CIDADE EDUCADORA, CIDADANIA E EDUCAÇÃO POPULAR: PROBLEMATIZANDO A ORDEM DO DISCURSO DA EDUCAÇÃO INTEGRAL Prof. Dr. Rodrigo Saballa de Carvalho (UFFS - Erechim) [email protected] Prof. Me. Zoraia Aguiar Bittencourt (UFFS - Erechim) [email protected] Rosane Fátima Vasques1 (UFFS - Erechim) [email protected] O presente artigo, a partir das contribuições dos Estudos Culturais em Educação e dos Estudos desenvolvidos por Michel Foucault, tem como foco de análise a problematização dos discursos sobre Educação Integral presentes nas seguintes obras: Educação Integral no Brasil (GADOTTI, 2009) e Educação Integral em tempo integral (COELHO, 2009), destacando as reverberações de tais escritos no sistema educacional. Em tal perspectiva analítica, o discurso é entendido como um conjunto de práticas que definem e produzem os objetos dos quais tratam. As concepções de Educação Integral como princípio para o desenvolvimento da cidadania, como vivência e experiência de aprendizagem articulada a projetos em uma cidade educadora e como formação dos sujeitos em suas múltiplas dimensões através do currículo são consideradas como discursos que assumem forma, ordem e coerência por meio de uma linguagem comum, que opera sempre de modo microfísico, sutil, retórico e persuasivo, atualizando-se através de um sistema de remissões endereçado ao público leitor. Isso quer dizer que tais discursos são decorrentes de múltiplas combinações, interdições e atravessamentos de outros ditos que os inscrevem em uma determinada ordem. Os supostos significados e verdades a respeito da prática da Educação Integral nas escolas, os quais emergem dos escritos presentes nas obras, não existem independentemente da ordem discursiva em que se encontram inscritos. Por essa via de análise, são discutidos os modos como tais obras, enquanto artefatos culturais, investidos de prescrições e regulações morais, operam no governamento da Educação Integral, ensinando o professor a conduzir sua vida e a vida de seus alunos, tendo em vista o alcance de uma educação cidadã. Considerações iniciais O presente artigo, a partir das contribuições dos Estudos Culturais em Educação e dos Estudos desenvolvidos por Michel Foucault, tem como foco de análise a problematização dos discursos sobre Educação Integral presentes nas seguintes obras: Educação Integral no Brasil (GADOTTI, 2009) e Educação Integral em tempo integral (COELHO, 2009), destacando as reverberações de tais escritos no sistema educacional. Em tal perspectiva analítica, o discurso é entendido como um conjunto de práticas que definem e produzem os objetos dos quais tratam. As concepções de Educação Integral como princípio para o desenvolvimento da cidadania, como vivência e experiência de aprendizagem articulada a projetos em uma cidade educadora e como formação dos sujeitos em suas múltiplas 1 Pedagoga, acadêmica do Curso de Especialização em Processos Pedagógicos na Educação Básica. dimensões através do currículo são consideradas como discursos que assumem forma, ordem e coerência por meio de uma linguagem comum, que opera sempre de modo microfísico, sutil, retórico e persuasivo, atualizando-se através de um sistema de remissões endereçado ao público leitor. Isso quer dizer que tais discursos são decorrentes de múltiplas combinações, interdições e atravessamentos de outros ditos que os inscrevem em uma determinada ordem. Os supostos significados e verdades a respeito da prática da Educação Integral nas escolas, os quais emergem dos escritos presentes nas obras, não existem independentemente da ordem discursiva em que se encontram inscritos. Por essa via de análise, serão discutidos os modos como tais obras, enquanto artefatos culturais, investidos de prescrições e regulações morais, operam no governamento dos educadores, tendo em vista o alcance de uma educação cidadã. Por essa razão, o que pretendemos nesse trabalho é problematizar as estratégias discursivas presentes nas obras que serão analisadas, destacando os regimes de verdade, que caracterizam a ordem do discurso da Educação Integral, enquanto uma arena cultural – um palco de operacionalidade do poder. A partir de tal exposição, esclarecemos que o conceito de discurso, no presente trabalho esta sendo entendido a partir de uma perspectiva foucaultiana. Em tal perspectiva, o discurso é considerado como um produtor de verdades e como um dispositivo estratégico de relações de poder. Por isso, é importante destacar, que os discursos também são entendidos como práticas organizadoras da realidade, pois estabelecem hierarquias e distinções, articulando o dizível e o visível. Tal articulação possibilita depreender que os discursos constituem os sujeitos e os objetos dos quais tratam, já que eles estão inscritos em formas regulamentadas de poder e estão sempre sujeitos a múltiplas coerções. Nesse sentido, podemos dizer que a operacionalidade dos discursos produzidos sobre a Educação Integral, produz verdades, com uma concepção de poder tanto individualizante como totalizante. Individualizante, porque focaliza nos indivíduos a capacidade de mudanças, emancipação e exercício da cidadania, e totalizante porque universaliza tais verdades através da difusão de artefatos que comunicam os princípios da proposta. Tal noção de discurso rompe com os sentidos comumente utilizados na linguística (nos métodos interpretativos) e nas análises fenomenológicas, nas quais se destaca uma dicotomia entre os fenômenos da língua social e da fala individual, uma vez que o discurso é entendido por tais campos apenas como realização da fala de um sujeito produtor de significados. Essas perspectivas procuram deduzir do discurso algo que (supostamente) se refere ao sujeito falante, buscando reencontrar as (verdadeiras) intencionalidades do mesmo. Nesse contexto, torna-se relevante esclarecer, a partir de Foucault (1987, p.56), que os discursos são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”. Pode-se então, depreender que os discursos emancipatórios presentes nas obras de Educação Integral podem ser considerados práticas discursivas. E se, como coloca o referido autor (Idem, 2005, p.8): “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos”, é profícuo pensar que as práticas discursivas sobre a Educação Integral também assim operem. Desse modo, cabe então questionar: Que discursos são legitimados para falar sobre a Educação Integral? Que conselhos/prescrições (estratégias discursivas) são priorizadas para orientar as condutas dos professores? De que modos os discursos emergentes dos livros analisados, promovem uma determinada metodologia de operacionalização da Educação Integral e definem um determinado modo de lidar com os estudantes que fazem parte do programa? Tomando como ponto de partida, as referidas questões, é importante ressaltar que as obras analisadas, enquanto artefatos culturais, investidos de prescrições e regulações, sugerem práticas específicas que os professores devem desenvolver com os estudantes, em nome de certas políticas de verdade para o exercício de uma educação cidadã. A partir de indicações minuciosas, as obras enquanto referenciais teóricos procuram normatizar e regular os comportamentos do leitor. A partir de tal exposição, também cabe esclarecer que o conceito de governamento esta sendo entendido a partir de uma perspectiva foucaultiana, referindo-se a qualquer direcionamento calculado da conduta humana. O governamento é entendido como conduta da conduta – como qualquer modo mais ou menos calculado de direcionamento de nossos comportamentos ou ações. Nesse sentido, Foucault (2008, p.255) destaca que “a conduta é a atividade que consiste em conduzir, mas é também a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se deixa conduzir, a maneira como é conduzida” e também como se comporta “sob o efeito de uma conduta que seria ato de conduta ou de condução”. Para o filósofo, a noção de conduta, com o campo que ela abarca, foi sem dúvida um dos elementos fundamentais introduzidos pelo pastorado cristão na sociedade ocidental. Assim, é possível dizer que o termo conduta, nesse sentido, além de referir-se aos nossos comportamentos e ações, também se relaciona às noções morais de autogestão e de autorregulação – as práticas de si. Porém, convém esclarecer que essas práticas em si não operam somente de acordo com os interesses das pessoas, pois, muitas vezes, estão envolvidas diretamente com as relações pelas quais somos capturados e produzidos, como no caso das obras em análise que operam no governamento de professores e estudantes a partir da difusão de discursos supostamente promotores da emancipação humana e exercício pleno da cidadania, como poderá ser observado nos trechos a seguir. Não se trata apenas de estar na escola em horário integral, mas de ter a possibilidade de desenvolver todas as potencialidades humanas, que envolvem o corpo, a mente, a sociabilidade, a arte, a cultura, a dança, a música, o esporte, o lazer etc. (GADOTTI, 2009, p.98). A educação integral em tempo integral possibilita ao educando o contato com poetas, artistas, religiosos, músicos, griôs, artesões e outros, ampliando o horizonte da formação escolar que é mais centrada no conhecimento simbólico do que no conhecimento sensível. (GADOTTI, 2009, p.98). [...] Não se trata, portanto, de ocupar o tempo de uma jornada ampliada com atividades não escolares. Trata-se de estender, no tempo e no espaço, a sala de aula, articulando o saber científico com o saber técnico, artístico, filosófico, cultural etc. (GADOTTI, 2009, p.99). Mediante os excertos apresentados, é possível evidenciar que o governamento referese a (qualquer) tentativa deliberada de conduzir aspectos dos comportamentos das pessoas. Tal condução ocorre a partir de normas particulares que se operacionalizam através de práticas desenvolvidas por uma multiplicidade de autoridades e de agências (como os livros em questão), que procuram, através do emprego de uma variedade de técnicas e saberes, exercer o governamento por meio das escolhas, desejos, aspirações e identificações do indivíduo. Portanto, o governamento não se caracteriza pelas ações de um sujeito político ou de operações desenvolvidas por mecanismos burocráticos, mas pela unificação de estratégias produtivas que têm o intuito de atingir fins políticos, conduzindo a todos e a cada um, através de um processo que, ao mesmo tempo, individualiza, totaliza e normaliza. Estratégias que podem ser descritas pela ação calculada sobre as forças dos indivíduos, das atividades exercidas e das relações que constituem a população. Observa-se, desse modo, que a questão em pauta não é nunca da ordem da coerção e dos constrangimentos exercidos sobre a massa dos governados, mas da produção de cidadãos intervenientes nos jogos e nas relações de poder, os quais supostamente vivenciam mais autonomia e liberdade. Nesse sentido, o dito por Veiga-Neto (2000, p.186) corrobora com tais argumentos quando o autor afirma, entre outros aspectos, que o bom governamento é aquele que governa de modo econômico, “procurando obter maiores resultados com mínimo esforço tanto no que se refere às questões monetárias e financeiras, como também em relação ao tempo, aos afetos, ao prazer e a felicidade”. Em suma, o governamento depende do conhecimento e da produção de verdades que personificam o que será governado, tornando tal prática pensável e calculável, como pode ser percebido na orientação transcrita a seguir. A informação é o primeiro de todos os direitos humanos, pois, sem ela, as pessoas não têm acesso a outros direitos. Daí a importância da educação cidadã, formal e não formal, dentro e fora das escolas. (GADOTTI, 2009 p.57). A escola pública cidadã é estratégia para diminuir as desigualdades e para colocar o país no rol dos países mais desenvolvidos social e economicamente. [...] Daí a importância da educação integral ser assumida não só como um projeto de governo e da Secretaria da Educação, mas como projeto de sociedade. (GADOTTI, 2009, p.57). A partir de tal exposição, é importante reiterar que o conceito de governamento esta sendo entendido no presente trabalho, como um produtivo conjunto de práticas estratégicas e abertas que indicam as formas por meio das quais se podem conduzir as condutas de si e dos outros, através de um jogo ininterrupto – que seduz e regula, suscitando apetites e desejos. Por esse motivo, são discutidos os modos como os livros, investidos de conselhos e regulações morais, operam no governamento da população, ensinando o professor leitor, a conduzir sua vida, a conduzir a vida de seu aluno, a relacionar-se consigo mesmo e com os outros em nome de verdades fundamentadas no campo das Pedagogias Críticas. Nesse sentido, no decorrer do trabalho, serão analisadas as estratégias discursivas utilizadas pelos autores, os saberes e poderes que são colocados em circulação na subjetivação dos leitores e, sobretudo na produção de uma imagem Educação Integral, que deve ser alcançada por meio de uma cidade educadora. No intuito de visibilizar as estratégias discursivas presentes nas obras, o trabalho esta organizado em três tópicos analíticos: Educação Integral: princípio para o desenvolvimento da cidadania; Educação Integral: vivência e experiência de aprendizagem articulada a projetos em uma cidade educadora e Educação Integral: formação dos sujeitos em suas múltiplas dimensões através do currículo. Educação Integral: princípio para o desenvolvimento da cidadania Ao propor uma educação pelo trabalho, visando à transformação social e à negação/superação da alienação, a concepção politécnica de educação afirma a crença de que é no coração da atividade produtiva que poderá se dar o processo de emancipação do homem. (CAVALIERE, 2009, p.4). É necessário tempo de permanência na escola para que a criança das classes populares tenha igualdade de condições educacionais, se comparamos com as oportunidades que as crianças de classe média têm, em espaços variados e ao longo do dia inteiro, com acesso a linguagens e circunstâncias diversas. É necessário tempo para adquirir hábito, valores, conhecimentos para o exercício da cidadania numa sociedade complexa como a brasileira do século XXI. (MAURÍCIO, 2009, p.55). Nascemos animaizinhos e nos fazemos humano-históricos por meio da apropriação e da transformação da cultura. Então, esse é o sentido da produção humana da educação. É a partir da apropriação de valores, de conhecimentos, de filosofia, de artes, de ciências, de crenças, que nos tornamos cidadãos dessa coisa chamada humanidade. Isto é educação. Se isto é educação, só existe uma forma de realizá-la, e esta forma tem que ser coerente com o que ela é. (PARO, 2009, p.17). Uma educação de qualidade é uma educação cidadã, ativa, participativa, formando para e pela cidadania, empoderando pessoas e comunidades. Toda cidadania é, por si mesma, ativa. Nós qualificamos a cidadania de "ativa" para realçar o seu caráter participativo e mobilizador. A cidadania ativa supõe que a responsabilidade social é de todos e não apenas do governo. Na concepção cidadã da educação integral, a escola visa à formação do "povo soberano", isto é, o povo participando da organização e da tomada de decisões sobre tudo que lhe diz respeito. (GADOTTI, 2009, p.56). Entendemos o tempo integral, como prevê a LDB, como um direito de cidadania. É um direito dos pais que trabalham. As mães que trabalham têm o direito de deixar seus filhos pequenos em creches e escolas de educação infantil enquanto elas trabalham. É também um direito das crianças terem acesso a um conjunto de bens e serviços que a sociedade moderna pode lhes oferecer. (GADOTTI, 2009, p.35). A maior ambição da Escola Cidadã é contribuir na criação das condições para o surgimento de uma nova cidadania, como espaço de organização da sociedade, para a defesa de direitos conquistados e a conquista de novos direitos. (GADOTTI, 2009, p.58). A escola precisa desenvolver uma cultura cidadã, como o conjunto de costumes e regras de convivência urbana e de todos os espaços e territórios da municipalidade, compartilhada pela cidadania e que gera um sentimento de pertencimento à cidade. (GADOTTI, 2009, p.113). As recentes experiências, fundadas na concepção cidadã de educação, representam uma alternativa viável, negadora e superadora do projeto neoliberal capitalista de escola pública. Elas comprovaram que a escola pública pode ser competente, participativa e democrática. (GADOTTI, 2009, p.58). A partir da leitura dos excertos apresentados, é possível visualizar uma série de palavras de ordem, tais como: emancipação, atividade produtiva, igualdade de condições educacionais, hábitos, valores, conhecimentos, cidadania, transformação da cultura, empoderamento, formação do povo soberano, cultura cidadã – que constituem o vocabulário utilizado pelos autores para prescreverem em suas obras um modelo ideal de educação para o desenvolvimento de uma “cultura cidadã” (conjunto de hábitos, valores e conhecimentos). Um vocabulário que através de seu caráter instrumental opera no governamento de educadores enfatizando um modelo padrão de educação e produzindo um determinado tipo de subjetividade docente. Conforme Silva (1998), a subjetividade (aquilo que caracteriza o sujeito, nesse caso como “docente que atua na Educação Integral”) não existe nunca fora dos processos sociais, sobretudo, na ordem discursiva que a produzem como tal. Isso quer dizer, que subjetividade e relações de poder não se opõem, pois a mesma é um artefato, é uma criatura das relações de poder. No âmbito, da produção da subjetividade do docente, é possível perceber que a palavra chave é cidadania, pois é através da Educação Integral, que o docente promove o desenvolvimento de uma cultura cidadã nos espaços em que atua e a capacidade de empoderamento das comunidades. A promoção da cultura cidadã é utilizada como uma estratégia de governamento para que o leitor, ao desejar ser o educador exitoso proposto pelas publicações, operacionalize na educação dos educandos as prescrições descritas. Para tanto, os autores fundamentam-se em experiências de Educação Integral desenvolvidas em diferentes regiões do país. O texto de ambas as obras, “captura”, “seduz” e “mobiliza” o leitor, através de seus vocabulários, linguagens e gramáticas específicas, mostrando sempre que o mesmo é livre para fazer suas escolhas, mas que se optar pelo modelo de educação cidadã, o seu sucesso como docente crítico emancipador será garantido. Por essa via, é possível perceber que o princípio de desenvolvimento da cidadania, se estabelece como uma verdade inestimável que possui um caráter messiânico e salvacionista. Tal colocação evidencia que as práticas de governamento, postas em funcionamento nos discursos das obras, faz com que o leitor, se relacione com as verdades propostas, se identifique com um determinado estilo de educação e seja incitado e mobilizado a assumir a posição de educador que desenvolve a cidadania dos educandos, através da operacionalização de um conjunto de práticas de governamento, como poderá ser acompanhado nos excertos que serão apresentados na sequencia. Tenho a convicção de que o projeto Escola de Tempo Integral pode contribuir, de forma decisiva, para a construção da cidadania dos estudantes das escolas públicas que fazem parte das famílias de baixa renda. As atividades complementares, que podem ser colocadas à disposição dos alunos em turno inverso, podem compensar, em grande parte, as lacunas que o meio social não lhes permite alcançar. A escola continua sendo o grande e quase sempre o único instrumento de transformação e de ascensão social de que dispõem milhões de brasileiros na difícil e complexa luta pela conquista de uma vida mais digna em nosso país. (FORTUNATI, 2007, p.69 apud GADOTTI, 2009, p.38). A educação cidadã, nascida da escola pública popular, já tem sido reconhecida, nos últimos trinta anos, no Brasil e em outros países, como aquela que visa à sustentabilidade social, afetiva, educacional, cultural, ambiental, econômica e política, consagrando-se como a perspectiva mais avançada do nosso tempo. (PADILHA, 2009 apud GADOTTI, 2009, p.9). Cidadania, participação e democracia exigem aprendizado. Sementes de Primavera objetiva oferecer espaços de exercício desses princípios desde a infância. Ele pretende criar condições para a participação das crianças e contemplar no PEPP a perspectiva desse segmento. [...] Ao conhecer o que as crianças pensam sobre a educação que recebem, o bairro e a cidade em que vivem, busca-se estimulá-las a refletir e a apresentar propostas de melhoria para os aspectos destacados por elas. O projeto objetiva criar oportunidades para as crianças e adolescentes aprenderem, desde a infância, a exercitar a cidadania, participando da escola, do bairro, da cidade onde moram. (GADOTTI, 2009, p.87-88). [...] é importante destacar que tempo integral na escola pressupõe, em nossa visão, a adoção de uma concepção de educação integral: com o tempo escolar ampliado, é possível pensar em uma educação que englobe formação e informação; que compreenda outras atividades – não apenas as pedagógicas – para a construção da cidadania responsável. (COELHO, 2002, p.02 apud SILVA, 2009, p.136). A educação integral em tempo integral pode contribuir também com o desenvolvimento local já que ela busca descobrir e reconhecer todas as potencialidades das comunidades, integrando atividades sociais, culturais, econômicas, políticas e educativas. (GADOTTI, 2009, p.39). A defesa de uma escola de tempo integral precisa levar em consideração as oportunidades que a mesma possa oferecer aos filhos da classe trabalhadora, no sentido de dotá-los de um acervo cultural que lhes possibilite o exercício de sua cidadania. Não se trata de repassar a ideologia da classe dominante, ou mesmo omitir as contradições da sociedade capitalista, mas de trabalhar esse contexto e incentivar os alunos a tornarem-se sujeitos do processo histórico dessa forma de organização societal. Efetivar a educação integral remete-nos a analisar criticamente que conteúdo e conhecimentos propiciam a autonomia e o senso crítico dos educandos. (LIMA, 2009, p.191). Os excertos apresentados destacam os modos sutis de como os educadores são mobilizados a seguirem os conselhos dos autores. Os educadores são incitados a seguirem os conselhos, não por coerção ou inculcação dos discursos presentes na obra, mas porque são informados sobre as vantagens de promoverem o desenvolvimento da cidadania para o empoderamento das comunidades populares, acreditando que essa é uma escolha pessoal e que as prescrições que constam nas obras são o melhor caminho a ser seguido. Em tal contexto, o educador é visto como sujeito de suas escolhas, pois a ele é atribuído à possibilidade de pensar que pode “livremente” definir os modos de desenvolver o seu trabalho na Educação Integral – apenas seguindo as orientações dos autores enquanto interlocutores e especialistas na temática em questão. Desse modo, é possível dizer que tais efeitos do poder se tornam invisíveis e ainda mais produtivos, mostrando-se muito mais potentes do que se fossem da ordem da violência. Educação Integral: vivência e experiência de aprendizagem articulada a projetos em uma cidade educadora A educação integral/integrada tanto possibilita com que a escola avance para além de seus muros, quanto busca trazer a sociedade civil para dentro de seu contexto, ampliando seus espaços e tempos. Essas experiências devem avançar na direção da participação em projetos socioculturais e ações educativas que visem dar conta das múltiplas possibilidades e dimensões sociais de outros espaços, diferentes do intraescolar. (MENEZES, 2009, p.81 ). A circulação e integração ao ambiente urbano mostram-se fundamentais para os processos formativos de crianças e adolescentes. Ao circularem pela complexa geografia urbana, ao reconhecerem as linguagens dos museus, dos teatros, dos cinemas, das ruas, as crianças e adolescentes são interpelados pelas potências, diferenças, problemas e por múltiplos enunciados nas cidades. A integração ao território significa ter acesso qualificado aos equipamentos materiais e imateriais existentes, além de intensificar a sensibilidade pelo diferente e pelos problemas relevantes ao nosso tempo. (STIVAL; MIRA; WITHERS, 2009, p.228). A educação integral integrada pode (e deve) contar com contribuições de outras áreas sociais e organizações da sociedade civil. Tais ações devem constituir-se como resultantes de um amplo debate da comunidade escolar, cujas resoluções devem se apresentar literalmente dispostas no projeto político-pedagógico da instituição educacional. (MENEZES, 2009, p.83). O projeto é algo que absorve toda a classe ou um grupo de alunos durante algum tempo do ano escolar ou o ano todo. Realiza-se, de preferência, em torno de determinado tema que é, ao mesmo tempo, de interesse dos alunos e da comunidade local, procurando envolver trabalho manual e intelectual conjuntamente. Envolver alunos, outros membros da comunidade escolar e mesmo de fora da escola. (GIORGI, 1986, p.37 .) A escola pública precisa ser integral, integrada e integradora. Integrar ao Projeto Eco-Político-Pedagógico da escola as igrejas, as quadras de esporte, os clubes, as academias de dança, de capoeira e de ginástica, os telecentros, parques, praças, museus, cinemas, além de universidades, centros de estudos, ONGS e movimentos sociais; enfim, integrar o bairro e toda a municipalidade. (GADOTTI, 2009, p.33). Para uma educação integral precisamos de uma pedagogia da cidade articulada com uma cidade como a pedagogia, isto é, uma cidade onde todos os seus espaços e agentes assumam sua responsabilidade educativa no conjunto de um projeto conjunto. (GADOTTI, 2009, p. 45). Podemos falar de Escola Cidadã e de Cidade Educadora quando existe diálogo entre a escola e a cidade. Não se pode falar de Escola Cidadã sem compreendê-la como escola participativa, escola apropriada pela população como parte da apropriação da cidade que pertence. Nesse sentido, Escola Cidadã, em maior ou menor grau, supõe a existência de uma Cidade Educadora e de uma Educação Integral. (GADOTTI, 2009, p.63). O princípio da cidade educadora é uma das tônicas da Educação Integral. Mas o que é uma cidade educadora? Conforme Gadotti (2009, p.61) “educadora é a cidade onde todos os habitantes usufruem das mesmas oportunidades de formação, desenvolvimento pessoal e entretenimento que ela oferece”. Na definição do conceito de cidade educadora, a partir da leitura dos excertos apresentados, também é possível perceber a utilização de palavras como projetos socioculturais, integração, comunidade local, trabalho manual, trabalho intelectual, pedagogia da cidade – que reforçam o argumento dos autores, a respeito da importância de uma articulação entre cidade e instituições educativas, para que efetivamente seja operacionalizada a Educação Integral. Desse modo, é recorrente o pressuposto de que a articulação entre as instituições e a cidade educadora é fundamental para que se desenvolva a vivência e a experiência de projetos que sejam promotores do desenvolvimento da cidadania. O princípio da cidade educadora sustenta-se em reflexões históricas a respeito de como o trabalho educativo deve organizar-se para atingir fins específicos – ocupando, desse modo, um privilegiado lugar de luta pela imposição de verdades, na constituição dos sujeitos (educadores/educandos) e valoração moral. Pelos motivos expostos, a operacionalização da articulação entre a cidade e as instituições educativas é considerada como meio de capacitação dos educandos das classes populares, para que os mesmos tenham a oportunidade de se desenvolverem integralmente. Nessa perspectiva, as articulações com igrejas, quadras de esporte, ONGS, cinemas, museus, academias de dança, capoeira, ginástica, telecentros, parques, praças, centros de estudos e movimentos sociais, entre outros espaços, são apresentadas a partir de um discurso prescritivo e afirmações universais que se pretendem aplicadas a diferentes contextos e situações – independendo da realidade das cidades. O eixo fundamental dos discursos é a ideia de que é possível ocupar os espaços da cidade, através da mobilização conjunta da comunidade e equipe gestora das instituições. Dentre as principais sugestões apresentadas em relação ao princípio da cidade educadora, destaca-se a pedagogia da cidade, ou seja, o movimento no qual a comunidade assume a responsabilidade educativa no conjunto de um projeto social, tendo como premissa o desenvolvimento de uma educação cidadã. Portanto, é possível evidenciar que o discurso da cidade educadora, enquanto princípio da Educação Integral constrói a realidade a partir do campo de possibilidades que coloca em funcionamento. Tal discurso governa a realidade, na medida em que enuncia que a cidade deve ser educadora. O valor de verdade, atribuído a tal enunciação, torna o discurso da cidade educadora uma prática efetiva – que deve (no sentido imperativo do termo) ser viabilizada por meio do trabalho conjunto entre instituições educativas e cidade, não existindo outro modo eficaz para efetivação de uma Pedagogia da Cidade. Tal atribuição atribui uma demanda ao campo educacional, fazendo com que diversos mecanismos pedagógicos sejam operacionalizados (produção de livros, palestras, documentos com orientações), promovendo desse modo a operacionalização da proposta. Educação Integral: formação dos sujeitos em suas múltiplas dimensões através do currículo Ao procurar definições para a palavra integral, visitamos o Dicionário Michaelis (1998) e encontramos a ideia de inteiro, total. Como complemento, remete-se ao adjetivo íntegro (lat. Integrum), inteiro, completo. Em latim, integrum recebe o seguinte significado: inteiro, perfeito, sincero, são, puro, não corrupto, sóbrio, casto, inocente, sem defeito ou vício, sem senão. Com essas acepções, podemos afirmar que a educação integral forma pessoas integras. (MORAES, 2009, p.21). Na educação integral proposta nesse documento, entende-se o ser humano em todas as suas dimensões – afetivas, cognitivas, psicomotoras, sociais e culturais - reconhecendo-o na sua singularidade e universalidade. (STIVAL; MIRA; WITHERS, 2009, p.212). O objetivo educacional é que todas as disciplinas do currículo possam trabalhar de forma integrada, partindo da compreensão do sujeito em sua condição multidimensional – sujeito corpóreo, com afetos e inserido em um contexto de interrelação. (GONÇALVES, 2006 apud CASTELLANO, DUTRA; LAURO; MARQUES; MATTOS; MONTEIRO, 2009, p.172). Um conjunto de visões de educação que procuram educar completamente a pessoa. Isso inclui estudos de visões interconectadas do mundo, tais como a relação corpo/mente, de inteligências múltiplas, de análises de conceitos de espiritualidade e de prática em sala de aula, além de estudos que abordam, a partir de visões holísticas, as pessoas, as culturas, enfim, o mundo e o cosmos. (COELHO; PORTILHO, 2009, p.92). O percurso das ideias socialistas em relação à escola apresenta desde cedo uma visão radical de educação integral baseada nessa associação entre educação e trabalho consolidada na concepção de educação politécnica, cuja ligação intrínseca com a produção social, levaria a uma formação capaz de contribuir com a transformação social. (CAVALIERE, 2009, p.44). Nessa proposta de educação integral, ao lado do ensino científico ou teórico, estaria necessariamente o ensino industrial ou prático, pois é somente assim que se formará o Homem completo: o trabalhador que compreende que sabe. (MORAES, 2009, p.29). [...] fundamentado no tripé cultura, educação e lazer, o objetivo proclamado no documento do projeto-piloto é que a escola em tempo integral seja um lugar prazeroso e saudável, que propicia a formação integral do educando (LIMA, 2009, p.202, refere-se ao projeto de escola em tempo integral do Ceará). O fortalecimento do processo de ensino e aprendizagem na escola; O desenvolvimento de uma prática educativa através da construção prazerosa de conhecimentos; O desenvolvimento cognitivo-sociocultural dos alunos envolvidos no projeto; A elevação dos níveis de aprendizagem nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática dos alunos da rede pública de ensino cearense; A diminuição da evasão escolar e a preparação para inserção futura no mercado de trabalho. (LIMA, 2009, p. 197). [...] conceito de educação integral sob a vertente do conceito de educação como reconstrução da experiência. Nesse enfoque, a educação integral, como concepção e metodologia que asseguram vivências e experiências que vão além dos saberes e conteúdos ministrados, são apropriadas pelas instituições escolares que, gradativamente, começam a ampliar suas funções para a sociedade. (COELHO; PORTILHO, 2009, p.93). Concepção de currículo na perspectiva da Educação Integral: valorização do ser humano em todas as suas dimensões (afetivas, cognitivas, psicomotoras, sociais e culturais); integração entre todas as disciplinas do currículo; compreensão do sujeito multidimensional; associação entre educação e trabalho; efetivação do tripé cultura, conhecimento e lazer e educação como reconstrução da experiência humana. A partir de tal exposição, é possível perceber que o currículo da Educação Integral baseia-se na premissa de que é preciso trabalhar com os conhecimentos populares (oriundos da comunidade), não só para que os conteúdos curriculares (valorizados no contexto escolar) sejam contextualizados, mas para que também respondam aos próprios interesses dos sujeitos das classes menos abastadas, possibilitando a (suposta) superação das desigualdades entre os indivíduos que partilham a vida contemporânea. Por essa via de análise, é possível destacar o argumento de que através de um currículo fundamentado no tripé cultura, educação e lazer, os saberes historicamente excluídos do processo educacional, seriam valorizados, possibilitando temáticas significativas para que os educandos desenvolvam-se em todas as dimensões. Por outro lado, cabe ressaltar, que para determinar o que seria um currículo válido e que tipo de sujeito se pretende formar a partir de uma educação que supostamente desenvolva o indivíduo em suas múltiplas dimensões, precisam ser apontados critérios que implicam em seleções. Porém em uma perspectiva foucaultiana, as seleções não são incontestáveis (como parecem ser nos textos analisados), mas são igualmente produzidas – pois as mesmas não correspondem a uma realidade que estaria a priori como muitos teóricos críticos ainda argumentam em seus escritos. O currículo (seja ele qual for) é constituído por discursos que são instituídos dentro de uma determinada ordem. Nessa perspectiva, se compreendermos os discursos, como constituidores de realidades e modos de ver o mundo e os outros que estão a nossa volta, e não como uma meros reprodutores do “pensamento” humano, perceberemos os limites do currículo da educação integral. Por essa razão, pode-se dizer que é a articulação dos múltiplos discursos a respeito do que é considerado como sendo o currículo apropriado é que possibilita perceber o quanto os postulados curriculares no âmbito da Educação Integral são produzidos e, portanto passíveis de problematização. Isso significa, que mesmo uma proposta supostamente inovadora de currículo (que articula os saberes científicos e populares), deve ser lida a partir de uma matriz de inteligibilidade histórica, política e cultural, possibilitando uma variedade de modos de entender a mesma. Considerações Finais Através da análise das práticas de governamento postas em funcionamento por meio dos discursos oriundos das obras de Educação Integral analisadas, foi possível perceber a Educação Integral enquanto prática discursiva – ou seja, como um conjunto de enunciados pertencentes ao campo discursivo da educação cidadã. A análise da Educação Integral enquanto discurso, possibilitou o reconhecimento da mesma, dentro de uma determinada ordem, na qual estão articulados saber, poder e sujeição. Os discursos, retratados nas obras, tornam-se práticas concretas, na medida em que promovem formas de viver e de educar as classes populares no tempo presente. As estratégias são operacionalizadas a partir dos princípios de desenvolvimento da cidadania, de promoção da importância de constituição de uma cidade educadora e de construção de um currículo que possibilite o desenvolvimento integral dos educandos. Tais princípios (que serviram como unidades de análise para o presente trabalho) podem ser entendidos como estratégias de governamento que visam à regulação e normalização dos comportamentos dos educandos das classes populares, gestores e educadores, a partir de uma educação que supostamente privilegia o desenvolvimento da cidadania e o combate às desigualdades a partir da marcação da diferença entre quem detém o poder e quem é alijado do mesmo – fortalecendo o binarismo crítico entre dominantes e dominados, opressores e oprimidos. A partir de tais colocações, é possível inferir que os discursos sobre a Educação Integral são produzidos no âmbito da cultura, de que não existem métodos eficazes de promoção da cidadania (mesmo aqueles avalizados por “especialistas educacionais”), orientações capazes de superar desigualdades sociais historicamente produzidas, mas ações que podem ser construídas (e reconstruídas) pelos indivíduos no cotidiano de suas existências, em seus embates diários, em suas pequenas revoluções, a partir das experiências que os mesmos estabelecem com seus pares, com o mundo, e consigo mesmos ao problematizarem os discursos que os constituem enquanto sujeitos. Desse modo, é importante ressaltar que a pauta em questão, não é certamente a busca por explicações que apontem para o que seria efetivamente o modo mais eficaz de desenvolver a educação das classes populares em nosso país e a correlata promoção de uma educação cidadã que seja superadora das desigualdades, mas sim, a tentativa de produzir uma multiplicidade de modos de ver a ordem do discurso na qual a proposta de Educação Integral encontra-se inserida. Por essa razão, torna-se necessário (e extremamente urgente), perscrutarmos os discursos presentes nos artefatos culturais destinados à Educação Integral (como no caso das análises apresentadas no presente trabalho) tendo em vista a problematização dos mesmos e a desconstrução de seu caráter naturalizado e essencialista, já que o sujeito em uma perspectiva pós-crítica é tomado como um produto do discurso e das relações de poder e de saber que são impostas ao mesmo. Assim, talvez seja possível entendermos as formas pelas quais, diferentemente os discursos da Educação Integral, ensinam a significar o mundo, os outros e a nós mesmos a partir de seus postulados. Referências COELHO, Lígia Martha Coimbra da Costa et. al. (Org.). Educação Integral em tempo integral: estudos e experiências em processo. Petrópolis, Rio de Janeiro: FAPERJ, 2009. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1987. 120p. ______. Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2005. 77p. ______. Michel. Segurança, território e população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 130p. GADOTTI, Moacir. Educação Integral no Brasil: inovações em processo. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. SILVA, Tomaz Tadeu. A pedagogia psi e o governo do eu nos regimes neoliberais. In:___ (Org.). 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