O GÊNERO “RESENHA CINEMATOGRÁFICA” NA ABORDAGEM DO INTERACIONISMO SÓCIO-DISCURSIVO AUTORES: Eliana Merlin Deganutti de Barros (UEL) E-mail: [email protected] Elvira Lopes Nascimento (UEL) E-mail: [email protected] O GÊNERO “RESENHA CINEMATOGRÁFICA” NA ABORDAGEM DO INTERACIONISMO SÓCIO-DISCURSIVO Eliana Merlin Deganutti de Barros1 Elvira Lopes Nascimento RESUMO Este trabalho se integra ao projeto de pesquisa “Gêneros textuais no ensino médio: uma abordagem para o ensino de Língua Portuguesa”, desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina e estruturado a partir dos fundamentos teóricos propostos por Bronckart (1997/2003), Dolz e Schneuwly (1998), assim como de outros estudiosos que se apropriam do gênero como objeto de ensinoaprendizagem, numa abordagem do interacionismo sócio-discursivo. Pretendese apresentar nesta comunicação resultados parciais do estudo do gênero “resenha cinematográfica”, tendo em vista a construção de um modelo didático a ser transposto para o ensino médio. THE GENRE “CINEMATOGRAPHIC REVIEW” IN THE APPROACH OF THE SOCIAL-DISCURSIVE INTERACTIONISM ABSTRACT This paper is part of the research project “Textual genres in secondary education: an approach to the teaching of Portuguese Language”, developed in the State University of Londrina and come from the theoretical fundaments proposed by Bronckart (1997/2003), Dolz and Schneuwly (1998), as well as of other studious who appropriate the genre as teaching-learning object, in an approach of the social-discursive interactionism. It intends to present in this paper partial study results of the genre “cinematographic review”, bearing in mind the construction of a didactic model to be transposed to secondary education. 1 Introdução A pesquisa que estamos desenvolvendo na UEL se insere em um movimento atual de discussão da proposta dos PCNs de Língua Portuguesa do ensino fundamental visando a concretização de seus princípios e finalidades, sobretudo no que diz respeito à formação de professores e à elaboração de projetos e transposições didáticas de gêneros textuais. O conceito de gêneros textuais vem atraindo o interesse de professores e pesquisadores, contudo há ainda dificuldades para a conceituação, utilização e aplicação destes, que são apontados pelos PCNs como o objeto de ensino da Língua Portuguesa. Este trabalho, que faz parte de uma reflexão maior sobre análise, descrição e transposição de gêneros textuais, pretende contribuir para demonstrar como tem sido 1 Eliana Merlin Deganutti de Barros é integrante do projeto de pesquisa “Gêneros textuais no ensino médio: uma abordagem para o ensino de Língua Portuguesa”, desenvolvido na UEL, sob a coordenação da professora-doutora Elvira Lopes Nascimento (orientadora deste trabalho). mobilizado o interacionismo sócio-discursivo (BRONCKART, 2003) para a construção de um modelo didático (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004) do gênero resenha cinematográfica , gênero da esfera jornalística, visando instrumentalizar o professor do Ensino Médio no que diz respeito ao ensino de Língua Portuguesa. A intenção de se estudar este gênero partiu de observações em salas de aulas e de entrevistas informais com professores do Ensino Médio da rede pública2. Primeiramente, foi detectado o interesse destes educadores em se trabalhar com textos da esfera do argumentar – o que se justifica, em parte, pela ênfase de pedidos deste “tipo de texto” nas provas de redação dos vestibulares. Em segundo lugar, observou-se o grande fascínio dos estudantes pela linguagem cinematográfica e de como esta linguagem é bem recebida na escola. Um outro ponto que foi levado em consideração para a seleção, foi a interdisciplinaridade3 que o trabalho com a resenha cinematográfica pode proporcionar, já que o filme a ser resenhado pode ser trabalhado por outras disciplinas (Artes, História , Filosofia, Geografia, etc.) em conjunto com a disciplina de Língua Portuguesa. O texto está organizado da seguinte forma: a) rastreamento das opiniões de experts sobre o gênero “resenha” e “resenha cinematográfica”; b) descrição do corpus analisado c) os pressupostos teóricos do ISD; d) o contexto de produção do corpus da pesquisa; e) o plano textual global; f) a organização seqüencial argumentativa da resenha cinematográfica; e finalmente as considerações finais. 2 O que dizem os especialistas sobre o gênero “resenha” O termo “resenha” é motivo de divergências entre os especialistas e estudiosos da linguagem, muitas vezes, entrando em conflito com o termo “resumo”. Para chegar aos possíveis esclarecimentos sobre a questão da conceitualização deste gênero textual, é necessário o confronto de diferentes abordagens. Iniciaremos pelas definições que trazem alguns dicionários: (MíNI HOUAISS, 2004) – re.se.nha s.f.1 lista ou descrição minuciosa (r. dos principais fatos do dia) 2 resumo crítico do conteúdo de livros, notícias etc. ~ resenhar v.t.d.; (NOVO DICIONÁRIO BÁSICO DA LÍNGUA PORTUGUESA FOLHA/AURÉLIO, 1004/1995) – Resenha s.f. 1. Ato ou efeito de resenhar. 2. descrição pormenorizada. 3. Contagem, conferência. 4. Notícia que abarca certo número de nomes ou fatos similares. Como podemos verificar, as acepções do vocábulo “resenha” são divergentes já no mesmo suporte (dicionário). No caso do HOUAISS parece que a entrada “1” já confronta com a “2”, pois ou resenha é uma “descrição minuciosa” (neste caso ela não é crítica) ou ela é um “resumo crítico”, ou seja, traz uma síntese de um conteúdo juntamente com uma avaliação pessoal. Já no caso do dicionário AURÉLIO, o mesmo não faz referência ao teor crítico da resenha, e a sua entrada “2” aparece como sinônima da entrada “1” do dicionário HOUAISS – “descrição pormenorizada”; também descreve a resenha como “notícia que abarca certo número de nomes ou fatos similares”, o que parece uma grande confusão, pois resenha e notícia parecem não caminhar no mesmo patamar. Como percebemos já no primeiro momento deste estudo, o conceituar este gênero não parece ser muito simples. 2 E também porque temos observado na universidade a insegurança dos professores universitários em relação às características dos gêneros: fichamento, resumo e resenha. 3 O termo “interdisciplinaridade” é melhor compreendido a partir da leitura dos PCNEMs (págs. 88 a 91) os quais destacam a importância dos alunos pensarem de forma interdisciplinar e globalmente. Como segundo passo para se chegar a um esclarecimento quanto a definição de resenha, veremos o que alguns de nossos lingüistas falam sobre o assunto. Segundo Fiorin (1993): “Resenhar significa fazer uma relação das propriedades de um objeto, enumerar cuidadosamente seus aspectos relevantes, descrever as circunstâncias que o envolvem”. Este acrescenta que o objeto resenhado pode ser qualquer acontecimento da realidade, como por exemplo, uma comemoração solene, uma feira de livros; ou textos e obras culturais, como um romance, um filme, uma peça teatral. Para este lingüista o gênero “resenha” pode ser classificado em “resenha descritiva” (aquela que não apresenta nenhuma apreciação ou julgamento de quem a produz) e “resenha crítica” (aquela que apresenta um juízo crítico do resenhista). Segundo Machado (2002), o processo de sumarização é condição básica para a mobilização de conteúdos pertinentes à elaboração de textos pertencentes ao gênero “resenha”, porém este traz mais que uma simples apresentação concisa dos conteúdos, traz também interpretações e avaliações sobre este. Acrescenta também, que no caso do gênero “resenha”, o resumo (considerado neste contexto apenas como sumarização, não como um gênero textual) é apresentado de forma parcial, já que o objetivo do mesmo é incitar o destinatário a ler uma obra, a assistir um filme, etc. Motta-Roth (2002) postula que o gênero “resenha” pode ser considerado como envolvendo um contínuo entre descrição e avaliação, com diferentes exemplares de resenhas tendendo ou para um ou para outro extremo. Por exemplo, resenhas mais objetivas podem ser representadas por textos mais descritivos dos conteúdos, com uma avaliação menos explícita e subjetiva do resenhista. Para a autora, as resenhas podem tender para um extremo avaliativo, quando o resenhista é um “especialista” da área, e parte de seu conhecimento e de sua experiência profissional para estabelecer a relevância do “objeto” resenhado. 2.1 A Resenha cinematográfica: a adaptação de um gênero textual Neste trabalho, tomamos a resenha cinematográfica como uma adaptação do gênero “resenha” (que se encontra indexado no intertexto). Sabemos, com Bakhtin (1992), que os enunciados se constituem a partir das diferentes relações e diferentes situações concretas. Nada é estanque, diferentes valores correspondentes a diferentes práticas sociais, em diferentes esferas de comunicação humana fazem com que qualquer superfície discursiva “idêntica” se carregue de variados efeitos de sentido, dependendo do gênero a que responde, da esfera de circulação ou do direcionamento dos acentos valorativos embricados no enunciado. Há uma relação tensa entre as diferentes vozes discursivas na constituição da linguagem. Algumas se empenham em manter a unidade, o “igual”, o efeito monológico, a objetivação. Outras se empenham em manter a variedade, as diferenças, a adaptação, a transformação entre o “dado”, o enunciado/gênero que já existia, e o recriado no momento da enunciação. Isso acarreta o caráter dinâmico do gênero textual e sua heterogeneidade, isto é, o gênero evolui e vários gêneros se cruzam nessa evolução. Para este estudo, nos apropriamos do gênero “resenha” da mesma forma que Motta-Roth (2002), ou seja, um texto crítico por excelência, tendendo, ora para um lado mais avaliativo, ora para um ângulo mais descritivo, dependendo das circunstâncias que a envolvem. Até o momento em que se encontra esta pesquisa não foi encontrado nenhum documento de especialistas da área da linguagem ou da área jornalística que se utilize da terminologia “resenha cinematográfica”. Encontramos uma escassa bibliografia que se apropria deste gênero, mas com a denominação de “crítica” ou “coluna”. Optamos por não abandonar nossa nomeação inicial, pois não consideramos a questão da nomenclatura um fator relevante para o estudo de um gênero. Segundo Baltar (2004), “crítica” é um gênero jornalístico e opinativo, escrito normalmente em primeira pessoa e assinado, no qual o autor emite sua opinião sobre uma manifestação artística qualquer: livro, CD, espetáculo de dança, teatro, exposição de um artista plástico, etc. Este autor diferencia crítica de resenha, por entender que esta última não traz um aprofundamento do conteúdo exposto e sim apenas “algumas sugestões de leitura”. O que este autor entende por “resenha” parece se assemelhar com a classificação de “resenha descritiva” proposta por Fiorin (já citado no tópico anterior) e sua “crítica” com o que o mesmo autor denomina “resenha crítica”. Barros (2002) ao tratar de dois textos jornalísticos que entram em confronto num mesmo jornal, classifica o que nós chamamos de “resenha cinematográfica” de “coluna” – um texto feito por um colunista que emite opiniões sobre um determinado filme. Fazendo uma comparação entre os gêneros “coluna” e “artigo de opinião”, a autora afirma que os mesmos ”apresentam regras de jogo comuns: é de sua natureza trazer interpretação ou opinião do autor. O papel do autor é de maior aproximação com o seu texto: avaliações e modalizações marcam sua visão de mundo e recursos retóricos são ativados para atingir com maior eficiência o outro parceiro da comunicação, seu interlocutor” (p. 204). Para Berbare (2004, p. 44), “Criticar um filme é observar detalhes, identificar as características típicas da obra, compará-las a outras do gênero, criticar e elogiar o filme.”. Para esta autora, a “crítica de cinema” (como ela nomeou o gênero), presta um serviço de informação ao leitor do jornal ou revista pela visão de um expectador experiente (o crítico, ou resenhista – como nós o chamamos), mas o destinatário da mensagem deve sempre “considerar as informações da crítica a partir de seus próprios critérios de apreciação de filmes”. Ou seja, a crítica deve servir apenas como um parâmetro de avaliação e nunca como um fator decisivo de apreciação de um filme4. Uma crítica de cinema (ou resenha cinematográfica, como nós nomeamos o gênero), segundo a autora acima, procura responder a certas perguntas, como, por exemplo: Quem é o diretor do filme? (informações sobre seus trabalhos, premiações, etc.); Qual é o gênero cinematográfico? (drama, comédia, etc.); Do que se trata o filme? (enredo); De que modo o tema foi tratado? (algum enfoque especial?); Qual o público alvo? Qual a duração do filme? Quem são os protagonistas? (desempenho, outros trabalhos, etc.); Qual o ano de produção e o seu país de origem?; etc. As indagações de Berbare nos fornecem categorias de análise que remetem ao contexto de produção analisado pelo ISD. 3 Corpus de análise Para compor o corpus desta pesquisa foram selecionadas cinco resenhas cinematográficas escritas pela colunista Isabela Boscov, e publicadas na revista VEJA entre fevereiro de 2001 a junho de 2003. A escolha do suporte se fez a partir do 4 O poder de influência das resenhas cinematográficas é notório, tanto que motivou um processo contra a Sony Pictures Entertainment, acusada de usar falsas críticas para induzir espectadores a ver filmes “medíocres”. Assim noticiou a Folha de S.Paulo no dia 04/08/2005 (E 5): “Sony faz acordo de US$ 1,5 milhão em processo por resenhas de filmes”. pressuposto de que tal revista circula nacionalmente, sendo uma das mais lidas dentro do seu formato. O presente corpus é formado pelas resenhas abaixo: 1. “Até tu, Denzel” (filme: Duelo de Titãs – Remenber the Titans, Estados Unidos, 2000); 2. “Humor de fachada” (filme: O Amor é Cego – Shallow Hal, Estados Unidos, 2001); 3. “Melhor que o livro” (filme: Abril Despedaçado, Brasil, Suíça, França, 2001); 4. “Inimigo do peito” (filme: A Soma de Todos os Medos – The Sum of All Fears, Estados Unidos, 2002); 5. “Divino egoísmo” (filme: Todo Poderoso – Bruce Almighty, 2003). 4 O interacionismo sócio-discursivo O quadro teórico que se inscreve o interacionismo sócio-discursivo “leva a analisar as condutas humanas como ações significantes, ou como ‘ações situadas’, cujas propriedades estruturais e funcionais são, antes de mais nada, um produto da socialização” (BRONCKART, 2003, p. 13). É neste quadro teórico que Bronckart faz a abordagem de gênero textual como instrumento de ensino que permite a materialização de uma atividade de ação. O modelo de análise proposto por este pesquisador apresenta várias etapas, como descrevemos abaixo, muito resumidamente (devido ao caráter restrito deste documento): O contexto de produção que pode ser definido “como o conjunto dos parâmetros que podem exercer uma influência sobre a forma como um texto é organizado.” (id., p. 93). Estes parâmetros estão inseridos em dois planos: o mundo físico e o mundo social e subjetivo. O mundo físico é definido por quatro parâmetros: o lugar físico de produção; o momento de produção; o emissor (produtor ou locutor) que produz fisicamente o texto; e o receptor que recebe o texto concretamente. Da mesma forma, o mundo social pode também ser decomposto em quatro parâmetros: o lugar social em que o texto é produzido (escola, família, etc.); o enunciador (posição social do emissor: professor, pai, etc.); o destinatário (posição social do receptor: aluno, filho, etc.); e o objetivo da interação (efeito que se pretende com o texto). O folhado textual, isto é, três camadas superpostas que tramam a organização dos textos: 1) a infra-estrutura geral do texto (plano textual global, tipos de discurso, articulações entre os tipos de discurso, e seqüências); 2) os mecanismos de textualização (a conexão, a coesão nominal, e a coesão verbal); 3) os mecanismos enunciativos (posicionamento enunciativo, vozes e as modalizações). 4.1 O contexto de produção O único elemento do contexto físico identificável em todos os textos analisados foi o emissor, ou seja, a “pessoa” Isabela Boscov, embora essa identificação tenha ocorrido externamente, ou seja, a assinatura não faz parte do corpo textual. A partir de hipóteses5 podemos pensar no lugar físico de produção como sendo, ou uma sala da edição da revista, ou a própria casa da autora, porém, em ambos os casos, parece-nos evidente que ela escreve seus textos diretamente em um computador (portátil ou não). 5 “Metodologicamente, a partir das informações referentes à situação de ação externa, não podemos formular senão hipóteses sobre a situação efetiva do agente” (BRONCKART: 2003, p.92). O receptor de seus textos são os leitores da revista VEJA. Já no que diz respeito ao momento de produção, podemos inferir que, devido ao caráter semanal de sua coluna, a autora não dispõe de muito tempo para escrever, pois está subentendido que ela precisa assistir aos filmes que comenta, buscar informações externas (pesquisa), o que leva tempo, pois muitas vezes, esta mesma colunista chega a escrever mais que uma resenha por semana, por essas razões, imaginamos que estas são escritas poucos dias antes do fechamento da edição da revista. As representações do mundo social, com suas normas e regras que normatizam as interações, no modo como são percebidas pela produtora (autora das resenhas), permitem-nos levantar algumas hipóteses. Desta forma, mesmo externamente às condições de produção, é possível falar no papel social do emissor (que passa agora ao estatuto de enunciador): uma colunista que escreve, semanalmente, resenhas cinematográficas editadas na revista VEJA, na coluna “Cinema”; neste caso supõe-se que seja uma “especialista” no assunto. Quanto à posição social do receptor (agora destinatário), devido ao status da revista VEJA, ou seja, uma veículo de comunicação mais elitista, destinado à classe média-alta, podemos falar no destinatário como sendo um leitor mais instruído e de faixa etária muito abrangente, já que o assunto “filmes” desperta o interesse de leitores muito diversificados. Já o lugar social da produção, independente do lugar físico em que o texto possa ter sido produzido, reflete uma interação profissional entre a colunista e seu empregador (a revista VEJA). Sendo este gênero tanto informativo (traz informações sobre o filme, assim como um resumo parcial do enredo) como opinativo (avaliação pessoal), podemos dizer que seus objetivos são levar ao conhecimento do leitor informações pertinentes ao filme resenhado (incluindo um panorama parcial do enredo) como também convencê-lo a aderir a uma idéia defendida pela autora, por meio de argumentos e contra-argumentos. 4.2 A infra-estrutura geral do texto Para se esclarecer a complexidade da organização textual, como também estabelecer uma hierarquia de camadas textuais, Bronckart (2003) apresenta a infraestrutura geral do texto como o nível mais profundo do folhado textual. Como este trabalho tem um caráter de parcialidade, no que se refere a este nível de análise, nos deteremos no estudo do plano textual global e em uma pequena abordagem da seqüência argumentativa. 4.2.1 O plano textual global Segundo Bronckart (2003, p. 120), o plano textual global de um texto “refere-se à organização de conjunto do conteúdo temático”. Sendo assim, analisando as resenhas do nosso corpus, verificamos várias regularidades. Comecemos pelo título: Título. Todos os seus exemplares possuem um título formado por uma frase nominal, destacado em negrito e com tamanho da fonte bem maior que a do texto. Na totalidade do corpus, abaixo do título, é colocado um subtítulo (com tamanho da fonte intermediário entre o título e o corpo do texto, e sem o negrito) que dialoga com a premissa defendida pela autora. De acordo com Costa ((2001, p. 82), os títulos da imprensa jornalística “não são meros enfeites ou meras escolhas lingüísticas aleatórias, mas são enunciados polifônicos e plurissêmicos, discursivamente produzidos em situações de produção concretas”. É perceptível na intitulação das resenhas do nosso corpus a associação da capacidade lingüística/discursiva a efeitos estilísticos, tendo em vista a finalidade do texto, o gênero textual a ser produzido, o veículo de divulgação, o contexto de produção e recepção, de forma a produzir diferentes efeitos de sentido. Por exemplo, a resenha número três do nosso corpus é intitulada “Melhor que o livro” e recebe como subtítulo “Abril Despedaçado, de Walter Salles, supera em beleza e idéias a sua fonte”; neste caso, fica nítida a intenção da resenhista em fazer a comparação do filme com o livro que o inspirou, e mais, ela já explicita logo no título sua opinião, ou seja, de que o filme (objeto de crítica da sua resenha) é melhor que sua fonte (o romance Abril Despedaçado de Kadaré); o título, neste caso, funciona como pista de contextualização. Assinatura e Foto. Em todas as resenhas analisadas tem-se uma foto do filme com uma frase que ambientaliza a cena (frase que pode aparecer logo abaixo, do lado ou no corpo da foto). No caso do filme Todo Poderoso (resenha número cinco do nosso corpus) a foto escolhida foi uma cena clássica deste filme: Jim Carrey, no papel de Bruce, dividindo um prato de sopa ao meio; do lado da mesma aparece a frase “Carrey divide a sopa, como se ela fosse o Mar Vermelho: só bobagem”. Esta foto ocupa aproximadamente a metade do espaço da página e, com certeza, é um elemento que prende muito a atenção do leitor. A assinatura da colunista é uma constante em todos os textos analisados (no caso de já existir outra resenha anteriormente, somente aparece as iniciais do nome). Espaço. O espaço ocupado pela resenha (incluindo a foto) varia de um terço da página até uma página inteira. Percebe-se que o espaço é determinado pelo grau de “prestígio” do filme, ou seja, visualmente nós já podemos fazer uma pré-avaliação do mesmo; ou pelo menos, perceber o grau de importância destinado a ele. Dados sobre o filme. As informações objetivas sobre o filme também apresentam certa regularidade nas resenhas analisadas. O nome do filme em português aparece no interior do texto (em negrito) em todos os exemplares do nosso corpus, seguido pelo nome original (em itálico), país de origem e ano de lançamento (estes três últimos dentro de parênteses). Logo após estes dados aparece a informação do dia da estréia do filme no Brasil (em apenas um elemento da análise esta informação não estava seguida dos dados do filme). Porém, estes dados não são colocados no texto de forma aleatória, eles instrumentalizam o discurso argumentativo da autora. O nome do diretor, assim como o gênero cinematográfico, são citados apenas quando se fazem pertinentes à defesa da premissa da autora, como, por exemplo, no segundo texto do nosso corpus em que o nome dos diretores aparecem já no subtítulo da resenha: “Os irmãos Farrely são mesmo umas manteigas derretidas” (irmãos Farrely são os diretores do filme). Crítica e enredo do filme. Em todos os textos analisados o conteúdo está organizado com base em uma seqüência argumentativa (próximo tópico do nosso estudo), para isto a autora faz um recorte no conteúdo temático do filme, a partir do qual ela fará sua crítica, defendendo uma premissa, apresentando argumentos e/ou contraargumentos e fazendo a conclusão do seu texto. O resumo do enredo do filme é feito parcialmente e de acordo com o desenvolvimento dos argumentos, ou seja, ele está “costurado” ao texto. A conclusão, geralmente, é feita de forma contundente, reafirmando a premissa inicial. O quadro a seguir permite uma melhor visualização dos dados apresentados neste tópico: Quadro 1: O Plano Textual Global 1 texto título subtítulo Fora do texto e abreviada. assinatura Cena do filme com o protagonista; frase explicativa logo abaixo. foto Idem texto 1 Abaixo do título; Fonte intermediária entre o título e o texto. Idem texto 1 1/3 da página 2/3 da página espaço Idem texto 1 + citação dos nomes dos diretores Corpo do texto: nome do filme em português (negrito e itálico) + nome na língua do país de origem (itálico) + país de origem + ano de lançamento, Dados sobre o filme Idem texto 1 Resumo parcial; Citação dos nomes dos protagonistas e respectivos intérpretes. Enredo do filme Recorte: Diretores Recorte: racismo americano Crítica Recorte: tema do filme Idem texto 1 Idem texto 1 Recorte: Jim Carrey Idem texto 1 Idem texto 1 Idem texto 1 1 página Fora do texto e completa 2/3 da página Idem texto 1 Idem texto 1 Idem texto 3 Idem do texto 1 Recorte: comparação com o romance Idem texto 1 Cena com os protagonistas; frase explicativa no interior da foto. 1 página Idem texto 1 Idem texto 3 Idem texto 1 Negrito; Fonte maior que o texto; Frase nominal. Idem texto 1 3 Idem texto1 (fonte: caixa alta) 2 4 Idem texto 1 Idem texto 1 5 Foto com o protagonista; frase explicativa do lado da foto. 4.2.2 A seqüência argumentativa na resenha cinematográfica Em todos os textos analisados referente ao nosso corpus, o conteúdo está organizado com base em um raciocínio argumentativo. Para tanto, a autora faz um “recorte” temático, com o qual ela defenderá uma tese, apresentará argumentos e/ou contra-argumentos e concluirá seu texto. O resumo do enredo do filme é feito parcialmente, servindo sempre como ancoragem para o desenvolvimento dos seus argumentos. A conclusão, geralmente, é feita de forma contundente, reafirmando a premissa inicial. Como podemos observar acima, este gênero é estruturado a partir dos pressupostos da seqüência argumentativa esquematizada em Bronckart (2003, p.226), organizada pelas seguintes fases: a) a fase de premissas (ou dados), em que se propõe uma constatação de partida; b) a fase de apresentação de argumentos, isto é, de elementos que orientam para uma conclusão provável, podendo ser esses elementos apoiados por lugares comuns (topoi), regras gerais, exemplos, etc.; c) a fase de apresentação de contra-argumentos, que operam uma restrição em relação à orientação argumentativa e que podem ser apoiados ou refutados por lugares comuns, exemplos, etc.; d) a fase de conclusão (ou nova tese), que integra os efeitos dos argumentos e contra-argumentos. O caráter dialógico da seqüência argumentativa consiste em “isolar um elemento do tema tratado (um objeto do discurso) e em apresentá-lo de um modo que seja adaptado às características presumidas do destinatário (conhecimentos, atitudes, sentimentos, etc.)” (Id., p. 234). Desta forma, a seqüência argumentativa opera uma ação de convencimento, a partir de um objeto contestável (na visão do enunciador e/ou do destinatário). Como forma de corroborar com a questão acima, apresentamos, a seguir, uma resenha cinematográfica (texto “1” do nosso corpus) em que destacamos as fases da grande seqüência argumentativa que a constitui: Até tu, Denzel – Outro filme tenta adoçar o amargo racismo americano Premissa Seria recomendável que o cinema de Hollywood parasse de prefaciar seus filmes com os dizeres “baseado numa história verdadeira”. Geralmente, é sinal de que as situações mais improváveis vão se suceder. É o que acontece em Duelo de Titãs (Remember the Titans, Estados Unidos, 2000), que estréia nesta sextafeira em circuito nacional. Argumentos 1. O problema não está nos fatos, que são reais, mas no tom ufanista que o filme empresta a eles. [Esse drama trata da hostilidade que tomou conta de Alexandria, uma pequena cidade do estado da Virgínia, em 1971, quando as autoridades locais decidiram que brancos e negros passariam a freqüentar a mesma escola. Episódios como esse ocorreram em todo o país, quase sempre de forma dramática – como em Little Rock, no Arkanansas, onde o Exército teve de garantir que as crianças negras cruzassem os portões da escola.] 2. Duelo de Titãs prefere uma visão edulcorada da história: no seu entender, não há barreira que não possa ruir quando um punhado de homens de boa vontade resolve fazer a coisa certa. [O conflito concentra-se em torno da paixão local – o time de futebol americano da escola. Bill, o técnico branco (interpretado por Will Patton), é substituído por Herman, um negro (Denzel Washington, juntando aqui sua credibilidade à chancela do “fato verídico”). Seguem-se as escaramuças de praxe nesse gênero de produção, mas o branco engole o orgulho e decide trabalhar ao lado do recém-chegado. Logo o colega e os jogadores, não importa a sua etnia, percebem que Herman não vai dar moleza a ninguém. Pelo contrário: sua tática é se mostrar democraticamente implacável. O jeitão linha-dura funciona. O time vence todas, brancos e negros descobrem o valor da amizade e até os racistas mais renitentes cedem diante de resultados tão positivos.] Contra-Argumento Seria lindo, exceto pelo fato de que, nos Estados Unidos, o antagonismo racial ainda não teve um final feliz. Argumento 3. É desanimador, portanto, que uma produção que pretende ensinar princípios morais básicos recorra a tais simplificações. Ao mesmo tempo que aplaude o senso de justiça de seus protagonistas, a fita comete o ultraje de mostrar personagens negros com ar de gratidão canina diante do respeito conquistado. Conclusão Num certo sentido, o filme até diverte – mérito da química entre Washington, que domina de ponta a ponta o ofício de interpretar santos guerreiros, e Will Patton, um ator bem melhor do que seu papel. Por causa de seu paternalismo, contudo, Duelo de Titãs revela involuntariamente a grande contradição por trás desse tema: seja qual for o sabão, o racismo é uma daquelas manchas insistentes que Hollywood nenhuma lava mais branco. (Fonte: BOSCOV, Isabela. “Até Tu, Denzel”. Veja. Rio de Janeiro: Ed. Abril, 7 fev. 2001, p.117) Obs.: Os fragmentos do texto entre colchetes estão ancorando o argumento (grifado) que o antecede. 5 Considerações finais Neste trabalho apresentamos resultados parciais de nossa descrição do gênero “resenha cinematográfica” numa perspectiva do interacionismo sócio-discursivo (BRONCKART, 2003), com a pretensão de se construir futuramente em modelo didático do mesmo. A escolha por este gênero textual se deu por acreditarmos que este seja um instrumento relevante no desenvolvimento da capacidade crítica, assim como no aprimoramento das habilidades de produção e compreensão de textos dos alunos do ensino médio. As análises nos possibilitaram constatar o alto teor de criticidade e préjulgamento que vem embutido neste “tipo” de texto, verificado através da própria escolha do filme a ser resenhado, do tamanho destinado à resenha, da escolha do título e subtítulo, entre outros aspectos que podem ser depreendidos na análise do plano textual global do gênero. Também ficou visível a “costura” que o texto apresenta em relação a grande seqüência argumentativa, conseguindo articular suas quatro fases, ou seja, premissa, argumentos, contra-argumentos e conclusão, de forma a levar o leitor – muitas vezes “ingênuo” – ao convencimento de uma idéia. Referências bibliográficas BALTAR, M. Competências discursivas: gêneros textuais. Caxias do Sul (RS): EDUSC, 2004. BARROS, Nina Célia. “Estratégias de ataque à face em gêneros jornalísticos” in: MEURER, José Luiz; MOTTA_ROTH, D. Gêneros textuais. Bauru (SP): EDUSC, 2002, p. 199-214. BAKHTIN, M. “Gêneros do discurso” in: Estética da criação verbal. Trad. Maria E. Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BERBARE, Ângela Popovici. “Crítica de cinema: caracterização do gênero para projetos de produção escrita na escola” in: LOPES-ROSSI, Mª Apª (org.). Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção de textos. Taubaté (SP): Cabral, 2004, p. 41-58. BRONCKART, Jean-Paul. 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