Resumo: Neste artigo, procura-se descobrir o

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REVISTA ÂMBITO JURÍDICO
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Resumo: Neste artigo, procura-se descobrir o fulcro da Justiça, partindo-se do pensamento de Hans Kelsen e da filosofia platônica da justiça, cuja
compreensão requer as concepções de Platão acerca da verdade, do bem, da imortalidade da alma e da felicidade. A conclusão é no sentido de que
é impossível definir satisfatória e racionalmente a Justiça, sendo a sede de conhecimentos e o amor pela Filosofia as armas que a humanidade tem
às mãos para proceder ao cultivo diário da ciência jurídica, alçando os códigos legais positivistas a patamares sempre mais próximos da Verdade, do
Bem e da Justiça, de forma que se possa arregaçar as mangas na solução dos incontáveis problemas humanos e fazer a ponte entre os ideais e a
realidade do dia-a-dia, entre o abstrato e o concreto.
Palavras-chave: Justiça – Platão – Kelsen – Valoratividade – Transcendência
Abstract: The fulcrum of Justice is the object of these article, from de thought of Hans Kelsen and the platonic philosophy of justice, whose
understanding requires the ideas of Platão about truth, good and immortality of soul and happiness. The conclusion is that it’s impossible to define
Justice satisfactorely and rationally, being, in this context, the thirst for knowledge and love for Philosophy the weapons in the humanity hands to dialy
develop the legal science, taking the legal codes to levels as close as possible to the Truth, the Good and the Justice, in order to work around the
solution of the countless human problems and to conect the ideals with the current reality, and the abstract with the concrete.
Keywords: Justice – Platão – Kelsen – Valuation – Transcendence
Sumário: 1. Considerações preliminares; 2. Verdade e justiça; 3. Bem e justiça; 4. Imortalidade da alma e justiça; 5. Felicidade e justiça; 6. A título de
conclusão? Referências bibliográficas.
“A justiça é, fundamentalmente, aspiração do ser humano, que nasce com ele, acompanha-o durante toda a vida e não desaparece quando ele
morre. A aspiração de justiça do ser humano transcende sua própria morte, como também é anterior à sua existência. (MARTINS, 1999: 10)”
1. Considerações preliminares
Ler as obras de Platão (e as de seus intérpretes), apreciar a filosofia em geral e beber nessas fontes cristalinas a água pura de um soberbo
pensamento são atividades mui prazerosas e exercícios deveras interessantes, que às vezes nos aproximam do arrebatamento ora intelectual, ora
religioso.
Em diversas obras, Platão discorre sobre a justiça, seja preponderante, seja secundariamente considerado esse assunto. De início, é de bom alvitre
registrar que, como sempre, Platão faz verdadeiros malabarismos, incontestes acrobacias ao dissecar as idéias defendidas por estes ou aqueles
filósofos, e por ele mesmo, em seus famigerados diálogos (os diálogos platônicos). Além disso, há tautologias em tais diálogos.
Neste artigo, procura-se descobrir o fulcro da Justiça, partindo-se do pensamento de Hans Kelsen e da filosofia platônica da justiça, cuja
compreensão requer as concepções de Platão acerca da verdade, do bem, da imortalidade da alma e da felicidade.
2. Verdade e justiça
Platão reconhece a impossibilidade de se definir de forma satisfatória e racional a justiça. Realmente, pode-se dizer que há verdades que não são as
da razão, escapando a quaisquer tentativas de análise lógico-racional-científica.
Consoante Kelsen (1998 b: 16-17):
“As normas de justiça do tipo metafísico caracterizam-se pelo fato de se apresentarem, pela sua própria natureza, como procedentes de uma
instância transcendente, existente para além de todo o conhecimento humano experimental (baseado na experiência), pelo que pressupõem
essencialmente a crença na existência de uma tal instância transcendente. Estas normas são metafísicas não só pelo que toca à sua proveniência
mas ainda por seu conteúdo, na medida em que não podem ser compreendidas pela razão humana. O homem deve acreditar na justiça que elas
constituem – tal como acredita na existência da instância de que elas procedem –, mas não pode compreender racionalmente essa justiça. O ideal
desta justiça é, como a instância da qual ele provém, absoluto: de conformidade com o seu próprio sentido imanente, exclui a possibilidade de
qualquer outro ideal de justiça. [é por isso que se apresenta incompreensível a justiça divina, haja vista estar infinitamente além da racionalidade
humana]”
O grande filósofo continua:
“Não se deve negar que existe o problema da justiça absoluta no sentido de que os homens têm e provavelmente sempre terão a necessidade de
justificar a sua conduta como absolutamente boa, absolutamente justa; e também não se recusará que o positivismo jurídico relativista não pode
fornecer esta justificação. Porém, do fato de que uma necessidade existe não se pode concluir que tal necessidade possa ser satisfeita pela via do
conhecimento racional – que o problema possa ser resolvido por esta via. Antes, a ciência pode mostrar que ele não pode ser resolvido desse modo
porque não há nem pode haver justiça absoluta para um conhecimento racional, que se trata de um problema insolúvel para o conhecimento humano
– problema esse que, portanto, deve ser eliminado do domínio desse conhecimento. A tarefa do conhecimento científico não consiste apenas em
responder às perguntas que lhe dirigimos mas também em ensinar-nos quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido.” (KELSEN, 1998 b:
113-114)
Noutra de suas obras magistrais, Kelsen (1998 a) comenta sobre a “a impossibilidade, pelo caminho do conhecimento racional, de chegar a uma
definição satisfatória da justiça” (KELSEN, 1998 a: 110), porque a justiça “seria, na condição de algo divino, inexprimível por sua própria essência”
(KELSEN, 1998 a: 150).
A Verdade platônica está a serviço da justiça; logo, a esta subordinada, o que prova a relativização de princípios quando aplicados ao caso concreto.
Isso pode ser observado nos escritos de Xenofonte acerca de um diálogo de Sócrates e Eutidemo, em que se estudam o justo e o injusto:
“(...) quando uma pessoa, tendo um filho que precisa tomar um medicamento mas se recusa a fazê-lo, engana-o, dando-lhe o medicamento sob a
forma de comida, dessa forma curando-o, a que lado pertence esse engodo?’ ‘Creio que do lado da justiça’, respondeu Eutidemo. Não pode, pois,
haver qualquer dúvida de que a máxima ‘os fins justificam os meios’ – e, dentre esses meios, a mentira – era um componente bastante essencial da
ética socrática, como, fundamentalmente, sói acontecer com toda ética conseqüente, que nada mais pode fazer senão situar a justiça acima da
verdade. [...] Naturalmente, pressupõe-se aqui que o justo mente ou engana motivado unicamente por um bom propósito, e que verdadeiro é tudo
quanto é justo. Nesse sistema, a verdade indubitavelmente não é o valor supremo.” (KELSEN, 1998 a: 199-200).
A valoratividade de uma verdade, nessa ótica, é proporcional ao fim colimado, ou seja, o valor moral deve se fazer sentir na finalidade da ação
humana, para a qual são instrumentais “neutros” a verdade e a inverdade. É precisamente sob essa ótica que deve ser entendida a verdade
apregoada pelo Sócrates platônico (lembra-se que Platão expunha seus pontos de vista fazendo-se passar por Sócrates e por quaisquer outros
interlocutores de seus diálogos).
3. Bem e justiça
A justiça é o fulcro da filosofia platônica. E a principal idéia da filosofia de Platão é o Bem, ao qual todas as outras idéias se referem. Assim, na idéia
de Bem está a idéia de justiça.
Segundo Platão, o Bem, quando aplicado à vida em sociedade, confunde-se com a justiça, que é, assim, a felicidade coletiva[1]. Mas em que
consiste esse Bem, “que significa a felicidade tanto do indivíduo quanto do todo, visto que a felicidade não é um sentimento subjetivo, mas um estado
objetivo: a ordem da justiça?” (KELSEN, 1998 a: 447). Inclusive, Kelsen (1998 a: 361) afirma que “A justiça não pode ser um problema psicológico, a
não ser que se misture a psicologia à ética”.
Ao discorrer sobre a relação entre idéia e realidade, Kelsen (1998 a: 428) diz que a ação “será boa na medida em que esteja estabelecida numa
norma como ação devida, em que se situe no sistema de uma ordem normativa tida por válida”. O mesmo autor assevera:
“[...] Abstrair da validade de toda e qualquer norma de justiça, tanto da validade daquela que está em contradição com uma norma jurídica positiva
como daquela que está em harmonia com uma norma jurídica positiva, ou seja, admitir que a validade de uma norma do direito positivo é
independente da validade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são consideradas como simultaneamente válidas – é
justamente o princípio do positivismo jurídico. [KELSEN, 1998 b: 11) [daí falar-se em valor de justiça e valor jurídico]”
Por isso:
“A circunstância de que este relativismo [do positivismo jurídico] nos ‘deixa em apuros’ significa que ele nos obriga a tomar consciência de que a
decisão da questão nos pertence, porque a decisão da questão de saber o que é justo e o que é injusto depende da escolha da norma de justiça que
nós tomamos para base do nosso juízo de valor e, por isso, pode receber respostas muito diversas; significa que esta opção apenas pode ser feita
por nós próprios, por cada um de nós, que nenhum outro – nem Deus, nem a natureza, nem ainda a razão como autoridade objetiva – podem fazê-la
por nós. É este o verdadeiro sentido da autonomia da moral.” (KELSEN, 1998 b: 114)
A partir do exposto, pergunta-se: não existiriam boas ações além das previstas pelos códigos legislativos vigentes? Essas boas ações, não
catalogadas pelo direito positivo, não poderiam revestir-se de uma ética superior, comparativamente ao que propugna o positivismo jurídico? As
normas que se encontram para além do positivismo não parecem as mesmas normas apregoadas por jusnaturalistas? O direito natural, pois, estando
acima do direito positivo, não estaria a direcionar a ciência jurídica para o vislumbre de uma justiça mais perfeita?[2]
4. Imortalidade da alma e justiça
Platão utilizou, muitas vezes, o mito ao discorrer sobre a sua filosofia, lançando mão desse recurso para, por exemplo, legar à humanidade a idéia
das recompensas futuras (no Além) pelo bom ou mau proceder.
O mito (será mesmo mito ou a mais doce e consoladora esperança humana ou, mais que isso, a realidade em toda a sua pujança?) da existência da
alma antes e depois de sua passagem pelo mundo material (o aqui-e-agora), bem como o mito da retribuição no além (analisado à frente), não são
instrumentais a guiar a humanidade, de modo seguro, rumo aos píncaros do bom proceder, do bom agir, do bom sentir, do bom pensar? É
precisamente desse tipo de religiosidade que os homens necessitam quais náufragos nos turbilhões de sua existência, pontilhada de passagens
aterradoras e desestimulantes (as provas são encontradas ininterruptamente nos jornais diários, no viver de cada um, nos consultórios de psicólogos
e psicanalistas). A busca do divino, enfim, aparece como a tábua salvadora a dar alento no prosseguir da Jornada recheada de mazelas,
prosseguimento com essas mazelas ou sem elas, graças às mesmas e apesar delas. Essa Jornada é o evoluir humano intra e interpessoal, individual
e social. É para essa sublime caminhada que os homens são impulsionados pela crença (?!) na imortalidade.
Em estudando o filosofar platônico nesse terreno, pode-se alinhar o seguinte:
“[...] Sócrates apresenta o seguinte argumento em favor da veracidade da doutrina da imortalidade: se a alma não continuasse existindo após a morte
e se, portanto, não houvesse a retribuição no Além, ‘seria um bem-vindo presente para os maus, quando morrem, libertar-se não apenas do corpo,
mas, juntamente com este, da maldade apegada à sua alma’. O homem não teria motivo suficiente para, ao longo de sua vida, esforçar-se por ser
bom. O mito é verdadeiro porque, se não fosse, não haveria justiça – o Mau seria recompensado e nada haveria neste mundo que o inibisse.
Portanto, o mito é verdadeiro porque garante a justiça”. (KELSEN, 1998 a: 223).
Platão, ao preconizar a imortalidade da alma, assim procedia para tão-somente justificar o excepcional funcionamento da sociedade idealizada?[3]
Ele não diz que somos imortais? A verdade platônica acena como a dizer: “Vivam e sublimem suas vidas, porque viver no bem e para o bem ainda
vale a pena! Afinal de contas, Deus é Infinitamente Bom e nenhuma de suas ovelhas se perderá!” (aqui está um dos pontos de intersecção entre o
platonismo/socratismo e o cristianismo).
Essa doutrina da justiça faz perceber que Platão alude à existência da moralidade para o indivíduo e da justiça para a sociedade. A justiça seria a
“moralidade” aplicada à vida social.
Em conformidade com o pensamento platônico, somente através de sua alma, boa ou má, um juiz procede aos julgamentos. Daí verificar-se a
existência de julgamentos bons e maus, veredictos justos e injustos, em consonância com a natureza íntima de quem julga.
No Além está a sede da justiça, visto que aí se dá a retribuição às almas de seus comportamentos bons ou maus. Giram em torno da justiça todas as
atenções, porque ela determinará os destinos possíveis da alma no Hades (Além): a) Tártaro (o Inferno dos cristãos); b) Aqueronte (meio termo, tal
como o Purgatório); c) morada dos deuses (o Céu ou Paraíso). A imortalidade da alma existe, pois, em razão da justiça:
“‘não haverá para ela [alma imortal] qualquer proteção contra o mal nem qualquer outra salvação senão o esforço em tornar-se tão boa e sensata
quanto possível. Porque, em sua viagem para o Hades, nada mais leva consigo além de sua formação e educação moral, a qual, conforme se diz,
acarreta para o morto o maior benefício ou o maior prejuízo, já desde o início de sua viagem’. [refere-se ao livro Fédon] Da imortalidade da alma
decorre que se deve ser justo no Aqui, posto que somente assim seremos recompensados no Além; caso contrário, seremos punidos.” (KELSEN,
1998 a: 358-359).
A retribuição é a essência da justiça platônica, consoante suas obras Górgias, República e Leis. Precisamente em Leis, o chamado “princípio de
talião” faz-se presente em sua fórmula “olho por olho, dente por dente”.
Kelsen (1998 a: 284) diz que Platão buscou no pitagorismo a resposta para a questão da justiça:
“O cerne da doutrina pitagórica – ponto em que coincide com a sabedoria dos mistérios órficos – é a crença de que, após a morte do homem, seja no
Além ou em sua reencarnação no Aqui, a alma é punida pelo mal e recompensada pelo bem que fez. [...] Do ponto de vista político, essa metafísica
de um além da alma ou de sua transmigração significa uma doutrina da justiça. A essência dessa justiça é a retribuição, que, na medida mesmo em
que não se concretiza no Aqui e ao longo da vida do próprio homem bom ou mau, é deslocada para um Além, ou para uma segunda vida no Aqui.”
Kelsen (1998 a: 306) interpreta o mito da retribuição no Além como “instrumento ideológico” que visa à intimidação. Esse mito “é a essência da
religião órfica” (KELSEN, 1998 a: 309) e o instrumental educativo utilizado por Platão ao preconizar o comportamento social desejável. Platão lança
mão dessa crença órfica, apregoando-a como verdadeira, “porque [...] deseja contrapô-la à cética doutrina racionalista dos sofistas, da qual [...] teme
que advenha a desagregação da moral e, com esta, um abalo dos princípios sociais fundamentais de seu povo” (KELSEN, 1998 a: 309-310). Há de
se observar que os sofistas “negam a existência dos deuses” (KELSEN, 1998 a: 514).
“O Bem é [...] o cerne da justiça” (KELSEN, 1998 a: 448). No entanto, vista como paga (retribuição no Além), a justiça “é apenas uma técnica para a
realização do Bem: é – na medida em que cabe tomá-la em consideração no plano terreno – o Estado, com a paga funcionando como seu aparato
coercitivo. Cabe ao Estado garantir a vitória do Bem sobre o Mal no Aqui” (KELSEN, 1998 a: 448).
Contrariamente ao ponto de vista platônico, Protágoras apud Kelsen (1998 c: 310):
“ensinou que a técnica específica da ordem do Estado, que reage a um ato considerado socialmente prejudicial por meio de um ato coercitivo – uma
sanção, dirigida contra o delinqüente –, não é justificável pela idéia religiosa de retribuição, mas pelo intento racional da prevenção. A punição não
ocorre por alguma razão obscura, mas para um propósito claro. ‘Ninguém pune um malfeitor por causa de uma infração ou porque ele a cometeu, a
menos que se vingue irracionalmente como um animal selvagem. Mas quem leva a cabo a punição com razão não se vinga pela infração passada, já
que o que foi feito não pode ser desfeito. Contempla antes o futuro e tem em vista impedir aquela pessoa particular, e outros que o vêem punido, de
fazer mal novamente. Quem quer que pense desta maneira [...] pune para dissuadir.’”
5. Felicidade e justiça
A doutrina platônica da justiça faz alusão à Felicidade:
“O anseio pela justiça é o indestrutível anseio do homem pela felicidade. É justa uma ordem social capaz de fazer felizes todos os que lhe são
sujeitos. Se o homem, como ser social, não é capaz de encontrar a almejada felicidade como indivíduo isolado, ele a busca na sociedade. A justiça é
a felicidade socializada.” (KELSEN, 1998 a: 288) [4]
Precisamente nesse ponto da correlação entre justiça e felicidade, cabe esclarecer que Platão concebe felicidade e infelicidade no sentido ético (e
não psicológico). Significa dizer que estão fora de cogitação os conceitos de prazer e desprazer do entendimento comum, ligados à percepção do
que sejam felicidade e infelicidade para os homens. Noutras palavras, é o agir, moral ou eticamente considerado, que torna os homens felizes ou
infelizes e, por via de conseqüência, justos ou injustos. Não existe, pois, relação necessária entre felicidade e prazer, porém entre felicidade e justiça:
é preferível ser injustiçado a cometer injustiça.
A ordem justa é a que proporciona felicidade a todos. Justiça confunde-se, pois, com felicidade. Não se trata aqui da felicidade individualista, em que
a pessoa só vê a si mesma, mas da felicidade conjunta dos membros do grupo social, o que leva à conclusão de que se fazem necessárias
determinadas limitações à felicidade pessoal em prol da felicidade “num sentido objetivo-coletivo, nunca num sentido subjetivo-individual” (KELSEN,
1998 c: 3).
6. A título de conclusão?
Revolucionários são os preceitos doutrinários do Espiritismo quanto à justiça. É pertinente conhecê-los. Inclusive, Platão é considerado um dos
precursores da Doutrina Espírita.
“ ‘A justiça consiste em cada um respeitar os direitos dos demais.’ ” (KARDEC, 1987: 403). Não se restringem tais direitos àqueles consagrados pelas
leis humanas; pelo contrário, adentram as leis naturais, ou seja, o que comumente se denomina direito natural. E mais:
“876. Posto de parte o direito que a lei humana consagra, qual a base da justiça, segundo a lei natural?
‘Disse o Cristo: Queira cada um para os outros o que quereria para si mesmo. [...] Na incerteza de como deva proceder com o seu semelhante, em
dada circunstância, trate o homem de saber como quereria que com ele procedessem, em circunstância idêntica. [...]’
Efetivamente, o critério da verdadeira justiça está em querer cada um para os outros o que para si mesmo quereria e não em querer para si o que
quereria para os outros, o que absolutamente não é a mesma coisa. Não sendo natural que haja quem deseje o mal para si, desde que cada um
tome por modelo o seu desejo pessoal, é evidente que nunca ninguém desejará para o seu semelhante senão o bem. [...]” (KARDEC, 1987: 404).
A solidariedade humana – vê-se – é parte fundamental dessa doutrina. Indubitavelmente, se praticada, resolveria muitos problemas por que passa a
humanidade, com reflexos importantíssimos no aspecto social. A propósito, muitos autores falam a respeito da solidariedade/fraternidade como o
marco característico para os direitos humanos do século XXI.
O Art. 3º da Constituição Federal de 1988 merece ser destacado neste momento:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]
III – erradicar [...] a marginalização [...];
IV – promover o bem de todos [...]”
Adentra-se na 4ª geração dos direitos humanos (século XXI) e questiona-se: a República Federativa do Brasil, através de sua sociedade e de seu
governo, busca realmente a liberdade, a justiça, a igualdade[5] e a solidariedade efetivas para os seus Filhos Amados (os brasileiros) ou o Art. 3º da
Carta Magna de 1988 é um triste amontoado de letras legais frias e mortas?
Que “o sol da liberdade em raios fúlgidos” e o respeito à dignidade da vida humana sejam para todos – votos que devem ser firmados pelos cidadãos
do mundo, porque:
“Cidadania implica deixar de lado o egocentrismo. O cidadão deve cumprir seu papel social, ajudando a definir os significados (valores e idéias) que
devem ser respeitados para que os direitos formais se transformem em realidades concretas. “(LIBÓRIO, 1996: 41)
Após enveredar pelas alamedas insólitas do mundo ideal platônico e da filosofia em geral, resta uma ânsia pelo conhecimento, tal como se se
vislumbrasse, mediante a filosofia de Platão, a ponta de uma apoteose de saberes indevassáveis. É a mesma sensação com que o ser humano é
agraciado pela felicidade de apreciar as magníficas peças dos Imortais da música erudita: algo extasiante que se faz sentir com a aproximação da
perspectiva de contemplação do Absolutamente Belo.
Com a leitura de textos tão complexos quanto intrigantes, a sede de conhecimentos se multiplica. Adentrar no mundo ideológico de Platão faz amar a
Filosofia e viajar por caminhos mágicos. Essa sede, esse amor e essa viagem, na medida em que arrebata e deslumbra na perspectiva de o homem
contemplar algo de Absoluto (oh, quão grande é a pretensão humana!), inexprimível através da pobreza da linguagem humana e, quiçá e muito
provavelmente, até mesmo ininteligível, constituem armas que a humanidade tem às mãos, mediante as quais procederá ao cultivo diário da ciência
jurídica, alçando os códigos legais positivistas a patamares sempre mais próximos da Verdade, do Bem e da Justiça.
Dir-se-á que ainda vale a pena sonhar “um sonho intenso, um raio vívido de amor e de esperança”. Sem os suaves sonhos, os homens se tornariam
robotizados, privados do esforço evolutivo e sem vida.
Aliás, a esperança por dias ditosos é a estrela-guia que não permite o desânimo e o desencanto junto aos percalços cotidianos. Resta, no entanto,
jamais perdê-la de vista, de forma que se possa arregaçar as mangas na solução dos incontáveis problemas humanos e fazer a ponte entre os ideais
e a realidade do dia-a-dia, entre o abstrato e o concreto.
Bonilla (1998: 11), ao salientar a necessidade premente de a humanidade suplantar os paradigmas da “globalización caníbal” vigentes até então,
esclarece que a utopia, considerada como o impossível na acepção comum da palavra, só se caracteriza como tal em um dado contexto e “no es otra
cosa que una pre-figuración de la realidad [grifo do autor]. Esto significa, ni mas ni menos, que precisamos convivir com las dos [utopia e
realidade], porque no son otra cosa que dos aspectos, si bien opuestos en un cierto nivel, complementarios en otros.”
Assim, à utopia cabe o papel de fazer a ponte entre a “realidad potencial” e a “realidad manifesta”:
“[...] el ser humano, a través de todas las épocas, siempre participó de un juego equilibrado de realidades y utopias [grifo do autor]. En verdad
todas las ‘realidades’ existentes (un auto, un avión o una simple lapicera) fueron – en una época – apenas utopias.” (BONILLA, 1998: 8)
Que cada um comece a descortinar horizontes outros do viver humano em sociedade e a tentar acompanhar os passos mui dignos e dignificadores
da magistral diva que se chama Filosofia.
Referências bibliográficas: BONILLA, J. A. El resgate de la utopia ante la avalancha de la globalizacion. Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas,
Vitória da Conquista: NEPAAD/DCSA/UESB, ano 1, n. 2, p. 5-20, ago. 1998. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988.
KARDEC, A. O livro dos espíritos. Tradução por Guillon Ribeiro. 65. ed. Brasília: FEB, 1987. KELSEN, H. A ilusão da justiça. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. _______. O problema da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ________. O que é justiça? A justiça, o direito e a
política no espelho da ciência. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LIBÓRIO, M. G. C. Cultura, socialização e cidadania. Colloquium: Revista
Científica da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, v. 2, n. 1, p. 34-42, 1996. MARTINS, I. G. da S. A ética no direito e na economia. In:
MARTINS, I. G. (Coord.). Ética no direito e na economia. São Paulo: Pioneira/Academia Internacional de Direito e Economia, 1999. PEGORARO, O.
A. Ética é justiça. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 1997. ________. Diálogos/Platão: O banquete –
Fédon – Sofista – Político. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Notas:
[1]
Aborda-se adiante a correlação platônica entre justiça e felicidade. [2]
Ao direito natural cabe a apreciação do conteúdo do
direito positivo. À norma fundamental (kelseniana) cabe a fundamentação de validade do direito positivo. Daí a afirmação de Kelsen (1998 b: 117) no
tocante à “função ético-política de justificação” do direito positivo. [3]
Referência à cidade perfeita de que trata a inigualável obra A República
. [4]
“Com a mesma naturalidade com que é animal racional, o homem é também ‘animal político’ (politikon zoon), que só atinge a realização
de sua natureza na comunidade. Ninguém é virtuoso para si; ninguém é feliz sozinho; o homem solitário é inexplicável: ‘ou é um deus ou uma besta’.”
(Aristóteles apud PEGORARO, 2000: 29) [5]
Conforme Kelsen (1998 b), o princípio da igualdade é um princípio de lógica; não é um princípio
de justiça. A igualdade perante a lei significa conformidade com a lei, com o que a lei dispõe (diz respeito à lógica e não à justiça). Por sua vez, a
igualdade na lei refere-se ao conteúdo da lei.
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