1 O ARRENDAMENTO DA TERRA NO ASSENTAMENTO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBARLÂNDIA – UFU
INSTITUTO DE GEOGRAFIA – IG
LABORATÓRIO DE GEOGRAFIA AGRÁRIA – LAGEA
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II ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA
O ARRENDAMENTO DA TERRA NO ASSENTAMENTO SÃO LEOPOLDO SANT’ANA DO LIVRAMENTO/RS: iniciação uma discussão1
Marcelo Cervo Chelotti 2
Vera Lúcia Salazar Pessôa 3
Resumo
A Campanha Gaúcha se tornou na contemporaneidade a principal área de reforma agrária e de
instalação de assentamentos rurais no Rio Grande do Sul. Assim, após a conquista da terra, novos
desafios foram postos para os assentados, onde estes têm que explorar o lote para sua reprodução
enquanto camponês/agricultor familiar. No entanto, em alguns assentamentos rurais verifica-se a
prática do arrendamento da terra, principalmente em áreas propicias para o cultivo do arroz
irrigado, tornando-se uma estratégia de geração de renda para esses indivíduos, como é o caso do
assentamento São Leopoldo, localizado no município de Sant’Ana do Livramento/RS. Portanto,
analisar as estratégias de reprodução dos beneficiários da reforma agrária torna-se cada vez mais
complexa, uma vez que as práticas até então utilizadas pelos grandes proprietários fundiários, são
também incorporadas pelos assentados, ou seja, obter a renda fundiária a partir do arrendamento
de parcelas do assentamento para a agricultura moderna.
Palavras-Chave: arrendamento da terra; assentamentos rurais; Campanha Gaúcha.
INTRODUÇÃO
O universo interno dos assentamentos é bastante complexo e heterogêneo. Cada projeto,
dependendo dos fatores históricos, políticos, culturais e também ambientais, se organizará de uma
determinada maneira. É por isso que cada caso em estudo tem sua particularidade, embora
estejam no contexto de um mesmo processo, ou seja, luta e conquista pela terra.
1
A presente discussão é parte integrante do projeto de tese “Do latifúndio aos assentamentos: a nova (re)
configuração regional na Campanha Gaúcha” vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal de Uberlândia/MG.
2
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG. Bolsista da
Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG. Endereço: Laboratório de Geografia
Agrária/LAGEA, sala 1 H 02, Bloco 1H, Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2160, CEP 38.408-100,
Uberlândia (MG). Tel: (34)3239-4169 - ramal 47.E-mail: [email protected]
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Professora no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG. E-mail:
[email protected]
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Portanto, discutir a reforma agrária na Campanha Gaúcha é mergulhar num universo que
até o ano de 2005 contava com 61 assentamentos rurais, distribuídos por vários municípios.
Porém, a maior concentração ocorre basicamente, em Sant’Ana do Livramento com 23
assentamentos, e Hulha Negra com 25 assentamentos.
Embora seja um universo bastante considerável, acreditamos que é na análise de cada
projeto de assentamento rural que serão encontrados elementos que explicam como essas famílias
estão se reproduzindo e sobrevivendo. Assim, procuramos a partir do caso do assentamento São
Leopoldo, localizado no município de Sant’Ana do Livramento, entender as causas e as
conseqüências da prática do arrendamento de parcelas de terra do assentamento para o cultivo de
arroz irrigado.
Essa constatação somente foi possível devido ao trabalho de campo que realizamos nos
meses de janeiro/fevereiro de 2006, onde verificamos que a prática do arrendamento da terra,
pelo menos no assentamento São Leopoldo, vem sendo realizada , e representa uma alternativa de
geração de renda para os assentados.
Nesse sentido, o presente artigo encontra-se estruturado em três partes, além da
Introdução e Considerações finais. Na primeira fazemos uma breve discussão sobre a prática do
arrendamento da terra, mostrando suas origens no início do século XX na lavoura orizícola do
Rio Grande do Sul, bem como sua expansão em direção à Campanha Gaúcha no pós 1950. Na
segunda parte, apresentamos o processo de luta pela terra e reforma agrária na Campanha Gaúcha
nos anos 1990, mostrando alguns fatores que potencializaram a instalação de assentamentos
rurais nessa região, e os desafios para seu desenvolvimento e emancipação. Na terceira parte,
realizamos um estudo de caso no assentamento São Leopoldo, localizado no município de
Sant’Ana do Livramento, onde constatamos a prática do arrendamento da terra para o cultivo do
arroz irrigado, tentando entender suas causas e conseqüências.
O ARRENDAMENTO DA TERRA: algumas considerações
A propriedade privada da terra no Brasil encontra suas raízes na lei de terras de 1850,
onde a terra tornou-se monopólio de uma pequena parcela da população4. A partir da exploração
4
Maiores detalhes sobre o efeito da lei de terras de 1885, consultar Silva (1996).
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econômica da propriedade privada gera-se a renda da terra, também chamada de renda territorial
ou renda fundiária. Assim, no modo de produção capitalista a terra não tem valor, mas tem um
preço, onde a compra de uma parcela do território dá ao proprietário o direito de cobrar da
sociedade a renda que ela pode vir a dar, ou seja, compra a renda capitalizada da terra5.
Assim, o arrendamento da terra é uma forma de se obter renda fundiária, onde os
capitalistas que não possuem terras aplicam capital para colocá-las a produzir. No caso da
agricultura brasileira essa prática é anterior ao processo de modernização que começou em
meados da década de 1960 em algumas regiões do país, como São Paulo e Rio Grande do Sul.
Conforme Beskow (1986), o arrendamento capitalista na agricultura brasileira
desenvolveu-se originalmente na lavoura orizícola irrigada do Rio Grande do Sul, caracterizada
pelo envolvimento de três classes sociais fundamentais em sua produção (os proprietários
fundiários, os arrendatários capitalistas e os assalariados rurais).
Em 1906, instala-se em Cachoeira do Sul a primeira lavoura irrigada com levante
mecânico [...]. Foi organizada por um grande proprietário fundiário, criador de gado e
advogado, em sociedade com um comerciante e advogado além de outro comerciante,
sendo esta lavoura junto com as de Pelotas consideradas o marco da agricultura
capitalista no Rio Grande do Sul onde começa verdadeiramente a história da grande
orizicultura no Rio Grande do Sul. (BESKOW, 1986, p.44)
Podemos dizer então, que desde os primórdios da inserção da lavoura orizícola baseada na
produção para o mercado, esta lavoura esteve altamente associada à pecuária de corte, onde estas
duas atividades começaram a dividir espaços e constituiu uma nova forma de exploração da terra.
Assim, durante os períodos de crise da pecuária, uma das alternativas era arrendar parcelas de
terra para os orizicultores.
O pagamento da renda fundiária ao estancieiro (proprietário de terras) se faz de várias
maneiras, seja o pagamento de uma quantia fixa pré-estabelecida antes da safra por área
arrendada, com sacas de arroz ou em dinheiro; até o estabelecimento de uma porcentagem da
produção obtida na área arrendada, também pago em sacas de arroz ou dinheiro.
O avanço da lavoura orizícola em direção aos municípios da Campanha Gaúcha no
período pós 1950 deu-se em função do esgotamento das terras nas áreas tradicionais de produção,
5
Maiores detalhes sobre a renda da terra, consultar Oliveira (1990).
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em torno de Pelotas e Cachoeira do Sul. O aumento na área cultivada por arroz foi influenciado
pela demanda de gêneros alimentícios de uma classe média emergente no Brasil, que cada vez
mais industrializava-se e urbanizava-se. Assim, áreas de pecuária tradicional começaram a ceder
espaços para uma agricultura comercial, que desafiava o poder econômico regional, constituído,
ao passar das décadas, pela classe latifundiária.
Assim, a Campanha Gaúcha, que historicamente possuía sua base econômica na atividade
pastoril, insere-se em um novo padrão de exploração do solo, a agricultura capitalista, sustentada
basicamente pela orizicultura. Mas, é importante deixar bem claro que esta nova reestruturação
econômica não foi capaz de desestruturar o espaço latifundiário, pelo contrário, o pecuarista
usufruiu sua condição de proprietário para arrendá-la.
Haesbaert ao fazer uma análise da modernização da agricultura na Campanha Gaúcha,
destaca as contribuições de Bernardes (apud HAESBAERT, 1988, p 5) sobre o cultivo do arroz
A rizicultura não alterou a estrutura agrária da Campanha. A inteira dissociação com que
se dedicam as duas atividades esta bem evidenciada no modo como uma sucede a outra na
mesma área. Constroen-se as” taipas”, pequenos diques que cercam os arrozais inundados,
e planta-se o arroz, um ou vários anos em cada local. Realizada a ultima colheita, o
terreno cobre-se naturalmente de pastagem que o gado passa a ocupar, não havendo
obrigação alguma para o lavrador de entrega-lo em pastos especialmente cultivados.
Percebe-se então, que o pecuarista explorava sua terra em duas formas bem distintas entre
si, mas que em um dado momento se completavam, ou seja, na medida em que a lavoura era
colhida e o arrendamento era pago, o pecuarista voltava a colocar sua criação na área
anteriormente destinada a orizicultura, não tendo interesse algum em vender sus terras para os
agricultores.
[...] os seguintes fatores contribuíram para uma certa rigidez no mercado de terras
destas regiões arrozeiras: recebimento de uma elevada renda fundiária pela cessão da
temporária da terra para o arrendatário de arroz, sem o mínimo gasto e esforço e muitas
vezes dentro de uma estrutura de fazenda dedicada a pecuária, em que a relação
excedente / valor do patrimônio e baixa [...] recebimento ao termino do contrato de
arrendamento, das benfeitorias construídas pelo arrendatário, especialmente do açude e
demais obras destinadas a irrigação. (BESKOW, 1986, p. 165)
A preservação do espaço latifundiário da Campanha Gaúcha, não corresponde, todavia, a
um domínio econômico de mesma ordem, já que a produtividade da pecuária não se compara a da
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agricultura moderna do arroz irrigado, embora na contemporaneidade sejam atividades
complementares. No entanto, vários foram os fatores que condicionaram a preservação desse
espaço latifundiário na região.
[...] a importância adquirida pelo latifúndio como base do poder econômico e político,
na sustentação de uma fração regional de classe [...], o papel secundário da pecuária na
política econômica nacional, o que desestimulava sua transformação em atividade de
caráter intensivo [...] a crença que predominou entre os estancieiros e que apenas em
parte é verdadeira, de que as áreas de campo não são próprias para a agricultura, e de
que a pecuária, sendo menos vulnerável as oscilações climáticas da região, teria maior
garantia de rentabilidade. (HAESBAERT, 1988, p. 60)
Portanto, a lavoura orizícola não foi capaz de alterar a estrutura fundiária da Campanha
Gaúcha, mas representou um novo “ciclo” econômico, no qual foi capaz de substituir o poder
econômico da pecuária em detrimento a lavoura altamente capitalista, que dinamizou a economia
regional gerando maiores divisas, embora ocupando menos de 10% da área territorial.
A penetração do capital dos “colonos”, através da empresa rural agrícola ou granja,
especialmente no setor orizícola, tem sido agente de mais intensa transformação sócioespacial da campanha Gaúcha nos últimos anos. Apesar de manter estreito vinculo com
a pecuária intensiva, no sentido de corresponder ao mesmo modelo internacional de
desenvolvimento capitalista, ela resultou da expansão da empresa rural implantada por
descendentes de imigrantes das várzeas do centro-sul do estado. Estabeleceu assim, a
articulação definitiva com a zona colonial rio-grandense e fortalece hoje a vinculação
externa da Campanha, como mais um produto voltado basicamente para o
abastecimento do centro do país. (HAESBAERT, 1988, p. 63).
Notamos, assim, que a Campanha Gaúcha projetou-se mais uma vez a âmbito nacional,
porém neste período com a lavoura orizícola e não com as charqueadas. Neste sentido, as
relações de trabalho inseridas nesta região não foram capazes de transformar definitivamente o
espaço regional e, sim, conquistar espaços tímidos de agricultura moderna na mais tradicional
área de pecuária do Rio Grande do Sul.
A pesar da terra concentrar-se nas mãos dos tradicionais pecuaristas, alguns agricultores
tornaram-se proprietários, na medida em que conseguiram, com o passar dos anos, adquirir
propriedades de pecuaristas que não resistiram às crises da atividade, e tiveram na venda de suas
terras a única solução para seus problemas econômicos. Mas em regra geral, a terra continuou
concentrada na Campanha Gaúcha.
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No entanto, a concentração da terra somente passou a ser questionada na medida em que
ocorreu o avanço dos movimentos sociais no campo, principalmente o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem terra (MST), forçando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), a realizar vistoriar nos índices de produtividades das estâncias6 localizadas na
Campanha Gaúcha.
LUTA PELA TERRA E REFORMA AGRÁRIA NA CAMPANHA GAÚCHA
A partir da década de 1990 a Campanha Gaúcha inseriu-se no processo de reorientação
geográfica dos projetos de assentamentos rurais no Rio Grande do Sul, reflexo do acirramento da
luta pela terra organizada pelo MST, tornando-se foco de luta pela terra por deter áreas ociosas
provenientes em grande parte, de uma pecuária tradicional que não se modernizou e, cuja cadeia
produtiva, encontrava-se desestruturada.
Para Riedl e Navarro (1998) as propriedades rurais da Campanha Gaúcha passaram a ser
vistoriadas pelo INCRA, em função de apresentarem baixos índices de produtividade, bem como
de lotação dos campos. Assim, a reorientação da luta do MST em direção à Campanha Gaúcha
consolidou-se na medida em que ocorreu o esgotamento de propriedades a serem adquiridas em
outras regiões do estado.
Nesse sentido, na medida em que foram sendo conquistados os primeiros assentamentos
rurais na década de 1990, o espaço latifundiário regional, mais uma vez, passou a ser afrontado e
questionado, só que nesse período pelos colonos sem terra e não pela lavoura moderna do arroz
irrigado e da soja.
No entanto, há que se destacar que no caso dos assentamentos rurais, esse questionamento
sobre o espaço latifundiário pastoril concentrou-se mais no âmbito do simbólico do que numa
efetiva ruptura na estrutura fundiária regional. Isso porque as áreas conquistadas pelos
assentamentos rurais são bastante tímidas, em termos de hectares, ao serem comparadas com as
áreas ocupadas pelo espaço latifúndio pastoril.
6
De origem castelhana, é a denominação dada aos grandes estabelecimentos rurais (latifúndios) destinados à criação
de gado (bovino e ovino) no estado do Rio Grande do Sul, também denominada de fazenda em outras regiões do
país.
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No ano de 2005 existiam na Campanha Gaúcha 61 assentamentos rurais instalados, onde
foram assentadas mais de 2.000 famílias. Na sua maioria, são provenientes de outras regiões
gaúchas. Mas a instalação desses assentamentos concentrou-se basicamente em dois municípios:
Sant’Ana do Livramento, com 23 assentamentos, e Hulha Negra com 25 assentamentos.
Assim, é importante destacar que a reterritorialização dos sem-terra ocorreu em lotes que,
geralmente, não ultrapassam o módulo rural da região, ou seja, 28 hectares, acentuando-se dessa
maneira um intenso processo de minifundização, que poderá, em um curto prazo, inviabilizar a
reprodução social dessas famílias.
Para Navarro, Moraes e Menezes (1999) existe sim uma problemática referente à
sustentabilidade dos assentamentos na Campanha Gaúcha, pois são terras inapropriadas para o
uso agrícola intensivo, dificultando desta forma a inserção e reprodução da agricultura familiar.
No entanto, ao mesmo tempo em que existe uma problemática quanto à sustentabilidade
desses assentamentos, ocorre a possibilidade da potencialização e/ou inserção de novas
atividades, formas de organização que, aos poucos, vão superando esses obstáculos.
Nesse contexto, a reterritorialização de milhares de trabalhadores, ao mesmo tempo em que
foi responsável pela introdução de novos atores sociais nesse espaço regional -“os sem terra” -,
também traz à tona uma série de desafios para a manutenção dessas unidades produtivas.
O ARRENDAMENTO DA TERRA NO ASSENTAMENTO SÂO LEOPOLDO: causas e
conseqüências
A temática que ora segue é um tanto complexa, tendo em vista a pouca discussão e
produção teórica. No entanto, antes de tecermos algumas considerações sobre o caso do
assentamento São Leopoldo, há que se destacar que a prática do arrendamento, ou seja, a locação
de parcelas do assentamento para terceiros é um fenômeno que está sendo evidenciado em várias
partes do país, embora pouco trazidos à tona.
De uma certa maneira, essa problemática tem sido apontada por alguns pesquisadores, no
entanto ainda um pouco tímida, talvez pelas nuances que poderão surgir a partir daí. Nesse caso
podemos citar o trabalho de Martins (2003), O sujeito oculto, onde o autor aborda a questão da
renda da terra nos assentamentos. A pesquisadora Vera Lúcia Botta Ferrante, também tem
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discutido essa questão, principalmente no que se refere ao arrendamento de parcelas dos
assentamentos rurais para plantio de cana-de-açúcar em assentamentos do interior de São Paulo7.
Miguel (2003) detectou que no Pontal do Parapanema/SP o arrendamento de lotes por
parte dos assentados é prática que vem se difundindo nos assentamentos. Nos assentamentos do
INCRA que foram arrendados para a plantação de cana, a autora percebeu, após dois anos de
cultivo, que a função estava sendo desrespeitada, onde as lideranças locais passaram a negociar
com os assentados, dizendo que eles poderiam permanecer nas terras se abandonassem o cultivo
da cana-de-açúcar.
O recrutamento dos desempregados das cidades como estratégia principal de luta pela
terra tem sido feito pelo MST. Nas considerações de Caume (2004)
esta provocará o
aprofundamento dos impasses e inviabilidades que caracterizam a reforma agrária. A principal
conseqüência desse processo, sem dúvida, é o crescente fenômeno de venda e arrendamento de
terras nos assentamentos. Os comprometidos com a bandeira da reforma agrária não podem
ignorar esse grave fenômeno que contribui, enormemente, para deslegitimar a luta social pela
terra.
O arrendamento de terras é também uma problemática nas terras indígenas, como na
Reserva da Guarita/RS, localizada entre os municípios de Miraguaí, Tenente Portela e Redentora,
também é uma prática vigente, embora não seja área de reforma agrária. De acordo com as
instituições envolvidas, o arrendamento prejudica a população indígena, na medida em que divide
a comunidade, pois somente aqueles que detêm as maiores quantidades de terra ganham algum
dinheiro. As terras indígenas, segundo dispõe o artigo 231 da Constituição Federal, pertencem à
União, cabendo aos índios o seu usufruto exclusivo. A prática de arrendamento de terras
indígenas é proibida e configura crime, conforme o artigo 2º da Lei nº 8.176/91.
(http://www.pgr.mpf.gov.br)
A difusão da prática do arrendamento de parcelas dos assentamentos necessita ser melhor
analisado para se entender suas reais causas. Portanto, tentaremos tecer algumas considerações a
partir de uma constatação empírica realizada no assentamento São Leopoldo, localizado no
7
Discussão apresentada no Simpósio Nacional de Reforma Agrária: balanço crítico e perspectivas, realizado de 10 a
12/04/2006, UFU - Uberlândia/MG
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município de Sant’Ana do Livramento/RS, durante a primeira fase do nosso trabalho de campo
em janeiro e fevereiro de 2006.
O assentamento São Leopoldo é um dos 61 assentamentos instalados na Campanha
Gaúcha no decorrer da década de 1990, sendo criado no ano de 1997 sob responsabilidade do
INCRA, contendo 44 famílias assentadas numa área de 1.274 hectares, e distante a 40 Km do
centro urbano do município de Sant’Ana do Livramento.
As famílias assentadas são majoritariamente do norte do estado (áreas coloniais), traço
esse marcante na organização dos lotes, na arquitetura das casas, e nos jardins. O assentamento
está dotado de estradas internas, que dão acesso a BR 290, contando com rede de transmissão de
energia elétrica atendendo todos os lotes, bem como de transporte coletivo e escolar.
A antiga sede da estância, onde tem a casa, o galpão e as mangueiras (curral), serve com
local de reuniões e também é sede regional do MST. É aí que se localiza o resfriador de leite
(tanque de expansão).
No assentamento são cultivados produtos voltados para o abastecimento interno, como
batata, mandioca, milho, e também externo como é o caso do leite. A produção de leite encontrase organizada, tendo em vista a existência de plantéis de vacas leiteiras (divididas em Holandesas
e Gersey), está última mais adaptada à rusticidade dos campos fronteiriços. A produção de leite é
absorvida pelas empresas Consulati (Pelotas) e Elegê (Teutônia), que buscam o leite no
assentamento , usando caminhões tanqe.
Sendo assim, a única atividade que gera renda fixa é a produção de leite. Esta garante o
pagamento da energia e a aquisição de produtos não cultivados no lote. Com isso torna-se
evidente a dependência dos assentados em relação à pecuária leiteira, uma vez que o
desenvolvimento de lavoura torna-se prejudicado em função da existência de déficit hídrico na
região nos meses de janeiro e fevereiro, exceto em anos do fenômeno e La Niña.
Em função das periódicas secas que ocorrem na região no verão, o cultivo de lavouras
como a do milho, principal grão consumido no interior do lote, tanto para a alimentação humana
como animal, fica prejudicado, pois são afetados diretamente em seu ciclo produtivo. Assim, ao
longo desses quase 10 anos de existência do assentamento, várias safras foram comprometidas
em função das sucessivas estiagens, desestimulando os assentados.
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Portanto, os assentados tiveram que se adaptar às condições ambientais da região, que
possuí verões bem quentes e secos e invernos chuvosos e bem frios. A partir dessas
características anteriormente mencionadas, o cultivo de lavouras passou para um caráter
secundário no assentamento, considerando que em suas regiões de origem esses assentados
priorizavam o cultivo de lavouras.
Nesse sentido, a condição climática é um dos fatores que está afetando o desenvolvimento
do assentamento São Leopoldo, tendo em vista que os cultivos tradicionais de verão não são
garantia de colheita farta, muito menos de manutenção alimentar humana e animal. É por isso que
a produção de leite é desenvolvida em todos os lotes, porque a alimentação animal pode ser
obtida a partir do cultivo de forrageiras no período de inverno e seu posterior armazenamento
para períodos de pouca disponibilidade alimentar.
Mediante os fatores anteriormente mencionados, e perante a necessidade de geração de
renda para a manutenção das famílias assentadas, parcelas do assentamento passaram a ser
arrendadas para terceiros, principalmente para o cultivo do arroz irrigado. Mas antes valeria a
pena discorrer sobre essa prática antes da estância se transformar em assentamento.
A estância São Leopoldo antes de transformar-se num assentamento desenvolvia pecuária
de corte e agricultura, sendo a agricultura era realizada sob forma de arrendamento para terceiros.
Assim, uma parcela da estância era arrendada para o cultivo de arroz irrigado, já que existia uma
barragem (represa) para irrigação da várzea cultivada.
Como abordamos anteriormente, o arrendamento de terras da estância começou com o
avanço do cultivo do arroz irrigado na Campanha Gaúcha, configurando-se como mais uma
alternativa de renda para os proprietários de terra da região.
Ao se transformar em assentamento, a estância foi fragmentada em 44 lotes, mas aqueles
assentados que foram contemplados com áreas de várzeas pouco sabiam como trabalhar em terras
úmidas, até por não possuírem maquinários e tecnologia adequada, prejudicando, assim, a
exploração do seu lote, tornando-se áreas sub-utilizadas para agricultura. Portando a não
exploração dessas áreas, associada ao fracasso, ano a ano, no cultivo de lavouras não irrigadas,
tornou essas áreas ociosas já que não foram mais exploradas.
A existência de uma demanda, por parte dos arrendatários capitalistas por terras
apropriadas para o cultivo de arroz irrigado, bem como a sub-utilização por parte dos assentados
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das áreas de várzea do assentamento São Leopoldo, ao nosso ver, favoreceu a idéia do
arrendamento. Há que se destacar que o arrendamento de parcelas dos assentamentos é uma
prática cada vez mais comum na região, principalmente em assentamentos onde existe terra
apropriada para o cultivo para o arroz irrigado.
Conforme verificamos em janeiro/fevereiro de 2006, existia dentro do assentamento um
lote que se encontrava sub-alocado e que servia como sede para uma granja8, ou seja, onde
estavam alocados os maquinários e funcionários que trabalhavam na lavoura, cultivada na parcela
arrendada do assentamento, como mostra as figuras 1 e 2.
Aparentemente a presença de uma granja no interior do assentamento São Leopoldo, ao
mesmo tempo em que parece contraditória, ela também é complementar. Contraditória na medida
em que se trata de uma “área reformada”, ou seja, uma estância que se transformou em
assentamento através da reforma agrária, onde os assentados que tanto lutaram pela terra, agora
teriam a chance de se reproduzir enquanto produtores familiares. No entanto, é também
complementar, pois como não possuem maquinário para cultivar a terra, o granjeiro presta
serviços principalmente para o cultivo de pequenas lavouras (principalmente o milho), caso
contrário o serviço teria que ser feito sob forma de tração animal, ou através da contratação de
serviços de terceiros.
8
A empresa rural é identificada no Rio Grande do Sul como granja. Assim sendo, o granjeiro é um proprietário ou
arrendatário de áreas médias. Trata-se de um grupo social ascendente, nascido com a modernização da agricultura,
particularmente pela via trigo-soja, necessitando de trabalho alheio complementar para viabilizar o sistema produtivo
de tipo intensivo. (GEHLEN, 1994, p 161)
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Figura 1: Assentamento São Leopoldo: vista parcial do lote onde se localizava a “granja”
Fonte: Trabalho de campo jan/2006
Autor: Chelotti (2006)
Figura 2: Assentamento São Leopoldo: tratores e implementos agrícolas da “granja”
Fonte: Trabalho de campo jan/2006
Autor: Chelotti (2006)
O que se evidencia, pelo menos no assentamento São Leopoldo é que os assentados estão
obtendo a renda da terra a partir do arrendamento de parcela do assentamento. No entanto, não
são arrendamentos formais, pois legalmente essas terras não podem ser exploradas, se não pelos
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próprios assentados. O que ocorre são acordos informais entre os assentados, geralmente o
coordenador e o granjeiro, arrendatário capitalista, que vai explorar a terra por uma, duas ou três
safras, dependendo do acordo estabelecido.
A área arrendada equivale a 200 hectares, divididos em duas partes, onde somente uma foi
cultivada na safra 2005/2006, já que a terra não é cultivada dois anos seguidos com a mesma
cultura. Nesse sentido, a porcentagem a ser paga será sob a produção obtida no cultivo da metade
dessa terra, que geralmente é paga em dinheiro no final da colheita que ocorre em maio.
Conforme informações que obtivemos, o acordo realizado entre o granjeiro e os
assentados para a safra de 2005/2006, garantia uma porcentagem de 30% da produção total de
arroz colhido no assentamento, convertido em dinheiro, e que será posteriormente repartido em
partes iguais entre as 44 famílias. No entanto, não obtivemos confirmação de informações que
indicam que uma parcela da renda também é repassada à sede regional do MST, visando a
manutenção dos custos com seus coordenadores em reuniões, mobilizações dentre outros.
Nesse sentido, para Oliveira (1984) trata-se da renda da terra pré-capitalista mais
desenvolvida.
[...] a terceira forma de renda pré-capitalista é a renda em dinheiro, que se origina da
conversão, da simples metamorfose da renda em produtos, que por sua vez é oriunda da
transformação da renda em trabalho, em renda em dinheiro. [...] por outras palavras, o
trabalhador ao invés de entregar parte do seu produto colhido ao proprietário do terreno,
converte esse produto em dinheiro e entrega ao proprietário de terra. (OLIVEIRA,
1984, p. 95)
Essas são questões, que ao nosso ver, são pouco faladas pelos coordenadores do MST, ou
são meramente ocultadas, uma vez que distorcem o ideário da reforma agrária. A partir dessa
constatação, uma pergunta nos vem em mente. Qual seria então a diferença entre os antigos
proprietários (estancieiros) e os assentados, se ambos arrendam a terra? Não seriam os assentados
os novos proprietários fundiários que passaram a obter a renda da terra a partir do arrendamento?
Qual a necessidade dessa prática frente à “necessidade” da realização de uma pela reforma
agrária? Em que medida o assentamento está se diferenciando da estância?
Dessa forma, entendemos que a prática do arrendamento realizada pelos assentados,
mostra um profundo processo de metamorfose na própria história do desenvolvimento do campo,
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na medida em que passaram da condição de sem terra, ou seja, expropriados, para a condição de
proprietários de terra, ou seja, exploradores da renda da terra.
Essa metamorfose torna-se evidente, ao observarmos as colocações de Oliveira (1984)
sobre quem são os expropriados e os proprietários de terra.
Esta forma também comum na agricultura brasileira, onde um grande número de
trabalhadores expropriados de suas terras, arrendam terras de outros proprietários (em
geral grandes) para produzirem, geralmente através do trabalho familiar. Diferem,
portanto dos arrendatários que são os capitalistas que não possuem terras, mas que com
o seu capital arrendam terras de outros proprietários para, através do trabalho
assalariado, colocá-las para produzir. (OLIVEIRA, 1984, p. 95)
No entanto, não podemos generalizar o caso do assentamento São Leopoldo para as
demais áreas de reforma agrária. Mas há que se considerar que muitos conceitos clássicos
deverão ser revistos à luz das circunstâncias ora apresentadas. Não queremos entrar na discussão
se a renda obtida é pré-capitalista ou capitalista, pois já seria outra discussão, mas considerar a
prática do arrendamento de parcelas de suas terras, uma prática exógena da reprodução do
campesinato/agricultura familiar.
No caso do assentamento São Leopoldo, torna-se difícil dizer que ocorreu uma
transformação em relação ao período anterior em que ainda era estância. Aparentemente a
mudança se deu mais no âmbito espacial, já que a área foi dividida em 44 lotes, e centenas de
pessoas passaram a viver e (re) construir suas vidas. No entanto, em relação à renda da terra,
tanto a antiga estância, como o atual assentamento, utilizaram-se do arrendamento da terra para
obter mais renda.
Portanto, mais do que nunca, torna-se necessário que os futuros projetos de assentamentos
rurais sejam pautados em estudos mais elaborados sobre a potencialidade de exploração da terra,
acesso a investimentos e infra-estrutura, bem como de um forte apoio institucional voltado para o
auxílio de uma assistência técnica que seja efetivamente um elo de ligação entre os saberes
tradicionais e técnicos, para aí sim potencializar o pleno desenvolvimento dos assentamentos
rurais.
CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
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A proposta que ora apresentamos ainda necessita ser mais bem discutida, tendo em vista
as várias nuances daí geradas. Assim, evidencia-se que o arrendamento da terra em
assentamentos rurais, configura-se como prática de obtenção de renda em algumas áreas de
reforma agrária, como na Campanha Gaúcha, interior paulista, dentre outros.
A precariedade dos projetos, como qualidade do solo, acessibilidade, políticas de infraestrutura e assistência técnica, historicamente são deficientes. Assim, ao chegarem nos
assentamentos, que são conquistas que às vezes levam anos, os assentados se deparam com a
realidade de sobreviver num lote que em muitos casos, como na Campanha Gaúcha, é inferior a
um módulo rural (28 hectares), ou seja, verdadeiros minifúndios, em áreas tradicionalmente
comandadas pela pecuária de corte e lavoura moderna do arroz.
Ao não se adequar à realidade regional, e desprovidos de apoio institucional, o
arrendamento de parcelas do assentamento, torna-se uma prática comum, já que esses indivíduos
necessitam sobreviver na terra conquistada. Sob esse ponto de vista, não há como criticar tal
prática, uma vez que há demandas por terras a serem arrendadas na região, e no caso do
assentamento estão sub-utilizadas. Mas, em outra esfera, essa prática enfraquecesse o discurso
pela necessidade da realização da reforma agrária, já que seus beneficiários não a exploram de
maneira eficaz.
Os assentados do assentamento São Leopoldo ao se transformarem em proprietários de
terra, sofrem uma metamorfose, na medida em que deixam de ser sujeitos excluídos e sem terra.
E, na medida em que passam a arrendar suas terras, passam a obter a renda da terra, como os
mais novos proprietários de terra da Campanha Gaúcha.
Assim, somente mergulhando no universo interno dos assentamentos podermos
compreender as complexas relações estabelecidas num espaço que ainda está em construção, e
que em muitos casos contempla indivíduos dotados de concepções díspares. Mas, essa é uma
trajetória que se constrói no dia a dia de suas vivências, com acertos e erros, inerentes a qualquer
grupo social.
REFERÊNCIAS
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