde os inícios do
séc. XV, o regime das concessões vassálicas, em termos muito próximos
do regime das concessões feudais do direito comum.
Aplica se apenas às concessões beneficiais com obrigação de serviço
nobre, excluindo - tal como a doutrina do direito comum (cf. doc. em J.
Gilissen, Introdução doc. 5, pg. 198) - as concessões contra uma
prestação económica (como as enfitêu-ticas, cf. Ord.fil, II, 35,7).
Quanto ao serviço, adopta o "costume de Espanha" referido nas
Partidas, estabelecendo (Ord.fil., II, 35,3) que o donatário não seria
obrigado "a servir com certas lanças, como por feudo, porque queria
que não fossem havidas por terras feudatárias, nem tivessem a
natureza de feudo, mas fosse obrigado a servir, quando por elle fosse
mandado".
Quanto à devolução sucessória, afasta se, primeiro, do direito feudal
lombardo (compilado nos Libri feudorum), que permitia a
divisibilidade dos feudos, e adopta (decerto por atracção do regime de
sucessão da coroa e do princípio aristotélico, recebido pelo direito
comum, de que dignitates et iurisdictiones non dividuntur), a solução
da indivisibilidade e primogenitura, que já era usada entre nós para a
sucessão em jurisdições, e que dominava, também, o direito feudal
franco e siciliano.
Depois, consagra a exclusão da linha feminina, em consonância,
também, com a solução das Partidas.
A Lei Mental favoreceu, por fim, o princípio de que os bens da coroa,
embora doados, nunca perdem esta natureza, não podendo ser
alienados sem licença do rei (Ord. fd., II, 35,3).
188
António M anuel Hespanha
Pouco depois, no tempo de D. João II, estabeleceu se a re­
gra de que as doações deviam ser confirmadas, quer à morte do
donatário (confirmação por sucessão), quer à morte do rei (con­
firmação de rei a rei). Dois outros títulos das Ordenações (O rdaf,
II, 24; II, 40; Ord. man. II, 15; II, 26; Ord. f i l , II, 26; II, 45) interes­
sam à definição das relações feudo-vassálicas na idade moder­
na. O primeiro lista os direitos reais, ou seja, os direitos própri­
os (naturais, mas nem sempre exclusivos) do rei; o segando, fixa
o princípio de que tais direitos e as jurisdições não podem ser
tituladas senão por carta, fixando, suplementarmente, algumas
regras de interpretação e interpretação destas cartas. Contra o
que era admitido pelo direito comum (recebido, por exemplo,
em Castela), o nosso direito exclui, portanto, a aquisição das ju­
risdições e direitos reais por prescrição, ainda que imemorial.
Na prática, a Lei M ental constituiu uma moldura legal
muito complacente, sendo frequentemente dispensada, no sen­
tido de autorizar a sucessão de parentes inábeis (nomeadamen­
te de mulheres). Também a política de confirmações foi sempre
generosa, mesmo nos momentos de maior tensão política. As
casas nobres puderam perpetuar se (amparadas pelo princípio
da indivisibilidade, por vezes reforçado com a instituição de
morgados de bens da coroa). Também os direitos reais e as ju­
risdições foram magnanimamente doados, incluindo os de mai­
or relevo, como a isenção de correição. Para além da doação de
prerrogativas claramente majestáticas - como a legislação, ape­
lação e a moeda - a única coisa que a coroa evitou com diligên­
cia foi a sub-enfeudação - já no tempo de D. João I, contra tenta­
tivas do Condestável Nuno Álvares Pereira, seu genro, mas de­
pois, no séc. XVI, contra práticas idênticas da casa de Bragança.
A organização interna do grupo dominante teve, então, que se
basear nas solidariedades familiares e na acção reguladora da
coroa (que, por exemplo, devia aprovar os casamentos dos do­
natários, em certos casos).
Nestes termos, não se pode falar de um direito feudal em
Portugal, justamente porque aos senhores àe terras nunca foram
concedidos os instrumentos para o instituir. Por um lado, po­
der àe íazer leis. Por outro, o poàet àe julgar em última instân-
Cultura Jurídica Europeia
189
cia, o que permitiria criar práticas jurisprudenciais eventualmen­
te específicas.
Todo este regime entrou em crise nos finais do séc. XVIII.
A lei de 19.7.1790 regulou muito restritivamente as justiças se­
nhoriais e as isenções de correição; os restantes direitos reais,
nomeadamente os direitos de foral e as banalidades, são aboli­
das na sequência da revolução liberal.
5.4.2.1. Bibliografia
Para além da bibliografia citada, v., sobre a Lei Mental,
Manuel Paulo Merêa, "Génese da 'Lei mental' (algumas notas)",
Boi. Fac. Dir. Coimbra, 10(1926 8 ), 115. Sobre o regime senhorial
na Idade Média, José Mattoso, Identificação de um país, cit., 101
ss.; para a Idade moderna, v. as minhas obras As vésperas do Le­
viathan. Instituições e poder político (Portugal, séc. XVIII), Coimbra,
Almedina, 1994, e História de Portugal Moderno. Político-institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995. Sobre as jurisdições
senhoriais nos finais do Antigo Regime, v. Ana Cristina Noguei­
ra da Silva, O modelo espacial do Estado moderno. Projectos portu­
gueses de reorganização nos finais do Antigo Regime, Lisboa, Estam­
pa, 1998. Para a literatura do Antigo Regime, v., para além da
obra de Domingos Antunes Portugal adiante (doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. n.° 7) citada, Manuel Alvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes, cit., tomos X e XI, e Manuel da Costa,
Tractatus circa maioratu, seu successionum bonarum regiae Coronae,
Conimbricae 1569.
5.4 .3 . O costume
A história do elemento consuetudinário na história do di­
reito português tem sido objecto obrigatório de tratamento nos
nossos manuais de história do direito. Vejam se, a este propósi­
to, como últimos exemplos: Guilherme Braga da Cruz, "O direito
subsidiário na história do direito português", Rev. port. hist.
14(1975) 177 316; Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do di­
reito português, 1. Fontes de direito, Lisboa 1985,106 s., 114 ss., 229
190
António Manuel Hespanhol
ss., 276 ss.; Martim de Albuquerque & Ruy de Albuquerque, História
do direito português, I, Lisboa 19841985,161 ss..
Os forais, até 1279, estão publicados nos Portugaliae rnonu-menta
histórica. Leges et consuetudines, Olisipone 1856-1868. Uma edição
mais cómoda foi elaborada por Caeiro da Mata, Collec-ção de textos
de direito português. I - Foraes, Coimbra 1914,184 pp.. Lista de
(quase) todos os forais, publicados ou não, Francisco Nunes
FranMm, Memória para servir de indice dos foraes das terras do
reino de Portugal e seus dominios, Lisboa 1816, VII + 259 pp..
Alguns dos foros extensos que não se encontram nos P.M.H. podem
encontrar-se na Colleccão de livros inéditos da historia por-tugueza
dos reinados de D. Dinis. D. Afonso IV, D. Pedro leD. Fernando,
vols. IV(1816) (Santarém, S. Martinho de Mouros, Torres Novas),
V(1824) (Garvão, Guarda, Beja) e vol. não concluído (s. 1. s. d.)
(Castelo Branco). Mais bibliografia em A. M. Hespanha, "Introdução
bibliográfica à história do direito português. II", Boi. Fac. Dir.
Coimbra, 49(1974), secção 6.2.
Um ponto que, na literatura corrente sobre o tema, merece, a nosso
ver, revisão é o dos padrões de julgamento dos juizes locais; pois,
dado o seu frequente analfabetismo, não poderiam aplicar o quadro
de fontes de direito escrito e letrado (v., sobre o tema, A. M.
Hespanha, "Savants et rustiques. La violen-ce douce de la raison
juridique", Ius commune, 10(1983), Frank-furt-Main, 1-48 (versão
castelhana em A. M. Hespanha, La grada dei derecho, Madrid, C. E.
C., 1993); As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político
(Portugal, séc. XVIII), Coimbra, Alme-dina, 1994, maxime, 362 ss.;
439 ss.). É provável que se tenha que atribuir ao direito
consuetudinário local - parcialmente constituído por regras "de bom
senso" ou por regras "do precedente" - um papel bem mais
importante do que até hoje lhe tem sido reconhecido, mesmo para a
época moderna.
5.4.4. A legislação
Apesar de muita da historiografia portuguesa do direito se ocupar
da história das fontes, há muitas questões em aberto na história da
legislação portuguesa.
Cultura Jurídica Europeia
191
Para a Idade Média, começa se por não se dispor de uma
edição sistemática e crítica dos textos relevantes: os P.M.H. re­
colhem os anteriores a 1279 (deixando por resolver muitos pro­
blemas de datação e de reconstituição da tradição textual); a
partir daí, apenas conhecemos, fundamentalmente, as leis inse­
ridas em colecções tardo-medievais (Livro das leis e posturas, pu­
blicado em 1971, e Ordenações de D. Duarte, publicado pela Fun­
dação Gulbenkian em 1988). Nomeadamente, as chancelarias de
D. Dinis e dos reis seguintes (está publicada a de D. Pedro, [A,
H, Oliveira Marques (coord.), Chancelaria de D. Pedro I: 13571367), Lisboa, I.N.I.C., 1984] e a de D. Afonso IV [Id., Chancelari­
as portuguesas: D. Afonso IV: 1325-1344, 3 vols., 1990) contêm
muitas "leis" inéditas ou já conhecidas, mas de datação incerta.
Depois, há que precisar que o problema do "conceito de lei"
não foi satisfatoriamente resolvido. Alexandre Herculano abor­
da o, no prefácio dos P.M.H (Leg. 1,145 ss.), mas fá-lo em termos
historicamente errados, projectando sobre o passado os elemen­
tos do conceito oitocentista: generalidade, origem parlamentar,
permanência, "dignidade" das matérias (emanação da soberania).
A doutrina jurídica medieval não punha, desde logo, estas
exigências: c f, por exemplo, a alargada definição contida nas Sete
Partidas: "estabelecimientos porque los omes sepan biuir bien,
e ordenadamente, segun el plazer de Dios. (1,1,1), "leyenda q(ue)
faze ensenamento, e castigo escripto que liga, e apremia la uida
dei hombre que no faga mal" (1,1,4). Se o interesse do historia­
dor é o de detectar a medida da intervenção do poder eminente
(imperial, real, condal, etc.) na constituição da ordem jurídica,
então parece de adoptar um conceito que realce (i) o papel de­
terminante, unilateral e constitutivo da vontade do titular desse
poder e (ii) a intenção genérica de regulamentar ex novo as rela­
ções sociais. Isto permitirá distinguir a "lei" do "costum e", do
direito "pactado" local (em Portugal, "acordos", pouco frequen­
tes), mas também da "jurisprudência" do tribunal da corte (que
pode não instituir "direito novo", nem decorrer da vontade, mas
de "estilos", de normas doutrinais ou de autoridades jurídicas).
Em todo o caso, não foi este o critério das fontes históricas
que nos transmitiram os textos. As principais fontes utilizadas
192
António Manuel Hespanha
pela nossa historiografia para reconstituir a legislação medieval
são produto da actividade de juizes (da corte: Livro das leis e pos­
turas, Ordenações de D. Duarte, ou locais: Foros da Guarda), pelo
que aí estão reunidos os textos susceptíveis de aplicação judici­
al no âmbito do respectivo tribunal, qualquer que fosse a sua
natureza. No fundo, um critério semelhante ao de posteriores
fontes do mesmo tipo ("livros de assentos", "livrinhos ou livros
de leis"). Em uns e outros não faltam textos de natureza clara­
mente doutrinal ou jurisprudencial (e não "legislativo").
Em Portugal, até aos finais do séc. XIII estão identificadas
cerca de 250 "leis" (posturas, degredos, estabelecimentos, orde­
nações, mais raramente, constituições). Cerca de 220 situam se
entre 1248 e 1279 (embora esta estatística seja problemática, pois
muitos dos textos não estão datados). Por sua vez, o Livro das leis
e posturas, da primeira metade do séc. XV, contém pouco menos
de 400 "leis". Pelo que, numa aritmética grosseira, caberiam ao
séc. XIV e ao início do séc. XV, cerca de 150 "leis".
Este conjunto de "leis" reparte-se por vários temas:
(i) determinações régias no uso do seu poder "imperial"
(nierunt imperium, scil., officium nobilis iudicis expeditum
reipublicae utilitatis respiciens, ou potestasgladiiadanim vertendum facinorosos homines, poder visando a utilidade da
república, nomeadamente quanto à repressão dos crimi­
nosos): aqui se incluem as leis penais e as "pazes" (insti­
tuição de juizes, proibição da vingança privada), de que
se aproxima o conjunto de leis da cúria de 1 2 1 1 ; progres­
sivamente, a ideia de "paz" vai-se alargando à de "bom
governo", abrangendo a intervenção "positiva" do rei em
matéria de governo e administração (mas, predominan­
temente, de administração judiciária): "super statu regni et super rebus corrigendis et emendandis de suo regno", sobre o estado do reino ou sobre a correcção e emen­
da do seu reino: lei das cortes de Leiria de 1254,
Leg., 1,183;
(ii) disposições do rei sobre as suas próprias coisas (de acor­
do com o modelo das leges rei suae dictae): acerca dos reguengos, dos cargos do paço, dos ofícios régios; na medi­
Cultura Jurídica Europeia
193
da em que a confusão entre o património do rei e o pró­
prio reino se vai instituindo (a partir da perda das concep­
ções "estatais" visigóticas e tardo-romanas), a separação
entre este tipo e o tipo (i) esbate se frequentemente;
(iii) disposições de cortes, representando "acordos" do rei
e dos optimata ou próceres regni; formalmente, constituí­
am decisões unilaterais do rei, embora "a pedido", pelo
que a sua irrevogabilidade nunca foi de direito; no entan­
to, a doutrina, mesmo a da época moderna, admitia uma
especial dignidade das leis "de cortes " , 213 que não pode­
riam ser revogadas tacitamente;
(iv) normas de decisão do tribunal da corte: muitas vezes
trata se de preceitos doutrinais ou costumeiros ("costu­
me he em casa dei rey", "custume he per magistrum julianum e per magistrum petrum "); mas, outras vezes,
parece ter havido uma decisão real ("estabelecimento",
"postura"), embora nem sempre resulte clara a intenção
de se ir além da certificação de um estilo interno, adop­
tando uma norma dirigida ao "público" externo.
A distribuição das espécies conhecidas por estas categori­
as não é equilibrada. A esmagadora maioria pertence às duas
últimas categorias; mas, sobretudo, à última. Nas leis contidas
nos P M.H., 2/3 são normas de julgamento do tribunal da corte;
apenas em cerca de 1/ 7 se distingue claramente a intenção real
de estabelecer direito novo. Mas só um estudo detalhado da tra­
dição textual, da cronologia e das fontes inspiradoras, tudo em
ligação com a conjuntura política permitirá avançar num diag­
nóstico claro da função legislativa dos reis portugueses na Ida­
de Média.
Quanto à época moderna, também são insuficientes os co­
nhecimentos acerca da função legislativa.
2,3Algumas publicações: Joaquim Leitão, Cortes do reino de Portugal, Lisboa, 1940
A. H. Oliveira M arques (coord.), Cortes portuguesas: reinado de D. Afonso IV
(1325-1367), Lisboa, INIC, 1982; Id. (coord.), Cortes portuguesas: reinado de
D. Pedro I (1357-1367), Lisboa, INIC, 1986; Id., Cortes portuguesas: reinado de
D. Fernando I (1367-1383), 2 vols., 1990.
194
António Manuel Hespanhol
No que respeita às suas formas, aos seus domínios temáticos,
aos seus ritmos.
A doutrina jurídica moderna distingue (a partir de quando?) uma
série de tipos bem identificados de actos "legislativos" - cartas de
lei, regimentos, alvarás, provisões, cartas régias, portarias,
decretos, avisos, assentos (v., sobre eles, a minha História das
instituições, cit., 423). Mas não está estudado o uso de cada uma
destas formas ao longo dos sécs. XV a XVIII ou a sua articulação
mútua; nem, muito menos, o significado jurídico, político ou
simbólico da preferência por uma delas (v.g., a expansão do
"alvará", a partir dos meados do séc. XVI, poderá relacionar se com
a intenção de evitar o controlo do Chanceler-mor, que podia
recusar o registo dos diplomas que passassem pela chancelaria,
v.g., as cartas de lei; também o uso da "portaria" visa iludir o
processo ordinário de despacho, curto-circuitando os competentes
tribunais da corte). O que é certo é que, no conjunto, o número dos
diplomas legislativos "por natureza", as cartas de lei, é muito
escasso: menos de 200 entre 1446 e 1603, incluindo as 45 leis das
cortes de 1538; cerca de 200 durante os séculos XVII e XVIII; o que
representa, para este arco de tempo, menos de 1/10 das
providências normativas da corte.
Sobre os domínios temáticos de intervenção da legislação real,
muito está por fazer. Quanto às Ordenações, sabe se que elas
cobriam a regulamentação da administração central e local
(sobretudo no domínio da " justiça", com o âmbito
"administrativo" que então a expressão também tinha; mas não já
no domínio fiscal-financeiro), livro I; a das relações entre a coroa e
os restantes poderes (nomeadamente, igreja, senhores, grupos
privilegiados), livro II; o processo, livro III; algumas matérias de
direito civil (compra e venda, doações, fianças, regime de bens do
casamento, tutelas e curatelas, sucessões, criados e serviçais,
alugueres, aforamentos, etc.), livro IV; o direito penal, livro V.
Quanto à legislação extravagante, ela incide, sobretudo, em temas
administrativos (sempre, mas sobretudo entre 1530 e 1650 e,
depois, a partir de 1750), fiscais-financeiros (sempre, mas com
especial incidência no reinado de D. Manuel e, depois, entre 1630 e
os finais do séc. XVII e no período üuminista), de organização
195
Cultura Jurídica Europeia
judicial (sobretudo entre 1530 e 1600), penais e de policia (sobre­
tudo a partir de 1730). As espécies dedicadas ao direito privado
são raras: cerca de uma dezena entre 1446 e 1603 (c. 5 %), deze­
na e meia (c. 7 %) para os dois séculos seguintes, incluindo as
providências pombalinas (c. 1 0 espécies) em matéria de direito
da família, das sucessões e da propriedade (morgados, enfiteu­
se, servidões).
Ou seja, parece que, passado o período filipino, se legisla
progressivamente menos, até se atingir o período iluminista e,
dentro deste, o pombalismo, onde se situam os "picos" moder­
nos de actividade normativa da coroa.
Quanto aos ritmos, é difícil proceder a estudos estatísticos,
mesmo baseados nas fontes incluídas nas colectâneas ou índi­
ces dos finais do séc. XVIII, pois os critérios de compilação são
incertos e não homogéneos, nelas se incluindo diplomas de na­
tureza muito diversa, desde as cartas de lei, genéricas, a porta­
rias e avisos, individuais, passando por assentos, tratados e ou­
tras fontes.
Em todo o caso, baseando nos em duas colectâneas gerais
(CCL - Colecção chronologica de legislaçao; IChr - índice chronologico..., de João Pedro Ribeiro) e computando todas as espécies aí
referidas, obtínhamos os seguintes perfis de evolução quantita­
tiva (médias anuais de diplomas emitidos, por quinquénio, de
trinta em trinta anos).
A nos
CCL
IC h r.
1 6 0 3 -1 6 0 7
6 ,4
-
1 6 3 3 -1 6 3 7
1,3
1 3 1 ,2
1 6 6 3 -1 6 6 7
0,6
8 4 ,4
1 6 9 3 -1 6 9 7
3 ,8
87
1 7 2 3 -1 7 2 7
0,4
7 6 ,2
1 7 5 3 -1 7 5 7
-
3 1 4 ,8
1 7 8 3 -1 7 8 7
-
1 5 7 ,6
196
António M anuel Hespanha
Ou seja: descontando anos anormais (como o de 1539, em
resultado das cortes do ano anterior), mostra se que a activida­
de propriamente legislativa é regular e relativamente elevada
entre 1520 e 1620 (ou seja, nos reinados de D. João III, de D. Se­
bastião, de Filipe I e de Filipe II); retoma, até a níveis superio­
res, com a Restauração (1641 1655); cai com D. Afonso VI, mas
volta a crescer com D. Pedro II, sobretudo na fase "real"; depois,
decai até aos anos centrais do pombalismo (1770 1776).
Embora esta estatística seja muito grosseira para diagnos­
ticar, com precisão, os períodos de uma política "intervencionis­
ta" nos domínios do direito e administração (basta lembrar que
muitas intervenções legislativas importantes revestiam outras
formas, nomeadamente a de "regim ento" ou mesmo, a de "al­
vará"), ela pode, no entanto, fornecer algumas pistas de estudo.
Quanto as questões mais correntes da história legislativa
(relações da lei com as outras fontes de direito, compilação co­
dificação legislativas, publicação das leis, interpretação e inte­
gração), remetemos para os manuais citados na bibliografia.
Das fontes escritas de direito local, devem distinguir se as
que consistem em cartas de privilégios concedidas pelos senho­
res da terra (forais), as resultantes de acordo dos vizinhos ou dos
órgãos dos concelhos (posturas, acordos) e as que resultam da
redacção dos costumes locais, por iniciativa do concelho, de
magistrados ou, até, do rei (estatutos, foros longos).
Sobre estas fontes, para além dos manuais antes citados, nas
secções respectivas, v. a bibliografia citada nas secções 6.2 e 7.2
da bibliografia final do meu livro A história do direito na história
social, cit., 186 ss. e 192 ss. e, ainda. Franz-Paul de Almeida Langhans, As posturas, Lisboa 1938.
5.4.4.1. Bibliografia
Em geral, Marcello Caetano, História do direito português,
Lisboa 1981,240 ss., 344 ss., 529 ss. A. M. Hespanha, História das
instituições..., cit., inaxime 181 ss., 328 s., 374 n.° 768, 421 ss., 524
ss.; Martim de Albuquerque e Ruy de Albuquerque, História do
direito português, I, Lisboa 1984/1985, cit., maxime 128 ss.; Nuno
Cultura Jurídica Europeia
197
Espinosa Gomes da Sil
História do direito português, Lisboa
1985,1 19 ss., 167 ss., 190 ss., 224 ss., 276 ss.; J.-M. Scholz, "Por­
tugal", in H. Coing, Handbuch der Quellen zur europaeische Rechts­
geschichte, cit., II.l (Neuere Zeit, 15001800), "Gesetzgebung und
Rechtsprechung", 204 309; trad. port., "Legislação e jurisprudên­
cia em Portugal nos sécs. XVI a XVIII. Fontes e literatura", Scientia iuridica, 25(1976), 1 ss.. Para os finais do Antigo Regime, v.,
do mesmo, "Portugal", ibid., III.l ("Das 19. Jarhundert. Geset­
zgebung zum allgemeinen Privatrecht"), 687 861 e 2242-2488.
Para a legislação medieval, v., ainda, Alexandre Herculano, prefácio e notas aos P.M.H., Leges, nomeadamente, 1,165 ss.;
J. Mattoso, Identificação de um país Ensaio sobre as origem de Portu­
gal. 1096 1325, II, 78 ss. (maxime, 84 ss. ).
Para as fontes, v., para além de J.-M. Scholz, o guia biblio­
gráfico incluído no meu livro A história do direito na história soci­
al, Lisboa 1978, infelizmente não muito desactualizado,183 ss. e
Martim de Albuquerque, "Para a história da legislação e juris­
prudência em Portugal", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 58(1982), II, 623
654. As Ordenações (afonsinas, manuelinas, filipinas), bem como as
Leis extravagantes e repertório das Ordenações, de Duarte Nunes de
Leão, foram publicadas pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Que tam bém publicou as chamadas Ordenações de D. Duarte,
colectânea não oficial de legislação do tempo deste rei.
5 .5 . A u n ificação p e la “cien tific iz a ç ã o ”. A s esco la s d a tr a d iç ã o
ju r íd ic a m ed iev a l
5 .5 .1 .
A Escola dos Glosadores
Na primeira metade do século XII, o monge Irnerius come­
çou a ensinar o direito justinianeu em Bolonha, dando origem à
"escola dos glosadores , 214 posteriormente continuada por discí214Sobre os "glosadores" v., por todos, Calasso, 1954, 503 ss.; W ieacker, 1980,
38 ss. e 45 ss.; Bellomo, 1988; síntese, Clavero, 1979, 34 ss. Para Portugal, v.
por todos, Silva, 1 9 9 1 ,1 8 1 ss. P ara o seu pensam ento político e jurídico,
Brugi, 1915, 41-9; Calasso, 1957; Cavanna, 1982,1 0 5 -1 3 6 ; Dolcini, 1983.
198
António Manuel Hespanhol
pulos seus.215 Estes dispersam-se primeiro pela Itália (citramon-tani),
depois pela França (ultramontani), onde, sob a influência da escolástica
francesa, se elaboram as primeiras sínteses. Por volta de 1240, Acúrsio
(c.1180 - c.1260) reúne a elaboração doutrinal da Escola na célebre Magna
Glosa,
Glosa
Ordinária
ou,
simplesmente,
Glosa.
As características mais salientes e originárias do método bolonhês são a
fidelidade ao texto justinianeu e o carácter analítico e, em geral, não
sistemático.
Quanto ao primeiro aspecto, é de realçar a ideia, comum entre os
glosadores, de que os textos justinianeus tinham uma origem quase
sagrada,216 pelo que seria uma ousadia inadmissível ir além de uma
actividade puramente interpretativa destes textos. A actividade dos juristas
devia consistir, portanto, numa interpretatio cuidadosa e humilde,
destinada a esclarecer o sentido das palavras (verba tenere) e, para além
disso, a captar o sentido que estas encerravam (sensum eligere) interpretação
anotativa.
E natural que tenha havido algum ensino especializado de direito
215
(lom-bardo e franco, mas com referências ao direito justinianeu) no Norte
de Itália (nomeadamente em Pavia) desde os meados do século XI (cf. Padoa-Schioppa, 1995, 168 ss.). Segundo Odofredo - que, nas suas lições sobre
o Corpus iuris (de 1234 a 1265)- inseria pequenas e por vezes divertidas
historietas sobre o ensino jurídico em Bolonha - teria sido Imerius o
iniciador destes estudos ("quia primus fecit glosas in nostros libros,
vocamus eum lucerna iuris" [como foi o primeiro que fez glosas aos nossos
livros, lhe chamamos lâmpada do direito]; "Sed Dominus Irnerius, dum
doceret in artibus in civitate nostra, cepit per se studere in libris nos-tris et
studendo cepit Iegere in legibus ... fiut lprimus illuminatur scien-tie" [No
entanto, foi o Senhor Irnério, quando ensinava artes liberais na nossa
codade, com aqui chegaram os livros de leis, que começou a estudar pelos
nossos livros e, ao estudar, começou a ensinar (ler) direito") (apud Grandi,
1982, 23). Sobre o estudo bolonhês, v. Bellomo, 1979; sobre Odofredo,
Tammasia,
1967,
335-461.
216
Os glosadores pensavam que Justiniano (século VI d.C.) fora
contemporâneo de Cristo ("Iustinianus regnabat tempore nativitis
Christi",
Glosa
de
Acúrsio).
Cultura Jurídica Europeia
199
Por outro lado - e entramos agora no segundo aspecto - uma
actividade intelectual deste tipo não podia desenvolver-se senãc
em moldes predominantemente analíticos. Ou seja, os juristas
faziam uma análise independente de cada texto jurídico, reali­
zada ao correr da sua "leitura", quer sob a forma de glosas in­
terlineares ou marginais, quer sob a de um comentário mais com­
pleto (apparatus); sem que (pelo menos, de princípio) houvesse
a preocupação de referir entre si vários textos analisados.
A "glosa" - explicação breve de um passo do Corpus Iurh
obscuro ou que suscitasse dificuldades - era, portanto, o mode­
lo básico do trabalho desta escola. No entanto, ela cultivou uma
gama muito variada de tipos literários: desde a simples glosa
interpretativa ou remissiva até ao curto tratado sintetizando uir
título ou um instituto (summa), passando pela formulação de
regras doutrinais (brocarda, regulae), pela discussão de questões
jurídicas controversas (dissenssiones doctorum, quaestiones vexatac
ou disputae), pela listagem dos argumentos utilizáveis nas dis­
cussões jurídicas (argumenta), pela análise de casos práticos (casus). Em alguns destes tipos literários as preocupações de sínte­
se e de sistematização são já sensíveis .217
217 Sobre todos estes géneros literários, cf. Calasso, 1954, 531-536; Mortari, 1958,
78 ss.; e, W eim ar, 1 9 7 3 ,1 4 0 ss., Berm an, 1 9 8 3 ,1 2 9 ss.. (que transcreve o iní­
cio de um curso de Odofredus: "Prim eiro, dar-vos-ei um sum ário de cada
título [do Digesto], antes de prosseguir com o texto. Depois, porei tão clara
e explicitamente quanto possa exem plos das leis [fragm entos] contidas nc
título. Em terceiro lugar, repetirei o texto, com uma opinião que corrija este
E m quarto lugar, repetirei brevm ente o conteúdo das Ieies. Em quinto lu­
gar, resolverei as contradições, adicionando princípios gerais comumente
cham ados brocardos, bem com o distinções ou questões delicadas e úteis,
com as respectivas soluções, tanto quanto a Divina Providência m e-lo per­
mita. E se algum a lei pareça m erecer, pela sua celebridade ou dificuldade,
um a repetição [uma liçaõ especial], reservá~la~ei para uma rcpetito da tar­
d e". Todo este processo expositivo é intim am ente inspirado pela estrutura
usada na dialéctica, com o verem os adiante, onde a exposição (cf. 5 . 6.2.3) ia
e vinha entre afirm ação e contrdição, dúvidas e soluções, proposições par­
ticulares e form ulações gerais.
200
António Manuel Hespanha
De qualquer modo, cabe aos glosadores o mérito de terem
recriado, na Europa Ocidental, uma linguagem técnica sobre o
direito. Não se trata mais de descrever ou reproduzir algumas
normas ou fórmulas de direito romano, com intuitos exclusiva­
mente práticos, como tinha sido relativamente comum nos es­
tudos de arte notarial usuais em algumas chancelarias eclesiás­
ticas ou seculares. Trata-se, agora, de começar a fixar uma ter­
minologia técnica e um conjunto de categorias e conceitos espe­
cíficos de um novo saber especializado - a jurisprudência .218
O impacto prático da escola dos glosadores não é - como
refere F. Wieacker219- fácil de explicar. Na verdade, as intenções
do seu trabalho não eram, predominantemente, práticas. A prin­
cipal intenção dos primeiros cultores do direito romano era, na
verdade, mais um objectivo teórico-dogmático - o de demons­
trar a racionalidade (não a "justeza" ou "utilidade prática") de
textos jurídicos veneráveis - do que um objectivo pragmático,
como o de os tornar directamente utilizáveis na vida quotidia­
na do seu tempo. Isto explica, por um lado, o labor devotado a
explicar institutos e magistraturas que já não existiam, bem como
o distanciamento dos glosadores em relação à vida jurídico-legislativa do seu tempo - que classificavam depreciativamente 220
e sobre a qual apenas pairavam , exclusivam ente dedicados,
como estavam, à exegese dos textos romanos.
Assim, pelo menos os civilistas, negavam que o texto es­
crito (o direito doutrinal do Corpus iuris ou o novo direito impe­
rial do Sacro-Império) necessitasse de ser confirmado pelo uso
(;usu utentium, uso dos utilizadores). O que se traduzia, por exem­
plo, em começarem por tender a negar a vigência dos costumes
contra o direito escrito, pelo menos contra o direito "dos seus
liv ros".
V n e s t e servtiào, enfaticam ente, Crescenzi, 1 9 9 2 .
TlS N as im pressivas páginas que dedica a este tem a e m \Nieacker ,1980, max., 66.
220"E scrita com o que por b u rro s", com o dizia O dofredo; ou "leigos rústicos
ou pouco educados" \kiici rustici et modice educati], com o escreve um anóni­
mo c. 120 (cf. Ocultus pflstoralis, cit, por Pennington, 1 9 9 3 ,3 9 ).
Cultura Jurídica Europeia
201
E acabavam, portanto, Dor influir fortemente na vida jurí­
dica e política do seu tempo, isto deve-se não ao seu empenha­
mento prático, mas à eficácia da autoridade intelectual do saber
que cultivavam , 221 De facto, justamente porque falâvam com a
autoridade de um direito imperial e creditado, além disso, com
um prestígio quase sagrado, a sua palavra acabou por ser deci­
siva, mesmo ao nível da alta política da época.
O imperador Frederico II, então lutando por submeter as ci­
dades italianas, entendeu isso perfeitamente. Primeiro, em 1220,
passou por Bolonha e discutiu aí direito longamente com os "qua­
tro doutores", discípulos de Imério, aos quais deixou surpreen­
didos com a sua perícia no novo direito imperial. Na verdade, o
ensino destes, marcado pelo regalismo do direito romano tardio,
reconhecia ao imperador um amplo poder legislativo ("Tua voluntas est iuris, secundum dicitur: Quod principi placuit, legis habet
vigorem", disse um letrado ao imperador, na dieta de Rocaglia, em
1158). Nessa mesma altura, obtém uma ratificação científica, por
parte da maior parte dos juristas mais eminentes no sentido da
sua superioridade política em matéria temporal222 e concede aos
221Detalhadam ente, sobre as relações entre Frederico II e o Studium bolonhês,
nom eadam ente em tom o da questão do p oder im perial, v. Pennington,
1993, 14 ss..V. ainda, mais em geral sobre a valorização doutrinal da lei
im perial e real, Costa, 1969 (agora, num a ristampa com apreciações críti­
cas de O. Capitani e B. Clavero, 2002); W yduckel, 1979,35-62; Berman, 1983,
405-519. Por último, bela síntese, em Descimon, 2002, 27-51.
222U m a historieta ch egou até nós, em vária versões: Fred erico p asseav a a
cavalo, acom p an had o p o r M artinus e B ulgarus, dois dos quatro discí­
pulos de Irnério, a quem p ergu n tou se, de aco rd o com o d ireito, ele era
ou não senhor do m u ndo. B úlgaro respondeu-lhe que, enquanto p ro p ri­
etário, não o era. M artin h o, pelo co n trá rio , resp o n d eu -lh e (timore vel
am ore, com enta A cú rsio, m aldosam ente) que sim . O im p erad o r, satis­
feito, ofereceu o cav alo que m o n tav a a M artinho, peran te o que B úlga­
ro, fazendo um trocadilho em latim , com entou: " Am isi equum , quia dixit aequum , quod n on fuit a e q u u m ". [Perdi um cavalo (equuus), pois
disse o que era justo (aequum), o que não foi justo (aequum)] (cf. um a das
versões em P ennington, 1 9 9 3 , 1 6 ). E sta p erg u n ta sobre o sen horio do
mundo é ainda a base da d iscu ssão sobre os títulos sobre as terras des
202
António Manuel Hesp
estudantes de direito de Bolonha, "particularmente aos estu
sos das leis divinas e sagradas", garantias de protecção e ixn
dade (Autentica habita, 1158).223Todavia, em 1224, o impera
para maior segurança, resolveu estabelecer uma universic
imperial em Nápoles, sobre a qual podia exercer um controlo:
efectivo 224 O papa Onório II (1216-1227) reconheceu que "dc
cobertas, invocados pelos reis de Espanha e de Portugal com fundan
na doação papal. Mas, de facto, a opinião de Búlgaro, que excluía o ]
dos reis sobre as terras dos seus reinos tanquam proprietatem foi a que
a triunfar, sobretudo depois de uma decisiva distinção de Baldo de
dis "n a verdade, não têm a mesma razão e condição o direito públic
perador (sobre o reino) e o das pessoas privadas (sobre as suas propi
d es)", Proemium in Dig. Vet, § Om nem , apud. Canning, 1987, 37; já Ac
ensaiara a mesm a distinção: "É mais verdadeiro dizer que são sua
im perador] todas as coisas que estão na sua disposição, com o as fis
patrimoniais [...]. De onde se conclui que o meu livro não é dele e qi
mim e não a ele que é concedida a reivindicatio [acção de recuperar uma
própria sua] directa", Acúrsio, Glosa ad C., 7,37,3, Bene a Zanone, v. i
principis (cf. também Nicolini, 1952, 91 ss.)..
^ "E s ta b e le c e m o s p ortanto com esta lei universal e que deverá valer
toda a eternidade, que daqui p ara o futuro ninguém seja tão atrj
com o p ara fazer algum a ofensa aos escolares, e m uito m enos p o r <
de algum a dívida em relação a algu ém da m esm a p rovín cia, o qu
vim os acon tecer em virtu d e de um costu m e preverso [...] E aos qu
sarem violar esta sag rad a lei, e a quem os dirigentes do lugar deix
de punir, saibam que se d everá exigir a restituição em quádruplc
coisas indevidam ente exigidas, e ap licad a a pena de infâm ia comtc
rig o r da lei e serão p rivad os p ara sem p re dos seus lu gares e digi
d es" (texto em Giorgini, 1988).
^ U m b e r to Eco, em Baudolino, dá um a im preesiva versão das relaçõe
tre o im perador e os doutores bolonheses: "F o i d ar com o im peradoi
te e iroso, andando p ara trás e para a frente nos seus aposentos, e ,
canto Reinaldo de Dassel esperava que ele se acalm asse. Frederico a
altu ra p arou , fixou B audolino nos olhos e disse-lhe: "T u és testemu
m eu rap az, de quanto m e tenho ato rm en tad o a pôr sob um a única !
cid ad es de Itália, m as de todas as vezes tenho de recom eçar do pi
pio. Será errada a minha lei? Q uem m e d iz que a minha lei é justa
Baudolino, quase sem p ensar: "S en h or, se com eças a pensar assim
ca mais acabas, e afinal o im p erad o r existe m esm o para isso, ele r
im perador por lhe virem as ideias justas, m as as ideias é que são j\
Cultura Jurídica Europeia
203
tudo bolonhês saíam os chefes que dirigem o povo do Senhor"
(Grandi, 1962, 25). A. própria Comuna àe 'Bolonha - a quem os
por virem dele, e basta". Frederico fitou-o, e depois disse a Reinaldo: "E ste
rapaz diz as coisas melhor que vós todos! Se estas palavras fossem postas
em bom latim, seriam adm iráveis!. "Quod princuitl habet legts habet vigorem,
o que agrada ao príncipe tem vigor de lei", disse Reinaldo de Dassel. "Sim ,
soa muito sábio, e definitivo. Mas seria preciso que estivesse escrita no
Evangetho, senão com o se pode persuadir todos a aceitarem esta belíssi­
ma ideia? "B em vim os o que aconteceu em R om a", disse Frederico, "se me
fizer ungir pelo papa, adm ito ipso facto que o seu poder é superior ao rneu,
se agarrar o papa pelo pescoço e o atirar ao Tibre, torno-m e um flagelo de
Deus que nem Atila que Deus tem ".."O n d e diabo arranjo alguém que pos­
sa definir os m eus direitos seni pretender pôr-se acim a de m im? N ão exis­
te no m u n do". "T alvez não exista um poder assim — disse-lhe então Baudolino. M as existe o sab er"."O que queres dizer?". "Q uan d o o bispo Otão
me contou o que é um studium, disse-m e que estas com unidades de m es­
tres e alunos funcionam por sua própria conta: Os alunos vêm de todo o
m undo e não im porta quem é o seu soberano, e pagam os seus m estres, que
assim depen d em só dos alunos. Assim se passam as coisas com os m estres
de direito em Bolonha, e assim tam bem já acontece em Paris onde p rim ei­
ro os m estres ensinavam na escola catedral, e portanto dependiam do bis­
po, depois um belo dia foram ensinar para a M ontanha de Santa G enoveva, e tentam descobrir a verdade sem darem ouvidos nem ao bispo nem ao
rei". "Se fosse o rei deles, eu é que os ensinava...". "M asm esm o que assim
fosse? Seria assim se fizesses uma lei a reconheceres que os m estres de Bo­
lonha são de facto independentes de qualquer outra autoridade, tanto de
ti com o do papa e de todos os outros soberanos, e estão só ao serviço da
Lei. U m a vez que estão investidos desta dignidade, ünica no m undo, eles
afirma que de acordo com a recta razão, a luz natural e a tradição a ünica
lei é a rom ana e o único que a representa é o Sacro Rom ano Im perador e
que, naturalm ente, com o tao bem disse o senhor Reinaldo, quod principi pia
quit legis habet vigorem". "E porque deveriam des dizê-lo?". "Porque tu em
troca lhes dás o direito de poderem dizê-lo, ejá não é pouco. Assim ficas
satisfeito tu, ficam satisfeitos eles, e como dizia o meu pai G agliaudo, es­
tais os dois na m esm a barca", "Eles não aceitarão fazer uma coisa do géne­
ro", resm ungou Reinaldo. "Pelo contrário, sim — ilum inou-se o rosto de
Frederico —, digo-te eu que aceitarão. Salvo que antes têm de fazer aquela
declaraçãso, e depois dou-lhes eu a independência, senão todos pensam que
o fizeram para pagar uma doação m inha"."N a minha opinião, nem que seja
para virar o bico ao prego, se alguém quiser dizer que combinastes tudo,
204
António Manuel Hespanha
legistas prestaram serviços jurídicos valiosos quer defendendoa do Império, como do Papado, e a quem o Estudo Geral dava
renome e proventos económicos, procura cativar estudantes e
di-lo-á na m esm a", com entou corn cepticism o Baudolino. ''M as sempre
quero ver quem se levanta a dizer que os doutores de Bolonha não valem
nada, depois de até o próprio im perador ir hum ildem ente pedir-lhes um
parecer. Nessa altura o que eles tiverem dito é Evangelho". E foi assim que
correu tudo, nesse m esm o ano em Roncaglia, onde pela segunda vez hou­
ve uma grande dieta. Para Baudolino foi acim a de tudo um grande espec­
táculo. Com o Rahewino lhe explicou — para que não pensasse que tudo o
que via era apenas um jogo circense com bandeiras desfraldadas por toda
a parte, insígnias, cortinas coloridas, m ercadores e jograis, Frederico man­
dara reconstruir, num a m argem do Pó, um típico acam pam ento romano,
para recordar que era de Roma que provinha a sua dignidade. No centro
do cam po estava a tenda imperial, com o um templo, e a fazer-lhe de coroa
as tendas dos feudatários, vassalos e vassalos destes. Do lado de Frederico
estavam o arcebispo de Colónia, o bispo de B am berga, Daniel de Praga,
C orrado de A ugusta, e outros mais. Do outro lado do rio, o cardeal legado
da cadeira apostólica, o patriarca de Aquileia, o arcebispo de Milão, os,bis­
pos de Turim, Alba, Ivrea, Asti, N ovara, Vercelli, Terdona, Pavia, Como,
Lodi, C rem ona, Placência, Reggio, M odena, Bolonha e sabe-se lá quantos
mais. Presidindo a esta assembleia majestosa e realm ente universal, Fre­
derico deu início as discussões. Em resum o (disse Baudolino p ara não en­
fastiar Niceta com as obras-prim as da oratória imperial, jurisprudencial e
eclesiástica), quatro doutores de Bolonha, os mais fam osos, alunos do gran­
de Irnério, haviam sido convodados pelo im perador a exprim ir um insindicável parecer doutrinal sobre os seus poderes, e três deles, Búlgaro, Jacopo e U go de Porta R avegnana, exprim iram -se com o Frederico queria, ou
seja, que o direito do im perador assentava na lei rom ana. De opinião dife­
rente tinha sido apenas uum tal M artino. "A que Frederico deve ter man­
dado arrancar os olhos", com entou Niceta. "D e m odo nenhum , senhor Ni­
ceta — respondeu-lhe Baudoino —'vos rom eus arrancais os olhos a este e
aquele e já não percebeis onde está o direito, esquecendo o vosso grande
Justiniano". Logo a seguir Frederico prom ulgou a Constitutio Habita, em que
se reconhecia a autonom ia do estudo bolonhês, e se o estudo era autóno­
mo, M artino podia dizer o que quisesse e nem sequer o im perador podia
tocar-lhe num pêlo. Que se lho tivesse tocado, então os doutores já não se­
riam autónom os, se n ão fossem autónom os o seu juízo n ão valeria nada, e
Frederico arriscava-se a passar por usurpador" (trad. p ort., Lisboa, 2002).
Cultura Jurídica Europeia
205
professores, 225 proibindo a exportação de livros jurídicos como se
espionagem se tratasse .226
Os seus colegas das outras faculdades, nomeadamente os
filósofos, invejam-nos, ao constatarem que "a ciência [filosófi­
ca] pouca utilidade presta aos seus professores, enquanto que,
em contrapartida, a ciência das leis e a medicina lhes dão gran­
des proventos, pelo que a reputam de verdadeira ciência, ao
passo que não dão grande crédito nem à ciência filosófica nem
aos filósofos" (ibid., 26).
Basicamente, o Studium era uma corporação (universitas,
nome técnico do direito romano para um conjunto de pessoas ou
225"Estabelecem os e ordenam os que as pensões e casas nas quais habitem es­
colares não possam ser destruídas .... por causa de dívidas, rebeliões, mul­
tas ou condenações dos donos das casa, nem possam ser ocupadas por oitros para serem habitadaa, m as antes sejam deixadas livres para eles por
todo o an o" (Estatutos de 1288, VIII, 4); "Estabelecem os além disso que a
nenhum artesão ou gram ático (professor de prim eiras letras, cujos alunos
liam em voz alta, fazendo barulho) sejam alugadas casas junto ás dos estu­
dantes ou das escolas" (Estatutos de 1288, VIII,16); "Q ue os estudantes pos­
sam com p rar trigo para si e para os seus criados segundo as suas necessi­
dades ... apesar das proibições sou limitações feitas ou a fazer ... aos preços
impotos aos vendedores" (ib., 16); "Q u e os livreiros sejam obrigados a ter
os exem plares bem corrigidos . e que não façam pacto com algum doutor
para suprim ir qualquer "ap arato " (com entário" antigo ... e que os mesmos
não ven dam nem com prem por si ou interposta pessoa nenhum livro sem
conhecimento dos vendedores" (Estatutos de 1250, VII, 14). Se qualcuno
verrà in questa città da un'altra città, alio scopo di condurre gli studenti in
altro luogo, sara denunciato aí Podestà e sara trattenuto fino al tem po in
cui avrà pagato cento lire (di denaro) imperiale* e se al podestà risultasse
certo che fosse venuto (a Bologna) proprio per questo motivo sia punito con
(una multa) di duecento lire di holognini 1250, VII, 10.
“ "Se alguém ch egar a esta cidade, vindo de outra, a fim de induzir os estu­
dantes a m udar-se para outro lugar, será denunciado ao podestà e retido até
pagar 100 liras de dinheiro im perial" (Estattutos de 1250, VII, 10).; "Se se
encontrar alguém a fazer ou a ter feito qualquer conspiração para transferiro Studium da cidade de Bolonha para outro lugar será banido perpetua­
mente, sendo os seus bens, tornado-se todos os seus bens propriedade da
comuna, ficando m etade para o acu sad or" (Estatutos de 1250, VII, 11).
206
António Manuel Hespa
de bens dotado de uma identidade jurídica) de estudantes,
contratavam (e pagavam) professores para os ensinarem, ele^
do os reitores (um, para os estudantes de "nação" italiana (c
montani), outro para os de "nação" ultramontana e atribuindo i
meio dos reitores, os graus de bacharel (bachalauretaus, gradui
laureatus). Ao lado, existia uma associação de professores,
atribuía o grau de doutor meramente académico (doctor).
Os estudos jurídicas eram, em rigor, do tipo daquilo a
hoje se chamaria de pós-graduação, já que os estudantes tini
que cursar, primeiro, as chamadas artes liberales (gramática
gica, aritmética, geometria, astronomia e música), o que exp
a contínua presença de referências não jurídicas - aquilo a
os juristas romanos tinham designado por rerum humanarur.
que divirarum notitia, ou, mais simplesmente, por natura rei
natureza das coisas - no raciocínio jurídico
Os dois juristas mais famosos desta escola são, sem dúv
o seu fundador - Imério - e Acúrsio, o compilador final de to
sua produção doutrinal - na Magna Glosa ou Glosa de Acúrsi
1250). Outros, no entanto, tiveram vasta influência. Refiran
sobretudo, os directos discípulos de Imério (Martinho, Búlg
Jacobus, Hugo), os "civilista" Azo (m. C. 1220; autor de uma
pularíssima Sumnta codicis) e Odofredo (m. 1265; escritor arr<
to e usual contador de anedotas, mas também jurista de mér
o "canonista" Henrique de Susa (m. 1271), mais conhecido cc
o "cardeal Hostiense",227ou Giovanni d'Andrea (m. 1348).
Entre si, mantinham opiniões contrárias que, quando i
diam sobre questões de grande impacto político - como os
deres do imperador, a validade do direito comunal frente a<
império ou ao direito romano - ficaram na memória do Stud
227 Dentre os espanhóis, citeni-se os "decretistas" (com entadores do Deere
João e Lourenço Hispano e os "decretalistas" (com entadores das Decn
Vicente Hispano e Raimundo de Penyafort. Cf. W eim ar, 1 9 7 3 ,1 5 5 ss.
va, 1991. Em Portugal foi grande a influência de Acúrsio, de Azo e do ]
tiense, a avaliar pelas cópias aqui existentes das suas obras, cf. Pereira, 1
7. Sobre a influência de Acúrsio, Costa, 1966, 41.
Cultura ]urídica Europeia
207
como controvérsias entre "esco la s". A este propósito, }á aludi­
mos à questão da conceptualização do poder do imperador so­
bre o mundo. Outra questão crítica era, também, a do titulari­
dade do poder supremo (merum unperium). Azo, um célebre glosador bolonhês, pergunta-se sobre se "Se o mero império só com­
pete ao príncipe ? Pois dizem que só ele o tem. Diz-se deste po­
der ser mero (simples) pois se exerce sem outorga (prelatura) de
ninguém. Mas certamente que os magistrados sublimes 228 têm
mero império, se é correcta a definição da lei a que nos referi­
mos. Pois também os governadores das províncias tem o direi­
to de punir [ius g la á ii...], não o tendo já os magistrados munici­
pais [...]. Daí que eu diga que a jurisdição plena ou planíssima
apenas compete ao príncipe, mas o império mero compete tam­
bém a outros magistrados sublimes; apesar de, com isto, se ter
perdido um cavalo, o que não foi justo" .229 230
Este texto dá-nos uma boa ideia do método de trabalho dos
glosadores. Azo não discute as situações jurídicas do seu tempo.
Discute, sim, a interpretação de conceitos (imperium merum, plena
vel plenissima potestas, magistratus sublimes) contidos em textos de
direito romano, muitas vezes com referências a magistrados, pro­
blemas ou situações já inexistentes. Do que se trata, depois, é de
saber como encaixar a vida corrente, com os seus interesses con­
cretos, naqueles esquemas conceptuais. Sendo porém certo que,
para estes juristas, a legitimação das soluções decorria, não da sua
adaptabilidade à vida, mas da sua coerência com um modelo do
mundo considerado como racional e eterno.
De eminente interesse político era, também, a questão do ca­
rácter vinculante das leis para quem governava. Ou seja, a questão
de saber se a vontade do príncipe podia alterar a ordem (ou razão)
do direito ("An in iure pro ratione stat voluntas", era como eles for-
228Trata-se de um a classificação do direito bizantino, de problemática aplica­
ção às m agistraturas m edievais, cf. H espanha, 1984a],
229Referência à anedota de M artinho e Búlgaro.
230Azo, Summa super Codiccm, ad C od., 3, 13 (De iurisdictione om nium judicum ), apud Pennington, 18.
208
António M anuel Hespanha
mulavam a questão). Intimamente conexa com esta, estava a ques­
tão de saber se o poder do príncipe (do Papa) era pleno, puro ou
absoluto. Lourenço Hispano (c. 1215) aborda a questão, a propósi­
to do poder do Papa, dizendo. "Por isso se diz que [o Papa] goza
do arbítrio divino [C.,1,1,1,1] e, mas como é grande o poder do prín­
cipe, pois pode mesmo mudar a natureza das coisas, aplicando a
substância de uma coisa a outras [C., 6,43,2], podendo tomar in­
justa a mesma justiça, como quando corrige algum cânone ou lei,
pois quando exprime a sua vontade, esta faz as vezes da razão (I,
1,2,6]...] Em todo o caso, ele deve conformar o seu poder àquilo que
é exigido pela utilidade pública" (Ad Compilatione III,. 1,5,3,, v. puri
hominis, apud Pennington, 1993,46 (trad. minha). Posta em relação
ao Papa, a questão parecia mais clara (sobretudo aos curialistas),
dada a origem divina do seu poder; embora a concessão de um
poder absoluto prejudicasse as prerrogativas episcopais (também
de instituição divina e, para muitos, anterior ao primado do bispo
de Roma) e, por isso, não fosse aceite por todos os canonistas, no­
meadamente, pelos conciliaristas. Posta a questão em relação aos reis,
a questão era menos clara, embora a assimilação entre "papa" e
"príncipe" começasse a ser frequente. Assim, Henrique de Susa, no
seu comentário à Novellae de Inocêncio IV, formula uma série de
imagens que ficarão na tradição jurídica realista até ao fim do An­
tigo Regime e que justificarão o poder dos reis para se afastarem
das leis, não tanto revogando-as (pois a legitimidade para revogar
as suas próprias leis correspondia a uma potestas legislativa dos reis,
desde cedo geralmente reconhecida), mas, sobretudo, dispensan­
do-as, i.e., não as aplicando em casos concretos.231 Era isto que per­
mitia aos príncipes realizar autênticos milagres, como legitimar
bastardos, emancipar menores, perdoar criminosos, embora tudo
231 "N ão é de ad m irar que estas coisas [os poderes de "g ra ç a "] apenas sejam
concedidas ao príncipe, pois elas são quase com o m ilagres e contra a natu­
reza [...] costum a dizer-se que o príncipe, um a v ez que é a lei viva, pode
transform ar os quadrados em círculos e dispor de tudo enquanto senhor,
salva a violação da fé [...]" (cit. por Pennington, com u m a tradução que me
parece mais fiel ao pensam ento do H ostiense, 54).
Cultura Jurídica Europeia
209
isto devesse ter em vista, não uma modificação arbitrária do direi­
to, mas o aperfeiçoamento da justiça nos casos concretos (cf., sobre
esta flexibilização do direito por meio da graça régia, 5.3.8.1).
5 .5 .2 . A Escola dos Com entadores
O surto urbanista e mercantil dos séculos XIII e XIV come­
ça por se traduzir, no plano jurídico, por uma valorização dos
direitos locais (especialmente dos "estatutos" das cidades itali­
anas) frente ao direito comum cultivado pelos letrados e domi­
nante, por seu intermédio, nas chancelarias reais. Se os juristas
universitários estavam dispostos a aceitar a (relativa) fixidez do
direito comum, baseado em fontes imutáveis ("olim... ergo hodie"), já os estatutos das cidades afirmavam, enfaticamente, o
devir da vida e do direito . 232
Com a progressiva extensão deste novo tipo de vida eco­
nómica e social a regiões cada vez mais vastas e com o estabele­
cimento de laços comerciais inter-citadinos e inter-estaduais,
tomou-se necessário que estes princípios de direito novo intro­
duzidos pelos iura própria nas cidades italianas fossem integra­
das no ius commune (romano-justinianeu) e que este, de um
amontoado de normas (agora) de proveniência diversa (romano-justinianeias, romano-vulgares, canónicas e estatutárias), se
transformasse num corpo orgânico dominado por princípios
sistematizadores, que correspondesse ao ideal intelectual de um
discurso orgânico, embora, como dissemos, respeitador dos
pontos de vista dissonantes .233 Está, portanto, em pleno desen­
volvimento um processo de integração de princípios novos oriundos de necessidades de novos estímulos sociais (aqui in­
cluídos os culturais) e inicialmente incorporados nos direitos
próprios, mais sensíveis à vida - no ius commune. O ideal de con-
232Lê-se no prefácio dos estatutos de Gaeta: "Se as próprias leis são contingen­
tes, em virtude de se m odificar o m odo de ser das épocas (temporum qualitate), porque adm irar-se se os estatutos de vez em quando requerem m odi­
ficação de algum as disposições particulares?". V. Calasso, 1954, 492.
233Sobre isto v. Villey, 1968, 540; W ieacker, 1980, 78 ss.
210
António Manuel Hespi
córdia legislativa é perseguido pelos juristas não só no limiti
direito romano-justinianeu (objectivo que, como vimos, nãc
de todo estranho aos glosadores), mas relativamente a toc
ordenamento jurídico positivo. A contínua referência, a p;
do século XIV, ao direito antigo e ao direito novo e, sobreti
ao problema das suas relações mútuas, reflecte plenamen
processo histórico de actualização e alargamento do sistem;
direito comum.
Esta foi a tarefa de uma nova geração de juristas erudil
que a historiografia tem designado por post-glosadores, prát
consiliadores ou comentadores; juristas a que, pelo seu papel (
fluência (até ao século XVIII) na história jurídica europeia, Fi
Wieacker não hesita em chamar "arquitectos da modernid
europeia", ao lado de Dante, Giotto e Petrarca (de quem, de rc
são contemporâneos).
O fundador da escola foi Cino de Pistóia (1270-1336
Pistóia, em cujo Duomo jaz) - contemporâneo e conterrânec
grande poeta italiano do pré-renascimento Dante Alighieri
rista, pré-humanista e poeta do dolce stil nuovo. Mas o jurista r
influente nela inserido foi, sem dúvida, o seu discípulo Bár
de Sassoferrato (1314-1357), de Perugia, jurista ímpar (lumir
lucerna iuris, luz e lanterna do direito, lhe chamaram os cont
porâneos) na história do direito ocidental que, numa vide
pouco mais de trinta anos, produziu uma obra monumenta
sua influência na tradição jurídica europeia durou até ao séc
XVIII, a ponto de se ter criado o dito "nemo jurista nisi bartoli
(ninguém é jurista se não for bartolista). Outros juristas íai
sos desta escola foram Baldo de Ubaldis (1327-1400), homen
grande cultura filosófica, correntemente citado ao lado de 1
tolo; Paulo de Castro (m. 1441) - já influenciado pelas rnovaç
intelectuais (muito relevantes para o pensamento jurídico}
escolástica franciscana (G. Occam, D. Scotto, cf. supra, 4.3.),
são dei Maino (1435-1519 [Pavia]), já contemporâneo da d<
dência da escola; e, ainda, Raffaele Fulgosio (1367-1427 [Padc
o já referido bolonhês Giovanni d'Andrea, a cavalo entre as d
escolas e Nicolau de Tudeschi (mais conhecido pelo "A h
Panormitano"; 1401-1467 [Siena]).
Cultura Jurídica Europeia
211
São estes juristas que, debruçar\do-se pela primeira vez so­
bre todo o corpo do direito (direito romano, direito canónico,
direito feudal, estatutos das cidades) e orientados por finalida­
des marcadamente práticas, vão procurar unificá-lo e adaptá-lo
às necessidades normativas dos fins da Idade M édia .234
Na raiz da nova atitude intelectual dos Comentadores, nes­
ta equiparação do direito "vivido" ao direito contido nas fontes
da tradição, está uma nova atitude perante a tensão entre verda­
de e realidade, que podemos relacionar com o advento da esco­
lástica tomista.
No ambiente cultural e filosófico da Idade Média, a esco­
lástica (filosofia e teologia ensinadas nas escolas) representa, de
facto, uma reacção contra aquelas correntes "integristas" que
queriam reduzir todo o saber válido e legítimo ao saber contido
nos textos da autoridade e que recomendavam, para a resolu­
ção de todos ós problemas, práticos e teóricos, uma atenção ex­
clusiva à verdade revelada ou ao argumento da autoridade,
pondo de quarentena a razão e toda a actividade racional. As­
sim, as ciências e artes laicas (e entre elas o direito) só eram es­
tudadas enquanto tivessem qualquer utilidade para a interpre­
tação da tradição dotada de autoridade (nomeadamente, no pla­
no religioso, das Escrituras).
No século XII, porém, verifica-se uma profunda mutação no
panorama cultural e filosófico, conhecida como "renascimento do
século XII" ou "revolução escolástica", provocada imediatamen­
te, pela descoberta de novos textos lógicos de Aristóteles.
Esta descoberta, juntamente com o progressivo reconheci­
mento de que os textos das Escrituras são insuficientes para a
resolução de todos os novos problemas sociais e culturais, vem
provocar o restabelecimento da crença na razão e o renascimen­
to, por todo o lado, das ciências profanas. O conflito da razão e
234Sobre a escola dos com entadores, v., por todos, VVieacker, 1980, 78 ss.; Calasso, 1954,469-563. Para Portugal, Silva, 1991,181 ss. Para o seu pensamento
jurídico e político, além de algum as das obras já referidas, v. VVoolf, 1913 e
1901; a bibliografia citada por W iduckel, 1979, 63 ss. e Dolcini, 1983.
212
António M anuel Hespanha
da fé (tão temido durante todos os séculos XI e XII pelas corren­
tes integristas) deixa de ser possível, pois os campos de exercí­
cio de uma e de outra aparecem delimitados. Embora, no cam­
po da teologia, a intromissão dos processos racionais aprendi­
dos dos filósofos pagãos, gregos e romanos, seja suspeita, nas
disciplinas mundanas, desde o direito e moral até à filosofia e
ciências naturais, a livre investigação intelectual é de regra.
Instaura-se, portanto, uma atitude filosófica que poderemos
classificar de realista e de racionalista. De realista porque se pro­
põe investigar, não o que o textos sagrados ou da autoridade
dizem das coisas, mas a própria natureza das coisas. De racio­
nalista porque procura levar a cabo esta investigação com o au­
xílio de processos racionais, processos estes cuidadosamente
disciplinados por regras de "pensar correctam ente" (lógica)
aprendidas dos filósofos clássicos (sobretudo, de Aristóteles).
Todavia, a ideia de que o direito - repositório da experiên­
cia, leitura da natureza (divina) das coisas - consiste num con­
junto de normas que o intérprete pouco poderá alterar fazia com
que, para os Comentadores, como para os Glosadores, a ordem
jurídica representasse um dado basicamente indiscutível, ain­
da quando ela se mostrasse contraditória e desactualizada. Por­
tanto, a tarefa de actualização e de sistematização do direito terá
de ser fundamentalmente realizada no interior de uma ordem
prefixada autoritariamente, aparecendo formalmente como uma
tarefa de mera interpretação.
Ao serviço da interpretação são agora colocados meios lógico-dogmáticos imponentes, a maior parte deles provenientes
da renovação lógica (Lógica Nova) subsequente à redescoberta de
importantes textos aristotélicos (Tópicos e Elencos Sofísticos).
Foi esta ruptura no plano dos instrumentos intelectuais que
permitiu aos comentadores criar inovações dogmáticas que, por
corresponderem também às aspirações normativas do seu tem­
po, vieram a tomar-se dados permanentes da doutrina posterior.
Se, simplificando um pouco, se pode dizer que a activida­
de dos glosadores era sobretudo académica, ]á a dos comenta­
dores - também simplificadamente, pois quase todos foram.pro­
fessor es universitários - foi mais frequentemente orientada para
Cultura Jurídica Europeia
213
a prática, como consultores de magistrados e de particulares. De
facto, a partir dos meados do séc. XIII, tinha surgido a doutrina
- naturalmente favorecida pelos próprios juristas - de que os
magistrados, frequentemente pouco sabedores de direito (co­
mum) e sem dinheiro pagar a um bom assessor permanente,
"deviam, por direito e bons costumes" aconselhar-se com um
especialista, de tal modo que, como escreveu o português João
de Deus (m. 1253), "é também costume aprovado que a senten­
ça não se torne definitiva senão com depois de conselho dos
peritos" [est etiam approbata consuetuão ut non feratur ãiffinitiva
[sententiam] sine consilio sapientium ].235236 Esta literatura consiliar seria, de resto, mais rica do que a meramente escolástica, pois,
ao passo que esta última podia reproduzir apenas a opinião sin­
gular do professor, a opinião do consulente tinha que dar conta
do estado da questão, segundo as opiniões mais recebidas ["seja
o que for que digam ao dar aulas, ao julgar, quando há várias
opiniões dos doutores, é de seguir a que for comprovada por
mais testemunhos", Jasão dei Maino, cit. por Lombardi, 1975,145
n. 123].237238
Este novo modelo de pensar sobre o direito esteve na ori­
gem de teorias e figuras dogmáticas novas.
Entre elas, refiram-se as seguintes.
(i) A teoria da pluralidade das situações reais (i.e., das relações
entre os homens e as coisas, res). Ao contrário do que hoje
acontece, em que a relação entre o homem e os bens é
235Apud Lom bardi, 1 9 7 5 ,1 2 7 , onde se pode ver um a completa exposição da
teoria do consilium sapientium no direito comum. Com o fonte: Pace Scala,
De consilio sapientis in forensibus causis adhibendo, Venetiis, 1540; Tiberius Decianus, Apologia pro iuris prudentibus qui responsa sua edunt imprimenda [...],
Vnetiis, 1579.
236Mais tarde, dir-se-á tam bém que se presum e feita sob erro a lei do rei pro­
mulgada sem ouvir o conselho dos juristas.
237Sobre esta questão da opinião com um dos doutores, v. infra 5. 6.2.3).
238Em contrapartida, os detractores da literatura consiliar destacam a falta de
independência e a parcialidade do consulente, face à independência do
professor (v. Lombardi, 1 9 7 5 ,1 4 1 ss.).
214
António ManuelHesp
con figu rada com o uma relação exclusiva e absolut
tre o sujeito e a coisa , 239 o direito medieval concebia
miniunt (i.e., o direito sobre uma coisa) como podend
não exclusivo, podendo coexistir com outros direit«
outros titulares incidindo sobre a mesma coisa. Na
dade, as coisas, se têm uma substância única, têrr
contrapartida, diversas utilidades. São susceptíve
vários planos de utilização, entre si compatíveis. £
cada um destes planos pode existir um direito absc
(embora limitado a esse plano) a favor de uma pe
Embora o domínio sobre todas as utilidades da coi
propriedade) seja a situação real mais completa e de
rarquia superior, a faculdade de usufruir de algum;
lidade particular, desde que suficientemente enrai
na coisa, não deixa de ser uma forma de domínio, o
mesma dignidade que a propriedade.
Isto aplicava-se, nomeadamente, a situações muito cor
na constituição fundiária medieval, como a enfiteuse, o fe
o arrendamento por longo prazo, o censo, a situação do a
nistrador do morgado; ou seja, a situações em que sobre a
ma coisa coexistiam direitos titulados em diversas pessoas
permitiam a cada uma delas usufruir de uma utilidade .240
Baseada na referida "leitura" da natureza das coisas, a
trina jurídica dos comentadores pode construir a teoria d'
rnínio dividido, segundo a qual era possível conceituar como
dadeiros donos (domini, titulares de áominium) todos estes
lares. Uns eram-no por terem um direito sobre a própria s
tância da coisa, embora este direito pudesse ser apenas fo
239A propriedade é definida com o um poder de usar e de abusar ( i.e., d<
sem quaisquer limites, naturais ou éticos) de uma coisa, com a facu
de excluir desse uso todos os outros.
240O cultivo, como na posição do rendeiro ou do enfiteuta; a percepção d<
prestação periódica relativa ao terreno, com o nas posições do senhc
senhorio enfitêutico ou censítico; a cobrança dos tributos fundiários,
na situação do feudatário; a m era adm inistração e fruição, com o nc
do adm inistrador do m orgado
Cultura. }\iT\AvcaE u t oçeVa.
(ü.g., uma simples inscrição cadastral). Eram os titulares do dominium directum, titulares de uma ac tio directa (acção fundada no
direito formal) para protecção dos seus direitos. Outros eramno por, em face da situação em que estavam de usufruir perma­
nentemente de uma utilidade da coisa, serem como que desig­
nados pela própria coisa (não pelo direito formal) como seus
"donos úteis", titulares de um dominium utile e da respectiva actio utilis (acção baseada num direito que brota da própria rela­
ção de utilização). Apesar da substância da coisa ser uma só, o
facto de o direito brotar da realidade da vida sugere-lhe que uma
coisa possa ter vários donos, já que o dominium visa usos plu­
rais das coisas e não a sua essência . 241
ii)
Aplicação espacial dos ordenamentos jurídicos (teoria "esta
tutária"). O mesmo tipo de realismo caracteriza a solu­
ção que é dada aos conflitos espaciais de normas jurídi­
cas. O direito alto-medieval identificava o problema da
aplicação espacial do direito com o da pertinência a uma
"nação", a um grupo humano (Personenverband). Assim,
o âmbito de aplicação de um direito coincidia com o âm­
bito de uma tribo ou de uma comunidade ligada por la­
ços de sangue e de tradição. Ou seja, o direito tinha uma
aplicação p e sso a l. Com a constituição dos reinos euro­
peus, durante os séculos IX a XII, tendeu-se para consi­
derar o direito como uma emanação do poder político
(iurisdictio) que o tivesse editado, devendo a hierarquia
das normas corresponder à hierarquia dos poderes polí­
ticos. Assim, tendeu-se então para uma concepção terri­
torial do poder, segundo a qual as leis deviam vigorar
territorialm ente, independentem ente da naturalidade
dos sujeitos a que se devessem aplicar, da situação dos
bens a que se referiam, do lugar de celebração dos negó­
cios jurídicos ou d o direito do foro que conhecia a causa.
Qualquer destas duas concepções quanto ao âmbito de
aplicação dos direitos levavam à adopção de critérios rígidos,
241 Sobre o tema, v. Grossi, 1968; H espanha, 1995, cap. 2.3.
216
António M anuel Hespanha
indiferentes à variedade das situações e às propostas de solução
que elas mesmas continham. Os com entadores - que vivem
numa época em que estes problemas se multiplicam, ao acen­
tuar-se a mobilidade das pessoas - vão precisamente escutar esta
variedade das situações da vida, formulando critérios casuísticos e desamarrando a questão dos conflitos de leis dos critérios
únicos da pertença "nacional" ou da sujeição política. Embora
partam da regra de que a lei só se aplica, em princípio, aos súb­
ditos , 242 introduzem todavia limitações inspiradas por soluções
casuísticas contidas nos textos romanos, bem como por razões
de equidade. Assim, os contratos e testamentos reger-se-iam pela
lei do local da sua celebração (lex actus); o processo, pela lei do
foro (lexfori); o estatuto pessoal, pela lei do interessado; a situa­
ção jurídica de imóveis, pela lei da sua localização (lex rei sitae)-,
os actos exprimindo o poder político (v.g., punição, fiscalidade,
administração, etc.) estavam sujeitos à legislação territorial. Es­
tas soluções podem ser compendiadas na fórmula de que o al­
cance de aplicação das normas está ligado ao alcance do poder
de quem as edita: assim, no caso de bens imóveis, coincide com
o território, no caso de pessoas, coincide com o universo dos
súbditos .243 Novamente, uma enorme atenção ao plano dos fac­
tos, que se consuma na adopção de soluções casuísticas e na re­
cusa de esquemas rígidos, abstractos e imobilistas.
iii) A teoria da naturalidade do poder político (iurisdictio). Outro
campo em que se manifesta esta sensibilidade dos comen­
tadores em relação à ordem implícita na própria realida­
de e à variabilidade que esta comporta (à "oficina das coi­
sas") é o da teoria da origem e legitimação do poder polí­
tico, nomeadamente, da faculdade de editar normas jurí­
242O texto de arranque era C., 1,1,1, Cunctos populos ...: "Q uerem os que todos os
povos, regidos pelo império da nossa clemência
Este princípio partia
ainda da identificação entre conflito de leis e conflito de poderes políticos,
embora definisse doutra forma (segundo critérios pessoais e não territoriais)
o âmbito do poder político. Sobre este tem a v . Coing, 198 9 ,1 ,1 0 6 -1 0 7 .
243 Coing, 1 9 8 9 ,1 ,1 3 8 ss. E m P ortu gal, a teoria estatutária vigorou até ao sécu­
lo XIX. Cf. Ord. fil„ 11 ,5 5 ,1 -3 .
Cultura Jurídica Europeia
217
dicas e de declarar o direito ("ius-dicere"). Anteriormen­
te, como vimos,, dominava uma concepção autoritária do
poder normativo e jurisdicional, segundo a qual este era
um atributo do príncipe, como sucessor do Imperador ou
como vigário de Cristo (nulla potestas nisi a Deo [não há
poder senão o que vem de Deus], formulação típica do
augustinianismo jurídico-político). Todos os poderes exer­
cidos na sociedade teriam esta fonte, sendo produtos de
uma permissão ou de uma delegação da jurisdição (delegatio iurisãictionis). A Glosa ainda insiste neste carácter
publicístico do poder, ao definir a iurisdictio como "potes­
tas de publico introducta cum necessitate iurisdicendi, et
aequitatis statuendae" (poder introduzido pela autorida­
de pública com a faculdade de dizer o direito e estatuir a
equidade ) . 244 Na sociedade medieval, no entanto, isto não
correspondia à realidade. Existiam poderes diversos e de
diferente hierarquia e âmbito, sem que se pudesse dizer
que a sua existência decorria de uma permissão do Impe­
rador. A novidade introduzida pelos comentadores (so­
bretudo, Baldo) foi a de afirmar que os poderes existentes
na sociedade tinham uma origem natural, independente de
qualquer concessão superior, pois a própria existência de
corpos sociais implicaria naturalmente a sua ordenação
íntima e esta a faculdade de auto-regulação. Daí que se
tenha começado a tender para uma concepção do poder
político como algo pertencente à própria ordem das coi­
sas, que, ao instituir corpos humanos organizados, lhes
tinha, implicitamente, outorgado a faculdade de autopro­
244Também Bártolo sublinha este carácter público (i.e., relacionado com interesses
colectivos) do poder político acrescentando à definição a expressão "enquanto
pessoa" pública (tanquam persoria publica), o que excluiria da iurisdictio os po­
deres que alguém detêm sobre outro, em vista da consecução de interesses
privados (v.g., o poder do pai sobre os filhos, do senhor sobre os servos). E
daqui que decorre a distinção entre iurisdictio, coertio e dominium, a primeira
visando interesses colectivos, os segundos interesses privados, v., sobre a
distinção entre iurisdictium e dominium, Grossi, 1992, 3 16,323. Sobre iurisdic­
tio e coertio [domestica, herilis], Hespanha, 1984,8-9; 1995, cap. 4.4.
218
António Manuel He;
moção ("os povos [as comunidades] existem em vi
do direito das gentes [do direito natural]; mas o go
não pode existir sem leis e estatutos; por isso, pelo
mo facto de os povos existirem, têm um governo irr
to no seu próprio ser, tal como todos os animais se i
pelo seu espírito e alma", Baldo, comentando a lei C
populi, D.,1,2,1). Mas, assim pulverizado e dividido n
da mesmo sociedade, o poder não pode ter sempre c
mo conteúdo, pelo que a teoria tardo-medieval da ui
tio é levada a distinguir vários níveis e âmbitos de p
Assim, no seio da iurisdictio genericamente concebii
juristas distinguem entre a ordinaria (estabelecido p>
ou pelo costume, abarcando a universalidade das cz
e a delegata (concedida, por rescrito ou privilégio, pa:
tipo especial de causas ou para certa causa individu
da). Mas distinguem ainda, segundo o âmbito de po
que encerram, sucessivos subtipos de iurisdictio.245
O primeiro é o imperium, conjunto de poderes que o j
titular do poder político) exerce por sua iniciativa. O imp,
encontra-se, por sua vez, subdividido em merum imperiu
jurisdição que se exerce por iniciativa própria ou mediantí
sação, visando a utilidade pública " ) , 246247 englobando as J
245 Esta concepção de iurisdictio com o um conjunto hierarquizado de (
de poder exprim e-se, graficam ente, sob o aspecto de um a árvore rai
da (arbor iurisdictionis [árvore da jurisdição]).
146 Esta definição, com o as seguintes, são de Bártolo, no Comm. in Dig. V
De iurisd. omnium iudicum, pr., v. "iurisdictio".
247 O merum imperium ainda aparece subdividido em seis graus. O itnperiun
mum (mero império máximo) inclui os poderes supremos do principie i
maiora), como fazer leis, reunir cortes, confiscar bens, criar notários, etc
perium maius (mero império maior) abarca, nomeadamente, o poder pi
(habere gladii potestatem ad animadvertendumfacinorosos homines, "ter o po
gládio para castigar os facínoras", D.,2,1,3) relativo às penas capitais (m<
decepamento de membro, perda da liberdade, perda da cidadania). C
rium magnum (mero império grande) inclui a deportação. O imperium y.
(mero império pequeno), o desterro e a perda da qualidade de vizinho. C
últimos graus (imperium minus e minimum), a faculdade de aplicar actos
erção menores (modica coertió), como multas e repreensões.
Cultura Jurídica Europeia
219
dades políticas superiores que visam a utilidade da comunida­
de no seu todo; e mixtum imperium ("o que se exerce por iniciati
va própria visando alguma utilidade privada"), abarcando a;
faculdades de actuação autónoma do juiz tendo em vista a rea
lização de um interesse, não já comum, mas particular . 248
Quanto à lurisdictio - que consistia na faculdade de dizer <
direito numa causa em que dois interesses particulares e contra
postos entravam em conflito -, ela incluía também os mesmo
seis graus, definidos agora a partir da importância da causa oi
questão .249 Em suma, esta concepção naturalista e hierarquiza
da do poder político permite dar conta da pluralidade e coexis
tência de poderes numa sociedade corporativa, como a medie
vai; permitindo que eles coexistam harmonicamente dentro da
respectivas esferas de vigência.
248Tam bém o mixtum imperium se encontra dividido em seis subtipos, de acordi
com a im portância dos efeitos produzidos e o grau de conhecim ento d.
causa suposto pelo seu exercício. O mixtum imperium magnum integrava o
expedientes que im plicavam a derrogação de uma norm a geral em v ist
do interesse particular, ou seja, os casos em que o príncipe (único titula
desta faculdade) dispensava de um a norm a jurídica certo caso partícula
(com o nos casos da em ancipação, da legitim ação, da concessão de ben
com uns a particulares). O maius incluía o poder de conhecer, em recursc
de decisões dos tribunais ordinários. O magnum, os decretos do poder vi
san do a utilidade particular (com o os rem édios possessórios: interdictc,
missiones in possessionem, etc.). O parvum, decretos visando a m esm a finali
dade, m as desprovidos de efeitos coercitivos (v.g., a datio tutoris [nomea
ção de um tutor]). Finalmente, os dois últimos graus, aquelas ordens qui
apenas m obilizavam meios de poder mínimos (com o a faculdade de orde
nar certos actos processuais (missio in possessionem cx primo decreto [autori
zação para a manumissão]).
249No prim eiro grau (iurisdictio maxima) entravam as causas que tocavam ai
estatuto das pessoas (liberdade, cidadania) ou à sua fama. No segundo grai
(iurisdictio maior), as causas que podiam levar à aplicação de penas corpo
rais no caso de incumprim ento da decisão do tribunal (v.g., prisão por dí
vidas). N o terceiro (iurisdictio magna), a decisão das causas de valor eleva
do (300 aurei). Nos restantes graus, outras causas de incidência patrim oni
al, m as de valor sucessivam ente menor.
220
António M anuel Hespanha
Mas o impacto mais decisivo da actividade e do saber dos
comentadores sobre a vida jurídica, política e social europeia foi
constituído, mais do que pelas suas inovações dogmáticas, pelo
seu contributo para a constituição de uma categoria social, à qual
passou a ficar cometida a resolução dos diferendos sociais com
recurso a uma técnica racional, embora suficientemente hermé­
tica para estar fora do alcance do homem comum. A categoria
dos juristas - pois a ela nos referimos - passa, então, a desempe­
nhar um papel central no equilíbrio político e social europeu;
inicialmente, na administração central e na diplomacia, lidan­
do, portanto, com as grandes questões políticas da sociedade;
mais tarde, na administração local e na aplicação da justiça, as­
sumindo então um papel arbitrai no quotidiano da vida social.
. . O modelo discursivo do direito comum europeu
5 6
5 .6 . 1 .
Génese do m odelo do discurso jurídico m edieval
A origem do direito, a natureza do justo, sempre constituí­
ram, em todas as épocas e em todas as sociedades, questões em
aberto; para lhes dar resposta se têm elaborado mitos e doutri­
nas filosóficas de muitas matizes. Fundamentalmente, as posi­
ções têm oscilado entre o voluntarismo e o racionalismo.
Para o voluntarismo, o direito é o produto de uma vonta­
de - a vontade divina, a vontade do legislador ou do príncipe, a
vontade geral - cujo conteúdo é, em princípio, arbitrário. Daí que
o jurista apenas tenha uma forma de descobrir o que é justo interpretar, da forma mais humilde possível, a vontade da enti­
dade que quis o direito. Este toma-se, assim, num dado indis­
ponível a que o intérprete apenas tem que obedecer.
Para o racionalismo, pelo contrário, o direito constitui uma
ordem pré-estabelecida - inscrita na natureza humana ou na
natureza das coisas - à qual se pode aceder mediante um uso
adequado da razão.
Os efeitos de uma ou de outra atitude são opostos.
Nas épocas em que predominam concepções do primeiro
tipo, parece haver uma pequena margem para se exercitar uma
Cultura Jurídica Europeia
221
actividade doutrinal autónoma sobre o direito. Pois esta consis­
te numa via raciocinante de acesso ao "justo" (à solução justa ou
jurídica dos problemas), via esta que o voluntarismo começa por
negar. Toda a ars inveniendi (i.e., a técnica de encontrar a solu­
ção jurídica) se reduzirá, portanto, a interpretar, de forma mais
ou menos subserviente, as fontes de direito sem qualquer intui­
to de criação jurídica autónoma. A atitude do voluntarismo não
é, de modo algum, pensar o direito mas, em vez disso, obedecer
ao direito.
Já nas épocas em que domina uma concepção racionalista
do direito, se propõe uma técnica, mais ou menos rigorosa, de
encontrar racionalmente o justo. Como agora se acredita que o
direito pode ser encontrado raciocinando, toda a preocupação
dos juristas é fixar o caminho, o curso, que a razão terá que per­
correr (discurso) para encontrar a solução jurídica. E vai surgir,
assim, uma intensa actividade metodológica tendente a desco­
brir as correctas regras do pensamento jurídico.
Mas, por outro lado, a questão tem outra face, documenta­
da pela história. Esta demonstra, efectivamente, que algumas das
grandes épocas da dogmática jurídica (i.e., aquelas de que da­
tam a maior parte dos instrumentos lógicos, dialécticos e con­
ceituais ainda hoje usados) são aquelas em que domina uma
concepção voluntarista e positivista do direito, aquelas em que
as normas jurídicas postas eram dotadas de um prestígio excep­
cional que impedia, inclusivamente, a sua derrogação .250 Como,
nem sempre a solução normativa estabelecida autoritariamen­
te correspondia às necessidades normativas vigentes no momen­
to da sua aplicação e dada a impossibilidade de afastar, sem
mais, a norma indesejada, nada resta à doutrina senão modifi­
car o conteúdo desta norma através de uma interpretação sub­
til, levada a cabo mediante a utilização de complexos instrumen­
tos lógico-conceituais. Por meio deste arsenal de instrumentos
250Assim aconteceu na época clássica do direito romano em que os juristas se
afirmam uns seguidores estritos da letra e do espírito da lei; no pensamento
jurídico dos comentadores; e, já próxim o de nós, no positivismo conceituai.
222
António Manuel Hespai
intelectuais o que se está é a alterar a norma indesejada, sir
lando que apenas se está a levar a cabo a sua interpretação.
Concluindo. O nascimento da dogmática jurídica lige
tanto a uma crença teórica no poder da razão como a uma
cessidade prática de usar a razão, para actualizar, sub-repti<
mente, normas consideradas inderrogáveis. E isto mesmo <
podemos verificar na formação do saber jurídico medieval:
por um lado, a podemos ligar à "libertação da razão" consequ
te à revolução escolástica , 251 não parece menos correcto relac
ná-la com a atitude respeitosa dos juristas perante os textos
tradição jurídica, o que os obrigava a uma actividade que, s
do profundamente inovadora, se desenrolava sob a capa de u
mera interpretação, só possível, no entanto, com o desenvo
mento de um imponente instrumental lógico-dogmático.
Sintetizando as duas posições, podemos dizer que com
gem na produção do ambiente favorável à constituição da d
trina jurídica medieval dois tipos de factores: (i) factores "f
sóficos", que contribuem para a crença do poder da razão, e
factores ligados ao modo de ser do sistema das fontes de di
to, que cria aos juristas a necessidade de se servirem da raz
Para além destes, são ainda relevantes (iii) factores "instituc
nais", os quais vêm constituir o ambiente institucional favc
vel ao exercício e ao desenvolvimento da "razão jurídica".
5 .6 .l.l. Factores filosóficos
Toda a Alta Idade Média até ao advento da escolástica a<
tou, sem grandes desacordos, a síntese teológica e filosófica
Santo Agostinho (354-430 d.C.). O augustinianismo jurídico I
duz-se precisamente num voluntarismo. Na verdade, para o 1
po de Hipona, a única fonte de direito é a vontade de Deus; v
tade em geral insondável, mas revelada parcialmente pelas
crituras e manifestada em cada momento pela ordenação p
videncial da.história. Daqui decorrem várias consequências
251É o ponto de vista de Villey, 1961, 4.
Cultura Jurídica Europeia
223
Primeiro, a inexistência àe uma oiàem juriàica objectiva,
natural, na qual certos actos estivessem inevitavelmente conde­
nados e outros necessariamente permitidos. Assim, Santo Agos­
tinho acaba por admitir a legitimidade de certos actos (à primeira
vista injustos) por se inserirem num plano divino da Salvação
inacessível à razão humana. Nesta perspectiva, as coisas não são
queridas por Deus porque sejam justas, mas são justas porque queri­
das por Deus.
Depois, como segunda consequência, a impotência da ra­
zão para atingir o critério da justiça. Efectivamente, este critério
consiste na, digamos, vontade arbitrária de Deus e esta - já o dis­
semos - não pode ser atingida por meios humanos, restando
apenas, como último recurso, a submissão aos Livros Sagrados
e aos poderes constituídos na terra por graça da Providência.
Por último, esta aceitação dos poderes constituídos (pos­
tos), que retiram a sua autoridade de uma espécie de mandato
divino ("É por Mim que os tiranos reinam"), implica a aceita­
ção dos direitos positivos terrenos (por injustos e imorais que
sejam), pois eles teriam uma razão de ser escondida, um senti­
do oculto, na história da Salvação.
Voluntarismo, anti-racionalismo, positivismo tais são os ingre­
dientes que o augustinianismo traz ao entendimento do direito
da primeira Idade Média .252 Qual deles o mais contrário à cons­
tituição de uma "ciência do justo e do injusto". De facto, a esta
luz, a única actividade legítima do jurista era a leitura humilde
e a submissão passiva em relação ao direito revelado ou positi­
vo ("Aderindo a Ele viveremos com justiça; e somos tanto mais
ou tanto menos justos, quanto mais ou menos a Ele aderimos",
Ep.,120,4 ) . 253
252Sobre as teorias jurídicas de Santo Agostinho, v., por todos, Villey, 1961, 69 ss.
233O augustinianism o está na origem do pensam ento filosófico e filosófico-jurídico dos franciscanos Duns Scotto e Guilherme d'O ccam , os quais, como
muito bem nota Villey, estão na origem do pensam ento jurídico m oderno,
concretam ente, das orientações positivistas dos dois últimos séculos; ain­
da nesta direcção, a filosofia jurídica da Reforma (Lutero e Calvino). Sobre
todos estes autores, Villey, 1961.
224
António Manuel Hespanha
Todo este panorama se modifica, nos finais do século XII,
com o renascimento do ensino laico, com a revalorização dos
saberes mundanos e, no domínio filosófico, com o advento da
escolástica (ou "saber das escolas").
No entanto, a filosofia medieval mantinha da época ante­
rior a ideia de que a razão era limitada, de que - em muitos do­
mínios - não podia haver uma posse definitiva da verdade das
coisas. Mas que apenas se podia peregrinar para a verdade. Por
isso, não se podia excluir, de antemão, qualquer ponto de vista
teórico sobre um certo problema.
A investigação intelectual adquire, assim, um tom dialo­
gante, em que as várias opiniões são confrontadas e em que, mais
do que uma solução definitiva, interessa o pôr da questão .254 O
alcance da verdade é encarado, não como tarefa que possa ser
levada a cabo isoladamente por meio da razão individual, mas
como uma obra colectiva em que todos colaboram, na discus­
são e no confronto de opiniões. É esta humildade perante a "ver­
dade" das coisas que toma simpático o pensamento medieval,
embora não seja deste género a ideia que dele se faz, comummente.
254 Abelardo (século XII), um dos arautos do pensam ento "escolástico", na sua
célebre obra Sic et non, dá-nos um dos exemplos mais vivos do que acaba­
mos de dizer. Aí, partindo do princípio de que "a prim eira chave da sapi­
ência é uma assídua ou frequente interrogação [...] pois pela dúvida che­
gam os à interrogação e, pela interrogação, aprendem os a v erd ad e", orga­
niza uma colectânea "d e opiniões opostas contidas em diversos textos" ('pro
qua quidem contrarietate, haec compilatio sententiarum 'Sic et Non' appellatur"
[pela qual contradição, esta com pilação de proposições se cham a "Sim e
N ão"]) a fim de exercitar os seus leitores em busca da verdade. E seguemse vários títulos em que, depois de enunciada a questão, se coligem vários
textos contraditórios, sem se tirar qualquer conclusão (ex., XXXII, Quod
omnia possit Deus, et non; XXXIV, Quod Deus non habeat liberum arbitrium, et
contra). Como se vê, trata-se m enos de form ular soluções do que de convi­
d ar o leitor a continuar esta obra social de construção do saber. A mesma
organização por questões (quaestiones) ou problemas surge na Summa Theologica, de S. Tom ás de Aquino, em bora aí o autor não perm aneça neutro.
Cultura Jurídica Europeia
225
Assim, o pensamento medieval dos séculos XII e XIII - e,
concretamente, o seu pensamento jurídico - é um pensamento
de tipo problemático, e não sistemático. Isto é, não se preocupa com
que as soluções dadas aos problemas surgidos num dos ramos
do saber constituam um todo lógico isento de contradição (ou
seja, que constituam um sistema). Mais do que a perfeita inte­
gração das soluções numa unidade lógica e sistemática, interes­
sa-lhe a adequação destas aos dados concretos do problema a
que visam responder. Daí que o ensino e a própria literatura te­
órica não se apresentassem com a forma - hoje corrente - de ex­
posições sistematicamente ordenadas, dotadas duma arquitec­
tura lógica bem visível, mas como colectâneas de soluções de
problemas controversos (casus, quaestiones disputatae, etc . ) . 255
Tudo isto se reflecte no pensamento jurídico.
Agora que a razão tem a sua "carta de alforria", a teoria
augustiniana das fontes do direito deixa de ser aceitável. Para o
pensamento escolástico, cuja figura maior é S. Tomás de Aquino, o direito contido nas Escrituras (direito divino) ou aquele edi­
tado pelos reis (direito positivo) não eram os elementos decisivos
para encontrar o iustum, a solução justa, que constituía o corpo
do direito (ius est quod iustum est, o direito é o que é justo). Esse
iustum, esse direito decisivo, era anterior a todo o direito positi­
vo, estava inscrito numa ordem natural, estabelecida por Deus,
mas à qual Ele próprio obedecia .256 E esta ordem era desvendável por um uso correcto da razão (recta ratio), i.e., por um uso da
razão disciplinado por certas regras de discorrer.
O direito, portanto, deixa de estar todo feito nas fontes de
direito (escriturais ou legais), onde só falte ir colhê-lo. Pelo con­
trário, a solução jurídica deve ser encontrada em cada momen-
255Sobre a oposição entre pensam ento problemático e pensam ento sistemáti­
co e sobre a caracterização do pensam ento medieval, Viehweg, 1953.
256E a teoria escolástica das "cau sas segundas" segundo a qual Deus, Causa
Prim eira de tudo, se abstém de agir sobre cada facto particular; com o por
econom ia de m eios, entrega um a parte da Sua tarefa ao funcionamento
autom ático das leis naturais que imprimiu na natureza, só as violando em
caso de milagre (cf. De gubematione rerum, Ia, qu. 103 ss.).
226
António M anuel Hes]
to, através de uma específica e precisa técnica de investig
(iars inveniendi, arte de encontrar) que, já sabemos, concedi
grande papel à discussão e à investigação casuísticas. Sã
processos específicos desta ars inveniendi que explicarão, jx
mente com outras razões referidas, o modo de ser do pensai
to jurídico, do ensino jurídico e da literatura jurídica dos ;
los XII e XIII.
5.6.1.2. Factores ligados à natureza
do sistema medieval das fontes de direito
Dissemos que o nascimento do saber jurídico mediev
as suas formas concretas de desenvolvimento - não se podi
plicar unicamente a partir do ambiente filosófico da época
támos até que o aparecimento do saber jurídico não podi
seguramente explicado, senão encarando conjuntamente co
factores filosóficos, o modo de ser do sistema das fontes d
reito. Ou seja, o lugar proeminente aí ocupado pelo direitc
tinianeu, perante o qual os juristas se encontram num estac
completa dependência teórica. É a isso que iremos dedic
parágrafos seguintes.
Como dissemos, as características mais salientes e ori«
rias do método dos glosadores eram a fidelidade ao texto jus,
neu e o carácter analítico e disperso da literatura jurídico-cieni
Por isso, a sua actividade doutrinal não podia desenvolv
senão em moldes predominantemente analíticos. Isto é, o ti
Lho dos juristas consistia numa análise independente de
texto jurídico, realizada ao correr da sua "leitura", quer 5
forma de glosas interlinhadas ou marginadas, quer sob a di
comentário mais completo (apparatus), sem que, pelo menc
princípio, houvesse a preocupação de referir entre si os v
textos analisados.
Esta concepção do saber jurídico como uma actividadi
ramente interpretativa (ou exegética) - e o modelo do discursc
daí decorre - é frequentemente ligada à "atitude espiritual
pria da Idade Média", propensa à aceitação respeitosa das <
ridades, quer estas fossem religiosas, filosóficas ou jurídicas
Cultura Jurídica Europeia
227
Todavia, para além dos factores já antes enumerados, de
aceitação da autoridade do direito romano, esta atitude de "apagamento" explica-se também por razões de natureza metodo­
lógica. É que ir além do magro comentário cingido ao texto e
abalançar-se a uma actividade sintética ou a extracção de regrai
(regulae, brocarda) exigiam instrumentos lógicos que o pensamen­
to medieval desta altura não possuía e de que só viria a dispo]
depois da chegada à Europa ocidental de novos textos dos filó
sofos e lógicos da Antiguidade, nomeadamente de Aristóteles . 25
A evolução da vida europeia não iria permitir, por muitc
mais tempo, um respeito tão absoluto e exclusivo pelos texto:
romanísticos. Todavia, e apesar das tendências reformistas \í
referidas, mantém-se bem viva até ao fim da Idade Média, a ideie
de que o direito consiste num conjunto de normas legadas poi
uma tradição dotada de grande autoridade, que o intérprete sc
dificilmente pode alterar, ao sabor da sua inventiva. Tambén
aqui, o ideal de "livre exame" ainda estará para chegar.
Para os Comentadores, como para os Glosadores, a orden
legal justinianeia representava um dado quase indiscutível, cujc
valor autoritário era o reflexo da autoridade jurídica a metajurídica que os juristas medievais atribuíam ao Corpus iuris civilii
na sua totalidade. Portanto, toda a tarefa de actualização e sis­
tematização do direito terá de ser realizada no interior de ume
ordem prefixada autoritariam ente, aparecendo formalmente
como uma tarefa de mera interpretação.
257 Isto não quer dizer que os Glosadores - mas não decerto os prim eiros - nãc
tenham iniciado um im portante trabalho de organização dos m ateriais ju­
rídicos rom anos. Aliás, tinham sido eles próprios a dar à com pilação justi­
nianeia a designação,de "co rp u s", pelo que lhes competia actuar de aco r­
do com esta ideia, debruçando-se sobre as contradições que povoavam o
Corpus am is. Npus iuris. Na sua fase incipiente, tal tarnte, tal tarefa consis­
tia na elaboração de aboraç de concordsncia e discordância textuais (Calasso, 1954, 531); depois, à m edida que o trabalho de exegese ia progredin­
do e a capacidade lógica dos exegetas ia crescendo, surgiam as definitiones, as regulae, os brocarda e, num período já de transição para os novos
tempos, as sum m a. Sobre estes tipos d 4 ,531-536 e V.P. Morta ri, 1958, 78 ss.
228
António M anuel Hespanha
É ao serviço desta interpretação que será colocada a nova
lógica da escolástica. A argumentação dos juristas, o modo de
estes organizarem o seu discurso, adquire agora um tom muito
particular. Surgem conceitos, modelos de raciocínio, temas in­
telectuais, que só por eles são usados. Em suma, é um novo do­
mínio do saber que se constitui - a doutrina ou dogmática jurí­
dica cujos cabouqueiros são estes juristas dos séculos XIII e XIV.
5.6.1.3. Facto res institucionais
Agora que, como acabamos de ver, falar sobre o direito se
torna uma tarefa difícil, dotada de regras lógico-dialécticas que
cumpre observar, implicando o uso de conceitos especiosos, é
impossível a qualquer um encetar, sem mais nem menos, o exer­
cício da função jurídica. Esta exige uma aprendizagem teórica
muito complexa que deixa de estar ao alcance do prático. O di­
reito vai precisar da escola. Ao esponttaneismo ou à prudentia
aurida da prática vai suceder-se a aprendizagem teórica nas es­
colas universitárias que então se multiplicavam por toda a Eu­
ropa. Em todas elas, o ensino do direito ocupou um lugar mui­
to relevante; mas temos que convir que elas ocuparam um lu­
gar ainda mais relevante (imprescindível mesmo) na evolução
do direito e, através disso, na evolução da própria sociedade. Em
boa parte, a Europa Moderna é o produto de uma imaginação
social cultivada nas Faculdades de Direito.
Por outro lado, as características do ensino universitário de
então potenciaram ainda certas orientações metodológicas atrás
referidos.
Assim, se - como já vimos - o modo de ser da tarefa " inter­
preta tiva" dos Comentadores exigia a utilização de uma uten­
silagem lógico-dialéctica muito sofisticada, a vizinhança interdisciplinar cultivada nas universidades medievais facilitava,
convidava até, a que os juristas importassem para os seus do­
mínios os métodos utilizados pelos seus colegas filósofos, lógi­
cos e teólogos, das Faculdades de Artes e de Teologia.
Do mesmo modo, o carácter argumentativo e tópico que é
justam ente reconhecido ao saber yurídico m edieval não pode
Cultura Jurídica Europeia
229
deixar de ter sido influenciado pela própria prática da discus­
são, da discussão livre e generalizada - quodlibética 258 - no seio
das instituições universitárias.
E a partir daqui que podemos considerar a fundação das
universidades como um factor institucional do aparecimento do
saber jurídico na Baixa Idade Média.
5 .6 .2 . A estrutura discursiva
Como dissemos anteriormente, toda a obra de actualização
e sistematização do direito exigida pelas novas condições da vida
social europeia e levada a cabo, sobretudo, pelos Comentado­
res tinha que o ser sob a forma de uma interpretação do direito
romano-justinianeu em vigor. Efectivamente, exceptuando o
parêntese constituído pelo sentido geral da obra de São Tomás,
o pensamento jurídico medieval era - como já vimos - favorável
à identificação do direito com a vontade do legislador. A leitu­
ra dos textos romanísticos e, bem assim, o curso da vida políti­
ca da época (dominada pelas tentativas de centralização do po­
der dos príncipes), sugeriam uma concepção monárquica do
direito, em que a da edição do direito tendia a ser considerada
como exclusiva do rei (quoã principi placuit legis habet vigorem
[aquilo que agrada ao rei tem a força de lei]) e cujos reflexos te­
óricos e filosóficos aparecem em Duns Scotto e Guilherme de
Occam .259
Posto, assim, diante da realidade concreta de um sistema
jurídico baseado sobre normas com origem numa tradição do­
tada de enorme autoridade, o jurista devia inevitavelmente par­
tir do texto normativo na sua tarefa de conseguir uma regula­
mentação jurídica aderente à nova realidade social.
258As discussões quodlibéticas (da expressão quodlibet = de quod libet [acerca
do que se quiser]) eram discussões praticadas periodicam ente em todas as
universidades m edievais, em que, depois de u m debate generalizado, so­
bre quaisquer questões levantadas pelo auditório, o professor dava a sua
opinião e rebatia os argum entos em contrário.
259Mortari, 1 9 5 8 ,5 2 -5 7 e Villey, 1961.
230
António Manuel Hespai
Deste modo, os objectivos do saber jurídico coincidia
formalmente, com os da interpretação; embora, no fundo, os
ristas tivessem em vista muito mais do que a interpretação c
textos. Na verdade, o fim principal da exegese não consistia <
averiguar o significado histórico do preceito legislativo, ma
seu significado jurídico e racional. Isto é, a interpretação tendi
descoberta (à colocação...), nas palavras da lei, de princípios
rídicos dominantes na prática e na cultura do tempo.
A realização de uma tarefa deste tipo que, no fundo, c<
sistia em fazer dizer ao legislador aquilo que ele não tinha,
modo algum, querido dizer exigia, como já se disse, meios 16
co-dialécticos adequados. A eles dedicaremos agora algu:
atenção .260
5.6.2.1. A oposição do “espírito” à “letra” da lei
Uma primeira forma de proceder a uma interpretação ii
vadora era a oposição entre o texto da lei (verba) e o seu espíi
(mens) e a atribuição de um valor decisivo a este último.
Tal distinção baseava-se nos princípios fundamentais
filosofia da linguagem medieval para a qual as palavras for;
criadas pelo homem para levar aos outros 0 conlrecimento dos &
pensamentos ("na verdade, as palavras [...] são os sinais daqu
que está na alma" escreve Giason dei Maino, séc. XV). A atrib
ção de um valor decisivo ao espírito da lei procurava apoio, qi
na máxima de S. Paulo "littera occidit, spiritus vivificat" (a le
mata, o espírito dá vida), quer no preceito do Digesto "scire
ges non est verba earum tenere sed vim ac potestate" (saber as 1
não é dominar a sua letra, mas o seu sentido e intenção), C
sus, D., 1,3,17.
Mas, para além destas razões de ordem teórica, justifica e
procedimento interpretativo o facto de ele ser o único proce:
M1Sobre o discurso jurídico medieval, para além de Villey, 1961, e Mortari, lí
Berman, 1 9 8 3 ,1 4 3 ss.; Tau Anzoategui, 1992.
Cultura ]urídica E uropeia
231
de tornear as dificuldades postas por alguns textos, literalmen­
te opostos, aos interesses normativos que os intérpretes queri­
am prosseguir. Assim, quando formulava uma regra que, nos
novos tempos, não podia ser aceite em toda a sua extensão, o
intérprete afirmava que tal regra excedia a vontade racional do
legislador e interpretava-a restritamente não a aplicando a cer­
tos casos; noutras situações, pelo contrário, estendia o preceito
legal a casos que ele, manifestamente, não visava.
5 .6 .2 .2 . A interpretação lógica
Mas, para além desta tarefa de actualização normativa, re­
alizada através da oposição entre a letra e o espírito da lei, reali­
za-se também em sede interpretativa, um importante trabalho
de sistematização, posto em prática a partir da interpretação ló­
gica dos preceitos.
A interpretação lógica foi um procedimento hermenêutico
aplicado inicialmente à Sagrada Escritura e que constituía um
meio termo entre a interpretação literal (agarrada ao elemento
filológico e gramatical dos textos) e a espiritual (que quase des­
prezava o texto, envolvendo-se em divagações simbólicas). A
interpretação lógica, pelo contrário, partia do texto, mas considerava-o como expressão de uma ideia geral (ratio) do seu au­
tor que, por certo, não deixaria de estar presente noutros pas­
sos da sua obra. Deste modo, o texto não pode ser entendido
senão pela sua integração no contexto. Só esta integração per­
mite a extracção das ideias informadoras (dogmata) de cada con­
texto normativo ("instituto" como hoje dizemos), ideias essas
que constituem o apoio indispensável para a interpretação de
um preceito isolado. Daí a afirmação de Baldo (século XIV) de
que a "scientia (legum) consistit in medida rationis, et non in cortice
scripturarum” (a ciência das leis consiste na medula da razão e
não na casca das palavras escritas ) . 261
261 Cit. por M ortari, 1958, 67.
232
António Manuel Hespanha
A investigação da ratio legis era conseguida através dos pro­
cedimentos da dialéctica aristotélico-escolática, nomeadamen­
te dos expedientes, adiante mais detidamente analisados, da
definição, divisão e da Analogia ("o processo teórico correcto de
proceder é triplo, isto é, define, divide e progride por exemplos",
diz Baldo). Através deles eram isoladas: a essência (substantia)
dos institutos; as instituições ou figuras jurídicas mais vastas em
que eles se enquadravam {genera); os caracteres específicos que
continham em relação a outros institutos enquadrados nos mes­
mos géneros (differentiae); as analogias formais ou materiais que
mantinham entre si (similitudines). Tudo isto efectuado, como já
se disse, nos limites da interpretação lógica e com o recurso às
regras lógico-dialécticas de Aristóteles, que passa a ser o filóso­
fo mais citado entre os juristas.
Em face do que acabamos de dizer, logo se reconhece que, sob
a capa de uma interpretação lógica, a doutrina estava a levar a cabo
um trabalho altamente criador. "Forçando" os textos com auxílio
de instrumentos lógico-dialécticos finamente elaborados, ela ia
construindo um sistema de conceitos jurídicos adequados a respon­
der às necessidades da vida sua contemporânea. No trabalho dos
Comentadores, é essencial realçar, não tanto a dependência em re­
lação ao texto por eles sempre reafirmada, mas, principalmente, a
progressiva distanciação em relação ao conteúdo originário das
regras textuais. Paralelamente com esta distanciação (ou, talvez
melhor, em virtude de ela existir), vai-se desenvolvendo uma cres­
cente confiança nas possibilidades da razão e, consequentemente,
uma progressiva valorização da actividade doutrinal dos juristas
("o direito, na verdade, não pode prosperar se não houver algum
jurisconsulto que o tome melhor pela sua interpretação", Luca de
Penna, século XIV; "Sem Bártolo e certos outros intérpretes seus o
nosso direito não existiria", Alciato, século XVI) . 262
262 Mais tarde, nos fins do século XVI, haverá já quem escreva, anunciando
novas épocas do pensam ento jurídico, que "o m odo de ser do nosso tempo
e dos nossos tribunais é, na verd ad e, muito diferente do dos romanos..."
Tiberio Deciani, cit. por M ortari, 1 9 5 8 ,7 2 .
Cultura Jurídica Europeia
233
5.6 .2 .3 . A utilização da dialéctica
aristotélico-escolástica e, especialmente, da tópica
No número anterior falámos de dois expedientes utilizados
pelos juristas medievais, sobretudo pelos Comentadores, para,
sob a capa da interpretação, levarem a cabo uma obra profun­
damente inovadora de actualização normativa e de sistematiza­
ção do direito do seu tempo. Um desses expedientes - a inter­
pretação lógica - implicava, como dissemos, a utilização de um
instrumental lógico dialéctico muito complexo, através do qual
fosse possível a elaboração sistemática de um direito por natu­
reza assistemático e até contraditório .263 Tal instrumento foi for­
necido pela dialéctica aristotélico-escolástica.
A dialéctica é, para a tradição aristotélico-ciceroniana, a arte
de discutir. A discussão caracteriza-se, quer formalmente (i.e., quer
por, na sua forma, se distinguir de outros tipos de discurso ) , 264
quer materialmente (i.e., quer porque incide sobre assuntos dis­
cutíveis, ou seja, assuntos sobre os quais não há afirmações ne­
cessariamente certas). Este segundo aspecto é fundamental para
a caracterização da dialéctica. Uma vez que não há, nos assun­
tos dialécticos, afirmações indiscutivelmente verdadeiras, que
cortem definitivamente as questões (pois então a própria discus­
são seria impensável), é sempre possível encarar os problemas
em aberto a partir de vários pontos de vista, ou seja, progredir
263Na verdade, o com plexo norm ativo conhecido, a partir do século XIII, por
"direito com u m ", era constituído por norm as de várias origens, animadas,
por vezes, por princípios contraditórios.
264Por exem plo, da oração (oratio) - a que vulgarm ente cham am os "discurso"
- , a cuja regulam entação se dedica a retórica, ou da demonstração, cujas re­
gras são estudadas pela analítica. Enquanto a oração se caracteriza por ter
em vista a obtenção de efeitos estéticos, a discussão e a dem onstração vi­
sam o acréscim o do saber; distinguindo-se entre si porque, na primeira, a
base de que se parte são afirm ações somente prováveis, não necessárias,
num a palavra, susceptíveis de discussão (v.g., os hom ens têm uma alma
imortal; o direito é a arte do bem e do equitativo), enquanto que, na segun­
da, o raciocínio desenvolve-se a partir de afirm ações indiscutíveis (u.g., o
homem é u m anim al racional, o direito é um facto social).
234
António M anuel Hesps
para a sua solução com base em argumentos distintos e, por
zes, até opostos. A discussão é, portanto, um andar à volte
questão, perspectivando-a de diversos pontos de vista, atac
do-a a partir de diferentes considerações (ou argumentos).
Sendo assim, a tarefa mais importante da teoria da disc
são (ou dialéctica) é encontrar os pontos de vista, os argun
tos, a partir dos quais as questões podem ser consideradas,
tarefa é designada, na linguagem aristotélico-ciceroniana, poi
inveniendi 265 ou tópica, sendo esses pontos de vista, directore:
argumentação, designados por lugares (loci) ou tópicos (topoi
O pensamento jurídico da Baixa Idade Média recorreu c
tinuamente aos processos dialécticos e, nomeadam ente,
métodos propostos pela tópica para encontrar os argumen
E não por acaso.
Já vimos, de facto, que a grande tarefa do pensamente
rídico desta época foi a integração do direito romano, canón
feudal e urbano num sistema único dominado por grandes p
cípios jurídicos actualizados, isto é, que traduzissem adequa
mente as exigências da vida económico-social de então. Tc
via, cada um destes ordenamentos jurídicos tinha os seus j
prios pontos de vista e, mais do que isso, a sua própria fonte
legitimidade. Eram, por outras palavras, ordenamentos ever
almente contraditórios entre si, mas fundamentalmente autó
mos. Tal como os diversos pontos de vista no âmbito de u
discussão. Daí que a sua compatibilização num único orde
mento constituísse uma das tais tarefas típicas da arte da disc
são que, partindo de perspectivas diferentes, tenta organizí
consenso entre elas. Um consenso, em todo o caso, que não
duz a especificidade e autonomia de cada um dos diverse
opostos pontos de vista. De alguma forma, a prática da disc
são vai organizando, em etapas sucessivas, princípios cons
suais de âmbito sucessivamente mais genérico. No entanti
medida que se vai subindo em generalização, o consenso va
tornando mais superficial. O acordo já não diz respeito a sit
265Arte de encontrar (os argum entos que servirão de base à argum entaçãi
Cultura ]urídica Europeia
235
ções carregadas de conteúdos concretos - a situações " espessas"
(thick, M. Walzer) mas a fórmulas gerais e muito esvaziadas
de referências concretas (thin, id .).266
A teoria do discurso e a metodologia jurídicas de então ti
nham consciência desta debilidade das formulações muito ge
néricas, insistindo em que "da regra [genérica] não se pode ex
trair a solução jurídica [concreta], sendo antes desta que se devi
inferir a regra" (non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est re
gula fiat, D.50,16,1)267 ou em que "toda a definição [i.e., formula
ção genérica] é perigosa" (omnis definitio periculosa est). E, po
isso, estavam bem longe de propor uma axiomatização do sa
ber jurídico, ou seja, uma equiparação do processo de achamentc
da solução jurídica a uma dedução axiomática do tipo das qus
se utilizam na geometria.
No entanto, se virmos as coisas de uma perspectiva históri
ca, o que as escolas tardo-medievais vão levar a cabo é a constru
ção daqueles princípios mais gerais de direito que, mais tarde, no;
séculos XVII e XVIII irão ser tomados, pelas escolas jusraciona
listas, como axiomas jurídicos partir dos quais se possa procede;
dedutivamente. Assim, historicamente, o período compreendidc
entre os séculos XTV e XVII corresponde à.formação "indutiva" dc
"sistema jurídico" exigido por uma certa mundividência.
A partir do século XVIII, o sistema está perfeito, os seu:
axiomas elaborados, e o pensamento jurídico limita-se a expli
cá-los dedutivamente - é a pandectística(cf., infra, 8.3.3. . Tantc
mais que, por via da laicização do direito e da sua separação en
relação à religião e à moral, o direito se torna numa ordem jurí­
266W alzer, 1994.
“ 7Regula est, quae rem, quam est, breviter enarrat. Non ut ex regula ius sumatur
sed ex iure, quod est, regula fiat.Per regulam igitur brevis rerum narratio tradi
tur, et (utait Sabinus) quasi causa conjectio est: quae, simul cum in aliquo vitiati
est, perdit ojficium suum" [A regra é aquilo que descreve resum idam ente um;
coisa. De tal forma que da regra [genérica] não se pode extrair a soluçãc
jurídica [concreta], sendo antes desta que se deve inferir a regra. Por isso
ap enas se transm ite com a regra um a breve n arração das coisas, sendc
(com o diz Sabino) com o que uma presunção, a qual, na m edida em que algc
se não verifica, perde o seu efeito"]
236
António M anuel Hespanha
dica "fechada " . 268 No trânsito do século XIX para o século XX
inicia-se uma nova tarefa de recomposição do sistema, pois a
introdução de instituições jurídicas exigidas por necessidades
novas origina uma crise interna no sistema jurídico-conceitual,
ainda hoje em aberto (cf., infra, 8.4.).
Uma tal tarefa de unificação de institutos jurídicos por vezes
tão díspares exigia um esforço penoso, tendente a encontrar o ponto
de vista a partir do qual se pudesse achar alguma unidade ou liga­
ção lógica entre os institutos considerados. Ora a técnica de encon­
trar os pontos de vista a partir dos quais qualquer questão pode ser
encarada era - como já se disse - a tópica. Observando as suas re­
gras, os juristas serão capazes de encontrar as várias perspectivas
segundo as quais um instituto jurídico pode ser enfocado e, dentre
todas elas, escolher aquela que melhor permita pôr em destaque a
sua ligação a um outro instituto ou grupo de institutos.
Uma primeira perspectiva de um instituto jurídico pode ser
obtida através da sua definição, realizada nos moldes aristotélico-escolástico. A definição ("oratio quae id quod definitur explicat
quid sit", proposição que explica o que é aquilo que se define,
Cícero, Tópica, V, 26) era a expressão da essência de uma coisa e
devia ser formada ex genere et differentia: ou seja, devia consistir
na indicação da categoria geral a que pertencia o definido (gé­
nero) acrescida da característica que o distinguia de outras rea­
lidades pertencentes à mesma categoria (espécie ) . 269
Ora bem, encarar um instinto jurídico através da sua defi-
268V., sobre este fechamento (auto-referencialidade) da ordem jurídica m oder­
na, Prodi, 2000.
269 Ex.: " Doação (definido) é um contrato (género) pelo qual um a pessoa trans­
fere a outrem gratuitamente uma parte dos seus bens (diferença)". Por sua vez,
a entidade que era género nesta definição (contrato) pode ser tam bém ob­
jecto de definição: "contrato (definido) é um a relação jurídica (género) em que
cada uma das partes é simultaneamente titular de um direito e de um dever recí­
proco (diferença)". N estes exem plos se vê claram ente que o género é a cate­
goria geral de que o definido é espécie; a diferença, a característica que dis­
tingue o definido das outras espécies que, com ele, integram o género (no
I o exem plo, com pra e venda, locação, m útuo, etc.; no 2o, relações jurídicas
em que só há deveres ou direitos p ara um a das partes).
Cultura Jurídica Europeia
237
nição contribui para o enquadrar num princípio de sistematiza­
ção, numa sistematização por assim dizer "regional". Efectiva­
mente, a definição ex genere et differentia implica a formação de
conceitos genéricos (como relação jurídica, negócio jurídico, etc.),
desconhecidos da dogmática romanística, em função dos quais
se relacionam certas figuras jurídicas até aí isoladas .270 Esta relacionação, por outro lado, põe a nu as semelhanças e as dife­
renças existentes entre elas e permite a individualização de
subgéneros (ou géneros menos gerais).
A perspectiva da definição (ou "lugar da definição " ) 271 era,
portanto, utilíssima para levar a cabo uma primeira tarefa de sis­
tematização, pois considerava os vários institutos jurídicos in­
tegrados em géneros mais vastos, os quais por sua vez, se orde­
navam noutros ainda mais compreensivos. Definir consistia,
portanto, em enquadrar um instituto num sistema de conceitos
logicamente hierarquizados . 272
270Assim, o aparecim ento da noção genérica de contrato permite encontrar al­
guma relação entre várias figuras jurídicas, até aí isoladas, com o a com pra
e venda, a locação, o m útuo, etc. Tal relação consiste no facto de estes insti­
tutos apresentarem elementos essenciais comuns, elementos esses que são
aqueles que integram a noção genérica de "contrato".
271 Trata-se do cham ado locus a deffinitione. Os antigos diziam que estas pers­
pectivas de enfoque das questões ("lu gares" ou "tópicos") eram "sed es argum entorum ". E efectivam ente assim é: a perspectiva (o lugar) donde ob­
servam os um a questão fornece-nos argum entos para a resolverm os - é,
portanto, um "dep ósito" de argum entos, alguns dos quais podem servir
para os fins dialécticos em vista. N o nosso caso, o fim em vista - unificação
e sistem atização do direito - pode ser auxiliado, com o acabam os de ver no
texto, considerando os institutos a partir da sua definição.
272U m outro processo dialéctico adequado a revelar a relação lógica entre os vári­
os institutos era a distinção ou divisão. Se a definição consistia em procurar inte­
grar o instituto no género a que, com outros, pertencia, a divisão considera-o
com o um género e tenta individualizar as espécies distintas que o compõem.
Assim, pega na noção de contrato e distingue contratos consensuais e formais,
unilaterais e bilaterais, etc. O processo da divisão, que contribui - tanto como
o da definição - para um enquadramento lógico dos institutos jurídicos, teve
um enorme prestígio no pensamento jurídico desta época, a ponto de se vir a
afirmar que "qui bene distiguit, dene docet" (quem bem distingue, bem ensina);
a este brocardo vir-se-á a opor, numa época em que estes processos dialécticos
já não se justificam, o princípio de que “ ubi lex non distinguit nec nos distinguere
debemus" (onde a lei não distingue, também nós não devemos distinguir).
238
António Manuel Hespanl
Vimos a grande importância que a definição podia ter r
sistematização do sistema jurídico; mas nem sempre este pr
cesso era suficiente para uma tarefa tão árdua. Muitas vezes, e
preciso procurar outras perspectivas dos institutos sob as qua
se pudesse levar a cabo ligações que o ponto de vista da defir
ção não permitia. Assim, por exemplo, a perspectiva das caus
do instituto. Sabe-se como Aristóteles distinguia entre cau
material (ou substância), causa form al (ou existência), causa efi>
ente (ou elemento genético) e causa final (ou finalidade). Uma v
que a causa material era equiparada ao genus e a causa forma
differentia, as únicas perspectivas novas eram as das causas e
ciente e final. Efectivamente, ainda que não fosse possível rei
cionar os institutos do ponto de vista da sua essência (manife
tada através da definição), talvez o fosse através dos factores qi
lhes deram origem (causa eficiente) ou das suas finalidades (ca
sa final). Assim surgiu, por exemplo, a noção de "declaração i
vontade", causa eficiente de todos os negócios jurídicos; ou c
"interesse", como causa final da regulação jurídica.
Ainda uma outra perspectiva que contribui para o sur£
de concatenações lógicas entre os institutos é a sua simples coi
paração. Claro que muitas ligações entre as figuras jurídicas o
tidas por via da comparação seriam possíveis por qualquer di
dois processos dialécticos anteriores .273 Mas, muitas vezes,
comparação encontrava relações que não eram patenteadas pe
locus a deffinitione ou pelo locus a causis. Além disso a compar
ção permitia a utilização dos argumentos "por paridade de r
zão" (a pari),274 "por maioria da razão" (a fortiori ),275 e do racioc
273 Isto é, muitas semelhanças entre os institutos proviriam de eles pertenc
rem ao m esm o género, de terem idênticas finalidades (a m esm a causa
nal) ou a m esm a génese (a m esm a causa eficiente).
274 "Sendo semelhante os institutos A e B, se em A se verifica certa consequê
cia jurídica, e'm B deve verificar-se igualm ente".
275 "Sendo a característica "X " mais nítida no instituto A do que no B e anda
do certa consequência jurídica verificada em B ligada a tal característica ")<
ela deve verificar-se em A por maioria de razão ".
Cultura Jurídica Europeia
239
nio por analogia, utilização essa que é um importante factor de
unificação da regulamentação jurídica e de saneamento das con­
tradições normativas dentro de uma mesma ordem jurídica .276
'Finalmente, um a outra perspectiva útil para os fins tidos
em vista pelo saber jurídico era aquela que consistia em encarar
os institutos e figuras jurídicas através daquilo que os autores
tinham dito deles - é a perspectiva das autoridades (locus ab auctoritate) . Num saber em que a verdade era apenas provável, 277 a
opinião do maior número ou dos melhores era a que, pelo me­
nos estatisticamente, tinha mais probabilidades de ser a certa.
Então, os juristas, na sua tarefa de actualização e de sistemati­
zação do direito, deixam de partir dos próprios textos jurídicos
e baseiam-se nos comentários destes textos feitos pelos juristas
anteriores mais comummente aceites ou de maior autoridade.
276Outra forma próxim a de proceder à uniform ização norm ativa é a utiliza­
ção do argumentum ab exemplis : trata-se de aplicar ao instituto considerado
a regulam entação aplicável a um outro (cxemplum) que com ele m antenha
um a certa sem elhança, em bora não essencial (e por isso se distinguia do
expediente de com paração, em que a sem elhança entre os casos era essen­
cial) - "o exem plo [...] não tom a em consideração nenhum a característica
bem elaborada (exquisita) da coisa considerada [...] ao passo que o argum en­
to por analogia (a simili) observa profundam ente as características da coi­
sa", O ttom anno, século XVI). A utilização do "lu g a r do exem p lo" im plica­
va a investigação de casos paralelos, nom eadam ente de precedentes judici­
ais. A ponto de, com o tempo, tais precedentes com eçarem a ser aceites acrítica e passivam ente, sendo necessário reagir contra tal utilização do exem ­
plo: "non exemplis sed legis est judicandum” (não se deve julgar a partir de
exem plos, m as da lei).
277 A noção de "probabilidade" subjacente é a de um a probabilidade estatísti­
ca (id quod plerumque accidit, aquilo que acontece o mais das vezes). Ou seja,
a solução é tanto mais digna de crédito quanto mais vezes se m ostra ad e­
quada ou é definida pelos peritos. Este conceito é de origem aristotélica
(Aristóteles, Tópicos, 1 ,1). N ão foi a única concepção de probabilidade em
vigor na Idade M édia. Até cerca de 1250 vigorou a ideia de que a probabi­
lidade de correcção de um a opinião não aum entava pelo facto de ela ter
muitos sequazes. P ara esta última concepção não tinha grande sentido a
busca de um a opinio communis, pelo que, efectivam ente, a invocação desta
só irá ter lugar depois do século XIII. Sobre isto, Giuliani, 1 9 6 1 ,1 1 5 e M ortari, 1 9 5 4 ,4 6 1 ss.
240
António M anuel H espanha
O recurso ao argumento da autoridade é muito caracterís­
tico do pensamento jurídico medieval. Teoricamente, o valor
deste argumento baseava-se na presunção de que o autor invo­
cado era um profundo conhecedor daquela matéria (ãoctor est
peritus [o doutor é um perito]). Todavia, o seu parecer não era
forçoso, só valendo até ser infirmado por um outro de valor su­
perior .278 Assim, enquanto não intervierem factores de decadên­
cia, a invocação do argumento de autoridade e da opinio communis áoctorum [opinião comum dos doutores] não significa, como
muitos pensam, um dogmatismo estiolante para a ciência jurí­
dica. Antes sugeria uma atitude mental aberta em que, por não
se reconhecerem verdades definitivas, importava, a todo o mo­
mento, confrontar os pontos de vista dos vários autores. Tornase, portanto, claro como a invocação do argumento ab auctoritate se liga à natureza dialéctica, não definitiva, das soluções jurí­
dicas. Uma vez que estas admitiam sempre discussão e eram
apenas prováveis, importava reforçar essa probabilidade mos­
trando que a solução proposta era admitida pela maior parte dos
autores. Todavia essa probabilidade nunca se tornava numa
certeza, ainda que se invocasse milhares de opiniões a corroborá-la ("disseram-no os Doutores da Glosa, e o mesmo Rodoffredus, e por muitos que fossem, ainda que mil o dissessem, todos
errariam ", Cino de Pistóia, século XIV).
Descrito o fundamento teórico do locus ab auctoritate, impor­
ta averiguar qual a função que ele desempenhava na ciência ju­
rídica medieval. A principal função da invocação da communis
opinio e do argumento de autoridade era a de introduzir alguma
disciplina na interpretação do direito.
De facto, já vimos a amplitude dos processos lógico-dialécticos postos ao dispor dos juristas para a sua tarefa de actuali­
zação e sistematização do direito. Ora, um uso desordenado de
278 "D epois de relem brar os escritos de muitos, ensinei a minha doutrina", Cino
de Pistóia, século XIV; "d a au toridad e dos doutores deriva um a presun­
ção de verdade porque se presum e que o doutor é probo e perito", Coratius, século XVI.
Cultura Jurídica Europeia
241
tal instrumental podia ser catastrófico. Dada a liberdade interpretativa quase total de que os juristas dispunham, se não se
impusesse alguma disciplina ao seu esforço teórico, em vez de
uma obra de sistematização do direito, a doutrina levaria a cabo
a sua pulverização ainda maior. Pois cada autor perfilharia uma
interpretação pessoal dos textos. A invocação das autoridades
tinha, precisamente, por função canalizar a actividade teórica
dos jurisconsultos naqueles sentidos socialmente mais conveni­
entes e que, por o serem, tinham sido os tomados pelos juristas
mais influentes (i.e., aqueles que melhor tinham sentido as ne­
cessidades da época). Através desta invocação os juristas eram
convidados a não se afastarem facilmente das soluções já admi­
tidas e provadas ,279 embora as devessem aceitar criticamente .280
279"A quilo que a Glosa determ inar deve ser mantido, pois nas decisões das glo­
sas raram ente se encontram erros"; "a o aconselhar sobre os casos o melhor
é seguir a glosa" (Baldo, séculos XIII-XIV). Cf. Ermini, 1 9 4 6 ,1 8 6 e Mortari,
1954, 462. Raffaele Fulgusius (início do século XIV) escrevia: "C ino dizia
que a Glosa era de tem er pela condenável idolatria que lhe era tributada
pelos ad vogados, significando que, assim com o os antigos ad oravam os
ídolos em vez de Deus, assim os advogados adoram os glosadores em vez
dos evangelistas. Ora eu antes quero ter por mim o glosador do que o tex­
to; é que, se alego o texto, dizem os advogados da outra parte e m esm o os
juizes-. Julgas tu que a Glosa não viu esse texto com o tu e que o entendeu
tão bem com o tu?" (citado por Ermini, 1946).
280Só assim , gozando dum a autoridade lim itada, é que o argum ento da au­
toridade desem p enh ava a sua função. De facto, sendo as exigências da
vida m u táveis, um apego e xag erad o às au toridad es tradicionais daria
origem a um a doutrina disciplinada, é certo, m as divorciada das aspira­
ções n orm ativas do seu tem po. Só um a contínua ren ovação da opinio communis garan tiria um a direcção da doutrina consoante com a vida. Como
verem os mais tarde, um dos m ais frequentes m otivos de critica do mos
italicus tardio foi, precisam ente, a sua aceitação passiva dos grandes ju­
ristas de quatrocentos (nom eadam ente de Bártolo) que, tendo reflectido
nas interpretações que propunham os anseios norm ativos da sua época,
estavam com pletam ente ultrapassados em relação às exigências n orm a­
tivas d os séculos XVI e XVII; disciplinada por estes m estres, a doutrina
logo perdeu o contacto com a vida.
242
António M anuel Hesf
5.6.2.4. Conclusão
Vimos, nos números anteriores, quais os expedientes 1
zados pelos juristas da Baixa Idade Média para levar a ca
actualização e sistematização do direito então em vigor. P
podemos avaliar como, sob a capa de uma tarefa interpreta
era de facto realizada uma obra de libertação em relação ac
to. Primeiro, opondo um alegado "espírito" da lei (que, ma:
que na mente do legislador, estava na dos intérpretes) à s u e
tra". Depois, dissolvendo cada preceito num contexto norr
vo, e procurando os princípios informadores desse contexto
mata). Depois ainda, referindo os vários institutos entre si e
curando concatená-los logicamente, através das noções d(
nero, espécie e diferença, de causa eficiente e causa final, r(
rendo - sempre que não fosse possível encontrar semelha
essenciais - às noções menos rigorosas de analogia, lugar p
leio, exemplo. E, quando o texto, de todo em todo, não cor
tisse qualquer manipulação, alicerçando a tarefa de renove
não já sobre ele, mas sobre a anterior actividade doutrinal
nio communis) de que tivesse sido objecto e que, compreens
mente, era mais fácil de orientar num sentido "m oderno".
Este método de discorrer sobre o direito vem descritc
Gribaldo de Mopha (1541) na seguinte mnemónica: 1) Prae
to, 2) scindo, 3) summo, 4) casumque figuro, 5) perlego, 6) do ca\
7) connoto, 8 ) et obiicio. Nela se contém todas as operações s
riormente descritas: 1) Introdução à análise do texto consic
do, primeira interpretação literal; 2 ) divisão do texto nas ;
partes lógicas, com a definição de cada uma das figuras aí i
ridas e sua concatenação lógica, através das noções dialéc:
de género, espécie, etc.; 3) com base nesta ordenação lógice
elaboração sistemática do texto; 4) enunciação de casos pai
los, de exemplos, de precedentes judiciais; 5) leitura "corr
ta" do texto, i.e., leitura do texto à luz do contexto lógico e i;
tucional construído nos estádios anteriores; 6 ) indicação dz
tureza do instituto (causa material), das suas características
tintivas (causa formal), da sua razão de ser (causa eficiente) e
Cultura ] uri dica Europeia
243
suas finalidades (causa final); 7) ulteriores observações, indica­
ção de regras gerais (brocardos) e de opiniões de juristas céle­
bres (dieta); 8 ) objecções à interpretação proposta, denotando c
carácter dialéctico das opiniões sobre problemas jurídicos, e ré­
plicas, com larga utilização do instrumental da dialéctica aris
totélico-escolástica .281
Através destes processos - que constituem ainda hoje um;
componente importante do estofo do discurso jurídico 282 - os Co
mentadores levam a cabo uma obra de construção dogm átic
que permanece de pé, sem grandes alterações, até ao nosso tem
po. Ainda hoje, apesar de um crescente movimento de reacçãi
contra a dogmática "escolástico-pandectísta", se pode dizer qu
ela é utilizada pela esmagadora maioria dos civilistas e, mesme
dos cultores de outros ramos do direito.
281 C alasso, 1954, 594 e Viehweg, 1953 (trad. italiana, 81). Confronte-se com c
m étodo descrito por Odofredo (cf., supra, 148).
282 Os juristas de hoje ainda utilizam - mas já m aquinalm ente e, por vezes, sen
a consciência da sua historicidade - o aparelho lógico e conceituai forjade
pelos C om entadores. Quer os argum entos, quer os conceitos e princípio:
gerais (dogm as), quer o m odo de os extrair apresentam , na verdade, um;
im pressionante continuidade.
6. A CRISE DO SÉCULO XVI E AS ORIENTAÇÕES
METODOLÓGICAS SUBSEQUENTES
No século XVI, o advento de uma nova realidade normativa,
bem como o desenvolvimento interno do sistema do saber ju ríd i­
co, vêm provocar uma grande crise na doutrina europeia do
direito.
6.1 . Uma nova realidade normativa
Como antes dissemos, o século XIV, a que corresponde a
actividade teórica dos Comentadores, é a altura em que os iura
propria são plenamente integrados no ius commune romano-justinianeu e em que o saber jurídico procura reduzir este cúmulo
a uma unidade. Todavia, a evolução social e o progresso do
movimento de centralização do poder político acaba por modi­
ficar o equilíbrio do sistema das fontes de direito, abrindo para
uma aberta supremacia do direito reinícola ou citadino (que,
passa a ser o verdadeiro direito comum) sobre o ius commune
elaborado pelos juristas do século XIV . 283
283Recapitulando, lem bremos que se podem individualizar três fases no de­
senvolvim ento do regim e das fontes de direito na Europa medieval e m o­
derna. A prim eira corresponde aos séculos XII e XIII e é caracterizada pelo
predomínio do direito rom ano (e canónico) sobre todas as outras fontes con­
correntes cuja validade só é adm itida desde que não estejam em contraste
com a norm a de direito com um . A segunda fase estende-se do século XIV
até ao fim do século XVII, nela se notando a afirmação dos iura própria como
fonte prim ária dos ordenam entos particulares, cujo valor se equilibra com
o direito com um . A terceira, por fim, m arca a independência completa do
direito dos reinos que se tom a a única fonte do direito e relega o direito
comum para a posição de direito subsidiário. Cf. M ortari, 1958, 369 e Calasso, 1954,125-126.
246
António Manuel Hespai
Isto acontece, antes de mais, naqueles ramos em qu
direito romano não podia trazer grande contributo (dad
maior evolução do estilo de vida) - como o direito públicc
direito crim inal e o direito comercial. Se, no prim eiro, air
foi possível encontrar algum paralelo entre a organização
poder do Baixo Império romano (séculos IV-V] - contida j
três últimos livros do Código de Justiniano (desde muito ce
estudados pela ciência jurídica medieval, sob a designação
Tres libri - e a dos estados italianos, nomeadam ente a do i
no normando-siciliano de Frederico II, o mesmo não acor
ceu no direito criminal, matéria em que a compilação justi
aneia não podia oferecer grande coisa 284 e, principalmente,
direito comercial, filho de exigências sociais novíssimas
propósito do qual já Bártolo dizia: "sabe-se como nos tril
nais dos m ercadores se deve ju lg ar segundo a equida
omitidas as solenidades do direito [romano-justinianeu, i
tenda- se ] " . 285
Mas o abandono dos princípios da doutrina romano-ci
lística nestes domínios particulares é o reflexo de uma subn
são mais vasta do direito com um de base romano-canón
(corrigido, é certo, pela actividade modernizadora dos Comi
tadores) aos novos direitos nacionais, cuja codificação cor
ça, a partir do séc. XV, a estar em marcha, e que traduzia,
campo jurídico - como já se disse - o fenómeno da centrali
ção do poder real.
Em França, a redacção dos costumes é ordenada suce;
vãmente por Carlos VII (1454), Luís XI (1481) e Henrique
(1587); em Espanha, uma codificação dos costumes, ordena
por Isabel a Católica (as Ordenanzas Reales de Castela), aparece i
2,14Calasso, 1965, 451.
285Calasso, 1965, 455. Já vimos (supra, 5 .3 . 8.2) com o, em Inglaterra, é prec
mente na C ourt of Adm iralty que o equidade ganha mais cedo um grai
relevo.
Cultura 3urídica Europeia
247
1484, enquanto a codificaçao da legislaçao real é realizada em
1567.
Nos Países Baixos, a recolha escrita do direito local é em­
preendida sob Carlos V (1531) e, na Bélgica, com o Édit Perpétuel
(1611).
Na Alemanha, o duque Guilherme IV da Baviera leva a
cabo a codificação das principais fontes normais do direito bá­
varo (Reformacion, 1518), ao mesmo tempo que unifica o proces­
so (Gerischtsordnung, 1520) e reúne a legislação ducal em maté­
ria administrativa e económica (Büch der gemeinen Landpot-Landsordnung, 1520).
Em Portugal, por fim , 286 a compilação da legislação é reali­
zada em 1446-1447 (Ordenações Afonsinas), retomada em 15121514 (OrdenaçõesManuelinas) e em 1603 (Ordenações Filipinas). Ao
passo que os forais são objecto de uma reforma a partir de 1497.287
E certo que a novidade de muitas destas com pilações é
muito problemática.
Por um lado, até os finais do séc. XVII, elas não represen­
tam uma intenção de centralização do poder monárquico, ino­
vando o direito por meio da lei régia, mas antes um desejo de
corresponder aos pedidos dos povos de, pela redacção escrita,
se tornar mais certo o direito consuetudinário tradicional.288 Nes­
te sentido, este movimento de promoção da legislação real não
significa ocaso do pluralismo medieval, que apenas ocorrerá,
286Sobre o m ovim ento da codificação dos direitos consuetudinários e real, v.
Gilissen, 1988, 448 ss. e Vanderlinden, 1967, 22 ss., onde se pode consultar
um cóm odo diagram a do m ovim ento da codificação na Europa. As Orde­
nações portuguesas estão, porém , inexplicavelmente (pois trata-se dum a das
prim eiras m anifestações da codificação do direito), ausentes.
287Cf. H espanha, 2001q.
288V., para Portugal, o meu cit. artigo sobre a reform a dos forais (H espanha,
2002q), em que todas as garantias foram dadas de respeito pelos direitos
tradicionais dos concelhos. Para a Flandres, a m esm a é a conclusão do úl­
timo estudo de conjunto do Edito perpétuo, de 1611 que, nos seus prim eiros
artigos, m anda registar e hom ologar os costum es locais (cf. M artyn, 2000),
nom eadam ente 1.4 e II.1. P ara a França, C osandey, 2002, 52 ss..
248
António Manuel Hespanha
muito mais tarde, quando a lei reclamar o monopólio, ou uma
eminência absoluta .289
Para além disso, muitas destas compilações estavam for­
temente repassadas de princípios e instituições de direito co­
mum .290 291
Em todo o caso. Importa salientar que, daqui em diante, elas
vão relegando (pelo menos na teoria) o direito comum para o
plano de direito subsidiário.
289Esta questão - que é um a questão central na com preensão da "constituição
política das m onarquias m odernas - é longa e muito com petentem ente dis­
cutida em C osandey, 2002, maxime, 52-82. A conclusão de que é difícil falar
de um controle judicial da legislação do reino, quanto à sua conform idade
com a con stituição da m onarquia (sobre o conceito de constituição nas
M onarquias m odernas, v., para além destes autores, H espanha, 2001c) parece-m e incorrecta, apesar de os autores apresentarem (desvalorizando-o
com certa ligeireza) o argum ento decisivo: "A questão que sustenta estas
novas in terpretações [sobre a existência de um a constituição de Antigo
Regime] é a do controle da constitucionalizasse, tão essencial na reflexão
jurídica de hoje: "A análise do com portam ento dos tribunais suprem os no
séc. XVIII atesta as virtualidade da função de juiz constitucional no Esta­
do. A extensão do controle, nom eadam ente no terreno da oportunidade,
pode levar o juiz a ocu par uma grande parte do espaço decisional". Eis um
risco "bem conhecido dos constitucionalistas contem porâneos" e cuja acei­
tação desem boca num a "con cep ção do direito natural com o direito positi­
v o "" (C osandey, 2002, 73). E concluem - um pouco superficialmente - "E
difícil aplicar ao Antigo Regime m onárquico estas finezas do pensamento
jurídico de hoje, valendo mais, sem dívida, continuar a pensar que absolu­
tismo e monarquia constitucional continuam a ser duas noções antagóni­
cas e inconciliáveis" (ib.). Ora a verd ad e é que o controle judicial da legis­
lação - que, de facto, existia no Antigo Regime, para mais dispersa por qual­
quer tribunal - atenua-se justam ente na m onarquia constitucional (carac­
terizada ou pelo prim ado do parlam ento ou pelo princípio monárquico e
só renasce depois da II Guerra M undial (excepção feita aos EU A , onde foi
um traço muito mais perm anente do constitucionalism o.
290Saber até que ponto a codificação dos direitos locais utilizou a contribuição
rom anística é um assunto que não está definitivamente esclarecido, v. Coing, 1 9 8 5 ,1 5 -1 6 .
291 E m relação às Ordenações, só um a cuidada edição crítica - que constituiria
um a útil tarefa - perm itiria destrinçar as várias influências aí detectáveis.
Algum as indicações podem colher-se em Silva, 1780.
Cultura Jurídica Europeia
249
Esta mudança da realidade normativa não pode deixar de
influir no modo de ser do saber jurídico. Pode-se mesmo dizer
que a substituição do tradicional objecto da scientia iuris pelo
moderno a lançou numa grave crise de que só se irá recompor
no século XVIII.
O que se compreende. Tendo ordenado toda a sua tarefa
nos quadros de uma interpretação dos textos romanísticos, con­
siderados insubstituíveis, o edifício do saber jurídico dos comen­
tadores não podia deixar de ruir no momento em que os alicer­
ces romano-justinianeus sobre que fora construído fossem aba­
lados. Todo aquele esforço de subtil interpretação dos textos,
necessário à modernização do direito romano, deixava de ter
sentido em relação às disposições, elas mesmas já modernas, dos
novos direitos próprios. Todo o afirmado (se bem que, na práti­
ca interpretativa, não actuado) respeito pelo direito romano se
tomava absurdo quando o direito efectivamente vigente se dis­
tanciava, progressivamente, dos textos do Corpus Iuris.
Perante isto, tríplice foi a orientação da doutrina .292
Segundo uma corrente (aquela que vem a ser conhecida sob
a designação de mos gallicus ou Escola culta, humanista ou elegan­
te, cf., infra, 6.3.1.) passa-se a encarar o direito romano-justinianeu com um interesse apenas historico-filológico, negando, im­
plícita ou explicitamente, o seu carácter de direito vigente, ao
mesmo tempo que se intenta libertá-lo de toda a ganga de su­
cessivas interpretações actualizantes, reduzindo-o à sua pure­
za clássica.
Outra corrente, vivaz naqueles domínios e naqueles países
em que as realidades normativas nacionais eram excessivamente
vivas para serem escamoteadas pelo saber jurídico tradicional,
o pensamento jurídico dedicou-se a uma inserção dessas reali­
dades nos quadros conceituais dos Comentadores, utilizados até
onde eles fossem adequados à nova matéria e supridos, no res­
tante, com figuras teóricas novas. E o usus modernus Panãectarum
292Sistematização sem elhante, em Silva, 1964, 55 e 59.
250
António Manuel Hespai
(uso moderno das Pandectas [= Digesto]). Corrente que reft
diu (pondo-o de acordo com os novos dados normativos) e cc
pletou (desenvolvendo os princípios que ele levava implícit
o sistema de direito construído pelos Comentadores.
Se o humanismo jurídico vigorou, especialmente em Fr;
ça e na Holanda, o usus modernus Pandectarum correspond
uma orientação predominantemente alemã. Ela tem origem
nítida desvalorização do direito romano consequente à quel
da ideia do Império e à desagregação do próprio Império A
mão após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Estes factos r
podem, na realidade, deixar de ter influência sobre o prestíj
do direito, cuja vigência teoricamente se fundava na contin
dade existente entre o Império Romano e o Alemão. Foi H
mann Conring (1606-81) quem, pela primeira vez (em 1643),
rou as consequências destes factos e fez a crítica da ideia de
cepção automática e global do direito romano na Alemanha |
infra, 6.3.2.).
Por fim, nos domínios da civilística e, principalmente, i
queles países em que, como nas Penínsulas Itálica e Ibérica e
sul de França, o direito civil era, quase exclusivamente, de bí
romanista, é mantido e desenvolvido o saber jurídico dos C
mentadores (ou, numa grande parte dos casos, este é manti
sem desenvolvimento) continuando-se a fazer girar, agora já (
vão (como veremos), o seu instrumental científico. É o "Bar
lismo tardio" (ou "praxística") que, no sul-ocidente da Europa
se assenhoreia da doutrina civilística (com tendência a expe
dir-se a toda a actividade jurídico-doutrinal) até ao século XV
(cf., infra, 6.5.).
293Tam bém em Inglaterra, a autoridade dos juristas italianos perm aneceu
m uito tarde, sobretudo em virtude da recepção que deles fizera Bract
sobretudo na primeira parte do seu T ra ctatu s de leg ibu s e t co n su etu d in es i
gliae-, cf. Wijffels, 1992. Mas a verdadeira rom anização do sistema expos
vo do direito inglês só se dá, de facto e com grande impacto, com os Cc
m en ta ries on the law s o f E n g lan d , de W illiam Blacstone (1765-1769).
Cultura Jurídica Europeia
251
6.2. O d e s e n v o l v i m e n t o in t e r n o d o s i s t e m a d o s a b e r j u r í d i c o
Mas, como dissemos de inicio, não foram só causas desta
ordem (institucionais-normativas) que provocaram a crise do
saber jurídico dos Comentadores.
Se a mutação do estilo da doutrina, a que nos vimos refe­
rindo, é, em parte, causada por uma profunda modificação na
natureza do seu objecto (a já referida substituição do direito ro­
mano pelos direitos nacionais no quadro das fontes), ela não
pode, por outro lado, ser separada de um factor de ordem epistemológica - o desenvolvimento da própria lógica interna do sis­
tema discursivo do direito.294
Efectivamente, o saber jurídico dos Comentadores tinha
posto em movimento uma lógica de unificação interna do orde­
namento jurídico, lógica essa que se ia realizando com o recur­
so à dialéctica aristotélico-escolástica. Já antes realçamos, tam­
bém, que a complicação dos meios utilizados está em correspon­
dência com a dificuldade do trabalho proposto.
Chegado o século XVI, tinha-se atingido o fim do princí­
pio. Através dos vários processos antes referidos, os grandes
princípios e a estrutura dogmática dos vários sectores do direi­
to estavam encontrados, o mesmo se podendo dizer dos princí­
pios (axiomas) informadores de cada instituto,295 do significado
técnico-jurídico das palavras (sigmficntio verbo rum ),296etc. Corne-
294Ou, numa terminologia mais m oderna, o desenvolvim ento da sua e s tra té­
g ia . De facto, em cada mom ento da sua história, as disciplinas cientificas
são orientadas por um a intenção (ou estratégia) geral - aquilo que nós cha­
m am os "teorias" ou "tem as" - que implica um certo sen tid o de evolução
do seu discurso (cf., sobre este conceito, Foucault, 1969, 85 ss.). O sentido
(ou estratégia) do saber jurídico da Baixa Idade Média era, já o vim os, o da
construção da co erên cia in tern a ou "sistem aticíd ad e" do direito.
295De que com eçam , agora, a ap arecer as colecções: em Portugal, das prim ei­
ras são as de Agostinho Barbosa, D e a x io m alib u s. D e sig n ific a tio v erboru m .
D e locis co m m u n ibu s (ed. 1699) e de Simão Vaz Barbosa, A x io m a la et loca com m u n ia (ed. 1686).
^ S u rg in d o , portanto, os primeiros dicionários jurídicos, sob o modelo daquele
esboçado no Digesto (D., 5 0 ,1 6 ).
252
António Manuel Hespanha
çara, portanto, a ser possível passar ao imediato degrau da tare­
fa da unificação científica do direito - a construção de "sistemas"
jurídicos gerais, estruturados a -partir dos princípios obtidos. Se os
Comentadores os tinham obtido através de uma paciente obra
de análise de textos isolados,297toma-se agora viável o movimen­
to de síntese, pelo qual todo o direito fosse reunido num siste­
ma teórico orgânico submetido a axiomas e regras. Ao modelo
do Digesto (compilação enciclopédica, mas caótica, de resolu­
ções de casos isolados) substitui-se o modelo das Instituías (tra­
tado de carácter sistemático).298
Assim, não é de admirar que tenham começado a aparecer
autores reclamando, ou realizando mesmo, obras deste tipo.299
Derrer escrevia (Jurisprudentiae Liber, 1540): "[...] o direito ainda
não foi descrito de uma forma devida. Isto é, de tal modo que
tudo seja posto no lugar próprio e natural, disposto sob a sua
ordem. Daí que não possa ser reproduzido por quem apenas seja
mediocremente versado nesta arte".300
Estabelecidos, assim, os axiomas fundamentais e arruma­
dos logicamente no seio de um sistema coerente e sintáctico, tudo
está pronto para fazer o sistema caminhar pelos seus próprios
meios, sem necessitar de apoio permanente dos textos da tradi­
ção romanística. Por outras palavras: neste estádio de elabora­
ção do "sistem a jurídico" já é possível utilizar os mecanismos do
raciocínio dedutivo, achando a solução jurídica conveniente, não
através de uma rebuscada "interpretação" dos textos romanísticos, mas através de uma especificação dos axiomas jurídicos
recém-formulados.
297Investigando, através dos processos lógico-dialécticos atrás referidos, os
géneros, as espécies, as parentelas conceituais, a hierarquia m útua, etc., de
cada instituto ou figura jurídica.
298Ou da perdida obra de Cícero (se é que algum a vez foi escrita) na qual ele
teria efectuado uma redacção ordenada (in artern) do ius ávile.
299Chansonette (Cantiuncula); no século XVI, H egendorff, D errer, U go Donnelo, Freigio, e, principalm ente, O ldendorp (Isagoge seu Elementaria Iuris
Naturalis [...], 1539), e Althussius (Dicaelogicae libri tres, totum et universum
ius [...], 1617-1618).
300Cf. M ortari, 1 9 5 8 ,3 8 4 .
Cultura Jurídica Europeia
253
Abre-se a época do direito natural racionalista, em que se acre­
dita que os princípios superiores do direito são um produto da
razão que, ao elaborá-los, revela uma ordem universal. Nós já
sabemos, porém, que tais princípios não são univérsais, nem
necessários, nem anteriores à actividade intelectual que os des­
cobre. Pelo contrário, eles correspondem a desígnios normati­
vos exigidos pelas condições sociais e institucionais de uma certa
época. O pensamento jurídico não se limitou a descobri-los mas
pô-los lá, laboriosamente, através de uma árdua tarefa de "inter­
pretação" das fontes romanísticas comandada por intenções
normativas próprias da época. Se eles, agora, parecem "natu­
rais", isso só mostra até que ponto a tarefa da sua construção ar­
tificial foi conseguida e adequada à mundividência da época.301
Atingida, portanto, esta fase de construção sistemática do
direito impunha-se uma remodelação dos instrumentos lógicoconceituais disponíveis no sentido da sua simplificação, pois as
subtilezas da ciência jurídica dos Comentadores, além de des­
necessárias, tornavam-se opressivas e incómodas. Por exemplo,
a sofisticação da argumentação que tinha sido necessária para
compatibilizar, sem destruir mutuamente, textos jurídicos con­
traditórios, mas de idêntica hierarquia (textos romanos, canóni­
cos ou estatutários) fazia agora com que o direito se tivesse tor­
nado numa selva de opiniões e de distinções especiosas, em que
toda a certeza e eficácia se diluíam. Nesta altura, começa a de­
senhar-se uma reacção muito forte contra o especiosismo do dis­
curso jurídico ("ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus" [onde a lei não distingue, nós também não devemos
distinguir]).
Agora que o trabalho para que tal instrumental tinha sido
mobilizado estava terminado e que o arsenal argumentative se
tinha tomado incómodo, era possível desmobilizá-lo e voltar aos
processos de discorrer simplificados e naturais. Isto faz com que,
num segundo aspecto, o discurso jurídico do século XVI tenha
301Sobre a época do "jusracionalism o", v. por todos, W ieacker, 1980, 279 ss.
254
António M anuel Hespai
proposto o repúdio da complicada dialéctica aristotélico-escolástic
a adopção de uma dialéctica jurídica simplificada, natural, próxi
do senso comum. Assim, um jurista alemão dos meados de Q
nhentos convidava os seus colegas, a abandonar as complicac
argumentações dialécticas dos bartolistas e a tratar os problen
de uma forma "popular" (populariter), ao alcance do povo ("a!
tenhamo-nos, na verdade, daquelas discussões que não estão r
usos e costumes da vida e dos povos, porque já Aristóteles í
vertiu seriamente que a estes não agradam tanto as sentença
interpretações que são subtis e argutas, quanto as simples e p
prias, as quais podem ser usadas na vida comum com maior f
quência", Elen, século XVII).302 É este o significado do novo
teresse dos juristas do século XVI pelas questões da lógica e
dialéctica, apoiando-se, especialmente nas obras da Nova lógi
de Pierre de La Ramée (Petrus Ramus).303
Do mesmo modo, à medida que a estabilização do sistei
conceituai ia progredindo e que as especiosas argumentações c
Comentadores iam sendo substituídas por outras que tolhic
mais a liberdade do intérprete, era possível prescindir do paj
disciplinador que a "opinio communis" até aí desempenhara.
Agora, a tarefa da Rechtsfindung [achamento da soluç
jurídica] era dirigida, com bastante segurança, pelo conjunto
axiomas, logicamente concatenados, do sistema jurídico. A pc
sib ilid a d e d e hesitação entre princípios contraditórios, tão c
mum no sistema ainda incompletamente construído dos Come
tadores, com a consequente falta de segurança no achamento
soluções jurídicas firmes, não se verifica agora, pois as regras
direito estão unificadas num sistema lógico-conceitual isento
contradição.
Deste modo, é possível ir pondo de parte a invocação ■
"opinio communis", substituindo-a na sua função disciplinad
ra, pelos critérios da "boa razão", /.e., da lógica interna do sis
ma jurídico.
302 Mortari, Dialettica e giurisprudenza [...], 310.
303Sobre este ponto, M ortari, 1958, 304.
Cultura Jurídica Europeia
255
6 .3 . A s e s c o l a s j u r í d i c a s t a r d o - m e d i e v a i s e m o d e r n a s
Já se esboçou o leque de orientações teóricas e metodoló­
gicas a que deu origem a crise do saber jurídico dos Comenta­
dores bem como o panorama das escolas daí decorrentes. Da­
mos agora uma descrição mais detalhada de cada uma delas.
6 .3 .1. Escola culta, humanista ou “mos gallicus iura docendi”
Sob esta designação304são agrupados os juristas que, no sé­
culo XVI e sobretudo em França - daí "mos gallicus (iura docen­
di)" [maneira francesa de ensinar o direito], por oposição a "mos
italicus (iura docendi)", o estilo de discurso e ensino jurídicos tra­
dicionais, dominantes em Itália -, se propõem reformar a meto­
dologia jurídica dos Comentadores no sentido de restaurar a
pureza dos textos jurídicos da Antiguidade.
Este movimento de renovação está ligado ao ambiente cul­
tural, filosófico, jurídico e social dos primórdios da Europa mo­
derna. No plano cultural, ele é tributário da paixão pela Anti­
guidade Clássica típica do Renascimento (séculos XV-XVI); o
que levava a uma crítica contundente da literatura jurídica tra­
dicional, estilisticamente impura e grosseira, filologicam ente
ingénua e ignorante do enquadramento histórico dos textos com
que lidava.
No plano filosófico, o humanismo jurídico arranca da opo­
sição entre a escolástica medieval, submissa ao valor das auto­
ridades mas igualmente atenta à realidade (neste sentido, rea­
lista) e o neoplatonismo renascentista, crente no poder livre e
ilimitado da razão e atraído pelas formas ideais puras. Daí os
seus traços principais: anti-tradicionalismo, crítica das autorida­
des, racionalismo, academicismo.
-vuSobre a Escola hum anista, para m aiores desenvolvim entos, v., por todos,
W ieacker, 1980, maxime, 87 ss e 179 ss. e bibliografia aí citada: Villey, 1968,
507 ss.; Cavanna, 1982,172-192; Silva, 1 9 9 1 ,3 2 9 ss. Para Portugal, Silva, 1964.
256
António Manuel Hespanha
No plano jurídico, a orientação humanista é facilitada pela
progressiva pujança dos direitos nacionais, que libertava o es­
tudo do direito romano dos objectivos práticos e o transforma­
va numa actividade de recorte cada vez mais antiquarista, histórico-literário e teórico.
Finalmente, no plano social, a crítica humanista ao discur­
so jurídico anterior e aos seus portadores, os juristas tradicionais,
constituía o eco erudito de uma generalizada antipatia social pela
figura do jurista letrado, pedante e hermético, cultivando um
estilo formalista e arrevesado, bem longe das possibilidades de
compreensão e de controle do homem comum.
A partir daqui, o humanismo jurídico vai propor várias
orientações.
a) Uma depuração histórico filológica dos textos jurídicos roma­
nos, que os libertasse, por um lado, da ganga das glosas
e comentários medievais, e, por outro, das próprias cor­
recções introduzidas nos textos clássicos dos compilado­
res justinianeus (interpolações," tribonianismos" [deTriboniano, o responsável pela organização do Digesto justinianeu]). Este programa pressupunha a combinação do
estudo jurídico com o estudo histórico (e filológico), como
forma de reencontrar o enquadramento original dos tex­
tos jurídicos romanos e, logo, o seu primitivo sentido.
Teve como resultado uma série de edições críticas dos
textos jurídicos, ainda hoje merecedoras de atenção (v.g.,
a edição do Código Teodosiano, por Jacob Godofredo; e a
do Corpus Iuris, por Dionísio Godofredo).
b) Uma tentativa de construção sistemática do direito, inspi­
rada filosoficamente no idealismo platónico e procuran­
do refazer uma lendária obra de Cícero, De iure civili in
artem redigendo, na qual ele teria exposto o direito roma­
no sob forma sistemática. Esta orientação tanto desem­
bocou numa crítica ao carácter atomista, não metódico e
analítico da saber jurídico dos Comentadores, como deu
origem a exposições metódicas do direito, quer romano,
quer mesmo nacional - como, v.g., as de Hugo Doneau
Cultura Jurídica Europeia
257
ou de Jean Domat (Les loix civiles dans leur ordre naturel,
1689 1705).305
-
c) Uma reforma do ensino jurídico, que atendesse, antes de
tudo, ao texto da lei (e não aos comentários que, sobre ele,
a doutrina tivesse bordado) e que procurasse formar o
espírito sintético e sistematizador (ou compendiário) dos
juristas; o que envolvia uma crítica ao pendor doutriná­
rio (não "textual") e analítico do ensino das universida­
des tradicionais.
d) Uma atenção nova a um direito natural de cunho racionalista e sistemático. Também os humanistas foram contagi­
ados pela tradição jusnaturalista romana. Também eles
proclamaram que o jurista culto e formado numa filoso­
fia "sólida" compreende que a "natureza da justiça não
é mudar segundo a vontade dos homens mas conformarse com a lei natural" (Jean Bodin), lei essa que se encon­
tra nos ditames da razão. No que eles apresentaram mai­
or originalidade foi enquanto críticos do direito romano
justinianeu, em nome de um pretendido direito romano
clássico. Esclareça-se, no entanto, que no fundo, não era
o direito romano clássico que os atraía. Era, isso sim, um
direito romano que respondesse às suas preocupações de
filósofos e de juristas do seu tempo. Isto é, um direito ro­
mano que fosse sistematizável e redutível a dois ou três prin­
cípios racionais adaptados à mundividência da época.206 E, se­
gundo eles criam, um direito deste tipo teria sido o di­
reito romano clássico deturpado e tornado caótico por
Justiniano e Triboniano. Sem esta corrupção, o direito
romano teria conservado o seu carácter axiomático. E,
quanto ao conteúdo, seria ainda redutível a meia dúzia
de princípios racionais, dos quais os humanistas desta­
cavam os de neminem laedere (não prejudicar ninguém) e
305De notar, em todo caso, que a elaboração destas obras teria sido impossível
sem o trabalho de sistem atização das anteriores escolas medievais.
306Com o teria sido feito por Cícero (v. supra).
258
Antórvio Manuel Hespa
de pacta sunt servanda (os pactos devem ser respeitadc
E foi assim que, no século XVI, se começou uma segi
da recriação do direito romano (a primeira fora a dos
mentadores), agora em moldes racionalistas.
Apesar de contarem com percursores italianos - sobretx
entre os cultores das disciplinas literárias (Policiano e Lour
ço Valia), mas também entre os juristas (Alciato, 1492-1550, c
ensinou em Bruges, mais tarde tomada no centro da escola
os principais nomes da Escola culta são franceses. Desde lo
Jacques Cujas (Cujacius, 1532-1590), professor em Toulou
Paris e Bruges, autor de uma monumental obra de estudo 1
tórico filológico e dogmático dos textos romanos; depois, Fr;
çois Hotman (1524-1590), autor do conhecido trabalho sobre
interpolações justinianeias (Antitribonianus, 1574) e teórico
anti-absolutismo (monarcómaco); Hugo Doneau (Donellus, 15
1559), jurista sistemático e dogmático; Duarenus; Brissoniu
outros.307
Com o desfecho das guerras religiosas e a perseguição c
protestantes huguenotes (confissão a que a maioria destes jui
tas aderiu)308em França, os humanistas franceses refugiam-se i
universidades holandesas e alemãs, dando origem aí a uma <
tra geração humanista, cuja acção se prolonga até ao séci
XVIII. Dela fazem parte nomes como os de Vinnius, Voet, N<
dt, além do célebre Huigh van Groot (1583-1645), famoso p
seu tratado sobre a guerra e a paz (De jure belli ac pacis libri t,
1625) considerado percursor da ciência do direito internado:
público e, em Portugal e Espanha, pela sua defesa do princí]
da liberdade dos mares na sua obra Mare liberum (1609), co
batida pelo português Serafim de Freitas, De justo império asii
co lusitanorum, 1625.
307 Entre eles, o português António Gouveia [Goveanus, m. 1566]).
308A opção religiosa dos hum anistas não deixou de influir na dificuldade
seu im pacto nos países da contra-reform a, com o Portugal.
Cultura Jurídica Europeia
259
6.3.2. Escola do “usus m odernus Pandectarum ”309
O humanismo jurídico, condicionado como estava por um
sistema de fontes de direito em que o direito romano tivesse
perdido a sua vigência prática, não se pôde implantar duradou­
ramente senão naquelas regiões da Europa em que o direito na­
cional era suficientemente rico e vivaz para regular a generali­
dade das questões. Isto aconteceu na parte norte da França
("pays du droit coutumier") e - por razões e em circunstâncias
algo diferentes - na Holanda. No resto da Europa, porém, a lon­
ga tradição romanística confiara ao direito romano e ao saber
jurídico tradicional a regulamentação de extensas zonas da vida
social, sobretudo no domínio do direito privado.
Aqui, portanto, o impacto da mensagem humanista não
pôde ser tão radical. Porém, ela contribui, mesmo assim, para
abalar a vigência indiscutida do direito romano e para - conju­
gada com o novo pathos das monarquias modernas - fortalecer
a vigência dos direitos nacionais.
Na Alemanha, que costuma ser considerada como o cen­
tro desta orientação, o usus modernus vem pôr em causa a vigên­
cia global e preferencial do direito romano, ao contestar o seu
fundamento teórico - a translatio imperii [transmissão do poder
imperial], ou seja, a ideia segundo a qual o direito romano vi­
goraria na Alemanha em virtude dos imperadores alemães se­
rem os sucessores dos imperadores romanos. Substituindo esta
ideia de uma "recepção teórica", os juristas alemães (antes de
todos, H. Conring, 1606-1618, em De originis germ anid, 1643) cri­
aram o conceito de "recepção prática", segundo o qual a recep­
ção se dera pontualmente, à medida que os príncipes e os tribu­
nais iam fazendo seus uns ou outros princípios e normas do di­
reito romano. Assim - como refere F. Wieacker -, o direito roma­
no só teria ganho vigência, "norma por norma, por força de uma
aplicação prática", pelo que se deveria "promover, para cada
■’"'’Sobre o "u su s m odernus", v., por todos, W ieacker, 1980, 225 ss. Para E spa­
nha, v., por último, Valiente, 1980, 298 ss.; para Portugal, v. adiante.
260
António M anuel H espanha
princípio, a comprovação histórica da sua recepção" e se "de­
via também admitir como possível a marginalização de princí­
pios já recebidos por costumes que os derrogassem".
As consequências do usus modemus foram diversas.
Em primeiro lugar, um interesse novo pela história jurídi­
ca nacional, dirigida pelo objectivo prático de determinar quais
os princípios romanísticos recebidos, mas que teve resultados
de âmbito muito mais vasto.
Em segundo lugar, uma grande atenção, no plano prático
e no plano da construção teórica, pelo direito nacional, que agora
passa a ser objecto, tal como o direito romano, de tratamento
dogmático. Daí que a legislação nacional, os estilos e praxes de
julgar (donde a designação de praxística, que se aplica a esta es­
cola) e mesmo os costumes e estatutos locais, passem a ser con­
siderados pelos juristas nos momentos de construção teórica.
Em terceiro lugar, uma maior adequação do ensino jurídi­
co às realidades do direito nacional. Se a tradição universitária
dificultou que estas realidades fossem objecto de ensino nas ca­
deiras "ordinárias", ela já não conseguiu impedir que, sobretu­
do em muitas das universidades da Europa central, fossem mi­
nistrados "lições privadas" e "catedrilhas" de direito nacional.
Dentre os juristas do usus modernus é costume salientar o
nome dos alemães B. Carpzov (1595-1666), G. A. Struve (16191692), S. Stryk (1640-1710), G.-W. Heineccius (1618-1741), J.-H.
Bõhmer (1647-1749), A. Leyser (1683-1752).
Esta orientação segundo a qual o direito romano deve ser
compatibilizado com os novos direitos comuns dos reinos não
é exclusiva da Alemanha. Também nas grandes monarquias do
sul e ocidente europeu, bem como nos Estados italianos, é ago­
ra bem viva a ideia de que o direito da coroa, seja ele a legisla­
ção real, seja o conjunto de decisões dos altos tribunais palati­
nos, é o novo "direito comum" e que o direito romano só tem
vigência como direito recebido pelo príncipe. "A s próprias leis
comuns dos romanos" - escreve, no século XVII, um famoso ju­
rista italiano, o cardeal Giambattista de Luca - "que dizemos
comuns, de facto deviam chamar-se leis particulares de qual-
Cultura Jurídica Europeia
261
quer principado independente, atendendo a que a sua neces­
sária observância não nasce apenas do poder de um legislador
que seja comum a todos, como acontecia no tempo do antigo
império romano, mas antes do poder distinto de cada prínci­
pe, o qual o quis receber e permite que se observe no seu prin­
cipado, com as limitações que lhe pareçam" (II dottore vulgare,
proemio, IV).
Também em Portugal, como nos restantes reinos da Espa­
nha, se sublinhava que as disposições do direito romano aqui
vigoravam "somente [...] pela boa razão em que são fundadas"
(iO rd.fil., III, 64).
Este direito reinícola - como então se dizia - manifestavase decerto em leis; mas manifestava-se cada vez mais nas deci­
sões dos grandes tribunais (nos seus "estilos", ou costumes de
julgar, e na sua "praxis", ou forma de aplicar o direito aos casos
concretos). Ao jurista "cidadão da Europa", que equaciona ques­
tões abstractas em face dos dados do direito comum europeu,
substitui-se o juiz dos tribunais da corte, que passa pelo crivo
da jurisprudência do reino (praxística) a doutrina do direito co­
mum (opinío communis doctorum).
Assim, por toda a Europa, as decisões dos grandes tribu­
nais passam a ter, a partir da segunda metade do século XVI,
uma enorme audiência na doutrina, que se dedica à sua compi­
lação e comentário. Por várias razões. Por um lado, os tribunais
são agora constituídos exclusivamente por letrados. Por outro
lado, porque os tribunais, como tribunais da corte ou "colate­
rais", estão revestidos da dignidade do rei. Finalmente, porque
a regra do precedente conduz a uma maior certeza do que o fun­
cionamento do critério da opinio communis. A prática forense tor­
na-se, assim, na intellectrix legum (na interpretadora das leis) e
os critérios de decisão contidos nas abundantes recolhas de de­
cisões jurisprudenciais (decisiones, aresta, practica) passam a cons­
tituir o "direito usado" ("ius quasi moribus constitutm" [o di­
reito como que instituído pelo costume] como diz o jurista por­
tuguês António da Gama).
262
António Manuel Hespanl
6.4. Ius com m une e com m on law
Apesar da leitura modernizadora que mais tarde ser fai
delas, a constituição do período da dinastia dos Lancaster (1391
1461) era dominada pelas ideias tradicionais de propriedade
de feudo, como centrais na limitação ao poder real ("ad regi
enim potestas omnium pertinent; ad singulos, proprietas", ao r
pertence a auotridade sobre tudo, aos particulares, a propried.
de", aforismo originalmente de Séneca, De beneficiis).
A recepção do direito romano, que se iniciara, como no re
to da Europa ocidental - no séc. XIII, ganha um novo ímpeto r
período renascentista dos Tudor (1485-1603), tanto mais que
valorização dos textos de direito romano ia em paralelo com
reaproximação aos textos religiosos originais do cristianism
proposta pela Reforma. Assim, o ensino do direito romano é ú
troduzido por Henrique VIII em Oxford e em Cambridge, tenc
os seus professores, como regii professores e membros dos tribi
nais em que o rei gozava de supremacia (prerrogative courts),'■
uma enorme influência. O mesmo não acontecia nos tribunais c
common law, que se encarregavam de formar o seu próprio pe
soai em estabelecimentos próprios, dirigidos por juizes, as Im
ofth e Courts. Nestas, dominava - por reacção corporativa, m<
também como defesa do "direito do reino" contra o direito "p.
pista" de Roma - o velho direito feudal de origem normand
Acresce que o common law constituía o fundamento e título de toc
a propriedade, comum ou feudal, pelo que a sua modificação í
tomava um factor de perturbação social e política muito grand
Neste sentido, o common law transformou-se numa espécie de d
reito constitucional, garantia dos direitos (nomeadamente da pr<
priedade) dos súbditos, tal como ficou expresso por Sir Edwai
Coke (1552-1634) no célebre Bobbam's Case (1610).311
310 Nom eadam ente, tribunais fiscais, tribunais da C âm ara Real, cf. Th. Pluc
nett, A concise history ofthe common law, ed. cit., Boston, Little, Brown an Ce
1 9 5 6 ,1 7 4 ss..
311 Sobre esta evolução, v. Th. Plucknett, A concise history [ ...] , cit..
Cultura ]urídica Europeia
A polémica entre common law e civil laxo - que }á era uma
questão com conotações religiosas, depois da Reforma anglica­
na, dadas as alegadas viculações dos romanistas aos canonistas
e ao Papado -, torna-se também, nas lutas civis do séc. XVII,
numa questão política, sendo a defesa do common law tomada a
peito pelos parlamentaristas e defendendo o partido realista (no­
meadamente durante a dinastia dos Stuart, 1603-1714) uma certa
renovação do direito inspiradaa no ius commune europeu, o que
- de facto - aconteceu no reinado de Carlos II, por vezes tam­
bém com carácter garantista, como é o caso do Habeas corpus Acat
(1679). No entanto, as suas medidas de maior alcance político
relacionavam-se com a sua pretensão de, ao abrigo da royal prerrogative, dispensar a aplicação de leis a casos particulares. Daí
que, alguns dos textos fundamentais do Bill ofrights (1689) se
relacionassem justam ente com esta relação entre o rei e a lei
("That the pretended power of suspending of laws, of execution of laws, by regall authority, without the consent of Parliament
is illegal", sess. 2, c. 2).
Este tom polémico das relações entre common law e ius com­
mune exprime-se numa abundante literatura contra os juristas
civilistas (que os anglicanos consideravam quer como agentes
do Papa, quer como inimigos das liberdades tradicionais ingle­
sas. Ainda nos meados do séc. XVIII, esta lenda negra da recep­
ção do direito romano (civil law) e, ao mesmo tempo, a glorifi­
cação do common law é muito evidente no épico e xenófobo modo
como Sir William Blackstone (1723-1780), o maior jurista da épo­
ca, autor de uns Commentaries on the laws o f England (17651769),312 descreve a luta dos reis e juizes ingleses para contrari­
ar a difusão da ao mesmo tempo lúdica e subversiva dedicação
dos "clérigos" e estudantes ociosos ao "direito municipal de
Roma", com prejuízo do "adm irável sistema jurídico inglês".
312 Sir W illiam Blackstone, Knt., Commentaries on the laws of England. In four
books. Notes Selected from the editions of Archbold, Christian, Coleridge
[etal.], Philadelphia, Published By George W . Childs, Ledger Building, Sixth
& C hestnut Sts., 1869.
264
António M anuel Hespanha
Vale a pena citar:
"As inovações normandas, continuaram ligadas ao uso do
direitoi comum. O rei Stephen publicou imediatamente uma pro­
clamação, proibindo o estudo do direito, então importado prin­
cipalmente de Itália, qual foi tratado pelos monges com uma peça
de coisa ímpia.; e, embora tenha podido impedir a introdução do
processo da civil law nos nossos tribunais de justiça, contudo não
impediu o clero de o ler e ensinar nos seus próprios mosteiros e
escolas "(1 ,19). "[... ] mas como o grande peso do ensino estava
ainda largamente do lado do clero, e como o common law já não
era ensinado, como anteriormente, em qualquer parte do reino,
deve ter sido sujeito a muitos ultrajes, e talvez se tivesse perdido,
sendo gradualmente suplantado pelo civil law (uma suspeita jus­
tificada se se atender às frequentes transcrições de Justinian que
se encontram em Bracton e Fleda), se não tivesse ocorrido um in­
cidente peculiar, qual se deu num momento muito crítico, contri­
buindo fortemente para a manutenção o common law. O inciden­
te a que me refiro foi a reforma do Court of Common Pleas, o gran­
de tribunal para questões sobre a propriedade, no sentido de ser
mantido num determinado lugar certo, de modo a que a sede da
justiça ordinária pudesse ser permanente e notória para toda a
nação [...]; com o que [os tribunais reais] têm sido mantidos des­
de então (exceptuadas algumas ausências necessárias nas épocas
de praga) no apenas no palácio de Westminster. Isto juntou os
professores de direito municipal [i.e., common law], que antes an­
davam dispersos pelo reino, dando-lhes a forma de um corpo
agregado, estabelecendo uma comunidade entre eles. Quem [...]
se entregasse completamente ao estudo das leis da terra, e não as
considerando mais como uma mera ciência subordinada para
divertimento de horas do lazer, logo pôde alcandorar aquelas leis
a esse nível de perfeição, que então alcançou de repente sob os
auspícios de nosso Justiniano inglês, o rei Eduardo I. Na sequên­
cia desta afortunada junção, os juristas do direito comum formam
naturalmente um tipo da colégio; e, sendo excluído de Oxford e
de Cambridge, tiveram que estabelecer uma nova . Fizeram-no
comprando a pouco e pouco várias casas (agora chamadas as Inns
o/tlie courts eof the Chancenj) entre acity de Westminster, lugar de
Zultura Jurídica Europeia
265
eunião dos tribunais reais, s a city de Londres; pela vantagem do
ácil acesso a uma e pela abundância de provisões na outra. Era
iqui que os exercícios se faziam, que as aulas eram dadas e que,
malmente, os graus em common law eram conferidos, tal como nas
xitras universidades o eram os de civil e canon law. Os graus eram
)s de barristers [...] correspondentes aos de bacharéis: a posição e
jrau de serjeant (servientem in legem) correspondiam ao de doutor.
\ coroa parece que cedo tomou sob a sua protecção estes nóveis
seminários de common law [_] (1,23). Contudo, as leis imperiais não
oram totalmente negligenciadas mesmo na nação inglesa. Um co­
nhecimento geral com suas decisões foi sempre considerado como
im apreciável trunfo de um cavalheiro; mantendo-se a moda, em
ispecial ultimamente, em transportar as esperanças crescentes desta
lha para as universidades estrangeiras, na Suiça, na Alemanha e
ia Holanda; as quais, embora infinitamente inferiores às nossas pró­
prios, têm sido olhadas como melhores berçários do direito civil,
)u (o que é quase o mesmo) das suas próprias leis municipais; ao
nesmo tempo, o peculiar conjunto do nosso admirável sistema de
iireito começou a ser descuidado e mesmo desconhecido, como se
osse uma mera profissão prática; embora construído em cima so­
pre as fundações as mais sadias, e aprovado pela experiência das
dades. Bem longe de mim está afastar o estudo do civil law, consilerado (aparte de alguma autoridade obrigatória) como uma re:olha da razão escrita. Ninguém está mais completamente persuaiido da excelência geral das suas regras, e da equidade usual de
luas decisões, nem mais convencido do seu uso, assim como do
)mamento que constitui para o académico, o sacerdote, o estadisa, e mesmo o advogado comum. Mas nós não devemos sobrecaregar a nossa veneração a ponto de sacrificar os nossos Alfredo e
iduardo aos manes de Teodósio e de Justiniano; nós não devemos
preferir o edicto do pretor, ou o rescripto do imperador romano,
los nossos próprios costumes imemoriais, ou às decisões de um par­
amento inglês; a menos que também preferíramos a despótica molarquia de Roma e de Bizâncio, para cujos meridianos os anterio-es (edito e rescripto) foram calculados, à constituição livre de Grã
Bretanha, à qual as fontes jurídicas ultimamente referidas são ade­
quadas a perpetuar" (I, p. 4. § 5).
266
António Manuel Hespanh,
Como característico do direito inglês fica, doravante:
• uma pronunciada supremacia da lei, qe explicará muitc
no futuro, quanto à resistência da constituição inglesa er
colocar limites à lei;313
• uma consciência aguda de que existe um direito não es
crito;314
• um rigor muito estrito dos meios disponíveis para obte
o reconhecimento judicial dos seus direitos - paradoxa
mente, muito semelhante, em certos aspectos, ao forme
lismo das legis actiones romanas -, a ideia de que, embor
o direito consista nos usos estabelecidos historicament
e diuturnamente recebidos, cabe aos tribunais a autor
dade de os explicitar, por meio de correntes jursidruder
ciais consequentes e constantes (precedentes);315
313 "Legislature, as w as before observed, is the greatest act of superiority th:
can be exercised by one being over another. W herefore it is exclusive to tf
very essence of a law, that it be m ade by the suprem e power. Sovereignl
and legislature are indeed convertible terms; one cannot subsist withoi
the other [... ] By the sovereign pow er, as w as before observed, is m eant tJr
making of laws, for w herever that pow er resides, all others m ust confori
to and be directed by it, w hatever appearance the outw ard form and at
ministration of the governm ent m ay put on. F o r it is a t any time in the 0[
tion of the legislature to alter that form and adm inistration by a new edii
or rule, and to put the execution of the laws into w hatever hands it ple<
ses; by constituting one, or a few, or m any executive magistrates: and a
the other pow ers of the state m ust obey the legislative pow er in the di:
charge of their several functions, or else the constitution is at an end" (V
Blackstone, Commentaries [...], I, p. 46).
314 "The lex non scripta, or unw ritten law, includes not only general custom
or the C om m on law properly so called; but also the particular customs (
certain parts If the kingdom; and likewise those particular laws, that ai
by custom observed only in certain courts and jurisdictions." (W. Black;
tone, Commentaries [...] , I, sect. Ill, in capu)).
315 "F o r the authority of these m axim s rests entirely upon general coceptio
and usage: and the only m ethod of proving, that this or that m axim is rul
of the com m on law, is by show ing that it hath been alw ays the custom t
observe it.*But here a very natural, and very m aterial, question arises: hoi
are these custom s or m axim s to be known, and by whom is their validit
be Ietermined? The answ er is, by the judges in the several courts of justia
Cultura Jurídica Europeia
267
• um papel residual e estritamente limitado a certas maté­
rias316 e a certos tribunais da equity (v. adiante );317
They are the depositaries of the law s; the living oracles, w ho m ust decide
in all cases of doubt, and w ho are bound by an oath to decide according to
the law of the land. The know ledge of that law is derived from experience
and study (W. Blackstone, Com m entaries [...], I, 62) [...] it is an established
rule to abide by form er precedents, w here the sam e points com e again in
litigation: as well to keep the scale of justice even and steady, and not lia­
ble to w aver with every new judge's opinion; as [so because the law in that
case being solemnly declared and determ ined, w h at before w as uncertain,
and perhaps indifferent, is now become a perm anent rule, w hich it is not
in the breast of any subsequent judge to alter or vary from recording to his
private sentim ents:f...] Yet this ule adm its of exception, w here the form er
determ ination m ost evidently contrary to reason; m uch m ore if it be clear­
ly contrary to the divine law. But even in such cases the subsequent judges
do not pretend to make a new law, but to vindicate the old one from m isre­
presentation". (W. Blackstone, Com m entaries [...], I, 62).
516 "I shall there-fore only add, that (besides the liberality of sentim ent with
which our com m on law judges interpret acts of parliament, and such rules
of the unwritten law as are n o t of a positive kind) there are also peculiar
courts of equity established for the benefit of the subject: to detect latent
frauds and concealm nts, w hich the process of the courts of law is not ad ap ­
ted to reach; to enforce the execution for such m atters of trust and confi­
dence, as are binding in conscience, though not cognizable in a cou rt of law;
to deliver from such dangers as are ow ing to misfortune or oversight; and
to give a m ore specific relief and m ore adapted to som e circum stances of
the case, than can alw ays he ohtained by the generality f the rules of the
positive or com m on law. This is the business of our courts of equity, whi­
ch how ever are only conversant in m atters of property. For the freedom of
our constitution will not permit, that in criminal cases a pow er should be
lodged in any judge, to construe the law otherwise than according to the
letter (ibid.).
317 "F ro m this method of interpreting laws by the reason of them, arises w hat
w e call equity, w hich is thus defined by Grotius "th e correction of that
w herein the law (by reason of its universality) is deficient." For, since in
law s all cases cannot be foreseen or expressed, it is necessary that, when
the general decrees of the law com e to be applied to particular cases, there
should be somewhere a lower vested of defining those circumstances, which
(had they been foreseen) the legislator himself would have expressed. And
these are the cases which, accordlngto Grotius, "lex non exacte definit, sed
arbitri boni viri perm itit" (W. Blackstone, Commentaries [...], I, 62).
268
António M anuel H espanha
• um papel estritamente limitado outorgado ao civil law.3U
Relativamente à situação dos direitos continentais a situação
do direito inglês tem algo de paradoxal. Por um lado, a prevalância do direito próprio (ou municipal) é mais enfaticamente afirma­
da e, sobretudo, muito mais sistematicamente praticada, dado que
os juizes são formados, não em instituições universitárias de tipo
académico, permeáveis às modas académicas do continente, mas
sobretudo em escolas judiciais, aferradas ao sistema de direito pra­
ticado nos tribunais, que era o normando. Do ponto de vista estru­
tural, atenta a estreita margem de discricionariedade atribuída aos
juizes perante o sistema de lurits ou acções, a influência do direito
régio era maior. No entanto, esse direito não era o direito actual,
mas o direito consuetudinário, enraizado numa tradição de julgar
consubstanciada naa regra do precedente e codificada nos registos
(records) dos tribunais. Deste modo, o direito inglês acabava por se
assemelhar bastante, na sua gramática formal, ao sistema de direi­
to pretoriano dos romanos, constituído por regras de julgar, final­
mente codificadas nos editos dos pretores.
Estas distinções acabam por se atenuar com a tendência para
a recepção das concepções sistemáricas do direito do período jusracionaiista, quando os juristas ingleses - como o próprio W. Blackstone na sua Analysis ofthe laivs ofEngland (Oxford, 1771) - adop­
tam um método axiomático de apresentar as matérias e tentam fun­
dar todo o direito em regras jurídicas naturais de tipo axiomático,319
tal como o faziam os juristas seus contemporâneos no Continente.
318Havia quarto tipos de tribunais em que era permitido o uso dos direitos canóni­
co e civil, embora com restrições: "1. The courts of the archbishops and bishops,
and their derivative officers, usually called in our law courts Chris-Tian, cunAe
Christianitatis, or the ecclesiastical courts. 2. The military courts. 3. The courts of
admiralty. 4. The courts of the two universities. In all, heir reception in general,
and the different degrees of that reception, are grounded entirely upon custom,
corroborated in the latter instance by act of parliament, ratifying those charters
which confirm the customary law of he universities [...] the courts of common
law have the superintendency over these ourts; to keep them within their juris­
dictions [...] (W. Blackstone, Commentaries [...], 1,84).
319"These are - resume Blacstone - the etem immutable laws of good and evil, to
which the Creator himself, in all his Jispensations, conforms; and which he has
enabled human reason to discover, so far as they are necessary for the conduct
of human actions. Such, am ong thers, are these principles: that w e should live
honestly, should hurt nobody, and should render to every one his due; to which
three general precepts ]us-tinian(a) has reduced the whole doctrine of law ".
269
Cultura Jurídica Europeia
C
O
N
T
E
OF
N
T
S
THIS
A N A L Y S I S .
I N T R O D U C T I O N .
O f the S
t u d y
o f the Law .
S e c t i o n
T h e Nature o f L a w s in general.
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B o o k I I I.
Á rvore das matérias
(W. Blackstone, Analysis of the laws of England (O xford, 1771)
270
António Manuel Hespanl
6 .5 . A c u l t u r a j u r í d i c a p o p u l a r
Quando Derrer, acima citado (cf. 174), se referia à neces:
dade de adoptar um discurso jurídico que pusesse o direito ;
alcance de "quem apenas seja mediocremente versado nesta artí
ele estava a evocar uma questão notória - a do massivo desconh
cimento do direito erudito por parte da população. Porém, talv
se referisse apenas a uma parte desta questão, a da relação ent
este direito e a população urbanizada, e nem sequer estranhas
um outro facto massivo, o da existência de todo um mundo - n
meadamente, o mundo campesino - que continuava a viver s<
um outro direito, constituído por antigas tradições normativ;
passadas oralmente de geração em geração, aplicadas por juiz
leigos e iletrados, apontando para valores diferentes e utilizam
conceitos, princípios e estratégias de resolução dos conflitos q
pouco tinham a ver com o direito culto.
Este direito dos grupos sociais culturalmente marginaliz
dos (embora estatisticamente dominantes) foi designado, p
esta época, como "direito dos rústicos" (ius rusticorum), tende
sua supervivência construído uma constante do direito europe
a que nem a "codificação" (cf., infra, 7.2.4. ) nem, mais tarde
alfabetização (no séc. XIX) ou a massificação da cultura (já 1
séc. XX) puseram termo.
Tomemos o exemplo português que, no aspecto seguini
está melhor estudado. Nos meados do séc. XVII, o número d
juizes de fora - os únicos que, desde 1539, tinham que ter un
formação jurídica universitária, não ia além de um décimo c
total dos juizes dos concelhos.320 Os restantes, eram juizes qu
quando muito, saberiam ler e escrever, embora as fontes par
çam evidenciar que nem isso acontecia num número apreciáv
de casos. Ou seja, mesmo para quem administrava a justiça,
discurso dos juristas eruditos, escrito e, para mais, em latim, e
absolutamente inacessível. Como o era mesmo a própria lei c
reino (nesse caso, as Ordenações filipinas, de 1604).
320Números mais precisos, em Hespanha, 1984(i); síntese em Hespanha, 19É
Cultura Jurídica Europeia
271
No entanto, se descermos ao nível dos destinatários do di­
reito/do que nos damos conta é da existência de um mundo ju ­
rídico submergido, pouco aparente para quem lê as obras dou­
trinais dos juristas.
No domínio do direito, o contraste entre estes dois mundos
culturais foi descrito numa já longa série de traba-lhos, principal­
mente de antropólogos.321 Segundo Boaventura de Sousa Santos
- que utilizou os instrumentos teóricos dessas correntes na sua in­
vestigação sobre o direito "não oficial" das favelas do Rio de Ja­
neiro322- os traços distintivos da prática jurídica dessas socieda­
des marginalizadas dos nossos dias (cujas estruturas e práticas
culturais e simbólicas estão intimamente relacionadas com as das
sociedades tradicionais) podem descrever-se da seguinte forma.
Os conflitos têm, geralmente, um carácter comunitário, não
se reduzindo a uma questão puramente privada. A comunidade
mostra-se, de certo modo, empenhada nos dife-rendos entre seus
membros. Isto explica-se devido às fortes solidariedades decor­
rentes do teor marcadamente fechado sobre si da vida destas co­
munidades. Além disso, a natureza tradicional e imanente (isto
é, não voluntarista e arbitrária) da ordem jurídica trans-forma
qualquer conflito sobre o direito numa questão que ultrapassa o
nível meramente técnico e que põe em causa os fundamentos (con­
siderados indisponíveis) da vida social. É este carácter trans-individual dos conflitos que explica, por um lado, a fluidez das fron­
teiras entre o direito (ius), a moral (fas) e o costume (mos), e ainda
a referência, permanente no dis-curso jurídico tradicional, a pa­
drões éticos de conduta: aquilo que deve ser considerado como
fundamento do direito é viver honestamente (ou seja, de acordo
com a natureza das coisas], não prejudicar outrém e dar a cada
qual o seu lugar). Longe disto não está ainda o facto da censura
ético-religiosa dirigida ao conflito e às pessoas conflituosas, que
levava a Igreja a promover a arbitragem como solução dos con­
flitos. Este carácter comunitário dos conflitos explica ainda a in321 Cf. Hespanha 1983b ; 1993(iii)..
322Santos, 1985, onde dá conta do prinipal de urnseu anterior trabalho sobre o tema
(Law against law: legal reasoning in Pasargada laio, Cuernavaca, Cidoc, 1974).
272
António M anuel Hespanha
tervenção activa do tribunal e da própria sociedade (através dos
seus elementos mais respeitados, os honoratiores, anciãos) na pro­
cura de um equilíbrio entre os interesses conflituantes que per­
mita resolver o litígio de forma durável.323
Uma outra característica do direito "dos rústicos" consiste
na precariedade dos meios coercivos institucionalizados, expli­
cando que a resolução dos conflitos assente numa "violência
doce" do discurso orientada para a obtenção de um consenso
que possibilite, não só satisfazer momentaneamente os interes­
ses, mas tam bém encontrar um equilíbrio estável. O discurso
jurídico socorre-se de todos os lugares retóricos aceites, mobili­
za toda uma riqueza emocional e tópica e, longe de isolar a ques­
tão numa moldura técnica e abstracta (neutra, do ponto de vis­
ta das convenções colectivas), favorece constantemente a sua li­
gação com outros registos valorativos da vida social (ética, reli­
gião, mundo das virtudes), procurando salientar o carácter so­
cialmente indispensável da obtenção de um acordo (e, por con­
sequência, os deveres das partes nesse sentido). Um último sin­
toma deste débil grau de institucionalização das instâncias de­
cisórias das questões jurídicas traduz-se no facto de as institui­
ções jurisdicionais serem integradas ou presidi-das não por pro­
fissionais de carreira, especializados e escolhidos em função das
suas qualificações técnicas, mas por indivíduos investidos de um
prestigio social anterior à sua designação como juizes (honorati­
ores, notáveis), que exercem essa função a par de outras papéis
e dignidades sociais e que, para além disto, não pos-suem qual­
quer formação técnica. Também a linguagem jurídica não tem
um carácter técnico ou especializado e, por isso, não provoca a
distanciação entre o tribunal e o auditório, permite um controlo
e uma participação pública no desenrolar do processo e, final­
mente, na decisão. Para isto, a "sim plificação" dos processos
aproxima as práticas judiciais dos rituais e formalidades da vida
quotidiana, eliminando todos os protocolos em que os aspectos
materiais são sacrificadas aos aspectos formais ou, melhor di-
121Santos, 1 9 6 0 ,1 7 .
Cultura Jurídica Europeia
273
zendo, em que a solução socialmente evidente e justa é abando­
nada por razões "form ais"324
Os estudos sobre a litigiosidade no Antigo Regime,325 em­
bora frequentemente voltados para a litigiosidade dos tri-bunais
superiores (ou seja, para o mundo erudito), não cessam de con­
firmar estas perspectivas sobre a irredutibilidade e a especifici­
dade do direito popular tradicional.326
Com efeito, apesar do tom irreal e fictício tantas vezes adop­
tado pelo discurso do direito erudito, a realidade desse mundo
jurídico não assimilado era de tal modo gritante que, forçosamen­
te, ele tinha de estar presente no horizonte do jurista letrado. Pre­
sente, quer como alternativa cultural e jurídica que se tentava com­
bater e depreciar, quer como realidade não assimilada que exigia
um enquadramento dogmático e institucional específicos. Na li­
teratura erudita, este mundo do direito tradicional, não erudito e
não escrito, era designado por mundo dos "rústicos" .327
324Por exem plo, a fixação definitiva do objecto do proceso de acord o com a Iitis co n testatio ; a existência de critérios pré-estabelecidos de apreciação da
prova; a perda de direitos materiais por prescrição de prazos ou por viola­
ção de certas form ali-dades processuais.
325Cf. Hespanha, 1983b; 1993(iii).
326Por exemplo, a obra de Richard H. Kagan (Kagan, 1981) - embora incida prin­
cipalmente na prática judicial de um tribunal superior (a C han célleria d e Valladolid) - testemunha também um a oposição, ainda no século XVIII espanhol,
entre form as tradicionais e m odernas de resolução de conflitos: entre o
"pleyto" que corria num tribunal oficial e erudito, submetido às regras do
direito escrito, e os antigos juízos ex aequ o et bono (juicios de a lvedrio) proferi­
dos pelos juizes tradicionais e honorários dos municípios e aldeias, submeti­
dos ao direito tradicional parcialmente contido nos antigos "fueros".
327Literatura sobre os rústicos (privilégios, ,u d icia ): Andreas Tiraquellus, T ractatus de p riv ileg iis ru sticoru m , CoIoni~ Agrippin~ 1582; Renatus Chopinus,
D e p riv ileg iis ru sticoru m , Pansus 1575; D es p riv ilèg es des p erso n n es v iv a n t au x
cham ps. Paris 1634 (trad. franc.); Iohannis Albini, O p u scu lu m de reg im in i ru s­
ticoru m , M oguntiae 1601; Iustus H enning Boehmer. De lib erta te im p erfecta
ru sticoru m in G erm an ia, Halliae, 1733; Siculus Flaccus, De ru sticoru m regim en ,
Moguntiae, 1601: Joh. Wilh. Goe-bel, D e ju r e & iu d icio ru sticoru m f o r i G erm an iae, H elm stadt 1723; Benedictus C arpzovius, D is p u ta tio d e p ra ec ip u is
ru sticoru m privilegia. Lipsiae 1678; Iohannis Suevi, T ra ctatu s de p riv ile g iis
ru sticorum . Coloniae 1582; e outras obras que focam, sobretudo, as obriga­
ções feudais dos rústicos e dos cam poneses.
274
António Manuel Hespa
A definição deste universo surge já na literatura clássicé
direito comum. Segundo Bártolo, os rústicos são os que vi\
fora das cidades ou das terras importantes ("omnes quí habi
extra muros civitatis vel castri, tamen idem intellegeremus de cai
et commitatuis ubi non esse copia hominum et sic non sunt ca
insignia") [os homens que habitam fora dos muros de uma c:
de ou castelo, embora também o digamos dos castelos e po\
ções onde não haja muitos homens e que, deste modo, nãc
jam castelos importantes].328 Ainda mais expressiva é, contt
a definição de Alexandre de Imola que se refere clarament<
que, em sua opinião, justificava o estatuto especial dos rústi
a ignorância e a rudeza ("rusticus proprie est, qui opere, & con
satione est rusticus" [rústico propriamente dito é aquele qi
rude no comportamento e na maneira de falar]).329
"Rústicos" não era, de facto, uma expressão neutra no
curso da Baixa Idade Média. Longe de constituir uma sim]
evocação do mundo rural, ela continha uma conotação n it
mente pejorativa equivalente a "grosseiro" (grossus, grossolan
"rude" e "ignorante", por oposição a um ideal de cultura lit
ria que, cada vez mais, se vinha impondo. Esta imagem dej
dada da rusticidade não decorria apenas de uma observação
geira sobre a diversidade dos hábitos e das maneiras. Enra
va-se em representações mais profundas sobre a natureza
homens que tanto se aplicavam aos rústicos da Europa como
nativos descobertos nas terras do ultramar.330
A atitude do jurista erudito para com esse mundo é um m
de simpatia, mais retórica do que genuína, suscitada pelo est
virginal da inocência primitiva, de condescendência arroge
relativamente à sua ignorância e estupidez e, final-mente, de c
328BartoIus, Comm. ad Dig. infort. (D. 2, 29, 7, 8, 2j; idêntica definição é dada
Baldo: "rusticus dicitur quolibethabitans extra muros civitatis, vel habi
in castro, in quo est hom inum penúria" [diz-se rústico aquele que hí
fora dos muros da cidade, ou de um castelo, onde haja poucos home
(Comm. D. de iure codic., 1. conficiantur, § codicilli. cit., t. III, p. 170).
329A lexander de Imola, Consilia, Lugduni 1563, vol. 6 co n .l. n.3.
330Sobre esta aproxim ação, à qual voltarem os, v. Prosperi, 1996, 551 ss.
Cultura Jurídica Europeia
275
prezo mal disfarçado pela insignificância (também económica) das
questões jurídicas que, neste mudo, apareciam. O rústico era, por
um lado, a criatura franca, ingénua, incapaz de malícia, despro­
vida de capacidade de avaliação exacta das coisas em termos eco­
nómicos e, por isso, susceptível de ser enganada. "A mente sin­
cera e aberta dos camponeses aconselha a presunção de que não
actuam com dolo [intenção]", escreve Chapinus (De privilegiis...,
cit., 1.1, p. 2, c. 4). Mas, por outro lado, era o ignorante e o grossei­
ro, incapaz de se exprimir correctamente e de compreender as
subtilezas da vida, nomeadamente da vida jurídica. Por fim, ele
era o pobre cujas causas nunca atingiam uma importância que
justificasse as formalidades solenes de um julgamento. Destas
características negativas decorrem uma série de "defeitos dos rús­
ticos", enumerados por juristas e moralistas.331
O que pouco transparece neste discurso erudito sobre o
mundo dos rústicos não é uma abertura para o reconhecimento
do carácter alternativo e diferente do direito tradicional, mas an­
tes uma atitude paternalista e condescendente, própria de quem
está perante uma realidade jurídica inferior, precária, que apenas
prevalece graças à paciência do direito oficial. A realidade jurídi­
ca do mundo rústico é, assim, deste modo, banalizada e expro­
priada da sua dignidade de prática jurídica autónoma.
A generalidade dos privilégios dos rústicos funda-se, como
já vimos, na presunção da sua ignorância e do seu desconheci­
mento das subtilezas do direito oficial ("in rústico est praesumptio iuris ignorantia", Alexandre de Imola). Em todo o caso, o que
não se presumia era, como vimos a propósito do tratamento da
ignorância por S. Tomás, era a ignorância do direito natural ou
das gentes, pelo menos quanto aos seus dogmas "prim ários"
(nos "secundários", pelo contrário, a ignorância era presumida
e juridicamente excusatória, pois "frequentemente, mesmo os
mais sabedores se alucinam" .332
331 Cf. exem plos em H espanha, 1983b.
332J. W. Goebel, Tractatus de iure
cit., 1 9 3 /4 .
António M anuel Hespanha
276
Na verdade, os letrados dizem que, nas causas do rústicos,
se deveria preferir a uma decisão baseada no sentido imanente
da justiça (ex nequo et bono) a uma outra fundada na aplicação
estrita do direito (ex apicibus iuris). Mas acrescentavam mais: em
vez de decidir as questões com o sacrifício irreparável e defini­
tivo de uma das partes, era preferível dividi-las ao meio, salom onicamente, sacrificando ao mesmo tempo as duas partes,
mas atingindo uma solução consensual em que todos obtives­
sem algo, de modo a construir um equilíbrio estável para futu­
ro. Neste sentido, Baldo diz-nos que os rústicos se põem de acor­
do dividindo as questões ao meio ("rustici dividunt per medium
quaestiones") .333
Para a salvaguarda de outras particularidades de estudo
jurídico tradicional bastava o princípio, geralmente aceite pela
doutrina do direito comum erudito, segundo qual os costumes
particulares do rústicos de revogavam o direito comum. No en­
tanto, nem tudo era favorável aos rústicos, mesmo no plano des­
te direito especial. Por um lado, havia circunstâncias nas quais
os privilegia rusticorum não tinham eficácia;334 por outro lado,
o estatuto dos rústicos compreendia também aspectos negativos,
como, por exemplo, o de nunca poderem pertencer à nobreza,
ainda que fossem ricos e de bem; ainda, a ofensa que lhes fosse
feita nunca era considerada como uma injúria; os seus privilé­
gios não podiam ser opostos aos dos senhorios directos, nos ca­
sos de enfiteuse, o mais importante dos contratos agrários.335
Como se viu, o estatuto dos rústicos dificilmente pode ser
considerado - pelo menos, se nele apenas se ler aquilo que é ex­
pressamente dito - como uma forma de repressão de um mun­
do jurídico alternativo. Bem pelo contrário. Aparentemente, todo
o discurso erudito sobre ele está dominado pela ideia de condes­
cendência - mais do que de respeito - para com o mundo do di­
reito tradicional.
333Baldus, Opera ..., cit. (in D. De negotiis gestis, 1. Nessonis, n. 6), vol. I, p. 120.
33J Cf. Iac. Menocchio, De arbiitrariis iudicum quaestionibus ..., c. 194, n. 2 /3 2 .
335V. o já citado Menochio e, ainda, R. Choppinus, De privilegiis rusticorum, cit,
1.1, p. 2, c. 5.
Cultura Jurídica Europeia
277
Em todo o caso, se a análise for levada um pouco mais lon­
ge, poder-se-á verificar como esse discurso se integra numa es­
tratégia doce, mas inexorável, de assimilação e repressão. Uma
estratégia que recupera no plano simbólico e ideológico o que
abandonara no plano jurídico-institucional.
Com efeito, o discurso sobre o direito dos rústicos - e a pró­
pria expressão "rústico" - é dominado por uma oposição fun­
damental: a oposição entre saber e ignorância. Os dois termos
desta oposição não estão, porém, em equilíbrio porque o saber
representa já o ideal cultural de uma época, e a ignorância já não
é a inocência original, nem a simples falta de conhecimento, mas,
pelo contrário - e como já vimos no plano da teologia -, a atitu­
de antinatural daquele que recusa, positivamente, a sua realiza­
ção humana. Toda a violência do discurso erudito reside neste
facto. Classifica-se a si mesmo como o discurso da verdade, pro­
duto da tendência natural do homem para o saber. Ao mesmo
tempo, os discursos alternativos são remetidos para uma zona
de recusa contra-natural e obstinada do saber que os priva de
qualquer legitimidade. Por outras palavras, o jurista erudito
nunca considera a prática jurídica dos rústicos como presença
de outro direito enraizado numa outra cultura, mas como mani­
festação da ignorância malsã, do arbitrário, do erro, enfim, da
"rusticidade". E se transige com essas práticas é sempre por ra­
zões de ordem táctica, semelhantes às que levaram Castillo de
Bobadilla a aconselhar aos corregedores uma atitude de contemporização provisória sempre que não pudessem vencer pela for­
ça a resistência dos seus súbditos: "N i tampoco se dira parcial
el Corregidor, si por evitar escandalo, sedición ò tumulto, acudiére à favorecer al pueblo, lo qual conviene hazerse algunas
veces, ó exceder en la pena, y acomodarse dulcemente al furor,
ó humor dei pueblo, para ponerle en razon. Asi conviene que el
prudente Corregidor viendo el pueblo ravioso, condecienda al
principio con su apetito; para que insensiblemente poco a poco
le pueda meter en razon: porque oponerse à una muchedumbre
irritada, no es otra cosa que hazer resistencia à un rápido tor­
rente que cae de un alto lugar: pero despues poco à poco quita­
278
António Manuel Hespanh
do el escandolo, yra castigando los sediciosos y culpados en 1
faccion".336
A estratégia da condescendência (no plano prático e inst
tucional) conjugava-se, assim, com uma estratégia de rejeição (n
plano ideológico e simbólico). Mas, tendo em conta a força e)
pansiva desse capital simbólico extremamente reprodutivo qu
é o discurso jurídico erudito - porque vai actuar na for-maçã
de todos os quadros políticos e administrativos, quer da adm
nistração central, quer, pouco a pouco, da administração local
, o resultado não podia ser senão a gradual negação do direito
existência dessa prática jurídica tradicional, em nome do prc
gresso da razão, de um processo civilizador, de uma teleologi
da história que, ainda hoje, expropriam a legitimidade de mu
tos outros mundos culturais minoritários. Neste sentido, o ir
vestimento na ideia de que o saber jurídico letrado (tal como
entendido nos meios eruditos da época medieval e moderna)
a única base legítima da justiça funciona como meio de exprc
priação dos poderes periféricos e é comparável a outras forme
contemporâneas de centralização do poder.337
Do que se disse, resulta um quadro bastante especifico d
fontes do direito, quando se trata do mundo local, ou "rústico'
a) costumes locais, reduzidos ou não a escrito, cuja existêr
cia e eficácia é atestada, ainda no século XVII, pela prí
pria legislação real (v.g., as Ordenações portuguesas (Ori
Fil., I, 66, 28)) ou o Edit perpétuel flamengo (1611);
b) "posturas" ou "estatutos", tomadas em resultado d
deliberação dos concelhos ou comunas camponesas, noj
malmente sobre matérias de organização da vida loa
(divisão de águas, regimes dos pastos, feiras e mercados
c) privilégios locais, concedidos pelo rei ou pelos senhore:
direitos adquiridos pelo uso; praxes dos tribunais locai:
336Política para corrigedorcs
III, c. 9, n. 44 (t. II, p. 206).
337V., no sentido da equivalência da constituição de um saber abstracto a oi
tras formas de centralização do poder em desenvolvim ento na época mc
dem a, Spittler, 1980.
Cultura jurídica Europeia
279
d) costumes locais e normas casuísticas ditadas pelo senti­
do comunitário de justiça.
Este direito aplicado pelos juizes populares era, decerto, um
direito conservador ou mesmo arcaizante. Os séculos XIV e XV
tinham trazido grandes transformações à vida local; nas zonas
mais abertas ao exterior, era a influência do surto mer-cantil e
colonialista; nas zonas agrárias, a recomposição das matrizes
sociais provocadas pela introdução de novas formas de deten­
ção e cedência da terra, como a enfiteuse perpetua-mente reno­
vável e os morgadios. Muitos costumes e posturas deviam apa­
recer, nos séculos XVI e XVII, como desadaptados; em muitos
casos, terão sido corrigidos pela legislação real, explicitamente
ou implicitamente, considerando-os contra a "boa razão"; nou­
tros casos, ter-se-ão encontrado formas espontâneas de os reinterpretar.
Mas esta realidade do direito popular manteve-se até aos
nossos dias, sob formas muito diversas e no seio de estratos po­
pulares que foram variando.
6.6. A doutrina em Portugal (épocas medieval e m oderna)
Em Portugal, o conhecimento da produção jurídico doutri­
nal europeia é bastante precoce (finais do século X I), apesar de
decerto restrita a uma elite culta, constituída especialmente por
eclesiásticos (v. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 14, pg. 379)
que tinham estudado nas novas universidades do sul da Euro­
pa ou integrados nos círculos monásticos mais abertos ao estran­
geiro.338 A tensão entre esta nova cultura jurídica e uma anteri­
or, baseada no conhecimento do Código Visigótico, de fórmu­
las notariais visigóticas, dos Cânones conciliares hispânicos e das
Etimologias de Santo Isidoro e em tradições jurídicas comunitá-
338Sobre o papel das elites cultas judaicas, M anuel A ugusto R odrigues, "A
cultura jurídica medieval e os incunábulos hebraicos", A cta s do C o n g resso
In te rn a c io n a l do IX C en ten á r io da D ed ic a ç ã o d a S é d e B rag a, 3(1990), Braga,
Universidade Católica, 231-261.
280
António M anuel Hespanha
rias de influência visigótica ou moçárabe (de que há vestígios
suficientes na documentação alto medieval), não está estudada
(v. todavia, os textos de }. A. Duarte Nogueira, Francisco da
Gama Caeiro e José Mattoso, adiante citados).
Os progressos daquela nova cultura jurídica foram mais
rápidos na corte, sobretudo depois do aparecimento dos textos
romanizantes de Afonso X (Fuero real, Siete Partidas), muito uti­
lizados em Portugal até aos finais do século XIV (cf., v.g. Nuno
Espinosa Gomes da Silva História do direito português, cit. 158
ss.).339 A fundação da Universidade de Lisboa (entre 1288 e 1300)
generaliza o conhecimento das fontes do direito comum, instau­
rando uma nova tensão (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc.
14, pg. 379) entre a cultura jurídica romanizante (mais próxima
do contexto sócio-político peninsular ocidental) e a cultura jurí­
dica romanista (que reproduzia realidades sociais e políticas do
centro ocidente europeu); em alguns pontos, é possível detec­
tar o significado político da opção entre uma e outra (cf. Bartolomé Clavero, "Lex Regni Vicinioris. Presencia de Castilla en
Portugal", in Estudos em homenagem aos Doutores Manuel Paulo
Merêa e Guilherme Braga da Cruz, Coimbra, 1 9 8 2 ,1, 239-298).
Faltam estudos pormenorizados para destrinçar as linhas
de continuidade e de inovação, quer da produção jurídica cor­
tesã (sobretudo, legislação de D. Afonso III a D. Fernando), quer
dos grupos de técnicos (práticos da administração curial ?, no­
tários palatinos ?, letrados locais ?, letrados formados no estran­
geiro ? onde ?) que a promoviam, quer do significado político
social das soluções que iam sendo estabelecidas.
No século XV, a corte utiliza intensamente a produção dou­
trinal europeia para unificar e sistematizar o direito: são man­
dadas fazer traduções autênticas do Código e dos comentários
339Publicação de versões portuguesas: José de A zevedo Ferreira, A lp h o n se X.
P rim ey ra P artida. E d ition et étu d e, Braga, INIC, 1980; José de Azevedo Fer­
reira, A fo n so X, F oro real, Lisboa, INIC, 1987, 2 vols.; cf. ainda José de Aze­
vedo Ferreira,"A Prim eira Partida de Afonso X: versões portuguesas", R e­
v ista da F a cu ld a d e de Letras, Lisboa, 5a série, 13-14(1990) 165-172.
Cultura Jurídica Europeia
281
de Bártolo, ao passo que o direito comum, além de ser intensa­
mente (?) utilizado na confecção das Ordenações afonsinas (em que
medida, está por estudar detalhadamente), é consagrado como
direito subsidiário (Ord. a f, 11,9; Ord. man., 11,5; Orã.fH. III, 64).
Nas Ordenações Afonsinas (1446 7) o assunto é tratado no li­
vro II (tit. 9), em que se estabelecem as relações entre o poder
real e outros poderes do reino. O que quer dizer que a questão
do direito aplicável, nomeadamente no que se refere aos direito
canónico e romano (imperial) era encarada como algo que tinha
essencialmente a ver com a questão política da relação entre o
reino, o Império e o Papado, uma típica questão da alta política
medieval. Começa por se estabelecer claramente o princípio de
que o direito comum era apenas subsidiário, porque o direito do
rei, no reino, sobrepõe-se a todos os outros - e que, portanto,
"quando algum caso for trazido em pratica, que seja determi­
nado por alguma Lei do Reino, ou estilo da nossa Corte, ou cos­
tume dos nossos reinos antigamente usado, seja por eles julga­
do, e desembargado finalmente, não embargante que as Leis
Imperiais [direito romano] acerca do dito caso hajam disposto
em outra guisa, porque onde a Lei do Reino dispõem, cessam
todalas outras Leis, e Direitos..." (Liv. II, tit. 9).
Só então, na falta de direito pátrio, se aplicava o direito co­
mum (i.e, o direito romano, "Leis Imperiais" e o direito canóni­
co, "Santos Cânones"). A delimitação das esferas relativas dos
direitos romano e canónico é feita através do "critério do peca­
do" - ou seja, no caso de conflito entre os dois direitos, o direito
canónico só preferiria o direito civil quando da aplicação deste
- tanto em matéria temporal como espiritual - resultasse peca­
do (v.g., prescrição aquisitiva de má fé).
Na falta de expressa previsão das fontes de direito justinianeu ou de direito canónico, apelava-se para o direito doutrinal
dos Glosadores ou dos Comentadores. Em primeiro lugar, para
a Glosa de Acúrsio e, na insuficiência desta, para a opinião de Bár­
tolo, ainda que contrariada por outros doutores, pois o rei, por o
ouvir dizer a letrados, a tinha tida como a habitualmente mais
conforme à boa razão ("E se o caso, de que se trata em prática,
282
António Manuel Hespanhe
não fosse determinado por Lei do Reino, ou estilo, ou costume
suso dito, ou Leis Imperiais, ou Santos Cânones, então manda­
mos que se guardem as glosas de Acúrsio incorporadas nas di­
tas Leis. E quando pelas ditas glosas o caso não for determina
do, mandamos que se guarde a opinião de Bártolo, não embar
gante, que os outros doutores digam o contrário, porque somo;
bem certo que assim foi sempre usado, e praticado, em tempc
dos Reis meu Avô e Padre, de gloriosa memória; e ainda no:
parece que já alguma vez vimos, e ouvimos a muitos letrados
que sua opinião comunalmente é mais conforme à razão, que £
de nenhum outro doutor; e em outra guisa seguir-se-ia grandt
confusão aos desembargadores, segundo se mostra por clan
experiência"). Finalmente, se o caso fosse de todo em todo omis
so, recorrer se ia ao monarca (entenda se, ao tribunal da corte)
que integraria a lacuna.
Na versão definitiva das Ordenações Manuelinas (1521) est<
regime sofre algumas alterações (cf. Ord. Man., II, 5). Continua
va a recorrer se, na insuficiência dos direitos romano e canóni
co, à doutrina. Reafirma se o valor da Glosa de Acúrsio, mas ]í
apenas quando não reprovada pela opinião comum e, sendo c
Glosa omissa, acolhe-se a opinião de Bártolo, mas apenas se e
opinião comum dos doutores mais modernos não a contrariasse
("E se o caso de que se trata em pratica não for determinado poi
Lei do Reino, ou estilo, ou costume suso dito, ou Leis Imperiais
ou Santos Cânones, então mandamos que se guardem as Glo­
sas de Acúrsio incorporadas nas ditas Leis, quando por comurr
opinião dos Doutores não forem reprovadas, e quando pelas
ditas Glosas o caso não for determinado, mandamos que se guar­
de a opinião de Bártolo, não embargante que alguns doutores
dissessem o contrário; salvo se a opinião dos Doutores, que de­
pois dele escreveram, for contrária, porque a sua opinião comumente é mais conforme à razão", II, 5). O que, em termos gerais
significa o intento de ligar o julgador a soluções (as da "opiniãc
comum") capazes de evoluir e assumir as novas necessidades
normativas, desvinculando-o de uma obediência forçosa à Glo­
sa ou à opinião de Bártolo. Note-se, em todo o caso, que esta úl­
Cultura ]urídica Europeia
2S3
tima ainda prevalecia sobre a opinião comum dos doutores mais
antigos ou seus contemporâneos.
São estas também, na substancia, as determinações das
Ordenações Filipinas(1603) a este respeito. Embora se note pela
sua colocação - não no livro II, a propósito das relações entre o
poder temporal e o poder espiritual, mas no livro III, a propósi­
to do direito aplicável na lide - que a questão ganhava, finalmen­
te, uma dimensão claramente "jurídica" e não "política".
Embora se possa falar numa estratégia real de promoção do
direito comum (cf. doc. em J. Gilissen, Introdução..., doc. 18, pg. 380
[carta de Bruges]) isso não acontece, no entanto, sem restrições.
Nomeadamente por esta anteposição, enfaticamente decla­
rada nas Ordenações, do direito pátrio aos direitos imperial e ca­
nónico. E, de facto, em pontos politicamente decisivos, o direito
comum foi corrigido por legislação nacional. E o que acontece,
nomeadamente, quanto à titulação e conteúdo do poder senho­
rial, em que o direito nacional adoptou soluções diferentes da
opinião comum dos feudistas (v.g., imprescritibilidade das ju ­
risdições e regaliae, carácter apenas intermédio da jurisdição se­
nhorial, elenco dos naturalia (i.e., cláusulas normais ou presumi­
das das doações senhoriais) ou quanto ao regime das relações
entre o poder temporal e o poder espiritual, em que se vincaram
as prerrogativas régias perante as pretensões dos canonistas. A
(paradoxal) falta de estudos sobre as discordâncias, neste perí­
odo, entre o direito próprio e o direito comum impede que se
avance mais neste importante diagnóstico do significado políti­
co da recepção.
No entanto, a prática era diferente, dada a influência dos
juristas letrados e a sua autonomia na declaração do direito.
A partir da segunda metade do séc. XV, inicia se, de facto,
um processo de promoção dos juristas letrados. Até aos meados
do séc. XVI, os mais famosos fazem a carreira no estrangeiro, em
divórcio com as realidades do direito "próprio", tendo dificul­
dades em se implantar na prática jurídica nacional, até porque
os modelos da ciência jurídica humanista, então em vigor nas
universidades francesas e italianas (humanismo jurídico), os
284
António M anuel H espanha
encaminham para campos muito longínquos das preocupações
do jurista prático (depuração histórico filológica dos textos, dis­
cussões académicas) (Nuno Espinosa Gomes da Silva, Humanis­
mo e direito ..., cit.; A. M. Hespanha, Panorama ...).
A partir dos meados do séc. XVI, os juristas formam se, so­
bretudo, na Universidade de Coimbra, reformada em 1537 e a que
D. João III concedera, pela lei de 13.1.1539 (que exige estudos jurí­
dicos para desembargadores, juizes de fora e corregedores (im­
plicitamente) e advogados (em parte)), o monopólio da formação
dos letrados que aspirassem a lugares de letras ou à advocacia.
Embora do curso não constasse o direito nacional, o contacto com
o direito nacional era promovido, por se exigir dois anos de "prá­
tica" (ou de "residência, na Universidade) (a partir de certa altu­
ra, cf. dec. 19.6.1649), para o acesso aos lugares de letras. Por vol­
ta de 1623, Filipe IV chegou mesmo a sugerir a criação de uma
cadeira para Belchior Febo ensinar direito pátrio; mas o claustro
universitário entendeu não ser necessário (27/1/1623, Barbosa
Machado, Bibliotheca lusitana, s.v. Melchior Febo).
A própria actividade profissional dos letrados, como advoga­
dos ou como magistrados, promovia esta contínua integração do
direito comum com o direito régio. O reflexo literário desta recep­
ção prática do direito comum e da sua miscigenação com o direito
nacional são géneros literários como as decisiones (v.g. de Jorge de
Cabedo, de António Gama, de Gabriel Pereira de Castro, de Bel­
chior Febo, de António de Sousa Macedo), as quaestiones (v.g., as
Quaestionumjuris emphyteutici, de Álvaro Vaz), as consultationes (v.g.
de Álvaro Vaz), as allegationes (v.g., de Tomé Valasco) os comentá­
rios ou tratados sobre as leis nacionais (v.g., de Manuel Alvares
Pegas, Manuel Gonçalves da Silva ou Manuel Banha Quaresma,
de Domingos Antunes Portugal) ou as praticas (v.g. de Manuel
Mendes de Castro, de Gregório Martins Caminha).
Em todo o caso, a tendência para antepor o direito comum aprendido nas escolas, objecto de uma vastíssima literatura, con­
siderado como a ratio iuris - ao direito pátrio era muito grande.
Pelo que, nesta síntese efectuada pelos juristas portugueses dos
sécs. XVI a XVIII, o contributo do direito pátrio era muito modes­
to, apesar do sempre crescente movimento legislativo (cf. supra).
Cultura Jurídica Europeia
285
A formação de uma ciência jurídica erudita e de um cor­
respondente corpo de juristas letrados e profissionais teve con­
sequências profundas na prática jurídica:
a) Por um lado, aumentou a distância entre ò direito ofici­
al e letrado, cultivado na corte e nos (poucos) juízos le­
trados da periferia, e o direito vivido pela maior parte da
população e praticado na esmagadora maioria dos tribu­
nais locais, servidos por juizes eleitos e analfabetos (ou,
pelo menos, iletrados) (A. M. Hespanha, As vésperas do
Leviathan ..., cit., 439-470) que as fontes da época descre­
vem, de forma verosímil, como dominados pelos tabeli­
ães, estes últim os detentores de uma cultura jurídica
"vulgar" veiculada por formulários e tradições familia­
res (tema a carecer de estudo, baseado nos corpos arquivisticos notariais).
b) Com isto, o direito culto ou letrado criou uma generali­
zada reacção contra os juristas letrados, visível na litera­
tura de costumes (v.g., Gil Vicente, Auto da Barca do In­
ferno).
c) Por outro lado, gerou forte espírito de corpo entre os ju­
ristas profissionais que, combinado com a sua função
social de árbitros das grandes questões sócio-políticas,
com a sua insindicabilidade prática e com os efeitos de
uma literatura orientada para a defesa dos seus privilé­
gios estamentais (cf. António de Sousa Macedo, Perfectus
doctor, Londini, 1643; Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus
advocatus, Ulyssipone 1743; Gabriel Alvarez de Velasco,
Iudex perfectus, Lugduni 1642), os constituiu numa cama­
da politicamente decisiva, cujas alianças e funcionamento
político social se começa hoje a estudar.
d) O direito culto promoveu ainda uma tradição literária
com uma dinâmica (textual, dogmática, normativa) pró­
pria, dotada de grande capacidade de auto reprodução
e pouco permeável às determinações dos contextos extra-literários (ou mesmo dos contextos literários que não
fizessem parte da tradição jurídica erudita, como as nor­
286
António Manuel Hespaní
mas provindas da coroa - leis, alvarás, etc. - sobretudo ei
matérias estranhas à literatura jurídica tradicional (v.g
fiscalidade, finanças, administração económica). A lit
ratura jurídica, os seus tópicos, aforismos, fórmulas, br<
cardos, ditos, regras, repetidos durante séculos, embebe:
a cultura letrada, mas também a cultura popular, cria]
do formas categorias de interpretar e avaliar as condi
tas e relações sociais. Não raramente, as inovações soc
ais tiveram que conviver com modelos jurídicos contr
ditórios, tudo se compatibilizando por um bricolage d(
juristas que, através da duplex interpretatio das velhas fó
mulas, as conseguiam compatibilizar com as novidadi
(e, até, torná las funcionais em relação a estas). Exemple
típicos: a permanência da proibição da usura perante
disparar da economia mercantil; a tensão entre o desei
volvimento do aparelho político administrativo mode
no e a teoria dos magistrados herdada de uma época e:
que as actividades do poder quase se reduziam à funçê
judicial (António Manuel Hespanha, "Représentatic
dogmatique et projets de pouvoir. Les outils concepti
eis des juristes du ius commune dans le domaine c
radm inistration", Wissenschaft und Recht der Venvaltur,
seit dem Ancien Régime, 1984,1-28, versão castelhana ei
La gracia dei derecho, Madrid, Centro de Estúdios Const
tucionales, 1993).
6 .6 .1 . Bibliografia
Sobre a cultura e ensino jurídicos anteriores à recepção, Jos
Artur Duarte Nogueira, Sociedade e direito em Portugal na Idac
Média. Dos primórdios aos século da Universidade (Con tribuição pa,
o seu estudo) s Lisboa, 1994. Mais alguns elementos em: Francisc
Gama Caeiro, "Escolas capitulares no primeiro século da nac
onalidade portuguesa", Arq. hist. cult. port. 1.2 (1966); id., "A o:
ganização do ensino em Portugal no período anterior à fund;
ção da Universidade", íbid., II.3 (1968); José Mattoso, "A culü
Cultura Jurídica Europeia
287
ra monástica em Portugal (8751200), ibid., III.2 (1970) (= Religião
e cultura na idade média portuguesa, Lisboa 1982, 355 393), “Ori­
entações da cultura portuguesa no princípio do século X III",
Estudos medievais, 1(1981)) (= Portugal medieval. Novas interpreta­
ções, Lisboa 1984, 225 239); "Sanctio (875 1100)", Rev. port. hist.
13(1981) (= Portugal m edieval..., cit., ibid. 396-440); Antonio Gar­
cia y Garcia, Estúdios sobre la canonística portuguesa medieval
Madrid 1976; José Antunes, A cultura erudita portuguesa nos sécs
XIII e XIV (juristas e teólogos), diss. de doutoramento clact, Co
imbra, Faculdade de Letras, 1995.
Para o período posterior à Recepção v., por todos, A. M
Hespanha, História das instituições ..., cit., 439 ss.; Nuno Espino
sa Gomes da Silva, Humanismo e direito em Portugal no séc. XVJ
Lisboa 1962; História do direito português, Lisboa 1985, loc. var.
Martim de Albuquerque & Ruy de Albuquerque História do di
reito português, I, Lisboa 1984/1985, 273 295.
7- AS ESCOLAS JU R ÍD IC A S SEISC E N TISTA S E SE T E C E N TISTA S:
JU S N A T U R A -L IS M O , JU SR A C IO N A LISM O ,
IN D IVID U A LISM O E CONTRATUALISM O
7.1. Osjusnaturalism os
7 .1 .1 . O jusnaturalism o da escolástica tomista
Já antes se falou por várias vezes de direito natural e de na­
tureza das coisas. São ideias que, nascidas entre os gregos, atra­
vessaram toda a Idade Média com fortuna e sentidos diferen­
tes, e se reinstalaram na Época Moderna.
Encontrámo-nos com o direito natural, por exemplo, quan­
do nos referimos a São Tomás de Aquino. (cf., supra, 5.3. ). Na
esteira de Aristóteles, São Tomás aceitava a existência de uma
ordem natural das coisas, tanto físicas (entia physica) como hu­
manas (entia moralia), ordem já constatada pelos clássicos e que
era confirmada pela crença cristã num Deus inteligente e bom,
criador e orãenador do mundo. Pelo menos, a teoria escolástica
das "causas segundas" era neste sentido.340 A cada espécie teria
atribuído Deus (como "Causa Primeira") uma lei natural ("causa
segunda") - o fogo sobe, por natureza, os corpos pesados caem,
etc. -, salvo caso de milagre (i.e., salvo intervenção extraordiná­
ria de Deus. Estas naturezas das várias espécies harmonizar-seiam todas em função do Bem Supremo, de tal modo que o mun­
do estaria cheio de ordem e os movimentos dos seres ou das es­
pécies de seres obedeceriam a uma regulação cósmica.
E o mesmo se diga do homem. Também a espécie humana
340Não era esta a única interpretação cristã das relações entre Deus e o m un­
do; Santo Agostinho tinha pensado as coisa doutra maneira, dando mais
lugar ao arbítrio de Deus do que à ordem do m undo; e os seus discípulos
franciscanos da Baixa Idade Média retom arão os seus pontos de vista, como
veremos, substituindo à teoria "d a s causas segundas" a teoria do impetus.
290
António Manuel Hespanh
teria uma certa natureza, ou seja, estaria integrada de certo mod
na ordem e no destino cósmicos. A ideia de direito natural pa]
te precisamente daqui. A partir de uma pesquisa dos fins d
homem e do seu contributo para o plano da criação, elaborar a
regras que deviam presidir à prática humana, de modo a que est
resultasse adequada aos desígnios de Deus quanto à vida ei
sociedade e quanto ao lugar do homem na totalidade dos sere
criados. Tais regras, umas formuladas nas Escrituras (direito d
vino), outras daí ausentes mas manifestadas pela própria order
do mundo e atingíveis pelo intelecto, se bem ordenado (recta n
tio, boa razão), constituem o direito natural.
Simplesmente, São Tomás combinava a sua confiança n
capacidade do homem para conhecer a ordem do mundo cor
o sentimento de que este conhecimento não podia ser obtido pc
processos estritamente racionais (cf., supra, 5.3.8.15.3.8.2). Por ur
lado, a descoberta da ordem natural das coisas não podia prc
vir de um acesso directo às ideias divinas, vedado ao homen
em virtude do pecado. Por outro lado, não seria atingida pc
uma especulação meramente abstracta. Começava por presst
por um trabalho de observação dos factos, dos resultados re:
tritos e imperfeitos da nossa experiência. Esta observação devi
ser orientada e complementada pela elaboração intelectual. Ma
o intelecto não se compunha apenas de faculdades de racioc
cio (razão), mas também de faculdades morais (virtudes). Nc
meadamente, o raciocinar sobre a ordem das coisas dependia d
virtude da bondade, ou seja da capacidade moral de perceber
sentido global da ordem e, por isso, de distinguir o justo do ir
justo. Daí que a razão tenha que ter um qualificativo moral par
ser eficaz - tem que ser uma "boa razão" (recta ratio).
Por outro lado, a mobilidade essencial das coisas humana;
provocada pela existência de liberdade no homem, levava a qu
não fosse possível encontrar princípios invariáveis de justiça. I
daí, que fosse impossível estabelecer uma ciência do direito na
tural que desembocasse na formulação de um código de regra
permanentes. Tudo o que se podia afirmar, neste domínio, era
existência de um vago e formal princípio de que "se deve faze
o bem e evitar o mal". Se, pelo contrário, se passasse para a re
Cultura Jurídica Europeia
291
gulamentação concreta, tudo seria mutável e sujeito a um con­
tínuo exame de ponderação. A pretensão de uma ciência do na­
tural, substitui, portanto, São Tomás a proposta de uma arte de,
em cada momento, para cada caso, encontrar o justo (ius siatin
ciiique tribuere). E nisto também se encontrava com o ensinamen­
to de Aristóteles.341
7.1.1.1. A Escola Ibérica de Direito Natural
A Escola Ibérica de Direito Natural constitui um desenvol­
vimento peninsular da escolástica aquiniana, provocado pelo
advento da Contra-Reforma.342 Apesar de uma fidelidade fun­
damental (pelo menos nas afirmações) a São Tomás,343 esta es­
cola integra uma boa parte da contribuição cultural e filosófica
do humanismo (então no seu auge) e não é estranha a muitos te­
mas da filosofia franciscana. Assim, uma análise mais profun­
da da sua obra está longe de assegurar a tal alegada fidelidade
fundamental a São Tomás; em muitos pontos, há um nítido re­
visionismo das posições tomistas. E é isto que acontece com a
doutrina do direito natural.
341 Sobre o "jusnaturalism o" de São Tom ás v., por todos, e dentro desta inter­
pretação do seu pensam ento, Villey, 1961 e 19 6 8 ,1 2 4 -1 3 1 .
342A Escola Ibérica de Direito N atural desenvolveu-se sobretudo à volta das
universidades hispânicas da C ontra-R eform a, especialm ente Salam anca,
Valha-dolide, Coim bra e Évora. Os seus representantes são, quase todos,
religiosos jesuítas ou dom inicanos. Eis os nom es principais: De Soto (14941560), especialista em questões coloniais; Afonso de C astro (1495-1558),
penalista; Francisco de Vitória (1486-1546), dom inicano, um dos mais ilus­
tres representantes da escola, autor do com entário De iustitia; Luis de Molina (1535-1600), o mais fiel à tradição do tom ism o e autor de uma filosofia
m oral - que será o alvo dos ataques de Pascal -, durante muitos anos pro­
fessor em Portugal (Évora); e, finalmente, o mais fam oso, Francisco Suarez
(1548-1617), professor em Alcalá, M adrid, Rom a, Salam anca e Coim bra,
onde publica a sua obra mais fam osa, um tratado sobre a lei, onde aborda
os problem as fundam entais da teoria do direito, o Tractatus de Legibus ac
Deo Legislatorc (1612) e procede a um a reinterpretação, embora m oderada,
das posições de S. Tom ás sobre o tem a. Bibliografia: Melía, 1977; Costello,
1974; Villey, 1968.
343 Pelo que lhe é dada a designação de Segunda Escolástica.
292
António Manuel Hespanha
Aqui, o contributo específico da escolástica espanhola ci­
fra-se no seguinte:
(i) Laicização do direito. Levando às últimas consequências a
teoria das "causas segundas", a natureza é de tal modo
concebida como auto-regulada, que se admite que tal re­
gulação teria lugar mesmo se Deus não existisse (etiam daremus Deum esse). Tal como Deus nada pode contra 2 e 2
serem 4, nada poderia mudar às verdades da ciência do
direito. Este aspecto não está, porém, presente nem é igual­
mente acentuado em todos os representantes da escola, já
que em alguns prevalece uma orientação mais "voluntarista",344 na esteira de Scotto e Occam (v.g., Suarez).
(ii) Radicação do direito na razão individual. Retomando as for­
mas do jusnaturalismo estóico (veiculado pelo humanismo),
os peninsulares defendem a ideia de que as leis naturais são
suficientemente explícitas para serem conhecidas pela ra­
zão humana. A razão individual (desde que seja "recta") é,
assim, promovida a fonte de direito, a "primeiro código"
onde estão inscritos os princípios jurídicos eternos.
(iii) Logicização do direito. A crença na razão e nos mecanis­
mos lógicos, postos em honra pelo nominalismo, vai fa­
zer com que se julgue possível encontrar o direito por via
dedutiva. Suarez lança, de facto, as bases do dedutivismo que iria reinar na metodologia do direito ao afirmar,
pela primeira vez nos tempos modernos, que é possível
deduzir, a partir dos princípios racionais do direito, regras
jurídicas precisas, com conteúdo, eternas e imutáveis.345
Com o que, está bem de ver, muito se afastou de São To­
más, mas muito se aproximou dos sistemas jurídicos logicizantes do século XVIII.
A Escola Ibérica de Direito Natural teve enorme importância
3441.e., realçando o poder constitutivo da vontade "arbitrária" de Deus.
345"... a lei natural ou divina é muito geral e abarca somente determ inados prin­
cípios m orais por si mesm os evidentes e, quando m uito, é estendida àqui­
lo de que tais princípios se deduz com nexo necessário e evidente" (De Legibus, I, III, 18).
C ultura Jurídica Europeia
293
para o devir do pensamento jurídico europeu. O racionalismo, o
contratualismo e outros ingredientes do direito moderno encon­
tram aí os seus princípios. Daí a sua enorme influência em zonas
tão distantes, geográfica e espiritualmente, como às áreas culturais
do norte da Europa, especialmente a Holanda e o norte da Alema­
nha,346 onde vão desenvolver-se as orientações seguintes.
7 .1 .2 . 0 jusnaturalism o racionalista (jusracionalismo)
Mas os juristas europeus, que tinham começado a ler o Corpus iuris, e os filósofos, que desde há muito conviviam com os
textos dos estóicos e de Cícero, encontravam-se com uma outra
tradição jusnaturalista - a de raiz estóica. A qual, por melhor res­
ponder às aspirações dos juristas, ansiosos de certeza, e por es­
tar muito explícita em textos fundamentais do Corpus Iuris justinianeu, veio a triunfar sobre a tradição aristotélico-tomista nos
alvores dos tempos modernos.
Para os estóicos, o direito natural era outra coisa, porque
também a "sua" natureza era diferente daquela de Aristóteles.
Este último fazia da natureza não só o germe (presente em nós
desde o momento do nascimento) a partir do qual se desenvol­
vem as coisas e os seres vivos; mas também o fim para o qual
estes naturalmente tendem, aquilo que são em potência. No caso
dos homens, a sua natureza é a associação com outros. Os ho­
mens são "naturalmente políticos", pois tendem a constituir ci­
dades, grupos, comunidades, como aqueles existentes efectiva­
mente. Sendo da observação destes que se poderia averiguar
alguma coisa sobre o direito natural.
Pelo contrário, para os estóicos, a natureza é a causa, o es­
pírito criador e ordenador (pneuma, logos) que dá movimento ao
mundo e que o transforma num mundo ordenado (cosmos). Em
todos os seres e, nomeadamente, nos seres vivos, há uma par­
cela de logos, que constitui o seu princípio de vida ("razão semi­
nal", logos spermatikos). No estado puro, o logos (ratio, "razão")
346A pesar das diferenças religiosas, os juristas peninsulares vão influenciar os
alemães e holandeses, nom eadam ente Hugo Grotius e Johannes AJthussius.
294
António Manuel Hespa
encontra-se nos deuses e também na alma dos homens, de
modo que a razão constitui a "natureza" específica do home
Portanto, quando os estóicos afirmam que a natureza é a f
te de direito (initium iuris, fons iuris, ex natura ortum est iuris, C:
ro),347o que querem dizer é uma destas duas coisas. Ou que o
reito deve seguir os dados naturais, dobrar-se ao destino, às in
tuições existentes, às "inclinações" que a natureza colocou em ]
(amor facti). Ou, uma vez que há uma centelha de logos (razão)
alma dos homens, que ele deve basear-se nos comandos da raz
A primeira proposição é relativamente estéril em consei
ências normativas. Pode conduzir a uma aceitação das instil
ções e direito instituídos (a um quietismo jurídico) e, nesse s
tido, favorecer uma atitude positivista. A segunda proposiç
porém, foi mais rica em consequências. Ela encontra-se pres'
te em toda a obra de Cícero. Foi Cícero, efectivamente, qu
difundiu a moral e a doutrina jurídica estóicas no ambiente c
tural romano e, mais tarde - quando a cultura europeia ans;
por um regresso aos modelos clássicos -, quem a iniciou na d<
trina moral e jurídica da Stofl.348
Esta doutrina - que se pode encontrar resumida no te
citado na nota anterior - pode sintetizar-se nas seguintes ide:
(i) Existe uma lei natural, eterna, imutável, promulgada p
Ordenador do mundo.
347D e
in v en tion e, II 22, 65; D e leg ib u s, 1 ,5; I, 6; 1 ,13.
348É seu um texto, muito lido em m uitas épocas da cultura europeia, em -
se define o direito natural (ou melhor, em pregando a terminologia cict
niana, à qual nos devem os ir habituando, a "lei" natural); "E xiste um:
v erd ad eira, que é a recta razão, que concorda com a natureza, d ifu sa em to
im utável e eterna; que nos reclam a im periosam ente o cum prim ento
nossos deveres e que nos proíbe a fraude e nos afasta dela; cujos prece
e proibições o hom em bom (h o n e s ta s ) acatará sem pre, enquanto que os {
versos lhes serão surdos. Qualquer correcção a esta lei será sa críle g a ,:
sendo permitido revogar algum a das suas partes; não podem os ser disp
sados dela nem pelo Senado nem pelo povo; n ão é n ecessá rio en co n tra r
S ex tu s A e liu s p a ra a in terp reta r; esta lei não é um a em A tenas e outra
Roma; m as é a única e m esm a lei, im utável, eterna e que abrange em to
os tempos todas as nações. U m D eu s ú n ico, se n h o r e im p era d o r de todas as
sa s, por si só, im aginou-a, deliberou-a e prom ulgou-a [...]".
Cultura Jurídica Europeia
295
(ii) Tal lei está presente em todos, podendo ser encontrada
por todos, desde que sigam as evidências da boa razão (rec­
ta ratio), ou seja, da razão do hom em que respeita as suas
inclinações naturais (homo honestus, quí honeste vivit [que
vive honestamente]).
(iii) Este direito é constituído por normas precisas, por leis ge­
rais, certas, e claras, de tal modo que não é necessário um
técnico de direito para as interpretar. A declaração do di­
reito não é, portanto, uma tarefa árdua, precedida de uma
cuidadosa observação e ponderação de cada caso concre­
to, mas uma simples extracção das regras de viver que a boa
razão sugere a cada um (eadem ratio cuni est in hominis mente
confimiata et confecta est lex [a lei é a própria razão, tal como
reside e opera na mente do homem], Cícero, De Legibus, I,
IV). E também não é uma tarefa limitada nos seus resulta­
dos, pois nem a lei natural está sujeita à contingência dos
tempos e dos lugares, nem a razão humana (que é a sua
própria sede) tem dificuldades em a conhecer.
Por outro lado, não há para Cícero uma verdadeira oposi­
ção entre o direito natural e o direito positivo. Pelo contrário, o
quietismo jurídico a que já nos referimos levava à ideia de que
o direito natural tenderia a concretizar-se nas normas positivas
e de que estas constituiriam, portanto, a consumação definitiva
e respeitável do direito natural ("Os costumes e as instituições
são, por si próprios, obrigatórios. Sob o pretexto de que um Só­
crates ou um Aristipo violaram uma ou outra vez os costumes
da cidade, não se deveria cometer o erro de pensar que poderí­
amos agir do mesmo modo...", De officiis, I, 4 1 ,148).349
w Também para Aristóteles e São Tomás não havia um a completa oposição entre
o direito natural e o direito positivo; mas a sua conjugação era de um outro tipo. O
direito positivo, longe de representar o coroam ento da realização do direito
natural, constituía apenas uma tentativa da sua realização, tentativa possivel­
mente fruste, mas cujos resultados deviam ser tidos em conta por qualquer
investigação posterior, tal como os de uma experiência já feita o devem ser nas
experiências subsequentes; por outro lado, o direito positivo era um elemento
a ter em conta no achamento da solução justa, pois criava expectativas.
296
António M anuel Hespanha
É a partir destes ingredientes de origem estóica350que se vai
constituir a doutrina moderna do direito natural. Evidência,
generalidade, racionalidade, carácter subjectivo, tendência para
a positividade, tais são as notas distintivas do jusnaturalismo
moderno, as quais encontramos in ovo na filosofia moral dos es­
tóicos.
7 .x.3 . O jusracionalism o moderno
Mas, para além destas vozes que lhe vinham do passado,
o século XVII encontrou no ambiente filosófico do seu tempo
elementos que contribuíram para formar a sua concepção de um
direito natural, estável como a própria razão. Referimo-nos ao
idealismo cartesiano, embora tal concepção filosófica tenha li­
gações muito profundas com uma anterior escola filosófica da
Baixa Idade Média - o nominalismo de Duns Scotto e Guilher­
me de Occam.351
Descartes (1596-1650) foi um espírito profundamente atra­
ído pela ideia de um saber certo. Ele próprio confessa, referin­
do-se aos tempos de estudante: "Je me plaisais surtout aux mathématiques, à cause de la certitude et de 1'evidence de leurs raisons [...] leurs fondam ents étant si ferm es et si
solides" (Descartes, Discours de la Méthode. Pour bien conduire sa
raison, et chercher la vérité dans les sciences. Première Partie, 1637).
E era esta firmeza e solidez o que ele não encontrava nas disci­
plinas filosóficas, políticas, jurídicas, éticas, etc., tradicionais. Aí,
tudo era mobilidade, incerteza, contradições e disputas. Toda a
primeira e segunda partes do Discours de la Méthode exprimem
o seu estado de espírito sobre este ponto. E daí que lhe vem a
ideia de, apoiado na sua "lu z natural" e no "grande livro do
m undo", estabelecer para estas disciplinas um método que lhes
fornecesse bases tão sólidas como as das matemáticas.
Sobre a doutrina m oral, política e jurídica dos estóicos v . Villey, 1968,428480; Oestrid\, 1982.
351 Sobre o nominalismo dos dois íranciscanos, a sua influência na filosofia mo­
derna e o seu contributo para o pensam ento jurídico, v. Vüley, 1968,147-263.
Cultura Jurídica Europeia
297
A primeira regra deste método é a regra da evidência racio­
nal: nada admitir como verdadeiro que não seja evidente para o
espírito. As outras três das quatro regras cartesianas são com­
plementares desta e destinam-se a tornar evidente aquilo que à
primeira vista o não é.352 Quer dizer, para Descartes (como para
os estóicos) a chave da compreensão estava num interrogar de
si mesmo, num excogitar altivo e isolado, pouco atento às reali­
dades exteriores.
Embora Descartes não se tenha ocupado do direito, o seu
método influenciou, sem dúvida, os juristas que buscavam a
segurança.353
Também estes fizeram fé nas ideias claras e distintas, na evi­
dência racional dos primeiros princípios do direito, na possibili­
dade da sua extensão através da dedução; enfim, no poder da ra­
zão individual para descobrir as regras do justo, de um justo que
fugisse à contingência, por se radicar numa ordem racional (qua­
se matemática) da natureza (mathesis universalis) de que a razão
participava. E é com este direito natural racionalista que se vai
avançar no sentido de tomar mais certo o direito positivo.
y.2 . Algumas escolas jusnaturalistas
A ideia do direito natural, neste novo sentido, vem a impor-se decisivamente na cultura jurídica europeia do século
XVII. De alguma forma, o novo direito natural, fundado na ra­
zão, é o correspondente do antigo direito natural, fundado na
teologia. O pensamento social e jurídico laicizara-se. O que não
é estranho ao facto de, pela primeira vez, se ter quebrado a uni-
352A segunda é a regra da análise (dividir cada dificuldade em tantos elemen­
tos quantos os necessários para a resolver); a terceira, a regra da síntese (co­
m eçar pelos elementos mais aptos a ser conhecidos e progredir sucessiva­
mente, para o conhecim ento dos mais com plicados); a última, a das revi­
sões gerais (assegurar n ada omitir no curso da investigação).
553Boa síntese sobre a novidade desta "jurisprudência racional" - oposta a con­
cepções mais "realistas" (o direito ligado as coisas estabelecidas) do direi­
to natural, Kelley, Donald R., "L e d roit", em Bum s, 1977, 78-86.
298
António Manuel Hespanha
dade religiosa da Europa (com a Reforma) e de se ter entrado
em contacto com povos totalmente alheios à tradição religiosa
europeia. Uma e outra coisa tornavam, de facto, necessário en­
contrar um direito que pudesse valer independentemente da
identidade de crenças. E, com esta laicização, o fundamento do
direito passara a residir em valores laicos, tão comuns a todos
os homens como as evidências racionais.
Esboçada em novos moldes, em primeiro lugar, na Época
Moderna, pela Escola Ibérica de Direito Natural, a ideia de di­
reito natural domina a obra de todos os juristas e adquire aí
imensas consequências práticas.
Trata-se, como se disse, de um novo jusnaturalismo.
Desde logo, emancipado de uma fundamentação religiosa,
ainda que os seus fundadores, na sua maior parte, fossem deístas ou mesmo cristãos. Seja como for, prescindiam, por um lado,
da omnipotência da vontade de Deus, limitando-a pela Sua ra­
zão, ou seja, concebendo um Deus sujeito a princípios lógico-racionais que lhe seriam "anteriores", o que corresponde, não a uma
atitude religiosa, mas a uma atitude racionalista.354Por outro lado,
os fundamentos de que partiam para encontrar uma ordem ima­
nente na natureza humana não eram qualquer vocação, destino
ou finalidade sobrenaturais do homem, ou quaisquer dados da
fé sobre isso, mas antes as suas características puramente tempo­
rais, como os instintos e a capacidade racional.
Ao prescindirem dos dados da fé, estes jusnaturalismos fi­
cam a poder contar apenas com a observação e com a razão como
meios de acesso à ordem da natureza. A observação - histórica
1,51 Muito característica é a posição de G. W. Leibniz (v. infra) "E m qualquer
ser inteligente, os actos da vontade são sem pre, por natureza, posteriores
aos actos do seu entendimento ... isto não quer dizer que haja algo antes
de Deus, mas apenas que os actos do entendim ento divino são anteriores
aos actos de vontade divina", 7 n. 31 [Carta a Bierling, Duttens, 1768, V, 386];
e, assim, "D eus pode criar matéria, um hom em ou um círculo, ou deixá-los
no nada (na não existência), mas não pode produzi-los sem lhes dar as suas
propriedades essenciais. Ele tem que fazer um hom em com o animal racio­
nal e que dar a forma redonda ao círculo" ri. 33 [Teodiceia, II, 138],
Cultura Jurídica Europeia
299
e actual - das sociedades humanas é muito utilizada por estes
autores, estando as suas obras plenas de exemplos tirados da
história ou da observação contemporânea, com os quais apoia­
vam, tanto os traços permanentes da natureza humana e social,
como as suas variantes "locais". Mas, ao lado da observação,
funcionava a razão que, à maneira do que acontecia na física ou
na matemática, (i) identificava axiomas sobre a natureza do ho­
mem - v.g., o homem é dirigido pelo instinto de conservação
(Locke), o homem tem um direito natural à auto-defesa e ao cas­
tigo das injúrias que lhe são feitas (Locke), a justiça é o que se
conforma, ao mesmo tempo, com a justiça e com a bondade (Leibniz), a vontade geral é mais do que a soma das vontades parti­
culares (Rousseau) - e (ii) definia os procedimentos intelectuais
capazes de deduzir desses axiomas outras normas. Estes proce­
dimentos eram, em geral, os que correspondiam ao raciocínio
da física ou da matemática.
"A justiça - escreve J. G. Leibniz, expondo o tipo de raciocí­
nio a utilizar na ciência do direito natural - é um termo fixo, com
um determinado sentido [...] este termo ou palavra justiça deve
ter certa definição ou certa noção inteligível, sendo que de qual­
quer definição se podem extrair certas consequências, usando as
regras incontestáveis da lógica. É isto precisamente o que se faz
ao construir as ciências necessárias e demonstrativas - as quais não
dependem de quaisquer factos - mas apenas da razão, tal como a
lógica, a metafísica, a aritmética, a geometria, a ciência do movi­
mento e, também, a ciência do direito. As quais não se fundam
na experiência dos factos, antes servindo para raciocinar acerca
dos factos e para os controlar antes de se darem. O que também
aconteceria com o direito, se não houvesse lei no m undo".355
355M ed ita çã o
so bre o co n ceito com u m de ju s tiç a (c. 1702-1703), publ. em G. M ollat,
R ech tsp h ilo so p h isch es au s L eib n izen s U n g ed ru ckten S ch riften , Leipzig, 1885. Ou
" [ ...] a justiça segue certas regras de igualdade e de proporcionalidade que
não são menos fundadas na. natureza im utável das coisas do que os princí­
pios da aritm ética e da geom etria", O p in iã o so b re os p rin c íp io s de P u ffe n d o r f
(1706), publ. em Louis Duttens, G od. G u il. L cibn itii, O pera om n ia , T oum es,
Genève, 1768, IV. V. in fra.
300
António M anuel H espanha
E, por isso, é muito frequente encontrar nestes autores ima­
gens ou modelos de argumentação importados da matemática
ou da física. Rousseau, por exemplo, constrói extensos passos
do Contrato social sobre modelos de raciocínio inspirados pela
matemática. Assim, por exemplo, constrói as relações entre Es­
tado, soberano e governo sob a forma de uma figura matemáti­
ca.356 E, embora diga que nas matérias políticas não se pode uti­
lizar o raciocínio da aritmética (Contrato social, III, 1), muitas das
suas conclusões sobre as melhores formas de governo baseiamse em cálculos feitos sobre esta proporção. Samuel Pufendorf é
igualmente rotundo nas suas afirmações sobre o parentesco en­
tre o direito e as ciências formais. Conceitos como o de "força",
bem como outras imagens extraídas da dinâmica, aparecem fre­
quentemente a explicar as relações entre vontade individual e
vontade geral.357
O modelo geral da natureza de que partem é um modelo
mecanicista, inspirado na física do seu tempo. E, assim, a substi­
tuição de uma estrutura mental teológica por uma outra domi­
nada pelo novo pensamento científico manifesta-se, ainda, na
substituição de um modelo finalista por um modelo mecanicista.
Ou seja, neste mundo que prescinde da dimensão sobrenatural e
se concentra nas explicações ao nível puramente temporal (físi­
co), a natureza do homem é agora encontrada, não pela sua fina­
lidade última (Deus, a salvação, a vida em comum), mas pelas
causas das suas acções (a vontade, os instintos). O direito da na­
tureza deixa de ser aquele exigido pela preparação da cidade di-
356"É no governo que se encontram as forças interm édias, cujas relações com­
põem a relação do todo ao todo, do soberano ao Estado. Pode representarse esta última relação pelo dos extrem os [a, c] de um a proporção contínua
[a /b = b /c ], cuja m édia proporcional é o governo [b]. O governo recebe do
soberano as ordens que dá ao povo; e para que o Estado esteja em bom equi­
líbrio, é preciso que haja igualdade entre o produto ou potência [= b2] do
governo tom ado em si m esm o e o produto ou potência dos cidadãos, que
são soberano de um lado e súbditos de outro [a x c]" (Contrato social, 111, 1 ).
J. G. Leibniz é ainda mais ousado na utilização de m odelos matemáticos.
357 V.g., em John Locke (Two treatises of govemm ent, 1690, II, 7, 96) e Jean-Jacques R ousseau (Du contrat social, 1 7 6 2 ,1, 6).
C ultura Jurídica Europeia
301
vina, mas aquele que decorre da manifestação das tendências ce­
gas naturais do homem ou da necessidade de as garantir.
Ao prescindir da ideia de finalidade, de ordenação do ho­
mem para algo que o transcende (seja Deus, seja ã sociedade),
este novo pensamento social fica limitado, nas suas referências,
ao indivíduo. Este é, como veremos, o ponto de apoio de todas
as construções do direito da natureza, embora varie de autor
para autor a definição das suas características mais relevantes
para este fim - uns salientam o seu impulso de conservação in­
dividual, outros o seu desejo de felicidade, outros o seu instinto
de propriedade, outros a busca da utilidade. Alguns - fazendo
a ponte com concepções anteriores - continuam a referir o seu
desejo de sociabilidade ou, o que é quase o mesmo, a sua depen­
dência da sociedade para garantir a conservação individual.
Voltaremos, em breve, ao tema.
Perdida - ou atenuada358- a referência a uma ordem social
natural, estabelece-se a nova - embora com raízes antigas - ideia
de que os vínculos e a disciplina social são factos artificiais, cor­
respondentes à criação da ordem política por um acordo de von­
tades. A vontade passa a ser, assim, única a fonte da disciplina
política e civil. Embora o voluntarismo radical seja temperado
pela ideia - diversamente formulada - de que esta vontade háde ser guiada pela razão.
Seleccionam-se, de seguida, algumas das principais orien­
tações jusnaturalistas, apontando-se os tópicos fundamentais de
cada uma delas.
7 .2 .1 . Os jusnaturalism os individualistas
Sob esta designação pretende-se englobar todos aqueles
pensadores que apresentando porventura entre si diferenças
158N em todos os autores identificam o estado de natureza com o caos social,
negando a possibilidade de existência de um a ordem social natural. John
Locke, p o r exem plo, concebe a possibilidade de um a sociedade natural,
embora deficientemente garantida.
302
António Manuel Hespan]
marcantes, partiram para a construção dos seus sistemas jusn
turalistas dos instintos inatos do indivíduo.
Esta ideia de que o indivíduo - o homem, tomado isolad
mente, considerado como desligado dos grupos em que está ii
serido, não caracterizado pelas funções que aí desempenha - es
na base do direito, remonta ao nominalismo de Duns Scotto
Guilherme Occam,359 corrente que, como temos vindo a ve
inaugurou muitas das ideias básicas do pensamento jurídico m
derno. Mas o impulso decisivo foi-lhe dado pelo cartesianisrr
e, também, pelo empirismo que, cada um a seu modo, defin
ram a natureza do homem e dela fizeram derivar direitos indi-v
duais, inalteráveis e necessários.
A definição do homem feita pelo cartesianismo era a de s.
racional: ser que buscava a verdade através da razão; ser qu
intelectualmente, não se dobrava senão à evidência racional,
tal ente não podiam deixar de se reconhecerem dois direito
decorrentes da sua natureza: o de usar livremente a razão (r
campo teórico) e o de desenvolver (no campo prático ou da a
ção) racionalmente a sua personalidade (i.e., o de pautar a st
acção pelos princípios que lhe eram ditados pela razão).
Já o empirismo, que partia de uma observação do homei
concreto: o homem, mais do que um ser racional, era um ser a
mandado pelos instintos (o da conservação, o da perpetuação, etc,
Era a estes instintos que o direito devia garantir o livre curs'
podendo dizer-se que a sua satisfação (a felicidade) constituía u]
direito natural.360
J59 Enquanto que a filosofia clássica dava existência real ao h o m em "situ a d o " e
certas estru tu ra s so ciais (com o "p a i", com o "cid ad ão ", com o "filho"), e, po
tanto, considerava com o reais ou naturais os direitos e deveres decorre:
tes de tal situação, a filosofia social nom inalista considera os indivídui
isolados, sem outros direitos ou deveres senão aqueles reclam ados pela si
natu reza in d iv id u al, ou pela sua vo n ta d e (e eis aqui o pendor "voluntarist«
do nominalismo, que está na base do positivismo m oderno). Sobre isto,
síntese de Villey, 1 9 6 8 ,1 9 9 ss.
360Ideia que é de raiz estóica e que aflora, por várias vezes, no D ig esto (as inc
nações n atu rais do hom em com o an im al [D .,1 ,1 ,3 ]; a legítim a defe:
[D.,43,16,1,27], etc.).
Cultura Jurídica Europeia
303
Como acabamos de ver, o direito natural não deriva agora
da natureza cósmica ou da(s) natureza(s) da(s) sociedade(s)
(como acontecia com o direito natural aristotélico-tomista), mas
da natureza do homem individual e da observação daqueles
impulsos que o levavam ã acção. E, pelo que vimos até aqui, a
"sociabilidade" (característica essencial da espécie humana em
Aristóteles, para quem o homem era "um animal político") não
constituía, para uma grande parte destes pensadores,361 um des­
ses impulsos. Pelo contrário: perante a sua necessidade "natu­
ral" de agir racionalmente ou de agir instintivamente, a socie­
dade chegava a aparecer como um obstáculo, pois nela não era
possível dar livre curso a estes impulsos sem chocar com os de­
sígnios de acção dos outros. Por isso é que a maior parte dos
pensadores jusracionalistas defendem que a instituição da soci­
edade organizada (sociedade política) representa a limitação dos
direitos naturais.
De facto, levado pela consideração dos interesses da vida
em comum, para a qual se sentiam inclinados (Hugo Grócio,
John Locke), ou pelo medo de um estado de natureza em que a
satisfação dos impulsos naturais gerava contínuas lutas (Th.
Hobbes), os homens celebram entre si um pacto, pelo qual limi­
tam a sua liberdade natural, entregando na mão dos governan­
tes o poder de editar regras de convívio obrigatórias. E o "con ­
trato social", cujos germes já se encontram em Suarez, mas cuja
teoria é agora amplamente desenvolvida.
361 N em todos. Grócio, ainda muito ligado às autoridades tradicionais, conti­
nua a reconhecer o "appetitus societatis" com o um dos impulsos naturais do
hom em . Este agiria impelido pela razão e pelo instinto gregário. E então o
direito natural não seria apenas um reconhecim ento dos direitos naturais
individuais, m as tam bém a ordem que preside à sociedade hum ana (vin­
culum humanae societatis), v. Solari, 1 9 5 9 ,1 3 ss.. Tam bém Samuel Pufendorf
(1632-1694) - um pensador hoje menos conhecido, mas de enorm e influên­
cia na época, nom eadam ente entre os juristas - reconhece uma dim ensão
social na natureza do hom em , p rovocad a pela incapacidade h um ana de
viver sem o auxílio dos seus congéneres; de onde a conservação individu­
al decorrer tam bém da conservação da com unidade (Burns, 1997, 509-533).
304
António M anuel Hespanha
A teoria do "contrato social" não deu lugar, somente, às
teorias democráticas que tiveram o seu epílogo na Revolução
Francesa. Ela pôde também fundamentar o "despotismo ilumi­
nado", típico das monarquias e principados europeus do sécu­
lo XVIII. Tudo dependia, de facto, do conteúdo do contrato, pois
os jusnaturalistas acabavam, como se vê, por depor a faculdade
de moldar a constituição política nas mãos dos membros da co­
lectividade.
Para uns - os mais pessim istas quanto à natureza hum a­
na, como Thom as Hobbes (1588-1679)362-, os perigos do "es­
tado de natureza" levavam a que os hom ens decidam depor
todos os seus direitos na mão do príncipe, a fim de que este
zelasse, com o pulso livre, pelo bem com um e pela felicidade
individual. A única lim itação do príncipe seria a necessida­
de de governar racionalm ente, ou seja, de forma adequada aos
objectivos que tinham estado na origem da instituição da so­
ciedade política ("assegurar a paz e a defesa com um ", Th. Ho­
bbes, Leviathan [...], 1651, cap. 17). Por oposição, o governo
despótico e arbitrário seria típico "d o T u rco", im agem muito
com um nesta literatura para designar uma form a tirânica de
governo. Assim , o soberano poderia legislar e governar sem
lim ites, as suas razões ou os seus actos não podiam ser julga­
das pelos súbditos, não estava sujeito a nenhum a "razão do
direito" (iurisprudentia, ratio iuris) inventada pelos juristas, era
o único intérprete autorizado das leis (ibid., caps. 18,26). Nes­
te caso, o próprio direito natural desaparece com a institui­
ção da sociedade política, justam ente porque, uma vez insti­
tuído o soberano como único legislador, não há lugar para
qualquer direito que não tenha origem nele. Leis naturais e
costum es valem apenas enquanto não forem contrariados
pelas suas leis positivas; e, neste sentido, se não provêm da
362Sobre Hobbes, cf. B um s, 1997; Z arka, 1995. Sobre o pensam ento político in­
glês da sua época, Bum s, 1997; Harrisson, 1995; Burgess, 1992; Carrive, 1994,
Álvarez Alonso, 1999, 89 ss..
Cultura Jurídica Europeia
305
vontade positiva do soberano, provêm, pelo menos, da sua
paciência (ibid., cap. 26).
Uma outra versão do contrato social é a de John Locke
(1632-1704), segundo o qual a constituição do estado político
não cancela os direitos de que os indivíduos dispunham no
estado de natureza. Na verdade, o estado político apenas ga­
rantiria uma melhor administração dos direitos naturais, subs­
tituindo a auto-defesa e a vingança privada pela tutela de uma
autoridade pública. Por isso mesmo, o soberano, que não era
a fonte nem do direito de natureza nem dos direitos individu­
ais daí decorrentes, estava obrigado a respeitar o direito natu­
ral e os dos direitos políticos dos cidadãos: " [...] sendo o legis­
lativo apenas um poder fiduciário para agir no sentido de cer­
tos fins, continua a permanecer no povo um poder supremo
para remover ou alterar o legislativo, quando achar que o le­
gislativo age contrariamente à confiança que se lhe deu [...].
E, assim, a comunidade retém permanentemente o poder su­
premo de se libertar dos atentados e desígnios de qualquer um,
mesmo dos seus legisladores, desde que eles sejam tão estul­
tos ou danados para formar ou levar a cabo desígnios contra
as liberdades e propriedades dos súbditos" (Two treatises o f
government, 1690, II, 13, p. 192).
Assim, do ponto de vista das formas políticas, vamos ver o
jusracionalismo desdobrar-se em duas grandes orientações: a
demo-liberal, inaugurada por John Locke e desenvolvida pelos
jusracionalistas franceses, e a absolutista, com origem em Thomas
Hobbes e com um representante de nota em Samuel Pufendorf
Para além do seu significado na história das ideias políti­
cas, o jusnaturalism o individualista interessa-nos como um
363Samuel Pufendorf (1632-1694) é mais jurista do que filósofo e, por isso, de­
sem penhou um papel de extraordinário divulgador das novas correntes de
pensam ento político entre os juristas. A sua obra ( E lem en ta iu risp ru d en tíae
universalis, 1660; D e ju r e n a tu rae e t g en tiu m , 1672; D e o fficio h o m in is e t civis
secu n d u m legem n atu ralem , 1673) teve edições sucessivas durante o séc. XVIII
e serve de base ao despotism o ilum inado europeu, desde a Prússia e a Áus­
tria até Portugal. Cf. Denzer, 1972; Solari, 1959, 62 ss; Bum s, 1997, 509-533.
306
António Manuel Hespanl
movimento especificamente jurídico. E, deste ponto de vista, e.
apresenta certos elementos bastante significativos para a futui
evolução do pensamento jurídico. Percorramos os principais.
7.2.1.1. A teoria dos direitos subjectivos
Estamos hoje tão habituados, pelo menos na teoria do d
reito privado, a ouvir falar de direitos subjectivos, a equipan
o direito (na sua acepção subjectiva) a um poder de vontad
garantido a certo sujeito, que nos custa a crer que tal noção t<
nha tido um começo. Esta é uma das tais figuras que nos pan
cem indispensáveis na dogmática jurídica. Porém, a noção d
direito subjectivo nem sempre fez parte do arsenal teórico dc
juristas. Ela foi sendo construída pouco a pouco, até atingir a su
fase de perfeição com os jusracionalistas.
Os direitos subjectivos são, na concepção jusracionalista, c
direitos, atribuídos pela natureza a cada homem, de dar livr
curso aos seus impulsos instintivos ou racionais. Estão portar
to, ligados à personalidade, à sua defesa, à sua conservação, a
seu desenvolvimento.
Os jusracionalistas pensavam, ainda, que estes direite
(também denominados de "naturais", ou "inatos", ou numa te:
minologia mais moderna, "da personalidade") não podiam dt
senvolver-se plenamente no estado de natureza, pois o livre dc
senvolvimento dos direitos de um chocaria com idêntico deser
volvimento dos direitos do outro. Por isso, o "estado da nature
za", correspondente à livre agregação dos homens, era um es
tado de guerra (Th. Hobbes) ou, pelo menos, de insuficiente ga
rantia das faculdades individuais (J. Locke). Constituída a soei
edade civil através do contrato social, tais faculdades ficariar
restringidas - em graus diversos, segundo os autores -, mas o
sujeitos ganhariam uma caução pública para os direitos que lhe
viessem a ser confirmados.
De facto, o alcance do contrato social é a redução dos di
reitos inatos a fim de tornar possível a convivência. Em certo
autores, partidários do absolutismo - v.g., Hobbes -, tal redução
Cultura Jurídica Europeia
307
vai ter uma amplitude enorme.364 Embora noutros - nos repre­
sentantes da orientação liberal365- os direitos subjectivos conti­
nuem a impor-se mesmo perante o Estado.
Esta teoria dos direitos naturais (ou subjectivos), que come­
ça por ter aplicações importantes nos domínios do direito pú­
blico, era, na sua natureza íntima, uma teoria de direito priva­
do, pois dizia respeito, originariamente, ao modo de ser das re­
lações entre os indivíduos.
E foi, de facto, nos domínios do direito privado que ela teve
consequências mais duradouras, fornecendo a base para a cons­
trução doutrinal efectuada pela "pandectística" alemã do sécu­
lo XIX (cf. infra, 8.3.3.).
.wpara Hobbes, os cidadãos só conservariam o direito de livre consciência e o
de legítima defesa [logo, apenas entre particulares; o único caso de legíti­
ma defesa contra o poder público sendo o do condenado à m orte contra o
carrasco] (v. Villey, 1968, cit., 665); por sua vez, Pufendorf, um outro repre­
sentante das tendências absolutistas, defende que os direitos naturais não
são "p erfeitos", só se tom ando efectivos depois de positivados pelo E sta­
do. Em Rousseau, os direitos do estado de natureza - que correspondem
aos desejos instintivos ( a v o n ta d e p a rticu la r) - desaparecem com a conclu­
são do pacto social, que apenas atribui aos cidadãos direitos racionais, com ­
patíveis com a vontade geral (com a lei) (cf. Rousseu, D o co n tra to so cia l, I,
8). Isto faz com que o poder soberano, que se exprim e por meio da lei, não
tenha limites, salvo o de não poder im por aos cidadãos encargos inúteis
do ponto de vista da com unidade (racionalidade) e o de não poder dispor
senão de forma genérica (generalidade) (ibid., II, 4).
365É o ponto de vista de Locke, o teórico inglês do liberalismo. O optim ism o
social e filosófico de Locke fá-lo pensar que, tendo o homem tendência para
a felicidade e para a utilidade, é possível instaurar uma ordem social diri­
gida aos instintos hedonistas dos homens. Tal será o "estad o de n atureza"
que, longe de ser um a hipótese, é um ideal actualm ente factível, e que, em
Locke, correspondia à idealização da sociedade burguesa da Inglaterra do
seu tem po. Sendo assim , os direitos subjectivos m antinham -se na socieda­
de civil e deveriam ser respeitados na sua organização, sob pena de os in­
divíduos poderem pôr termo ao Estado tirano que assim se afastava dos
fins para que fora constituído ("... the su p re m e po iu er to reversc o r a lte r the lcg isla tiv e, zvhen th ey f i n d the leg islativ e a ct co n tra ry to the tru st rep osed in them ",
Locke, O n C iv il G o v ern m en t, XIII).
308
António M anuel H espanha
Todo o direito privado vai, então, ser visto como uma for­
ma de combinar e harmonizar o poder que cada um tem de de­
senvolver a sua personalidade.
Recordemo-nos, de facto, que a premissa básica do jusnaturalismo individualista era a existência de um direito inato de
cada homem ao desenvolvimento da sua personalidade (raci­
onal ou instintiva, não interessa agora). O contrato social visa­
ra, mesmo, garantir esse direito na vida social, criando uma en­
tidade (o Estado) que assegurasse a cada um a satisfação dos
seus direitos em toda a medida em que tal satisfação não pre­
judicasse os direitos dos outros. Assim, se pelo contrato social
se criava o direito objectivo, não se criavam direitos subjecti­
vos: estes existiam antes da própria ordem jurídica objectiva,
sendo o seu fundamento e a sua razão de ser. A origem da sua
legitim idade está no carácter naturalm ente justo do poder de
vontade (W illensmacht), através do qual o homem desdobra a
sua personalidade.
No entanto, tendo em vista a sua própria garantia, o Esta­
do e o direito podem comprimir um tanto os direitos de cada um,
na medida em que isso seja exigido pela salvaguarda dos direi­
tos dos outros. O direito objectivo aparece, então, como um se­
máforo, dando luz verde ou vermelha aos "poderes da vonta­
de" (que se movem por si), conforme as necessidades do tráfe­
go jurídico.
Portanto, na base de todo o direito civil vêm a estar os di­
reitos subjectivos, definidos como "poderes de vontade garan­
tidos pelo direito" ,366 São de tal natureza o direito do credor de
exigir a prestação do devedor e de executar o seu património
no caso de incumprimento; o direito do proprietário de usar e
abusar da sua propriedade com total exclusão de terceiros; o
direito de exigir do outro cônjuge, quer abstenções (v.g., o di­
* s "U m poder pertencente à pessoa, um domínio onde reina a sua vontade, e
onde ela reina com o nosso aco rd o " (Savignv, System des heutigen römischen
Rechts, 1840).
Cultura Jurídica Europeia
309
reito à fidelidade conjugal), quer acções (v.g., o chamado "dé­
bito conjugal" e o amparo económico); o direito dos filhos a
"alim entos", etc. Todos estes (e outros) direitos subjectivos cor­
responderiam à expressão de uma vontade. Não haveria, mes­
mo, efeitos de direito senão os provocados pela manifestação
de uma vontade.
Foi esta concepção individualista e voluntarista367(que tam­
bém tem repercussões na teoria das fontes de direito) que se
substitui à construção aristotélico-tomista do direito privado e
que, já no nosso século, sofreu o embate das concepções institucionalistas;368 e foi também com base nela que se fizeram os có­
367A influência das doutrinas ética e jurídica de K ant sobre a "teoria da von­
tad e" (Willetheorie) foi muito im portante e contribuiu para o seu definiti­
vo estabelecim ento na dogm ática civilista. K ant realçou, de facto, a au to­
nom ia da vontade e o seu papel criad o r de valores universais, ao mesmo
tem po que fez da von tad e (ou da liberdade) o esteio da personalidade
m oral. O direito consistia na form a da relação entre os arbítrios das pes­
soas, da relação entre dois arbítrios que, exteriorizando-se se encontram ;
a acção justa (ou jurídica) seria, então, a que, segundo um a lei universal,
coexistisse com o livre-arbítrio de cad a um. V., sobre os fundam entos da
"ra z ã o p rática" e mais concretam ente, sobre os seus ideais ético-jurídicos,
Solari, 1959, 202 ss.
368O institucionalismo (cf. infra, 174 ss.) desenvolve-se já nos inícios deste sécu­
lo; trata-se de um transpersonalismo, i.e., de um a doutrina que radica o di­
reito, não nas pessoas individualmente consideradas, m as em realidades
englobantes (os grupos hum anos ou certas ideias norm ativas próprias e
necessárias). São estas realidades ("instituições", v.g., a família, a proprie­
d ade, o Estado) que, dispondo de um a norm atividade em si, atribuem a
cad a um o "su u m " (seu). O direito de cada um é, portanto, derivado e não
próprio ou subjectivo (ou seja, radicado ou sujeito). A herança tomista é aqui
bem clara; e a sua ligação com a vaga anti-dem ocrática e totalitária do seu
tem po (a que forneceram cobertura teórica) não o é menos. Principais re­
presentantes: Otto Gierke (1841-1921), H auriou (1856-1929) e Santi Roma­
no (1875-1947).
310
António M anuel Hespanh;
digos civis do século passado369e que está escrita uma boa parti
dos nossos manuais de direito privado.370371
7.2.1.2. Voluntarismo
Quando nos referimos a voluntarismo, queremos signifi
car a doutrina segundo a qual o direito tem a sua fonte, não num;
ordem objectiva (da natureza, da sociedade), não em direito:
naturais e irrenunciáveis do homem, não numa lógica jurídia
objectiva, mas no poder da vontade.
Já antes (cf. supra, 5.6.1.1) falámos de "voluntarismo", a pro
pósito da filosofia do direito de Santo Agostinho, justamente nes
tes termos. Vimos como, para o augustinianismo, tal vontade era
primeiramente, a vontade divina, embora, de forma derivada, í
própria vontade humana (dos governantes) viesse a ser revesti
da de igual dignidade, já que estes o eram por vontade de Deus
369O Código Civil português de 1867 é um exem plo frisante. Logo o art° I o podf
ler-se: "Só um hom em é susceptível de direitos e obrigações..."; e no art° 2
define-se "d ireito" como a "faculdade moral de praticar ou deixar de pra
ticar certos factos".
370A "teoria dos direitos subjectivos" ou "teoria da von tad e" tem sido subme
tida a um a crítica cerrada pela "jurisprudência dos interesses" (R. v. Jhe
ring, 1818-1892), pelo institucionalismo e pelas concepções socialistas nc
domínio da filosofia social e do direito. As críticas que lhe têm sido feita:
são de três tipos: teóricas, pragm áticas e éticas. As prim eiras centram -se n£
falsidade da correspondência entre o direito e a vontade (haveria, na ver
dade, direitos a que não corresponderia qualquer vontade válida, v.g., a doí
menores ou a dos interditos) ou na inviabilidade de explicar através delí
as relações constituídas em certos sectores do direito (v.g., o direito da fa­
mília ou o direito penal). As segundas baseiam-se na alegação de que a vi
são subjectiva do direito im pede a adequada apreensão das verdadeira:
realidades jurídicas, isolando as relações de direito privado da realidadf
social. As terceiras insistem em que o direito subjectivo é a expressão de
um individualism o exagerado, para o qual o hom em só tem direito e não
também, deveres. Por isso, a sua sobrevivência em m uitos sectores da dog­
mática privatística está hoje de todo com prom etida. Sobre isto, v. a síntes«
de Coing, 1964.
371 W iederkesr, 1965, 234 ss., maxime 245-246.
Cultura jurídica Europeia
311
Também então se disse que as posições de Santo Agostinho não
ficaram sem continuação na história do pensamento jurídico eu­
ropeu, apontando-se-lhe como sobrevivências as teorias franciscanas que, grosso modo, identificámos com o nominalismo.
São, de facto, Duns Scotto e Guilherme d'Occam, quem vem
retomar a tradição voluntarista, durante alguns séculos submer­
gida pelos pontos de vista jurídicos de São Tomás.
Ainda aqui, a restauração da tradição augustirúana está li­
gada ao colapso das teorias de Aristóteles e de S. Tomás. Se, para
estes, o fundamento do direito consistia numa ordem do juste
inerente à comunidade humana, agora, desfeita a ideia de ordem
natural, o direito não pode basear-se senão na vontade dos ho­
mens ou de Deus. E é assim que Scotto funda a lei positiva na con­
venção dos membros da colectividade ("ex communi consensu
et electione" [por consenso comum e escolha], Opus Oxoniensis,
IV, 15,2, concl. 5). E Occam dá uma volta completa à própria no­
ção de "direito natural", equiparando-o, num sentido, a direite
estabelecido (posto) por Deus nas Escrituras ("in Scripturis... continetur" [est.. continetur", está contida nas Escrituras], Dialogus),
e noutro, às consequências que decorrem racionalmente de uma
convenção (t.e., de um acordo de vontades) entre os homens, ou
de uma regra jurídica positiva ("illud quod ex iure gentium ve]
aliquo pacto humano evidenti ratione colligitur, nisi de consen­
su illorum quod interest, statuatur contrario [aquilo que se colhe
pela evidência racional do direito das gentes ou de algum pactc
humano, a menos se estipule o contrário pelo consenso daqueles
a quem interessa]". A vontade não está sequer prisioneira da ló­
gica, pois a consequência racional poderá ser ainda afastada pelo
acordo dos interesses (v. última parte do texto citado).
Tomado no seu conjunto, jusracionalismo moderno é, a este
propósito, um tanto paradoxal. Na verdade, a insistência na ra­
zão e a aproximação do direito em relação a saberes como a
matemática ou a lógica levaria a valorizar uma justiça objectiva
e não arbitrária, correspondente ao carácter não voluntário das
proposições das ciências formais, na determinação das quais a
vontade não tem qualquer império. E, como veremos, há pen­
sadores que apontam, mais ou menos radicalmente, neste sen­
312
António M anuel Hespanha
tido. No entanto, o racionalismo destas correntes é, antes de
tudo, um racionalismo metodológico, ou seja, um método racional
de atingir a natureza da sociedade e do homem e de concluir daí
o tipo de ordem que preside às coisas humanas.
No entanto, concluída esta análise racional, muitos dos au­
tores identificam a liberdade e auto-determinação (ou seja, o po­
der de vontade) como os traços mais característicos da natureza
do homem e o contrato como o fundamento da sociedade. Ou seja,
um método racionalista de averiguação, desemboca num mode­
lo voluntarista da ordem social, i.e., num voluntarismo axiológico.
É a este último aspecto que dedicaremos os parágrafos se­
guintes.
Com o jusracionalismo da Época Moderna, o voluntarismo
não pode ser senão reforçado.
De facto, ainda no "estado de natureza", os direitos de cada
um não se fundavam senão no direito essencial do homem à ma­
nifestação da sua personalidade através de "acções livres", sen­
do a liberdade o poder de "querer sem limitações". Daí que os
direitos naturais andassem intimamente conexos com a manifes­
tação desta vontade, por ora meramente atenta ao bem estar par­
ticular. Para alguns autores mais radicalmente individualistas,
não havia riscos de contradição entre esta vontade e a razão, pois,
por um lado, os homens podiam conhecer sem esforço a lei da
natureza e, por outro, eram capazes de dominar os seus instintos
e querer apenas aquilo que estivesse conforme com a razão.372 Para
372 "6. Porém , em bora este estado seja um estado de liberdade, não o é de licen­
ça; embora o hom em tenha, neste estado, um a liberdade incontrolável para
dispor da sua pessoa ou possessões, todavia não tem liberdade para se des­
truir a si m esm o, ou qualquer criatura na sua posse, a não ser que algum uso
mais nobre do que a sua m era conservação o exija. O estado de natureza tem
uma lei da natureza para o governar, que obriga todos, e a razão, que é esta
lei, ensina a toda a hum anidade que a queira consultar que os seres são to­
dos iguais e independentes, nenhum devendo fazer m al a outro, na sua vida,
saúde, liberdade ou posse" (JohnLocke, Two treatises o f govemm ent,ll, 2); "63.
A liberdade de todos os homens e a liberdade de agir de acordo com a sua
própria vontade, baseia-se no facto de ter razão, a qual é capaz de o instruir
naquele direito pelo qual ele tem que se governar a si m esm o e de lhe fazer
saber de quão longe está da liberdade da sua própria vontade [...]" (ibid., 11,4).
Cultura Jurídica Europeia
313
outros, mais pessimistas quanto à bondade natural do homem,
não existia qualquer razão superior à vontade. Esta era desenca­
deada mecanicisticamente por estímulos externos, sendo a razão
apenas a capacidade de orientar a acção para os fins apetecidos.
Ou seja, a razão não era o fim, mas o meio e, por isso, toda a von­
tade era racional.373
Mas, se passarmos a considerar o estado político, a sua radi­
cação na vontade é ainda mais clara, pois o estabelecimento da
própria ordem jurídica objectiva se fez através de um acto vo­
luntário dos homens (o "contrato social"), cujo conteúdo é aquele
de que eles lhe querem dar para a salvaguarda da vida em co­
mum.
E, estabelecido o governo civil, o poder de criar o direito atra­
vés de actos de vontade não tem limites. Pelo menos não lhos
reconhece a maior parte dos autores, quer este se situem nas
hostes absolutistas, quer pertençam às dos liberais.
Toda a diferença entre eles está no modo como concebem
esta vontade que dá origem ao direito, bem como as suas rela­
ções com a razão (cf., infra, 8 .2 .).
Os liberais (antes de tudo, Locke) procuram combinar von­
tade e razão, com base no carácter racional da vontade indivi­
dual no estado de natureza, a que já nos referimos. Isto porque,
por um lado, o advento do estado político não cancelaria essa
lei da natureza que iluminava a vontade no estado de natureza
e, por isso, continua a constituir um padrão para julgar as leis
políticas. Por outro lado, a vontade que está na origem das leis
políticas é esse mesma vontade dos indivíduos, de que o Esta­
do não é senão um representante.
Na verdade, Locke manteve-se numa concepção tradicio­
nal do pacto político, concebendo-o à maneira de um pacto pri-
375"O
direito natural, a que os autores geralmente chamam ju s natu rale, é a liber­
dade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que
quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e
consequentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio ju lg a m en to e razão
lhe in diqu em com o m eios a d eq u ad o s a esse fim " (Th. Hobbes, Leviathan , cap. 14).
314
António Manuel Hespanha
vado (quod omnes tangit, ab omnibus approbari debet, aquilo que
toca a todos deve ser aprovado por todos). A vontade que daí
resultava era o produto da soma das vontades individuais e nãc
uma vontade nova. Daí que aquela sabedoria moral dos indiví­
duos se mantivesse no Estado, o qual podia conhecer as regras
racionais de vida em comum e querer (legislar) de acordo corr
elas .374 Claro que sempre se pode dizer que esta mesma perma­
nência da lei natural, como orientadora da vontade política, já
constitui uma limitação do voluntarismo, da qual resultam, ali­
ás, consequências concretas, nomeadamente quanto ao direitc
de resistência ou de revolta .375
374O poder de a maioria impor a sua vontade à minoria era explicado por urr
raciocínio mecanicista, im portado da dinâm ica, segundo o qual a vontade
do m aior núm ero tem mais força do que a vontade da minoria, arrastande
esta quando se forma a vontade do corpo. Locke explica isto nos seguintes
termos: "96. [...] Quando qualquer núm ero de homens, por meio do con­
sentim ento de cada indivíduo, constituiu um a com unidade, eles transfor­
m aram por isso mesmo essa com unidade num corpo, com o poder de agii
com o um só corpo, o qu e a co n tece a p en a s p e la v o n ta d e e d eterm in ação da m aio­
ria. U m a v ez q u e a qu ilo qu e p õem em m o v im en to u m a co m u n id ad e é a p en as o con ­
sen tim en to dos in d iv íd u os d ela e, u m a v ez qu e co n stitu in d o ela um ú n ico corpo, sc
d ev e m ov er n u m a ú n ica direcção, é n ecessá rio qu e o co rp o se p o ssa m o v er nessa
d irec çã o com a m aio r fo r ç a qu e h a ja nele, a q u al e o co n sen tim en to da m aioria. De
outro m odo seria impossível que ela agisse ou perm anecer com o um sc
corpo, com o um a com unidade, com o cada indivíduo que a constitui con­
cordou que fosse; e por isso cada um está limitado por aquele consentimento
a ser concluído pela m aioria" (Locke, T w o treatises o fg o v e m m e n t, II, 7, p. 165).
Partilhando ainda de certos traços tradicionais (a vontade colectiva como
som a das vontades individuais, o soberano com o rep resen ta n te dos cida­
dãos), Hobbes, L eviathan , cap. 17.
375" [ ...] estar subordinados, m esm o assim , sendo o legislativo apenas um po­
der fiduciário para agir no sentido de certos fins, continua a perm anecer
no povo um p od er suprem o p ara rem over ou alterar o legislativo, quan­
do ach ar que o legislativo age con trariam en te à confiança que se lhes deu
[...]. E assim a com unidade retém perm anentem ente o poder suprem o de
se libertarem dos atentados e desígnios de qualquer um , m esm o dos seus
legisladores, desde que eles sejam tão estultos ou danados para form ar
ou levar a cabo desígnios contra as liberdades e propriedades dos súbdi­
tos" (II, 13).
Cultura Jurídica Europeia
315
Os não liberais (absolutistas, jacobinos), pelo contrário, su­
bordinam totalmente a razão à vontade, no sentido de que não
reconhecem quaisquer limites para a vontade do soberano. Para
eles, a vontade soberana (legislativa, geral) é diferente da soma
da vontade das partes. Na verdade, o pacto social daria origem
a uma entidade nova, o corpo político, que era o detentor do
poder de exprimir os comandos sobre a comunidade. Pertencen­
te a uma pessoa diferente (pessoa moral, ens moralis, na termi­
nologia de Pufendorf), esta vontade legislativa tem característi­
cas diferentes das vontades particulares: deseja sempre o bem
geral e, logo, é sempre racional. Embora tenha sido Pufendorf
quem primeiro construiu uma teoria acabada da personalidade
pública , 376 a construção do carácter soberano e absoluto da von­
tade legislativa foi levada a cabo, de forma exemplar, por Hobbes e por Rousseau.
Para ambos, a vontade legislativa era soberana e absoluta.
Primeiro, no sentido de que se impunha absolutamente a todos
os súbditos, só restando a estes a hipótese de, originalmente, não
assinarem o pacto social ou de, subsequentemente, se expatria­
rem. Esta é a opinião de Hobbes, que não reconhece aos súbdi­
tos quaisquer direitos em relação ao soberano. Rousseau, pelo
seu lado, define o poder do corpo político sobre os súbditos como
absoluto: "Com o a natureza dá a cada homem um poder abso­
luto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo
político um poder absoluto sobre todos os seus; e é esse mesmo
poder que, dirigido pela vontade geral, leva, como disse, o nome
de soberania [...]" (Do contrato social, II, 4, p. 74).
Depois, a vontade legislativa era absoluta no sentido de que
não conhecia limites materiais, ou seja, não estava subordinada a
376Cf. Bum s, 1997, 511 ss. Segundo Pufendorf. a causa rem ota destas pessoa e
vontade públicas é Deus, sendo pacto social (a vontade hum ana) apenas a
condição (ou causa próxim a) da sua instituição. Daí que o governo político
e as suas leis tenham um carácter sem i-sagrado, não podendo ser desobe­
decidas. Já Francisco Suarez tinha encontrado um a form ulação próxim a
desta ao origem divina m ediata do poder político (a Dco, per populum, de
Deus, por meio do povo).
316
António M anuel Hespanha
nenhum preceito exterior a si mesma. Para se compreender bem
o alcance desta afirmação é, no entanto, necessário esclarecer que
esta vontade pública continha em si mesma o seu objectivo, ou
seja, estava intimamente dirigida para a consecução do interesse
geral, pelo que era, por definição, sempre justa e racional.
Quanto a isto, Hobbes sustentado a tese do primado da von­
tade legislativa sobre o costume, sobre o poder judiciário, sobre a
razão jurídica (Levintluin, cap. 26). A única restrição ao poder so­
berano - ainda assim a ser avaliada por ele próprio - era a de que
estava racionalmente vinculado a governar de acordo com a fi­
nalidade para que o poder civil tinha sido instituído .377
O tema da coerência forçosa entre a vontade do corpo po­
lítico e a razão é desenvolvido por Jean-Jacques Rousseau (17121778), no âmbito da sua teoria da vontade geral. É aí que expli­
ca esse acto quase místico de criação, pelo contrato social, de uma
nova pessoa, o soberano, e de uma nova entidade, a vontade
geral, expressa na lei e por definição sempre conforme à razão:
"Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz
no homem uma mudança muito notável, substituindo, na sua
conduta, a justiça ao instinto e dando às suas acções a morali­
dade que lhes faltava antes. É só então que, sucedendo a voz do
dever ao impulso físico e o direito ao apetite, o homem, que até
então não tinha olhado senão para si mesmo, se vê forçado a agir
com base noutros princípios, e a consultar a sua razão antes de
escutar as suas inclinações [...]" (Do contrato social, 1,8 , p. 65 ss.).
377 H á, por isso - com o nota C attaneo, 1966
um a grande diferença entre o
despotism o de Hobbes e o despotism o de tipo oriental: é que o Estado de
Hobbes constitui um d esp o tism o leg a l, em que a vontade do príncipe é ex­
pressa através de n orm as gerais, salv ag u ard an d o os súbditos, senão do
absolutism o, pelo menos da arbitrariedade. Assim , o princípio “ n u llu m cri­
m en sin e lege" e " n u lla p o en a sin e lege" são por ele claram ente estabelecidos
("no law , m ad e a fter a fa c t d on e, can m a k e it a crim e" , L ev ia th a n , cap. 27). A con­
cepção política de Hobbes vem , assim , pôr as bases teóricas do despotis­
m o ilum inado: por um lado, com a afirm ação de um forte poder central do
qual em anam as leis; e, por outro, pela instauração do princípio da legali­
dade e da certeza da aplicação das m esm as leis (cf. C attaneo, 1 9 6 6 ,1 9 ss.).
Cultura Jurídica Europeia
317
E, por isso, a vontade geral, sendo diferente da soma das vonta­
des, corrompíveis, dos particulares, não pode deixar de ser jus­
ta e racional: "Segue-se que a vontade geral é sempre recta e ten­
de sempre à utilidade pública: mas não se segue daqui que as
deliberações do povo tenham sempre a mesma rectidão [...] Há
muitas vezes uma grande diferença entre a vontade de todos e
a vontade geral; esta não diz respeito senão ao interesse comum;
a outra refere-se ao interesse privado, não sendo senão uma
soma dos interesses particulares; mas retirai destas mesmas von­
tades os mais e os menos que se destruem entre si, restando a
soma das diferenças como vontade geral (Do contrato social II, 3).
Para além do mais, a decisão política tomar-se-ia transparente
e a justiça evidente .378
Rousseau proclama, assim, a soberania da vontade geral,
embora esta pouco tenha em comum com a vontade psicológi­
ca de cada um (a que chama vontade particular), antes constitu­
indo uma vontade racional, dirigida para a prossecução do in­
teresse geral e apresentando, por isso, uma forte componente
racional. Rousseau representa, de facto, o triunfo da tendência
democrática jacobina , 379 em que a protecção das vontades parti­
378"L ogo que vários hom ens reunidos se consideram como um único corpo, eles
não têm senão um a vontade que se dirige à conservação com um e ao bemestar geral. Então, todos os com andos do Estado são vigorosos e simples, as
suas m áxim as são claras e luminosas; não há interesses envolvidos, contra­
ditórios; o bem com um m ostra-se por todo o lado com evidência, apenas
exigindo bom senso para ser percebido" (Do contrato social, IV, 1, p. 148).
379 A oposição entre liberais e democratas costuma ser feita nestes termos: en­
quanto os primeiros concebiam as garantias individuais com o um a esfera de
acção dos indivíduos liberta da intervenção estadual, com o limite posto à
acção do Estado; os dem ocratas (de que se salienta a facção jacobina) enten­
dem-nas como o direito de participar na gestão do Estado, assim tom ado um
govem o do povo (dem ocracia). Dentro desta última perspectiva, os limites
postos pelos indivíduos à acção estadual perdem todo o significado, pois o
Estado e a sua acção são o produto da vontade dos próprios cidadãos; limi­
tar o Estado seria, então, venire contra factum proprium. Deste modo, as demo­
cracias jacobinas põem termo à oposição entre indivíduo e Estado, dando
curso à ideia de "disciplina dem ocrática". V., sobre isto, Duverger, 1966.
318
António Manuel Hespanha
culares - provenientes do impulso para a satisfação de interes­
ses meramente individuais - vem a atenuar-se perante o dogma
absoluto da lei como "volonté générale" - estamos na fase do
"despotismo democrático " . 380
"Et qu'est ce qu'une loi? C'est une déclaration publique et
solenelle de la volonté générale sur un object d'intérêt commun"
[O que é um uma lei ? E uma declaração pública e solene da von­
tade geral sobre um objecto de interesse comum], explica Rous­
seau (Lettres écrites de la Montagne, I, VI). É este o ponto onde se
consuma a orientação democrática que triunfa no continente
com a Revolução Francesa. A lei (o direito, de que a lei deve ser
a única fonte) é uma vontade, mas uma vontade geral, no senti­
do de que (i) deriva de todos, (ii) se refere a problemas de to­
dos, (iii) estabelece a igualdade e liberdade entre todos, (iv) pros­
seguindo o interesse de todos.
Esta concepção da lei como norma absoluta estabelecida
soberanamente pelo Estado-legislador virá a ser decisiva até aos
dias de hoje.
7.2.1.3. Cientificização
Por último, realcemos ainda um dos motivos condutores
do pensamento jusracionalista, a que já nos referimos, e que con­
siderámos justamente como contrário à anterior ideia de um
vol un Laris mo absoluto: o de que o direito constitui uma disci­
plina submetida a regras de valor necessário e objectivo. Na qual
há, portanto, verdade e falsidade e não apenas opiniões ou volições.
Esta ideia de que o direito é uma disciplina rigorosa, cien­
tífica, não tem as suas raízes nem no pensamento da generali­
dade dos juristas romanos clássicos (que desconfiavam, por sis­
tema, das formulações genérica - "non ex regula ius sumatur" [o
380 Tanto Hobbes com o R ousseau têm um a idêntica concepção da lei com o
vontade do soberano. A diferença está no m odo de conceber o soberano.
Hobbes identifica-o com o um hom em , o rei. Rousseau com o povo, com a
com unidade no seu todo.
Cultura jurídica Europeia
319
direito não provém da regra], D .,50,17,1; ou "in iure civili ornnis
definitio periculosa est" [em direito, toda a definição é perigosa],
D.,50,17,202) nem na doutrina jurídica aristotélico-tomista. Aí,
imperava, pelo contrário, a ideia de que o direito é uma arte, di­
rigida por regras, apenas prováveis, de encontrar o justo e o in­
justo. Certezas, não as havia, daí decorrendo esse constante con­
fronto das opiniões a que já nos referimos.
A fonte filosófica deste "cientism o", desta aproximação do
direito em relação às ciências da natureza, está nessa tendência
(já referida) dos estóicos para submeter o mundo humano às leis
cósmicas .381 A natureza específica do mundo humano - mundo
da contingência, da liberdade, onde as acções deviam ser medi­
das pela régua flexível de chumbo dos lendários pedreiros da
ilha grega de Lesbos - era desconhecida; o mundo era, pelo con­
trário, todo da mesma natureza (monismo naturalista), obede­
cendo todos os seres ao mesmo movimento.
Os juristas, que, por outras razões , 382 de há muito tinham
em projecto a redução do direito a poucos princípios, necessá­
rios e imutáveis, encontram, portanto, nas concepções estóicas
sobre uma ordem geométrico-matemática do cosmos, um bom
apoio teórico para considerarem estes princípios como verda­
deiros axiomas da ciência do direito, a partir dos quais se pudes­
sem extrair, pelos métodos da demonstração lógica, próprios das
ciências naturais (então na sua aurora), as restantes regras da
381 Cf. Ulpianus, D.,1 ,1 ,1 ,3 -4 , " Iu s
n a tu rale est q u o d n a tu ra o m n ia a n ím a lia d o cu it;
nam iu s istu d n on h u m a n i g en eris p ro p iu m se d o m n ia an im a liu m , qu ac in terra,
qu ac in m ari n ascitu r, a v iu m q u o q u e co m m u n e est... v id em u s eten ím cetera qu oqu e a n im a lia fe r a s etia n istiu s iu ris p eritia con seri... Iu s g en tiu m ... a n a tu rali rec e d e r e fa c ile in telleg ere licet..." (o direito natural é o que a natureza ensinou a
todos os anim ais; na verdade este direito não é próprio do género hum a­
no, mas de todos os anim ais que vivem na terra e no mar, e tam bém das
aves... e vem os tam bém que outros anim ais, m esm o os bravios, têm conhe­
cimento deste direito [...] O direito das gentes [...] é lícito entender que pro­
cede do direito natural).
382 Referimo-nos à necessidade de segurança e de certeza na prática jurídica,
em relação à qual a axiom atização do direito era uma resposta altam ente
adequada.
320
António M anuel Hespanha
convivência humana. E, na falta de axiomas naturais, seriam as
próprias normas jurídicas positivas que os substituiriam .383
É claro que este processo de cientificização do direito de­
parou com o cepticismo de alguns; 384 mas, com o advento do op­
timismo cartesiano, ficou basicam ente estabelecido no pen­
samento jurídico (como nas restantes disciplinas filosóficas e
morais).
Não estava, de facto, nos projectos de Descartes a instau­
ração da certeza, de uma certeza de tipo matemático, em todos
aqueles ramos do saber em que, até aí, campeavam a opinião e
a dúvida ?
7.2.2. A tradição do jusnaturalism o objectivista
Entre o voluntarismo, por um lado, e a tendência para a
"cientificização" ou para a fundamentação racional do direito,
por outro, existe, em princípio, uma oposição. A mesma que
existe entre vontade e razão, entre subjectividade e objectivida­
de. Ela consiste em que, ou o direito é o produto livre da vonta­
de e a sua definição nada tem a ver com uma ordem natural, ci­
entífica ou racional das coisas (pois, repetindo Pascal, "o cora­
ção tem razões que a razão desconhece"), ou existem princípios
jurídicos cientificamente, naturalmente ou racionalmente váli­
dos, e então não se descortina a legitimidade da vontade para
os destronar.
O pensamento jusracionalista esteve consciente deste dile­
ma, daqui derivando a flutuação das suas soluções quanto a uma
série de problemas recorrentes - por exemplo, o das relações
entre o direito natural e o direito positivo, o da interpretação e
integração das leis, da valorização do direito romano, etc.
383Vimos que já O ccam classificava de naturais as regras extraídas racionalmen­
te (evidenti ratione) das norm as jurídicas positivas.
^ Por exem plo, de M ontaigne, de Bacon e de Pascal, cujas observações sar­
cásticas ou angustiadas sobre a contingência do direito são a resposta às
pretensões de axiom atização.
Cultura Jurídica Europeia
321
Como já vimos, para algumas correntes o problema não se
pôs, uma vez que partiam da ficção da "racionalidade da von­
tade" : o direito constitui, é certo, o produto de um acto livre da
vontade dos sujeitos, ou de um acto livre do poder; mas só a
vontade recta, racional, iluminada, possui a virtude de criar ver­
dadeiro direito. E essa vontade racional tanto podia ser aquela
que "agisse de tal modo que a sua acção pudesse ser considera­
da como norma universal" (Kant), como aquela que agisse se­
gundo "um plano científico de obtenção do máximo prazer ou
utilidade pessoais" (David Hume), como aquela que se formas­
se tendo em vista o interesse geral (Rousseau). Então, a antino­
mia entre vontade e razão desaparecia, pois a primeira surgia
subordinada à segunda, cooperando na realização de uma or­
dem racional e natural.
Todavia, houve quem deslocasse o fundamento do direito
natural ainda mais para o lado da razão, mas de uma razão ob­
jectiva, radicada não nos indivíduos, mas na ordem cósmica ou
na da convivência humana. Enfim, o retomar de um tema da fi­
losofia ecléctica clássica.
É isto, que sucede no fim do século XVIII, com autores como
Montesquieu, Leibniz e Bentham.
O prim eiro (M ontesquieu, Charles Louis de Secondât,
Baron de la Brede et de, 1689-1755) revaloriza o conceito de
"natureza das coisas", invocando como fundamento do direi­
to objectivo, não a natureza do homem ou a vontade de Deus
ou do Príncipe, mas a "necessidade natural", i.e., as consequ­
ências normativas das relações naturais e necessárias que se
estabelecem entre os hom ens unidos numa associação políti­
ca . 385 O fim da sua obra mais famosa (L'Esprit des Lois), é mes­
mo a investigação dos factores objectivos (morais, físicos, ge­
ográficos, históricos, sociais) que determinam o modo de ser
do direito.
385Sobre esta original (para a época) concepção de direito natural, v. Baratta,
1959,191 e Cattaneo, 1966, 28 ss.; Vergnières, 1993.
322
António Manuel Hespanha
Se bem que tal concepção, no que ela tem de histórico-sociológico e de relativista, não pudesse favorecer muito a cons­
trução de princípios fixos para guiar a legislação e a doutrina, o
que é certo é que, desistindo de radicar o direito na vontade ou
na inteligência individuais, marca um sinal de reacção contra o
subjectivismo das doutrinas anteriores.
A mesma tendência para a objectivação do direito natu­
ral encontram os em Gottfried W ilhelm Leibniz (1646-1716)386
que, embora partindo de pressupostos filosóficos muito di­
ferentes, concebe um direito natural emanado da razão divi­
na, que se imporia, tanto ao próprio arbítrio de Deus , 387 como
a qualquer estatuição voluntária, a qualquer im posição posi­
tiva do Estado.
"N em a norma de conduta em si mesma, nem a essência
do justo - escreve Leibniz na sua obra Opinião sobre os princípios
de Pufendorf (1706)388- dependem da decisão livre de Deus, mas
antes de verdades eternas, objectos do intelecto divino, que cons­
tituem, por assim dizer, a própria essência da divindade [...] A
justiça não seria, de facto, um atributo essencial de Deus, se ele
estabelecesse a justiça e a lei pela sua vontade livre. E, na verda­
de, a justiça segue certas regras de igualdade e de proporciona­
lidade que não são menos fundadas na natureza imutável das
coisas do que os princípios da aritmética e da geometria" (cit.
por Riley, 1988, 71).
A tal direito natural (que constituiria o regime jurídico da
optima respublica) seria averiguável exclusivamente pela reflexão
e contrapor-se-ia o direito positivo (ius voluntarium), emanado
do soberano, em virtude dos poderes tradicionais ou constitu­
cionais de que este está revestido (ius receptum moribus vcl a su-
386Cf. Riley, 1988; Bum s, 1997.
387"E m qualquer ser inteligente, os actos da vontade são sem pre, por nature­
za, posteriores aos actos do seu entendim ento ... isto não quer dizer que
haja algo antes de Deus, mas apenas que os actos do entendimento divino
são anteriores aos actos de vontade divina" [Carta a Bierling, Duttens, V, 386].
388Publ. em Duttens, IV.
Cultura Jurídica Europeia
323
periore constitiitum [o direito recebido consuetudinariamente ou
instituído pelo superior] ) . 389
E aparece mesmo em Leibniz a afirmação - difícil de encon­
trar nos jusnaturalistas contratualistas, que eram levados a acei­
tar como justas todas as consequências normativas do contrato
social - de que as leis positivas podem ser injustas .390 Este é o si­
nal de que o direito se liberta do império da vontade, de que, para
além do querer dos indivíduos ou dos seus representantes, há
normas objectivamente válidas, pelo que o princípio stat pro ra­
tions voluntas (a vontade faz as vezes da razão) "c'est proprement
la devise d'un tyran" (Leibniz, Méditation sur la Notion Commu­
ne de Justice, 1693).
Esta ideia de que era possível construir, por operações de
cálculo, uma ciência do direito e do poder está presente em ou­
tros autores. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) constrói a sua
teoria política sobre a base da possibilidade de uma ciência cer­
ta - e largamente matematizável - do poder. Ao discutir as for­
mas de governo, esse ideal de certeza e de verdade faz com que
conceba uma ciência rigorosa das formas políticas, as quais es-
389"[A justiça] é um termo fix o , c o m um determ inado sentido [...] este termo
ou palavra justiça deve ter certa definição ou certa noção inteligível, sendo
que de qualquer definição se podem extrair certas consequências, usando
as regras incontestáveis da lógica. É isto precisam ente o que se faz ao cons­
truir as ciências necessárias e dem onstrativas - as quais não dependem de
quaisquer factos - mas apenas da razão, tal com o a lógica, a metafísica, a
aritm ética, a geom etria, a ciência do movim ento e, tam bém , a ciência do
direito. As quais não se fundam na experiência dos factos, antes servindo
para raciocinar acerca dos factos e para os controlar antes de se darem . O
que tam bém aconteceria com o direito, se não houvesse lei no m undo. O
erro daqueles que tornam a justiça dependente do poder deriva, em parte,
de confundirem direito com lei. O direito não pode ser injusto, seria uma
contradição; m as a lei pode. Pois é o poder que cria e m antém a lei: E se
esse poder falha de sabedoria e de boa vontade, ele pode criar ou m anter
leis bastante m ás" [...] (em M ed itaçã o sobre o con ceito com u m de ju stiç a (c. 17021703), publ. em G. Mollat, R ec h tsp h ilo so p h isch es au s L eib n iz en s U n g ed ru ck ten
S ch riften , Leipzig, 1885, cit. por Riley, 1988, 49-50).
390Em D e T ribu s ju r is n a tu rae e t g en tiu m g ra d ib u s (cit. por Solari, 1959, 65 ss.).
António Manuel H espanha
324
capariam, por isso, ao arbítrio dos cidadãos .391 Por isso, seria pos­
sível, por exemplo, estabelecer-se uma relação objectiva entre a
dimensão do Estado e liberdade, do tipo:
Estado
governo
_
governo
soberano
Pelo que, por exemplo, o número de habitantes (Estado),
varia na razão inversa da liberdade individual, que, por sua vez,
é o inverso da força do governo. Também as relações de poder
entre Estado, soberano e governo podem ser objecto do mesmo
tipo de cálculo, pois existiria uma proporção entre príncipe e
governo semelhante à que existe entre Estado e soberano, da qual
se poderiam extrair regras como as seguintes: (i) príncipe (po­
der sobre os magistrados) e soberano (poder sobre os súbditos)
variam em sentido diverso (III, 2); (ii) quanto mais os magistra­
dos, mais fraco é o governo, ibid.); (iii) de uma e outra propor­
ção resulta que "a relação dos magistrados com o governo é in­
versa à dos súbditos em relação ao soberano" (ibid.).
Mas, quem levou mais longe a ideia de objectivação do di­
reito natural foi Jeremy Bentham (1748-1832) que, partindo da
máxima utilitarista de que o direito justo é o que organiza a so­
ciedade de modo a obter o máximo de bem estar para o maior
número (“the greatest hapiness o fth e greatest number is the measure ofright and wrong"), concebeu o direito como o produto de
um cálculo rigoroso (que ele denomina defelic ific calculus). A
legislação torna-se, então, uma ciência tão próxima, na sua na­
tureza, das ciências físicas, que ele não hesita em comparar o
princípio da utilidade geral, como fundamento da ciência do
391"C om o não há senão um a m édia proporcional entre cada relação, também
não há senão u m bom governo possível num Estado; m as com o mil acon­
tecimentos podem m odificar as relações de u m povo, não apenas diversos
governos podem ser bons em diversos povos, m as m esm o n um mesmo
povo em diversos m om entos" (111,1, p. 103).
Cultura Jurídica Europeia
325
direito, com o princípio de Arquimedes, como fundamento da
hidrostática .392
Justamente um dos motivos de interesse que este tipo de
jusnaturalismo vem a ter na história do direito moderno é du­
plo: por um lado, ideia de que existe uma ciência do bom go­
verno, da boa polícias; por outro, a ideia de que tais princípios
científicos podem ser reunidos em códigos.
7.2.3. A ciência de polícia
"Polícia" é um termo que remete etimologicamente para
polis, cidade, comunidade organizada. Desde Aristóteles que a
palavra "Política" se referia à boa organização da cidade. Tam­
bém desde há muito tempo que o adjectivo "político" significa­
va "bem organizado " . 393 O que há de novo, nestes meados do
séc. XVIII, é que o saber da boa organização deixa de estar dis­
perso, pelo direito, pela oikonomia (ou saber do governo domés­
tico), pela prudentia governativa, passando a concentrar-se num
saber baseado nas novas ciências da sociedade - a ciência do
direito natural, a economia, a higiene, a ciência da legislação -,
e designado por ciência da polícia (Policeywissenschaft, science de
la police) ou por cameralística (Kameralistik, ou ciência da câma­
ra do monarca ) , 394 cujos primeiros tratados são os de Delamare,
392Cf. Solari, 1959, 298. A fundam entação do direito justo na utilidade remon­
ta ao ep ic u rism o da Antiguidade (cf. Villey, 1968, 4 9 5 ss.). M as, na Idade
M oderna, é visível a influência desta ideia nas obras de Hobbes e Locke e,
em geral, na teoria jurídico-política do despotismo iluminado que, não acei­
tando ser um "govern o do p ovo", afirm ava ser um "governo para o povo".
Todavia, o traço distintivo do epicurism o (ou utilitarismo) de Bentham é o
facto de a utilidade a prosseguir não ser a dos indivíduos isolados, mas a
utilidade geral, podendo a prossecução desta im plicar algum a limitação do
bem estar dos indivíduos u ti sin gu li. As raízes próxim as desta correcção feita
por Bentham ao utilitarismo são Beccaria (que, na introdução a D ei delitti e
delle p en e [1764] fala da " m a s s im a fe lic ità d iv isa n el m a g g io r n u m ero" ) e Priestley (A n E ssa y o n the F irst P rin cip ies o f G o v ern m en t [1771]).
393René Chopin escreve, em 1662, um T ra ité d e la p o lice ecclésiastiq u e.
394Sobre o tem a, clássico, Schiera, 1968; Stolleis, 1988; Sordi, 2001.
326
António Manuel Hespanh;
Traité de la Police, 1729, e de Christian Thomasius, Entwurff eine
luohleingerichteten Policey, 1717. Este último enumera os objecto:
da nova ciência como os que dizem respeito à organização in
terna do Estado (demografia, religiosidade, virtude, educação
abastecimento, saúde, e segurança dos súbditos; cadastro e ur
banismo ) . 395 São estes tratados que, doravante, vão constituir
não apenas um modelo para o governo, mas mesmo uma for
ma indirecta de governar, apelando para a disciplina científica
como substituto ou complemento da disciplina de governo po
meios jurídicos. Mesmo um liberal - adepto de uma acção mí
níma do Estado - como Adam Smith (1723 - 1790), dedica bas
tante atenção à polícia, nas suas Lectures on jurisprudence ,396 di
tadas na Universidade de Glaslow, èntre 1762 e 1763, incluindc
nela a regulamentação "da limpeza ou neteté; da aisance, à von
tade ou segurança; e do bon marché, ou modicidade das provi
sões". A que acrescentava, depois, as questões financeiras, oi
dos meios de ocorrer às despesas do Estado .397
Smith constitui, em todo o caso, um dos exemplos mais ní
tidos de como a preocupação pela polícia, pode incentivar, nãc
uma forma obcessivamente regulamentadora e repressiva, ma:
antes uma política de devolução para instituições não estadu
ais dás tarefas de conformação da sociedade. Smith tem ideia:
acerca das origens dos desarranjos da sociedade. Podem ser lei:
obsoletas ou prejudiciais; e, nesse caso, o Estado tem que as re
vogar ou modificar; podem ser maus hábitos; e, neste caso, tal­
vez o Estado há que os reformar pela dureza da lei; mas talve;
possa preferir a acção mais lenta e suave da educação, para o que
poderá ter que criar instituições; ou podem ser apenas questõeí
593Em Portugal, as m atérias "d e polícia" são já consideradas nas obras de Pas
coal de Melo ( in stitu tio n es iu ris civ ilis lu sita n i, 1789) e de Francisco de S o u s e
e Coelho Sampaio (P relecções d e d ireito p á trio , 1793. Sobre eles v. Seeländer
2001, M arcos, 2001.
396 Adam Smith, L ectu res on Ju r is p ru d en c e (Glasgow Edition of W orks, vol. 5
1762-1766), ed. R. L. Meek, D. D. Raphael and P. G. Stein, Indianapolis, Li­
berty Fund, 1982), ed. electr.: h ttp ://o lI.lib erty fu n d .o rg /T o C /0141-06.p h p )
397 Lição de 24.12.1762.
Cultura Jurídica Europeia
327
de gosto - como a preferência de uma arquitectura desarmónica e rude às formas curvilíneas (que Smith considerava as mais
naturais e polidas); neste último caso, bastava esperar (talvez
incentivando isso um pouco pelo exemplo das construções pú­
blicas) que o bom gosto se difundisse.
Já se aponta, assim, para uma outra técnica de governar.
Não se trata, porém, da esperada técnica do não governo (laissez faire). Mas antes de uma regulação das causas, uma regula­
mentação preventiva, em vez de uma regulamentação dos efei­
tos, uma regulamentação repressiva. De considerar são agora
factores de ordem social ou económica; modos de viver e, até,
circunstâncias geográficas ou climáticas. Estas últimas não po­
deriam, decerto, ser objecto de medidas reguladoras. Mas as
primeiras podem ser, embora muito indirectamente. Pela edu­
cação , 398 pela promoção do gosto , 399 por medidas de fomento , 400
pela correcção de leis deformadoras da convivência natural .401
398"T h eir idle and luxurious life in ease and plenty w hen with their masters
renders them altogether depraved both in m ind and body, so that they nei­
ther are willing nor able to support themselves by w ork, and have no w ay
to live by but by crim es and vices"
399 Even colour, the m ost flimsy and superficial! of all distinctions, becomes
an object of his regard. H ence it is that diam onds, rubys, saphires, em erallds and other jewels have a t all times been distinguished from the m ore pe­
bbles of less splendid hues. Figure also is a distinction which is of no small
w eight in directing the choice of m an in m an y of his pursuits. A so rt of
uniform ity mixed at the sam e time with a certain degree of variety gives
him a certain pleasure, as w e see in the construction of a house or building
w hich pleases w hen neither dully uniform nor its parts altogether angu­
lar" (ibid., p. 283 s.).
400"C om m erce is one great preventive of this custom . The m anufactures give
the p oorer sort better w ages than any m aster can afford; besides, it give<s>
the rich an opportunity of spending their fortunes with fewer servants,
w hich they n ever fail of em bracing. H ence it is that the com m on people of
England w ho are altogether free and independent are the hones test of their
rank an y w here to be m et w ith."
401 "I took notice of the great disorders and confusion of the feudal govern ­
ments, w hich in a great m easure proceeded from the numbers of retaints
and dependents am ongst them " (ibid., p. 284 ).
328
António M anuel Hespanha
Comparada com a polícia à francesa - cuja exuberância regulamentadora Smith critica
pode dizer-se, por um lado, que a
estratégia de Smith abre mais crédito a medidas regulamenta­
res que, não usando a coerção física tão sistematica e intrinseca­
mente, podiam ser entregues a outras entidades que não ao Es­
tado - a escolas, a academias, à educação pela criação de uma
opinião ou de uma estética pública. Mas não se pode dizer que
Smith prescinda da acção do Estado ou que deixe de incluir a
"polícia" no âmbito das tarefas de governo.
Ainda mais interessante parece, contudo, o modo como,
capítulos abaixo, Smith considera os direitos do rei em relação
aos seus súbditos, matéria que se inclui no direito público, o tal
que agora se ocupava destas matérias "de polícia".
A introdução, que dá conta das especificidades naturais do
direito público, já é perturbadora de uma conceito estrito de rule
oflaxv, de um governo jurisdicional, como era habitual nas mo­
narquias corporativas, em que, em caso de litígio com particu­
lares, os reis apareciam despidos de quase todas as prerrogati­
vas, sujeitos às regras do direito comum: "A natureza desse
ramo do direito público [...] é tal que não podemos pretender que
exista nele a precisão que caracteriza o direito privado nas rela­
ções entre os cidadãos, ou a outra parte do direito público que
compreende os deveres dos súditos para com os seus soberanos
[...] [E que] não há um tribunal que possa julgar os próprios so­
beranos, uma autoridade soberana em relação aos soberanos,
que tenha examinado e tornado certas as acções do soberano
para com os súditos [...] que se justificam ou até onde vai o seu
poder". E conclui: "O s limites precisos foram pouco considera­
dos, sendo muito difíceis de determiner até onde se estende o
poder soberano" (ibid., p. 265). Em suma, neste domínio do di­
reito público, tudo era incerto e fluido. Mesmo na Inglaterra, em
que as fronteiras exactas do poder do rei tinham sido razoavel­
mente fixadas desde a Revolução de 1668, quando o rei se apre­
senta como soberano, no exercício das suas competências públi­
cas "ninguém pode pretender determinar até onde vai o seu
poder, tal como também acontece em França, em Espanha ou na
Turquia
(ibid., p. 265). Não é apenas Sm ith quem, nesse
C ultura Jurídica Europeia
329
particular território jurídico que é a Inglaterra, se pronuncia pelo
carácter natural e dificilmente limitável do poder público, sem­
pre que este se dirige à satisfação do bem público. Na Europa
continental contemporânea passava-se o mesrrto. Mas trazer à
colação o exemplo inglês tem a vantagem de suspender um pou­
co as certezas habituais sobre as diferenças entre as relações en­
tre o Estado administrativo e os cidadãos administrados, dum
lado ou de outro da Mancha. Nas duas margens, de facto, o que
estava a nascer era um novo ramo de direito, o direito adminis­
trativo, marcado por uma supremacia natural do público sobre
o privado que fazia com que lhe não fossem aplicáveis os prin­
cípios jurídicos ou as jurisdições comuns .402
7.2.4. A ideia de codificação
O empreendimento da codificação do direito foi várias vezes
posto em prática na história do direito europeu. Normalmente
anda ligado à necessidade de fixar o direito vigente, embora tam­
bém seja utilizado para o renovar globalmente, de acordo com
aquilo que se entende serem as novas necessidades da época.
Todavia, os códigos modernos, que começaram a ser pos­
tos em vigor por toda a Europa nos fins do século XVIII, apre­
sentam traços de marcada especificidade em relação às codifi­
cações anteriores .403
Primeiro, a um nível formal, porque se apresentam como
códigos sistemáticos, dominados por uma ordem intrínseca, o
que lhes dá, aos nossos olhos, um aspecto "arrumado" que con­
trasta com o plano arbitrário dos códigos anteriores. Depois,
quanto ao sentido das suas disposições, porque eles tendem a
402Seelánder, 2001.
403Sobre a codificação: Tarello, 1976: mais recente e interpretativo (no sentido
de um a relacionação da codificação com a absolutiza,cão da lei), Clavero,
1991 (e, ainda, a sua com unicação inédita ao colóquio C om p arin g L egal T ra­
d it io n s : R ig id a n d F le x ib le L e g a l S y s tem s in th e H is t o r y o f M e d ite r r a n e a n
S o cieties (V e n ic e , 26-27 April 1999): "L a loi et la paix. Rigidez y laxitud como
crédito y descrédito constitucionales").
330
António M anuel Hespanha
apresentar-se como conjuntos de disposições libertos das con­
tingências do tempo e, por isso, tendencialmente eternos.
Qualquer uma destas características provêm dos pressu­
postos filosóficos de que partiram os seus autores e que eram,
de uma forma geral, os da existência de uma ordem jurídica
anterior à legislação civil, à luz da qual esta devia ser cientificar
mente reformada. Os códigos serão, assim, um repositório não
do direito "voluntário", sujeito às contingências e às mudanças
da vontade humana, mas do direito "natural", imutável, univer­
sal, capaz de instaurar uma época de "paz perpétua" na convi­
vência humana.
Estas ideias constituíam o cerne do pensamento dos auto­
res que acabamos de estudar, que consideravam como urgente
a reforma científica da legislação civil através da promulgação
de códigos fundados no direito "natural" (qualquer que fosse a
ideia que tivessem disso)..
No movimento da codificação moderna tem um papel de
destaque a obra teórica de Jeremy Bentham. A codificação aparece-lhe como a consequência lógica da ideia de um código uni­
ficado e universal ("an all comprehensive code o f law fo r any nation
professing liberal opinions"), fundado numa ciência da legislação
orientada pelo "cálculo da felicidade" (v. supra, 7.2.2.).
O Código devia ser completo, i.e., formar um sistema fecha­
do de normas, logicamente concatenado, justificável segundo o prin­
cípio científico da utilidade. Embora Bentham não desconhecesse os
elementos contigentes e variáveis da legislação, entendia que tais
elementos não destruíam a verdade intrínseca dos princípios ci­
entíficos da legislação e, logo, a possibilidade de um código uni­
versal. 404 Estas ideias de uma legislação universal vieram a ter uma
enorme repercussão por toda a Europa, tanto mais que se articu­
lavam com a ideia de uma cidadania universal e de direitos cívi­
cos universais (Weltbürgrrechte, direitos do cidadão do mundo),
desenvolvida nessa altura por F. Kant no seu projecto de uma
organização jurídica e política mundial ("paz perpétua").
404 Sobre as ideias de Bentham quanto a este ponto, Solari, 1 9 5 9 ,3 1 6 ss.
Cultura Jurídica Europeia
331
Um dos primeiros projectos modernos de um código foi o
de Leibniz (Corpus iuris reconcinnatum, 1672). Mas os exemplos
históricos mais famosos (e levados a cabo) foram os do Código
criminal da Toscana (he.opold.ina, 1786), do Código da Prússia
(Allgemeines Landrechtf. den preussischen Staaten, A.L.R., 1794); da
Áustria (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch, A.B.G.B., 1811); e da
França, o famoso Code civil de 1804.
Em Portugal, embora se tenha ensaiado - muito precocemente em relação ao resto da Europa - uma nova codificação do
direito pátrio no último quartel do século XVIII (projecto do
"Novo Código", v. infra, 8.3.1. ), o primeiro grande divulgador
da ideia de codificação foi Vicente José F. Cardoso da Costa
(1765-1834), em Que lie o Codigo Civil (1822). Nesta memória, di­
rigida às Cortes Extraordinárias e Constituintes (onde o depu­
tado Bastos propusera a abertura de um concurso para a elabo­
ração de um projecto de Código Civil), recolhia e compendiava
as mais importantes ideias de J. Bentham (contidas, especialmen­
te, em Vue Générale d'un Corps Complet de Législation). Lá encon­
tramos a ideia de que o Código é um repositório do direito na­
tural "objectivo", pois deve basear-se, não na compilação das leis
positivas, mas na observação do "justo" contido nas coisas - "lan­
çar os olhos sobre a cousa, e sobre cada huma das suas faces, e
relações, para se lhe accommodarem as Leis convenientes" (p.
31). Por outro lado, as soluções nele contidas devem ser tiradas
do princípio da utilidade, concebido pelo autor como "a Álgebra
dos Direitos e da Propriedade". A própria ideia benthamiana de
um cálculo da utilidade (felicific calculus) aplicado às soluções de
direito está aqui presente - "pezaremos cada hum dos artigos,
que introduzirmos no nosso Projecto do Codigo; veremos os
males que delles resultam, e somente daremos lugar no nosso Codi­
go àquelles que ou só apresentarem resultados benéficos, ou pelo me­
nos mais dos desta natureza, do que dos da outra, que lhes são contrá­
rios" (p. 142). Observados estes cânones metodológicos, o códi­
go não poderá deixar de ser tendencialmente universal e eterno
- "hu m Codigo Civil, assim organizado, poderá ser comum a
todos os povos? Na maior parte. E carecerá de reformar-se de
332
António Manuel Hespanha
século em século? Em muito pouco". As ideias de que o código
deve ser sistemático ("remontando-se aos princípios, que fixam
as relações entre os homens na vida civil, nos diversos negóci­
os, que nella concorrem", estabelecendo "regras, e Leis, dessa
fonte derivadas, para a sua direcção" e compreendendo "em
poucas linhas, o que aliás pede muitos parágrafos, nos Codigos
casuísticos", p. 57) e completo (não devendo o pensamento do
legislador ficar "empacotado" a uma autoridade exterior à co­
dificação, p. 6 6 ) também estão expressas nesta obra. E até o ob­
jectivo "liberal", que encontramos em Bentham a caracterizar o
código perfeito, aqui aparece por toda a parte. Todavia, a obra
de Cardozo da Costa não é um mero resumo da do filósofo in­
glês. Profundo conhecedor do direito nacional, o nosso jurista
esmalta-a com abundantes exemplificações, tiradas do direito
nacional e das imperfeições da época em matéria de legislação .405
7 .3 . A prática jurídica
Mas nem só os factores ideológicos e filosóficos contribuíram
para o moldar das concepções jurídicas modernas. Também a prá­
tica jurídica da época anterior gerou, por reacção, uma série dé idei­
as que vieram a fazer curso no período que estamos a tratar.
Já temos uma ideia do estado da vida jurídica nos séculos
XVI e XVII nos países do sul da Europa, onde os métodos dos
Comentadores continuavam a ter geral utilização.
Aí, a vida forense conhecia uma grande desorganização e
insegurança. Primeiro, pelo excesso de dissenções doutrinais
favorecidas pelo proliferar de opiniões ;406 depois, pela comple­
xidade e morosidade dos trâmites processuais. Por fim, pela
complicada organização dos tribunais - inerente à pluralidade
405Sobre o m ovim ento da codificação em P o rtu g al, v . M arques, 1987; Silva,
1991; C lavero, 1991.
406 Apesar do acatam ento, por quase tod a a E u ro p a, da "re g ra do preceden­
te" . É que era sem pre possível encontrar u m p raxista que louvasse a solu­
ção proposta. Cf. Rocha, 1852, 243.
Cultura Jurídica Europeia
333
jurisdicional do Antigo Regime407-, que dava origem a intermi­
náveis conflitos de competência.
Daí que a actividade dos tribunais fosse olhada, em todos
estes países, com imensa desconfiança.
Aproveitando o ensinamento de Francis Bacon (1561-1626),
segundo o qual "judges ought to remember that their ofice isju s dicere and notjus dare, to interpret the law, and not make orgive de law"
(On Judicature, em Essays),408 os mais ilustres juristas da segun­
da metade do século XVIII propõem uma profunda reforma ju­
diciária que ponha termo ao "despotismo dos tribunais" (Condorcet, 1743-1794), depositando exclusivamente na mão do le­
gislador a tarefa de interpretar a lei obscura.
E nos países latinos da Europa ocidental que mais se sente
a crítica ao estado da prática judicial, dando origem a projectos
de reforma judiciária e processual ainda antes da Revolução.
Pelo vigor do seu depoimento ,409 é de destacar o italiano Luigi António Muratori (1672-1750), e a sua obra Dei Difeti delia
Giurisprudenza (1742). Espontdo os "defeitos da jurisprudência",
Muratori reserva o primeiro lugar para o arbítrio dos juizes que,
deixados à vontade por uma legislação defeituosíssima e por
uma doutrina indisciplinada e "preciosa", tudo resolviam se­
gundo o seu bei prazer, (Dei D ifetti..., IV). O remédio seria, se­
gundo o italiano, o recurso aos princípios fixos do direito natu­
ral, a reforma da legislação, pela edição de códigos, e centrali­
zação da edição do direito nas mãos do príncipe.
407Sobre esta, v. Hespanha, 1992c. M ouzinho da Silveira podia afirmar, no pre­
âmbulo do decreto em que se prom ulga a prim eira reform a judiciária de
estilo m oderno (dec. de 16.05.1834), que Portugal era "u m país de juizes".
408 Até em Portugal esse passo de Bacon vem a ter eco: "a m elhor lei", dizia
Bacon de Verulamio, "h e a que menos deixa ao arbítrio do Juiz: o melhor
Juiz he o que m enos d eixa ao seu próprio arbítrio" (v. Peniz, 1816). No
mesmo sentido, Estatutos Pombalinos, Tit. 6, cap. 6, §§ 13-14.
409Em Portugal, M uratori exerce grande influência sobre Luís António Verney, com quem se correspondeu. Correspondência publicada por Moncada, 1950, III, 193 ss.
334
António Manuel Hespan
Em França, onde o problema também se punha agudame
te - tendo sido denunciado por Montesquieu -, a restrição c
poder dos juizes foi levada a cabo no período revolucionári
Foram, então tomadas várias medidas nesse sentido: introduçí
do júri nos julgamentos penais, (medida de reacção contra a “c
tificial reason" [Coke] dos juristas); obrigatoriedade de motiv
a sentença (lei de 16/24 de Agosto de 1790); criação do Trib
nal de Cassação, para verificar a "legalidade" das decisões j
diciais (lei de 27 de Novembro/l de Dezembro de 1790); ins
tuição do sistema do référé legislatif, pelo qual os tribunais era
obrigados a enviar à Assembleia legislativa as questões juríc
cas de duvidosa interpretação (lei citada e Constituições de 17
e do ano III). Todas estas medidas terão os seus símiles no res
da Europa, e também em Portugal.410
Encontramos as mesmas queixas, na correspondência
Verney para Muratori, bem como nas recomendações por es
dirigidas a um seu correspondente português .411
Em Portugal, a reforma da prática jurídica começa aini
no século XVIII.
Pombal inicia-a com a Lei de Boa Razão e, indirectamen
ao reformar o ensino jurídico na Universidade.
A Lei da Boa Razão, de 18.08.1769,412ao rever todo o sisl
ma de fontes de direito num sentido contrário ao da prática e
tabelecida, força esta a uma profunda mudança. O seu senti«
geral é o da proscrição do direito doutrinal e jurisprudencial qt
410 Assim o júri é instituído pela Constituição de 1822 ainda com m aior am j
tude do que em França (causas crim inais e civis), a "rev ista" (ou seja, o
curso invocando ilegalidade da sentença já estava previsto na Ordenaçc
I.,4,l) e é reafirmado pela Lei de Boa Razão (§§ 1 a 3) que institui, també
um a espécie de référé legislatif (§ 11), tam bém com tradições anteriores.
411 Num docum ento que acom panha um a das cartas, Verney, propõe a refi
ma de todos os Tribunais, reform a essa que, ao lado da m udança dos se
próprios nomes, devia "proibir tantas autoridades legais, mas aduzir o te>
da lei, com dois únicos doutores, ou intérpretes, ou tratadistas". Cf. Mc
cada, 1950, 405.
41:2Sobre a qual, v. Silva, 1991, 360 ss.
Cultura Jurídica Europeia
335
como se sabe, constituía a espinha dorsal do sistema do ius corntnune. De facto, bane-se a autoridade de Bártolo, de Acúrsio e da
opinio communis doctorum, o mesmo acontecendo com a invoca­
ção do direito canónico nos tribunais comuns. Mantém-se a au­
toridade subsidiária do direito romano, mas apenas quando este
fosse conforme à Boa Razão, ou seja - como se esclarecerá de­
pois nos Estatutos da Universidade - aos princípios jurídico-políticos recebidos nas nações "polidas e civilizadas". Em contrapar­
tida, restringe-se a faculdade de fixar a jurisprudência aos as­
sentos da Casa da Suplicação, ao mesmo tempo que se nega força
vinculativa aos "estilos de julgar" dos tribunais e se estabelecem
condições muito rigorosas de validade para os costum es .413
Numa palavra, institui-se o monopólio da edição do direito a
favor da lei do soberano, monopólio apenas temperado pela pos­
sibilidade de invocação dos princípios de direito natural, nome­
adamente daqueles que tinham sido incorporados na legislação
dos novos Estados iluministas. Os Estatutos da Universidade, de
1772, reformam o ensino do direito no mesmo sentido, restrin­
gindo o estudo do direito romano àquele que tinha tido um "uso
moderno" nas nações cristãs e civilizadas da Europa (liv. 2, tit.
5, c. 3, § 6 ); introduzindo o estudo do direito pátrio; e, sobretu­
do, envolvendo todo o ensino jurídico no ideário jusracionalista, bem como numa orientação pedagógica "textualista" (ou seja,
mais voltada para o estudo directo das fontes do que para o das
opiniões e comentários 414) . 415
As consequências destas reformas foram muito profundas
e duradouras, marcando decisivamente os juristas por elas for­
mados. Isto explica que, no plano da prática e da política do
direito, depois da década de '70, nada fique como estava. E
então que, verdadeiramente, se inaugura uma nova época da
4,3Não contradição da lei positiva; conform idade à "boa razão " e vigência pro­
vada igual ou superior a cem anos.
4,4 As propostas de um ensino textualista rem ontam à Escola H um anista (cf.
supra, 174).
415 Cf. Silva, 1991, 365 ss.; H espanha, 1972.
336
António M anuel Hespanha
história do direito em Portugal, tanto no plano do imaginário
político-jurídico, como no das suas manifestações institucionais
e práticas.
D.
Maria I, por sua vez, ataca directamente o problema da
organização judiciária, extinguindo, em 1790-1792, as jurisdições
dos donatários .416 Mas nem com isso ficou "perfeita" a justiça
portuguesa, pelo que o tema dos seus "defeitos" continua pre­
sente nas primeiras décadas do século seguinte .417 Só as refor­
mas judiciárias do liberalismo (Reforma Judiciária, de 16 de Maio
de 1832) irão atenuar estas queixas .418
. . O direito racionalista e as suas repercussões
7 4
A o fechar estes capítulos dedicados ao direito racionalis­
ta, justificam-se algumas considerações sobre o sentido dos seus
temas maiores na história do pensamento jurídico e, mesmo, na
história da sociedade europeia, bem como se justifica um relan­
ce sobre a sua sorte futura.
Com o racionalismo, abrimos uma nova fase na história do
direito europeu. Todavia, é incorrecto menosprezar alguns ele­
mentos de continuidade. Se pensarmos que uma das caracterís­
ticas mais destacadas da fase anterior - a fase do direito comum -
416 Cf. H espanha, 1995, 4.4.
41/ "P elo que respeita à fysionom ia, parece que a parte da jurisprudência que
tem o nom e de cabala, chicana, rabolice he representada pela im agem de uma
m ulher seca e m irrada, de olhos vesgos, unhas agudas, e rodeada de m on­
tes de papéis; um as vezes ella troca estes papéis por m ontes de ouro; ou­
tras devora choupanas e palácios; ora transform a-se em leão e lança-se com
toda a avidez à presa, ora disfarçada em serpente insinua-se por debaixo
das hervas; em fim, he um m onstro a quem os Reis nunca p oderão cortar
as unhas; se algum a vez lhas ap arárão, logo lhe crescerão de novo. Deve
este m onstro pois ser sofucado [...] Sei tam bém que he im possível acabar
com todos esses juizes de direito, porquanto a E uropa está cheia, demasia­
do cheia de hom ens de lei" (D eputado M argiochi, em Diário das Cortes Geracs, 1821-3, 3621).
418 Sobre as reform as judiciárias do século XIX v. Gilissen, 1988, 504 s. (A. M.
H espanha, "N o ta do trad u tor").
Cultura Jurídica Europeia
337
é a da constituição de um direito de tendência universalista, di­
fícil se torna deixar de encarar o jusracionalismo como uma úl­
tima fase (quiçá prolongada ainda na "pandectística " ) 419 do pe­
ríodo anterior . 420
Com o jusracionalismo realça-se, de facto, o carácter uni­
versal do direito. Ligada à "natureza humana" eterna e imutá­
vel, a regulamentação jurídica não depende dos climas ou das
latitudes. Os "códigos" são, tendencialmente, universais, pelo
que tanto podem ser feitos por um nacional como por um estran­
geiro e podem ser aplicados, livremente, como direito subsidiá­
rio ou mesmo principal de outros países. É isto que explica a ten­
dência para exportar os grandes códigos (nomeadamente o Code
civil, de 1804; e, mais tarde, os códigos civis alemão, italiano e
suíço) para áreas culturais totalmente estranhas à europeia,
como a japonesa (com o reformismo Meiji, nos finais do século
XIX), a chinesa (com o movimento ocidentalizador do 4 de maio
de 1919) ou a turca (com a revolução de Kamal Ataturk).
Este cosmopolitismo do direito e da própria legislação logo
se atenua. Por um lado, com o "realismo" que logo cerca as pro­
postas "utópicas" da Revolução francesa, para o qual a razão se
enraiza sempre em instituições concretas, ligadas a uma tradi­
ção jurídica particular e a uma sociedade concreta, com as suas
instituições próprias. Por outro lado, com o surto nacionalista
do romantismo. Então, fascinados pelos elementos tradicionais
do direito nacional, os juristas vão reagir contra a importação
de sistemas jusracionalistas. Isto acontece sobretudo, na Alema­
nha, onde F. C. v. Savigny ataca violentamente um projecto de
código jusnaturalista de A. E. Thibaut (1772-1840) (que, no en­
tanto pretendia ser um compromisso entre o cosmopolitismo e
o nacionalismo), com o fundamento de que a codificação "fixa­
va" um direito que devia ser, antes de tudo, vida e de que, os
códigos universalistas do racionalismo eram puras abstracções,
inaceitáveis pelo "espírito do povo" (cf. infra, 7.2.4.).
4,9 Cf. infra, 174.
420É o que faz Coing, 1967.
338
António Manuel Hespanha
Todavia, das concepções iluministas muito se conservou ate
hoje. Certos princípios, que foram então estabelecidos, conser­
vam um lugar central na actual teoria do direito: v.g., a afirma­
ção dos direitos individuais e o princípio da legalidade, nome­
adamente no domínio do direito penal.
. . O direito racionalista em Portugal
7 5
No período pombalino, recebe se, a um tempo, a influên­
cia de correntes doutrinais que se vinham a desenvolver na Eu­
ropa desde o séc. XVI:
• o "textualísmo" (= anti doutrinarismo, digitum ad fontet
intendere) do humanismo;
• a sistemática do racionalismo;
• as novas ideias sobre a função do direito romano da es­
cola alemã do usus modemus pandectarum;
• o individualismo e o contratualismo das escolas jusracionalistas, com grande influência na reconstrução de mui­
tos sectores do direito privado;
• as inovações, sobretudo em matéria de direito público c
ciência da administração, da cameralística alemã;
• o humanitarismo italiano em matéria de direito e proces­
so penal.
Todas estas influências dão frutos súbitos nas grandes re­
formas pombalinas: do sistem a das fontes de direito (lei de
18.8.1769, "Lei da Boa Razão"), do ensino jurídico (Estatutos
Universitários de 1772: introdução, pela primeira vez, de uma
cadeira de direito pátrio; de importantes institutos de direito
privado; projectos de revisão das Ordenações dos finais do séc.
XVIII ("Novo Código"). A tradição jurídica é sujeita a severa
crítica; é reafirmando o carácter apenas subsidiário do direito
romano, cuja recepção é sujeita à triagem da "boa razão"; bane
se a autoridade de Bártolo e Acúrsio, bem como o uso do direi­
to canónico nos tribunais civis; procura se limitar a competên­
cia normativa (assentos) dos tribunais; remete se, em matérias
estratégicas na "modernização" da sociedade e do Estado (di­
Cultura Jurídica Europeia
239
reito político, económico, comercial, marítimo), para a legisla­
ção das "Nações christãs, illuminadas, e pollidas".
A influência deste complexo de tendências racionalizadoras e renovadoras, que é costume designar por "direito iluminista", prolonga se por toda a primeira metade do século XIX,
graças ao impacte da reforma pombalina dos estudos jurídicos
e dos compêndios (de Pascoal de Melo (1738-1798) [Institutiones
iiiris civilis lusitani, 1789]) a que ela deu lugar.
O advento do liberalismo (cujo património teórico e ideo­
lógico é, no domínio do direito, subsidiário do iluminismo) po­
tência ainda o movimento de renovação da ordem jurídica, cujo
Leitmotiv é, então, a "codificação" (J. M. Scholz, 1982). A suces­
siva promulgação dos novos códigos (Comercial, 1833; Penal,
1837 e 1852; Civil 1867) e a influência da Escola da Exegese que­
bram o ímpeto renovador que a doutrina tinha tido na primeira
metade do século (sobretudo, Manuel Borges Carneiro, José Fer­
reira Borges, José H. Correia Telles, Manuel A. Coelho da Ro­
cha, em que a exposição do direito positivo se acompanha de
permanentes propostas de iure condendo). Sobretudo no domí­
nio do direito privado, sobrevêm então uma época positivista,
voltada para a exegese (José Dias Ferreira) ou para a construção
dogmático conceituai (Guilherme Moreira) (A. M. Hespanha,
"Sobre a prática dogmática dos juristas oitocentistas", em A. M.
Hespanha, A história do direito na história social, Lisboa 1978, 70
149, N. Espinosa G. da Silva, História..., cit.; Id., História do pen­
samento jurídico, Lições de 1981/1982 na Universidade Católica, Lis­
boa, polic., 1982).
7.5.1. Bibliografia
Para o período iluminista e liberal, v., por todos, Nuno Es­
pinosa Gomes da Silva, História..., c it, 263 ss.; A. M. Hespanha,
"Sobre a prática dogmática dos juristas oitocentistas", em A. M.
Hespanha, A história do direito na história social, Lisboa 1978, 70
149; Homem, 1987;.Marcos, 1990; Subtil, 1996. Temas particu­
lares, António Resende de Oliveira, "Poder e sociedade. A legis­
340
António Manuel Hespanha
lação pombalina e a antiga sociedade portuguesa", em O Mar­
quês de Pombal e o seu tempo, Coimbra 1 9 8 2 ,1, 51 89; Luís Cabral
de Moncada, "O 'século XVIII' na legislação de Pom bal", em
Estudos de historia e direito, I, Coimbra 1948, 82 ss.; Mário Júlio
de Almeida Costa, Debate jurídico e solução pombalina, Coimbra
1983; J. M. Scholz, "Gesetzgebung zum allgemeinen Privatrecht.
Portugal", H. Coing, (ed.), Handbuch der Quellen und Literatur...,
c it , III.l, 713 s..
8 . O d ir e i t o n a É p o c a C o n t e m p o r â n e a
A metodologia jurídica dos séculos XIX e XX conheceu di­
versas escolas. Em parte, elas respondiam a problemas e neces­
sidades internas ao saber e à prática do direito. Mas, em grande
medida, elas reflectiam também as grandes temáticas sócio-políticas, filosóficas e metodológicas da época. Nos capítulos se­
guintes, serão descritas, sinteticamente, algumas delas.
8.1 . O contexto político
Depois do seu período "programático e experimental" - des­
crito acima, sob a epígrafe jusracionalista (supra, 7.1.3.) -, a ordem
política estadualista chega à sua fase de institucionalização.
No plano jurídico, esta fase caracteriza-se pelo movimento
legalista e, sobretudo, pela tendência codificadora. Os novos códi­
gos, se, por um lado, procediam a um novo desenho das insti­
tuições, correspondente à ordem social burguesa liberal, insti­
tuíam, por outro, uma tecnologia normativa fundada na gene­
ralidade e na sistematicidade e, logo, adequada a uma aplica­
ção do direito mais quotidiana e mais controlável pelo novo cen­
tro do poder - o Estado.
Por fim, a ideia de reunir as leis em códigos sistemáticos e
duradouros, correspondia também a essa ideia de aquele "cas­
co do direito" que agora se codificava constituía o núcleo nor­
mativo, perene e consensual, da vida em sociedade.
Estadualismo (i.e., identificação da ordem social com a or­
dem estadual), certeza e previsibilidade do direito (i.e., legisla­
ção abstracta) e, finalmente, a fixidez e permanência de um nú­
cleo fundamental de princípios jurídicos (i.e., codificação), vão,
assim, de braço dado, permitir a efectivação e a estabilização dos
novos arranjos sociais, políticos e jurídicos.
Os cem anos que decorrem entre 1750 e 1850 correspondem
342
António Manuel Hespanha
ao período de instalação de uma nova ordem política e jurídica,
a que se costuma chamar liberalismo. No plano do direito, realizam-se então os seus pressupostos estratégicos - instauração,
por meios legislativos, de um novo paradigma de organização
política (o Estado liberal-representativo) e de organização soci­
al ("liberalismo proprietário", i.e., identificação da propriedade
como condição de liberdade e, logo, de cidadania activa), que a
própria lei irá desenvolvendo nos seus detalhes institucionais.421
No plano dos grandes princípios, o novo direito estabele­
ce a liberdade, a propriedade e a igualdade perante a lei. Mas
qualquer destes princípios tinha consequências institucionais
concretas, que as leis civis e políticas iriam desenvolver.
A garantia da liberdade pessoal422 tinha consequências direc­
tas e indirectas em vários domínios do direito. Fundava, desde
logo e no domínio do direito constitucional, os direitos políticos
e cívicos. Garantia, depois, a liberdade de trabalho e indústria, 423
libertando a iniciativa privada de todas as limitações antes impos­
tas ou pelo corporativismo medieval ou pelo mercantilismo. No
direito das coisas, constituía a base da construção jurídica da pro­
priedade como direito ilimitado e inviolável. No direito dos con­
tratos, promovia o voluntarismo e punha termo às limitações éti­
cas e comunitárias ao poder de conformação da vontade sobre os
conteúdos contratuais ("teoria da vontade" ,Willenstheorie, cf. in­
fra, 8.3.3.1), permitindo a usura, a desproporção das prestações
contratuais, 424 a livre fixação dos preços e salários.
A garantia da propriedade - que, como acaba de se ver, é
uma extensão da garantia da liberdade - era entendida como o
421 Sobre a ordem jurídica liberal, v . , em geral, Arblasten, 1984, Arnaud, 1973,
Costa, 1 9 7 4 ,1 9 8 6 , e C lavero, 1991. Para Portugal (aspectos político-ideológicos), Vieira, 1992; (aspectos constitucionais e jurídicos), J. G. Canotilho,
"A s constituições", e Mário Reis M arques, "E struturas jurídicas", em Torgal, 1994, respectivam ente, 149-165 e 176-181; H espanha, 1990 (aspectos
estruturais do sistèma político).
422 Cf. Carta constitucional, a rt°145, § 5.
423 Cf. Carta constitucional, art° 145, §§ 23 e 24.
424 Antes interditas pelo instituto da "lesão en orm e".
Cultura Jurídica Europeia
343
"direito sagrado e inviolável [...] de dispor à sua vontade de to­
dos os seus bens, segundo as leis" ,425 A sua constitucionalização
correspondia àquilo a que C. B. Macpherson chamou o "indivi­
dualismo possessivo": a propriedade como um direito natural
e absoluto, livremente usufruível (liberdade de indústria) e li­
vremente disponível, ilimitável por direitos dos senhores (direi­
tos de foral), da comunidade (direitos de pastagem, de rotação
de culturas, etc.) ou dos parentes (reservas hereditárias, vinculação).
A garantia da igualdade 426 punha fim, por sua vez, a certos
estatutos discriminatórios em matéria política (v.g., a exigência
de nobreza ou de "lim peza de sangue" para acesso a cargos
públicos); devia garantir, em princípio, o acesso de todos à par­
ticipação política (mediante o sufrágio universal); e fixava a
igualdade na aplicação da lei, nomeadamente no domínio pro­
cessual (abolição tendencial dos foros privilegiados) e, sobretu­
do, penal, instituindo o princípio da igualdade das penas, inde­
pendentemente do estatuto do criminoso.
Como se há-de ver, aqui e ali ao longo da exposição subse­
quente, qualquer destes princípios deparou com limitações, por
vezes totalmente descaracterizadoras, no momento da sua con­
cretização constitucional ou legislativa. Sobretudo o princípio da
igualdade.
Não me refiro apenas à questão da não correspondência
entre liberdades formais (i.e., garantidas pela lei) e liberdades
materiais (i.e., concretizáveis no plano das relações sociais concretamente vigentes ) . 427 Trata-se de muito mais do que isso: ou
seja, da instituição, pela lei, de estatutos discriminatórios, res­
tringindo drasticamente os direitos políticos e civis das mulhe­
res, dos não proprietários, dos nativos coloniais, dos ingressos
em ordens religiosas, para não falar já de outras classes de in-
425 C o n stitu içã o de 182 2 , art0 6o; C arta co n stitu c io n a l, art0 145°, § 21°.
426 C o n stitu içã o de 1 8 8 2 , art0 9o; C arta co n stitu cio n a l, art° 145, §§ 12° e 15°.
427Questão que virá a ser central na crítica m arxista e pós-m arxista ao direito
liberal (cf., in fra , 8 .5 .1 .).
344
António M anuel Hespanha
terdições também elas social ou culturalmente marcadas (lou­
cos, falidos, jogadores, pródigos, menores). Por detrás destas li­
mitações - que, em termos políticos, reduziam dramaticamen­
te, a percentagem de "cidadãos activos" - ,m estão algumas idei­
as fortes, quer sobre a menor capacidade de engenho civil e po­
lítico do género feminino , 429 dos camponeses (rústicos) ou indí­
genas das colónias, quer sobre o modo como a qualidade de pro­
prietário condicionava a seriedade e o empenhamento das ati­
tudes políticas. Afinal, o modelo societário e político subjacente
estava ainda muito dependente dos modelos tradicionais de uma
sociedade patriarcal em que ao homem (e, por extensão, ao ho­
mem branco "civilizado") competia um poder de direcção so­
bre a "casa", como conjunto de familiares, de dependentes (de
animais e de coisas ) . 430
Tão importante como o estabelecimento destes princípios
é a sua estabilização legislativa (em códigos) ou doutrinal. Isto
é, de uma forma ou de outra, em complexos normativos orgâ­
nicos que escapam à arbitrária volúpia legislativa dos governos
e que, com isso, garantam a firmeza e a continuidade das trans­
formações político-sociais. "Propriedade! Propriedade! Centro
da união social, quantas vezes não oscila incerta e quase tom a­
da nome pelo vão vício de leis multiplicadas e obscuras", cla­
ma-se, em Portugal, no Manifesto do Governo Supremo do Rei­
no, de 31.10.1820. Enquanto que, já nos finais do século, o juris­
ta português Júlio Vilhena estabelece um vínculo muito estreito
entre a certeza do direito e a liberdade política: "a liberdade ci­
428A lgum as estimativas do peso percentual dos cidadãos activos relativamente
aos "nacion ais"de m aioridade apontam p aara taxas inferiores a 1 0 %. Cla­
ro que estes valores ainda baixam mais nos territórios em situação colonial
ou pós-colonial (v.g ., os países latino-am ericanos, sobre os quais, cf. Clavero, 1993; 2000).
■“ Cf., sobre a im agem da m ulher no direito tradicional europeu, de que há
fortes resíduos no período liberal, H espanha, 1994e.
^ S o b re o modelo tradicional da "casa gran d e" (ganze Haus), cf. Brunner, 1968b;
para a época contem porânea, num a situação colonial, m as susceptível de
extensão à sociedade cam ponesa europeia, Freyre, 1933.
Cultura Jurídica Europeia
345
vil, irmã gémea da liberdade política, não encontrava na redac­
ção obscura da lei, nem na variedade das interpretações, garan­
tias para o seu exercício " . 431
E justamente a esta tensão entre o princípio democrático do
primado da vontade constituinte e a aspiração pela estabilida­
de social e jurídica, em torno de princípios estáveis e indisponí­
veis de ordenação social que dedicaremos o próximo número.
8 .2 . Entre vontade e razão
8.2.1. Democracia representativa e legalismo
O princípio democrático de que o poder tem origem no
povo e deve ser por ele exercido, é uma consequência muito clara
da ideia de contrato social, tal como ela foi descrita antes (cf.,
supra, 7.2.1.). De forma mais ou menos pura, ele vem enformar
as revoluções políticas que ocorreram, primeiro, na América do
Norte (1776) e em França (1789) e, depois, na generalidade dos
países europeus (em Portugal, 1820).432
O princípio democrático vem estabelecer que a única legi­
timidade política é a legitimidade proveniente da vontade po­
pular, manifestada pelos seus representantes eleitos através das
votações nos órgãos representativos (por excelência, os parla­
mentos).
A hegemonia política absoluta do parlamento - com a con­
sequente concentração nele de toda a capacidade de criar direi­
to - decorria do princípio da soberania do povo. Mas, para além
desta justificação teórica, tinha ainda a vantagem "prática" de
ser a única forma de evitar a "degenerescência da democracia".
Por um lado, impedia a tendência de todas as elites políticas
431Julio Vilhena, Problemas do direito moderno, Coimbra, 1873, cit. por Scholz,
1976,7 45.
432Sobre tudo quanto se segue, de m odo conciso e exem plar, Fioravanti, 1999
ou A lvarez Alonso, 1999. V. ainda, para pontos de vista "fortes", Cia vero,
1991; exposição de conjunto, Renault, 1999.
346
António M anuel Hespanha
(mesmo as democraticamente eleitas) para, paulatinamente, se
apropriarem do poder político que lhes está delegado, facto a
que foram sensíveis, ao longo dos últimos dois séculos, pensa­
dores políticos que vão de Rousseau 433 a Trotski434 ou a Maozedong .435 Por outro lado, constituía a forma mais segura de ga­
rantir que o interesse prosseguido (a felicidade buscada) era o
"interesse geral" ou a "felicidade para o maior número", utili­
zando duas formulações - uma de Rousseau e outra de Bentham
- utilizadas para justificar a supremacia absoluta do parlamen­
to ("jacobinismo " ) . 436
Perante a legitimidade democrática deviam curvar-se to­
das as antigas formas de legitimidade, desde a legitimidade do
direito divino à oriunda da tradição.
No plano das fontes de direito, este princípio elevava a lei
parlamentar - expressão da "vontade geral" - à dignidade de
fonte primeira, se não única, de direito. Ela era o produto da (i)
vontade popular e, para mais, de uma (ii) vontade geral, de todo
o povo. liberta de despotismo e de espírito de facção, que, por­
tanto, (iii) exprimia o interesse geral e (iv) explicitava as ambi­
ções mais generalizadas de felicidade. Mais tarde - mas já num
outro contexto político a que nos referiremos, outros dirão, a seu
favor, que a lei é a fórmula que racionaliza interesses privados
divergentes, que consubstancia o interesse público, que expri­
':33Pessimisticamente, Rousseau diagnosticava um princípio de corrupção ine­
rente a todas as sociedades políticas: a vontade geral, que instituía a liber­
dade civil e expulsava o despotism o, estava em perm anente risco de dege­
nerar de novo em "von tad e particular" (e, logo, de "facção "[term o centtral
no vocabulário dem ocrático oitocentista], despótica), se não existisse um
permanente controlo do executivo pela representação nacional (cf. Fioravanti, 1999, 82 ss.).
434Com a sua ideia de "revolu ção na revolução" (ou "revolução perrm anente"), pondo em causa as elites revolucionárias estabalecidas.
435Ao lançar a "revolução cultural" (prim avera de 1966) contra o aparelho do
próprio Partido Comunista.
416Sobre a insistência de Bentham no princípio do controle dem ocrático como
forma de garantir a busca da felicidade geral, v. Code constitutionnel, 1830
(cf. Rosen, 1983).
Cultura Jurídica Europeia
347
me normas socialmente consensuais. Mas isto já são ulteriores
desenvolvimentos do legalismo, muitos deles em reacção a esta
justificação democrático-jacobina do absolutismo da lei (Paolo
Grossi).
Perante a lei, o costume (antes legitimado pela tradição)
devia ceder. De alguma forma, ele manifestava - como de há
muito se dizia - um "consentimento tácito do povo" e, por isso,
podia ser entendido como um "plebiscito de todos os dias". Por
isso, os costumes não foram liminar e automaticamente ab-rogados; só que não podiam valer contra a lei parlamentar, essa
forma expressa e regulada de o povo manifestar a sua vontade.
De resto, na constituição do costume interviera uma Nação con­
cebida trans-historicam ente, feita de passado e presente, de
mortos e de vivos. E, agora, a Nação tendia a ser identificada com
o povo actualmente existente, capaz de votar e eleger. Como
veremos, outros dirão que, justamente, esta é uma ideia muito
redutora de Nação, cujos valores e cujo espírito não são propri­
edade da geração presente (cf., infra, 8.3.2. ); mas isto constitui
já um ponto de vista crítico sobre o democraticismo jacobino.
Também a jurisprudência (legitimada pela competência
técnica dos juizes) devia ceder. Pois, de acordo com o princípio
democrático, a legitimidade dos juizes é somente indirecta, de­
correndo apenas do facto de se tratar de um poder previsto na
Constituição.
Para além de conter este vício de origem, a jurisprudência
era ainda passível de uma crítica política. Realmente, pelo me­
nos na Europa, a Revolução tinha sido feita também contra a ti­
rania dos juizes que, apoiados no carácter casuísta e flexível do
direito tradicional (cf. supra, 5.6., 7.3.), tornavam o direito num
saber hermético, cujos resultados eram imprevisíveis e incontroláveis pelos cidadãos. E, assim, os movimentos reformistas da
segunda metade do século XVIII (v.g., Luigi Muratori, o Marquês
de Beccaria e Gaetano Filangieri, em Itália; ou Luís António Verney e Pascoal de Melo, em Portugal, dirigiam-se, antes de tudo,
contra o "governo arbitrário", sendo que nesta ideia de gover­
no arbitrário se compreendiam tanto a autocracia dos soberanos
348
António M anuel Hespanha
como a arbitrariedade dos tribunais. No Sul da Europa (Itália,
França e Península Ibérica), esta última componente tinha sido
ainda mais forte, suscitando um movimento de crítica à incer­
teza e hermetismo do direito doutrinal e jurisprudencial e recla­
mando leis claras e reformas judiciárias que amarrassem os jui­
zes ao cumprimento estrito da lei. Daí que o legalismo e a des­
confiança no direito jurisprudencial - que já vinham de trás e ti­
nham marcado a política do direito do Estado absoluto - se te­
nham transformado em componentes essenciais das propostas
revolucionárias .437 Pois, se havia lugar a falar nos perigos do
"espírito de facção", era decerto legítimo fazê-lo em relação aos
juristas e aos juizes, tanto como em relação aos funcionários ou
às elites políticas .438
Princípio democrático e sensibilidade anti-" letrada" expli­
cam que - no contexto europeu (mas não no contexto america­
no)439- as decisões dos juristas e os veredictos dos juizes sejam
tidos em suspeição e as suas decisões não possam senão visar a
aplicação estrita da lei; agora, os juizes não são mais do que a
"longa mão da lei", a "boca que pronuncia as palavras do legis­
lador".
Acresce que, de acordo com o princípio da separação dos
poderes, form ulado por M ontesquieu e geralmente (embora
também variamente) adoptado pelos novos Estados constituci­
onais, os poderes se deviam respeitar mutuamente, não interfe­
rindo nas competências uns dos outros. Por isso, a edição do
direito, entendido como manifestação da "vontade geral", de­
via ser exercitada em exclusivo pelo poder legislativo, sem in­
terferência dos outros, nomeadamente do poder judicial. E pre-
437 Referência bibliográfica básica: La torre, 1 9 7 8 ,1 5 3 -1 5 4 ; W ieacker, 1 9 9 3 ,5 2 4 527; sobre o reform ism o judiciário, R. Ajello, 1976, maxime, 275-360.
438Esta reacção contra os "letrad o s" explica a sim patia de que gozaram , num e
noutro liado do Atlântico, as figuras dos juizes eleitos e dos jurados; em ­
bora, na E uropa, o legalismo estadualiista tenha limitado progressiva e se­
veram ente m esm o estas form as mais "p o p u lares" de justiça (cf. Clavero,
199 1 ,8 1 ss..).
439Cf. Clavero, 1991, Ioc. cit.; C lavero, 1997.
Cultura Jurídica Europeia
349
ciso cruzar o Atlântico ou, na Europa, chegar quase aos nossos
dias, para encontrar concepções de Estado e de direito que atri­
buam aos juizes um papel activo na criação do direito ou, inclu­
sivamente, no controlo da legitimidade das leis. A este modelo
de uma constituição criada (ou, melhor, revelada, declarada,
posta em prática) pelos juizes chamou-se "Estado judicial" (Richterstaat); mas não é a esta constelação de ideias democráticojacobina que ele pertence, mas antes a uma outra, em que o di­
reito é anterior às (e irrevogável pelas) assembleias representa­
tivas .440
Também a doutrina deixa de ter legitimidade para fazer
construções autónomas, fundadas na "natureza das coisas", ou
nos princípios da razão, como aquelas que tinham constituído
o cerne do direito desde as escolas medievais. E que tais cons­
truções eram direito porque se aceitava que uma das fontes de
legitimidade deste era a autoridade técnica ou doutrinal dos es­
pecialistas, capazes de revelar um direito que residia nas pró­
prias coisas ou nos princípios abstractos da razão. Agora, no
contexto do novo Estado democrático, a única função legítima
da doutrina é - em contrapartida - a de descrever a lei, de a in­
terpretar (se possível, de acordo com a vontade do legislador
histórico - interpretação subjectiva) e de integrar as suas lacunas,
propondo aquela norma que o legislador histórico, se tivesse
previsto o caso, teria formulado. Em alguns casos extremos, a
interpretação doutrinal chegou a ser proibida, determinando-se
o recurso à interpretação autêntica, ou seja, à interpretação le­
vada a cabo pelo próprio órgão legislativo (référé législatif).
Para esta perspectiva, todo o direito se reduz à lei, deixan­
do de ser reconhecidas não só quaisquer outras fontes de direi­
to, como quaisquer princípios supra-legislativos a que a lei deva
obedecer. Como se verá em breve, este filão legalista-democrático, que é o sintoma jurídico do voluntarismo no plano da filo­
sofia política, tem que conviver, durante estes dois séculos, com
^ S o b re a oposição entre os modelos de constituição "estadualista" ou "con s­
tituição de direitos", Clavero, 1991.
350
António Manuel Hespanha
um filão de sentido oposto - que se pode dizer ser o sintoma de
várias formas de anti-voluntarismo no plano da filosofia políti­
ca -, sublinhando os limites postos à lei ou pelos "direitos origi­
nários", ou pelo "governo sábio", ou pela "sensibilidade co­
mum", ou pela "natureza das coisas", ou pela força dos valores
ou das ideias, ou pela "vida quotidiana".
Neste contexto legalista, a ideia de "código" é ambivalen­
te. Por um lado, o "código", como conjunto compactado, sim­
ples, harmónico e sistemático de preceitos normativos, favore­
ce o conhecimento da lei pelos cidadãos e, por isso, potência o
controlo destes sobre o direito, inserindo-se assim numa proble­
mática anti-judicialista claramente jacobina. Mas, por outro lado,
o "código" constitui um "m onum ento jurídico" que aspira à
permanência, ã incarnação da estabilidade da razão jurídica, à
corporização dos consensos profundos. E, nesse sentido, preten­
de resistir ao ritmo frenético das decisões parlamentares. E, na
verdade, os grandes códigos do séc. XIX - com destaque para o
Code Napoléon, de 1804, e o Código Civil Alemão [Bürgerliclíes
Gesetzbuch, B.G.B.], de 1900 - têm resistido (pelo menos formal­
mente) ao tempo e às mudanças de regime. Mas, ao pretender
este carácter não efémero, a actividade codificadora está a pre­
tender colocar-se num plano superior ao da legislação ordiná­
ria, continuamente reapreciável pelos representantes do povo .441
Alguns dirão, mais tarde que o código é, assim, um produto
do trabalho de racionalização das paixões ou dos actos de arbi­
trário voluntarismo dos legisladores, levado a cabo ou pelo sen­
tido público do Estado ou pela ponderação lenta e decantada dos
juristas, proporcionando um património de soluções jurídicas
fundadas em valores estáveis e consensuais (num idem sentire) . 442
Mas este entendimento pertence já, também ele, a um filão do
pensamento político que não é o do democratismo jacobino
(cf.infra, 8 .2 .1 .6 ).
441Sobre a problemática da relação entre codificação, direitos individuais, Es­
tado e soberania popular, v., muito agudo, C lavero, 1991, maximc, 81 ss..
442Cf., rem etendo para um a obra clássica de Cari Schmitt, A m aral, 1996.
Cultura Jurídica Europeia
351
8.2.1.1. “Razão jurídica” us. “razão popular”
Se há algo que caracteriza o pensamento jurídico dos últi­
mos dois séculos é a sua multiforme reacção contra o domínio
do exclusivo da criação do direito pela vontade popular, imedi­
ata e continuamente expressa nas assembleias constituídas pe­
los representantes directos do povo.
Se lermos a história do direito como a história de um dis­
curso que exprime o poder social de um grupo ou de especialis­
tas - como o fez P. Bourdieu 443 - este facto não é estranho. No
fundo, tratar-se-ia, para os juristas, de salvaguardar um mono­
pólio de dizer o direito, que sempre lhes pertencera e de que a
fase mais radical da Revolução francesa (que, em termos cons­
titucionais, se exprime no projecto de Constituição de 1791) os
tentara expropriar.
No entanto, a explicação parece ter que ser mais vasta, pois
nesse esforço de "des-dem ocratização" (lioc sensu) do direito
colaboraram também políticos e intelectuais. Neste sentido, a
explicação podia provir antes de uma tendência de mais longo
curso no sentido de salvaguardar para uma elite cultural (gros­
so modo, os intelectuais, os políticos) aquele poder constituinte
que a filosofia política vinha, desde o séc. XVII, entregando nas
mãos do povo. Estaríamos, então, perante um dos paradoxos
típicos do pensamento político democrático europeu. Por um
lado, a filosofia política atribui à vontade dos membros da soci­
edade o poder de estabelecer as regras da convivência social.
Mas, por outro lado, essa mesmo filosofia estabelece tais requi­
sitos para a validade política dessa mesma vontade - i.e., para
que a vontade seja "racional" e não "arbitrária", para que seja
"vontade" e não "paixão" - que apenas muito poucos a podem
legitimamente exprimir .444
443Cf., maxime, Bourdieu, 1986.
444Este processo de expropriação do poder constituinte por um pequeno g ru ­
po de intelectuais foi magistralm ente descrito por Zygm und Baumann (Baum ann, 1987).
352
António Manuel H espanha
Foi, porventura, Benjamin Constant (1767-1830) quem pri­
meiro e mais claramente definiu esta angústia liberal perante a
democracia, ao explicar que a "liberdade dos modernos" não é,
como a dos "antigos", a liberdade de participar (directamente)
na constituição da ordem jurídica, mas a de manter uma reser­
va de liberdade pessoal em relação a qualquer ordem jurídica,
qualquer que ela seja: "Perguntai antes demais, meus Senhores
- propunha, em 1819, Constant aos membros do Athénée Royal
- o que é que um inglês, um francês ou um americano entendem
hoje pelo termo "liberdade". Para qualquer deles é o direito de
não estar sujeitos senão às leis, de não poder ser preso nem de­
tido, nem condenado à morte, nem maltratado de qualquer for­
ma pela vontade arbitrária de um ou mais indivíduos. E, para
qualquer deles, o direito de dar a sua opinião, de escolher a sua
indústria e de a exercer; de dispor da sua propriedade ou de
abusar dela; de se deslocar, sem necessitar de autorização, e sem
ter que dar conta dos seus motivos ou actividades. E, para qual­
quer deles, o direito de se reunir aos outros indivíduos, quer para
discutir os seus interesses, quer para professar o culto que ele e
os seus associados preferirem, quer simplesmente para passar .
os seus dias e as suas horas de uma maneira mais conforme às
suas inclinações e às suas fantasias. Por fim, é o direito, para
qualquer deles, de exercer influência sobre administração do
Governo, quer no plano da nomeação de todos ou de alguns
funcionários, quer por meio de representações, petições, pedi­
dos a que a autoridade é mais ou menos obrigada a prestar aten­
ção. Agora, comparem esta liberdade com a dos antigos. Esta
consistia em exercer colectiva e directamente vários aspectos da
soberania: deliberando, na praça pública, sobre a paz e a guer­
ra, da constituição de alianças com governos estrangeiros; vo­
tando leis; pronunciando julgamentos; inspeccionando os actos
e os préstimos dos magistrados e convocando-os para compa­
recerem perante a assembleia do povo, acusando-os, condenan­
do-os ou absolvendo-os. No entanto, se era a isto que os antigos
cham avam liberdade, eles admitiam como compatível com esta
liberdade colectiva a completa sujeição do indivíduo à autori­
dade da comunidade. Não encontramos no seu mundo nenhum
Cultura Jurídica Europeia
353
dos gozos que acabamos de enumerar como fazendo parte da
liberdade dos modernos" (B. Constant, The liberty ofthe ancients
compared with that ofth e modem s, 1819).445
Mas, para Constant, a liberdade dos antigos era, além do
mais, um fardo insuportável para o homem moderno, dado ao
comércio e à indústria, ocupado nos afazeres sua vida privada,
sem tempo nem disposição para uma devoção às coisas públicas
tão intensa que o privasse da satisfação dos seus gozos privados.
Daí as vantagens de um sistema de representação política que
delegasse, quase definitivamente, em poucos aquilo de que a
multidão não queria mais ocupar-se. Este era o sistema representa­
tivo, em que uns poucos políticos profissionais, escolhidos pelo
povo, desobrigavam o comum dos cidadãos de se ocupar do in­
teresse colectivo. Se não fora a tendência dos representantes para
se desviarem da cura do interesse público, bem como o perigo de
um prejudicial desinteresse de todos pelo governo da república,446
a delegação de poderes bem poderia ser definitiva.
Neste discurso, Benjamin Constant apresenta o sistema re­
presentativo sobretudo como uma forma de desonerar a massa
dos cidadãos de um encargo que a complexificação das socieda­
des tomara incómodo. E não como o resultado necessário de uma
incapacidade do cidadão comum para decidir sobre o interesse
geral. No entanto, tanto ele - noutras obras -, como outros auto­
res, eram menos optimistas quanto às capacidades legiferantes e
de governo das massas populares. Daí que diversos filões do pen­
samento político contemporâneo se tenham dedicado a explicar
porque é que o povo não podia constituir livremente direito (atra­
vés do voto dos seus representantes eleitos) e a imaginar sistemas
que prevenissem que isto, de facto, pudesse acontecer.
8 .2.1.2. Tradição.
Um desses filões é o da valorização da constituição e do
direito como legados da tradição, apenas modificáveis ou actu­
445Em Fontana, 1988, 311.
446Cf. Md., 326.
354
António Manuel Hespanha
alizáveis pelos processos de evolução "natural" das sociedades.
Tratava-se, na verdade, de reeditar o pensamento social, políti­
co e jurídico mais tradicional da Europa (cf. supra, 4.2.), que tam­
bém já fora oposto pelas correntes conservadoras ao reformis­
mo iluminista e pós-iluminista e, por estas, ao pensamento li­
beral.447 No plano da filosofia política, o mais característico de­
fensor deste ponto de vista é o irlandês Edmund Burke (17291797; Reflexions on the Revolution in France, 1790), para quem a
Revolução, fundada numa falsa ideia de que a constituição (e,
por extensão, o direito) pode ser o produto de um contrato, ti­
nha destruído a constituição histórica da França, subvertendc
toda a verdadeira ordem social e política ("aquela antiga cons­
tituição 448 que representa a nossa única garantia, a certeza das
nossas leis e das nossas liberdades" ) . 449 Esta ideia de Burke acerca
da ilegitimidade de uma alteração decisionista, momentânea,
revolucionária, da constituição radicava, de facto, numa outra
ideia sobre a soberania: esta não era propriedade de uma gera­
ção, mas antes detida apenas por uma tradição de muitas gera­
ções; neste sentido, o princípio de que "a soberania reside na
Nação" só é verdadeiro se se entender a Nação como uma reali­
dade trans-histórica, feita de passado, presente e provir, de que
a geração presente não é senão uma concretização efémera e, poi
isso, desprovida de poderes constituintes.
“ E m Portual, por exem plo, é esta a linha de ataque de Pascoal de Melo Freire
às críticas, de sentido proto-liberal, apresentadas por António Ribeiro dos
Santos ao seu projecto, ainda assim francam ente reform ista, de um Novo
Código de Direito Público (1796) (cf., por último, H espanha, 2001).
448Burke está a referir-se à constituição tradicional inglesa, para a qual ele pro­
punha - um tanto paradoxalm ente - uma reforma de sentido parlamenta­
rista; cf., sobre a consttituição tradicional inglesa e a história da sua evolução
de um modelo de governo "equilibrado" (expresso na conjunção do princí­
pio monárquico [rei], aristocrático [Câmara dos Lordes] e democrático [ Câ­
mara dos Comüns]) para um modelo parlamentarista, com o apagamento do
poder autónomo do rei e a instauração do principio da responsabilidade ex­
clusivamente parlamentar do governo, v. Fioranvanti, 9 7 -9 8 ,1 9 9 9 ,1 0 0 .
449Langford, 1989, vol. 8. Sobre Burke, Fioravanti, 1 9 9 9 ,1 1 8 .
Cultura Jurídica Europeia
355
No continente, o romantismo alemão gerava ideias seme­
lhantes. Friedrich Cari von Savigny (1779-1861) tinha uma ideia
idêntica acerca da origem do direito, que proviria, não de pac­
tos constitucionais ou de vontades de legislar, mas do "espirite
do povo" (Volksgeist), expresso nas suas instituições e manifes
tações culturais históricas e captável por meio de uma auseul
tação das tradições jurídicas, a cargo das elites cultas (nomea
damente, dos académicos) (v. infra, 8.3.2.). Como adiante se diré
estes pontos de vista vão promover uma preferência pelo direi
to tradicional em detrimento do direito legislativo. Mas nem po
isso vão optar pelo direito popular (Volksrecht), tal como era sen
tido nas vivências jurídicas espontâneas. Mas antes pelo direit
corporizado na tradição do direito letrado, judicial ou académi
co (Professorenrecht), recolhendo assim, na Alemanha, a antig
tradição pandectística (cf. supra, 6.3.2.), que os juristas da Escc
la Histórica Alemã agora liam no contexto da mundividênci
social e política do séc. XIX.
Esta ideia de que as instituições, os factos e arranjos con
eretos da vida social, constituem a verdadeira constituição e <
verdadeiro direito, fundamentalmente inabalável pelos golpe
de vontade do legislador não é um monopólio da Escola Histó
rica Alemã. Vamos encontrá-la, sob vestes diversas e durant
todo o século XIX e mesmo no séc. XX, a fundamentar um larg<
leque de doutrinas críticas em relação às ideias de contrato sc
ciai e de soberania popular. Para estas correntes - que incluen
no século XIX, as várias escolas sociológicas e "realistas" (cf. in
fra, 8.4.4.), bem como o marxismo (cf. infra, 8.5.1. e 8.5.2.), e, n<
séc. XX, conceitos como o de "natureza das coisas" (Na tur de
Sache, cf. 8.6.2.) e de direito do quotidiano (cf. infra, 8 .6 .4.1) - tai
ideias não podem deixar de ser consideradas como "ficções ju
rídicas" (J. Bentham), divagações metafísicas (A. Comte, L. Du
guit) ou mistificações ideológicas (K. Marx). O direito devia se
antes procurado na vida (direito vivido, lebendiges Recht, E. Ehr
lich; laxo in action, J. Austin: everyday life laxo ), nos agregados so
ciais surgidos espontaneamente da divisão do trabalho e da so
lidariedade social ("instituições").
356
António M anuel Hespanha
8.2.1.3. Direitos individuais
Para outras correntes, as forças que criavam o direito - e que,
portanto, resistiam à sua modelação livre pela vontade soberana
do povo não eram as coisas, mas os valores ou as ideias.
Valores eram, desde logo, os direitos naturais dos indivídu­
os, anteriores ã lei positiva e cuja protecção e manutenção tinha
constituído a verdadeira razão do estabelecimento da sociedade
civil (ou política) e, portanto, do Estado e da lei (cf. supra, 7.2.1.).
Na origem desta tradição estava, como já se viu, o constitu­
cionalismo inglês, 450 com o seu ideal de um governo limitado pe­
los direitos (embora desiguais) dos corpos do reino e equilibrado
por mecanismos de compensação de poderes. O bom governo
consistiria, então, sobretudo no estabelecimento (i) de uma regra
explícita e estável (uma standing rule) sobre o modo de dirimir
conflitos de direitos, (ii) de uma instância de julgamento desses
conflitos de acordo com tal regra e (iii) de órgãos capazes de im­
por estes julgamentos. Para que o sistema se não perverta, animan­
do os governantes a ir além dos seus estritos limites de guardiões
dos direitos, estas três funções deviam estar separadas, compe­
tindo a poderes distintos. São estas, basicamente, as ideias já con­
tidas in ovo no republicanismo inglês (v.g., James Harrington, 16111677; The commonwealth o f Oceania, 1656), mas expressas, de for­
ma acabada, por John Locke (1632-1704, Two treatises on civil govemment, 1790), ao qual corresponde em muito, no continente, o
barão de Montesquieu (1689-1755; Esprit des lois, 1748).
O que aqui importa destacar é, sobretudo, o facto de, nes­
tes autores, a verdadeira constituição (e, por isso, o núcleo mais
fundamental do direito) residir na espontânea combinatória dos
direitos individuais, sendo, portanto, anterior e independente de
qualquer poder constituído, mesmo que ele fosse uma assem­
bleia representativa. Qualquer intromissão dos poderes consti­
tuídos nesse livre jogo dos direitos individuais, que ultrapassas­
se os limites de tornar clara e estável a regra da sua compatibili-
450Sobre o constitucionalism o inglês, C lavero, 1997; Fioravanti, 1999.
Cultura Jurídica Europeia
357
zação, seria, portanto, abusiva e despótica, ainda que ela provi­
esse de um órgão representativo .451
Abusiva fora, na opinião dos colonos ingleses na América
do Norte, a intromissão (nomeadamente, fiscal) do Parlamento
inglês, não apenas por este órgão carecer de representatividade
em relação aos colonos, mas sobretudo porque violava esse livre
jogo dos direitos individuais, tão evidente numa sociedade "de
fronteira" como era a sociedade colonial. Daí que a ideia liberal
de um Estado reduzido ao mínimo necessário para garantir di­
reitos pre-existentes se tenha tomado muito e evidente e popular
no constitucionalismo norte-americano, limitando notoriamente
outra ideia central da revolução americana, que era a ideia da so­
berania do povo - ou seja, o princípio democrático .452
A compatibilização destas duas ideias foi levada a cabo pelo
princípio "republicano" de um governo limitado. Limitado, des­
de logo, pela instituição de uma série de poderes e contra-poderes no topo do Estado (bi-camaralismo, veto presidencial, con­
trolo judicial da constitucionalidade das leis). Mas limitado, tam­
bém, pelo princípio federal, que, embora dotando a União de
órgãos políticos centrais fortes (nomeadamente, um presidente
dotado de reais poderes), mantinha uma extensa reserva de au­
tonomia aos governos estaduais. Este modelo liberal - teoriza­
do, sobretudo, por Alexander Hamilton (1755-1804) e James
Madison (1751-1836)453- introduziu no mundo jurídico-político
uma ideia nova, a do controle constitucional das leis, a cargo do
poder judicial. E, com isto, construiu uma moldura jurídica con­
creta e eficaz para limitar, no plano jurídico (e não apenas no
plano político) a actividade legislativa (das assembleias repre­
sentativas).
Mas, com isto, voltava a entregar aos juristas a última pa­
lavra sobre o direito constituído. Embora, no caso americano, se
tratasse de uma magistratura electiva e actuando nos limites de
451Sobre o liberalismo clássico, C lavero, 1991; 1997; muito boa sínttese, Fioravanti, 87 ss.
452Sobre o constitucionalismo nnorte-am ericano, v. Clavero, 1997.
453Publicam, em com um , The Federalist, 1788.
358
António M anuel Hespanha
uma constituição estabelecida democraticamente (a Constitui­
ção de 1787, algumas vezes emendada). Na verdade, é justamen­
te esta legitimação democrática, quer da Constituição, quer da
magistratura , 454 a grande novidade do constitucionalismo ame­
ricano em relação a algum controle judicial da actividade polí­
tica que fazia também parte da tradição inglesa.
O liberalismo jurídico norte-americano não deixou de in­
fluenciar o pensamento jurídico e a política do direito na Euro­
pa continental; na verdade, mais no que respeita ao carácter li­
mitado do governo do quanto à solução de um direito quase
autonomamente jurisprudencial (judge made law).
A ideia do carácter limitado do governo soava familiar aos
ouvidos dos europeus. Por um lado, fora esse o modelo tradici­
onal de governo, unicamente apostado em "fazer justiça", ou
seja, dirimir conflitos entre particulares (cf., supra, 4.2. ). Num
contexto mais próximo da teoria liberal (mas ainda muito depen­
dente de concepções mais antigas), M ontesquieu renovara o
tema, insistindo no equilíbrio que devia existir entre, por um
lado, o Estado e os "corpos intermédios" e, por outro, entre os
poderes constitutivos do Estado ("teoria da separação e indepen­
dência dos poderes").
Foi, no entanto, a experiência da primeira fase da Revolu­
ção francesa, com a sua prática de concentração de todos os po­
deres numa Assembleia Nacional ("governo de assembleia"),
que, para mais, se concebia como soberana e absoluta, reavivou
454Realçada, sobretudo, por Thomas Paine (1737-1809; Rights ofman, I-II, 17911792). Por sua vez, as concepções sociais de A dam Smith (1723-1790) - ao
inisistirem nos mecanism os naturais da convivência - nom eadam ente no
domínio da econom ia (a famosa "M ão invisível") - reconstruíam de uma
forma nova ideias antigas sobre a auto-regulação da sociedade e sobre os
perigos de um dem asiado intervencionismo governativo. A o contrário dos
teorizadores iluministas do Estado de Polícia (Polizeistaat) - que preconiza­
vam uma detalhada regulam entação da sociedade pelo Estado - as corren­
tes fisiocráticas e liberais propunham um modelo diferente de governabili­
dade, em que o Estado deixava livres os mecanismos naturais de regulação,
contando com a eficácia do controlo social de que estes dispunhma.
Cultura Jurídica Europeia
359
em. muitos a necessidade de se evitar este novo despotismo, reinsistindo-se tanto na prevalência dos direitos originários sobre
a vontade dos eleitos do povo (governo "liberal") como na ne­
cessidade de dividir e equilibrar os poderes de Estado (governo
"moderado").
Ao mesmo tempo, porém, as necessidades de regulamen­
tação de uma sociedade cada vez mais complexa, já sentidas
desde a segunda metade do séc. XIX, remavam justamente no
sentido contrário. Ao Estado, cada vez são pedidas mais tare­
fas, de fomento, de educação, sanitárias, de cadastro e de regis­
to, de protecção social, de regulamentação do trabalho. Tudo isto
requer - justamente ! - mais administração pública, mais recur­
sos fiscais, mais funcionários, mais regulamentos, mais invasão
da vida quotidiana. Talvez não tanto naqueles aspectos cruci­
ais das liberdades que os sécs. XVII e XVIII tinham identifica­
do, mas em coisas, tão comezinhas, como quotidianas e enervan­
tes, como o requerimento, a selagem, a vistoria, o registo, etc .455
A segunda questão - em que se destacam o e Benjam in
Constant (1767-1830)456e de Alexis de Tocqueville (1805-1859)457
- interessa mais à teoria política.
455H espanha, 2004.
456Constant foi o teorizador da C arta constitucional francesa de 1814, o u to r­
gad a por Luís XVIII, depois do esm agam ento do processo revolucionário
pelos exércitos da Santa Aliança ( P rin cip es de p o litiq u e [...], 1815; outra bi­
bliografia em Fontana, 1988, 329 ss.). C o m o c r ia s e r perigosa a tendência
p ara a hegem onia do parlam ento que resultaria do princípio da exclusiva
responsabilidade parlam entar do governo, Constant introduz o conceito de
mais um poder - o poder m od erad or -, dispondo do direito de vetar as leis,
de dissolver o parlam ento e de designar o executivo. O poder m oderador
foi introduzido em algum as constituições europeias da "segunda g eração ",
com o a C arta C o n stitu cio n a l portuguesa de 1826.
457P ara Tocqueville, a m oderação do governo não decorria tanto do equilíbrio
dos poderes quanto da estruturação da sociedade civil em corpos e o rg a­
nism os autónom os, que constituíssem "n o v as aristocracias" (intelectuais,
empresariais, proprietáarias) que à maneira das do Antigo R e g im e , m as com
um a m atriz aagora m eritocrática, constituíssem contra-poderes, evitando
a invasão da sociedade civil pelo p oder burocráticos do Estado (L 'A n cien
R ég im e et la R év o lu tion , 1856).
360
António M anuel Hespanha
A primeira, por sua vez, é muito relevante para a teoria do
direito, pois diz respeito ao problema da origem do direito (com­
binatória dos direitos individuais originários ou vontade do
povo expressa na lei do Estado), bem como com à hierarquia
relativa entre duas das mais importantes fontes de direito na
época contemporânea - a constituição e a lei (tema que aborda­
remos num outro número, cf. infra, 8 .2 .1 .7).
Na Europa continental pós-revolucionária, a oposição dos
direitos originários à omnipotência parlam entar foi um tema
relativamente comum. Mas talvez quem o tenha desenvolvido
num sentido mais pleno, muito influenciado pela experiência
norte-americana, tenha sido Tocqueville, ao salientar os perigos
que resultariam da tendência, que cria já sensível na Europa, de
desenvolvimento de uma burocracia estadual tentacular, que
invadiria e condicionaria as esferas de liberdade dos indivídu­
os (L'Ancien Régi?7ie et la révolution, 1856). Esta linha de argumen­
tação atinge o clímax na sua violenta diatribe contra o que con­
siderava ser o socialismo embrionário da constituição francesa
de 1848, enquanto nela se pretendia a consagração do direito ao
trabalho e aos socorros públicos (Discours sur le droit au travail,
1848).458 A barreira contra uma tal consunção da política pelo
Estado (e consequente despolitização da sociedade civil) não
podia vir de dentro do Estado , 459 mas apenas da própria socie­
dade civil. Não seguramente das massas de cidadãos, uma mai­
oria amorfa e despolitizada, mas da "nova aristocracia civil",
constituída pelas associações de interesses ou pelos líderes na­
turais, a que uma imprensa livre poderia dar voz e opor às ten­
dências totalitárias do Estado.
Esta desconfiança em relação ao Estado, que caracteriza
o liberalism o de todos os matizes (desde o originário norteamericano até ao neo-liberalismo dos nossos dias) crê, afinal,
458A questão ecoa, em Portugal, a propósito da garantia, d ad a na C arta consti­
tucional de 1826, dos "socorros públicos".
4=9 V.g., de um controlo judicial do legislativo, pois as m esm as m aiorias que
fazem o legislativo controlam , por meio d a censura d a opinião pública, to­
dos os órgãos do Estado, m esm o os tribunais (cf. Renault, 1 9 9 9 ,1 4 3 )..
C ultura Jurídica Europeia
361
que a sociedade é, ela mesma, a origem e melhor garante de
todos os direitos e que não necessita da mediação estadual, nem
para os declarar, nem para os garantir , 460 nem para lhes criar
condições de gozo e exercício (os chamados "direitos sociais"
ou "liberdade mediante o Estado", de que fala Augusto Barbera ) . 4 6 10 direito mais autêntico é, assim, esse que nasce da na­
tural afirmação dos direitos de cada um e das transacções que
espontaneamente se geram entre esses direitos no livre curso
da actividade social. Porque, finalmente, se crê que a socieda­
de é essencialmente justa, mesmo quando nela uns têm mais
poder do que os outros.
Uma sociedade destas - assim naturalmente regida - pres­
supõe naturalmente, indivíduos naturais, i.e., optando e agindo
racionalmente, calculando as suas condutas segundo regras ra­
cionais (rational choice model). O modelo originário da antropo­
logia liberal é, claramente, o do homem de negócios; o seu mo­
delo de acção, por sua vez, é o do mundo do comércio, habita­
do por profissionais formados num certo modelo de cálculo de
vida. Por extensão, o modelo também funcionava adequada­
mente num mundo de proprietários, de pessoas habituadas a
calcular racionalmente os riscos e proveitos dos seus actos e
empreendimentos. Por outras palavras, baseado em gentlemerís
agreements, o modelo liberal é naturalmente adequado ao trato
social e político da gentry. Todavia, a extensão deste modelo de
conduta racional a outros domínios da vida e a outros estratos
sociais (não elitários) pressupunha todo um trabalho de racio­
nalização das condutas humanas, de que a educação, a filantro­
pia, a decência, os bons costumes e as boas maneiras (para já não
falar da missão civilizadora da colonização) se ocuparam. Daí
4é0Também conttra a própria sociedade, mediante aquilo que a teoria constitu­
cional alemã chama a Drittwirkung da garantia de direitos, ou seja, a sua efi­
cácia geral, mesmo em relação a forças opressoras da sociedade civil; até ago­
ra, porém, este conceito tem tido um a aplicação reduzida e frequentemente
unilateral (em defesa dos interesses estabelecidos contra movimentos civis
contestatários (não raro, a Dritttwirkung se transformou em dirty W irkung...).
461Barbera, 1997, 33
362
António Manuel Hespanha
que o liberalismo do govemo do Estado tivesse que ser compen­
sado por um governo moral da sociedade muito rigoroso.
No caso de insensibilidade da sociedade civil para a assun­
ção e adopção de modelos racionais de conduta ("debilidade"
ou "anem ia" [anomia] da sociedade civil, anestesia desta provo­
cada por um prévio controlo estadual excessivo, cultivo de va­
lores "não económicos" em certas áreas do trato social) , 462 o Es­
tado deveria estimular a sociedade, no sentido da adopção de
padrões racionais de conduta - o mais evidente dos quais seria
o padrão do cálculo económico empresarial -, mesmo naqueles
domínios da vida que nada têm a ver com o campo tradicional
da economia, como a educação, a saúde, a segurança social. É
este aspecto "constru tivista", em que é o Estado que empreen­
de um esforço de construção (ou re-construção) da sociedade
civil, que caracteriza o neo-liberalismo, proposto, depois da II
Guerra Mundial, na Alemanha, pelos Ordoliberalen, e, na Amé­
rica, pela "escola de Chicago " . 463
8 .2.1.4. Elitismo social
O primeiro liberalismo não esconde, de facto, os pressupos­
tos antropológicos de que parte quanto ao modelo dos equilíbrios
sociais: a sociedade não era um lugar de igualdade, nem deve tornar-se nisso. Há diferenças, de inteligência, de virtude, de iniciati­
va, de riqueza; nem todos têm o mesmo para dar e nem todos têm
o mesmo a perder. Ou seja, a sociedade política não deveria corri­
gir, mas antes ratificar, as desigualdades da sociedade civil.
Por isso, como Stuart Mill dirá mais tarde, "não é útil, mas
antes prejudicial, que a constituição de um país reconheça à ig­
norância o mesmo poder político e social que ao conhecimen­
to" (On representative goverment, 1861).464 Mill extrai daqui um
462Valores que podem ser tão diversos com o a solidariedade, o nepotismo, o
conservadorism o social, a justiça social, o igualitarism o, o elitismo ou a dis­
crim inação (negativa ou positiva).
463Sobre os quais, Barry, 1996.
464Cit. por Barbera, 1 9 9 7 ,1 4 4 .
Cultura Jurídica Europeia
363
regime eleitoral digno de nota: as elites disporiam de um "voto
múltiplo" ou "plural", o que lhes permitiria compensar a esma­
gadora maioria dos cidadãos "sem qualidades".
Esta - hoje desconcertante - proposta de Stuart Mill, era,
no entanto, bastante moderada em face de outras que, pura e
simplesmente, eliminavam da sociedade política todos esses
"cidadãos sem qualidades".
Era o que acontecia com todos os que propugnavam a res­
trição dos direitos de participação política aos varões proprie­
tários, ricos, educados e, embora apenas implicitamente, bran­
cos, solução que virá a ser adoptada pela maioria das constitui­
ções europeias do séc. XIX.
Enquanto que os requisitos de ser homem e de ser europeu
tinham que ver com alegadas inferioridades naturais de inteli­
gência e de cultura políticas das mulheres e dos povos coloni­
ais, o ser proprietário e rico tinham sobretudo que ver com ques­
tões de liberdade e de responsabilidade cívicas. De facto, a pro­
priedade era vista como uma condição de liberdade: não ape­
nas não se estava dependente (não se era criado, arrendatário,
trabalhador) de ninguém, como se dispunha dos meios de for­
tuna que permitiam adquirir liberdade de espirito, pela instru­
ção e informação, pelo cultivo das disciplinas intelectuais e pela
reflexão sobre os temas públicos .465 Mas a propriedade e a rique­
za (maxime a riqueza imobiliária) eram ainda factores de respon­
sabilidade. De facto, numa óptica utilitarista, quem mais tem,
mais arrisca e, logo, pondera melhor as suas decisões políticas.
Para além de que, numa perspectiva de pura justiça comutati­
va, quem produz mais riqueza (e quem paga mais impostos, o
"sindroma do contribuinte") deve ter mais direitos de partici­
pação política.466. Estes pontos de vista - que foram teorizados,
465Sobre a função política da propriedade no m odelo liberal, extensam ente,
Cia vero, 1991.
‘‘“ N ote-se que este princípio de equivalência entre o "com prom isso social" e
os "direitos políticos" pode ter um a leitura, não liberal, m as socialista ("o
povo é quem mais trabalha, o povo é quem mais ord en a"), fundando, com
igual (i)legitimidade, um a "d itadu ra do proletariado".
364
António M anuel H espanha
de forma acabada embora não monotónica, por Sieyès, Bentham
e Constant, mas sobretudo por Kant467 - deram origem aos sis­
temas constitucionais de democracia restrita, baseadas na exclu­
são do voto das mulheres, dos criados , 468 dos funcionários infe­
riores do Estado e dos membros ordens religiosas , 469 dos nati­
467Cf., em síntese, Barbera, 1 9 9 7 ,1 3 1 ss.; textos fundam entais, I. Kant,
S obre o
d itad o p o p u la r ..., 1793, II.3. ed. cons., p. 295; M eta física d o s co stu m es (K ritik
d er p ra k tisch en V ern u n ft: G r u n d lg u n g z u r M eta p h y sik d er S itten ), 1797-8, ed.
cons. Kant, 1996, p aragr. 46: "O s m em bros de tal sociedade que se unem
para legislar (so cieta s civ ilis ), ou seja, os membros de u m Estado, são cha­
m ados cid ad ã os do E sta d o (eiv es). E m term os do direitos, as atribuições de
um cidadão, inseparáveis da sua essência (com o cidadão) são: lib erd a d e de
acordo com a lei, direito de não obedecer a qualquer lei a que não tenham
dado o seu consentim ento; igualdade civil, com o o direito de não reconhe­
cer enttre o povo qualquer superior que disponha da capacidade m oral de
im por limitações jurídicas aos outros que não se im ponham a ele m esm o; e
in d ep en d ên cia civil, com o atributo de não dever a sua existência e preserva­
ção dos seus direitos e poderes com o m em bro da com unidade ao arbítrio
de qualquer outro m em bro do povo. Desta independência d ecorre a sua
personalidade civil, o seu direito de não ter necessidade d e ser representa­
do por outrem nos vasos em que estão em questão os seus direitos. A úni­
ca qualificação p ara se ser cidadão é ter capacidade de votar. Porém , esta
capacidadde pressopõe a independência daqueles que, integrando o povo,
pretendem ser não apenas um a parte dela m as tam bém u m m em bro dela,
ou seja, um a parte da com unidade que age de acordo com a sua própria
vontade, interagindo com os outros. Esta qualidade de ser independente
requer, contudo, a distinção entre cidadãos activos e passivos, ap esar de o
conceito de cidadão passivo pareça contradizer o conceito de cidadão. Os
exemplos seguintes podem servir para rem over esta contradição: um apren­
diz ao serviço de um m ercador ou artesão; um criado dom éstico (distinto
de um servidor público); um m enor (n a tu ra liter [meninos] ou civ iliter [civilmeente equiparados]) todas as m ulheres e, em geral, todos aqueles cuja
preservação (o facto de serem mantidos e defendidos) não depende da con­
dução dos seus próprios negócios m as de gestões feitas por outrem (com
excepção do Estado). Todas estas pessoas carecem de personalidade civil e
a com o sua existência é quase apenas inerência [...] todos eles são meras
instrum entos [H an d lä n g er] da com unidade, na m edida em que têm que es­
tar sob a direcção ou protecção de outrém e, por isso, não dispõem de in­
dependência civ il".
4“ Cf. Petit, 1990.
'‘“ Pela m esm a razão de falta de liberdade.
Cultura Jurídica Europeia
365
vos coloniais, e na instauração de um sistema censitário, em que
a participação política estava dependente de certos níveis de
fortuna (cf., v.g. e com regimes diferentes, Constituição france­
sa de 1795, Constituição espanhola de 1810, Cárta constitucio­
nal francesa de 1814, Carta constitucional portuguesa de 1826).
8.2.1.5. Estadualism o e “direito igual”
Uma forma especial de elitismo social residia também na
exigência de uma especial preparação intelectual para discutir
as questões públicas e, log o, para criar direito válido (legítimo).
Isto explica-se, desde o momento que se creia que o direito é mais
do que uma vontade, mas é também mais do que uma combi­
natória estabelecida (espontânea, natural) de direitos individu­
ais originários. Ou seja, desde que se admita que o direito é, an­
tes de tudo, uma ideia (uma ideia de justiça) e que, portanto, uma
entidade intelectual com uma lógica própria (como as da mate­
mática, da filosofia ou duas ciências em geral), a ser pensada de
forma adequada.
Esta forma especializada de pensar as normas sociais con­
sistia, desde logo, para o primeiro liberalismo, em pensar "em
geral", de forma abstracta e igual, as situações sociais (maxime,
as situações de conflitos de direitos). Ou seja, numa palavra, de
pensar "legisticamente" a sociedade. E para este esta capacida­
de " generalizante", "igualizante" que Rousseau, Kant, Tocqueville ou Constant apelam, ao caracterizar a ideia de sociedade
livre como a sociedade regulada pela lei geral e igual. E daí a
confiança e esperança que eles tinham no papel racionalizador
dos juristas (nesse "espírito legístico", atributo do corpo dos ju ­
ristas, a que Tocqueville expressamente se refere como condi­
ção da "form a" e da "ordem " da sociedade civil (De la démocratie en Amérique, 1835).470
O direito, como linguagem regulada e especializada, ganha
assim a dignidade de instrumento indispensável para falar da
470Cf. Fioravanti, 199 9 ,1 2 7 .
366
António Manuel Hespanha
liberdade, concebida como o império da igualdade. Ou melhor,
o direito igual (a lei) torna-se na linguagem que os detentores
da soberania têm que falar para a exercerem legitimamente. O
Estado liberal torna-se, assim, num Estado de direito (Rechtssataat). E, com isto, a "razão" dos juristas volta a recuperar a he­
gemonia sobre a "vontade" dos detentores da soberania.
8.2.1.6. O “m étodo jurídico”
Um passo suplementar pode ser dado, neste sentido de jus­
tificar a supremacia do saber jurídico sobre a vontade política,
no plano da criação do direito. Este passo consiste em desamar­
rar totalmente a justiça do direito da ideia de vontade e de con­
trato. Ou seja, consiste em defender que a legitimidade do di­
reito decorre do seu método de abordar as questões, da forma
racional de as resolver, independentemente de qualquer relação
das normas jurídicas por ele formuladas com o contrato social e
a vontade constituinte que dele decorre. A solução jurídica dos
conflitos de direitos seria justa por seguir uma regra correcta de
compatibilizar ou dirimir direitos individuais contraditórios e
não por obedecer à regra querida pelo poder constituinte do povo.
Pois, para constituir a justiça, não basta querer, é preciso querer
correctamente. E, neste par de vontade e correcção, a correcção (o
rigor metodológico e conceituai de um saber especializado) tem
a última palavra sobre a vontade.
Kant, num opúsculo com um título semi-irónico (Über die
gerneinspruch "Das mag in der Theone richtig sein, taugt aber nicht
fü r die Praxis" ["Sobre o dito popular: 'Isto pode ser certo em te­
oria, mas não ter utilidade na prática'"], 1793) já defende esta
ideia de que uma boa teoria vale mais do que a prática e de que
só o povo rude e ingénuo é que pode pensar que as teorias cor­
rectas podem não funcionar na prática. Nesse mesmo escrito,
aplica isto expressamente ao direito, ao defender que a consti­
tuição política, mais do que de uma vontade popular, era o re­
sultado da reflexão teórica dirigida a encontra a mais correcta
combinação do princípio da liberdade, que autoriza cada um a
Cultura ]urídica Europeia
367
procurar a máxima felicidade compatível com a máxima felici­
dade dos outros, com o princípio da igualdade, segundo o qual
todos deviam estar igualmente sujeitos à lei. Se esta combinató­
ria correcta fosse encontrada e sistematicamente aplicada, a cons­
tituição e a forma de governo seriam justas, independentemen­
te da forma de regime (monarquia, aristocracia ou democracia)
que vigorasse. Com isto, a legitimidade do direito liberta-se subs­
tancial e claramente da hipótese contratualista.
Um outro grande filósofo alemão, C. W. F. Hegel (17701831), numa sua obra sobre a constituição alemã (Die Verfassung
Deutschlands, 1799-1802) avança ainda mais neste sentido de que
a razão jurídica tem uma legitimidade constituinte própria.
Reflectindo sobre a situação política alemã, Hegel considera
que o grande déficit da sua pátria é constituído pela falta de "sen­
tido de Estado". Ou seja, pela falta de uma ideia integradora que
discipline os direitos históricos dos vários Estados alemães, ul­
trapassando a constituição pluralista e atomista do Império ale­
mão no sentido de um Estado unificado. Este diagnóstico sobre
a política alemã revela o fio condutor do pensamento de Hegel
sobre a constituição e o direito. Uma e outro não podiam ser o
produto de contratos entre particulares, tendentes a uma melhor
garantia dos seus privados interesses. Mas, pelo contrário, de­
viam ser os portadores da ideia global de Estado, como perso­
nificação de toda a Nação, e os defensores dos correspondentes
interesses públicos. O Estado, com a sua burocracia, a sua admi­
nistração, a sua estrutura financeira, o seu exército, era a corporização dessa Nação trans-individual; a constituição era o conjun­
to de princípios políticos que exprimiam as condições da sua
existência dessa mesma Nação e que, por isso mesmo, deviam
estar acima dos interesses individuais (mas, nas situações limi­
te) abaixo do interesse do Estado; o direito era a concretização,
nos vários domínios sociais, dos direitos do Estado-Nação e dos
sacrifícios e condicionamentos que ele podia exigir aos interes­
ses dos particulares.
No plano do regime político, esta concepção total do Esta­
do destaca a importância dos órgãos que encarnam a ideia de
368
António M anuel Hespanha
unidade do Estado (o monarca, monarkisches Prinzip) ou que
prosseguem o interesse público (burocracia, exército, adminis­
tração). Já os órgãos representativos (dos interesses particulares)
teriam uma função apenas pedagógica, na medida em que pro­
moveriam no seio do povo o sentido nacional e forçariam os re­
presentantes a considerar os seus interesses na perspectiva dos
interesses gerais.
No plano do direito, Hegel rompe definitivamente com a
legitimação contratualista do direito, estabelecendo a ideia de
que a lei há-de valer, não por ser o produto da vontade geral,
mas por traduzir a "vontade" do Estado, como portador da to­
talidade do interesse público.
Nesta perspectiva, o direito tenderia a transformar-se num
assunto de monarcas e burocratas, ocupados com a salvaguar­
da e promoção do interesse público. Mas, como o Estado, para
além de uma organização de poder, também é uma ideia, um
princípio de racionalização do interesse colectivo, uma norma
correcta de agir em função deste interesse, o direito deve ser an­
tes concebido como um método racional de construir normas so­
ciais que institucionalizem a prossecução desse interesse públi­
co, de desenvolver no detalhe o direito do Estado (soberania) a
orientar a sociedade para o seu fim racional, o interesse públi­
co. Ou seja, o Estado é, antes de mais, uma ideia existente na
consciência moral dos indivíduos ("Estado ético") e o direito é,
antes de tudo, a emanação de uma teoria - a "teoria do Estado"
(Staatslehre).
De novo, os juristas estão a comandar o direito, por cima
das assembleias representativas e ao lado das elites burocráti­
cas, como acontece na Prússia. Ou mesmo do monarca que, como
nas monarquias medievais, está limitado por uma regra de agir;
embora, no desenvolvimento desta ideia da supremacia do Es­
tado, sempre pudesse aparecer, como apareceu, quem pensas­
se que o monarca (ou o "ch efe", Führer), como supremo porta­
dor do interesse colectivo, tinha que constituir a última instân­
cia de declaração do direito, o supremo guardião da constitui­
ção (Hüter der Verfassung, CarlSchm itt).
Cultura Jurídica Europeia
369
8 .2.1.7. “Positivismo conceituai” e “Estado constitucional”
Uma geração mais tarde, as ideias de Hegel sobre o carác­
ter originário do poder do Estado tinham-se vulgarizado nos
círculos jurídicos alemães e dado origem a uma completa reinterpretação do direito público (Gerber, Laband, Jellinek, v. in­
fra, 8.3.3.). Este passa a aparecer, então, não como o desenvol­
vimento do contrato social, mas como emanação da soberania
do Estado e do correspondente direito deste de regular a vida
social em função do interesse público, impondo deveres e cri­
ando direitos. Correspondentemente, a constituição não é já a
emanação de qualquer soberania popular constituinte, mas ape­
nas o estatuto jurídico do Estado, compreendendo o elenco dos
seus órgãos supremos, a constituição destes, as suas relações
mútuas e os direitos e garantias que o Estado concede. Mas, por
outro lado, agora que todos os detentores de poder (mesmo o
monarca) são órgãos do Estado, limitados e guiados da na sua
acção pelo interesse público, o Estado carece da constituição
como formalização das atribuições dos seus vários órgãos na
prossecução desse interesse. Neste sentido, se não há constitui­
ção sem Estado, também não pode haver Estado sem constitui­
ção . 471 Só que, nestes termos, a inconstitucionalidade dos actos
do Estado (nomeadamente, das leis) 472 deixa de poder dizer res­
peito ao seu conteúdo (inconstitucionalidade material), mas pe­
nas ao órgão que o praticou (inconstitucionalidade orgânica) ou
à forma adoptada (inconstitucionalidade formal).
471Cf. Fioravanti, 1 9 9 9 ,1 3 9 .
472Dado que os actos não legislativos do Estado deviam , em virtude do prin­
cípio da legalidade, ser actos de execução das leis, o problema da inconsti­
tucionalidade só se punha em relação às leis. Quanto aos "actos de gover­
n o", as decisões m eram ente políticas do Estado, nas suas relações internas
ou externas, esses pertenceriam à pura política, domínio de afirmação li­
vre do Estado, sendo juridicam ente insindicáveis. Este princípio - que, na
verdade, é característico de um Estado autoritário - continua a vigorara
quase indiscutido nos dias de hoje.
370
António M anuel Hespanha
A vontade ordenadora (a vontade jurídica) do Estado expri­
me-se na lei - a cargo dos detentores do poder legislativo por­
tadora dos princípios mais estáveis e permanentes da organiza­
ção política da sociedade e estabelecendo, por isso, os limites da
actuação do Estado e dos particulares (direitos subjectivos públi­
cos ou privados). Abaixo da lei e a ela subordinada, está a admi­
nistração, actuando também ela nos limites da lei (princípio da le­
galidade) e expressando a sua intenção reguladora numa infinida­
de de regulamentos e medidas administrativas concretas.
Neste contexto, a lei ganha uma centralidade nova. Por
cima dela já não pairam, nem os poderes constituintes do povo,
nem os direitos individuais originários. Paira apenas a vontade
do Estado; mas a própria vontade do Estado se tem que expri­
mir de acordo com a lei. O círculo legalista fecha-se. O seu úni­
co limite é puramente formal - a obediência à distribuição de
competências estabelecida na constituição (constitucionalidade
formal).
Ao mesmo tempo que (porque) se autonomiza da política,
a lei ganha a natureza de instrumento de estabilização do direi­
to. Nela se depositam as fórmulas normativas mais decantadas,
mais estáveis, mais trabalhadas pela elaboração doutrinal.
A doutrina, por sua vez, pode agora ser estritamente "jurí­
dica" ("pura"), ou seja, basear as suas construções apenas nos
dados legislativos, embora também seja verdade que, como em
qualquer ciência, o momento construtivo, de elaboração de con­
ceitos baseados nos factos empíricos (neste caso, nos dados le­
gislativos) seja indispensável. A doutrina é, agora, uma ciência
positiva. "Positiva", porque se baseia nos dados objectivos da
lei do Estado (e não em abstracções metafísicas como "contrato
social" ou "direitos individuais originários"); "ciência", porque
generaliza estes dados sob a forma de conceitos ("jurisprudên­
cia dos conceitos", Begrijfsjurisprudenz).i73.
473Cf infra, 8.3.3.
Cultura Jurídica Europeia
371
Os conceitos produzidos por esta doutrina ruminadora da
(já de si ruminada) lei constituem formas que, pela sua genera­
lidade e abstracção, devem representar o que de mais permanen­
te existe na cultura jurídica de uma nação. Daí que os seus re­
sultados possam e devam ser transcritos em códigos, como mo­
numentos tendencialmente permanentes dessa cultura. E que
acontece, em 1900, como Código civil alemão (BGB) que foi ca­
racterizado como a transformação em parágrafos (artigos) de
uma obra doutrinal contemporânea que se tinha tornado clás­
sica (as Pandekten de W indscheidt).
Este mundo de serena tranquilidade entra em crise, com a
inflação legislativa (Gesetzflut) provocada pela necessidade de
resposta legislativas às enormes transformações sociais e polí­
ticas dos inícios do séc. XX, e com a repolitização da vida jurídi­
ca (nomeadamente, em virtude da revitalização do princípio
democrático depois da segunda Guerra Mundial). A lei, que
constituía a pedra do monumental sistema dogmático do direi­
to, passa a exprimir não mais os consensos jurídico-políticos
permanentes, mas apenas a oportunidade momentânea da ad­
ministração, o provisório arranjo político ou mesmo o compro­
misso possível entre opções políticas incompatíveis (o "compro­
misso dilatório " ) . 474
A busca da segurança, da estabilidade, da adesão do direi­
to a consensos permanentes, já não podia resultar da lei, nem
mesmo do código . 475 Tinha que ser buscada a um nível superi­
or, o da constituição, agora 476 entendida, não apenas como o es­
tatuto do Estado (Konstitution), mas antes como o repositório de
valores consensuais (ideni sentire), colocados acima das própri­
as formalizações constitucionais concretas (constituição "m ate­
rial" vs. constituição "formal), representando as aquisições de­
474A m aral, 1996.
473N oção qque tam bém já se banalizara (códigos fiscais, código da estrada, có­
digo do notariado, código da propriedade horizontal, código dos investm entos estrangeiros).
476N om eadam ente, a partir da constituição alem ã de W eim ar (1919).
372
António M anuel Hespanh«
finitivas da vida política (acquis constitutionnel) ou os valores inderrogáveis pelo Estado e oponíveis à lei ordinária (ou mesmc
constitucional).
É isto que marca o advento do "Estado constitucional" (Ver
fassungsstaat), caracterizado pela supremacia da constituição t
dos valores nela consagrados (não "constituídos") sobre toda £
actividade do Estado, mesmo a actividade legislativa.
E,
sobretudo, caracterizado pela instituição de um sis
de controlo judicial da constitucionalidade das leis.477
Independentemente de tudo quanto se possa pensar sobre
a possibilidade da existência de valores socialmente consensu­
ais (sobretudo em sociedades cada vez mais pluralistas, cf
8.6.4.4), o certo é que esta ênfase no "perm anente", no "consen­
sual", no "m aterial justo", ao mesmo tempo que limita o legis­
lador, depõe de nova na mão dos juristas o papel de oráculos
da justiça. Na verdade, quando se proclamam valores consen­
suais, embebidos no próprio trato social, não se está a remeter como acontece com algumas orientações contemporâneas da
477O co n tro lo ,co n situ cio n a l d as leis p re ssu p õ e a d istin çã o e n tre "p o d ei
constituinte"e "p o d er legislativo", distinção p ara a qual foi decisiva a evo­
lução do pensam ento político de de Em m anuel-Joseph Sieyès (1748-1836)..
Sieyès m anteve posição oscilantes: num a prim eira fase d a sua obra ppolítica (Qu'est-ce que le Tiers État, 1789), foi um defensor da plena sobera­
nia da assem bleia, que m anteria, em perm anência, u m p o d er constituin­
te, podendo elaborar, m oddificar e substituir livrem ente a constituição.
Neste sentido, o p oder constituinte não se distinguia do p o d er legislati­
vo ordinário. P orém , num a segunda fase - que corresp on d e à Constitui­
ção francesa do ano III [1795], ela m esm a reacção con tra o radicalism o jaccobino an terior - e de que Sieyès foi inspirador, ele in trodu z a ideia de
que o p od er constituinte não perm an ece sem pre nas m ãos do parlam en­
to, sob pena de se d estruir a m ínim a estabilidade política (Opinions de Si­
eyès sur les attributions et l'organisation du Jury Constitutionnel, 3.10.1795).
C om isto, Sieyèes distingue de form a clara o p oder constituinte do podei
legislativo ordinário, subordinando o segundo ao p rim eiro, e proponde
(sem êxito) a in trodução de u m em brião de tribunal constitucional, para
avaliar a observância da constituição pelas leis. Sobre a história recentí
do controle da constitucionalida, A m aral, 1998 e Fiorovan ti, 1999.
Cultura Jurídica Europeia
373
teoria do direito - para a sensibilidade popular (ou "quotidia­
na") ou para as realidades que a vida aceita como dadas (taken
fo r granted). Mas para a sensibilidade tecnicamente educada dos
juristas, como detentores de um saber prudential capaz de re­
velar os consensos, de lhes dar a forma adequada ou, pelo me­
nos, de estabelecer compromissos que sejam substanciais e não
meramente dilatórios.478
A própria dispersão da apreciação da inconstitucionalidade pelos tribunais comuns poderia não garantir suficientemen­
te a depuração prudencial das soluções, pelo que a melhor so­
lução seria a de entregar o controle da constitucionalidade a uma
elite de juristas, com assento num tribunal especializado, o Tri­
bunal Constitucional.
Embora as coisas possam sempre ter outras leituras, esta
leitura da evolução recente dos paradigmas do direito como uma
luta em torno da legitimidade de dizer o direito, opondo sobre­
tudo "políticos" (representantes populares) e "juristas", parece
ser consistente com os resultados à vista.479
8.2.2. Positivismo e cientismo
Resta anotar algumas das condicionantes do discurso jurí­
dico oitocentista, provenientes, desta vez, não do plano das idei­
as políticas, mas do plano das ideias dominantes sobre o saber.
A evolução das ciências naturais, a partir dos finais do séc.
XVIII, e a sua elevação a modelo epistemológico criaram a con-
478Cf. A m aral, 1996.
479U m estudo de caso muito interessante é o da reacção do corpo dos juristas
a uma constituição - com o a portuguesa de 1976 - produto de lógicas em i­
nentem ente políticas. Enquanto que, do lado das forças políticas motoras
do processo revolucionário, foi sem pre muito aparente a desconfiança em
relação aos tecnicism os do direito, pelo que eles podiam im plicitam nte
transportar no seu bojo, da parte dos juristas a reacção foi a de um a quase
generalizada condenação da constituição, não tanto em termos políticos,
mas em term os técnicos: dem asiada extensão, falta de rigor conceituai, enviesam ento político, carácter com prom issório. Cf. H espanha, 1976).
374
António Manuel Hespanha
vicção de que todo o saber válido se devia basear na observação
das coisas, da realidade empírica ("posta", "positiva"). De que
a observação e a experiência deviam substituir a autoridade e a
especulação doutrinária ou filosofante como fontes de saber. Este
espírito atingiu o saber jurídico a partir das primeiras décadas
do século XIX. Também este, se quisesse merecer a dignidade
de ciência, devia partir de coisas positivas e não de argumentos
de autoridade (teológica ou académica, como no período do di­
reito comum) ou de especulações abstractas (como no período
do jus-racionalismo)..
No campo jurídico, este movimento integrava-se harmonicamente na campanha contra a incerteza e confusão do direito
tradicional, disperso, casuísta, dependente da teologia e da mo­
ral. Mas atingia também a proliferação de sistemas puramente
especulativos de direito natural, surgidos no decurso do século
XVIII. Ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à
religião e à moral, como contra a sua identificação com especula­
ções de tipo filosófico, como as que eram correntes nas escolas
jusracionalistas. Contra uma coisa e contra a outra, proclamavase a necessidade de um saber dirigido para "coisas positivas".
Só que as várias escolas entenderam de forma diversa o que
fossem "coisas positivas".
Para uns, positiva era apenas a lei, pelo que o saber jurídi­
co tinha que incidir unicamente sobre ela, explicando-a e inte­
grando-a {positivismo legalista).
Para outros, positivo era o direito plasmado na vida, nas
instituições ou num espírito do povo que se objectivava nas for­
mas quotidianas observáveis de viver o direito {positivismo culturalista). Positivo era também o seu estudo de acordo com as
regras das novas ciências da sociedade, surgidas na segunda
metade de século XIX {positivismo sociológico, naturalismo).
Finalmente, para outros, positivos eram os conceitos jurí­
dicos, genéricos e abstractos, rigorosamente construídos e con­
catenados, válidos independentemente da variabilidade da le­
gislação positiva, obedecendo ao novo modelo de ciência como
discurso de categorias teoréticas, estabelecido pelo kantismo
Cultura Jurídica Europeia
375
(positivismo conceituai). O saber }urídico escaparia, assim, quer ao
império da lei positiva, mutável e arbitrária, quer ao subjectivis­
mo do doutrinarismo jus-teológico ou jusracionalista. Com isto,
ganhava uma firmeza e universalidade que eram características
das outras ciências. Ao mesmo tempo, instituía-se como um sa­
ber acumulativo, i.e., que ia acumulando certezas e progredin­
do sucessivamente - como as outras ciências - para formas mais
perfeitas e completas de conhecimento. Ou seja, a ciência jurí­
dica partilhava com as restantes a crença optimista no universa­
lismo e no progressismo dos seus resultados.
Todas estas formas de positivismo têm em comum a recu­
sa de quaisquer formas de subjectivismo ou de moralismo. O
saber jurídico (agora, a ciência jurídica) deve cultivar métodos
objectivos e verificáveis, do género dos cultivados pelas ciência
"duras", dela devendo ser excluídas todas as considerações valorativas (políticas, morais). Estes juízos de valor em matéria
jurídica teriam, decerto, o seu lugar. Mas esse não era o da ciên­
cia jurídica, mas sim o da filosofia do direito ou da política do
direito.480
Por outro lado, o cientismo promove, como se disse, a cren­
ça em que os resultados do saber são universais e progressiva­
mente mais perfeitos. Esta crença foi, no domínio do direito, mais
enfatizada pelos positivismos sociológico e conceituai, pois o
positivismo legalista estava, deste ponto de vista, demasiado li­
mitado pelo carácter "local" (no espaço e no tempo) da lei naci­
onal. Em contrapartida as duas outras correntes formulavam
proposições válidas em geral e que cancelavam progressivamen­
te a validade das proposições anteriores.
Esta crença optimista na validade dos resultados da ciência
jurídica - que coincidiu com a época áurea da expansão colonial
europeia - teve consequências importantes na difusão mundial do
direito europeu. Convencidos da validade universal da sua ciên­
480Referência bibliográfica básica: Latorre, 1 9 7 8 ,1 5 1 -1 5 7 ; W ieacker, 1993, 493
("positivism o científico"). V. infra, 174.
376
António M anuel H espanha
cia jurídica e, ao mesmo tempo, do seu carácter progressista (his­
toricamente mais avançado), os europeus impuseram os seus
modelos jurídicos aos povos não europeus. Os direito locais fo­
ram impiedosamente combatidos em nome da civilização e da
modernização, o mesmo acontecendo com a organização políti­
ca e judiciária. Mesmo culturas jurídicas e políticas milenares e
tão desenvolvidas como a chinesa e a japonesa foram levadas a
aceitar a cultura científica e política do Ocidente ("Mr. Science and
Mr. Democracy" era o slogan dos movimentos reformistas chine­
ses dos anos '20 do nosso século) em nome do progresso.
8.3. A s escolas clássicas do século X IX
. . . A Escola da Exegese. A origem do legalismo
8 3 1
Desde os meados do século XVIII que a lei estadual tendia
a monopolizar a atenção dos juristas.481 Este monopólio era, no
entanto, temperado pelas ideias jusracionalistas, ou seja, pela
crença na existência de um direito suprapositivo com origem na
razão.
Já nos finais do século XVIII, alguns Estados europeus in­
corporam em reformas legislativas amplas os principais resul­
tados das doutrinas jusracionalistas. Isto acontece com o movi­
mento da codificação, então iniciado (cf., supra, 8.2.4). Na Prússia,
aparece, em 1794, o Allgemeines Landrecht fü r die preußischen Sta­
aten (ALR, Compilação do direito territorial geral dos Estados
da Prússia). Na Austria, em 1811, o Allgem eines Bürgerlisches
Gesetzbuch (ABGB, Código civil geral). A Toscana e a Baviera
conhecem também codificações de menor relevo.
Em Portugal, prepara-se, a partir de 1778, uma reforma glo­
bal das Ordenações. É nomeada uma Junta do Novo Código, inte­
grada, entre outros, por dois grandes juristas da época, Pascoal
de Melo Freire e António Ribeiro dos Santos, que, todavia, en­
481 Era este, com o já vim os (supra, 258), o sentido da Lei da Boa Razão.
Cultura Jurídica Europeia
377
redada em polémicas políticas tornadas muito agudas pelo eclo­
dir da Revolução Francesa, não leva a cabo a sua missão, ape­
sar de ter deixado muitos materiais. Com a advento do libera­
lismo, em 1820, as cortes lançam um concurso para a elabora­
ção dos principais códigos, mas sem resultados.482
Mas foi sobretudo em França que a codificação, produto
(embora não na sua fase inicial) da Revolução, mudou mais ra­
dicalmente a face do direito, fazendo tábua rasa do direito ante­
rior e promovendo, por isso, a identificação do direito com os
novos códigos. De facto, já a Assembleia Nacional Constituinte
de 1790 tinha concebido o projecto de um código que sintetizas­
se, de uma forma acessível a todos, o novo direito revolucioná­
rio. Mas foi só em 1804, já durante o Consulado e sob a influên­
cia directa de Napoleão I, que o Code civil conheceu a sua ver­
são definitiva e foi promulgado (1804). Seguiram-se os Código
de processo civil (1806), o Código comercial (1807), o Código penal
(1810), etc.483
Os c ó d ig o s napoleónicos constituíam, por um lado, a con­
sumação de um movimento doutrinal que, partindo da doutri­
na tradicional francesa, fora enriquecido com as contribuições
do jusracionalism o setecentista.484 Neste sentido, apareciam
como uma espécie de positivação da razão. Por outro lado, ti­
482Sobre o projecto de Novo Código, v. Silva, 1 9 9 1 ,3 7 0 ss.; ou, para maiores de­
senvolvim entos, M arques, 1987; Vieira, 1992. Em todo o caso, é prom ulga­
do, u m pouco mais tarde (1823), um Código penal militar. Os restentes códi­
gos aparecerão ao longo do século XIX - Código administrativo, 1 8 3 6 ,1 8 4 2 ,
etc.; Código comercial, 1833; Código penal, 1837 e 1852; e, por fim, a coroa da
codificação, o Código civil de 1867, ou Código de Seabra, elaborado por Antó­
nio Luis de Seabra, Visconde de Seabra, após 17 anos de preparação. Sobre
o movim ento da codificação em Portugal, Gilissen, 1988, 461 (nota do tra­
dutor); A ndrade, 1946. O Código de Seabra manteve-se em vigor até 1966,
data em que é substituído por um novo código, que vinha sendo prepara­
do desde os anos '40. Sobre ele, v. M endonça, 1982, 29 ss.
483Sobre todos estes códigos, v. Gilissen, 1988, 451. Sobre a sua difusão m un­
dial, v. ibid., 456 s.
484Cf. Arnaud, 1969.
378
António Manuel Hespanha
nham sido o resultado de um processo legislativo conduzido
pelos órgãos representativos da nação francesa. Constituíam,
assim, a concretização legislativa da volonté générale.
Uma coisa e outra contribuíam para lhes dar o ar de mo­
numentos legislativos definitivos, cientificam ente fundados
e democraticamente legitim ados. Perante eles, não podiam
valer quaisquer outras fontes de direito. Não o direito dou­
trinal, racional, suprapositivo, porque ele tinha sido incorpo­
rado nos códigos, pelo menos na medida em que isso tinha
sido aceite pela vontade popular. Não o direito tradicional,
porque a Revolução tinha cortado com passado e instituído
uma ordem política e jurídica nova. Não o direito jurisprudencial, porque aos juizes não competia o poder de estabele­
cer o direito (poder legislativo), mas apenas o de o aplicar
(poder judicial). A lei - nomeadam ente, esta lei com pendia­
da e sistem atizada em códigos - adquiria, assim , o monopó­
lio da manifestação do direito. Por isso, lei de 30 do Ventôse
do ano XII [7.2.1804]), que põe em vigor o Code civil de 1804:
"A compter du jour où ces lois sont exécutoires, les lois ro­
maines, les ordonnances, les coutumes généra-les ou locales,
les statuts, les règlements, cessent d'avoir force de loi géné­
rale ou particulière dans les matières qui sont l'objet des-dites
lois composant le présent code". A isto se cham ou legalismo
ou positivismo legal (Gesetzpositivismus).
Perante esta evolução, à doutrina apenas restava um papel
ancilar - o de proceder a uma interpretação submissa da lei, atendo-se o mais possível à vontade do legislador histórico, recons­
tituída por meio dos trabalhos preparatórios, dos preâmbulos
legislativos, etc. Quanto à integração das lacunas, a prudência
devia ser ainda maior, devendo o jurista tentar modelar para o
caso concreto uma solução que pudesse ter sido a do legislador
histórico se o tivesse previsto.
Esta supremacia estrita da lei sobre a doutrina e a jurispru­
dência já fora proposta por Montesquieu, para quem os juizes
deviam ser "a boca que pronuncia as palavras da lei, seres ina­
nimados que não podem moderar nem z. força, nem o rigor dela"
Cultura Jurídica Europeia
379
(Esprit des lois, XI, 6) .485Mas, com o advento da Revolução, da le­
gitimidade política que ela trouxera à lei e da desconfiança que
lhe é característica quanto ao corpo dos magistrados e dos ju­
ristas, a ideia do primado da lei ganha tanta força que chega a
levar à pura e simples proibição da interpretação, obrigando os
tribunais a recorrerem ao legislativo "sem pre que entendessem
necessário interpretar uma lei" (référé législatif, lei francesa de 1624 de Agosto de 1790).486
Estes pontos de vista tentaram afirmar-se - normalmenti
à custa dos apoios dos próprios actos legisltivos - na doutrin;
francesa dos inícios do século XIX. Os grandes juristas deveri
am limitar-se a fazer uma exposição e interpretação (exegese) do
novos códigos. Daí, a Escola da Exegese, cujos principais repre
sentantes (Duranton, Demolombe, Troplong) foram autores d
grandes comentários ao Code civil.
Nada de mais ilusório. Tal como André-Jean Arnaud já pô
em evidência, os códigos não eram senão o resultado da re-ela
boração de uma longa tradição doutrinal.487Mas não apenas issc
os juristas não estavam de modo algum convencidos de que
"razão parlamentar" fosse melhor do que a deles, quando s
tocava em matérias jurídicas. O célebre Portalis, que presidiu à
mais importantes das comissões de legislação do período d,
4X5 A cautela com que M ontesquieu limita os juizes ao papel de aplicadores d
lei é contínua: "N ão há qualquer liberdade se o poder de julgar não estive
separado do poder legislativo e executivo. Se ele estivesse conexo com i
legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrá
rio, pois o juiz seria legislador. Se estivesse conjunto com o poder execuli
vo, o juiz poderia ter a força de um opressor" (Esprit des lois, XI, c. 5). Isti
explica-se pelo poder que a m agistratura ganhara durante o Antigo Regi
me, em virtude da estrutura casuísta da ordem jurídica do ius cornmune (cf
supra, 120).
486 O référé législatif d eu origem à criação de u m tribunal especial para aferi
da legalidade das interpretações da lei pelos tribunais (Cour de cassaiion) t
para recom endar a adopção de medidas interpretativas genéricas pelo corpi
legislativo. Cf., sobre este tem a, Gilissen, 1988, 505 ss.
497 Cf. A rnaud, 1969.
380
A ntónio M anuel Hespanha
codificação napoleónica, afirmava enfaticamente que as leis não
eram "puros actos de poder; mas antes actos de sabedoria, de
justiça e de razão"; e que o legislador exercia "menos uma au­
toridade do que um sacerdócio" (;ibid.), não devendo nunca "per­
der de vista que as leis [...] se devem adaptar ao carácter, aos
hábitos, à situação dos povos para que são feitas".488 Dito isto,
já se entende que a tónica estando na razão, o direito está, por
sua vez, de novo nas mãos dos juristas.
A Escola da Exegese estava intimamente ligada - é certo ao ambiente político e jurídico francês, ou seja, a um Estado na­
cional revolucionário, em corte com o passado, dotado de órgãos
representativos e que tinha empreendido uma importante tare­
fa de codificação. Isto determina a disseminação dos princípios
desta escola noutros países, retardando-a, nomeadamente, nos
casos em que estes requisitos não estivessem realizados. Mas a
sua recepção foi sempre mais vocal do que real. A grande opo­
sição entre o "legalism o" francês e o "doutrinarism o" alemão
tem, por isso, muito de ecos de uma polémica célebre lançada
por Savigny, em que, polemizando com uns imaginários lega­
listas franceses, clamava que - em matéria de direito - os tem­
pos estavam mais a favor da prudência do direito doutrinal do
que para um direito legislativo.
O balanço da orientação exegética não pode ser feito ape­
nas à luz das ulteriores experiências negativas do legalismo (v.
infra, 9.6).
Deve começar por se valorizar de forma adequada a medi­
da em que a ideia de um código "civil" geral (i.e., dos cidadãos)
reflecte o pathos da ideia de igualdade dos cidadãos, típica dos
novos Estados pós-revolucionários, igualdade que os códigos
pretendiam garantir justam ente pela sua generalidade e pela
estrita subordinação dos juizes aos seus preceitos. Por outro
lado, a ideia de um código, compacto, organizado e claro, visa-
488V. tam bém Jean-M arie Étienne Portalis, "D iscours prélim inaire du Code Ci­
vil", em Discours et rapports sur le Code civil, ed. F. Portalis, Paris, 1 8 4 4 ,4 ; cf.
ainda, "D iscou rs de présentation du Code civil", ibid., p. 91 ss..
Cultura Jurídica Europeia
381
va facilitar a democratização do direito, pela generalização do
seu conhecimento, evitando, deste modo, que os juristas tives­
sem que ser os mediadores forçosos entre o direito e o povo. Para
além de que não se deve esquecer que as grandes e rápidas mu­
danças sociais e políticas dos finais do séc. XVIII e inícios do séc.
XIX só podiam ser institucionalizadas por via legislativa. De fac­
to, o costume, a jurisprudência ou a doutrina são meios inade­
quados, pela sua própria natureza, para estabelecerem ruptu­
ras revolucionárias.
Por outro lado, é cada vez menos claro como se possa jus­
tificar a ideia de que a Escola da Exegese impediu o desenvolvi­
mento de um direito jurisprudencial bastante autónomo em re­
lação aos códigos. Na verdade, para além de que o direito fran­
cês contemporâneo é, de entre os direitos continuais, o que mais
se funda em decisões judiciais, teria sido impossível, sem uma
jurisprudência criativa, manter em vigor, praticamente inalte­
rado no decurso dos últimos 200 anos, o Coãe Napoléon.m
A estes créditos juntam-se, porém, certos pontos negativos.
A aceitação da lei como produto da vontade do povo pres­
supunha a transparência democrática do Estado, ou seja, que a
lei fosse, de facto, a expressão, tanto quanto possível, directa da
vontade geral dos cidadãos. Ora, o carácter restrito da base so­
cial das democracias representativas,490 a partidocracia, a mani­
pulação da vida política pelos governantes, a erupção da medi­
ação dos burocratas, destruíram estes pressupostos. Com o pro­
gressivo alargamento do universo dos cidadãos em contacto com
o direito oficial,491 tom a-se mais evidente que este é uma ordem
estranha às convicções sociais de justiça.
489Cf. Beignier, 1999.
490E m que a capacidade política e eleitoral era restringida, pelos requisitos cen­
sitários ou de um nível educacional mínimo, a um círculo social diminuto.
491 No Antigo Regime, um a gran d e parte da vida comunitária não era regula­
da pelo direito estadual, m as pelos ordenamentos das com unidades infraestaduais (família, aldeias, entes corporativos). Com o monopólio legisla­
tivo do direito, o Estado passa a pretender regular directamente todas as
esferas da vida colectiva.
382
António Manuel Hespanha
Paralelamente, a progressiva complexificação e tecnificação
do discurso legislativo destruíram esse ideal de colocar, por meio
de leis claras e códigos sintéticos, o direito ao alcance do povo.
Deve ainda acrescentar-se que as correntes exegéticas limi­
taram bastante a inovação doutrinal, sobretudo se fizermos a
comparação com os períodos anteriores. A inovação só podia
provir de modificações da vontade política, e esta competia ex­
clusivam ente
ao
legislador.
De
resto,
grandes
codificações tinham um carácter epigonal.492 Na verdade, os có­
digos contemporâneos são um trabalho final de síntese de ciclos
doutrinais muito longos, neste caso, o ciclo jusracionalista dos
séculos XVII e XVIII.493 Daí que se tenha verificado a tendência
para crer que nada mais havia a acrescentar do ponto de vista
doutrinal. Por uma razão e por outra, a doutrina perde a sua
função de experimentação, de orientação e de inovação.
Enquanto a doutrina estiola relativamente, a inovação le­
gislativa faz-se de jacto, a golpes legislativos. Este mesmo facto,
depositando o direito na vontade sempre mutável dos legisla­
dores, convida a soluções dependentes das maiorias parlamen­
tares, nem sempre muito amadurecidas e frequentemente ins­
piradas por uma arrogância legislativa pouco atenta aos limites
da regulação social por meio da lei. A lei banaliza-se e torna-se
efémera. O poder político substitui-se à autoridade científica
como fundamento e legitimação do direito. Este fica dependen­
te das maiorias parlamentares, tornando-se perigosamente vi­
zinho da política. Tudo isto dá origem a uma perda de prestígio
do direito, quando não a uma desconfiança em relação a ele, in­
duzidas ambas pelo desprestígio da política e desconfiança que
ela progressivamente suscita.
Sobre a doutrina, porém, tem consequências ambivalentes.
492V. W ieacker, 1993, 528.
493 O Bürgerliches Gesetzbuch (B.G.B., Código civil) alem ão de 1900, a última das
grandes codificações, fecha, por sua vez, o ciclo da doutrina alem ã do sé­
culo XIX (pandectística, v. infra).
Cultura Jurídica Europeia
383
Por um lado, põe num risco de permanente desactualização.
Mas, por outro, transforma-a no depósito das soluções jurídicas
duráveis, perante a contínua liquefação do direito legislado.
8 .3 .2 . A Escola Histórica Alemã
A vertente organicista e tradicionalista
Foi antes referido que um dos pressupostos políticos do legalismo era a existência de um Estado-Nação que os cidadãos reco­
nhecessem como portador dos valores jurídicos da comunidade.
Acontece que certas nações europeias, algumas das quais como a Alemanha e a Itália - ocupavam lugares centrais no pa­
norama do saber jurídico europeu, não conheceram um Estado
nacional até ao terceiro quartel do século XIX. Nestes casos de
privação de identidade política, a consciência nacional não ape­
nas se manifestou de forma mais intensa, cunhando muito forte­
mente todas as áreas da cultura, como reagiu contra a ideia de que
o Estado e o seu direito (legislado) pudessem ser a única forma
de manifestar a identidade política e jurídica de uma nação.
A recusa ao Estado deste papel de demiurgo político e ju ­
rídico da sociedade leva a valorizar as formas tradicionais e es­
pontâneas de organização política, nomeadamente aquelas mais
presentes na tradição nacional, como as antigas formas comu­
nitárias de vida ou as comunas e concelhos medievais. Julius
Moser, na Alemanha, tal como Joaquin Costa, em Espanha, ou
Alexandre Herculano, em Portugal, são três exemplos da reva­
lorização, empolada, idílica e romântica, das formas políticas
nacionais anteriores ao Estado. A obra histórica de cada um de­
les foi-lhes dedicada. Mas, é claro, a história serviu apenas de
ponto de apoio de projectos de organização política e jurídica
voltados para o presente e para o futuro.494
Mas, para esta sensibilidade, as formas "Estado" (e "Códi­
494 A versão historiográfica do m unícipalism o, tal com o resulta da obra de
H erculano, tem um a influência política directa nas propostas de regenera­
ção da sociedade portuguesa com base na reconstituição de um estrutura
política descentralizada (A lexandre H erculano, Felix Henrique N ogueira).
384
António Manuel Hespanha
go") ainda tinham - para além do inconveniente de não estarem
disponíveis em todo o lado ... - uma outra face negativa: o seu
universalismo e artificialismo.
O Estado, tal como surgira dos movimentos políticos contratualistas, era, de facto, uma abstracção. Produto de um contra­
to idealizado, realizado entre sujeitos puramente racionais, cujo
conteúdo decorria das regras de uma Razão a-histórica. O Esta­
do (e o Código) não têm nem lugar, nem tempo. São formas uni­
versais, indiferentes a quaisquer particularidades culturais ou
nacionais. Era isto que uma cultura de raízes nacionalistas, anco­
rada nas especificidades culturais dos povos, não podia aceitar.
Uma organização política e jurídica indiferenciada, exportável,
universalizante, aparecia, quando confrontada com os particularismos das tradições nacionais, como um artificialismo a rejeitar.
Este artificialismo decorria precisamente do papel estruturante atribuído à vontade política dos soberanos ou das assem­
bleias representativas, pela teoria constitucional estadualista.
Libertos do império da tradição, os órgãos do Estado tinham a
ilusão de tudo poderem querer. A Nação, essa realidade intemporal em que os mortos mandavam mais do que os vivos, era
identificada com a geração actual ou, mais restritivamente ain­
da, com os órgãos de soberania ou com as assembleias dos elei­
tos do povo. E estes, considerando-se depositários exclusivos dos
destinos nacionais, transformavam-se em "fábrica de leis", pen­
sando poder "meter todo o direito em leis" (Gustav Hugo, 17641844). Esta pretensão pan-normativa dos órgãos do Estado se­
ria tanto mais arrogante quanto é certo que - como dizia o mes­
mo Hugo - "os letrados do direito, que apresentam à assinatura
do monarca as suas opiniões, não devem ser, em média, mais
avisados do que os seus contemporâneos".
Na Alemanha, é uma sensibilidade cultural e político-jurídica deste tipo que está na origem da Escola Histórica Alemã, que
domina o panorama do saber jurídico alemão durante a primeira
metade do século XIX e que, no seu desenvolvimento pandectista, o influencia até aos inícios do século XX.
O programa da Escola Histórica495era, justamente, o de bus-
Cultura Jurídica Europeia
385
car as fontes não estaduais e não legislativas do direito. A sua
pré-compreensão da sociedade - subsidiária da filosofia da cul­
tura organicista e evolucionista de Herder e do ambiente cultu­
ral e político do romantismo alemão - levava-a a conceber a so­
ciedade como um todo orgânico, sujeito a uma evolução histó­
rica semelhante à dos seres vivos, em que no presente se lêem
os traços do passado e em que este condiciona naturalmente o
que vem depois. Em toda esta evolução, peculiar a cada povo,
manifestar-se-ia uma lógica própria, um espírito silenciosamente
actuante, o "espírito do povo" (Volksgeist), que estaria na origem
e, ao mesmo tempo, daria unidade e sentido a todas as manifes­
tações histórico-culturais de uma nação.
O espírito do povo revelar-se-ia nas produções da sua cul­
tura. Na sua língua, desde logo. Também na poesia popular, nas
tradições folclóricas, no direito histórico, nas produções dos seus
intelectuais, nas suas tradições literárias. Seriam justamente es­
tas manifestações da "alta cultura" aquelas que, um pouco pa­
radoxalmente, melhor revelavam a alma nacional. Pois eram
aquelas em que, justamente pela qualidade intelectual dos seus
autores, se conseguia atingir, com uma maior profundidade, sistematicidade e plenitude, o espírito de uma nação. Na sua "ino­
cência", o povo exprimir-se-ia numa "multiplicidade" de regis­
tos, que só as elites culturais conseguiam reduzir a um "siste­
ma científico".
As consequências de tudo isto do ponto de vista da teoria
do direito são, agora, facilmente compendiáveis.
A primeira é a do anti-legalismo e, sobretudo, a da reacção
contra o movimento de codificação. A lei - e, ainda mais, o códi­
go sistemático - são encarados como factores, não de constru­
ção do direito, mas da sua destruição. Em primeiro lugar, por­
que introduzem um elemento conjuntural e decisionista (a de-
495Sobre a Escola Histórica Alemã e o ambiente cultural e político que a rodeia,
v., por todos, Wieacker, 1993,397-491. Principais representantes: Gustav Hugo
(1764-1844); Friedrich Carl v. Savigny (1799-1861), System des heutigen römis­
chen Rechts, 1839; G. F. Puchta (1798-1846), Gewohnheitsrechte, 1828-1837.
386
António M anuel Hespanha
cisão legislativa tomada, conjunturalmente, por um governo ou
uma assembleia) num mundo de normas orgânicas, indisponí­
veis e duráveis (o direito, como emanação do espírito do povo).
Em segundo lugar, porque congelam a evolução natural do di­
reito que, como toda a tradição, é uma realidade viva, em per­
manente transformação espontânea. Esta animosidade em rela­
ção à codificação ficou bem traduzida numa famosa polémica
entre Savigny e Thibaut, este último favorável a uma codifica­
ção geral do direito alemão, que o primeiro considerava artifi­
cial e "inorgânica" ,496
A segunda consequência é a da valorização dos elementos
consuetudinário e doutrinal do direito. Quanto ao primeiro, isso
aparece como normal, dado que o costume é a forma paradig­
mática de o direito se manifestar espontaneamente.497 Já para
compreender o papel outorgado à doutrina - que fez com que o
direito, tal como era definido pela Escola Histórica, se identifi­
casse com um Professorenrecht (direito dos professores) - é pre­
ciso recordar a função que esta escola atribuía aos intelectuais e
literatos na revelação organizada e sistemática do espírito do
povo. De facto, Savigny, concedendo embora que o direito pro­
vém da alma da nação, salienta o papel que o corpo dos juristas
e juizes letrados, bem como a literatura especializada por eles
desenvolvida, tiveram na revelação, aperfeiçoamento e trata­
mento orgânico ou sistemático do direito. De facto, embora com
outros pressupostos metodológicas, o saber jurídico universitá­
rio alemão vinha desenvolvendo, desde o séc. XVII, em relação
à tradição romanística, um trabalho muito semelhante ao que a
Escola História propunha se fizesse em relação ao direito alemão.
496 Peças: A. E. Thibaut, Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen
Gesetzbuches fü r Deutschland (Sobre a necessidade de um código civil geral
para a Alemanha), 1814; F. C. v. Savigny, Vom B eruf unserer Zeit fü r Geset­
zgebung und Rechtswissenschaft (Sobre a vocação do nosso tem po para a le­
gislação e ciência do direito), 1814.
497 De forma emblemática, uma das principais obras de G. F. Puchta intitulase Gewohnheitsrechte (Direito consuetudinário), 1828-1837.
Cultura Jurídica Europeia
387
Com base no trabalho das escolas medievais, os juristas do usus
modernus panãectarum vinham induzindo dos textos categorias
dogmáticas gerais que manifestariam o espírito do direito roma­
no. A romanística, como Savigny e Jhering reconhecem, estava
mais adiantada do que a germanística nessa reconstrução do
espírito (do "sistem a") do direito. Isto explica a atenção dedica­
da por Savigny ao direito romano, ao direito romano medieval498
e ao usus modemus499alemão, bem como o facto de ter ensaiado
- com o seu System des heutigen römischen Recht [Sistema do di­
reito romano actual, 1840] - no âmbito do legado da tradição ro­
manística a tentativa de uma construção orgânica do direito.
Bem como explica que o resultado do trabalho desta escola "germanista" venha a ser conhecido como "pandectística", o que
realça o peso que nela acaba por ter o legado da tradição roma­
nística alemã e, mais em geral, europeia.
A terceira consequência é a da revalorização da história do
direito e do seu papel dogmático, como reveladora, não de um
passado morto e separado do presente (antiquarismo), mas de
um passado que, pela tradição, fecundava o presente.500 Daí que
a historiografia influenciada por esta escola, se bem que também
tenha os seus monumentos antiquaristas,501 revele evidentes
preocupações dogmáticas.502
Finalmente, uma quarta consequência é a da sistematicidade e organicidade da jurisprudência, a que se dedicará o núme­
ro seguinte.
498Cf. a Geschichte des römischen Rechts im Mittelalter [História do direito rom a­
no na Idade Média], 1815.
499Cf. System des heutigen römischen Rechts [Sistema do direito rom ano actual],
1839.
500Sobre isto v. W ieacker, 1993,
501 Como a história de Roma de Th. M om m sen (1817-1903) e os Germaniae monumenta histórica de Freiherr vom Stein.
502Cf. W ieacker, 1 9 9 3 ,4 7 5 ss.
388
António M anuel Hespanha
8 .3 .2 .1 . A cultura jurídica portuguesa
da prim eira m etade do séc. X IX
A política estadualista do Euminismo - que coincide com
consulado do Marquês de Pombal - promove fortemente o pa­
pel da lei no quadro das fontes de direito, insistindo sobre a sua
supremacia sobre as restantes e limitando, nomeadamente, a
possibilidade de, por via jurisprudencial, se estabelecerem nor­
mas jurídicas genéricas.503 Em todo o caso, o fracasso da elabo­
ração de um código actualizado, tanto por ocasião do projecto
do Novo Código, como, depois, já nos primeiros anos do libera­
lismo, fez com que o ideal legalista - latente desde os finais do
século XVIII - não pudesse ter realização.
No "Prefácio" às suas Instituições de direito civil Português
(Coimbra, 1848), Manuel Coelho da Rocha .constata esta impos­
sibilidade do positivismo legalista: "N ão se trata de explicar um
código, porque não o temos, nem de reduzir a síntese ou desen­
volver os princípios fixos e constantes de um sistema coerente,
porque não o há na nossa legislação civil". Neste contexto, a
permanência do doutrinarismo jusracionalista dos finais do sé­
culo XVIII (Martini, Heineccius, Thomasius, Wollf), combinado
com a invocação directa dos modernos códigos estrangeiros e
da doutrina sobre eles construída (Pothier, Portalis, Demolombe), permitida pela Lei da Boa Razão, mantém-se até 1867. Ten­
do então surgido o Código civil, instaura-se, de facto, uma ori­
entação exegética. No ensino universitário, isto traduz-se pela
adopção do texto do código como manual, mesmo para as ca­
deiras de índole filosófica e histórica. Surgem os grandes comen­
503 Os "estilos" ou praxes de julgar deixam de ter força vinculativa. Quanto aos
"assen tos", norm as de aplicação vinculativa estabelecidas por u m tribunal
a propósito de um caso concreto (cf. O rd .fil, 1,5,5), restringem -se agora aos
do prim eiro tribunal de justiça do Reino, a Casa da Suplicação (Lei da Boa
Razão, 18.8.1769). E, em bora não aplicada, m antinha-se a ordenação que
m andava recorrer ao rei no caso de dificuldade na interpretação ou inte­
gração das lacunas (L. 18.8.1769, § 11; O rd.fil., III, 64, 2).
Cultura Jurídica Europeia
389
tários aos principais códigos.504Embora declarando que isto vale
apenas para os comentários à lei, o autor do principal destes
comentários (Codigo civil portugez annotado, 1870), José Dias Fer­
reira exprime bem esta intenção puramente exegética da dou­
trina: "Nós limitámos o nosso propósito a explicar o que está nos
artigos, e o modo como deve ser executado e completado o pre­
ceito da lei, conquanto não poucas vezes dêmos a razão da lei, e
emitamos o nosso juízo sobre o modo de a melhorar [...] Quem
recorre aos comentários das leis o que deseja principalmente
,saber é o que está na lei, e como pode ser executada e preenchi­
da a sua provisão; e, quando muito, procura alcançar também a
razão da lei. Tudo o mais pode ser útil e conveniente segundo
os fins e as circunstâncias; mas é dispensável para quem preten­
de unicamente conhecer e executar a lei" (xi). E, fundamental­
mente, era este último o objectivo dos juristas.505
Já as manifestações expressas de influência da vertente historicista da Escola Histórica Alemã não são abundantes. Em todo
o caso, existe um certo parentesco, é certo que por vezes super­
ficial, entre ele e algumas das propostas da literatura jurídica
dominante até meados do século XIX.
Por um lado, o reformismo político dos finais do século
XVIII e inícios do século XIX, pelo menos numa das suas cor­
rentes, invocava a tradição como fundamento das reformas que
propunha.506 No entanto, tratava-se de um tradicionalismo de
Antigo Regime, baseado no respeito de um passado fixado numa
ordem de direitos adquiridos e, nessa medida, estático. E não de
um tradicionalismo como o historicista, baseado antes no con­
ceito de evolução orgânica, em que o passado é apenas a mani­
504Para o Código penal, o de Levy M aria Jordão (1831-1875); para o Código
civil, o de José Dias Ferreira (1837-1909); para o Código de processo civil,
os deste e de Alves de Sá (1849-1916); para o Código comercial, o de Diogo
Forjaz.
505Sobre a evolução da doutrina jurídica em Portugal nesta época, v. biblio­
grafia em Gilissen, 1988, 521 (nota do tradutor).
506Cf. H espanha, 1982a.
390
António M anuel Hespanl
festação histórica - e a superar - de uma realidade nacional pa
sada, presente e futura.
Por outro lado, a inexistência de codificações modernas aü
bui à doutrina um papel preponderante na revelação do dire
to. Coelho da Rocha constata que, perante a inexistência de foi
tes legislativas actualizadas "o escritor [...] é obrigado a tomar
vez do legislador: tem de formar o plano; tem de fazer a sele
ção das doutrinas; e tem de redigir até as ultimas ilações". IS
entanto, nota-se um certo constrangimento nesta liberdade doi
trinária: "Esta tarefa complicada [seleccionar a solução jurídi<
no universo contraditório do direito tradicional] colocava-nc
em um estado de perplexidade: ou (porque o não havemos c
confessar?) dava-nos uma arbitrariedade, que sendo vantage:
em outros géneros de escritos, é um verdadeiro embaraço n<
de direito positivo, em que a razão se deve ocupar antes de co]
gir, concordar e filiar os princípios já fixados pelas leis, do qi
de os escolher e discutir" -507 Realmente, o coração do autor p
rece estar antes com a escola exegética.
Onde a comunidade de espírito é maior é no domínio c
historiografia e das suas funções político-dogmáticas. Realmei
te, Alexandre Herculano não apenas se propõe, em Portugal,
realizar os objectivos de disponibilização de fontes históricas qi
os historiadores da Escola Histórica Alemã tinham realizado i
Alemanha,508 como se inspira na história pátria ao fazer propo
tas de reorganização do país.509 De certo modo, o mesmo aco]
tece, no campo do direito, com Coelho da Rocha. Não só exis
uma certa continuidade entre o seu Ensaio sobre a história da l
gislação e governo de Portugal (1841) e as Instituições de direito cii
(1848), como estas estão cheias de notas e excursos históricos qi
fundamentam as soluções propostas.
51,7 Manuel Coelho da Rocha, "Prefácio" às Instituições de direito civil Portugui
Coimbra, 1848.
508 Ao editar, v.g., os Portugalliae monumenta histórica (ab 1856).
509Cf. M erêa, 1941; Saraiva, 1977; sobre o contexto rom ântico, organicista
nacionalista, desta geração cultural portuguesa, v. Catroga, 1996.
Cultura Jurídica Europeia
391
Em todo o caso, a doutrina dominante continua a sofrer
uma forte influência do jusracionalismo, embora numa versão
menos individualista e contratualista e, portanto, mais atenta aos
tópicos transpersonalistas e tradicionalistas que caracterizam o
historicismo alemão. E, por isso, é preciso esperar pelas influ­
ências do positivismo sociológico para encontrar os ingredien­
tes (organicismo, evolucionismo, atenção ao direito espontâneo)
que, na Alemanha, a Escola Histórica já tinha avançado.
8.3.3. A Escola Histórica Alemã.
A vertente formalista ou conceitualista.
A jurisprudência dos conceitos (Beg riffsju risp ru cle nz)
ou Pandectística (Pandektenwissenschaft)
Com antes se disse, uma das componentes do historicismo
é a construção sistemática do direito. Esta componente foi par­
ticularmente desenvolvida por um dos ramos da Escola Histó­
rica Alemã, a pandectística ou jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurispruáenz) ,510
De alguma forma, a sistematicidade do direito decorre do
facto de ele ser uma emanação de um todo orgânico, o espírito
do povo. As instituições jurídicas teriam uma "alm a" (a "alm a
do povo", Volksseele), sentidos ou princípios orientadores que
lhes dariam unidade. Princípios esses que, induzidos a partir da
observação (descrição) das normas jurídicas concretas, permi­
tiriam que a exposição dos institutos - e, no fim, de todo o direi­
to nacional - fosse feita de forma orgânica e sistemática, organi­
zada por princípios gerais. Destes princípios extrairiam depois,
510Principais representantes: Georg Friedrich Puchta (1798-1846, Cursus der
Institutionen, 1841) H. D em burg (1829-1907) e B em h ard W indscheíd (18171892, Lehrbuch der Pandekten, 1862-1891). A designação de "pandectística"
deve-se ao facto de que esta escola voltar a valorizar o direito rom ano (pandectas) - sobretudo na m edida em que é nele que se funda a tradição de cons­
trução suistem ática e dogm ática que m arcara a cultura jurídica alem ã dos
dois últimos séculos. Referência bibliográfica básica: W ieacker, 1993, 491501 e 511-524, Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 4 0 ss..
392
António Manuel H espanha
agora por dedução, outros princípios inferiores - a tal "pirâm i­
de conceituai" de que fala Puchta -, bem como soluções para
casos concretos.
Esta ideia de uma exposição e conhecimento do direito,
orientados por princípios gerais, não se pode explicar sem refe­
rência a movimentos de ideias típicos desta época.
Por um lado, existe nesta ideia de um mundo orgânico de
conceitos, apreensível por observação e indução uma evocação
das novas ciências da vida. Por um lado, elas induziam concei­
tos e taxonomias a partir da observação dos seres vivos. E, por
outro lado, elas lidavam com os seres vivos - totalidades orgâ­
nicas, harmónicas e coerentes, dotadas de uma alma e capazes
de gerar novas entidades. Rudolf v. Jhering (cf. infra, 8.4.1.), con­
victo conceitualista na primeira fase da sua obra, exprime essa
concepção do sistema conceituai do direito como um ser vivo,
orgânico e produtivo, bem como refere, também expressamen­
te, essa aproximação entre a tarefa da jurisprudência "constru­
tiva" (ou superior) e o método "histórico-natural" das ciências
da vida:
" A m assa com plexa do direito ap arece ag o ra, não com o um sistema de
normas, de pensamentos, m as com o um conjunto de existências, de potên­
cias jurídicas. C onsideram os a im agem de um corpo jurídico com o a
mais sim ples e natural. C ad a u m destes corpos tem o seu m odelo p a r­
ticular, a sua n atu reza e as suas características, graças às quais é cap az
de p rod u zir os seus efeitos. A nossa tarefa perante isto assu m e p o r­
tanto o carácter de uma investigação histórico-natural [...] D evem os, p o r­
tanto, m edir as características e a força do corpo jurídico [i.e., de um
instituto jurídico], m o strar o m od o em que nasce e m orre, as con di­
ções e situações em que ele p ode influir, as influências que, em co n ­
trapartid a, sofre, as m etam orofoses de que é cap az; devem os indicar
a sua relação com outros corp os jurídicos e as ligações que tece com
eles ou os conflitos em que com eles cai; assim , devem os com p reen ­
der num conceito, com o n um ponto focal lógico, obtido co m base de
todas as anteriores investigações, a n atu reza do m esm o, a sua indivi­
dualidade jurídica e, enfim , d evem os ord en ar, do m esm o m odo que o
cientista classifica os objectos h istórico-naturais, todos os corp os jurí­
dicos em e p ara um sistem a" (Rudolf v. jhering, Unsere Aufgabe, 1857
[em Rudolf von Jhering, La lotta per il diritto e altri saggi, M ilano, Giuffrè, 1989, 9Y).
Cultura Jurídica Europeia
393
Por outro lado, este conceitualismo jurídico não se pode
explicar sem referência a um novo ideal de ciência, oriunda do
formalismo kantiano, que destaca a função estruturante das ca­
tegorias e dos princípios gerais no conhecimento científico. O
que garantiria, daqui em diante, a verdade científica, não seria
mais a adequação do pensamento a uma realidade externa (adaequatio intellectus rei), mas a coerência interna das categorias do
sistema de saber. E o decisivo num saber seria justamente este
quadro categorial e não a apreensão atomística e inorgânica da
realidade empírica.
Transposta para o domínio do direito, esta concepção re­
dunda numa estratégia científica de desvalorização relativa, tan­
to da lei, como dos factos sociais envolventes, muito bem des­
crita por Savigny numa lição sobre metodologia jurídica dada
em Marburg logo em 1802:
"O particular, que é conhecido com o particular no trabalho filológico,
deve ao m esm o tem po ser pensado com o um todo no trabalho sistemá­
tico [...]. O conteúdo do sistema é a legislação, logo, as norm as jurídi­
cas. P ara as conhecerm os, em parte individualmente, em parte no seu
conjunto, necessitam os de um meio lógico, a form a, i.e., o tratam ento
lógico do conhecim ento de todo o conteúdo da legislação. Todo este tra­
tam ento form al ou deve desenvolver a definição das norm as jurídicas
isoladas - cham a-se por vezes a isto definições e distinções - ou organi­
zar a relacionação, quer de várias norm as, quer do seu conjunto. E a isto
que se cham a sistema em sentido próprio" (Methodenlehre, 3 7).511
Ou seja, o trabalho intelectual dos juristas devia consistir
sobretudo na construção de um sistema de conceitos jurídicos.
Mas não se tratava de conceitos obtidos pela reflexão puramente
abstracta, como no jusracionalismo. Tratava-se antes de concei­
tos obtidos por indução a partir dar máximas do direito positivo.
Rudolf v. Jhering distingue claramente estas duas fases do traba­
lho do jurista. A primeira fase, a que chama "jurisprudência infe­
rior", consistiria pela "ligação imediata à forma com que o direi­
to aparece na lei, graças a uma relação puramente receptiva em
relação às fontes" (Unsere Aufgabe, 1857, em Rudolf von Jhering,
511Citado por W ieacker, 1993, 422.
394
António Manuel Hespanha
La lotta per il diritto e altri saggi, Milano, Giuffrè, 1989, 7). A partir
daqui, desenvolver-se-ia a "jurisprudência superior" que produ­
ziria, por destilação e síntese da matéria prima antes obtida, "uma
matéria absolutamente nova" (ibid.), o conceito. A função dos con­
ceitos é, ao mesmo tempo, (i) facilitar a apreensão do direito, já
que eles se tomam sintéticos e intuitivos,512e (ii) tomar possível a
produção de novas soluções jurídicas por meio do desenvolvi­
mento conceituai, do chamado "poder genético dos conceitos".
Ao proceder deste modo, o jurista estaria a adoptar um
método semelhante ao dos cientistas da natureza que, a partir
da observação do real e da elaboração lógica dos resultados des­
sa observação, extraem princípios gerais subjacentes aos factos
empíricos (como a lei da atracção universal, a velocidade da luz,
as leis que presidem às combinatórias químicas). Princípios que,
por sua vez, não apenas explicam as observações feitas, mas
podem ser ainda logicamente combinados, produzindo novos
princípios e teorias que, por seu turno, produzem conhecimen­
tos novos sobre a realidade.513 Ou seja, princípios que não são
apenas verdadeiros do ponto de vista formal, mas ainda ontologicamente fundados.
No caso do direito, os princípios e conceitos, obtidos pelo
tratamento formal do material histórico514e legislativo de um
512" [ ...] a configuração plástica, adquirida de tal m odo [pela síntese conceitu­
ai] pela m atéria jurídica to m a-a acessível à capacidade intuitiva jurídica e,
por tanto, evita à m em ória a fadiga de im prim ir mecanicam ente um a quan­
tidade enorme de norm as positivas isoladas" (ibid, 10). Jhering insiste na
im portância deste elem ento plástico e estético da construção conceituai
como pedra de toque da sua aderência aos elementos espirituais mais ele­
vados do direito. O apuram ento jurídico-construtivo produziria um a sen­
sação de gozo estético equivalente - que se experim entaria, por exem plo,
na jurisprudência rom ana -, no plano espiritual, à beleza das mais sofisti­
cadas formas de vida natural (ibid, 11 ).
5131.e., permitem antecipar realidade até aí ainda não em piricam ente dem ons­
trada, com o a existência de Plutão ou dos buracos negros.
514 Dentre este material histórico, destaca-se o direito rom ano, que a pandectística volta a tratar com o um cam po fértil de quadros conceituais e dog­
máticos aproveitáveis transtem poralm ente. Sobre o rom anism o da pandectística, v. Wieacker, 1 9 9 3 ,4 7 5 ss.
Cultura Jurídica Europeia
395
direito nacional seriam princípios como o princípio da vonta­
de (Willensprinzip) no domínio dos negócios jurídicos, o prin­
cípio da elasticidade no domínio da propriedade, o da irrecuperabilidade da anulação de um acto jurídico, etc. Estes prin­
cípios explicariam e gerariam consequências normativas. Por
exemplo, a de que devia ser absolutamente garantida a liber­
dade negociai, a de que ninguém pode ser representado por
outrem sem um mandato correspondente, a de que a extinção
de um direito real limitado (v.g., uma servidão ou um usufru­
to) reverte a favor do proprietário da coisa sobre que incidia, a
de que um negócio jurídico nulo não pode ter quaisquer con­
sequências (nem sequer aquelas com que as partes ou tercei­
ros, de boa fé, contavam) nem ter uma eficácia reduzida ou la­
teral (redução ou conversão de negócios jurídicos). Estas solu­
ções seriam não apenas formalmente lógicas, mas ainda mate­
rialmente justas, porque os princípios de que elas decorriam
existiriam, de facto, embora a um nível não explícito, na reali­
dade cultural de que o direito se alimentava.
Mas, justamente porque eram princípios realmente existen­
tes (embora implícitos na míriade de normas de que tinham sido
destilados), o jurista, ao formulá-los, não estava a criá-los arbi­
trariamente, em função dos seus pontos de vista filosóficos,
morais ou políticos. Apenas os estava a identificar e descrever,
neutralmente. Por isso, como dizia Bernhardt Windsheid (18171892), "considerações de carácter ético, político ou económico
não são assuntos próprios dos juristas, enquanto tais". O saber
jurídico devia, justamente, garantir a sua cientificidade por meio
deste formalismo, ou seja, desta recusa de, na construção jurí­
dica, ultrapassar as preocupações de rigor conceituai, envolven­
do-se em considerações de fundo sobre a justiça material dos
resultados.
Do ponto de vista dos valores subjacentes, este formalismo
corresponde ao papel que ao direito é reservado no sistema éti­
co de Kant - ao direito não compete estabelecer padrões éticos
de conduta, mas garantir a liberdade que, justamente, possibi­
396
António M anuel H espanha
lita uma avaliação ética das condutas.515 E, nessa medida, o for­
ma lism o conceitualista traduz, do ponto de vista histórico-cultural, uma posição, por um lado, individualista, e, por outro, relativista.
Individualista, na medida em que os seus dogmas (princí­
pio da existência e primado dos direitos subjectivos, da autono­
mia da vontade, da ilimitação da propriedade, etc.) decorrem
logicamente do princípio - retomado do jusracionalismo indivi­
dualista (cf. supra, 7.2.1.1) - de que a sociedade resulta de uma
combinatória de actos de vontade de indivíduos livres e titula­
res de um direito originário a essa liberdade (direitos do indiví­
duo e do cidadão, na esfera do direito público; direitos subjectivos,
sobretudo na esfera do direito privado).516
Relativista e form alista porque, depois do fracasso dos
grandes sistemas ético-políticos de base religiosa ou racionalista, a pandectística se limita a atribuir ao poder a função de esta­
belecer uma forma de organização política que melhor possa
garantir a liberdade individual (liberalismo). Desistindo de lhe
formular um conteúdo axiológico, ou seja, de lhe prescrever prin­
cípios ético-jurídicos materiais (i.e., dotados de matéria ou con­
teúdo normativo) que guiem o exercício dessa liberdade.
Do ponto de vista sócio-político, tem-se realçado de que
maneira o formalismo da pandectística possibilitou a neutrali­
515 Cf., em síntese, W ieacker, 1 9 9 3 ,4 2 7 (estabelecendo um confronto entre esta
nova fundam entação ético-form al e a fundam entação ético-m aterial do di­
reito no período jusracionalista).
5,6 É interessante sublinhar esta com ponente individualista da pandectística,
sobretudo porque, de form a oposta, a prim eira vaga da Escola H istórica se
caracteriza, justam ente, por u m p ensam ento transindividualista. O que
acontece é que, enquanto que o historicism o original adopta um organicismo ontológico e institucional (a sociedade é um sistema orgânico de insti­
tuições, no qual os indivíduos estão encerrados), a pandectística entende este
organicism o com o apenas organicism o epistem ológico e conceituai (a so­
ciedade é u m conjunto de indivíduos que se deixa descrever por um sistema
orgânico de conceitos). E estes conceitos decorrem do axiom a de que exis­
te um indivíduo livre e autodeterm inado (que estava já n a base do jusracionalismo e que inspirará tam bém a econom ia clássica).
C ultura Jurídica Europeia
397
dade do direito face aos projectos políticos contraditórios da
burguesia alemã. Na verdade, os quadros político-ideológicos
da pandectística eram muito largos, podendo identificar-se com
aquilo que se poderia classificar de liberalismo: defesa da liber­
dade e igualdade formais do indivíduo e defesa da proprieda­
de, como extensão da liberdade, com os seus corolários dogmá­
ticos (abolição das desigualdades e vinculações corporativas laborais, estatutárias, familiares - de Antigo Regime, liberdade
contratual, liberalização da propriedade em relação a vínculos
"feudais", liberalização do trabalho em relação a vínculos cor­
porativos, secularização do direito e, em particular, do direito
de família). Praticamente apenas excluíam os projectos políticos
estatutário-corporativos de Antigo Regime e os projectos polí­
ticos socialistas. Dentro destas margens, a pandectística erigia
o seu formalismo e cientificidade como valores supremos, em
face dos quais as soluções político-sociais contraditórias podi­
am ser neutral e objectivamente julgadas.
Este pathos da neutralidade e da objectividade, combinado
com o pathos político estadualista, foi um dos principais facto­
res de legitimação de uma administração - e também de uma
administração judiciária - dirigidas pelo princípio da racionali­
dade. A nova ética do burocrata e do juiz - tão bem descrita por
Max Weber - é justamente cunhada por esta ideia de que ao Es­
tado e ao direito compete levar a cabo uma tarefa de racionali­
zação social, avaliando as situações em termos neutrais e objec­
tivos, independentemente dos valores político-sociais em debate
e da qualidade das pessoas envolvidas.
Pelos mesmos motivos, o formalismo reagia também con­
tra a instrumentalização do direito pela política e pelo Estado.
Fundando-se o saber jurídico numa ordenação formal ou cien­
tífica da realidade legislativa empírica, a lei, ou seja, a vontade
do poder político, constituía apenas o objecto de elaboração. Já
as categorias dessa elaboração dependiam totalmente do esfor­
ço intelectual dos juristas doutrinais. Daí que o saber jurídico não
fosse apenas independente do poder, como ainda tivesse legiti­
midade para impor os seus critérios de processamento doutri­
nal do material legislativo. Com isto, o direito doutrinal (Profes-
398
António Manuel Hespanhí
sorenrecht) readquire a sua tradicional indisponibilidade peran
te o poder e, de certa forma, pode legitimamente reclamar aquele
papel de árbitro entre governantes e governados que se incor
porou tão duradouramente na ideologia espontânea dos juris
tas e na auto-representação que eles tinham do seu papel sócio
político. Foi isto que deu origem à imagem contemporânea di
um Estado dirigido por juizes (Richterstaat) como ideal de orga
nização.
Independentemente de tudo o que possa haver de forma
lista e de conservador (e muito havia)317nesta ideia de neutrali
dade e independência do direito e do Estado, o certo é que est
legado da pandectística - em que o rigorismo formal do proces
so de decisão garante, só por si, a justeza material dos resulta
dos - marcou decisivamente a cultura política e jurídica dos nos
sos dias.
A pandectística teve uma grande expansão, na Europa
fora dela. Na Europa, está na origem do Código civil alemão d
1900, a ponto de se ter podido escrever que ele era as Panáecta
de Windscheid transformadas em parágrafos.518 Através dest
e da doutrina alemã anterior ou subsequente, a pandectístic
influenciou muito a doutrina e as codificações ulteriores.519Mes
mo no Extremo Oriente, ela influencia decisivamente os projec
tos de renovação dos direitos chinês520 e japonês521 nas primei
ras décadas do século XX.522
517 A crítica do formalismo jurídico feita pelo m arxism o clássico (K. M arx, nc
m eadam ente; v. infra, 8 .5 .1 .) tinha em vista a pandectística.
518 Sobre este código, v., por todos, F. W ieacker, 1993, 536 ss.
5,9E, por exem plo, inegável a influência da doutrina alem ã, de raiz pandectís
tica, no Código civil português de 1967, nom eadam ente através do magisté
rio, na sua comissão redactora, de Adriano Vaz Serra, Antunes Varela e Pire
de Lima. V. M endonça, 1981.
520Os "cinco códigos" da República de Nanquim (1925-1929) são bastante in
fluenciados pelo B.G.B..
521 V. Rõhl, 1959; Kigatawa, 1966.
522Sobre a expansão mundial da pandectística, v. Schw artz, 1935, 425 ss.
Cultura Jurídica Europeia
399
8.3.3.I. Os dogmas do conceitualismo
Dada a influência que vão ter na evolução subsequente da
dogmática jurídica contemporânea, é útil destacar alguns dos
resultados mais característicos do doutrina pandectística.
(a) A teoria da subsunção (Subsumtionslehre).
O primeiro deles é a "teoria da subsunção", ou seja, a teo­
ria segundo a qual a realização da justiça nos casos concretos
seria assegurada subsumindo os "factos" ao "direito", nos ter­
mos de um raciocínio de tipo silogístico, em que a premissa
maior era um princípio de direito e a premissa menor a situa­
ção de facto (Tatbestand) a resolver.523
A teoria da subsunção - que conhece também uma versão
legalista em que a premissa maior é a lei - tende a reduzir a acti­
vidade jurisprudência] a uma tarefa estéril de aplicação automá­
tica dos princípios jurídicos. Mas, por outro lado, teve um im­
portante papel na contenção do arbítrio e do subjectivismo jurisprudencial.
(b) O dogma da plenitude lógica do ordenamento jurídico.
Embora o conjunto das normas legislativas não cubra todo
o campo do juridicamente regulável (i.e., embora o ordenamen­
to legislativo tenha lacunas), o ordenamento jurídico, concebi­
do como sistema conceituai, já o cobriria. Na verdade, o carác­
ter geral dos conceitos e a possibilidade de, por meio de opera­
ções lógicas, obter deles outros conceitos torna-os elásticos.
Construído o sistema e definidas as suas regras de transforma­
ção (a sua "gram ática generativa"), pode-se projectá-lo sobre
qualquer caso jurídico imaginável, por meio de uma jurispru­
dência "criadora" ou "construtiva".
Assim, ao juiz (que também não pode deixar de decidir com
fundamento em que não existe direito aplicável) fica vedada,
523Referência bibliográfica básica: Latorre, 1 9 7 8 ,1 0 2 -1 0 4 ; W ieacker, 1993, 494497; Kaufm ann, 1994, 293 ss.
400
António M anuel Hespanha
mesmo perante a existência de uma lacuna da lei, a avaliação do
caso concreto segundo critérios autónomos de valoração. O que
ele deve fazer, nesse caso, é estender, por dedução e combina­
ção conceituai, o sistema normativo, de modo a cobrir o caso sub
judice.52i
(c) A interpretação "objectivista".
A ideia de que o direito formava um sistema coerente de
conceitos, auridos do material legislativo empírico, fazia com
que o sentido decisivo das normas jurídicas fosse o seu sentido
sistemático. Por isso, o sentido de qualquer norma decorria da
sua referência ao sistema normativo em que se integrasse.
Enquanto que o positivismo legalista propunha uma inter­
pretação da lei de acordo com as intenções do seu legislador his­
tórico, o positivismo conceitualista propõe o recurso à ficção de
um legislador "razoável", i.e., de um legislador que vai integran­
do ("rescrevendo", "reinterpretando") continuamente cada uma
das normas no seu contexto sistemático, de modo a que o orde­
namento jurídico - de facto constituído por uma miríade de nor­
mas contraditórias - conserve sempre a sua integridade e coe­
rência como sistema conceituai. O sentido da norma decorre,
assim, não de intenções subjectivas (do seu legislador histórico),
mas dos sentidos objectivos do seu contexto.525
8 .3 .3 .2 . O conceitualismo em Portugal
Em Portugal, a influência da pandectística pode já ser de­
tectada em autores dos meados do século XIX, que salientam a
necessidade de trabalhar de forma sistemática os dados do di­
reito positivo, como acontece com Coelho da Rocha, um autor
tocado pelo espírito da Escola Histórica. Durante a segunda
metade do século XIX, a lição de Bluntschli, um representante
524 Referência bibliográfica básica: Latorre, 197 8 ,1 0 0 -1 0 2 ; W ieacker, 1 9 9 3 ,4 9 7 499; Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 6 3 ss..
525K aufm ann, 1 9 9 4 ,1 4 2 ss..
Cultura Jurídica Europeia
401
suíço da pandectística, tem uma grande influência no ensino
universitário. Mas o acto inaugural de um construtivismo de tipo
pandectista é a publicação, em 1907, das Instituições de direito ci­
vil português, de Guilherme Moreira, ao propor como critério de
resolução jurídica, os "princípios gerais de direito", entendidos
como aqueles "que dominam as normas relativas a uma insti­
tuição ou determinado grupo de relações sociais".526 De igual
modo, estão aí bem presentes as ideias de organicidade, sistematicidade e produtividade da ordem jurídico-conceitual.527
Mais tarde, já como reacção contra o positivismo sociológico (cf.
infra, 8.4.5.), Luís Cabral de Moncada insiste de novo na ideia
de que o saber jurídico é, antes de tudo, "um a ciência toda feita
de abstracções, de conceitos abstractos e delicados, ligados uns
aos outros por uma lógica sui generis" .528
No domínio do direito público, a influência do "método
jurídico", de Laband, Jellinek e Otto Mayer, foi retardada pelo
impacto do sociologismo nos finais do século XIX e princípios
do século XX529 e pela desconfiança em relação ao seu fundo
526 Instituições ..., Coim bra, 1 9 0 7 ,3 3 .
527 "O direito vigente deve ter em si mesm o, com o organism o vivo, a força su­
ficiente para regular todas as relações, incluindo as que não foram previs­
tas pelo legislador. São portanto os princípios em que assenta esse direito
e que o enform am que devem constituir fundam entalm ente o direito sub­
sidiário" (ibid,).
528Lições de direito civil (parte geral), Coimbra, 1 9 3 2 ,1 ,7; v., ainda, a sua aprecia­
ção do logicismo conceitualista na interpretação da lei (ibid., 174 ss.). Em
todo o caso, C abral de M oncada distancia-se, noutras obras, deste forma­
lismo, ao conceber os sistemas jurídicos com o integrados tam bém por ele­
mentos instintivos e im aginativos, aproxim ando-se, então, tanto do histo­
ricismo com o do idealismo alem ão; v., neste sentido, o seu artigo "O "sé­
culo XVffl" na legislação de Pom bal", em Boi. Fac. Dir. Coimbra, 9(1925-1926),
167 ss.
529N a perspectiva sociologista (v. infra, 174), este isolamento dos momentos
jurídicos do seu contexto social correspondia a uma forma de "m etafísica"
e de "anti-historicism o". Tal é a crítica que lhe é dirigida por Alberto dos
Reis & M arnoco e Sousa, no seu relatório sobre o estado do ensino do di­
reito (A Faculdade de Direito e o seu ensino, Coimbra, 1907, 31 ss.).
402
António Manuel Hespanh,
político, pois havia quem visse no "método jurídico" um refle
xo do autoritarismo político do Império de Bismarck.530 Mas <
justamente a sua adopção, como base de reacção anti-sociológi
ca, por uma nova geração de juspublicistas (Fezas Vital, Cario
Moreira, Afonso Queiró, Marcelo Caetano), activos nos anos '2i
e '30, que renova o panorama do direito e lhe dá uma certa uni
dade durante cerca de cinquenta anos.531 Para estes, a constru
ção jurídica do Estado não deve ser influenciada pelos aspecto
políticos ou sociológicos, devendo ater-se exclusivamente a ca
tegorias conceituais do direito. O "m étodo" deve sobrepor-se
"política". "Que argumentos! - exclama Marcello Caetano peran
te as críticas "políticas" dirigidas ao "método jurídico" (cf. a not
anterior) - "E é a partir destes preconceitos e de consideraçõe
políticas (o ter permitido justificar a supremacia do imperado
sobre as assembleias legislativas) que se condena um méto
do [...] !".532
8.4. As escolas anti-conceitualistas e anti-formalistas.
Naturalismo, vitalismo e organicismo
As construções da pandectística tornaram-se progressiva
mente mais elaboradas e dependentes da pura construção con
ceitual. Como se disse, a "gramática generativa" que presidia ;
este construtivismo lógico-conceitual estava marcada, do pon
to de vista formal, pela teoria kantiana das ciências - que fazi,
equivaler a verdade ao rigor lógico e à coerência conceituai -, e
do ponto de vista material, pelos valores típicos do liberalism<
330N a medida em que identificava o direito com o Estado e negava a existêr
cia de direitos subjectivos públicos; cf. A. Cunha Saraiva, A construção juri
dica do Estado, Coimbra, 1 9 1 2 ,1, 391 ss.
531 Sobre isto, v. as referências que faço em Gilissen, 1988, 520 ss., bem comi
os exemplos textuais aí incluídos (nom eadam ente, para o direito públicc
os de Fezas Vital e de M arcelo Caetano).
d32 Marcello Caetano, O problema do método no direito administrativo portuguêi
Lisboa, 1 9 4 8 ,1 7 s. N um m esm o sentido dogm ático-form alista, v. o seu Tra
tado elementar de direito administrativo, 1944.
Cultura Jurídica Europeia
403
burguês, nomeadamente a liberdade (concebida como poder de
vontade) e a sua extensão, a propriedade.
A partir da segunda metade dos século XIX, este panora­
ma de fundo da sensibilidade cultural e política, bem como os
contextos sociais começam a mudar.
No primeiro plano, o formalismo epistemológico kantiano
- que tinha como ponto de referência as ciências físico-matemá­
ticas - cede perante o empirismo e experimentalismo, orienta­
dos pelos progressos das ciências química e biológica. Observa­
ção empírica, experimentação e um novo tipo de explicação fi­
nalista (proveniente, sobretudo, do darwinismo).533 O espectá­
culo dos organismos vivos, em constante evolução, na sua luta
pela sobrevivência, é agora a imagem estruturante do saber.
No plano do ambiente social e político, quebra-se, pela
mesma altura, a unanimidade do primeiro liberalismo. Os mo­
vimentos socialistas manifestam-se vigorosamente na Alema­
nha, em 1848, e em França, em 1870. O desenvolvimento do ca­
pitalismo faz surgir a "questão operária". Começa a impor-se a
imagem de uma sociedade percorrida por conflitos de interes­
ses e de grupos.
Com tudo isto, era natural que a serenidade olímpica da
pandectística - no seu ideal de construir um direito "separado
da sociedade" e atento apenas ao rigor construtivo - começasse
a chocar os espíritos mais atentos ao devir da sociedade e às pre­
mentes exigências "da vida". Ou seja, a vida começa a deixar de
caber no discurso que os juristas faziam sobre ela.
Esta não correspondência entre o discurso e o contexto prá­
tico a que visava aplicar-se, acompanhada pela ascensão de um
533 l.e., um a explicação que tem em conta a finalidade dos acontecim entos e
não os antecedentes. A im agem científica inspiradora é a de struggle for
life, do evolucionism o darw inista - a evolução biológica é com andada pela
finalidade da sobrevivência e explicáveis por ela. O acaso genético (que
obedece a um a causalidade m ecanicista, do tipo da das ciências físicas)
é, no m undo da vida, subordinado a um a cau salid ad e finalista em que o
patrim ónio genético é utilizado p ara a finalidade de vencer na co n co rrên ­
cia biológica.
404
António M anuel Hespanha
novo modelo de discurso científico, cria as condições favoráveis
para que se transplantem para o saber jurídico os modelos de
abordagem que dominavam nas ciências naturais. A isto se cha­
mou "naturalism o jurídico".
O naturalismo jurídico trata o direito como um facto soci­
al, desvalorizando os seus desígnios normativos - i.e., os momen­
tos em que o direito procura actuar sobre a realidade social, jus­
tamente como factor estruturante, dinâmico - procurando expli­
cá-lo, a partir da realidade psicológica subjacente ou da realidade
social envolvente, de acordo com os modelos de explicação uti­
lizados nas ciências da natureza.534
Estes modelos podem ser, basicamente, o modelo mecanicista, em que o direito aparece como a consequência de causas
eficientes de natureza psicológica (impulsos vitais, sentimentos
jurídicos [Rechtsgefühle]), características físicas ou psíquicas) ou
social (força [Macht]), e o modelo biológico, em que o direito se
explica a partir de uma "lógica da vida", dominada por interes­
ses e finalidades. Este último foi mais eficaz no domínio do pen­
samento jurídico, estando subjacente à generalidade das esco­
las descritas nos parágrafos seguintes. Um e outro têm, porém,
em comum as ideias condutoras de que o direito é, irredutivelmente, um facto social e de que não pode ser estudado senão na
perspectiva das suas relações - de variável dependente (sociologismo mecanicista) ou de função (sociologismo funcionalista
ou finalista) - com a sociedade envolvente.535
034Sobre o naturalism o, v., por todos, Wieacker, 1993,652-663; Kaufmann, 1994,
143 ss..
535 p0 ; esta hom ogeneização da realidade, confundindo o plano do "se r" (Sein)
com o do "d e v e r ser" (Sollen) que valeu as maiores críticas ao naturalismo
jurídico. Se o naturalism o podia dar conta do direito com o simples facto
social "b ru to" (i.e., enquanto norm a "v iv id a"), já não poderia d ar conta do
direito com o norm a (ideal, modelo) que se pretende im por à realidade so­
cial e que, por isso m esm o, ainda não faz parte dela, nem é por ela explica­
da. O direito pertenceria ao m undo dos valores a realizar e este nada teria
a ver com o da sociedade já estabelecida.
Cultura Jurídica Europeia
405
8.4.1. Ajurisprudência teleológica
Produto da sensibilidade vitalista é a segunda fase da obra
de Rudolf v. Jhering (1818-1892; a partir da sua òbra Der Zweck
im Recht [O interesse no direito], 1877/1883), dominada pela
ideia de que a finalidade e o interesse são as entidades gerado­
ras do direito. Tal como o acaso biológico no processo de evolu­
ção, a vontade é, de facto, a causa genética dos actos humanos
de que se ocupa o direito. Mas a avaliação e disciplina jurídica
desses actos parte, não desse momento voluntarístico, mas da
consideração dos interesses subjacentes, quer dos interesses (ou
finalidades) prosseguidas pelos indivíduos, na medida em que eles
sejam dignos de protecção, quer, sobretudo, de interesses sociais
objectivos que, frequentemente, não fazem parte das volições
individuais (boa fé contratual, dimensão social da propriedade,
finalidades da instituição familiar, etc.). O direito seria uma cri­
ação orgânica da sociedade, como organismo vivo que esponttaneamente aspira pelo equilíbrio de interesses que promove a
harmonia e a preservação da vida social. Transita-se, assim, de
uma concepção do direito como produto de um pacto visando
a protecção absoluta dos poderes de vontade para uma outra em
que o direito serve, antes de mais, para garantir interesses social­
mente úteis. A uma lógica voluntarista e contratualista substituise uma outra utilitarista e transindividual.
No plano da ética que subjaz ao direito, esta corrente mar­
ca um retorno à ideia de uma ética material, propondo uma tá­
bua de valores ligada a dados sociais objectivos; neste caso, as
constelações de interesses gerados por arranjos objectivos e tí­
picos de interesses sociais, a que chamou "corpos jurídicos" e
que correspondem ao que hoje designamos por institutos ou
insti tu tições (família, contratos, representação, etc.).
A importância de Jhering foi muito grande,536nomeadamen­
te no plano dogmático, ao introduzir a noção de interpretação tele­
ológica, ou seja, de uma interpretação (das normas e dos negócios
536Sobre Jhering, v., por todos, W ieacker, 1993, 514-518; Kaufmann, 1994,1 4 4 .
406
António Manuel Hespanl
jurídicos) de acordo com as finalidades ou interesses em prese;
ça. No entanto, contrariamente ao que se poderia inferir des
ideia de uma organização esponttânea e objectiva das finalidade
sociais, Jhering nunca negou ao Estado o monopólio da edição c
direito. Isto explica-se, porventura, tanto pelo impacto do pens
mento estadualista numa Alemanha que acaba de se unificc
como pelo papel que tanto o pensamento organicista como o pe;
sarnento hegeliano atribuíram ao Estado. O primeiro encamdo
como corporização da sociedade e garante da sua solidariedac
(cf. infra 8.4.4.), o segundo como síntese racionalizadora das co:
tradições sociais. Daí que o principal legado dogmático desta e
cola se situe, como se disse, no plano da teoria da interpretaçã
não no da teoria das fontes do direito.
Mais tarde - e sobretudo após a sua reelaboração por Pb
llip Heck (1858-1943)537- esta linha metodológica vem a desen
bocar em duas correntes de ambição diferente. Por um lad
numa corrente que se propõe desamarrar o direito do Estado
o achamento do direito da exegese legislativa - a Escola do D
reito Livre (Freie Rechtschule). Por outro, numa corrente cuj<
propostas se situam apenas no domínio da teoria da interpret,
ção - a "jurisprudência dos interesses" (Interessenjurispruden
que desenvolverá a crítica de Jhering à "jurisprudência dos coi
ceítos" (Begriffsjurisprudenz), típica da pandectística.
8.4.2. A Escola do Direito Livre
A Escola do Direito Livre constitui um movimento de coi
testação mais radical, quer do positivismo conceituai, quer d
positivismo lógico, em nome da atribuição ao juiz de uma ma
or capacidade de conformação do direito. Na sua origem está
constação, feita por um jurista prático - Ernst Fuchs, 1859-192'
Die gemeinschadlichkeit der konstruktiven Jurisprudenz (O carácfr
537 Gesetzauslegung und lnteressenjurisprudenz [Interpretação da lei e jurispn
dência dos interesses], 1914; Begriffsjurisprudenz und Interessenjurisprudci
[Jurisprudência dos conceitos e jurisprudência dos interesses], 1932; sob
ele, Kaufmann, 1 9 9 4 ,1 4 5 ss..
Cultura ju rídica Europeia
407
socialmente danoso da jurisprudência construtiva), 1907 -, de
que o juiz, no processo de achamento da solução jurídica, parte
do seu sentido de justiça (Rechtsgefühl) e não da lei. O contribu­
to de um historiador - Hermann Kantorowicz (1877-1940, Rechtswissensclmft und Soziologie, 1910) - e de um sociólogo do di­
reito - Eugen Ehrlich (1862-1922, Grundlegung der Soziologie dei
Rechtes, 1912 ) - contribuíram para dar uma maior consistêncú
teórica às propostas de problematização ou abandono do mo­
delo estadual, legalista e racionalista do direito, a caminho dc
uma fundamentação "livre", fundada na sensibilidade j uri d ia
comunitária, auscultada, caso a caso pelo juiz.
Esta ideia de que os juristas decidem com base na sua sen
sibilidade, só depois encontrando argumentos racionais ou fun
damentos legais corresponde ao senso comum dos juristas, ain
da hoje. Mas, no contexto histórico a que nos referimos, esta in
sistência no carácter "pessoal" e "não racional" da decisã o nãc
pode ser desligado, por um lado, da crise do conceitualismo dc
pandectística, mas, também, num âmbito mais geral, de corren
tes filosóficas de crítica ao racionalismo, que afirmavam o pri
mado da sensibilidade (intuição), da vontade ou da acção (élm
vital) como forma de realização do h o m e m , ou o carácter p o líti­
co (i.e ., radicado na vontade de poder) de todos os valores.538
O extremismo das posições metodológicas da Escola dc
Direito Livre foi matizado pela limitação desta liberdade de cri
ação do direito aos casos em que existissem lacunas da lei. En
todo o caso, os seguidores deste movimento insistiam em qu«
existia uma lacuna sempre que a interpretação da lei não fosse
clara e inequívoca, pelo que, na prática, "tantas lacunas quan
tas as palavras da lei" (H. Kantorowicz).
Por isso, este movimento - além de ter sido tido como bas­
tante estranho, nos seus interesses e métodos, ao mundo doí
538É clara a consonância de alguns destes pontos de vista com a filosofia, críti­
ca do racionalismo e exaltadora da acção, de Friedrich Nietszche f I 844-1900
ou de H enri Bergson (1859-1941). Sobre N ietszche e o direito, Kaufm ann
1994, 86; Valadier, 1998; Litowitz, 1995, 56-57.
408
António M anuel Hespanha
juristas - foi sempre considerado com subversivo para a certe­
za e segurança do direito e da própria comunidade jurídica.539
Não pode, contude, deixar de se sublinhar a ênfase que este
movimento deu à natureza política da decisão do juiz (do juris­
ta), insistindo na responsabilização pessoal que lhe está ineren­
te e, com isto, no compromisso ético e social do juiz quando de­
cide, compromisso que tinha sido escamoteado pelo positivis­
mo, ao apresentar o juiz como um autómato executor da lei ou
dos princípios científicos do direito. Tal como o crente, na visão
protestante da fé e da salvação, o jurista decide livremente e, nes­
sa decissão, ao mesmo tempo que afirma convicções, compro­
mete o seu destino pessoal.540
Mas este decisionismo, que identifica os valores jurídicos
como produtos de uma afirmação (proposição) política deu tam­
bém cobertura à teoria jurídica do nazismo e do fascismo,541bem
como do estalinismo,542para as quais o direito, mais do que uma
ordem racional, é uma manifestação de vontade e um instrumen­
to de poder.
8.4.3. A jurisprudência dos interesses
A "jurisprudência dos interesses" tem, em certa medida, um
alcance menos ambicioso do que a jurisprudência teleológica de
Jhering (ou a "Escola Livre do Direito"). Enquanto que estas da­
vam alguma abertura em relação a formas anti-legalistas de "en-
5WSobre a Escola de Direito Livre, por todos, W ieacker, 1993, 670 ss. e Kauf­
mann, 1 9 9 4 ,1 4 6 ss.
Im portante, neste sentido, H erm ann Isay (1873-1938), Rechtsnorm und Ents­
cheidung, 1923.
541 N om eadam ente, o decisionism o político e jurídico de Carl Schm itt (18881985), o mais brilhante e mais cnsistente dos juristas desta corrente, para o
qual o direito consistia num a afirm ação dos valores dos com patriotas (Vo­
lksgenossen) contra os estranhos (Fremde). Ao Estado, com o "n o v o Prínci­
p e", cabia a afirm ação destes valores, por meio da lei, mas eventualmente
contra a lei, se esta estorvasse conjunturalem ente os interesses colectivos
(v., em síntese, Kaufm ann, 1994, 96 s.).
542Cf. infra, 8.5.1. .
Cultura Jurídica Europeia
409
contrar" o direito, a jurisprudência dos interesses aceita basica­
mente os pressupostos do positivismo legal e tenta apenas resol­
ver um problema "limitado", a que já o construtivismo pandectista tinha tentado responder - o problema das lacunas do orde­
namento legal - que as grandes mudanças sociais e políticas dos
finais do século XIX e inícios do século XX, incompletamente co­
bertas pela legislação, tinham tomado ainda mais evidente.
Na verdade, a sua proposta de base é a de que, constituindo
qualquer caso jurídico um conflito de interesses, a decisão a atin­
gir se deve basear numa adequada ponderação desses interesses
e não a partir da dedução conceituai. Os conceitos teriam uma
função apenas heurística ou didáctica. Constituiriam fórmulas
sintécticas com auxílio das quais poderia ser descrita a forma tí­
pica ou usual de obter a correcta ponderação dos interesses num
determinado tipo de casos. E, por isso, sugeririam provisoriamen­
te uma abordagem do problema a resolver. Mas - ao contrário do
que pretendia a jurisprudência dos conceitos - não teriam qual­
quer função decisiva no achamento da solução jurídica. Daí que
esta corrente critique o método dedutivo-conceitual como uma
inversão ("método da inversão", Umkehrunsmethoãe), pois coloca
no ponto de partida da invenção jurídica o que devia estar no fim.
Se critica o conceitualismo, a jurisprudência dos interesses
mantêm-se nos quadors do legalismo, pois a ponderação dos
interesses adequada é feita equivaler à ponderação que se guie
pelos critérios de avaliação explícita ou implicitamente feita na
lei. Embora não se esteja a decidir de acordo com a letra da lei
(porque ela não prevê de todo ou não prevê em termos claros o
caso), está-se pelo menos a respeitar a avaliação dos interesses
legalmente estabelecidos e a partir dela para um construtivis­
mo de outro tipo. Não o da dedução conceituai, típico da pandectística,543 mas o da análise das valorações legais e da sua ex543Cf. supra, 8.3.3. A crítica dirigida pela jurisprudência dos interesses à juris­
prudência dos conceitos era a de que ela p raticava um "m étodo da inver­
são" - ou seja que colocava no princípio do processo de achamento da so­
lução jurídica (Rechtsfindung) os conceitos, quando estes deviam ser ape­
nas sínteses finais dos resultados justos obtidos
410
António M anuel Hespanh
tensão a casos não previstos. Trata-se, por isso, de um constn:
tivismo de base mais apertadamente legalista do que o do cor
ceitualismo, até porque não deixa de se reconhecer na lei a ún
ca fonte de direito (i.e., a única ponderação legítima dos intere:
ses) e de se insistir no dever de obediência dos juizes à lei. S
que esta obediência teria que ser, para utilizar uma expressã
do próprio Ph. Heck, uma "obediência inteligente".544
8.4.3.1. A jurisprudência dos interesses em Portugal
Em Portugal, a "jurisprudência dos interesses" começou
influenciar a doutrina portuguesa a partir dos anos quarentí
Nessa altura, o grande renovador da civilística portuguesa cor
temporânea, Manuel de Andrade, acolhe muitos dos seus por
tos de vista teóricos545e aplica-os na prática. Também Adrian
Vaz Serra, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, M:
nistro da Justiça e principal impulsionador da elaboração de ur
novo código civil,546 defende uma versão prudente da jurisprt
dência dos interesses. Seguidores seus são ainda António A
Ferrer Correia, Francisco Pereira Coelho e, em geral, toda a c:
vilística da escola de Coimbra.
544Principais representantes da "jurisprudência dos interesses": Ph. Heck (Gi
setzauslegung u. Interessenjurisprudenz, 1914; Begríffsbildung u. Interessenji
risprudenz, 1932) e a cham ada escola de Tübingen, nom eadam ente, M ax Rt
melin, Oertamnn e Müller-Erzbach. Sobre esta corrente, Wieacker, 1 9 9 3 ,661
669; Kaufmann, 1 9 9 4 ,1 4 5 ss..
545 Em Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Coimbra, 1944.
346Cf. Adriano Vaz Serra, Valor prático dos conceitos e da construção jurídica (m
tas para 0 estudo do problema das relações entre a teoria e a prática do direito), Lií
boa, 1944. Sobre ele, v. Luís Cabral de M oncada, "Integração das lacunas
interpretação do direito", Rev. dir. estudos sociais, 7(1954). Sobre o tema v
ainda, Martins; 1989. No dom ínio do direito público, a introdução de per:
pectivas metodológicas inspiradas pela jurisprudência dos interesses devt
se a Afonso Rodrigues Queiró, O poder discricionário na administração. Tei
ria dos actos do governo, 1944.
Cultura Jurídica Europeia
411
8 .4 .4 . 0 positivism o sociológico e o institucionalism o
A ideia de que o direito está indissoluvelmente ligado à
sociedade não era nova no saber jurídico. De alguma forma, o
direito natural clássico, na sua versão objectivista (Aristóteles,
S. Tomás), ao ligar o direito à natureza das coisas (humanas e
sociais), propunha justamente a perspectiva de que o direito, na
sua função de manter os equilíbrios sociais estabelecidos, "h a­
bituais" (iustitiam facere), tinha que se orientar para uma justiça
imanente nas instituições sociais. O direito e a justiça visavam o
bem comum, sendo que este era identificado com os equilíbrios
sociais profundos, enraizados pela tradição e estruturantes dos
sentimentos comunitários de ordem e de justiça.
Mais tarde, Montesquieu (1689-1755) dá a este enraizamen­
to social do direito um tom mais pronunciadamente mecanicista, relacionando a organização política e jurídica das sociedades
com factores empíricos como o clima ou o meio geográfico. E, já
no século XIX, Savigny volta a esta ideia de que o fundamento
do direito tem que ser procurado nos valores que estruturam
uma cultura (nacional). E também com a Escola Histórica que como já se disse - surge a ideia de que estas culturas constituem
organismos, sujeitos a uma evolução regulada, ou por leis pró­
prias de cada um deles, ou por uma lei geral do progresso his­
tórico.547
No entanto, a primeira manifestação de um positivismo
sociológico "científico" - ou seja, obedecendo aos modelos epistemológicos das novas ciências sociais da segunda metade do
sécu lo XIX, nomeadamente no que respeita à adopção de mo­
delos mecanicistas ou funcionalistas de explicação - decorre do
sociologismo de Auguste Comte (1798-1857).
547 Cf., sobre esta ideia de estádios histórico-jurídicos em Puch ta, W ieack er,
1 993, 455. N a A lem an ha, o principal rep resen tan te do organ icism o juríd ico-político é, no en tan to, O. v. G ierke (1 8 4 1 -1 9 2 1 ), v. W ieack er, 1993,
518 ss.
412
António M anuel Hespanha
Comte participa de um modelo de ciência para o qual só
existe uma ciência do geral. Só que, agora, "geral" não se opõe
apenas a "particular",548 mas também a "individual". Assim, as
ciências sociais devem visar a explicação do todo social, com­
preendida como o complexo global e orgânico das relações interindividuais. O indivíduo isolado - que constituíra o objecto
de atenção quer da economia clássica (Adam Smith, David Ri­
cardo), quer do jusracionalismo (v. supra, 7.1.2.), quer da pandectística (v. supra, 8.3.3.) - deixa de constituir o ponto de foca­
gem do saber social e passa a ser tido como uma abstracção
"m etafísica", realmente inexistente. Real, geral e positiva, era a
sociedade, como complexo global de relações entre indivíduos,
em que estes apareciam como determinados por constrangimen­
tos objectivos e independentes da sua vontade. Só dirigindo para
ela o seu esforço cognitivo, o saber social poderia, portanto, ga­
nhar a generalidade e a positividade das ciências.549
Do ponto de vista da natureza dos saberes sociais, o comtismo é um positivismo. Estes saberes só teriam adquirido o es­
tatuto de ciência ao abandonar a pretensão de explicar as origens
ou as finalidades últimas da sociedade e do homem - os "por­
quês?", característicos dos "estados" teológico e metafísico dos
saberes - e ao dirigir a sua atenção para a simples descrição dos
fenómenos sociais - os "com os?", característicos da fase cientí­
fica ou positiva da evolução do espírito humano. De resto, sen­
do o homem um ser determinado por causas internas (psicologismo) ou externas (sociologismo) e privado de livre arbítrio,
uma dimensão valorativa dos saberes sociais deixava de ter sen-
548l.e., exigindo que o conhecim ento científico adopte proposições genéricas e
abstractas, com o já acontecia com os saberes sociais desde o jusracionalis­
m o (opostos ao casuísmo e particularism o dos anteriores saberes sobre o
h om em [m oral, direito, história - casus, quaestiones, exempla]).
Sobre o com tism o, v., por todos, Jean L acroix, La sociologie d'Auguste Comte,
P aris, PU F, 1973. Principais obras de C om te: Cours de philosophie positive
(1830-1842) (I a fase); Système de politique positive, ou Traité sociologique, insti­
tuant la réligion de l'humanité (1851-1854) (2a fase). Interpretação politicosociológica do seu pensam ento, Fernando C atroga, 1977, max. 287-308.
Cultura Jurídica Europeia
413
tido. Pois nem o homem se podia propor outra coisa que não
decorresse dos seus factores determinantes, nem lhe podia ser
dirigida qualquer censura moral pelos seus actos. A sociologia
deixa-se, assim, descrever como uma "fisiologia social", comple­
tamente depurada de intenções normativas (religiosas, éticas).550
O positivismo sociológico de A. Comte - depois desenvol­
vido por discípulos seus, dos quais se destaca E. Littré (18011881)551- constitui (não tanto pelo seu "positivism o",552 mas so­
bretudo pelo seu organicismo) uma crítica directa ao indivi­
dualismo, voluntarismo e contratualismo da pandectística.
O indivíduo não era um ser livre e autodeterminado, mas
um ser dependente e que só sobrevivia em virtude da solidarie­
dade social.
A sociedade não era um conjunto de indivíduos autónomos
e auto-regidos, mas uma constelação de relações interindividuais forçosas e indisponíveis, justamente porque baseadas nesse
carácter incompleto e fraco do indivíduo e na necessidade, daí
decorrente, de especialização, divisão e complementarização do
trabalho.
A ordem social e política não se fundava num acordo de
vontades que melhor garantisse os direitos naturais e prévios dos
indivíduos, mas nas condições e exigências objectivas da vida
social concretizadas em instituições (transindividuais e indispo-
550H averia, em todo o caso, espaço para uma disciplina norm ativa externa como
o direito, pois, ao contrário do com portam ento instintivo dos animais, o
com portam ento do h om em não era absolutamente determ inado. Júlio de
M atos, um dos representantes da psicologia positiva em Portugal, conclui
" I o. - Que o livre arbítrio e a espontaneidade dos actos voluntários são uma
quimera, porque a Fisiologia dem onstrou a subordinação destes fenóme­
nos a leis; 2o. - Que os m ovim entos da vontade não são fatais, m as simples­
m ente condicionados, porque nós podem os intervir neles e modificá-los
num a direcção p redeterm inada" (cit. por F. Catroga, 1977, 53 n. 1).
551 E. Littré combina o com tism o com o positivismo inglês (de orientação demoliberal) de S. Mill e H. Spencer. Obras principais: Conservationi, révolution,
positivisme, 1852; revista Philosiphie positiviste - revue (décadas '60 e '70 do
século XIX).
552Cf. supra, 8 .2 .2 ..
414
António Manuel Hespanl
níveis) como a família, a paróquia, o município, a província,
nação, a federação de povos e, finalmente, a Humanidade.
Enquanto não surgissem estas duas últimas formas supr<
mas de organização, o Estado representava o cume da organ
zação social. Ele, como instituição orgânica, não era um mei
garante de direitos e liberdades individuais, mas um portadc
dos interesses do organismo social mais elevados e, por isso, ui
agente de racionalização social, de educação "científica". Col;
borando com a ciência e com uma nova religião racional (a rei
gião da Humanidade), na criação de um consenso social em to:
no dos princípios de uma política científica e positiva.
No domínio do direito, o aplicador das receitas metodolc
gicas do comtismo é Émile Durkheim (1858-1917), que leva
cabo a crítica da pandectística, tanto sob o ponto de vista da su
teoria social implícita (o individualismo contratualista), com
sob o ponto de vista da sua teoria do conhecimento jurídico (
formalismo). Do ponto de vista da teoria social, Durkheim cor
siderava que a ordem social, política e jurídica não repousav
nem no acordo das vontades individuais (como se vinha defer
dendo desde o jusracionalismo), nem na vontade disciplinadc
ra do Estado (como queriam o legalismo e o estadualismo), ma
nas solidariedades sociais objectivas geradas pela especialize
ção e pela divisão das funções sociais. As normas jurídicas, coi
porizadas em instituições, seriam, assim, "coisas objectivas'
indisponíveis e trans-individuais.553
Nesta linha seguiram juristas que tiveram uma grand
influência dogmática, nomeadam ente no domínio do direit
público.
Sobre E. Durkheim, que teve grande influência nos meios universitários d
juristas e historiadores, nom eadam ente em França, v. Arnaud, 1 9 8 1 ,1 1 4 s
Com informações sobre as escolas institucionalistas ou realistas francesa:
decorrentes do seu magistério: Léon Duguit, L'État, le droit objectif et la h
positive, 1901; Gaston Jèze, Les principes généraux du droit administratif, 190'
R. Saleilles, De la personalitéjuridique (histoire et théorie), 1910; François Gérr
Méthodes d'interprétation et sources en droit privé, 1899.
Cultura Jurídica Europeia
415
Um deles foi Léon Duguit (1859-1928), constitucionalista e
administrativista influente, que tentou uma reconstrução da te­
oria do Estado em moldes positivistas. Esta teoria parte de uma
crítica cerrada aos dogmas da teoria liberal do Estado - a ideia
de direito subjectivo como entidade originária e fundadora e a
ideia de soberania como poder político único, exclusivo e resi­
dindo no Estado.
"O homem natural, isolado, nascendo livre e independen­
te dos outros homens e tendo direitos constituídos por esta li­
berdade, por esta independência mesmo, é uma abstracção sem
realidade", escreve ele no seu Manuel de droit constitutionnel.55*
E continua: "N a ordem dos factos, o homem nasce membro de
uma colectividade; sempre viveu em sociedade e não pode vi­
ver senão em sociedade. O ponto de partida de qualquer dou­
trina sobre o fundamento do direito deve ser, sem dúvida, o
homem natural. Mas o homem natural não é o ser isolado e li­
vre dos filósofos do século XVIII. É antes o indivíduo preso nos
laços da solidariedade social. O que se deve portanto afirmar não
é que os homens nascem livres e iguais em direitos, mas antes
que eles nascem membros de uma colectividade e sujeitos, por
isso, a todas as obrigações que são implicadas pela manutenção
e desenvolvimento da vida colectiva". As consequências disto
são notáveis e merecem ser realçadas.
Em primeiro lugar, esta concepção realista dos vínculos
político-sociais leva à ideia de particularismo jurídico. Ou seja,
tanto à recusa do carácter eterno e imutável do direito, pois as
formas da solidariedade social são diferentes de sociedade para
sociedade; como à recusa do dogma da igualdade jurídica ab­
soluta dos homens, introduzindo a ideia de estatutos jurídicopolíticos diferentes correspondentes a lugares diferentes nas
redes de solidariedade social (ibid., pp. 5,1 1 ). Como, por fim, à
recusa do primado da norma geral e abstracta sobre a solução
casuísta e concreta, pois variando até ao infinito as formas con­
554 Ed. cons., Paris, 1923 4, 5.
416
António M anuel Hespanha
cretas de que se reveste a solidariedade social, o papel do juris­
ta é o de determinar que regra se adapta exactamente a uma si­
tuação concreta.
Depois, o realismo político-social leva à recusa do prima­
do dos direitos subjectivos sobre o direito objectivo. Pelo con­
trário, seria o direito objectivo que criaria e instituiria os direi­
tos subjectivos, concebidos agora como os direitos (derivados)
de cada um a realizar aquilo que lhe compete no quadro da di­
visão de tarefas instituído, em cada sociedade, pela solidarieda­
de social. "Um a vez que o direito objectivo se funda na solidari­
edade social, o direito subjectivo deriva dele directa e logicamen­
te. Com efeito, se todo o indivíduo é obrigado pelo direito ob­
jectivo a cooperar na solidariedade social, daí resulta necessari­
amente que ele tem o direito de praticar todos os actos pelos quais
ele coopera na solidariedade social e de impedir quem quer que
seja de lhe pôr obstáculos ao papel social que lhe compete [...] É
porque existe uma regra de direito que obriga cada homem a
desempenhar um certo papel social que cada homem tem direi­
tos, os quais têm então por princípio e medida a missão que ele
deve desempenhar" (ibid., p. 12). Uma aplicação interessante
deste princípio do carácter derivado dos direitos subjectivos é a
construção do direito de propriedade, que é apresentado como
"o poder de certos indivíduos colocados numa posição econó­
mica determinada de desempenhar livremente a missão que lhes
incumbe em face dessa sua situação especial" (ibid-, p. 13). O que
o leva a recusar as concepções liberais da propriedade como di­
reito absoluto e a optar pelo conceito de uma propriedade limi­
tada pela sua função social.
Por fim, o realismo leva à crítica da soberania nacional, con­
cebida como o produto da delegação das vontades individuais
operada pelo sufrágio universal. Tal como o indivíduo isolado,
essa delegação era uma abstracção indemonstrada e indemonstrável. O Estado era um facto em si mesmo, objectivo, natural,
correspondente a uma constante das sociedades humanas, o
domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. Dogmas como o
da origem divina do poder, do pacto social ou da soberania na-
Cultura Jurídica Europeia
417
cional eram "outros tantos sofismas com os quais os governan­
tes queriam enganar os súbditos e com os quais muitas vezes se
enganam a si mesmos" (ibid., p. 25). No entanto, esta divisão
entre governantes e governados também não escapa à lei geral
da divisão de tarefas e da solidariedade social. A função dos
governantes é justamente a de impor a ordem, uma ordem des­
tinada a manter e aperfeiçoar a solidariedade social. Daí que, nos
termos de uma política positiva ou realista, os limites do poder
do Estado não provenham de direitos individuais pré-estatais,
mas das leis objectivas da solidariedade social, que o Estado visa
promover (ibid., p. 31 ss.).
A linha anti-individualista na compreensão do poder e do
direito foi também seguida por Maurice Hauriou (1856-1929), a
quem se deve uma desenvolvida teoria da instituição com gran­
de influência nos meios jurídicos.555
Hauriou definiu a instituição como uma "ideia ou obra ou
empreendimento que encontra realização e consistência jurídi­
ca num meio social". A sociedade estaria constituída por agre­
gados sociais modelados por certas ideias directivas. Ou, dizen­
do de outro modo, na sociedade, uma infinidade de ideias or­
ganizadoras - desde a caridade à salvaguarda de uma comuni­
dade nacional, passando pela realização de negócios - congre­
gam e organizam os indivíduos, pondo-os ao seu serviço. Estas
ideias não apenas modelam a organização das instituições como
se insinuam nos seus membros, levando-os a lutar pela sua con­
secução. Por outro lado, o dinamismo destas ideias faz com que
elas mesmas se desenvolvam, ganhando progressivamente no­
vos contornos, de acordo com uma lógica própria de desenvol­
vimento.
Daí que a ordem jurídica (como conjunto de instituições)
seja bifronte. Por um lado, consiste em normas já positivadas
555 "L a théorie de l'institution et de la fondation (essai de vitalisme social)",
Cahiers de la nouvelle journée, 1925, n. 4; Précis de droit administratif, 1907; Précis
de droit public, 1910; A ux sources du droit: le Pouvoir, l'Ordre et la liberté, 1933;
Teoria dell'istituzione e délia findazione, Milano, Giuffrè, 1967.
418
António Manuel Hespanha
(ínstitutions-choses); mas, por outro lado, em ideias condutoras,
que "puxam" pelo direito estabelecido em direcção a novos ob­
jectivos, dando-lhe vida (institutions-personnes). O institucionalismo cultiva, de facto, um "vitalismo jurídico", dando aos cor­
pos sociais uma "alm a" que transcende as suas manifestações
actuais e os faz aspirar por novos objectivos.556 "Já sabemos escreve Hauriou (Teoria da instituição e da fundação, 1925) - que
são três os elementos de uma qualquer instituição corporativa.
1 ) a ideia da obra a realizar num grupo social; 2) o poder orga­
nizado para a realização desta ideia; 3) as manifestações comu­
nitárias que se produzem no grupo social, em ligação com a ideia
e a sua realização" (p. 14 da ed. italiana, citada).
Com esta contraposição entre um direito socialmente esta­
belecido ("instituições-coisas") e um direito em devir, em pro­
cesso de institucionalização ("instituições-pessoas", "ideias di­
rectivas"), o institucionalismo responde à crítica de que o natu­
ralismo ignorava o elemento dinâmico (de programa, de projec­
to, de dever ser) do direito, considerando apenas o direito já
enraizado na sociedade e redundando, por isso, numa atitude
conservadora do status quo. Ganha, assim, um tom anti-positivista que o aproxima tanto do idealismo hegeliano (desenvol­
vimento objectivo das ideias) como do espiritualismo neo-tomista (um princípio espiritual presidindo aos movimentos das coi­
sas humanas) e que irá seduzir algumas correntes anti-positivis­
tas, nomeadamente o jusnaturalismo católico e o pensamento
356"O elemento mais im prtante de qualquer instituição corporativa consiste
na ideia da obra a realizar num grupo social ou em seu proveito. Qualquer
corpo constituído tam para realizar um a obra ou em presa. U m a sociedade
anónima é a realização de um negócio, ou seja de um em preendim ento de
especulação; um hospital é um estabelecimento constituído para a actua­
ção de um a ideia caritativa; u m Estado é u m corpo constituído p ara a rea­
lização de um certo núm ero de ideias, as mais simples das quais se resu­
m em na seguinte fórm ula: ""activ id ad e de protecção de um a socieddae ci­
vil nacional desenvolvida por um poder público de base territorial, que está
separado da propriedade da terra, de m odo a deixar um a grande m argem
de liberdade aos súbditos" (M. H auriou, Teoria delVistituzione ..., cit., 15).
Cultura Jurídica Europeia
419
corporativista, nomeadamente em Itália, em Espanha e em Por­
tugal. E, por isso, apesar do seu estreito parentesco com o posi­
tivismo naturalista, pode considerar-se já um primeiro movi­
mento de crítica anti-positivista.
A crítica positivista à pandectística teve consequências
muito importantes na configuração que o saber jurídico ganha
nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX.557
Por um lado - no seu momento antí-formalista -, ao aproxi­
mar o saber jurídico em relação às ciências sociais, dá origem a
disciplinas jurídicas novas,558 como a sociologia do direito, a
antropologia jurídica ou a criminologia, todas elas permitindo
uma compreensão do lugar do direito nos processos de normação e de disciplina sociais, e chamando a atenção dos juristas
para o direito vivo, espontâneo ou praticado (lebendiges Recht,
Imu in action). Num plano mais recuado, o positivismo chamou
a atenção para a importância do conhecimento das circunstân­
cias concretas da vida do direito no estabelecimento das solu­
ções jurídicas ou legislativas.559
Esta influência "cientista" e "sociologizante" do positivis­
mo é muito nítida no domínio do direito criminal. Prescindin­
do - ou considerando-as apenas muito marginalmente - de idei­
as da teoria penal tradicional que considera "metafísicas" (como
"responsabilidade", "culpa", "expiação", "retribuição"), o po­
sitivismo procura, por um lado, identificar factores criminogéneos objectivos (as "causas do crime") e, por outro, adequar-Lhes
terapêuticas (não necessariamente penais) correctivas. Tal como
o médico identifica factores patogênicos e os combate com mei­
os terapêuticos ou cirúrgicos. Assim, acolhem-se, na teoria do
crime, as explicações a partir de características antropológicas
557Sobre este ponto, para o país europeu em que o positivismo teve um m aior
im pacto sobre o direito, cf. Grossi, 1999, 2000 (sobre os quais, v. as minhas
recensões alargadas, em Themis, 3(2001), 457 ss.).
558Cf. W ieacker, 1993, 662 ss.
559 Cf. W ieacker, 1993, 658 ss.
420
A ntónio M anuel Hespanha
(anátomo-fisiológicas, psico-biológicas)560ou de factores sociais
e ambientais.561 E, na teoria dos fins das penas, adoptam-se pers­
pectivas funcionalistas, em que a pena visa exclusivamente uma
função de prevenção: prevenção geral, desincentivando, em ge­
ral, a prática do crime pelo temor da pena; reeducativa em rela­
ção ao criminoso. Em contrapartida, as ideias de que o crime é
um acto livre, susceptível de uma censura moral, e de que a pena
poderia encerrar, por isso, uma finalidade de expiação ou de re­
tribuição social do mal eram consideradas como metafísicas.
Por outro lado - no seu momento anti-legalista e anti-estadualista -, o positivismo recusou a identificação entre direito e
lei, chamando a atenção para um direito surgido das próprias
instituições sociais, existente para além da vontade estadual ex­
pressa na lei e num plano que lhe era superior. Em todo o caso,
a insistência posta por algum positivismo na função regulado­
ra do Estado, como expressão política de um organismo social
superior (nação), atenua sensivelmente o alcance deste aspecto.
E, assim, algumas das correntes que se podem filiar no positi­
vismo acabam por conceder à lei um papel determinante na
constituição do direito, nos quadros de um estadualismo auto­
ritário, de que é exemplo o fascismo.
Por fim - no seu momento anti-individualista o positivismo
armou metodologicamente a crítica aos fundamentos ideológicos
individualistas e contratualistas da pandectística, tanto no domí­
nio do direito público, como no domínio do direito privado.
Mas o positivismo contribuiu, também, para algumas no­
vidades no plano da dogmática, quer do direito público, quer
do direito privado.
560Sob a influência das teorias antropológicas de C esare Lom broso, que filia­
va a prática do crim e em características físicas (v.g., bossas cranianas) dos
indivíduos, criando a figura do "crim inoso n ato" e aproxim ando o trata­
mento penal da psiquiatria (Uuomo delinquente, 1871).
561 Sob influência de escolas positivistas italianas e francesas (Ferri, Garofalo,
Lacassagne, Tarde). Sobre o elenco destes factores, com elementos estatísti­
cos comprovantes, Caeiro da Matta, Direito criminal português, Coimbra, 1911.
Cultura Jurídica Europeia
421
No domínio do direito público, o positivism o orienta-se
para a crítica da form a individualista, democrática e liberal
de Estado, baseada no sufrágio e nos direitos naturais dos in­
divíduos, propondo formas de organização política baseadas
no primado dos grupos (desde logo, do grupo Estado, como
emanação dos interesses gerais do corpo social) sobre os in­
divíduos.562 Uma delas é o corporativismo, que parte da ideia
de que as entidades políticas naturais ou primárias (família,
empresa, m unicípio), que estão na base da organização natu­
ral da sociedade, devem estar também na base da organiza­
ção do Estado e que, assim, devem ser os seus representantes
- e não os representantes dos indivíduos - a integrar as assem­
bleias representativas. Por outro lado, a solidariedade e organicidade sociais exigiriam que o despique destrutivo ("sub­
versivo") entre forças económ icas (concorrência capitalista
desenfreada) e sócio-políticas (luta partidária, luta sindical,
luta de classes) desse lugar a formas de organização econó­
m ica e política que promovessem a coesão social (planifica­
ção e concertação económ ica, Estado forte, partido único,
proibição da greve e do lock out).
No domínio do direito privado, o positivismo tende a mo­
derar o primado do princípio da vontade. E justificando, do pon­
to de vista teórico, limitações à autonomia da vontade no direi­
to dos contratos e da propriedade, reintroduz a ideia da existên­
cia de estruturas normativas objectivas (como a família, a em­
presa), que escapavam ao poder da vontade. Estes pontos de
vista adequavam-se bem às tendências políticas anti-liberais, de
matriz socialista ou conservadora, que pretendiam corrigir a
competição individual desenfreada instituída pelo capitalismo
"selvagem". Assim, o direito subjectivo passa a ser definido, não
como um "poder de vontade" (Willensmacht), mas como um "in­
562Sobre o sentido anti-dem ocrático (nom eadam ente, anti-sufragista) do po­
sitivismo com teano ortodoxo, v. C atroga, 1977, 76. O sufrágio - sujeitando
o todo à vontade do m aior núm ero - contradiria a hierarquização natural
dos organism os.
422
António Manuel Hespanha
teresse juridicamente protegido".563 E, sobretudo, passa a ser
realçado como a concessão de direitos subjectivos visa a reali­
zação de uma certa ordem social, pelo que tais direitos estão sem­
pre limitados pela sua função social. Esta questão da "sociali­
zação" do direito privado ganha um grande interesse político
social a partir do advento das ideias socialistas, com a sua críti­
ca à propriedade privada. Além disso, no âmbito do direito pri­
vado, o positivismo teve ainda influência na teoria das fontes do
direito. Neste domínio, criticou o legalismo, revalorizando a
ideia de que há fontes extralegais do direito, sejam elas o costu­
me, sejam os ideais jurídicos vigentes numa certa comunidade e
averiguados pela doutrina jurídica.
O positivismo sociológico teve, em geral, apropriações po­
liticamente contraditórias.
No século XIX, ele valeu como um movimento de ideias de
sentido crítico564das instituições e valores estabelecidos. Na ver­
dade, ele era um "progressismo", cria no devir necessário das
sociedades e, por isso, era contrário a todo o conservadorismo.
Propunha a substituição das ideias teológicas e metafísicas pe­
las ideias positivas e procurava substituir as formas estabeleci­
das de organização social e política por outras de natureza "ci­
entífica". Neste sentido, deve-se-lhe a laicização da vida públi­
ca, a instituição ou expansão do ensino oficial não confessional,
a crítica aos excessos do liberalismo económico, um certo com­
prometimento com os movimentos socialistas no sentido de
melhorar as condições das classes trabalhadoras (em nome da
solidariedade social).
Mas, por outro lado, a sua posição em relação ao demoliberalismo político era muito ambígua. Dissolvendo o indi­
víduo na sociedade, permitia extrapolações de carácter anti­
democrático como, por exemplo, a negação do sufrágio como
563Cf. Guilherme Moreira, Instituições de direito civil português, Coimbra, 1 9 0 7 ,4 ss.
564Embora, em geral, não revolucionário, pois a sua ideia central de evolução
é contraditória co m a de revolução. Q uando m uito, as revoluções eram
entendidas com o mom entos críticos da evolução.
Cultura Jurídica Europeia
423
forma de representação política. Além de que o seu cientis­
mo aceitava m al que as decisões sobre o destino colectivo
pudessem deixar de estar nas mãos dos cientistas sociais ou,
pelo menos, de políticos adestrados no cultivo de uma polí­
tica "positiva" ou "cien tífica". O m ovimento alemão do "so ­
cialismo catedrático", que se desenvolveu sob o autoritaris­
mo político do II Império (1870-1917), é típico deste reform is­
mo autoritário e paternalista, em que o príncipe, assessora­
do por cientistas, introduz reformas sociais que protegem os
mais fracos. Como já se disse, esta era, de resto, a função do
Estado científico: regular o inevitável poder dos mais fortes
(governantes) sobre os mais fracos (governados) em função
do interesse geral. Não adm ira, por isso, que o positivism o
pudesse constituir, caldeado com outras influências, um dos
pontos de apoio das ideologias autoritárias das quatro prim ei­
ras décadas do século XX.
Assim, tanto na privatística como na publicística, o positi­
vismo está na origem, tanto da reacção anti-liberal das primei­
ras décadas do século XX, normalmente designada por adven­
to do Estado social, como dos regimes autoritários anti-democráticos, como o fascismo ou o Estado Novo português.565
No domínio do direito, esta ambivalência também se veri­
ficou, dando lugar a apropriações tanto de sentido liberal, como
a outras de sentido conservador e mesmo reaccionário.
Assim, se o positivismo denunciou o formalismo e abstraccionismo da igualdade, tal como vinha a ser construída pelo di­
reito das Luzes e da pandectística, o certo é que, ao insistir na
desigualdade natural dos homens, abriu uma caixa de Pandora
de onde saíram, por exemplo, justificações jurídicas do sexismo,
do racismo e do expansionismo europeu. Quanto ao sexismo,
565 N a origem do nazism o estão m ovim entos ideológicos mais especificam en­
te alem ães, mas igualm ente m arcados pela crítica ao individualism o contratualista em nom e da ideia de organicism o e de um a ordem material de
valores ("ord in alism o co n creto ", O. Spann; C. Schm itt), d eclarad a pelo
Führer (decisionismo).
424
António M anuel Hespanha
muitos positivistas566justificavam a discriminação jurídica e po­
lítica (nomeadamente, em termos de capacidade eleitoral) da
mulher com uma análise das especificidades psicológicas da
mulher, rica no plano sentimental, mas diminuída na capacida­
de de efectuar escolhas racionais. Quanto ao racismo, apesar da
ideia de uma solidariedade universal, o que é certo é que a ideia
da organicidade e diversidade de cada povo levava necessaria­
mente, pelo menos, à ideia de especialização e, pelo mais, à ideia
de hierarquização. E nesta última, os europeus, portadores do
"facho da civilização e da ciência", não podiam deixar de ocu­
par o primeiro lugar.567 No que respeita ao colonialismo, ligado
estreitamente ao que se disse antes, o sucesso ideológico do po­
sitivismo coincide com o abandono do universalismo das Luzes,
com as propostas de integração plena do ultramar na ordem
política e jurídica da metrópole, com a adopção de políticas de
desenvolvimento jurídico e político separado, e com a atribui­
ção de capitis deminutiones não apenas aos indígenas, mas aos
próprios europeus residentes no ultramar.568
No domínio do direito privado, o positivismo procurou
temperar o individualismo e liberalismo ferozes, protegendo as
partes mais fracas das relações jurídicas (trabalhadores, crian­
ças). Permitiu e deu voz a sujeitos jurídicos colectivos (como os
sindicatos) destinados a reforçar o poder negociai de certos su­
jeitos individuais. Laicizou a constituição da família e introdu­
ziu medidas no sentido da igualdade dos cônjuges. Mas a tudo
isto subjazia uma concepção organicista, que tendia a anular o
indivíduo perante a tutela do grupo ou, mesmo, do Estado, como
garante da harmonia social. Isto tornou-se particularmente ní­
566 N ão todos. Por outro lado, alguns faziam -no por razões tácticas, com o a de
recear o peso co n serv ad o r do voto feminino. Cf., sobre o fem inism o e o
sufragismo no ideário positivista, F. C atroga, 1991, II, 287.
567 A própria ideia evolucionista e biologista fornecia im agens adequadas: a
do "n egro infantil", a do "tu rco am olecido e sensual", a do "ind ian o efe­
m inado" e a da "C h in a doente e adorm ecida".
568É certo que esta desigualdade não é irrem ediável, com batendo-se pela edu­
cação e pela civilização.
Cultura Jurídica Europeia
425
tido com os desenvolvimentos corporativistas destas ideias, no­
meadamente sob os regimes conservadores e autoritários esta­
belecidos no centro e sul da Europa. Os sindicatos são coloca­
dos sob tutela do Estado (sindicalismo de Estàdo) e a família,
como "célula social básica" ("Deus, Pátria, Família", era a divi­
sa do Estado Novo português), é rodeada de cuidados públicos
para garantir, não apenas o seu bem estar económico,569mas tam­
bém a sua sanidade moral.
No que respeita às fontes de direito, o sociologismo valori­
za, por um lado, a pluralidade de instâncias normativas da so­
ciedade e reage contra o monopólio estadual da edição do di­
reito (legalismo). Mas, por outro lado, ao insistir no papel regu­
lador do Estado, na sua missão de garantir a solidariedade na­
cional, acaba por atribuir à lei a categoria de fonte última e de­
cisiva de direito. "A soberania - escreve Manuel Rodrigues (18891946), Ministro da Justiça (1932-1940) de Salazar, em 1934 - per­
tence ao Estado. Quere dizer: não há poder transcendente, o
poder pertence à Nação organizada. Daqui resulta que ao Esta­
do pertence criar a norma da sua existência e dos elementos que
a constituem... O Estado é a fonte de toda a regra normativa... O
cidadão não pode recorrer a um princípio estranho ao seu país,
nem mesmo invocar as regras da humanidade [,..]".570 Isto não
era senão um corolário da afirmação de Mussolini (1883-1945)
de que "a Nação é um organismo dotado com vida própria, com
os seus fins e meios de acção, que a tornam, na sua força e dura­
ção, superior aos seus membros, quer isolados, quer agrupados;
ela é uma unidade moral, política e económica que se realiza
integralmente no Estado fascista" (Carta dei Lavoro).
Desta política de sacralização do Estado e de subordinação
a ele do direito e da justiça faz ainda parte uma regulação mais
estrita da justiça: estatutos judiciários que amarrem completa­
569Neste plano, chega-se a reintroduzir instituições tradicionais para garantir
a indivisibilidade e inalienabilidade do patrim ónio familiar (como, em Por­
tugal, o "casal de fam ília").
570Política, direito e justiça, Coimbra, 1934, 41.
426
António M anuel Hespanha
mente o juiz à lei,571 controle das organizações profissionais dos
advogados, nomeadamente atribuindo-lhes poderes de nature­
za pública (em Portugal, 1926) e sujeitando-as a tutela legal, in­
trodução de mecanismos de disciplina da jurisprudência pelos
tribunais superiores,572 etc.
Finalmente, embora tenha introduzido muitos elementos
válidos para a análise do direito como fenómeno social e para o
traçado de políticas do direito, o naturalismo positivista tendeu
a "coisificar" o homem, transformando-o num mero objecto de
influências causais. Por outras palavras, ignorou a dimensão "in­
terior", a capacidade de escolha e, consequentemente, a ética da
liberdade e da responsabilidade que se liga a ela. Isto foi particu­
larmente nítido no direito penal. O criminoso foi desresponsabilizado pessoalmente, mas, ao mesmo tempo, privado da sua dig­
nidade de ser autónomo. De um sujeito livre que escolheu (porven­
tura mal) foi transformado num doente carecido de tratamento.
Quando isto acontece, o problema da pena deixa de ter qualquer
fundamento ético e, rigorosamente, podem ser objecto dela indi­
víduos que, não tendo cometido qualquer crime, são diagnosti­
cados - pela suas características psico-somáticas ou pelos meios
em que vivem - como criminosos natos ou em potência. A puni­
ção passa a ser um problema de mera polícia científica.
Mas esta coisificação do homem e das relações sociais instau­
rou, em geral, um instrumentalismo jurídico em que o direito - como
simples técnica de engenharia social, ao lado de outras - pode ser
posto ao serviço de uma qualquer política. Exemplos dramáticos
desta instrumentalização produziram-se nos regimes totalitários
europeus deste século. Mas podem detectar-se também, embora sob
formas menos chocantes, nas tecnocracias contemporâneas.
Este balanço mostra já que tipo de reacções (adiante referi­
das) pode ter levantado o naturalismo sociológico.
571 Como o Estatuto judiciário português de 1928 (dec.-lei 15344, dec. 10.4), que
estabelece que o juiz não pode recusar a aplicação da lei com o fundam en­
to de que ela lhe pareça injusta ou im oral (art° 240°).
372Como os Assentos portugueses, reintroduzidos em 1926.
Cultura jurídica Europeia
427
8 .4 .4 .I. Positivismo sociológico
e institucionalismo em Portugal
Em Portugal, as últimas décadas do século XIX e as duas
primeiras do século XX constituem uma época marcada profun­
damente pela influência do positivismo sociológico de Comte e
de Littré, combinada com outras contribuições filosófico-metodológicas de sentido anti-individualista, anti-formalista e antijusracionalista.573
O cientismo positivista surge, inicialmente, na área das ci­
ências físico-naturais, em instituições como as recém criadas Es­
colas Politécnicas (Lisboa, Porto, 1837). Ai deu origem as estudos
que influenciaram o direito nomeadamente o direito penal.574Mas
cedo transitou para o domínio da política e do direito.
No domínio da política, transformou-se na coluna vertebral
da ideologia republicana;575 o seu corifeu universitário foi Teófilo Braga (1843-1924), publicista e doutrinário infatigável em
todos os domínios das ciências literárias e sociais576 e primeiro
573 Resíduos do organicism o da Escola Histórica (Savigny, Burke), influências
d o solidarism o de K rause, evolucionism o de H. Spencer e D arw in. Cf.
M oncada, 1937-1938, 145 ss.; 1938-1939, 25 ss.; F. C atroga, "O s inícios do
positivism o em P o rtu g a l...", cif., 26, n. 1 .
574E m Portugal, esta corrente surge com trabalhos de médicos e psiquiatras,
com o Basílio Freire (Os degenerados, 1886; Os criminosos, 1889); Júlio de M a­
tos (Os alienados nos tribunais, 1902-1907); Miguel Bombarda (A consciência
e 0 livre arbítrio, 1897); e, Ferreira D eusdado (Estudos sobre a criminalidade e a
educação, 1889). Os primeiros juristas penalistas a adoptarem pontos de vista
sociologistas foram Henriques da Silva (Elementos de sociologia criminal e de
direito penal, 1905) e, sobretudo, Afonso Costa (Comentário ao Código Penal
português. I. Introdução. Escolas e princípios da criminologia moderna, 1895).
Sobre esta escola penalista, C orreia, 1 9 6 3 ,1 2 4 ss.; M aldonado, 1960. Sobre
a reacção anti-positivista (nom eadam ente, de Beleza dos Santos), v. C or­
reia, 1955, 412 ss..
575 Cf. C atroga, 1977; C atroga, 1991, max., II, 193 ss.
576 Incursões no domínio do direito: Poesia do direito, 1865; Theses sobre diversos
ramos do direito, Coimbra, 1868; Espírito do direito civil moderno: direito subsi­
diário, propriedade, contractos, 1870.
428
António M anuel Hespanha
presidente da República. Também a Maçonaria e outras socie­
dades secretas que militavam no campo republicano (como a
Carbonária) professavam doutrinas sociais de forte cunho posi­
tivista.577
No domínio do direito, o positivismo domina o ensino uni­
versitário, nomeadam ente no campo da história e do direito
público, desde a década de '70 do século passado. Manuel Emídio Garcia (1838-1904) é o seu primeiro representante, logo a
partir do seu Curso de Ciência da Administração e Direito Adminis­
trativo, 1865.578 Aí adopta uma metodologia voltada para o es­
tudo global e empírico-experimental da sociedade e adopta o
organicismo e evolucionismo como princípios de explicação e
previsão dos fenómenos sociais.579 A todos eles é comum o na­
turalismo jurídico-social,580 a adopção de um ponto de vista evolucionista, quer da sociedade, quer das ciências sociais e jurídi­
cas,581 a recusa do individualismo, da ideia de pacto social como
origem do Estado, do primado dos direito subjectivos sobre os
direitos objectivos e, correspondentemente, a defesa do carác­
ter natural e objectivo das instituições sociais, nomeadamente
577 F. C atroga, 1 9 9 1 ,1 ,135 s.
578 Depois, Apontamentos de algumas prelecções de sciencia política e direito políti­
co, 1893. Sobre ele, v. C atroga, 1982. Outros nom es im portantes de profes­
sores da Facu ld ade de Direito de Coim bra influenciados pelo positivismo
são José Frederico Laranjo, M am oco e Sousa e Afonso Costa.
579 Outros nom es de positivistas m arcantes, num a im portante galeria de pro­
fessores da Faculdade de Direito de Coim bra (m as com um a intervenção
académ ica vastíssim a, desde a história do direito, à econom ia e finanças e
ao direito eclesiástico) são: José Frederico Laranjo (Princípios e instituições
de direito administrativo, 1888; Princípios de direito público e direito constitucio­
nal português, 1898); Abel de Andrade (Administração e direito administrati­
vo, 1893); G uim arães Pedrosa (Curso de ciênría da administração e direito ad­
ministrativo, 1904); M am oco e Sousa (Direito político. Poderes do Estado, 1910).
5)111 "A separação entre fenómenos físicos e m orais é m eram ente arbitrária; não
existe antinom ia entre eles" (Teófilo Braga, Systema de sociologia, 1 9 0 8 ,3 3 ).
581 Cf. a classificação feita por M am oco e Sousa, das teorias da soberania em
"teológicas, metafísicas e positivas", de acordo com a conhecida lei comteana dos três estados" (Direito político. Poderes do Estado, Coim bra 1 9 1 0 ,7 ss.).
C ultura Jurídica Europeia
429
do Estado que, assim, apareceria como a verdadeira fonte, tan­
to do direito objectivo, como dos direitos subjectivos.582
Esta influência positivista está bem expressa na reforma dos
estudos jurídicos de 1901 (24.12), em cujo relatório se pode ler:
"Pertencendo os fenómenos jurídicos à grande categoria dos fe­
nómenos sociais, não pode fazer-se o seu estudo sem o conheci­
mento dos princípios gerais da sociologia que, fundada por
Augusto Comte como uma especulação de carácter meramente
histórico, tende a constituir-se organicamente". E neste mesmo
espírito que a nova Faculdade de Direito de Lisboa, fundada em
1911, se irá chamar (até 1918) "Faculdade de Estudos Sociais e
de Direito".
"O individualismo desenfreado que serviu de base às co­
dificações modernas está posto de parte no ensino do direito
positivo, onde se procura subordinar o indivíduo à sociedade e
absorver o direito privado no direito social", escrevem Marnoco e Sousa e Alberto dos Reis, em 1907.583
Jaime Gouveia - recolhendo a inspiração de L. Duguit (La
transformation âu ãroit privé, la propnété fonction sociale, 1912) defende o carácter socialmente funcional da propriedade priva­
da e as suas consequentes limitações (Construção jurídica da pro­
priedade, 1919); e, nas suas lições de 1939, empreende uma críti­
ca sistemática dos fundamentos individualistas do direito pri­
vado, subordinando o princípio da liberdade ao da igualdade.584
No pano das fontes de direito, reintroduz-se alguma distanciação em relação ao legalismo. Na verdade, a discussão so­
bre o elenco das fontes de direito era estimulada pelo facto de o
582O Estado - escreve G uim arães Pedrosa - é um "facto natural e necessário, e
não o m ero acto livre de vontades individuais, visto que a convivência hu­
m ana, fenómeno que determ ina necessariamente o Estado, é igualmente um
fenómeno natural e necessário, que deriva de um impulso irresistível da
natureza hum ana - a sociabilidade" (Curso de ciência da administração e di­
reito administrativo, 1908, 2 a ed., 41).
583Em A Faculdade de direito e o seu ensino, 1908,105.
584Jaime Gouveia, Direito civil, 1939, 543 ss.
430
António Manuel Hespanha
Código civil de 1867 (no seu art° 16o)585 dispor que as questões
sobre direito e obrigações seriam resolvidas "pelo texto da lei,
pelo seu espírito, pelos casos análogos previstos noutras leis" ou,
na sua falta, "pelos princípios de direito natural, conforme as circuns­
tâncias do caso". Todos estavam de acordo que esta referência nãc
podia ser entendida no sentido de aceitar o jusnaturalismo clás­
sico ou o jusracionalismo, completamente destronados pelas
ideias positivistas. Mas, enquanto que, sob a influência combi­
nada do legalismo e da pandectística, a opinião dominante in­
terpretava esta referência ao direito natural como equivalendo
a uma remissão para os "princípios gerais de direito",586 outros58:
viam nesta expressão um reconhecimento da existência de fon­
tes não legislativas de direito, embora vinculadas às manifesta­
ções sociais espontâneas de criação ou de reconhecimento dc
direito.588
A influência das escolas realistas e institucionalistas fran­
cesas e italianas, nomeadamente de L. Duguit, G. Jèze, M. Hauriou e Santi Romano foi mais tardia (a partir da segunda déca-
585Sobre a interpretação (torm entosa) deste artigo, v. João M. Antunes Varels
e Fernando A. Pires de Lim a, Noções fundamentais de direito civil, Coimbra,
1973 (6a éd.), 1 ,176 ss.; e, num a perspectiva histórica, Scholz, 1982, 771.
586Cf. Guilherme M oreira, Instituições de direito civil português, Coimbra, 1907,
30 ss.; Caeiro da M atta, Direito civil português. I. Parte geral, Coimbra, 1909,
160 ss.
587Com o Jaime Gouveia, Direito civil, 1939, 66: "o nosso direito adm ite o cos­
tume, o costum e consagrado pela jurisprudência que lhe deu origem por
virtude da prática repetida de certos actos, acom panhados da "opinio ne­
cessita tis'"'.
588V., neste sentido, Jaime Gouveia, Direito civil, Lisboa, 1939. Jaime Gouveia
inspirava-se na cham ada "escola científica", lançada por F. Gény (La scien­
ce et la technique en droit positif, 1896; Méthode d'interprétation et sources en droit
privé français, 1899), que revalorizou o costum e, a jurisprudência e a dou­
trina com o fontes de direito, com um valor autónom o e, eventualmente,
superior ao da lei. Os seus pressupostos são, em geral, positivistas, pois estas
fontes são legitimadas a partir da constatação do seu enraizam ento social.
Sobre esta corrente, v. Gilissen, 1988, 518 s.
Cultura Jurídica Europeia
431
da do século XX),589mas muito duradoura, tendo-se mantido até
aos anos cinquenta,590 sobretudo entre os cultores do direito
público, âmbito em que constituem a cobertura dogmática do
corporativismo do Estado Novo.
A influência laicizante do positivismo foi responsável pela
laicização do Estado e do direito após a implantação da Repú­
blica (1910), nomeadamente das leis de separação entre a Igreja
e o Estado (1910) e das leis da família.591 A influência anti-individualista explica a "legislação social" da República e do Esta­
do Novo (nomeadamente, em domínios como o direito do in­
quilinato, o direito do trabalho, o direito de propriedade, o di­
reito económico).592
5)19L. Duguit esteve em Coimbra, em 1910 e em 1923 (testem unho sobre a sua
influência em Jaime G ouveia, Direito civil, Lisboa, 1939, 23; mas o persona­
lismo de M. H auriou estava mais de acordo com o fundo neo-tom ista da
ideologia política do Estado Novo.
590Traços explícitos de influência em muitos publicistas: Lobo d'A vila, Lições
de direito político, Coimbra, 1911-1912 (influência de Durkheim e de Duguit);
Rocha Saraiva, Lições de direito administrativo, 1914-1915 (um eclético, que
procura com binar o m étodo indutivo [histórico-sociológico] com o método
dedutivo [racional-dogm ático, jurídico] nos quadros de um a orientação as­
sum ida com o "p o sitiv a" [anti-especulativa, m as atenta às conexões das
norm as jurídicas entre si]); Fézas Vital, Acto jurídico, 1914; M agalhães Collaço, Concessão de serviços públicos, 1914 (com binação de realismo com dog­
m atism o). H istoriadores com o Paulo M erêa, L. Cabral de M oncada e M ar­
cello Caetano, apesar de pertencerem basicamente a outras orientações, não
escaparam tam bém a algum a influência positivista; cf. A. M. Hespanha,
"L 'h istoire juridique et les aspects politico-juridiques du droit (Portugal,
1 900-1950)", Quaderni ftorentini per la storia dei pensiero giuridico moderno,
10(1981), 425-428.
591 Em Portugal, leis do divórcio (3.11.1910) e da família (25.12.1910); abolição
do dever de obediência ao m arido (cf. art 01185° do Código civil de 1867).
592V., para uma panorâm ica, H espanha, 1981, M endonça, 1981, Gilissen, 5405 42 ("nota de tradu tor").
432
António M anuel H espanha
8 .4 .5 . A reacção anti-naturalista. V alores e realidade
Até aos finais da I Grande Guerra, a vaga sociológica exer­
ceu, sobretudo na Europa do sul, um domínio absoluto sobre o
mundo intelectual. "A lei dos três estados - como já se escreveu593
- era aceite com muito mais fé do que o Mistério da Santíssima
Trindade é aceite pelos católicos ". Daí que, desde os meados da
década de '10 se tenham notado sinais de reacção, nomeadamen­
te no campo da filosofia do direito.
Um dos seus pontos de partida era a distinção entre ciênci­
as da natureza (Naturwissenschaften ) e ciências da cultura (Kultunvissensclwften), reclamando para estas um objecto (os valo­
res, os sentidos) e um método próprios. Ou seja, no domínio da
actividade humana, como o direito, as condutas não seriam descritíveis nem explicáveis apenas "do exterior". Seria, pelo con­
trário, indispensável recorrer aos dados interiores que dão sen­
tido aos comportamentos. "O s homens em sociedade - escreve
o jus-filósofo português, Luís Cabral de Moncada, sintetizando
estes pontos de vista594- obedecem a normas [...] Estas leis não
são, porém, o mesmo que as chamadas "leis naturais" ou cien­
tíficas, a que todos os seres obedecem, inclusive o homem, ce­
gamente, passivamente, sob uma impulsão exterior, como a da
pedra que cai ou a do líquido que toma a forma do recipiente.
Sabido é que o hom em é também espírito; tem uma vontade
consciente; é neste sentido um ser autónomo. Por isso, as leis a
que ele obedece na sua actividade consciente, enquanto homem,
isto é, enquanto ser espiritual, são antes "leis finais", ou seja,
regras que ele a si mesmo se propõe em vista de fins que a sua
inteligência concebe, querendo-os e autodeterminando-se por
aquelas [...] As normas [jurídicas] pertencem, portanto, ao rei­
no do espírito, da consciência; ou, socialmente, ao reino da cul­
tura, contraposto ao reino da natureza".
593Francisco Reis Santos, "O movim ento republicano e a consciência nacional",
História do regime republicano em Portugal, Lisboa, 1 9 3 0 -1 9 3 2 ,1, 80.
594 Lições de direito civil (parte geral), Coimbra, 1 9 3 2 ,1,11.
Cultura Jurídica Europeia
433
Daí que, a partir das primeiras décadas do século XX, uma
das preocupações dos metodólogos e filósofos do direito595 te­
nha sido o de reencontrar as bases da autonomia gnoseológica
e metodológica da sua disciplina, preservando aquilo que o di­
reito teria de específico frente às ciências que apenas descreviam
a realidade social - o facto de ser uma disciplina cultural, de li­
dar com n orm as, de impor valores à realidade ou de referir a rea­
lidade a valores. Como não se pretendia voltar a cair num dis­
curso filosófico e metafísico acerca dos valores jurídicos, a linha
de rumo tinha que ser a de procurar definir as condições de va­
lidade que eram específicas do conhecim ento jurídico e que
permitiriam que este pudesse utilizar métodos intelectuais di­
ferentes dos métodos das ciências sociais, sem deixar, por isso,
de ser cientificamente válido.
Uma vez que se continuava a considerar que o fundamen­
to de qualquer conhecimento científico era a definição das con­
dições de validade das suas proposições, e uma vez que o siste­
ma das ciências estabelecido (também das ciências sociais) era
aquele que Kant fundamentara na sua C rítica da R azão Pura, pa­
receu que a chave para a construção de uma ciência jurídica au­
tónoma exigia uma averiguação das especificidades do conhe­
cimento jurídico em relação ao conhecimento das ciências soci­
ais e das condições de validade deste novo tipo de conhecimen­
to. Ou seja, exigia retomar a crítica de Kant, mas agora aplicada
a um tipo diferente de saber.
Foi esta a tarefa a que se propuseram as escolas neo-kantianas alemãs de Marburg (Cohen, Nartorp) e de Baden (ou sudocidental, Rickert, G. Radbruch), ao empreenderem o estudo das
consequências metodológicas da distinção entre as ciências do
esp írito (G eistesw issen schaften ; ou da cultura, K ultu rw issen schaf­
ten; ou ideográficas) - a que pertenceria o direito - e as ciências
da n atu reza (N atu n vissen schaften ; ou nomotéticas) - a que perten­
ceriam as ciências naturais e, também, as ciências sociais, en­
595 V. infra, 8.4.5.
434
António M anuel Hespanh
quanto lidam com os fenómenos humanos numa perspectiv
puramente externa (comportamentos). A distinção entre uma
e outras ciências decorria da natureza do seu objecto. Enquanb
que as ciências da natureza lidam com um mundo de objectoí
alheio ao homem, cognoscível na sua exterioridade e redutíve
a leis gerais, as ciências do espírito lidam com o mundo da cul
tura, com as significações que os homens atribuem às coisas, con
o modo como eles se apropriam espiritualm ente delas. Est
mundo não só não é externamente cognoscível, como não pod
ser encerrado em leis gerais, pois cada acto cultural tem sigrtifi
cados únicos, que só se desvendam a partir de uma actividad
espiritual orientada para os valores que ele encerra (e não par.
o seu invólucro comportamental externo).596
Qualquer tentativa de fundar a procura dos valores jurídi
cos na realidade do direito constituiria um salto metodológici
impossível entre o mundo do dever ser e o mundo do ser.
As consequências dogmáticas destes pontos de vista sobr
a autonomia do jurídico e da actividade intelectual que dele s
ocupasse foram várias.
Por um lado, abalaram o anti-metafisismo dominante, re
introduzindo ideias como a de direito natural, em versões reli
giosas (como o jusnaturalismo católico, de fundo neo-tomista)
ou em versões laicizadas.
Por outro lado, no plano mais estritamente metodológicc
abalaram o cientismo dominante, insinuando a ideia de qui
podia haver modelos intelectuais diferentes dos das ciências fí
sico-naturais e mais adequados para tratar o direito. Por exem
pio, modelos que utilizassem não o método dedutivo (que esta
va na base da ideia de subsunção597), mas métodos de aborda
gem casuística (como o que tinha sido utilizado pela tópica598)
modelos que lidassem não com a noção mecanicista de causali
dade, em que um fenómeno se explica pelos antecedentes (v.g.
596 Sobre o neokantismo e a "filosofia dos valores", v. W ieacker, 1993, 679 ss.
597 V., supra, 8.3.3.I.
398 V., supra, 5.6.2.3.
Cultura Jurídica Europeia
435
explicai um contrato ou um comportamento pelo conteúdo das
vontades dos agentes), mas, por exemplo, com a de finalidade
(v.g., explicar um contrato ou comportamento pelas suas finali­
dades sociais);599 modelos que se baseassem numa lógica espe­
cífica (lógica jurídica ou deôntica [i.e., dos valores]); modelos que
não reduzissem a interpretação (de uma norma, de um acto ju ­
rídico) a uma investigação do substracto psicológico desse acto,
mas que descubram o seu sentido "hum ano", ou seja, a constela­
ção de valores que lemos nesse acto ou que lhe imputamos, in­
dependentemente da intenção subjectiva dos agentes, etc.600
Por outro lado, levaram a tentativas de "purificação" do
saber jurídico, distinguindo cuidadosamente os aspectos jurídi­
cos das questões, dos seus aspectos políticos, por um lado, e socio-psicológicos, por outro. Os juristas deveriam produzir um
discurso que se fundamentasse a si próprio e que evitasse con­
taminar o discurso jurídico com considerações de ordem político-ideológica ou empírico-sociológica. Foi esta a linha condutora
da Teoria pura do direito (reine Rechtslehre), formulada pelo juris­
ta austríaco Hans Kelsen.601
8.4.6. O apogeu do formalismo. A T eo ria p u r a d o direito
Como se viu (cf. infra, 8.4.4.), o positivismo sociológico, que
dominou o pensamento jurídico europeu a partir dos anos '70
do século XIX, fez da crítica ao formalismo da pandectística o
599É esta última ideia que está na base da interpretação teleológica ou finalista,
que procura interpretar os actos jurídicos (tam bém os actos legislativos) de
acordo com as suas finalidades sociais.
600Lim itam o-nos a esta brevíssima alusão a correntes diversas da m etodolo­
gia do direito (desde a "teoria da argu m en tação" (Th. Viehweg, Ch. Perelm an) à herm enêutica (H. G. G adam er, E. Betti), passando pelos desenvol­
vim entos da lógica jurídica (G. Kalinowski, U. Klug, K. Engisch): cf. Kauf­
m ann, 1 2 2 ,1 2 4 ,1 0 5 , respectivam ente.
Obras principais: Allgemeine Staatslehre (1925), Reine Rechtslehre (1927); re­
ferência bibliográfica básica: La torre, 1978,159-164; Wieacker, 1993, 682-683;
Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 5 0 ss..
436
A ntónio M anuel Hespanha
seu principal cavalo de batalha e orientou o saber jurídico para
um discurso de tipo sociológico, em que o direito era dissolvi­
do nos "factos sociais" e o próprio discurso jurídico corria o ris­
co de se dissolver no discurso sociológico. Este ideal de "purifi­
cação" do método jurídico foi levado às útlimas consequências
pelo jurista austríaco Hans Kelsen, na chamada Teoria pura do
direito (reine R echtslehre).
Kelsen considerou o direito como um especial sistema de
normas, cujo fundamento não estava noutros sistemas norma­
tivos, como a religião ou a moral; mas também não estava na
ordem dos factos (por exemplo, numa política, na utilidade). Ou
seja, uma norma jurídica não teria vigência por ser moral ou útil,
mas porque e apenas porque é uma norma jurídica, i.e., confor­
me ao direito. Ser conforme ao direito é, afinal, ser obrigatória
em virtude do comando de uma norma superior. Daí que o di­
reito constitua uma pirâmide normativa (Stufentheorie), no topo
da qual se encontra a Constituição. Mas como a própria Consti­
tuição carece de um fundamento jurídico, a construção teórica
de Kelsen obriga a pressupor uma "norm a fundam ental"
('Grundnorm), que valida a Constituição, e cujo conteúdo pode­
ria ser assim formulado - "Toda a norma jurídica legítima (i.e.,
estabelecida de acordo com o direito) deve ser observada". Uma
norma destas é auto-referencial, ou seja, aplica-se a si mesma;
e, com isto, legitima-se a si própria e a todas as outras.
A teoria pura do direito teve a virtude de, num período de
intenso debate político-ideológico (os anos '30 a '50 do século
XX), ter sublinhado a autonomia do saber jurídico e a sua relati­
va indisponibilidade em relação aos projectos de poder. Nessa
medida, culminou as preocupações da pandectística em estabe­
lecer que nem tudo quanto é querido pelo poder, útil ao povo
ou a uma classe, ou funcional em relação a um objectivo social,
é automaticamente aceite como justo (i . e conforme ao direito).
A jurisdicidade parece decorrer de valores internos ao discurso
do direito, valores que a vontade política ou a utilidade social
não podem substituir.
Neste sentido, embora se possa acusar a teoria pura do di-
Cultura Jurídica Europeia
437
reito de aceitar como direito tudo o que provém da vontade do
Estado, o certo é que o seu sentido mais profundo é o de consti­
tuir um manifesto contra os totalitarismos políticos do seu tem­
po, que, num sentido ou noutro, procuravam funcionalizar o
direito em relação às conveniências do poder, legitimando-o a
partir de considerações políticas, como o domínio de classe (es­
talinismo) ou as necessidades vitais de uma raça (nacional-socialismo). Há quem pense que este manifesto é ainda útil con­
tra outro tipo de funcionalizações do direito, nomeadamente, a
tendência para justificar como justas as medidas - formal ou in­
formalmente correctas - de um poder legitimado pelo voto, ou
as medidas dirigidas à consecução de finalidades de desenvol­
vimento social ou económico.602
8 .4 .6 .1 . A reacção anti-sociologista em Portugal
Em Portugal, manifesta-se uma reacção anti-sociologista a
partir da segunda década do séc. XX, de que é pioneiro Manuel
Paulo Merêa (1889-1976), professor de História do Direito em
Coimbra, numa conferência aí proferida em 1910, publicada
depois sob o significativo título "Idealismo e direito" .603 Nesta
curta intervenção, que desempenhou um papel decisivo no meio
jurídico português, descrevia-se o positivismo como uma cor­
rente redutora, que impunha como único meio de acesso à rea­
lidade a razão científica (monismo), desconhecendo que o espí­
rito humano dispõe de uma multiplicidade de formas (desde a
acção até à intuição e a reflexão espiritual) ,de a apreender. E
denunciava-se a desumanização a que tinha conduzido o dog­
matismo cientista das correntes sociológicas. "Sob o influxo ti­
rânico das ciências naturais - escreve Merêa (97) - "a vida trans­
portara o seu centro de gravidade para o objectivo" [citações de
Schiller], e entretanto tudo o que se passa na alma do indivíduo
602Encarando-se qualquer controle jurídico das medidas dirigidas a esse de­
senvolvim ento com o manifestações de formalismo anti-progressista.
603Coimbra, 1913.
438
António Manuel Hespanha
fora considerado como acessório, a sua felicidade e a sua situa­
ção tornaram-se cada vez mais indiferentes, o "sujeito" tom a­
ra-se cada vez mais um elemento desdenhável, uma "gota de
água no oceano". O positivismo, numa palavra, escravizara o
homem às coisas; o moderno idealismo "rehabilita o homem",
ressuscitando, sob uma nova forma, o ideal antropocêntrico" -604
No campo do direito, esta nova atenção aos valores levou
a uma revalorização do "jurídico", ou seja, dos elementos pro­
priamente normativos do direito, no sentido - já antes (supra,
8.4.6.) referido - de uma "purificação" do conceito de direito,
excluindo dele os momentos não normativos, não lógico-racionais ou, mesmo mais radicalmente, não legais (não positivos,
mas agora no sentido de estranhos ao direito positivo).
Este movimento conduz ou a uma revalorização do conceitualismo pandectista ou a adopção de uma orientação positivista-legalista.
Em Portugal, a jurisprudência dos conceitos (ou "método
jurídico") foi inicialmente restabelecida, como já se disse (cf. su­
pra, 8.3.2.1), no domínio do direito privado, seu campo originá­
rio de cultura, a partir do magistério de Guilherme Moreira
(1861-1922). No direito público, adquire direito de cidade um
pouco mais tarde (cf. supra, ibid); mas, a partir dos anos '30, cons­
titui o método inspirador das m onografias mais ambiciosas,
604 Do livro fazem ainda parte duas outras intervenções, um a de crítica à teo­
ria dos direitos subjectivos de Duguit (em nome, ainda, de um hum anis­
mo que vê na luta individual pelos direitos a raiz do direito subjectivo) e
outro, de crítica à escola penalista positiva. V., ainda, um a apreciação a
H auriou, "O "pluralism o" no direito público. (A propósito de um livro de
H au riou)", em Dionysios, sér. 1(5), 1912, 277-282. Esta última revista consti­
tui o órgão de um grupo (integrando outros professores de direito com o
M am oco e Sousa, Cabral de M oncada, Caeiro da M ata, M agalhães Collaço) com prom etido na luta anti-positivista e na afirm ação vigorosa da "exis­
tência irredutível da nossa individualidade, tão deprim ida e apagada pelo
cientismo”, v. Simeão Pinto de M esquita, "Positivism o e idealism o", Dio­
nysios, 2(1912), 68. Outra revista com o m esm o sentido é a Águia, de Leo­
nardo Coimbra. Sobre este m ovim ento, v. Ribeiro, 1951; Teixeira, 1 9 8 3 ,1 1 1
ss. Sobre todo este movimento, v., por último, Torgal, 1996.
Cultura Jurídica Europeia
439
nomeadamente das teses dos concursos universitários (Maga­
lhães Collaço, Manuel Rodrigues, Marcelo Caetano, Cabral de
Moncada, Afonso Queiró).
Uma outra linha de reacção anti-sociologista foi a do posi­
tivismo legalista.
Pode dizer-se que um acentuado respeito e apagamento
perante a lei caracterizou continuamente a doutrina jurídica
portuguesa durante os séculos XIX e XX. Vários factores o ex­
plicam. Por um lado, os velhos tópicos legalistas da reforma
pombalina do ensino jurídico de 1772 (cf. supra, 7.5.), combina­
dos, já no século XIX, com os dogmas do Estado democrático,
que identificavam a lei com a vontade popular. Por outro lado,
os receios de agravamento do arbítrio e subjectivismo judiciári­
os. Por fim, o ideal de substituição de uma regulação políticoideológica (correspondente ao período de instabilidade política
do primeiro constitucionalismo, 1834-1851) pela regulação "neu­
tral" do Estado (correspondente ao clima de "estabilização"
política promovido pelos grupos dirigentes depois de 1850; "re­
generação", de 1851; "rotativismo político").
A partir de 1925, aparecem novos elementos favoráveis ao
positivismo legalista.
O mais importante foi a leitura estatalista a que conduzia
uma certa versão do positivismo sociológico, ao insistir na ideia
de que o Estado constituía a forma política do organismo nacio­
nal, cabendo-lhe a racionalização da organização social global,
na perspectiva das formas mais elevadas da solidariedade (cf.
supra, 8.4.4.).
O positivismo sociológico era, naturalmente, passível de
outras leituras, que desvalorizavam o direito do Estado peran­
te os "mecanismos jurídicos espontâneos", os "equilíbrios prá­
ticos", o "direito da vida".605 Lido neste sentido, o sociologismo
teria suportado uma política do direito anti-legalista, descentralizadora, que reconhecesse o carácter criativo da jurisprudência
605V. Manuel Paulo M erêa, "O "pluralism o" no direito público", Dyonisios, sér.
1(5), 1912,277-28 2 .
440
António M anuel Hespanha
e da doutrina. E, na verdade, foi esta a orientação que, do ponto
de vista teórico, legitimou o discurso jurídico anti-democrático
e anti-parlamentar do "Integralismo Lusitano", que protagoni­
zava a luta da "Alm a Nacional" contra a "ditadura centraliza­
dora, estrangeirada e jacobina" da República.606 Depois da con­
quista do poder, na sequência do golpe de Estado de 28 de Maio
de 1926 ("Revolução N acional", origem do "Estado N ovo"),607
o pensamento jurídico conservador mudou, no entanto, de sen­
tido, aderindo cada vez mais às teses (opostas a esta leitura "institucionalista") da identificação entre o "direito da Nação" e o
"direito do Estado", pois o Estado, sobretudo agora, não seria
senão a própria Nação organizada.608 Aquilo a que antes se cha­
mava "instituições primárias" era agora engolido pelo Estado;
o direito "plural" estatiza-se e a função do Estado - que o pen­
samento conservador tinha identificado, na esteira do pensa­
mento pré-revolucionário de Antigo Regime, como a "justiça",
no sentido de "realização da harmonia entre corpos políticos
autónomos" - transforma-se, progressivamente, na manutenção
da ordem.609 No domínio da política do direito, esta política "or­
deira" manifesta-se, nomeadamente, em reformas legislativas
visando a certeza do direito e a "dignificação" da justiça.610
606Tais são os pontos de vista do "Integralism o lusitano", sobre o qual v., por
todos, Cruz, 1982; Pinto, 1989.
607 V., sobre a história político-ideológica do Estado N ovo, Rosas, 1994.
608 V., sobre o tema, C ruz, 1988.
609 Cf., Caetano, 1941, 6 ss.: a justiça com o meio de coordenar as acções hum a­
nas em vista de um a finalidade últim a, a ordem .
610 V.g., a dita reform a do C ódigo civil de 1867, em 1930, cf. sobre o seu real
alcance, Manuel de A ndrade, "Sobre a recente evolução do direito privado
p ortu gu ês", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 22(1946) 286 ss.; a reintrodução dos "a s ­
sentos" do S.T.J., com o m eio de disciplinar a jurisprudência, em 1926, bem
com o as m edidas tendentes a a u m e n ta ra rapidez e eficácia da justiça ("R e­
forma judiciária", de 1926; Código de processo civil, de 1939). Cf., sobre a po­
lítica da justiça do Estado N ovo, M anuel Rodrigues, A justiça no Estado Novo,
Lisboa, 1933.
Cultura Jurídica Europeia
441
Este novo legalismo influenciou também as concepções
sobre a função do jurista (e do professor de direito). O modelo
do jurista deveria ser aquele implicitamente proposto por Fezas
Vital (1888-1953) - professor de direito público em Coimbra, com
muita notoriedade nos anos '306u- aquando do elogio de um co­
lega "[...] para ele, como jurista, fora das normas queridas e san­
cionadas pelos governantes, não há direito [...]. Toda a críti­
ca do direito vigente será, portanto, não crítica de jurista, mas
de moralista, de sociólogo, de político, de filósofo [...]. Ao juris­
ta, como tal, incumbe portanto apenas interpretar e reduzir a
sistema essas normas [legais] procurando a sua explicação ló­
gica em construções jurídicas abstractas, é certo, mas só legíti­
mas se assentes em realidades e em factos".612 Na prática, isto
implicava um controle político bastante estreito sobre o ensino
universitário do direito. Em 1940, Jaime Gouveia, professor da
Faculdade de Direito de Lisboa, foi afastado em virtude de ter
feito críticas nas aulas à Concordata com a Santa Sé; o mesmo
aconteceu, por razões semelhantes, a Barbosa de Magalhães,
professor da mesma Faculdade, alguns anos depois.
Mas o legalismo reflectiu-se ainda, tanto nos problemas
clássicos da interpretação da lei e de integração das lacunas,
como em questões mais particulares da dogmática do direito
privado. No domínio da interpretação, provocou uma certa ten­
dência para a defesa da interpretação subjectiva.613 No domínio
da integração, por sua vez, originou uma desconfiança extrema
em relação a qualquer teoria que outorgasse ao jurista um pou­
co de liberdade em face da lei, desconfiança que explica o ultrapositivismo de Marcello Caetano, quando apostrofava a "juris-
611 Sobre ele, Cruz, 1 9 7 5 ,1, 613 ss. e bibl. aí citada (v. 639, n.1400).
612"Elogio do Prof. João Tello de M agalhães C ollaço", em Boi. Fac.
Dir. C oim ­
bra, 13(1932-1933), 335.
613Cf. M anueí de A ndrade, "Sobre a recente e v o l u ç ã o
d o d i r e i t o p r i v a d o p or­
tuguês ", B oi..F ac. D ir. C oim bra, 22(1946), 284 ss.; Manuel Rodrigues, "D is­
curso proferido na sessão com em orativa do centenário do S.T.J.", P olítica,
d ireito e ju s tiç a , Lisboa, 1934, 77 ss.
442
António Manuel Hespanha
prudência dos interesses, mesmo na versão moderada então
adoptada pela doutrina nacional (submissão do intérprete às
valorações legais dos interesses; cf. supra, 8.4.3.),614 de "falsa e
socialmente perigosa". Mas esta desconfiança perante a outor­
ga ao juiz de autonomia de apreciação do caso concreto, preju­
dicou também a aceitação pela doutrina dominante de novas
figuras da dogmática do direito privado que, justamente, reme­
tiam para o juiz a apreciação da justeza da solução concreta ou
uma tarefa de concretização "activa" dos princípios gerais. Era
o que se passava com a doutrina do "abuso de direito",615 com a
teoria da imprevisão616ou com a admissão da relevância jurídi­
ca de cláusulas gerais (como, v.g., a boa fé).617
8.5. A s e s co la s críticas
A s aqui denominadas escolas críticas têm como assunção
fundamental a de que as normas jurídicas não constituem pro­
posições universais, necessárias ou, sequer, politicamente neu­
tras. Pelo que, antes de tudo, importa compreender o funciona­
mento do direito (e do saber jurídico) em sociedade, para des­
vendar os seus compromissos sociais e políticos, bem como a
violência e discriminação a ele inerentes.618
6,4 Marcello Caetano, O problema do método no direito administrativo português,
Lisboa, 1946, 34. Tam bém no seu curso de direito penal de 1938-1939, o
mesm o autor afirma que "o direito positivo é justo até prova em contrário,
porque a autoridade donde dim ana [o Estado] é um princípio racional de
ordenação social".
615 Que admitia que direitos concedidos em geral pudessem ser objecto de um
uso concreto ilegítimo, a avaliar pelo juiz.
6,6 Que adm ite a rescisão legítima de u m negócio jurídico no caso de se altera­
rem drasticam ente - de acordo com a avaliação concreta a fazer pelo juiz as condições que serviram de base ao acordo.
617Que obriga os sujeitos jurídicos a com portam entos correspondentes às ex­
pectativas gerais, ^também avaliáveis em concreto pelo juiz.
6,8 Note-se que algum as das escolas anteriorm ente referidas - nom eadam en­
te, as escolas sociológicas - incluíam um a dim ensão crítica do direito vi­
gente que as aproxim a daquelas que serão descritas neste capítulo. Só que,
nestas últimas, a intenção crítica é m ais force.
Cultura Jurídica Europeia
443
8.5.1.0 sociologismo marxista
clássico no domínio do direito
K. Marx (1818-1883) foi, desde o século passado até hoje, o
inspirador mais contínuo da crítica ao pensamento jurídico do­
minante.
Marx não foi um jurista, nem sequer se dedicou especial­
mente à crítica do direito. Foi, isso sim, um cientista social ou
pensador político que, nos quadros de uma interpretação glo­
bal da sociedade, fortemente crítica do statiis quo, se pronunciou
também sobre o direito.
Como se sabe, Marx empreendeu aquilo a que chamou um
estudo científico das sociedades humanas do qual conclui que
o processo histórico era explicável pela dinâmica gerada pela
oposição de grupos sociais ("classes") cuja existência conflitual
era explicada pelo facto de o controle da produção dos bens
materiais estar desigualmente repartido entre os homens. Do
facto de uns possuírem esse controle e outros estarem dele pri­
vados decorreria uma dinâmica social ("luta de classes") na qual
a classe dominante tentava manter e perpetuar a sua posição
hegem ónica, contra os esforços da classe dominada para se
emancipar. Nesta luta "to tal", todos os meios, desde o poder
económico até à ideologia, eram utilizados. Pelo que, em últi­
ma instância, todas as manifestações da história do hom em se
explicariam por esta tensão fundamental gerada pela forma de
organizar socialmente a produção ("modo de produção"). A luta
de classes só teria fim com uma repartição igualitária do con­
trole da produção, garantida por uma apropriação colectiva dos
meios de produção ("socialism o"). Com isto se atingiria uma
sociedade sem classes de onde estaria excluído o domínio de uns
homens sobre os outros.
Para além de uma explicação global da história humana,
Marx forneceu ainda uma teoria mais aprofundada do estádio
actual de evolução da sociedade (o "capitalism o", caracteriza­
do pela apropriação privada dos meios de produção e pela dis­
tribuição do produto social por meio dos mecanismos do "m er­
cado"). Do ponto de vista político, o marxismo é, por isso, para
444
António M anuel Hespanha
além de uma teoria social, uma proposta política revolucioná­
ria, centrada na crítica da sociedade capitalista e no objectivo da
sua substituição por uma sociedade socialista.
E neste quadro geral que se insere a crítica que o marxis­
mo dirige ao pensamento jurídico estabelecido.619
Nesta crítica, há que considerar dois aspectos.
Um deles, de recorte mais teórico, lida, em termos globais, com
a questão da explicação social do direito. Outro, de sentido mais
pragmático, com a crítica do direito capitalista (ou "burguês").
Quanto à questão da natureza social do direito, o marxis­
mo aplica aqui a sua teoria geral de que todas as manifestações
da vida social são determinadas pela organização social da pro­
dução ("modo de produção"), ou seja, pelo modo como os ho­
mens se relacionam para levar a cabo a produção de bens mate­
riais ("materialismo histórico"). O direito - quer as leis, quer as
proposições doutrinais -, tal como a cultura ou a arte, reflectiria
esse nível fundamental ("infra-estrutura") da organização soci­
al, defendendo os interesses e exprimindo os pontos de vista das
classes aí dominantes. Ou seja, o direito não seria algo de natu­
ral ou de ideal, mas antes uma ordem socialmente comprome­
tida, um instrumento de classe.
Já se vê que uma teoria deste tipo não podia deixar de ele­
ger o idealismo e o formalismo das escolas clássicas do pensa­
mento jurídico oitocentista (nomeadamente, o jusnaturalismo
herdado do iluminismo ou o conceitualismo pandectísta) como
um alvo central de crítica. De facto, o mais característico destas
escolas é o facto de apresentarem o direito como um sistema de
princípios e conceitos produzidos pela razão e, nesse sentido,
libertos, se não da história,620 pelo menos das contradições soci­
619 Sobre o pensam ento jurídico m arxista v., além da m inha nota "A lgum as
indicações sobre a cultura do direito na obra de M arx e E ngels", em Hes­
panha, 1978a, 64-69; Guastini, 1973; C erroni, 1962; Reich, 1972; Meireles,
1990. Panoram a sinóptico sobre o m aoism o e o direito em H espanha, 1996.
620 De facto, a pandectística oitocentista continuava (com o herdeira da Escola
H istórica) a aceitar im plicitam ente que o sistem a dos conceitos jurídicos
decorria de um a certa cultura ou de um certo direito positivo históricos.
Cultura Jurídica Europeia
445
ais. As categorias jurídicas, como as do pensamento em geral,
seriam "naturais" e, por isso, partilháveis por todos os membros
da sociedade. As soluções do direito seriam "técnicas", consti­
tuindo respostas neutras e científicas aos conflitos de interesses.
Os juristas seriam engenheiros, politicamente descomprometi­
dos do social, falando a linguagem de uma ciência rigorosa. Fi­
nalmente, o Estado, o pai da legislação e o garante do direito,
seria a incarnação do interesse geral, obedientemente dirigido
pela lei-vontade geral, geral e abstractamente (i.e., igualmente)
aplicada a todos.
Tudo isto é decididamente posto em causa por K. Marx, ao
definir o direito como um facto essencialmente classista, por
meio do qual os grupos dominantes exercem o seu poder sobre
os demais e o perpetuam.
Este carácter classista do direito revelar-se-ia em dois mo­
mentos.
Por um lado, o direito estabelece directamente o domínio de
classe, ao impor normas de conduta que favorecem directamen­
te os dominantes e subjugam os dominados. Num artigo de ju­
ventude, Marx estuda esta questão a propósito do roubo de le­
nha dos bosques renanos. A nova classe dominante, a burguesia,
reduzira à propriedade privada as florestas, antes comuns. Ao
promulgar legislação proibindo e punindo a apanha de lenha nos
bosques - até aí permitida, tal como outros usos comunitários estava a proteger a propriedade agora adquirida e a privar as co­
munidades da sua posse tradicional sobre estes meios de produ­
ção. A mesma natureza classista teria a generalidade das normas
jurídicas, nomeadamente, de direito político, de direito penal, de
direito do trabalho, de direito da propriedade, pois todas elas pro­
tegeriam juridicamente direitos dos grupos dominantes e impo­
riam aos dominados a obediência correspectiva.
Por outro lado, o direito burguês funcionaria também como
ideologia de cobertura. Ou seja, criaria uma imagem falseada das
relações de poder, ocultando sob a capa da igualdade jurídica garantida, nomeadamente, pela generalidade e abstracção da lei
- as reais desigualdades sociais. Marx denuncia esse primado
majestoso da igualdade promovida pela lei geral, "la majestueu-
446
António Manuel Hespan’
se égalité des lois qui interdit au riche comme au pauvre, de co
cher sous les ponts, de mendier dans les rues et de voler du paii
(Anatole France). Para K. Marx - e, mais tarde, para autor
marxistas como o soviético E. Pashukanis (1891-1937) - a gen
ralidade e a abstracção eram, de facto, a peça central dos pass
de mágica do direito burguês. Ao dispor em geral e em abstra
to (i.e., considerando os indivíduos como intermutáveis), o c
reito burguês estava a criar a forma mais eficaz de ocultar o fa
to de que, na realidade, os indivíduos concretos não eram igua
mas antes inevitavelmente hierarquizados pelas respectivas co
dições económicas e políticas. Mas esta função ideológica c
ocultamento era completada pela ficção jurídica da liberdad
nomeadamente, da liberdade negociai. Também aqui, o direi
construía uma realidade imaginária - a de indivíduos senhor
das suas vontades, negociando paritariamente -, totalmente co:
traditória com a realidade efectiva, que era antes a de indivíd
os condicionados pelos constrangimentos económico-sociais
negociando em posições desiquilibradas. O exemplo típico des
mistificação era a do contrato de trabalho assalariado, nas co:
dições sociais do capitalismo oitocentista, em que o patrão, ec
nomicamente forte e dispondo de uma grande capacidade c
escolha entre uma grande oferta de trabalho, se confronta co:
um assalariado economicamente débil e com escassas possibi]
dades de encontrar quem o admita.
A crítica marxista dirige-se, assim, tanto contra o conteúi
do direito burguês como contra a sua forma.
No plano das alternativas, no entanto, o pensamento ma
xista foi menos produtivo.
Quanto às alternativas "de conteúdo", propunha, natura
mente, um direito que protegesse as classes trabalhadoras e c
mais desprotegidos. Isso foi surgindo, justamente por influênc
do movimento operário, a partir dos finais do século XIX, nomi
adamente no domínio do direito do trabalho. Mais tarde, a part
de 1917, com o advento da U.R.S.S., criou-se aí um direito qv
protegia os interesses que o Partido Comunista definia como sei
do os das classes trabalhadoras e que, em contrapartida, sujeit;
Cultura Jurídica Europeia
447
va os "inimigos de classe" à "ditadura do proletariado". O direi­
to passa a ser entendido como uma arma política ao dispor da clas­
se operária e dos seus aliados na sua luta pela construção do so­
cialismo. Este carácter instrumental do direito - que identificava a
justiça com a utilidade política conjuntural - foi sobretudo enfati­
zado durante o estalinismo (1924-1953; pós-estalinismo, 19541988), tendo sido teorizado pelo então procurador-geral do Esta­
do soviético, A. Vychinski (1883-1954).621
Quanto às alternativas no plano "d a form a", a insistência
no carácter burguês das características da generalidade e abs­
tracção da norma jurídica fez com que se tendesse para consi­
derar o direito - que, na sua forma contemporânea, se caracteri­
zava justamente por ser constituído por normas (e categorias
doutrinais) gerais e abstractas - como um modelo burguês de
regular a sociedade.
Em contrapartida, o direito sociaista devia ser mais aten­
to à adequação às situações do que ao respeito pela exigêcia for­
mal da igualdade, atribuindo deveres desiguais ("de cada um
segundo as suas possibilidades", bem como direitos desiguais
("A cada um segundo as suas necessidades").622 Isto explica a
621 Sobre o pensam ento jurídico soviético, v. Cerroni, 1969.
622Confrone-se, a este propósito, a parábola dos trabalhadores: "O reino dos
céus é sem elhante a um pai de família que saiu de m ad ru gad a, a fim de
con tratar trabalhadores para trabalhar na sua vinha; tendo acertado com
os trabalhadores que eles teriam uma m oeda por sua jornada, m andou-os
vinha. Saiu ainda na terceira hora do dia, e tendo visto outros que estavam
na praça sem sem nada fazer, lhes disse: Ide vós tam bém , vós outros, para
a minha vinha e eu vos darei o que for razoável; e eles para lá se foram. Saiu
ainda na sexta e na nona hora do dia, e fez a m esm a coisa. E tendo saído na
décim a prim eira hora, encontrou outros que estavam sem nada fazer e lhes
disse: P or que perm aneceis aí durante todo o dia sem trabalhar? E disseram -lhe, porque ninguém nos contartou; e ele lhes disse: Ide vós também,
vós outros, p ara a minha vinha. A tarde tendo chegado, o senhor da vinha
disse àquele que tinha a incumbência dos seus negócios: Cham ai os traba­
lhadores e pagai-lhes, com eçando desde os últimos até os primeiros. Aque­
les, pois, que não tendo vindo para a vinha senão quando da décim a pri­
m eira h ora esta v a p ró xim a, receb eram um a m oed a cad a um . Os que
448
António M anuel H espanha
desconfiança dos regimes socialistas perante qualquer form a­
lização jurídica genérica e a preferência por uma regulação casuísta e decisionista, baseada em directivas concretas, pontu­
ais, provenientes da ponderação política de cada situação in­
dividual. A tantas vezes referida ausência de uma "legalidade
socialista" explica-se, do ponto de vista teórico, por esta recu­
sa de uma normação geral que era associada pelos marxistas a
um direito historicamente ultrapassado. Embora também se re­
lacione com a concepção, já antes referida, de que o direito, a
existir nos Estados socialistas, devia ter sempre um carácter pu­
ramente instrum ental em relação à política, ao julgam ento de
oportunidade por parte do Estado. E, sendo assim, o facto de
este julgamento ser feito casuisticamente - i.e., sob a form a de
uma directiva política - ou de forma genérica - i.e., sob a forma
de uma norma legal genérica e abstracta - constituía um deta­
lhe pouco relevante.
foram contratados prim eiro, vindo a seu turno, creram que se lhes daria
m ais, mas não receberam além de um a m oeda cada um; e, ao receber, eles
m u rm uravam contra o pai de família, dizendo: Estes últimos não trabalha­
ram senão um a hora e vós os tom ais iguais a nós que carregam os o peso
do dia e do calor. Mas em resposta, ele disse a um deles: M eu am igo, eu
não vos fiz injustiça; não acertastes com igo um a m oeda pela vossa jorna­
da? Tom ai o que vos pertence e ide; por mim quero dar a este últim o tanto
quanto a vós. N ão me é, pois, perm itido fazer o que quero? e os vossos olhos
são m aus porque eu sou bom? Assim , os últimos serão os prim eiros, e os
prim eiros serão os últimos, porque há muitos cham ados e poucos escolhi­
dos (São M ateus, cap. XX, v. de 1 a 16). Independentem ente de outros sen­
tidos, aborda-se aqui a crítica da desigualdade: o pai de família estava a tra­
tar desigualm ente os trabalhadores ao pagar igualmente trabalho desigual.
No entanto, a sua resposta aponta para valores diferentes da m era igual­
dade: consideração das circunstâncias de cada caso (nom eadam ente, im­
possibilidade de alguns trabalhadores de terem encontrado trabalho mais
cedo); bem com o a ideia dessa justiça suprem a que é a justiça distribuiva
face à simples justiça com utativa.
Cultura Jurídica Europeia
449
8.5.2. O marxismo ocidental dos anos sessenta
O marxismo ocidental distanciou-se claramente, a partir
dos finais da década de '60 do determinismo economicista que
caracterizava o marxismo "oficial" da Terceira Internacional. O
Estado e o direito seriam, decerto, quando globalmente consi­
derados, instrumentos de classe servindo os interesses globais
dos grupos dominantes. A sua funcionalização político-social
não seria, porém, absoluta.
A sociedade era irremediavelmente complexa e mesmo
contraditória. As classes dominantes não conseguiam estender
o seu domínio a todos os recantos da vida social. Existiam sem­
pre espaços sociais - quer no domínio das relações sócio-políticas, quer nos domínio das representações e do imaginário soci­
al - espaços dominados por lógicas diferentes e contraditórias
com os interesses e mundividências dominantes. A própria exis­
tência do movimento operário e das suas organizações políticas,
em plena sociedade capitalista, aí estavam a prová-lo. O mes­
mo se passaria com a cultura juvenil e underground (populari­
zada pelos grandes nomes da cultura pop contestatária dos anos
sessenta, como James Dean, Jack Kerouac, Andy Wharrol ou The
Beattles, e bem expressa nos temas pacifistas, alternativos e soli­
dários da geração hippy), com o movimento contestatário dos
estudantes (Maio de '68), com os movimentos feministas. Ou,
no plano da grande política internacional, com a existência de
um bloco de Estados socialistas, mas, sobretudo, com os relati­
vos êxitos do movimento dos países "não alinhados"; dos mo­
vimentos guerrilheiros e anti-imperialistas da América Latina
(Che Guevara e Fidel Castro) e do Vietname; ou dos movimen­
tos africanos anti-apartheid e de libertação, nomeadamente na
África do Sul (Nelson Mandela), nas antigas colónias portugue­
sas (Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane e Samora Machel).
Do ponto de vista teórico, a existência deste relativo plura­
lismo político-social justificou-se por um entendimento novo da
ideia de determinação da vida social pela lóg ica d as relações
450
António Manuel Hespanha
económico-sociais (do modo de produção económico social).
Autores marxistas como António Gramsci, Louis Althusser ou
Nicos Poulantzas vêm propor, com diversas apresentações teó­
ricas, a ideia de que o "nível económico" apenas exerce uma
determinação "em última instância", permitindo que, nos res­
tantes níveis (como o político, o jurídico, o cultural, o da relação
entre os sexos), se desenvolvam lógicas de organização ou ima­
ginários sociais relativamente autónomos e, até, provisoriamente
contraditórios com a lógica global do sistema. O sistema social
global seria determinado pelo "económ ico", mas sobre-determinado (i.e., suplementarmente, ulteriormente, localmente determi­
nado) pelas relações sociais específicas que se desenvolveriam
em cada um dos restantes níveis da prática humana.
Outros pegam na ideia de "modo de produção" - até aí re­
servada ao modo de produção económico - e aplicam-na autono­
mamente a cada um dos níveis específicos da produção social
(produção jurídica, produção cultural, etc.). O resultado é uma
imagem teórica do social como constituído por diversos sistemas
de produção, cada qual dominado por uma lógica autónoma e
interagindo todos uns com os outros no seio de um mesmo espa­
ço social, embora o conjunto acabasse por ser dominado pela ló­
gica do nível mais decisivo, aquele em que se produziam as rela­
ções económicas de poder (o modo de produção económica).
Outros, ainda, explicam esta relativa autonomia e eficácia própria
dos níveis antes designados de "supra-estruturais" (entre os quais
se encontra o direito) por efeitos de retomo (feedback), que fariam
com que eles pudessem, por sua vez, agir sobre a infra-estrutura,
condicionando-a ou mesmo modificando-a.
As consequências da evolução do marxismo ocidental no
domínio do pensamento social e das próprias práticas políticas
foi muito grande. De facto:
(i) permitiu uma análise marxista da sociedade e do poder
que não reduzia tudo ao "económ ico" ("anti-reducionism o", "anti-econom icism o"), permitindo dar conta da
complexidade dos mecanismos de criação e de reprodu­
ção das relações de poder;
Cultura Jurídica Europeia
451
(ii) problematizou a ideia de um sistema rígido e monóto­
no nas relações sociais, introduzindo não só a ideia de
sistemas sociais com vários centros, abertos ao ambiente
e à indeterminação, como a da importância da prática
política concreta e individual ("ousar pensar, ousar ven­
cer", "a imaginação ao poder", slogans de Maio de '68).
No domínio jurídico, esta corrente de ideias valoriza de
novo o direito, permitindo encará-lo, não apenas como um re­
flexo inerte das determinações económicas, mas como um nível
autónomo, (i) que devia ser explicado em si mesmo (e não a par­
tir das determinações sociais, políticas ou económicas) e (ii) a
partir do qual se podia influir no desenho das relações sociais e
políticas.
8.5.3. A “crítica do direito”
O primeiro aspecto leva a uma nova preocupação de com­
preender o modo como o direito cria sistemas de classificação e
de hierarquização, normas e imagens, que condicionam ou até
instituem, relações de poder na sociedade. Trata-se das escolas de
"crítica do direito" (critique du droit, criticai legal studies, Rechtskritik), que se desenvolvem sobretudo em França, nos Estados Uni­
dos e na Alemanha a partir dos meados da década de '70.623
Embora os movimentos da "crítica do direito" - sobretudo
em França - tenham dependido muito da crítica marxista do di­
reito, pode encontrar-se para elas uma inspiração mais especí­
fica no pensamento da Escola de Frankfurt que, nos anos ses­
senta, empreendeu uma desmontagem bastante sistemática dos
pressupostos ideológicos da cultura (entendida no seu sentido
623 Sobre estas escolas, a m elhor síntese é a dos artigos "C ritique du droit"
(Michel Miaille) e "Criticai legal studies" (R. Abel), em Arnaud, 1988. Ou­
tras sínteses: sobre o ram o am ericano (talvez o mais interessante), "C riti­
cai legal studies sym posium ", S ta n fo rd law review , 36 (1-2), 1984; Unger, 1983;
sobre o ram o francês, P ou r u n e critiq u e du d roit, Paris, PUG-M aspéro, 1978.
Revistas: P rocès, K ritisch e Ju stiz , C ritica dei d iritto.
452
António M anuel H espanha
mais vasto, desde a música ao senso comum) do mundo ociden­
tal. No plano mais especificamente político, a Escola de Frank­
furt procurou identificar as raízes mais profundas do modelo
ocidental das relações de poder, tais como os sistemas de conceptualização e de classificação, as modalidades da comunica­
ção, os modos de produção do saber, a geometria dos afectos, a
organização familiar, o sistema escolar, etc.
Todos estes níveis de produção do poder são concebidos
como artefactos culturais, i.e., como produto de uma organiza­
ção (ou "construção") "local" da realidade social levada a cabo
por grupos sociais num certo momento histórico.
Também o direito é o resultado de uma produção arbitrá­
ria, local, histórica, de grupos sociais. Mas, para além disso, ele
é também um instrumento de construção de representações (o
sujeito de direito, o contrato, a propriedade, o Estado), de cate­
gorias (o louco, o criminoso, a mulher, o negro) e das hierarqui­
as sociais correspondentes.
A função da crítica do direito é, por um lado, desvendar os
impensados sociais que estão na raiz das representações jurídi­
cas, desmitificando os pontos de vista de que o direito é uma
ordem racional, neutra e fundada objectivamente na realidade
social (i.e., na natureza das coisas).
Mas, por outro lado, compete à crítica do direito revelar os
processos por meio dos quais o direito colabora na construção
das relações de poder. De que modo, por exemplo, contribuiu
para criar a imagem social da mulher - como ser fraco, menos
capaz e subordinado - que fundamenta os processos sociais de
discriminação sexual (Teresa Beleza). Ou de que modo contri­
buiu para criar a realidade social do "louco" ou do "crim inoso"
e os processos sociais da sua marginalização (M. Foucault).624Ou,
finalmente, de que modo a fixação da atenção na coerção jurídi­
624 Sobre a crítica do direito em M ichel Foucault, v. M áiz, 1978; Serrano González, 1987b; Fitzpatrick, 1985. Sobre a valorização foucaultiana do direito
e do Estado liberais, v. Goldstein, 1993, C aputo, 1993; Barry, 1996.
Cultura Jurídica Europeia
453
ca e estadual (i.e., a ideia da centralidade do direito e do Estado)
ocultam a violência das formas "doces" de disciplinamento,
como a família, os círculos de amizade, o envolvimento afecti­
vo, o saber, a assistência pública.
8.5.4. O “uso alternativo do direito”
Como se viu, o neomarxismo insistiu no carácter comple­
xo e relativamente pluricentrado do sistema sócio-político. No
domínio do direito, isso levou a pensá-lo como uma ordem não
absolutamente vinculada aos interesses das classes dominantes,
mas relativamente contraditória e, portanto, passível de vários
usos políticos.
Este carácter contraditório do direito decorreria de dois
aspectos.
Por um lado, o domínio das classes dominantes seria sem­
pre "incompleto", pois os grupos dominados conseguiam fazer
valer, em espaços limitados, pontos de vista próprios. A socieda­
de seria, assim, irredutivelmente contraditória, partilhada entre
projectos e valores político-sociais divergentes, embora hegemo­
nizados pelos das classes dominantes. O direito e o Estado - es­
ses "resumos" da luta de classes, como lhes chamara K. Marx seriam também caracterizados por essa natureza contraditória da
sociedade. Embora globalmente dominados pelos poderes soci­
almente estabelecidos e funcionalizados aos seus interesses, não
deixariam de reflectir o carácter "incompleto" das relações de
dominação e os compromissos a que os grupos dominantes ti­
nham, por isso, sido obrigados. Exemplos disto seriam aqueles
ramos do direito em que os movimentos progressistas tinham
conseguido impor normas de protecção dos grupos mais fracos.
Era o caso, nomeadamente, do direito do trabalho e das garanti­
as que ele tinha fixado a favor dos trabalhadores (horário de tra­
balho, descanso semanal, direito à associação sindical e à greve,
etc.), fruto das lutas operárias, d esd e os finais d o sécu lo XIX. Mas
era tam bém o caso d as garantias e liberd ad es individuais, bem
com o das garantias jurídicas dos mais desprotegidos (crianças,
454
António Manuel Hespanha
mulheres, pobres, doentes e diminuídos, inquilinos, etc.) fixadas
na legislação do Estado-providência (ivellfare State, Wohlfahrtstaat), a partir dos anos '30. Todos estes casos davam exemplo dos
compromissos existentes no seio do direito, impostos pela ousa­
dia e combatividade dos grupos dominados, e contraditórios com
os interesses das classes dominantes.
Este carácter compromissório do direito ainda seria mais forte
pelo facto de a própria ideia de direito estar orientada para um
ideal de igualdade, de equilíbrio (de "justiça"), de proscrição da
violência aberta ou da opressão explícita de uns sobre os outros.
E de, consequentemente, o jurista tender a imaginar o direito
como a ponderação justa ("razoável") de interesses políticos
contraditórios e a imaginar-se a si mesmo como o agente neu­
tro dessa ponderação.
Acresce que, nessa tarefa d e ponderação (em abstracto doutrina; ou em concreto - jurisprudência) dos interesses em
presença, o jurista dispõe de uma larga margem de liberdade (ou
discricionariedade), dado o carácter genérico, ambíguo e fre­
quentemente contraditório das proposições jurídicas. Liberda­
de que, então, devia ser utilizada para contradizer, corrigir e
compensar,625 nos planos doutrinal e, sobretudo, jurisprudencial, os pressupostos classistas do direito (maxime, do direito le­
gislado, oriundo do poder político).
São fundamentalmente estas ideias que estão na base da pro­
posta de um "uso alternativo do direito", tal como foi feita em Itá­
lia no início da década de '70626e que inspirou duradouramente a
doutrina crítica italiana, estando seguramente na origem do protagonismo que a magistratura ganhou em Itália, como agente de
reformas da vida cívica e política, nas décadas '80 e '90.
625 Tal com o o pretor, em Roma, auxiliava, corrigia e supriu os defeitos do di­
reito civil em vista da utilidade pública (adjuvandi, corrigendi vel supplendi
ius civile propter utilitatem publicam).
626 A expressão foi cunhado num congresso d e 1972, ein Catania, na Sicília;
actas, Barcellona, 1973.
Cultura Jurídica Europeia
455
A ideia de um uso alternativo do direito é, em certa medi­
da, mais recuada do que as propostas de u m criticismo radical
das escolas críticas. Hla íurvda-se na ideia de que o uso do direi­
to não é irremediavelmente repressor e favorável aos grupos
dominantes, sendo possível levar a cabo, desde dentro do pró­
prio direito e com instrumentos jurídicos, tarefas de sentido pro­
gressista e libertador. Para isso, no entanto, seriam necessárias
certas condições, umas metodológicas, outras institucionais.
No plano metodológico, deveria, por um lado, ser favore­
cida a capacidade do jurista de ter uma visão menos mítica, mais
esclarecida e mais crítica do direito, de modo a torná-lo consci­
ente do funcionamento não neutro, comprometido ("parcial",
"local") das instituições jurídicas, bem como do carácter "local"
(i.e., não "racional", "natural" ou "evidente") dos seus pressu­
postos ou do seu impensado (i.e., da "ideologia espontânea dos
juristas"). Isto seria favorecido pela inclusão na formação jurí­
dica de disciplinas - como a sociologia, a antropologia ou a epistemologia crítica - que treinassem o futuro jurista numa atitude
crítica (i.e., não conformista, não pietista) em relação ao direito.
Mas, por outro lado, deveria ser cultivada uma metodolo­
gia do direito que aumentasse a liberdade do jurista perante a
lei, dando-lhe espaço para construir de forma mais independente
(do poder político estabelecido) soluções doutrinais ou jurisprudenciais alternativas. Isto conseguir-se-ia insistindo nos pontos
de vista anti-positivistas - nomeadamente, (i) combate ao méto­
do da subsunção e reivindicação da liberdade jurisprudencial e
(ii) insistência sobre o carácter inelutavelmente individual da
solução jurídica.
O primeiro ponto de vista valoriza decisivamente a função
doutrinal e jurisprudencial, tal como o vinham fazendo algumas
escolas jurídicas do pós-guerra. Em todo o caso, com alguma
originalidade.
Na verdade, esta valorização do direito doutrinal e jurispru­
dencial (contra o direito legislativo) pode relacionar-se com dois
pontos de vista. O primeiro deles é a crença em que é mais fácil
impor pontos de vista progressistas no campo da doutrina e da
456
António M anuel Hespanhí
jurisprudência do que no campo do poder político estadual (le­
gislação). Isto prendia-se, por um lado, com as características
muito especiais do contexto político italiano dos anos setenta.62:
Mas decorria também de um novo entendimento de uma via de­
mocrática para a reforma das instituições. A democracia seria
essencialmente, o triunfo da igualdade, sem a qual não existiria
liberdade. Ora, se nas democracias populares a insistência m
igualdade comprometera inaceitavelmente a liberdade, nas demo­
cracias representativas, a preservação da liberdade política leva­
ra a que os interesses económicos e partidários subjugassem com­
pletamente o funcionamento das instituições, instituindo uma
nomenklatura político-partidária (primeiro a Democracia Cristã,
depois a coligação "penta-partidária"), económico-financeira e
mediática (o "império Berlusconi") que governava sobretudo em
favor de si mesma (a "Roma latrona"), sacrificando a igualdade
(senão mesmo a liberdade) numa rede de corrupção política, de
troca de favores e de violência (o "polvo").
No meio desta crise institucional, os juristas universitários e
os juizes apareciam como um meio menos contaminado e menos
contaminável pela corrupção das instituições (a "m ala vita").
Menos contaminado, porque seleccionado por processos "corpo­
rativos", mais transparentes e menos dependentes do poder po­
lítico central (as provas académicas e os concursos para a magis­
tratura). Menos contaminável, porque mais disperso, até regio­
nalmente, tomando muito mais difícil o estabelecimento de uma
rede de corrupção ou de domínio do que no caso da burocracia
político-estadual ou partidária, hierarquicamente organizadas.
627 Em que, por um lado, as forças de esquerda (nom eadam ente, o Partido
C om unista Italiano) viam bloqueado o seu acesso ao poder político pela
hegem onia da D em ocracia Cristã e pelos constrangim entos da política in­
ternacional (a Itália era um pilar fundam ental da OTAN). Mas em que, por
outro, a esquerda hegem onizava o meio intelectual e universitário, poden­
do, por isso, condicionar as novas gerações de juristas e juizes. A cresce que
os juizes italianos se distinguiram , durante os anos '80 e '90, - por vezes
com sacrifício da própria vida - na luta contra a Mafia e a corrupção, o que
os tornou em heróis (matti pulite, m ãos limpas) da opinião pública.
457
C ultura Jurídica Europeia
Daí que se passasse a pensar que era justamente nestes juristas e
juizes - mas sobretudo nos últimos, dado o seu poder institucio­
nal (magistratura) - que residia a única esperança de reforma po­
lítica, institucional e cívica. Protegidos do governo pela sua inde­
pendência estatutária, libertos - em virtude do sistema da sua
designação - das inãuências partidárias e dos compromissos eleitoralistas dominados por um ideal de justiça como igualdade e
equilíbrio e formados num ambiente intelectual e universitário
progressista, os juizes deveriam estar em condições de realizar um
"direito igual", mesmo numa sociedade de classe.629
Ponto era que - e aqui aludimos brevemente aos condicionalism os institucionais a que antes nos referimos - (i) a in­
dependência da magistratura estivesse eficazmente garanti­
da em relação ao poder governamental e mesmo parlamen­
tar, nomeadam ente no que respeita ã independência (não governam entalização) dos órgãos de gestão da carreira dos ju i­
zes e magistrados do ministério público e (ii) que os juizes e
m agistrados tivessem meios efectivos de realizar as suas ta­
refas (nomeadamente, acesso à informação governamental e
bancária, controlo da actuação policial). Daí o ênfase posto
por esta corrente nas questões da sociologia da justiça e da
organização judiciária, bem como a influência que teve nos
m ovim entos profissionais e sindicais dos magistrados, sobre­
tudo nos países da Europa da sul.
Por sua vez, o carácter inelutavelmente individual da so­
lução jurídica permitiu a este projecto de "uso alternativo do
direito" valorizar, tam bém ele, a perspectiva de que o direito
se colhe da observação da realidade, tal como tinha sido pro­
posto pela ideia de "uso alternativo do direito". Porém, en­
quanto que a ideia de natureza das co isa s tinha levado, fre­
quentem ente, a propostas conservadoras, aceitando a reali­
dade como um dado estático, o uso alternativo do direito vem
p r o p o r q u e a solução jurídica seja inspirada por uma análise
628Cf. Coturri, 1978. V. ainda, sobre este
tema, do mesmo,
Cotturi, 1974.
458
António Manuel Hespanha
dinâmica e crítica da realidade. Ou seja, que o jurista compre­
enda a realidade social como algo de ainda im perfeito, per­
corrido por tensões e interesses conflituais, que importa re­
gular em vista de objectivos politicamente libertadores e pro­
gressivos. E que sejam, justam ente, estes objectivos, presen­
tes na consciência mais crítica e mais libertadora da época, a
dirigir a solução; mais do que os equilíbrios empiricamente
observáveis, que, normalmente, tenderão para a conservação
do status quo.
Noutros países, sobretudo na Alemanha e nos Estados
Unidos, a ideia de um uso alternativo do direito e da justiça com­
binou-se com a de inventar e pôr em prática formas alternati­
vas de direito ou mesmo de criar alternativas ao direito e à jus­
tiça oficiais cómo instrumentos de normação social e de resolu­
ção de conflitos.629
Esta proposta parte da constatação da crise actual do direito
e da justiça nos países do primeiro mundo. Crise que é tanto uma
crise institucional como uma crise de legitimidade.
A crise institucional traduz-se na progressiva falta de efi­
cácia da lei, como instrumento de normação social, com o con­
sequente aparecimento de zonas cada vez mais extensas que
fogem ao controlo do direito oficial. Quer zonas de a-legalidade, em que se prefere a regulação informal, como os acordos de
cavalheiros, as formas de arbitragem privada, a negociação po­
lítica. Quer zonas de ilegalidade, em que se foge ou se recusa a
disciplina legal, como os mundos juridicamente submergidos do
racket, da mafia, da corrupção, do trabalho ilegal, da economia
paralela, da fraude fiscal. O fracasso das políticas repressivas de
"aplicação da legalidade" (laiv inforcement), baseadas no refor­
ço das medidas policiais (law and order policies), mostra até que
ponto a crise é profunda e ultrapassa as possibilidades de tera­
pêutica dentro do modelo estabelecido de direito e de justiça.
629 Cf. Blankenburg, 1980; Cappelletti, 1984; H espanha, "Lei e justiça: história
e prospectiva de um parad igm a", em H espanha, 1993a, 7-58.
Cultura Jurídica Europeia
459
Também a justiça oíicial, baseada rva resolução de confli­
tos por tribunais estaduais clássicos atravessa uma cxise çroíunda, cujo sintoma mais evidente é o da lentidão da máquina ju­
dicial. Aparentemente, o aparelho judicial - cujos custos estão
já no limite das possibilidades de Estados com constrangimen­
tos financeiros cada vez maiores - foi saturado pelo afluxo de
litígios a que a própria política de promoção do acesso à justiça
(" democratização da justiça") - proposta nos anos' 60 e ' 70 como
parte integrante das políticas de democratização de bem estar
típicas do Estado Providência - dera lugar.
Mas a crise não é apenas institucional. É também uma crise
de confiança, por parte dos cidadãos, nas instituições jurídicas e
judiciais (crise de "legitimidade"). Os cidadãos não só ignoram
massivamente o direito, como não se reconhecem nele, ou seja,
não o reconhecem como meio idóneo de realizar os seus ideais
de organização social ou de resolução dos conflitos. As leis e os
regulamentos, elaborados por um mundo político cada vez mais
fechado sobre si mesmo, envolvidos numa linguagem tecnicista
e hermética, constituindo um mundo imenso e impossível de abar­
car, aparecem como um universo normativo sem sentido, dis tante
dos problemas reais das pessoas, monopolizado por uma clique
de iniciados, suspeito de proteger interesses inconfessáveis. Quan­
to à justiça, a sua lentidão, o seu preço, a impenetrabilidade da
sua linguagem, fizeram com que o recurso aos tribunais se tor­
nasse num jogo, caro, e de resultados aleatórios.630
A proposta de formas alternativas de direito e de justiça
parte justamente destes sintomas de crise e procura outras for­
mas, mais eficazes e mais aceites de estabelecer normas de com­
portamento e de resolver os conflitos.
No plano do estabelecimento de normas de comportamen­
to, as propostas têm sido várias.
Para uns, a regulamentação do Estado deve dar lugar à
concertação privada.
630Quanto a todos estes aspectos, v. o meu texto antes citado e os restantes a r­
tigos da colectânea, nom eadam ente os de M arc Galanter e R. Auer.
460
António M anuel Hespanha
Trata-se, tipicamente, da estratégia proposta pelas correntes
neoliberais, integradas numa estratégia de redução do papel de
intervenção social do Estado. Note-se, em todo o caso, que a jus­
tiça das soluções obtidas por "concertação" supõe que as partes
concertantes têm um idêntico poder negociai, que os pontos de
vista de uma (v.g., dos consumidores ou dos trabalhadores) não
serão "naturalmente" esmagados pelos da outra (v.g., das gran­
des empresas ou dos patrões). Sem isso, a livre contratação das
normas de conduta, no seio da sociedade civil, conduzirá a um
férreo domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. E por isso que
parece muito indesejável que o Estado, como entidade encarre­
gada de compensar as desigualdades da sociedade civil, deixe de
regulamentar matérias como as das relações de trabalho, da ven­
da de produtos médico-farmacêuticos, da qualidade do ensino,
da segurança dos consumidores, da defesa do ambiente, etc.631
Para outros, o estabelecimento de normas sociais poderá
ganhar muito com a adopção de novas tecnologias da informa­
ção e com um uso adequado dos media. Nestas propostas - com
alguns interessantes aspectos "futuristas" - as novas tecnologias
(nomeadamente, a criação de redes de comunicações muito po­
derosas, as chamadas "auto-estradas da comunicação") permiti­
ria uma direcção eficaz, personalizada, inter-activa, quase "conversacional", das condutas sociais.632 Mas, mais limitadamente,
poderia tomar muito mais eficaz a publicitação dos normativos
actuais, criando, por exemplo, bases de dados, facilmente consul­
táveis e permanentemente actualizadas, do direito em vigor.
Para outros, finalmente, haveria que voltar a avaliar formas
não coactivas de direcção de condutas, baseadas, por exemplo,
nos laços afectivos, de solidariedade 611.
631 Para um a irónica crítica do m odelo neoliberal de direito e de justiça, v. o
excelente texto de Johnson , 1984.
632V., sobre isto, Toffler, 1990. Antecipações desta regulamentação "comunicacional" da sociedade são, por exemplo, as "informações" e "conselhos" da rádio
sobre a situação do trânsito, as instruções e regras de funcionamento das ATM,
os sistemas periciais de auxílio à decisão sobre aplicações financeiras, etc.
633 Cf. H espanha, 1992a.
Cultura Jurídica Europeia
461
No domínio da composição de conflitos, tem-se criticado
a absoluta concentração da decisão dos litígios em instituições
estaduais e proposto a descentralização destas funções em or­
ganismos espontâneos, surgidos da própria sociedade civil,
como os centros de justiça comunitária (community justice centers) experimentados nos E.U. A., as Bürgerinitiativen, ensaiadas
na Alemanha, as comissões de moradores ou outras "organi­
zações populares de base", previstas na Constituição portugue­
sa de 1976, ou, ainda, as instituições de justiça popular, v.g., de
Cabo Verde. Instituições deste tipo, surgidas da própria popu­
lação e em permanente contacto com ela, poderiam resolver,
desde que dotadas de meios e assessoradas por juristas e téc­
nicos sociais, de uma forma mais rápida e socialmente aceitá­
vel, uma gama muito vasta de litígios, desde as questões de
vizinhança até à pequena criminalidade.624Mas, por outro lado,
tem vindo a ser destacado como estas instituições - de que o
modelo mais clássico, é ainda o júri nos tribunais oficiais - são
extremamente vulneráveis ao condicionamente pelos poderes
estabelecidos ou, ainda mais, pelos meios de comunicação de
massa (mass media). Neste último caso, já foi realçado como os
meios de comunicação: (i) antecipam o julgamento formal; (ii)
condicionam decisivamente o seu resultado; e (iii) criam pro­
cessos cognitivos - i.e., esquemas de apreensão e nálise - dife­
rentes dos tradicionais.625
A adopção de novas formas de normação e de composição
de conflitos não se esgota em inovações de natureza institucio­
nal. Na verdade, estas novas instituições de realização do direi­
to implicariam também, não apenas novas formas de argumen­
tar sobre o direito e de atingir a solução jurídica, como a relacionação do saber jurídico com outros saberes. Quanto ao primeiro
aspecto, tem sido realçado que a realização do direito em meios
634Sobre estas instituições e as dificuldades da sua im plantação em concorrên­
cia com a justiça oficial, v. Galanter, 1993.
635Refiro-me ao interessantíssimo livro de Richard K. Sherwin (Sherwin, 2000).
462
António Manuel Hespanha
menos rigorosamente profissionalizados e ritualizados do que
os tribunais letrados oficiais aproximaria o discurso jurídico da
linguagem comum e a discussão judicial da negociação (bargai­
ning) corrente.626 Quanto ao segundo aspecto, tem-se verificado
que o tratamento de casos jurídicos em instituições comunitári­
as de justiça (dispute institutions) exige uma estreita cooperação
entre juristas, sociólogos, psicólogos, assistentes sociais e, até,
médicos, pois raro é o conflito cuja resolução não envolva aspec­
tos que nada têm a ver com o direito.
8.5.4.1. As correntes críticas em Portugal
Em Portugal, os temas de uma justiça e direito alternativos
estiveram especialmente em voga nos anos imediatos à "Revo­
lução dos cravos" (1974). Na verdade, a instauração da demo­
cracia e a denúncia da anterior ditadura originaram uma pro­
funda crise de legitimidade das instituições e do direito627ante­
riores, que a opinião pública classificava frequentemente de "fas­
cistas" . Por outro lado, tinha-se gerado uma imagem nova acerca
do modo de gerir os negócios públicos e decidir das questões
sociais e políticas. Entendia-se agora que estas decisões deviam
ser tomadas, não "nos gabinetes", pelos "burocratas", mas "p e­
las bases", "perante o povo". A democracia representativa e a
legitimidade que daí decorria para os órgãos do Estado não pa­
recia garantir suficientemente a prossecução dos autênticos in­
teresses populares. Foi a época das assembleias e dos plenários
(de operários, de estudantes, de soldados, de vizinhos).628
636Sobre a relacionação da retórica jurídica com o ambiente institucional de
decisão, v. Santos, 1980b.
637Que, com excepção das disposições legais abertam ente contrárias à ordem
dem ocrática, continuavam em vigor. M antiveram , de facto, a sua vigência,
v.g., o Código administrativo, o Estatuto disciplinar dos funcionários, as leis
de organização judiciária e o Estatuto judiciário. A própria Constituição de
1933 não foi expressam ente revogada.
638Sobre este assunto, v. H espanha, 1986. Legislação ulterior e a própria Cons­
tituição de 1976 acabam por d ar cobertura a um a parte destas "o rg an iza­
ções populares de base".
Cultura 'Jurídica E uropeia
463
N o domínio do direito e dayisüça, isto teve consequências
diiectas, abrindo um a época de grande riqueza de experiências
alternativas, quer no domínio da regulação, quer no da resolu­
ção de conflitos.
No domínio da regulação, estabeleceu a ideia de que as
movimentações populares (manifestações de massa, assemblei­
as, etc.), as formas pelas quais elas se institucionalizavam (or­
ganizações populares de base, comissões, grupos de trabalho) e
as decisões que daí saíam (moções, restruturações, ocupações de
fábricas, empresas e terras, ocupações de casas) gozavam de uma
legitim idade prim eira ("O povo é quem mais ordena"), que
emanava directam ente de uma "legalidade revolucionária",
uma espécie de "força das coisas" do processo revolucionário
(a "dinâmica do processo revolucionário em curso", as "conquis­
tas da Revolução"), de algum modo formalizada nos documentos-guia emanados do M.F.A. ou do Conselho da Revolução.639
Apesar de tudo isto carecer de reconhecimento por parte do di­
reito oficial,640instalou-se a ideia de que, pelo contrário, era o di­
reito oficial que devia ser aferido, na sua legitimidade, pela sua
conformidade com o novo direito revolucionário.
Este novo direito, que se revelava espontaneamente nas
"acções de massas" e nas "lutas populares", exigia uma nova
forma de ensino, ensaiado, nos anos de 1975 e 1976, pela direc­
ção maoista da Faculdade de Direito de Lisboa (ela mesma sur­
gida de uma "luta popular" não reconhecida oficialmente), que
"saneou" todos os antigos professores e assistentes, substituin­
do-os por trabalhadores, militantes políticos e juristas compro­
metidos nas lutas populares, e que estabeleceu um "curso po­
pular" de direito, orientado para a aprendizagem do direito vi­
vido, entremeado de testemunhos de casos e de estágios nos tri­
bunais.641
639 Cf., sobre este tem a, M oreira, 1975; M iranda, 1975.
640Cf. H espanha, 1 9 8 6 ,1 1 4 (com bibliografia sobre o tema).
641N a prática, a com ponente m arxista-leninsta era muito superficial; depois
de um a algo m onótona e vu lgar introdução político-ideológica, entrava-se
rapidam ente na m atéria, de acordo com as lições dos antigos mestres.
464
António M anuel Hespanha
Mas exigia, também, uma nova forma de justiça que garan­
tisse, por um lado, a participação popular e, por outro, a preva­
lência de um novo espírito de justiça dirigido pelos ideais da
revolução.
Quanto ao primeiro aspecto, a crítica corrente dirigida à jus­
tiça oficial era a de que, para além do seu conservadorismo polí­
tico, os juizes constituíam um grupo fechado e corporativo, jul­
gando segundo um direito incompreensível, cheio de subtilezas
e formalismos, sem qualquer controle popular ou da opinião pú­
blica democrática. A resposta oficial a esta reivindicação de uma
justiça mais próxima do povo foi a de reintroduzir o júri nas cau­
sas criminais (DL 605/75, de 3.11; Constituição de 1976, art° 216);
de instituir juizes populares ("juizes de paz" nas freguesias, para
o julgamento de questões módicas no domínio do arrendamento
rural, direito dos menores, direito de trabalho) (L 82/77; Consti­
tuição de 1976, art° 217);642 inclusão (mitigada) de não juizes no
Conselho Superior da Magistratura (L 85/77; Constituição de
1976, art° 223); e, finalmente, a criação do Provedor de Justiça (DL
212/75, de 21.4; Constituição de 1976, art° 24), como instituição
desburocratizada e universal de recurso por parte dos cidadãos.
Mas as reivindicações dos sectores mais radicais iam muito para
além disto. O que se pretendia era uma verdadeira alternativa à
justiça oficial - considerada como cara, acessível a poucos, acadé­
mica, afastada das massas populares e marcada pelo espírito de
casta -, surgida das próprias organizações populares de base
(como as comissões de bairro, as comissões de trabalhadores) e
integrada por magistrados de carreira e elementos populares.643
De alguma forma, este projecto teria suporte no Documento-guia,
aprovado pelo Conselho da Revolução na primavera de 1975, que
institucionalizava uma estrutura política constituída por uma pi­
râmide de organizações populares participativas, desde o âmbi­
W2 V. A participação popular na administração dajustiça. Actas do colóquio, Lisboa 1980.
643 Cf. A m adeu L. Sabino, "D epoim ento", Revista da Ordem dos Advogados, 1976,
191.
Cultura Jurídica Europeia
465
to da freguesia até ao nacional. Em todo o caso, a organização de
uma "justiça popular" - suspeita a muitos juristas, mesmo de es­
querda644- nunca foi levada a cabo.645
Quanto à necessidade de infundir na justiça Um novo espíri­
to, a reivindicação era a de uma jurisprudência mais criativa na
apreciação os casos concretos, mais liberta em relação à lei e mais
conforme com a nova ordem de valores (democrática e socializante) estabelecida pela Revolução. O tópico da "libertação anti-legalista da jurisprudência" já vinha de antes da Revolução, tendo sido
nomeadamente lançado, com muita ênfase, por António Castanheira Neves, nas suas lições (muito influentes na formação dos novos
juristas) de "Introdução ao estudo do direito" na Faculdade de Di­
reito de Coimbra. Mas agora toma-se numa palavra de ordem de
uma camada mais jovem de juizes, muito activa no repensamento
e reestruturação da vida judicial,646 que a combinam com a ideia,
importada de Itália, de um "uso alternativo do direito".647
O exemplo mais conhecido de tentativa de um "uso alterna­
tivo do direito", em que o juiz invertia a legalidade estabelecida em
homenagem aos valores jurídicos revolucionários, foi o do "caso
do juiz Dengucho". Este magistrado, então juiz na Marinha Gran­
de, zona de fortes tradições anarco-comunistas, tentou introduzir
uma prática de justiça menos distante da vida, mais comprometi­
644Pode dizer-se que o projecto de um a "justiça popular" era activamente apoi­
ado apenas pelos grupos radicais de esquerda; os juristas comunistas per­
m aneceram sem pre muito indecisos quanto a este ponto.
645 Realizaram -se muito poucos "julgam entos populares". O mais conhecido
foi o "caso José D iogo", em que um trabalhador rural m atara, na sequência
de um a discussão, o proprietário das terras em que trabalhava. No dia do
julgam ento oficial, um a multidão ocupou o tribunal e, substituindo-se aos
juizes (que decidiram adiar o julgamento, transferindo-o para outra com ar­
ca), constituiu um tribunal popular e condenou... o morto, classificando o
hom icídio com o um acto de legítima defesa. Sobre a justiça popular em
Portugal, nesse época, v. Santos, 1980a.
646Entre eles, Ferreira, 1972; Ferreira, 1974; Ferreira, 1978; Nascimento, 1979;
Almeida, 1980.
W7 Cf. Ferreira, 1 9 8 0 ,1 1 4 ss.
466
António Manuel Hespanha
da com as realidades quotidianas e mais aberta à consideração dos
projectos de mudança social estabelecidos pela revolução. Reunia
com a câmara, as comissões de trabalhadores e as comissões de
moradores, oferecendo a colaboração do tribunal na resolução de
assuntos de interesse geral; criou no tribunal um comité de apoio à
reforma agrária e, depois da promulgação da Constituição de 1976,
começou a indeferir in limine as acções de despejo, considerandoas contrárias à garantia do direito à habitação consagrado na Cons­
tituição. Acusado pelos sectores conservadores, na imprensa e nos
meios judiciais de comprometido político, Celso Dengucho acaba
por ser punido pela sua "ousadia"643ao ser demitido pelo Conse­
lho Superior da Magistratura (apesar do reconhecimento da sua in­
teligência, saber e honestidade) por falta de "idoneidade moral",
bem como do "bom senso, equilíbrio e sensatez" necessários para
o exercício da magistratura.649
8 .6. As esco la s an ti-leg alista s
Um dos legados jurídicos do século XIX foi, como se viu, o
legalismo. Já vimos como ele corresponde a um imaginário que
estava em desenvolvimento na cultura política europeia desde
há muito - o estadualismo - e como se reforçou com o advento
da ideia de democracia representativa (cf. supra, 8.1. "O contex­
to político.").650
Pode, no entanto, dizer-se que, mal se estabeleceu, o lega­
lismo começou a ser objecto de contínuas críticas. Vindas, em
primeiro lugar, dos críticos do estadualismo, que não reconhe­
ciam ao Estado (à vontade dos governantes) a legitimidade para
definir, em termos absolutos, as normas da justiça. Vindas, de­
pois, dos críticos da democracia representativa, que não reco-
648Realmente, as decisões do juiz Dengucho não foram objecto de crítica jurí­
dica interna, tendo sido apenas classificadas de "o u sad as".
W9Sobre este caso, v. Hespanha, 1 9 8 6 ,1 2 5 e 127 e bibliografia aí citada.
S5ÍISobre o tema, um a das melhores sínteses é Zagrebelsk, 1992, maxime, cap II,
"Dello stato di diritto alio Stato costituzionale"
Cultura ]uríà\ca Europeia
467
nheciam ao Estado demo-liberal (ao "v o to ", a uma " geração do
povo") a legitimidade para íalar em nome do "p o v o ". Vindas,
depois, dos críticos da "form a estatal" do direito (genérica e abs­
tracta, coactiva, centralizada, homogénea, fechada), a que não
reconheciam a virtualidade de regular justamente a inesgotável
riqueza e variedade das situações e conflitos da vida.
8.6.1. Sentidos gerais do anti-legalism o contemporâneo
São, assim, vários os sentidos do anti-legalismo contempo­
râneo.
O primeiro é o de recusar à vontade do Estado - qualquer
que ele seja - a capacidade de definir critérios de justiça e, logo,
de estabelecer, de forma absoluta e sem apelo, os conteúdos do
direito. Esta orientação não é mais do que uma actualização de
um tema sempre presente na história do direito europeu - o tema
da existência de um direito natural, indisponível para os poderes
políticos e, por isso, superior a eles. Mas ganhou um novo vigor
numa época em que as pretensões de regulação do Estado se es­
tenderam mais do que nunca, tendo alcançado, com os totalitarismos do século XX (nazismo, fascismo, estalinismo), o extremo
de um propósito de regular "totalmente" a vida. Perante estas
formas extremas de legalismo,651 a preocupação de estabelecer li­
mites - formais (i.e., reservas de liberdade) ou materiais (i.e., prin­
cípios normativos inderrogáveis) - à actividade do Estado tornamse muito mais imperiosa. Podem ser filiadas neste sentido do antilegalismo, orientações filsosófico-metodológicas muito variadas,
651Realmente, o carácter legalista das formas apontadas de Estado é problemá­
tica: no nazism o im perava um "decisionism o", que fazia da "vontade do
Führer" a última fonte de direito; no fascismo, o legalismo esteve sempre sob
suspeita de constituir uma marca distintiva do demo-liberalismo, devendo
ser substituído por uma referência às "instituições" naturais da sociedade; e
no estalinismo, os interesses de classe, formulados pelo "com issário" sem­
pre deveriam prevalecer sobre a lei (apesar desta ser uma emanação de um
Estado que se definia como uma "ditadura do proletariado").
468
António Manuel H espanha
destacaremos, sobretudo duas - o jusnaturalismo laico (cf., 8.6.2.
), insistindo na existência de uma ordem de valores (seja qual for
a sua origem) que se impõe ao legislador estadual, e o jusnatura­
lismo cristão (cf., 8.6.3.) este sublinhando (também) limites ma­
teriais da criação estadual do direito.
O segundo sentido do anti-legalism o é o de sublinhar o
carácter artificial (e, eventualmente, parcial e enviesado [biased])
da regulação estadual perante a regulação forçosa e natural da
própria vida. Em termos tais que o direito estadual ficaria sem­
pre condenado a observar princípios externos de justiça, neste
caso não transcendentes, mas imanentes às próprias relações
sociais. Neste tópico confluíram as correntes sociologistas e institucionalistas já referidas (cf. supra, 8.4.4.), bem como algumas
correntes críticas (cf. supra, 8.5.). Mas podem ser ainda incluídas
aqui, aquelas correntes que acham que, embora haja princípios
superiores de justiça que cabe ao Estado (democrático) definir,
a lei é uma forma inadequada - porque rígida, fechada e monó­
tona na sua aplicação - para exprimir esses princípios. Quan­
do muito, eles deveriam estar na Constituição, como meros prin­
cípios orientadores, sem sequer definirem exactamente o seu
campo de aplicação (fattispecie), cabendo aos juizes avaliar da sua
pertinência e hierarquizá-los em cada caso concreto; é esta a ori­
entação prevalecente no constitucionalismo norte-americano e
em alguma da doutrina constitucional europeia mais recente.652
Não falta, é claro, quem chame a atenção para os preços a pa­
gar, em termos políticos e em termos de política do direito, des­
ta orientação: não só se abre enfraquece substancialmente o prin­
cípio democrático de que compete ao legislativo estabelecer o
direito, como se abandona na mão dos juizes aquilo que é mais
fundamental no reconhecimento da existência de uma ordem
superior de valores - a sua aplicação à vida, que é isso que real­
mente interessa do ponto de vista da justiça deste mundo.653
652Cf. a bela síntese de Am aral, 1998, maxime, 314 ss.; A m aral, 2002.
653Sobre um a interpretação sócio-juridica deste novo constitucionalismo, Ferrarese, 2002 (cf. a minha recensão e com entário, em Themis, IV.7(2003).
Cultura Jurídica Europeia
469
O terceiro sentido do anti-legalismo, diz sobretudo respei­
to à forma abstracta, geral e imperativa das nomias da lei. A uma
concepção do direito como ciência das leis (como na Escola da
Exegese) ou como ciência dogmática dos princípios que delas
decorrem (como no conceitualismo) opõe esta corrente a velha
ideia do direito como prudentia, como "saber prático", no qual o
encontrar da solução não decorre do silogismo judiciário, mas
de uma espécie de auscultação normativa do caso concreto (cf.
supra, 5.6.2. A estrutura discursiva.) (ou, pelo menos, de uma
aplicação não-monótona de princípios normativos flexíveis a
cada caso concreto) (cf. Zagrebelsky, 1992,163 ss.).654
O quarto sentido do anti-legalismo é o de problematizar a
adequação da tecnologia disciplinar legalista-estadualista à re­
gulação da vida social, insistindo na pluralidade, quer das situ­
ações sociais a regular, quer das instâncias sociais de regulação.
8.6.2. Em busca de uma “justiça material”
O vigor anti-legalista das décadas que se seguiram à II
Grande Guerra não é uma simples consequência de movimen­
tos de natureza filosófica no domínio do direito. O trágico con­
texto político (ou mesmo civilizacional) dos totalitarismos con­
temporâneos e do cortejo de catástrofes por eles causadas - di­
taduras ferozes, genocídio, guerra - teve um enorme impacto
sobre a consciência jurídica e obrigou a repensar a função do
direito como garante de valores civilizacionais.
Uma coisa ficou clara. O formalismo da pandectística, com
o relativismo axiológico que lhe andava ligado (cf. supra, 8.3.3.),
não armava suficientemente os juristas para, enquanto juristas,
se oporem a projectos políticos e jurídicos que negassem os valo­
res fundamentais da cultura europeia. A demonstração disto vi­
nha da observação da realidade alemã, no período de entre guer­
ras. A constituição e a cultura jurídica da república de Weimar
651Com ;á se disse, estes princípio constituem norm as sem uma delimitação
da sua esfera de aplicação (sem fattispecie).
470
António Manuel Hespanha
eram filhas da ética formalista e axiologicamente neutral do kantismo e da pandectística. Qualquer que fosse a intenção teórica
original, a Teoria pura do direito ainda reforça este fechamento
da dogmática a considerações de ordem política ou ética. A legi­
timidade do direito (e do poder) fundava-se exclusivamente no
facto de ser estabelecido de acordo com os processos constitucio­
nalmente prescritos. Os seus valores de referência eram despro­
vidos de conteúdo (uma ética, um sistema de valores, uma cren­
ça religiosa, um sistema filosófico, uma visão mundo) e aponta­
vam apenas para a necessidade de observar uma forma (constitucionalidade orgânica e formal). Onacional-socialismo subiu ao
poder respeitando basicamente essa forma e, uma vez no poder,
instaurou uma nova forma que, por sua vez, legitimava a sua ac­
ção política. Mesmo descontando os que activamente colabora­
ram com o nazismo e, nomeadamente, com a sua política antisenmita,655 manietados pelo formalismo, raros foram, por isso, os
juristas alemães que recusaram a legitimidade de um direito que,
653 Cari Schmittt (1888-1985), por exemplo, organizou, em 1936, uma conferên­
cia sobre "A judiaria e o direito alem ão", onde, para além de enaltecer o "m ag ­
nífico com bate" de Julius Streicher, delegado de Hitler para a questão judai­
ca e condenado à forca por crimes de guerra no Tribunal de Nuremberga, fez
aprovar uma moção no sentido de omitir qualquer referência a académicos
judeus. Numa série de seis volumes destinados a identificar as nefastas in­
fluências da "judiaria" sobre o direito alemão, era expressam ene assinalada
a origem judaica de Hans Kelsen, o que explicaria o carácter abstruso da sua
teoria pura. Quando a Faculdade de Direito de Colónia pediu, em 1933, que
Kelsen fosse poupado à política de arianização do direito, Schmitt agiu em
conformidade com o seu anti-semitismo, tendo sido o único professor a re­
cusar-se a assinar a petição (cf. Detlev F. Vagts, 2002, 2157 ss.). A sequência
da vida de Kelsen sob o nazismo é assim contada por um seu biógrafo" Te­
mendo o resultado se a polícia o encontrasse em sua casa, o professor de di­
reito envolveu o seu velho revolver do serviço militar numa casca de banana
e deitou-o ao Reno. Fugiu com a família para Praga, onde, na sua primeira
liçao, fascistas apinhados no hall gritavam: "Tudo menos judeus e comunis­
tas ! Rua !". Ele continuou a ensinar, sob a protecção da polícia. No entento,
tendo sido descobertis planos para o assassinar [...]. fugiu com a família para
os EUA, em que lhe foi dada uma cátedra de ciência política, mas não de di­
reito" (Stewart, 1990. 273).
CuVUira^UT\à\c&'Europeia
progressivamente, se foi afastando, no plano internacional (direito
internacional, direito da guerra) e no plano interno (direito cons­
titucional, direito penal), das aquisições mais fundamentais da
cultura jurídica e política europeia. Nos restantes países sujeitos
a regimes totalitários ou autoritários, a situação foi semelhante,
embora a situação alemã se apresentasse como mais dramática,
em virtude do carácter monstruoso do nazismo, contraposto ao
tradicional brilho da cultura jurídica germânica.
No fim da Guerra, gerou-se, portanto, um movimento es­
pontâneo de refundamentação do direito em valores supra-positivos, indisponíveis para o legislador. Os grandes julgamen­
tos dos criminosos de guerra (de Nuremberga e de Tóquio) já
pressupunham a existência de um direito supra-positivo, em
face do qual pudessem ser consideradas como criminosas acções
permitidas pelas ordens jurídicas à sombra das quais tais acções
tinham sido praticadas. Mas a Lei Fundamental (1949) da Repú­
blica Federal Alemã estipulava expressamente, nos seu s §§ 20,
II/III, a vinculação do legislador ao direito, tendo sido entendi­
do, tanto pela doutrina como pela jurisprudência, que esse di­
reito não era tanto o direito positivo (o que seria trivial e com­
patível com uma visão estritamente positivista), mas um direi­
to não escrito depositado na consciência colectiva. Nem a Cons­
tituição escaparia a esta vinculação. Como se referiu numa de­
cisão (de 1953) do Tribunal Constitucional da R. F. A., "O direi­
to constitucional não consiste apenas nas proposições isoladas
da constituição escrita, mas também em certas proposições fun­
damentais e ideias condutoras, entre si internamente coerentes,
que se impõem a ela" ,656 Claro que isto podia não significar muito
mais do que a submissão aos quadros dogmáticos de uma or­
dem jurídica estabelecida, com o que o significado supra-posi­
tivo dos princípios ficava muito problemático.657Mas podia tam-
656 Cit. por Gõrlitz, 1972, II, 276; sobre as posições jusnaturalistas dos tribunais
superiores alem ães, v. síntese em W ieacker, 1993, 701 s.
657O entendim ento mais corrente - e não de todo arbitrários - Teoria pura do
direito orienta-se neste sentido (cf. Stewart, 1990, 297 ss..).
472
António Manuel Hespanha
bém remeter para princípios claramente supra-positivos e supradogmáticos, presentes na consciência colectiva.658
Por outro lado, nos Estados Unidos da América, esta mes­
ma re-valorização de sentimentos imanentes de justiça (e de bom
governo) - que, de facto, sempre escorara a interpretação extre­
mamente inovadora da Constituição - recebeu um novo folgo do
pensamento dito "comunitarista" . Um dos seus mais conhecidos
representantes, Amitai Etzioni,659 faz deste tema da existência de
um direito imanente e não redutível ao direito do Estado um dos
elementos daquilo que ele crê constituir o maior problema políti­
co-social dos nossos dias. Uma atitude individualista teria dissol­
vido a percepção dos laços comunitários e deformado os senti­
mentos éticos (nós diríamos sentimentos jurídicos espontâneos)
dos membros da comunidade, cujo ideal de bom governo se ori­
entaria agora exclusivamente no sentido de uma reclamação dirigida à justiça oficial - unilateral de direitos, sem uma consci­
ência dos deveres correspondentes. Por isso mesmo, a regulação
dos deveres sociais teria entrado num estado de dependência em
relação a uma definição legislativa das obrigações. O diagnósti­
co de um anterior livro de Mary Ann Glendon,660 tecnicamente
mais elaborado, vai no mesmo sentido. O liberalismo teria empo­
brecido a linguagem (e a sensibilidade política), reduzindo-a a um
"discurso [paleio] reivindicativo" (rights talk), desconhecedora dos
deveres e constrangimentos objectivos das relações sociais e obri­
gando, por isso, a um pouco económico esforço do Estado, no sen­
tido de impor pelo direito oficial atitudes que deveriam decorrer
de impulsos espontâneos.
O que não era muito fácil era fundamentar filosoficamen­
te este novo direito natural, cujo regresso se festejava.661
658Cf., v.g., a posição de E m st Bloch (1885-1977). Bloch, 1961.
“ ‘'E tz io n i,1995.
^ G len d o n , 1991.
661 Cf. Leo Strauss, Natural law and history, 1953.
Cultura Jurídica Europeia
473
É certo que não faltavam as críticas ao formalismo da ante­
rior filosofia do direito, de raiz kantiana, que se esgotava numa
exigência de liberdade individual.662 Mas substituir isto - que per­
mitia que, em nome das vontades individuais dominantes, da
vontade das maiorias, se impusesse um qualquer sistema de va­
lores - por uma referência axiológica com conteúdo material era
difícil. Pois a cultura europeia - com excepção das correntes liga­
das ao cristianismo, nomeadamente ao catolicismo (cf. infra, 8.6.3.)
- propendia para deixar de acreditar em sistemas religiosos ou
filosóficos de validade geral. E, com isso, era reticente em reco­
nhecer princípios jurídicos de valor absoluto e universal.663
Daí que, o novo jusnaturalismo tenha tomado uma de três
orientações.
Uma delas foi a de considerar que, nos termos de uma teo­
ria evolucionista e progressista da história (inspirada em Hegel),
existiam aquisições ético-jurídicas irreversíveis da humanidade,
ligadas, nomeadamente, a uma progressiva revelação da digni­
dade humana. E que essas aquisições não poderiam ser postas
em causa pela lei positiva, constituindo antes uma medida da
legitimidade desta.664 A actual tendência de criar um direito supra-estadual, em matéria de direitos humanos ou de crimes con­
tra a Humanidade, radica neste (problemático e, de qualquer
modo, susceotível de uma série de leituras enviesadas e etnocentristas) optimismo progressista.
662 Cf. E. Kaufm ann,
K ritik d er n eok a n tisch en R ech tsp h ilo so p h ie, 1921, 684; sobre
a sua crítica ao formalism o ético de Kant, v. W ieacker, 1993, 684 ss.
663 V., sobre isto, W ieacker, 1993, 712 (referindo, com o exem plo, as perplexi­
dades e discussões em tom o do aborto, da esterilização, do auxílio ao sui­
cídio, do divórcio, dos poderes parentais, das relações entre os sexos). V.
ainda, Kaufm ann, 2002, C.3.
664Foi a posição defendida, nomeadamente, pelo jusfilósofo marxista Em stB loch (N a tu rrech t u n d m en sch lich e W ü rd e [Direito natural e dignidade hum a­
na], 1961). H á reflexos disto na ideia de "acquis constitucional", que subja­
zia à teoria de não revisibilidade de certos artigos da Constituição portu­
guesa de 1976 (relativos às então cham adas "conquistas revolucionárias").
474
António Manuel Hespanha
Outra orientação foi a dos que apelavam para os ditames
da consciência jurídica de cada um que, perante situações con­
cretas, não podia deixar de ditar uma solução justa.665 Ou, pon­
do a questão de outra maneira, apelavam para os valores de que
as próprias situações da vida eram em si mesmas portadoras.
O direito decorreria, assim, da própria "natureza das coisas (Natur der Sache) " ,666 que tanto resistiria às intenções normativas
"artificiais" (eventualmente, contra natura) do legislador, como
seria capaz de sugerir, positivamente, soluções jurídicas adequa­
das ("ajustadas", gerechtige, "justas", richtige) ,667 As "coisas" tor­
nam-se, assim, numa fonte de direito, de onde decorreria um
"direito natural concreto". Em todo o caso, as coisas a que esta
corrente se refere não são as realidades sociais empíricas obser­
váveis nos termos da sociologia descritiva. Compreendem tam­
bém uma dimensão não empírica, normativa: o apelo para uma
certa ordenação, uma ideia condutora, uma "lógica" interna,
uma expectativa de desempenho de certos papéis pelos agen­
tes envolvidos. E isso que dá a estas "coisas" uma dimensão nor­
mativa e as transforma em elementos de ordenação (e não ape­
nas de mera reprodução da ordem existente).668
665 Neste sentido, já M ax Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale
Wertethik, 1927; v. W . W ieacker, 1993, 685 ss., 700 ss.; textos significativos
dos propugnadores desta ética material em A. Kaufm ann e W . Maihoffer,
Die ontologische Begründung des Rechts, D arm stadt, 1965.
666/.e., do hom em concreto em situações existenciais de relação tam bém con­
cretas. Cf. Kaufm ann, C., 2.2.4.4.3.
667V. Arthur Kaufmann, Analogie und Natur der Sache, 1965; E. Maihofer, Recht
und Sein. Prolegomena zu einer Rechtsontologie, 1954; Vom Sinn menschlicher
Ordnung, 1929. Com um sentido ligeiramente diferente, outros autores (H.
Welzel, Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, 1962) falam de "estruturas 16gico-materiais" (i.e., de exigências de um a lógica, objectiva dos valores jurí­
dicos que se imporia a todo aquele que quisesse pensar ou falar sobre o di­
reito); cf. Wieacker, 1993, 688 ss.;103 s., 226 ss; Kaufmann, 2002, C., 2.2.4.4.3.
668Esta observação pretende problem atizar os pontos de vista daqueles que
acham que o pensam ento da "n atu reza das coisas" é, por natureza, conser­
vador.
Cultura Jurídica Europeia
475
Outras correntes defendem que a pulverização e antinomia
dos valores jurídicos se deve apenas a mal-entendidos provo­
cados "erros de linguagem", por formas pouco rigorosas ou "so­
físticas" de expressão, já denunciadas por Bentham como usu­
ais no discurso jurídico. Daí que a clareza dos princípios jurídi­
cos pudesse ser estabelecida por uma rigorosa análise da lingua­
gem do direito. É esta a proposta dos que, influenciados pela fi­
losofia analítica da linguagem e pela lógica jurídica, apostam
num novo positivismo que reduzisse pretensas questões filosó­
ficas ou metafísicas a questões de "polícia da linguagem ". Em­
bora a intenção destas escolas "positivistas" não seja reconstruir
um "direito natural", elas acabam por instituir critérios (pelo
menos formais) para validar as proposições jurídicas e, também,
as proposições legislativas.669
Ainda outra orientação foi a dos que, na impossibilidade
de encontrarem valores certos e absolutos que limitassem o ar­
bítrio do legislador, mas não querendo, por outro lado, deixar
este completamente livre de estabelecer qualquer direito, con­
sideraram que, na falta de valores "naturais" que legitimassem
e limitassem o direito, deveriam valer como tal os valores "con­
sensuais" .
Algumas das correntes consensualistas partem de uma re­
novação do contratualismo primo-liberal, propondo que os va­
lores supra-positivos da ordem jurídica são o produto de um
contrato estabelecido entre indivíduos racionais e que, pelo fac­
to de o serem, têm que convir num catálogo de princípios racio­
nais de convivência. Para garantir que este contrato não está vi­
ciado, nem enviesado por interesses particulares ou pela desi­
gualdade real dos contratantes, estabelecem uma série de pres­
supostos processuais que devem presidir ao contrato: (i) ou que
cada contraente desconhece â sua situação real em relação aos
outros (o que o leva a decidir-se por princípios que não o pos­
sam prejudicar seja qual for essa situação - o famoso "véu de
“ 9Sobre as escolas analíticas, v. Kaufm ann, 2002,
476
António M anuel Hespanha
ignorância" proposto por John Rawls);670 ou que (ii) que o diá­
logo que precede o estabelecimento dos princípios de convivên­
cia seja "transparente e igualitário" (J. H aberm as).671 Apesar
destas cautelas, não é fácil escapar à crítica de que estes autores
partem da hipótese idealizada de um indivíduo (uni)racional,
ideia que contende com a existência de uma pluralidade de vi­
sões do mundo e, portanto, de "racionalidades" que convivem
no seio de uma mesma sociedade (mesmo de uma sociedade
"nacional" - conflitos de valores geracionais, conflitos de valo­
res relacionados com o género, com a oposição "urbano" - "su­
burbano" - "ru ral", etc.).
Outras correntes consensualistas simplesmente naturali­
zam o senso comum, tomando a-poblematicamente. Isto é típi­
co de uma época em que a massificação da cultura e da infor­
mação - quer extensivamente, ao mundializar a comunicação,672
quer intensivamente, ao incrementar brutalmente o impacto dos
meios de comunicação de massa sobre os indivíduos - reduziu
drasticamente os dissensos,673 criando uma cultura de base, ex­
pressa pelo senso comum, suficientemente forte para poder ser­
vir de apoio a tecnologias disciplinares duras como o direito. A
esta cultura superficial pertencem noções ingénuas de "direitos
humanos", "dem ocracia", "globalização", "multiculturalismo",
"ambientalismo", "terrorismo", sobre as quais se pretende cons­
truir uma ordem indiscutida (e, freqüentemente, considerada
como indiscutível).
Embora os consensualismos cultivem um relativismo de
base, negando-se a afirmar o carácter absolutamente racional ou
670 O consenso através de um a hipotética negociação em condições de "igual­
dade de op ortu n id ades": A th eory o f ju s tic e , 1972; trad. port., U m a teoria da
ju stiça , Lisboa, Presença, 1993.
671 O consenso ideal através de um hipotético "d iálogo livre de dom ínio de
todos com tod os": V orstu d ien u n d E rg ä n z u n g en zu e in e r T h eo rie d es kom m u ­
n ik ativ en H a n d eln s , 1984.
672C riando um a com unidade de com unicação e de cultura que tendencialmente abrangeria todo o m undo, a cham ada "aldeia global" (M. M cLuhan).
673 Culturas étnicas, culturas de grupo, idiossincrasias individuais.
Cultura Jurídica Europeia
477
natural das suas opções normativas, naturalizam (ou racionali­
zam) pelo menos a ideia de que "se deve viver consensualmente".674 Assim, por exemplo, as posições de A. Etzioni - a que já nos
refereimos -. Pretendendo refrerir-se a valores abrangentes, co­
muns, resvalam com facilidade para um moralismo baseado
numa visão pouco crítica do senso comum, ou mesmo para um
naturalismo (ou essencialismo) moral conservador,
Nesta crítica não incorre o pensamento neo-republicano,
para o qual o núcleo de princípios comuns de convivência con­
siste num conjunto mínimo - historicamente mutável e sem
quaisquer pretensões ontológicas ou naturalistas - de regras co­
muns de vida, estabelecidas na constituição (numa constituição
formal ou numa constituição "aberta", sempre provisória e ac­
tualizável), cujos conteúdos teriam que ser encontrados, sempre
arriscadamente, perante os casos concretos (v., supra, 3.3. "Uma
nota sobre "relativismo metodológico" e "relativismo moral" e
sobre o papel dos juristas, neste contexto).
Em diversas obras de grande profundidade e expressi­
vidade, o filósofo Zygm unt Bauman675salienta o modo como
se instaurou, por um processo continuado de atomização e in­
dividualização da sociedade, uma "liquefacção dos valores",
um indiferentism o moral, que teriam permitido estabelecer
form as despóticas de poder. Embora ele se refira sobretudo
à com unicação social, o diagnóstico pode fundamentar tam­
bém o triunfo de um consensualism o sem limites, nem con­
cessões ao dissenso. Do que se pecisaria, então, era de aumen­
tar a capacidade de reflexão, de vigília e de crítica em rela­
ção ao senso com um (dissem inado pelos códigos ou pelos
media), de modo a restaurar a complexidade da realidade (nes­
te caso, dos valores sociais conflituais, vigentes numa socie­
dade). E, redescoberta esta com plexidade, seria necessário
674 Crítica do consensualism o (visando, nom eadam ente, J. Habermas e J. Ra­
w ls), m ostrando o carácter "arbitrário" mesmo das ideias mais "sensatas"
e "con sen su ais" (com o as de dem ocracia, meritocracia, justiça distributi­
va) em W alzer, 1994; Zolo, 1987; Bauman, 2001.
675Baum an, 2000, 2001, 2002.
478
António Manuel Hespanha
revalorizar das capacidades autênticas de julgar de que cada
um, "em situação" (ou seja, de acordo com contextos cultu­
rais, existenciais e situacionais), dispõe.
È neste sentido que se pode falar de uma revalorização da
tópica jurídica ou teoria da argumentação.
A tópica é, como já se disse, o nome dado pela antiga teo­
ria do discurso (cf. supra, 5.6.2.3) à técnica de encontrar soluções
no domínio dos saberes problemáticos, ou seja, dos saberes em
que não existem certezas evidentes, como o direito, a moral, etc.
Nestes casos, a legitimação da solução encontrada não decorre
tanto da validade das premissas em que esta se baseia como no
consenso que suscitou no auditório. Aplicada ao direito, esta
ideia vem a colocar o juiz (ou o jurista) na primeira linha da ac­
tividade de achamento ou de declaração do direito, o qual, para
decidir um caso concreto, lança mão de argumentos (tópicos)
disponíveis (princípios doutrinais, precedentes, disposições le­
gislativas), no sentido de ganhar o assentimento (das partes, mas
também do público em geral) para a solução. Neste contexto, a
lei é apenas um dos argumentos, cuja eficácia argumentativa
dependerá tanto da sua consonância com o sentido concreto de
justiça vigente no auditório como do prestígio de que a forma
"lei" (e, em geral, a entidade "Estado") aí goze.676 Para além de
constituir uma crítica ao legalismo, a tópica constitui também
uma crítica ao normativismo, ou seja, à ideia de que a norma
geral e abstracta está no princípio de um processo de subsunção (cf. supra, 8.3.3.1) que conduziria ao achamento do direito.
Pelo contrário, a tópica defende que é o caso, com o seu carácter
concreto e situado, que sugere os argumentos ou pontos de vis­
ta relevantes, bem como que os permite hierarquizar.
676Obras clássicas da orientação tópica: Th. Viehweg, Toptk u n d Jurispru denz, 1953;
J. Esser, G ru n dsatz u n d N orm in der rechtlichen F ortbildu n g des P rivatrechts (Prin­
cipio e norm a no desenvolvimento jurídico do direito privado), 1956. A teo­
ria da arg u m en tação 'd ev e muito, tam bém , a Ch. P erelm an ( T r a ité de
Vargu m en tation , 1958 [em colaboração]); cf. sobre a teoria da argum entação,
no âmbito da teoria de aplicação das normas, Kaufmann, 2002, F.14. Para o
mundo jurídico americano, v. as notáveis obras de Jam es Boyd White (Whi­
te, 1 9 7 3,1984,1990) sobre o carácter argum entativo e retórico do direito.
Cultura Jurídica Europeia
479
A tópica parece representar, além disso, uma perspectiva
bastante adequada para analisar a função de julgar nos dias de
hoje. 'Em que o juiz está, pot dever de oíicio - e, até, pela sua si­
tuação proíissional - dependente dos critérios valor ativos do
Estado, expressos na lei. M as não está menos sujeito à influên­
cia e controlo da opinião pública, potenciados pelos media. Por
um lado, ele é objecto das múltiplas influências valor ativas dis­
paradas pela sociedade (por uma sociedade pluralista e comuni­
cativa). Por outro, a sua visibilidade mediática sujeita-o às reac­
ções da opinião pública em relação às suas decisões.677
Finalmente, há quem duvide dos consensos e que prefira
assumir claramente a existência de valores plurais irredutíveis
na sociedade.
8.6.3. Os jusnaturalism os cristãos
Como se viu (cf. supra, 7.1.1.), a ideia de que existem com­
ponentes indisponíveis na organização social e política (e, logo,
no direito) foi uma constante do pensamento cristão. Deus, ao
criar a natureza e o homem, estabelecera uma ordem e um pla­
no que não competiria ao homem refazer. O direito supra-positivo proposto pelo cristianismo é, assim, essa norma que provém
dos desígnios de Deus.678
Na Época Medieval, o jusnaturalismo cristão baseava-se so677Sobre o im pacto da intensíssima m ediatização do direito nos EU A sobre o
direito e a justiça (v.g., o caso O. J. Simpson) (v. inform ação em h ttp ://
w w w .law .u m k c.e d u /fa c u lty /p ro je cts/ftria ls/S im p so n /sim pson.htm ), v.
Sherwin, 2000.
678Encontrar inequivocam ente valores relativos à vida social e política na Re­
velação e na Tradição não é tarefa fácil. O próprio conteúdo de uma e ou­
tra são muito discutidos pelos teólogos (v., recentem ente, a notável síntese
das tradições teológicas, eclesiais e políticas, no seio do catolicismo de co­
nhecido teólogo católico Hans K ü n g ,, Küng, 2001). Igual dignidade de to­
dos os hom ens, dignidade da m ulher, dignidade do trabalho, separação
entre religião e política, mom ento do início da vida, dignidade do sexo, li­
berdade religiosa e de consciência, eis um a série de questões para as quais
pode haver, no seio da tradição cristã [ou m esm o católica; ou m esm o no
m agistério papal], várias respostas).
480
António M anuel Hespanha
bretudo na revelação (direito divino) e na autoridade eclesiásti­
ca (direito canónico), impondo-se, por isso, apenas aos crentes.
Embora se tendesse a crer que, na respublica christiana, lhe de­
vesse estar subordinado o direito temporal (cf. supra, 5.2.2.). Na
Época Moderna, a progressiva laicização da sociedade e do po­
der levou a que se tornasse progressivamente inadmissível uma
tal subordinação.679 As Igrejas cristãs conformaram-se com esta
separação entre o plano religioso e o plano temporal e, conse­
quentemente, deixaram de insistir na subordinação do direito
temporal ao direito e moral religiosos.680 Mas, em contraparti­
da, passaram a insistir em que o núcleo dos princípios religio­
sos tinha um carácter "natural", obrigando, por isso, todos os
homens, independentemente das suas crenças.
A Igreja Católica depois de ter tentado, durante a primeira
metade do século XIX, combater frontalmente o "modernismo"
(religioso) e o "liberalismo" (político) - ou seja, a laicização do
poder político temporal (separação entre a Igreja e o Estado, li­
berdade religiosa, registo e casamento civis, a-confessionalidade
do ensino)681- acabou por adoptar uma posição mais recuada, que
679 Cf., em Portugal, a proibição do uso do direito canónico nos tribunais civis
decretada pela Lei da Boa Razão (cf. su p ra , 174).
“ "C om excepção das correntes "integristas" (que se conservaram até hoje, quer
no m undo católico, quer no m undo protestante). Estas continuam a defen­
der que a dimensão religiosa cobre, p o r in teiro , na ín teg ra, a vida hum ana,
nada lhe sendo alheio e, portanto, nada se podendo alhear do magistério
divino. Daí que condenem todas as form as de "liberalism o" (v.g., a liber­
d ade religiosa, o carácter laico e a-confessional do Estado) e que conside­
rem que o direito está limitado pelos princípios da religião.
681 O liberalismo foi condenado pelo Syllabus e pela encíclica Q uanta cu ra (1864),
de Pio IX, ratificados pelo concílio do Vaticano I (1869-1870), o que não impe­
diu o desenvolvimento de um movimento católico liberal (La Mennais, Lacordaire, Montalembert), que está na origem da democracia cristã. O modernis­
mo - ou seja, tudo o que, desde a exegese bíblica até ao darwinismo e, em ge­
ral, o cientismo, passando pelo liberalismo, pela democracia e pela liberdade
religiosa, fosse contrário ao ensinamento tradicional da Igreja, baseado no neotom ism o - foi condenado na encíclica P a s cen d í D om in ici G reg is, de Pio X
(8.9.1907), que o definiu como "a síntese de todas as heresias". A situação só se
inverte com o concílio do Vaticano II (1962-1065). Sobre o modernismo católi­
co e a reacção que suscitou, por parte da hierarquia, cf. Schoof, 1970; Daly, 1980.
Cultura Jurídica Europeia
481
se traduziu em sublinhar a ideia da subsidiaridade do Estado pe­
rante os direitos naturais da pessoa e da família. Na realização das
finalidades humanas, o papel principal caberia à própria iniciati­
va da pessoa e à célula social básica que era a família. Ao Estado,
por direito natural, apenas caberia proteger e apoiar o desenvolvi­
mento pessoal e familiar, suprindo eventuais insuficiências des­
tas células sociais básicas (princípio da subsidariedade). Daí que
as esferas de actuação da pessoa e da família fossem considera­
das como zonas garantidas contra a intromissão do Estado, garan­
tidas por direito natural. Fundamentalmente, o que a Igreja preten­
dia era salvaguardar para os católicos (no plano do ensino, da po­
lítica da família, etc.) um "espaço livre" do império de um Esta­
do que era, em princípio, laico e indiferentista, mas - na prática frequentemente, ateu ou anti-religioso.682
Este "renascimento do direito natural"683baseava-se funda­
mentalmente na releitura que os teólogos oitocentistas tinham
feito de S. Tomás de Aquino ("neo-tomismo"), releitura que su­
blinhava os seus aspectos personalistas (i.e., centralidade da
pessoa humana, na sua dupla dimensão física e espiritual, defi­
nida como ente aberto aos outros e ao sobrenatural). Esta dupla
abertura à Humanidade e à Transcendência faria com que a dig­
nificação da Pessoa fosse inseparável da dignificação da Huma­
nidade e da dignificação do Sobrenatural. Daí que, em nome da
dignidade da pessoa, se deveriam corrigir os "excessos" do in­
dividualismo que pudessem pôr em causa os outros dois valo­
res. As principais linhas de força deste jusnaturalismo persona­
lista foram as seguintes.684
682Com o a Igreja não reconhece clara e abertam ente a liberdade religiosa se­
não com o Concílio Vaticano II, a sua posição não era a mesma nas situa­
ções em que os poderes tem porais eram católicos e a dissidência não cató­
lica. Aí, as concordatas não apenas ou torgavam privilégios à Igreja como
im portavam frequentemente restrições à liberdade de outras confissões. V.,
sobre o tem a da liberdade religiosa, M achado, 1996.
683A expressão é retirada do título de um livro que fez época, L. Chamont, La
renaissance du droit naturel, 1910.
684 Sobre o jusnaturalism o protestante, cf. W ieacker, 1993, 695 ss.
482
António Manuel Hespanha
Antes de tudo, a ideia de que o direito deve servir valo­
res éticos superiores, decorrentes da dignidade da pessoa hu­
mana, da dignidade do género humano e da dignidade do so­
brenatural.
No plano da liberdade pessoal, a doutrina social da Igreja
defendia que ao Estado competia proteger a pessoa humana, nas
suas dimensões física (incluindo proprietária) e espiritual. Os
direitos pessoais inerentes à dignidade humana (direito à vida incluindo a intra-uterina - ,685 à liberdade pessoal, à integridade
física, etc.) foram definidos como direitos naturais, que se im­
punham ao Estado e ao seu direito. Também a liberdade do es­
pírito, nomeadamente, a liberdade de pensamento e da sua ex­
pressão, foi considerada como um direito natural, embora com
as restrições acima apontadas. Dada a naturalidade da dimen­
são religiosa do homem686, aqui se incluía ainda (uma certa con­
cepção da) liberdade religiosa, bem como a liberdade de ensino
católico (incluindo o dever de o Estado laico o subsidiar). Em
todo o caso, o aberto reconhecimento das liberdades políticas e
culturais pelo pensamento católico foi muito retardado pelas já
referidas condenações do liberalismo e do modernismo; e, fre­
quentemente, enfraquecido pela constante insistência na ideia
de que o gozo dessas liberdades estava naturalmente limitado
pelo "bem comum", ideia que legitimava restrições muito im­
portantes ao alcance prático do reconhecimento destes direitos
naturais.
A mesma dignidade de direito natural teria a propriedade
privada, posta em causa pelas correntes socialistas,687 mas ago­
ra considerada como uma extensão da liberdade pessoal.
N'3 Condenação do aborto. A Igreja tam bém condena a eutanásia. Em contra­
partida, não condena a pena de morte nem a guerra.
6f"’ Esta naturalidade fundar-se-ia na referida abertura da pessoa hum ana ao
transcendente.
M7 Condenadas, em nome da "doutrina social da Igreja", pelas encíclicas Rerum novarum (1891), de Leão XIII, e Quadragésimo anno (1931), de Pio XI.
Cultura jurídica Europeia
O ^usnaturalismo católico insiste ainda rvo fundo natural da
instituição familiar. Acima da lei estariam a indissolubilidade do
casamento,688 a liberdade de procriar689e a de educar os filhos.690
Por outro lado, no plano do direito público, as ideias-força
são três.
A primeira é a da já referida limitação do Estado e do seu
direito pela moral e pelo direito natural. A segunda é a da fun­
ção subsidiária do Estado, que o impede, nomeadamente, de se
colocar a si mesmo ou à sociedade como o fim da vida política.
Por isso, a Igreja condenou (embora com ritmos e ênfases dife­
rentes) todas as formas de totalitarismo contemporâneo/’91 que
subordinavam o destino pessoal a objectivos colectivos. A ter­
ceira é a de que a actividade do Estado deve estar orientada para
o bem comum, por isso lhe cabendo, não apenas limitar os ex­
cessos do individualismo, como desenvolver acções tendentes
à protecção dos mais fracos. Neste sentido, a doutrina social da
Igreja orientou-se na direcção, contemporaneamente proposta
por outras correntes, de um "Estado social" (ou "Estado provi­
dência", ivellfare State, Wohlfahrtsstaat).
688E, por isso, se condenava o divórcio, m esm o para os casam entos civis. Em
Portugal, o divórcio "civil" não existiu, para os casam entos católicos, entre
1940 (Concordata com a Santa Sé) e 1975.
689 E, por isso, a ilegitimidade de quaisquer políticas públicas de planeam ento
da natalidade.
690O que explica a contínua luta da Igreja pelo reconhecim ento do direito ao
ensino particular; mas tam bém , a sua reacção contra as organizações de
juventude de conteúdo ideológico totalitário ou dirigista (com o as organi­
zações de juventude nazis ou fascistas, condenadas por Pio XI, em 1931 (Non
abbiarno bisogno) e 1937 (M it brcnncnder Sorgc); em Portugal, a Igreja não viu
com bons olhos a criação da M ocidade Portuguesa, em 1936.
6,1 D urante o pontificado de Pio IX. Mas foi muito menos nítida a oposição
prática da Igreja aos regimes totalitários (fascismo, nazism o) e autoritários
conservadores (nomeadamente, franquismo e salazarismo), durante o longo
pontificado de Pio XII. Alguns deles reclam avam -se abertam ente da pro­
tecção e apoio da Igreja. Era o caso das ditaduras ibéricas e de muitas dita­
duras conservadoras latino-am ericanas.
484
António M anuel Hespanha
8.6.3.1. O jusnaturalism o em Portugal
Em Portugal, a doutrina social da Igreja teve uma forte in­
fluência - e, na verdade, mais de sentido integrista do que de sen­
tido democrata-cristão - na ideologia do Estado Novo.692 No pla­
no das limitações do direito, a Constituição de 1933 dispõe que o
Estado reconhecia como limites "na ordem interna, a moral e o
direito" (art° 4o), embora este preceito nunca tivesse sido muito
valorizado, em termos de eficácia normativa, pela doutrina das
fontes de direito. E, porventura, no domínio do direito da família
que as influências do jusnaturalismo católico foram mais longe.
Embora não tendo posto em causa a laicidade do casamento, in­
troduzida pelo Código civil de 1867, nem a existência do divór­
cio para os casamentos civis, tal como resultava das leis republi­
canas da família (cf. supra, 174), a Concordata de 1940 impôs o
regime canónico (de casamento indissolúvel) a todos os casamen­
tos celebrados canonicamente. Chi seja, depois da completa des­
vinculação em relação à Igreja, operada pelas leis republicanas da
família, e da separação entre a Igreja e o Estado, a ordem jurídica
portuguesa voltou a prescindir da sua autonomia, entregando a
um ordenamento jurídico externo a regulação de importantes
domínios da vida social e introduzindo uma distinção entre os
cidadãos baseada nas sua crenças (o que contrariava a constitui­
ção laica do Estado e o conceito de liberdade religiosa).
Na doutrina jurídica, a inspiração do jusnaturalismo católi­
co marca a obra de alguns juristas destacados, como Guilherme
Braga da Cruz693e Manuel Gomes da Silva,694 mas também Marcello Caetano, Cabral de Moncada e José de Oliveira Ascensão.
Em todo o caso, ela não desempenhou um papel relevante na su­
peração do positivismo legal do Estado Novo. De facto, uma vez
que a hierarquia da Igreja apoiava o Estado Novo e que a maior
692 V., sobre o tem a, Cruz, 1992.
693 Cf. Direitos da família, da Igreja e do Estado, s.l., s.d.
694 Esboço de uma concepção personalista do direito, 1964.
Cultura Jurídica Europeia
485
parte dos juristas católicos se situava também na sua área ideoló­
gica, a invocação do direito natural foi mais utilizada para legiti­
mar o direito do regime, como "expressão da tradição cristã" e
da doutrina social da Igreja,695 do que para o pôr em causa.
Muito mais influente e eficaz no sentido da correcção dos
excessos do legalismo foi, a partir dos finais dos anos '60, o antilegalismo proposto, em nome da Justiça como valor regulativo
supra-positivo, por António Castanheira Neves, que tem forma­
do, do ponto metodológico, gerações de juristas.696
Já depois da revolução de 1974, o jusnaturalism o teve
uma voga algo inesperada. Perante as inovações, quer do pe­
ríodo pré-constitucional, quer da Constituição de 1976, for­
mou-se uma corrente doutrinal que defendia que os critérios
do legislador não constituíam os únicos, nem porventura os
decisivos, padrões de decisão jurídica. Por outras palavras,
nem o Estado, nem a Revolução, eram donos da Justiça. Esta
pairava como uma ideia ou princípio regulador, de contor­
nos algo indefinidos, mas portadora de exigências norm ati­
vas concretas, que os juristas, como seus sacerdotes, deveri­
am explicitar nos casos concretos. Essas exigências eram, des­
de logo, as postas pela dignidade da pessoa humana, tal como
era concebida na área cultural a que Portugal pertencia, a
Europa ocidental; mas tam bém a dignidade e independência
(em relação ao Estado e à sociedade) dos tribunais, a não re­
troactividade das leis, a garantia de um processo justo, etc.697
Este jusnaturalism o (em que comungavam alguns que eram
695 M oncada, 1966.
696O ensino de C astanheira Neves dirigiu-se, inicialmente, contra o legalismo
dom inante nos anos '6 0 e '70 (Questão de facto e questão de direito, Coimbra,
1976; O papel do jurista no nosso tempo, Coimbra, 1968); mas, depois, também
contra a legalidade revolucionária (que considerava ofensiva de componen­
tes do princípio da justiça: autoridade do Estado, competência responsá­
vel, estabilidade, objectividade, igualdade) e mesmo contra a constitucionalidade pós-revolucionária. Cf. Neves, 1976, 34 ss.
697Cf. Neves, 1 9 7 6 ,1 4 , 22 s., 34 s., 220.
486
António Manuel Hespanha
legalistas convictos no período do Estado Novo) voltou-se
mesmo contra a Constituição de 1976, que - com o seu pro­
jecto socialista - violaria uma "ord em de valores", a do Esta­
do de direito euro-ocidental, considerada como civilizacionalmente adquirida. Alguns autores chegavam mesmo a pensar
que, dada a sua carga social-m arxista, a Constituição contra­
riava a natureza pacífica e doce do povo português...698 Foi
neste contexto que se difundiu, em Portugal, a ideia de "cons­
tituição m aterial" (não escrita) em face da qual a constituição
positiva podia ser inconstitucional.699
8.6.4. O pós-modernismo jurídico
A ideia das inevitáveis limitações do direito estadual está
também presente nesse estilo cultural do último quartel do sé­
culo XX a que se tem chamado "pós-m odernism o".700
O pós-modernismo representa, em geral, uma reacção con­
tra as tendências generalizadoras e racionalizadoras da "moder­
nidade", ou seja, da época da cultura europeia em que - desde o
Ihiminismo até ao cientismo triunfante (no domínio das ciênci­
as duras e no domínio das ciências sociais) da nossa época - se
698 H õrster, 197 7 ,1 2 4 .
699V., sobre o tema, Taylor, 1989, maxime, cap. Ill ("The affirmation of ordina­
ry life"); Canotilho, 1978, 16 ss. Sobre a m esm a ideia, acerca da situação
constitucional na República Federal Alem ã, cf supra, 174.
700Sobre o pós-m odernism o em geral, a bibliografia é, hoje, inabarcável. Tex­
to fundador, Lyotard, 1979; panoram a, Jencks, 1992; impacto nas ciências
sociais, Rosenau, 1991; crítica, Callinicos, 1990 (de um ponto de vista m ar­
xista); Centore, 1991 (crítica dos fundam entos filosóficos); do ponto de vis­
ta da ética, Bauman, 1993. Em Portugal, v. Ribeiro, 1988; Hassan, 1988 (todo
este núm ero da revista se ocupa do pós-m odernism o, tendo outros textos
de interesse). Sobre o pós-m odernism o político, v. A. M. H espanha, "O
poder, o direito e a justiça num a era de p erplexidades", A dm inistração.
Revista da administração pública de M acau, 15(1992) 7-21; Santos, 1994, 69140. Sobre o pós-m odernism o jurídico, v. Canotilho, 1991, 9-23; Santos,
1988a, 1988b, 1989, 2000; Gonçalves, 1988, Douzinas, 1991; Minda, 1995;
Litow itz, 1997; Santos, 1995, 2000.
Cultura Jurídica Europeia
487
crê, por um lado, que o nível mais adequado para conhecer e
organizar é o geral, o global, e que, por outro lado, esse conhe­
cimento e essa organização são progressivos e aditivos, repre­
sentando vitórias sucessivas sobre a irracionalidade e a desor­
dem. Os seus valores centrais são, portanto, a generalidade e a
abstracção, a racionalidade, a planificação e a hetero-disciplina,
a funcionalidade. A reacção pós-modernista dirige-se contra
tudo isto. Ao geral, opõe o particular; ao gigantismo do "gran­
de" opõe a beleza do "pequeno" (small is beautiful); à eficácia da
perspectiva macro opõe a subtileza da perspectiva micro; ao sis­
tema opõe o "caso "; à hetero-regulação, a auto-reguíação; ao
funcional opõe o lúdico; ao objectivo opõe o subjectivo; à "ver­
dade" opõe a "política" (o "testem unho", o "com prom isso").701
Neste "espírito de época" - que domina a cultura ociden­
tal desde os inícios da década de '80 - confluem muitas influên­
cias, por vezes desencontradas.
De Friedrich Nietzsche, sobretudo através de Michel Fou­
cault, o pós-modernismo herda um relativismo radical, em re­
lação à validade, quer do conhecimento, quer dos valores.702 No
plano existencial, isto dá origem a uma atitude de espírito que
se exprime mais sob a forma da crítica irónica ou de uma super­
ficialidade provocadora do que sob a forma da angústia. Como
não há a certeza de nada, mas como - apesar de tudo - se deve
continuar a viver, o melhor é brincar com tudo, tratar o impor­
tante como se fosse banal.
No plano dos saberes sociais, este relativismo leva à recu­
sa de teorias gerais que tenham a ambição de fundar universal­
mente os valores ou os métodos ("grandes narrativas, meta-narrativas", J. Derrida), bem como à valorização do multiculturalismo, do pluralismo, da heterogeneidade, da conflitualidade de
paradigmas e de valores. Mas leva também, tanto a uma leitura
política de todos os discursos (não podendo ser verdade, são
701Síntese da agenda pós-m odem ista: Litowitz, 1997, 7-19.
702Sobre Nietzsche e o direito, Valadier, 1998; Litow itz, 1 9 9 7 ,4 2 -6 4 ; sobre Fou ­
cault, Litowitz, 1997, 64-86; H unt, 1994.
488
António M anuel Hespanha
instrumentos de manipulação), como à rejeição do vanguardismo, à valorização do lúdico, à reapreciação do quotidiano e do
senso comum (popular culture) e a um certo decadentismo.
Ainda a M. Foucault (mas também a Clifford Geertz), vaise buscar a ideia, ligada estreitamente ao referido relativismo,
de que os paradigmas culturais e epistemológicos têm um ca­
rácter histórico e aleatório, de que não são "regimes de verda­
de" (mas apenas, como dizem os lógicos ou engenheiros do co­
nhecimento, "universos de crença").
Esta ideia de que os saberes, os discursos, constituem sis­
temas aleatórios de sentido, em que não existem relações neces­
sárias entre os significantes e os significados é responsável por
aquilo a que se tem chamado a "viragem linguística" (linguistic
turn) e que tem caracterizado a cultura pós-moderna, do direito
à história. Saberes, sistemas de valores, modelos de comporta­
mento, são encarados como discursos, obedecendo a códigos
"locais" que devem ser desmontados para se desvendar o códi­
go que os pre-formam e lhes dá sentido. Ou seja, toda a "cons­
trução" (de verdade, de rigor, de bondade, de justiça, de bele­
za) que, com essas práticas se quis fazer, toda a sua estratégia
visando aparecer como sólidas e credíveis, são sujeitas a uma
crítica que visa desvendar o arbitrário que está na sua origem.
E a esta intenção de crítica, desmitificadora (e desmistificadora) ligada à "viragem linguística" que se tem chamado "desconstrutivismo". Todas as imagens, intuições e conceitos que orien­
tam o quotidiano e os saberes são tratados como figuras do dis­
curso, como topos literários, e sujeitos a um rigoroso escrutínio.
Exemplar é toda a crítica que se vem fazendo, desde os traba­
lhos de M. Foucault à noção de "sujeito", i.e., à ideia de que, su­
portando os nossos actos e dando-lhes coerência e continuida­
de, existe um substrato pessoal caracterizado pela unidade, pela
racionalidade e pela consciência. Privados de qualquer substrato
ontológico e de qualquer referência à verdade, os saberes são
devolvidos para a categoria de discursos de tipo literário, de
narrativas; regulados, sim, mas por uma gramática objectiva dos
próprios textos, embora esta se possa relacionar, de diversas
maneiras, com a natureza da produção destes (cf. supra, 3.2.4.).
Cultura Jurídica Europeia
489
No estudo das culturas, a viragem linguística teve um pa­
ralelo na insistência no carácter "local" dos valores culturais, ou
seja, das representações, crenças, disposições emotivas ou cate­
gorias da sensibilidade. Valores que devem ser identificados a
partir de uma interpretação "densa" (thick) ou "profunda" (deep)
dos comportamentos (deep interpretation, C. Geertz), de uma es­
pécie de "psicanálise da vida quotidiana" (E. Goffman) das di­
versas culturas. Este ponto de vista retira qualquer necessidade
ou universalidade aos valores de uma qualquer cultura, nome­
adamente, aos valores da cultura ocidental; e torna-se, assim,
numa crítica a todas aquelas leituras da história que a vêem
como um processo de evolução dirigido para o modelo ociden­
tal conhecido como "sociedade moderna" (como, por exemplo,
a "teoria da modernização", Modemisierungstheorie).
A esta tendência cultural para recusar valores universais e
para ligar os valores a contextos culturais ou discursivos "locais",
que contem em si mesmos cs seus sistemas de sentido, e que, a
partir deles, interpretam as coisas e os comportamentos, cons­
tróem as suas imagens locais, e lhes dão significados e avaliações
também locais, correspondeu o desenvolvimento de uma teoria
dos sistemas, que realça justamente estes traços de "fechamento"
dos sistemas e que se tomou, por isso, num dos suportes teóricos
adequados à teorização do pós-modemismo. Trata-se da teoria
dos sistemas auto-poiéticos,703 a que nos referiremos mais tarde e
que constitui um modelo muito adequado para pensar os novos
objectos culturais criados pelo pós-modemismo.
Finalm ente, do ponto de vista sociológico,704 tem-se dito
que o capitalism o de consumo e o impacto das novas tecno­
logias da com unicação criaram uma cultura m assificada, pe­
riférica ou autónom a em relação a qualquer tipo de dirigis-
703Auto-poiesis é um term o de origem grega que significa auto-criação. Foi in­
troduzido na linguagem sociológica contem porânea pelo construtivismo
radical (N . M aturana, F. Varela, N. Luhmann). Sobre a sua aplicação ao di­
reito, v. A m au d , 1993.
™Cf., v.g., Turner, 1991, 5 ss.
490
António M anuel Hespanha
mo elitista ou vanguardista, auto-centrada e dotada, para
mais, de uma capacidade de influir na própria cultura das
elites. Dito de outro modo, a cultura das elites, dependente
de sistemas de consumo e de com unicação m assificados (au­
diências, número de espectadores, top ten, número de alunos
inscritos num curso), tem que se adaptar às expectativas do
público consumidor. Com o que se atinge o paradoxo de os
fazedores de opinião (políticos, jornalistas, intelectuais) serem
obrigados a assumir os valores do senso comum, tal como eles
resultam das sondagens e dos volumes de vendas dos produ­
tos culturais (níveis de audiência televisiva e radiofónica, ní­
veis de venda dos livros [top-ten]. Com isto, a cultura das eli­
tes tende para a assunção dos valores da cultura popular.
Muitas vezes, justifica-o com a invocação dos valores da de­
mocracia (populismo), criando no público o sentim ento de
que ele é o verdadeiro criador cultural, perante o qual qual­
quer outro perde a legitim idade. O bom, o belo e o verdadei­
ro tem que ser, ao mesmo tempo, fácil, popular, esperado e
acessível. Ou, mais radicalm ente, tudo o que é fácil, popular,
esperado e acessível é, por isso mesmo, bom, belo e verdadei­
ro.705 Dada esta hegem onia da periferia sobre o centro, do re­
ceptor sobre o criador, a cultura pós-moderna - por um ale­
gado (mais ou menos cínico) respeito democrático ou por uma
assunção da criatividade hum aná que se exprime no irreflec­
tido da vida de todos os dias - tende a criticar (ou a problematizar) tudo o que possa ser visto como uma imposição ao
quotidiano e ao senso comum: uma m ensagem cultural mais
exigente, um efeito estético menos esperado, um projecto de
reorganização ou de racionalização social. Um outro efeito
desta dependência da cultura das elites em relação a um au-
705É contra este tipo de indiferença cultural a que se dirige a crítica de Z. Baum an em Comrnunity, quando denuncia a nova trahison des clercs, que con­
sistiria na indiferença (ou no quietismo) éticos, na demissão de um papel
crítico do senso com um e orientador do diálogo sobre os valores na socie­
dade contem porânea (cf. Baum an, 2001).
C ultura ]u rídica Europeia
491
ditório de massas é o cultivo de expedientes emotivos capa­
zes de suscitar a adesão. Com o que a cultura moderna se
aproxim a da busca da em otividade excessiva que caracteri­
zou, tam bém, a cultura barroca (e, de certo modo, a cultura
rom ântica).706
O utras vezes, porém, o pós-m odernism o apresenta-se
como menos conformado e mais crítico em relação ao senso
comum, procurando uma via crítica pelo exagero e caricatu­
ra do senso e gosto com uns (kitsch) ou por uma utilização
brincalhona dos símbolos da vida e da cultura quotidianas
(v.g., em brulhar monumentos [como o faz Cyril Christos] tal
com o, no quotidiano, se em brulham as m ercadorias). Pode
dizer-se, com alguma razão, que o cepticism o (ou mesmo nii­
lismo) que caracteriza a atitude pós-m oderna não deixa gran­
de espaço para uma atitude crítica perante os valores dom i­
nantes no sentido comum. Este espaço situar-se-ia, em todo
o caso, algures entre o descrédito da razão e um desprezo senso-com um , mais ou menos acompanhado pelo sentido do seu
poder, actualmente esmagador, e da impotência (mesmo episte m o ló g ic a ) p e ra n te ele. Por outro lado, se o senso com um
representa uma adesão ingénua e a-crítica a valores, a atitu­
de pós-m oderna reclama esse direito também para os que re­
flectem e criam (numa palavra, os intelectuais): também eles
terão legitim idade para afirmar e querer, sem ter que ju stifi­
car racionalm ente as suas opões. Com a vantagem ética e po­
lítica de que, assumindo as suas opções como isso mesmo meras opções - não caem no dogmatismo típico de alguns dos
neo-racionalism os contem porâneos, mesmo os mais liberais.
E por isso que - por muito que isto irrite os seus opositores o pós-m odernism o nem sempre é sinónimo de niilismo, cons­
tituindo, em alguns autores, o fundam ento de uma ética (v.g.,
Bauman, 1993) ou de uma política (v.g., Santos, 2000) (cf., ain­
da, 3.3. ").
706T u m er, 1991, 5-8.
492
António Manuel H espanha
No domínio do direito, esta sensibilidade desdobra-se em
diversas perspectivas, todas elas convergentes no sentido de des­
valorizar o direito - geral, abstracto, heterónomo, planificador 707
- do Estado.
Salientaremos alguns destas perspectivas.708
8 .6.4.1. Direito do quotidiano
Característico desta constelação estilhaçada de sistemas
jurídicos autónomos seria o direito do quotidiano.709 A vida quo­
tidiana constitui, de facto, um mundo de múltiplos níveis e
formas de organização; de uma organização ao mesmo tempo
irreflectida (espontânea) e dada como assente (takenfor granted).
Para as concepções jurídicas tradicionais, cabia ao direito regu­
lamentar (racionalizar) este mundo dos factos (brutos). É certo
que já tinha havido propostas de uma certa valorização jurídica
desta dimensão "factual" da vida, nomeadamente pelas corren­
tes da metodologia jurídica que insistiam em que os factos eram,
em si mesmos, portadores de valores embebidos que não podi­
am ser ignorados pelo direito (v.g., ideia de "natureza das coi­
sas"; cf., supra, 8.6.2. ). Mas, agora, os pontos de vista são mais
radicais. A vida quotidiana (everyday life) constitui o mais autên­
tico (justamente porque espontâneo, não mediado por projectos
culturais heterónomos, enraizado nas condições concretas da
existência) e mais real e efectivo dos mundos humanos. As nor­
mas que aí se produzem e enformam (melhor do que dirigem)
os comportamentos constituem, por isso, o mais autêntico e efec­
tivo direito, justamente porque é a-problemático (taken fo r gran­
ted), irreflectido e perfeitamente adequado às situações.710
707Em vários sentidos: no de que aplana (tom a plana, norm alizada) a realida­
de; e tam bém no de que a planifica (i.e., lhe im põe fins, em nom e de um a
evolução racional).
708Para um útil p anoram a, com referência, sobretudo, à literatura am ericana,
Schepelle, 1994.
709Cf. Sarat, 1993.
710Cf. Sarat, 1993, 2 ss. (conceito de quotidiano).
Cultura Jurídica Europeia
493
Austen Sarat sintetiza muito expressivamente este novo
modelo de transacções entre o direito e o quotidiano: "Visto des­
te modo, o quotidiano é um domínio de acção tanto como de acon­
tecimentos, tanto de produção como de consumo. Uma vez que
ele é o palco de acção e de produção, podemo-nos voltar para o
quotidiano para ver de que modo o direito é aí restabelecido e
refeito, muito fora dos seus claramente reconhecidos e marcados
locais oficiais de elaboração. O direito procura colonizar o quoti­
diano e dar-lhe substância, capturá-lo e mantê-lo sob o seu do­
mínio, amarrar-se a si mesmo à solidez do quotidiano e, ao fazêlo, solidificá-lo ainda mais. Mas, uma vez que o quotidiano é uma
força em movimento e um choque de forças que nunca se reve­
lam totalmente, o direito nunca o pode capturar ou organizar com­
pletamente. O direito, muito simplesmente, não acontece ao quo­
tidiano; ele é produzido e reproduzido nos encontros do quotidi­
ano.711 Como afirma Michel de Certeau, os cidadãos-consumidores fazem "dos rituais, representações e leis que lhes são impos­
tas algo de muito diferente do que os seus autores tinham em
m ente"" ("Editorial introduction", Law in everyday life, 7 s.).
Assim, o mundo do quotidiano é:
(i) Um mundo de produção de normas. Umas, completa­
mente autónomas, surgidas dos mecanismos da vida de
todos os dias (normas de comportamento familiar, nos
grupos de amigos, no quotidiano profissional, nas rela­
ções entre os sexos, etc.). Outras, partindo de normas de
direito oficial, mas transformando-as, adaptando-as, re­
agindo contra elas.712
(ii) Um mundo não coerente de normas. Já que as práticas
humanas se organizam numa infinidade de cenários - a
família, a profissão, o lazer, as relações formais, as relações
711Cita Yngevsson, quando este afirma "o espírito do direito, embora corpori­
zando as preocupações de um a elite profissional poderosa e dominante, não
é simplesmente inventado neste topo, mas transform ado, desfiado e rein­
ventado em práticas locais".
712Referimo-nos aqui às múltiplas refracções que o direito oficial sofre na prá­
tica.
494
António Manuel Hespanha
informais - cada qual gerando padrões de comportamen­
to autónomos e não transferíveis nem generalizáveis, cu­
jas aceitação e adequação ao contexto são apenas "locais",
(iii)
Um mundo de normas "não intencionais". Na vida quo
tidiana, de facto, o peso da rotina e do senso comum faz com
que as pessoas se demitam da reflexão sobre as situações
assim como de projectos bem claros de acção. Esta é sobre­
tudo produto de automatismos. Mas a própria rotina e senso
comuns que encaminham a acção também não são estru­
turas reflectidas ou funcionais. Estão aí e são aceites como
tal. As suas normas assemelham-se a regras aleatórias de
jogo, a rituais, a acasos, a algo que funciona por e para si
mesmo, como que cego a racionalidades e a finalidades.
Para além disso, neste nosso mundo contemporâneo de infor­
mação super-abundante, também os mass media constituem "reali­
dade". Através, nomeadamente, do cinema e da televisão, criamse imagens ou representações da "realidade" que se transformam,
para os espectadores-consumidores na própria realidade. O mun­
do e a vida são substituídos pelas imagens do mundo e da vida cri­
adas pelos media. Com um impacto até agora desconhecido, pois
as novas imagens em movimento podem ser repetidas e exporta­
das sem limites de tempo e de espaço. As suas potencialidades de
modelar a percepção e o imaginário foram imensamente reforça­
das, em relação ao que acontecia quando a comunicação era ape­
nas escrita, ou mesmo, apenas impressa. Para mais, como refere
Richard Sherwin,713 "A proliferação de imagens visuais [...] na so­
ciedade contemporânea foi acompanhada por uma mudança cog­
nitiva importante. O estilo linear de pensar (ou fluência interpretativa) característica da cultura baseada na imprensa compete agora
com o que pode ser denominado de estilo cognitivo "associativo",
um estilo característico da nossa sociedade actual, saturada de ima­
gens. Como escreve Richard Lanham, estamos mais habituados a
vaguear na superfície dos écrans. Olhamos para os sinais e para os
símbolos que fluem mais do que através das palavras impressas para
713 Sherwin, 2000
Cultura ]ur\d\ca Europeia
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os sentidos que elas possam oferecer [ .. Ou, como gostam de di­
zer certos pós-modemistas, se o lá existe algum sentido, ele está todo
na superfície: aparecendo e desaparecendo, sendo criado e recria­
do pelo produtores de imagens e pelos espectadores à medida que
vamos podendo controlar o fluir das imagens que vemos e a or­
dem pela qual as vimos."714 Esta tendência é-nos familiar. Todas
as noites - zapping pelos canais da TV ou seguindo o estilo hiperquinético e fragmentário doe mais recentes estilos de narração fílmica (v.g., nos filmes do Oliver Stone, como JFK, 1991, The Doors,
1991, ou Natural Bom Killers, 1994; ou no filme de Wong Kar Wai,
Chumking Esxpress, 1994), em que os cortes rápidos substituíram a
composição de sequências longas e explicadas usadas por realiza­
dores mais tradicionais, como John Ford ou Otto Preminger 715 -,
habituamo-nos a uma visão do mundo caracterizada por (i) uma
percepção fragmentada e pluralista da realidade (ii) uma recusa de
normas fixas de (iii) uma necessidade de "compreensão" (um pro­
cessamento mental) instantânea, (não reflectida, "superficial") das
imagens (iv) um pensamento "associativo", que corresponda à na­
tureza multilateral, paralela da informação que nos é fornecida.
Tudo isto criando uma "consciência mais aguda da contingência,
do acaso, da incerteza, da multiplicidade (da verdade e da razão,
bem como de nós próprios e da chamada realidade social"
(Sherwin, 2000, 235) e reprimindo o pensamento dicotômico que
caracterizou o Duminismo (e o direito). Podemos seguramente fa­
lar de uma "queda do Império" - como uma narrativa única e ofi­
cial feita de Verdade e de Direito.716
No livro que vimos citando, Richard Sherwin estuda o impac­
to desta civilização dos media, designadamente, da TV e do cinema
sobe o direito. Segundo ele, à actual "popularização do direito"
corresponde uma adaptação, não apenas das normas, mas também
do próprio estilo judicial de formação da convicção, ao estilo de
714Sherwin, 2000, 6.
n5 Id, ibid., 19.
716Cf. A rthur Austin, The Empire Strikes Back. Outsiders and the struggle over le­
gal education, New York, NYU Press, 1998
496
António Manuel Hespanha
narrativa que domina os filmes e as séries televisivas, nomeadamen­
te aquelas que se ocupam do mundo jurídico e judicial ou que o
têm como ambiente. Jurados e júris tendem a compreender o caso
jurídico de acordo com clichés e estereótipos aprendidos na cultu­
ra televisiva e fílmica mais popular. E, por isso, os próprios opera­
dores jurídicos - advogados, promotores de justiça, juizes - tendem
a expor os seus casos utilizando esses mesmos modelos.717
8 .6 .4 .2 . O direito com o universo simbólico
Para as correntes do pós-modernismo é, como se disse,
muito forte a consciência de que a produção dos resultados dos
saberes (e, também a do saber jurídico) não é facilmente impu­
tável, apenas, à reflexão ou às intenções dos seus cultores. Cada
saber é o produto de uma prática específica (ou "local") da qual
fazem parte preconceitos, tradições intelectuais, redes de comu­
nicação, finalidades práticas, micro-conflitos simbólicos ou sócio-profissionais. Tudo isto lhe é específico e condiciona os seus
resultados. E inútil, portanto, ver por detrás dos conceitos, teo­
rias e propostas de acção formulados por um saber uma qual­
quer racionalidade superior; como é inútil acreditar demasiado
na eficácia externa (i.e., sobre a realidade) das suas propostas.
7,7Sherwin não crê que esta dissolução do direito na super-abundâncis de sen­
tido desta hiper-realidade frenética de um a hiper-realidade criada pelos me­
dia (com a consequente indiferença axiológica) benéfica em si m esm a. Mas
crê, um pouco na linha, antes apontada de Z. B aum an (cf., supra, 3.3. "U m a
nota sobre "relativism o m etodológico" e "relativism o m oral" e sobre o pa­
pel dos juristas, neste contexto.) que ela pode favorecer uma tentativa de
construir valores com uns sobre o sentido da diferença de valores presen­
tes na com unidade, justam ente confrontando os valores acríticos com os
sentidos "reflectidos" da tradição jurídica (quer no plano dos conteúdos precedentes, princípios e tópicos; quer no plano processual - técnicas de
raciocínio e de avaliação da prova). C om o escreveu Derrida: "ler de outro
modo ... significa sem pre passar pela disciplina clássica e nunca abandoná-la ou banalizá-la" (Derrida, 1998). Neste sentido, o direito actuaria como
um rem édio contra a insegurança e o cepticism o e poderia, tam bém pelo
seu im pacto mediático, prestigiar form as não arbitrárias (raciocinadas, ra­
zoáveis, previsíveis) de resolução de conflitos.
Cultura Jurídica Europeia
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Tudo isto se reflecte na tendência para destacar, ao anali­
sar o saber jurídico, as suas dimensões não reflectidas e não fun­
cionais. Os resultados da dogmática jurídica nem são fruto de
uma razão jurídica universal, nem têm um grande impacto di­
recto sobre a vida.
Esta perspectiva tem algumas conseqüências importantes.
Por um lado, o destaque dado aos aspectos meramente sim­
bólicos ou não regulativos do direito. Ou seja, de que muitas nor­
mas ou conceitos jurídicos não têm qualquer eficácia regulativa, do ponto de vista da disciplina directa das relações sociais.718
Mas, em contrapartida, desempenham um importante papel
simbólico, constituindo puras afirmações de valores ou instru­
mentos de modelação do imaginário social. Por vezes, este fun­
cionamento simbólico do direito é consciente e procurado; ou­
tras vezes, já não o é, tendo mesmo efeitos contrários àqueles
para que o seu conteúdo normativo apontava. Assim, as normas
que, para a protecção de grupos marginalizados, lhes garantem
certos privilégios (v.g., a garantia de certas quotas de mulheres,
de negros ou de deficientes, nos empregos) contribuem para
disseminar a ideia da inferioridade de tais grupos.719
Por outro lado, aplica-se ao direito a análise que já antes
vimos aplicada ao quotidiano. O direito letrado (no saber jurí­
dico dos juristas profissionais) é, também ele, "quotidiano"; i.e.,
também ele auto-produzido, enraizado na prática, conflitual e
aleatório. O que remete para um conceito de saber jurídico em
que, na produção de resultados dogmáticos ou de propostas de
política do direito, os "motivos nobres" (fins em vista, coerências teóricas, construções dogmáticas) correntemente afirmados
pelos juristas jogam menos do que os acasos, as rotinas doutri­
nais, as lutas simbólicas internas ao grupo. Esta visão do saber
jurídico não pode deixar de pôr em causa a missão racionaliza718 V.g., a m aior parte das leis que proíbem o aborto, a mendicidade, a prosti­
tuição; ou as que reconhecem um direito à habitação, à saúde, etc. Num caso,
com o no 
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