FIFA quer travar a “invasão” de estrangeiros para proteger formação

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38 • Público • Domingo 25 Novembro 2007
Desporto
Debate Serão as quotas a solução do futebol europeu?
FIFA quer travar
a “invasão”
de estrangeiros
para proteger
formação
Liga portuguesa tem muitos estrangeiros: o Sindicato dos Jogadores defende as quotas
Nova proposta de Joseph Blatter
limita o número de jogadores
estrangeiros nos clubes. União
Europeia considera quotas ilegais
Victor Ferreira
a O país que inventou o futebol está em estado de choque: a selecção
inglesa foi afastada do Campeonato
Europeu de 2008. Uns culpam o seleccionador inglês, Steve McClaren,
demitido no dia seguinte à eliminação. Outros encontraram responsáveis menos óbvios: na Premier League, há um excesso de estrangeiros
que “tapam” os talentos ingleses e
impedem a formação de uma selecção mais forte.
“Temos a melhor liga do mundo,
recheada de talentos”, frisa o ministro britânico do Desporto, Gerry Sutcliffe. “Mas precisamos de analisar
como é que isso [excesso de estrangeiros] afecta a selecção nacional”,
argumenta, em declarações ao The
Times. O governante não está isolado.
Nas vésperas da eliminação inglesa,
o treinador do Manchester United,
Alex Ferguson, a estrela do Liverpool Steven Gerrard, o treinador do
Reading (equipa do meio da tabela),
Steve Coppell, todos defenderam a
existência de quotas para jogadores
estrangeiros. “A bem da Inglaterra”,
frisou Ferguson, citado pela BBC. “Temos de proteger a nossa identidade
limitando o número de estrangeiros”,
afirmou Coppell à mesma estação. O
francês Arséne Wenger, treinador do
Arsenal – tem apenas quatro ingleses
no plantel (nenhum é titular) –, foi o
primeiro a protestar. Na sexta-feira,
David Beckham, ex-capitão da selec-
Evolução em Portugal
Época
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
Fonte: FPF
N.º jogadores
estrangeiros
122
192
211
232
245
251
277
279
296
309
341
342
335
ção inglesa e actualmente a jogar nos
Estados Unidos, juntou-se a Wenger
e veio defender que os estrangeiros
da Premier League “elevaram a
qualidade do futebol inglês”. “Em
1974 e 1978, teríamos 90 por cento
de ingleses a jogar em casa e, no
entanto, não nos qualificámos para
os Mundiais nesses anos”, lembrou
Beckham, de visita a uma escola de
formação, citado pela AFP.
Só seis estrangeiros
O maior defensor da introdução de
quotas chama-se, no entanto, Joseph
Blatter. O suíço que preside à Federação Internacional de Futebol (FIFA)
não se cansa de repetir a fórmula
“6+5” que quer ver aplicada nos clubes. Uma regra que obrigaria cada
equipa a entrar em campo com um
mínimo de seis jogadores elegíveis
para a selecção nacional, sendo os
outros cinco de escolha livre, explica
Jerôme Champagne, director de Relações Internacionais e delegado do
presidente da FIFA em entrevista ao
PÚBLICO. “Não se trata de uma norma
baseada em nacionalidades”, garante
Champagne, via telefone, sublinhando
que a proposta respeita um princípio
básico da União Europeia, a livre circulação de trabalhadores. “A regra
6+5 baseia-se na elegibilidade de um
jogador para as selecções nacionais.
É um conceito desportivo e não um
conceito jurídico-legal, como o passaporte”, sustenta. Qual a diferença?
“Se o Samuel Eto’o [jogador do Barcelona] tivesse passaporte espanhol,
continuaria a não ser elegível para a
selecção espanhola, porque já jogou
pela selecção dos Camarões”, explica
o delegado do presidente da FIFA.
A Comissão Europeia não ficou
calada quando, em Outubro, Joseph Blatter voltou à carga com a sua
proposta de 6+5. “Qualquer sistema
de quotas seria nesta altura ilegal”,
referiu fonte da Comissão Europeia,
citada pela agência Reuters. A “culpa”, neste caso, é das consequências
do acórdão Bosman, proferido pelo
Tribunal Europeu do Luxemburgo
em 1995. O documento equipara os
jogadores de futebol a trabalhadores
e, portanto, sujeitos à regra da livre
circulação no espaço europeu, prevista nos tratados, o que inviabiliza
a aplicação de quotas com base na
nacionalidade do jogador.
Regular o mercado
A FIFA não desarma. “A liberdade de
circulação no futebol teve aspectos
positivos, mas também introduziu
uma grande distorção no mercado”,
contrapõe Jerôme Champagne. “Os
clubes mais ricos compram os melho-
res jogadores. Com isso asseguram
resultados desportivos, logo, mais
receitas, perpetuando um círculo
vicioso que é negativo”, justifica,
considerando que o futebol caiu na
total desregulação desde o acórdão
Bosman. “[As quotas] são a única
maneira de repor a verdade desportiva”, salienta Jerôme Champagne.
“Não queremos mudar o acórdão
Estudo
Razões históricas influenciam migração no futebol
A circulação de jogadores de
futebol pelo mundo não obedece
apenas aos critérios desportivos
ou financeiros. A afirmação
é do investigador Raffaele
Poli, geógrafo e sociólogo da
Universidade de Neuchatel (Suíça)
que tem estudado o fenómeno
nos últimos doze anos. Segundo
Poli, as heranças históricas e a
proximidade cultural e geográfica
são factores que também
influenciam a procura. “Portugal
compra muito no Brasil e a
Espanha na restante América do
Sul pela ligação às ex-colónias”,
refere Poli, em entrevista ao
PÚBLICO. Já os clubes ingleses,
que lideram na presença de
estrangeiros, “compram pouco
fora da Europa”, embora se lancem
em mercados onde o futebol não
tem muita expressão, como a
Austrália e os Estados Unidos.
Pelo contrário, “deixam de
fora as ex-colónias em África”,
por causa das quotas
para não-comunitários.
Já os clubes alemães
são fortes compradores
na Europa Central e
de Leste, “por uma
questão de proximidade
geográfica”, enquanto
a Itália também se
socorre do mercado
sul-americano “por uma
questão de proximidade
cultural”. V.F.
Bosman. Queremos restabelecer o
equilíbrio entre a vertente desportiva e a vertente económica do futebol,
porque o pêndulo caiu para o lado da
economia”, frisa.
Antigas glórias do futebol internacional parecem estar de acordo.
O alemão Franz Beckenbauer e o
holandês Johan Cruyff apoiam a
proposta da FIFA. Michel Platini, actual presidente da União Europeia
de Futebol (UEFA), considera o 6+5
de Blatter “uma boa ideia, difícil de
concretizar”.
Opinião diferente tem Raffaele Poli, investigador da Universidade de
Neuchatel. Autor de diversos estudos
sobre movimentos migratórios desde
1995 nas principais ligas europeias,
Poli confirma, ao PÚBLICO, que o
número de estrangeiros a jogar na
Europa “mais do que duplicou”
desde o ano do acórdão Bosman, mas alega que “esse não
é o problema principal”. “O
problema é que o futebol é
uma rede mundial recheada de agentes e dirigentes
de clubes que só ganham
dinheiro através da compra e
venda de jogadores”, afirma. “É
óbvio que a questão não é defender a identidade nacional ou
clubística, mas, em primeiro lugar, a predominância do aspecto
financeiro, que afasta os clubes
da formação de jovens.”
Público • Domingo 25 Novembro 2007 • 39
Jerôme Champagne, director de Relações Internacionais da FIFA, diz que as regras
actuais “ajudaram a criar uma espécie de mercado negro das nacionalidades” porque
os “jogadores não-comunitários passam a vida à procura de um avô em Itália ou em
Espanha, para contornar as regras actualmente em vigor”.
MIGUEL VIDAL/REUTERS
Número de jogadores estrangeiros em Portugal aumenta desde 1995
Apenas sete por cento dos juniores chegam
a jogar na Primeira Liga e Liga de Honra
a O contingente de jogadores estrangeiros a jogar no principal escalão
de futebol profissional em Portugal
praticamente triplicou (ver tabela)
desde 1995, ano em que o Tribunal
Europeu decretou a livre circulação
de jogadores comunitários dentro do
espaço da União Europeia. É isso que
revelam os dados da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) fornecidos ao
PÚBLICO. Em 1995, eram 122 estrangeiros, este ano já são 335 a jogar na
Primeira Liga.
“Por motivos fortemente óbvios,
sou contra a presença de estrangeiros.
Mas abro sempre um parêntesis quando se refere à qualidade e não à quantidade”, afirma Agostinho Oliveira, há
anos responsável pelas camadas de
formação na selecção de Portugal. “O
problema – continua este responsável
– é que o nosso país tem sido pródigo
na procura de estrangeiros de qualidade duvidosa.” Resultado: apenas
sete por cento dos 640 juniores que
disputam o campeonato nacional da
categoria chegam às principais ligas
profissionais, revela Oliveira. “É muito pouco”, lamenta o seleccionador
dos sub-17 e sub-19.
Comparativamente, nas cinco
maiores ligas europeias (Inglaterra,
Espanha, Itália, Alemanha e França),
24,3 por cento dos jogadores provêm
das camadas de formação, segundo
dados compilados para a FIFA pelo
Centro Internacional de Estudos Desportivos (CIES) e pela Universidade de
Franche-Comté.
Joaquim Evangelista, presidente
do Sindicato de Jogadores, concorda
e acrescenta: “A livre circulação não
impede que os dirigentes escolham
Do acórdão Bosman ao Tratado de Lisboa
São 12 anos a separar dois documentos que, para a FIFA, constituem o inferno e a esperança
num novo paraíso. O primeiro,
o acórdão Bosman, foi proferido pelo Tribunal de Justiça da
Comunidade Europeia a 15 de
Dezembro de 1995. A sentença
Bosman ditou o fim das compensações financeiras para os clubes referentes à libertação de jogadores
em fim de contrato, considerando
que, dentro do espaço comunitário,
a todos se aplicava a liberdade de
circulação de trabalhadores, prevista desde o Tratado de Roma.
Actualmente, vigora uma norma
que obriga os clubes a integrar
no plantel um número mínimo de
jogadores formados localmente,
isto é, jogadores que tenham
jogado, entre os 15 e 21 anos, pelo
menos três anos no clube. Muito
antes disso, a disputa entre o
jogador belga Jean-Marc Bosman
e o Liége (que não queria libertar
o jogador sem compensação
financeira) colocou um ponto
final aos entraves à utilização de
jogadores comunitários pelos
clubes, incluindo a regra 3+2
(cada clube podia alinhar com
três jogadores estrangeiros e dois
naturalizados).
O problema, como admitiu,
em 2005, o director executivo da
UEFA Lars-Christer Olsson, é que
o mundo do futebol não estava
preparado para lidar com o fim
da regra 3+2. Acabaram-se as
quotas e, como em Portugal, os
regulamentos dos campeonatos
deixaram de estabelecer limites
à utilização de estrangeiros
comunitários ou de jogadores
oriundos de países com os quais
há acordos específicos (no caso
português, dos países lusófonos,
que têm acordos de reciprocidade).
Doze anos passados, o novo
Tratado de Lisboa parece ter injectado nos dirigentes do futebol
internacional alguma esperança
em mudar a proibição de quotas,
estabelecida em 1995. Tudo graças ao artigo 124 do acordo para
a reforma do Tratado da União
Europeia – que vai ser assinado
em Dezembro e depois necessita
de ser ratificado pelos 27 Estados-membros da UE – no qual se define a “natureza específica do desporto”. A FIFA exultou com esta
alínea e vê nela uma oportunidade
para trabalhar no sentido de mudar as regras de 1995.
jogadores nacionais”. Mas a realidade
é outra, acusa Evangelista. “Não se
trata de xenofobia, nem de racismo.
Está na hora de termos esta discussão”, conclui, afirmando-se favorável
à introdução de quotas.
O comentador Luís Freitas Lobo
também defende as quotas, mas
ressalva que “a selecção portuguesa
até beneficiou da livre circulação”.
“Jogadores como o Figo, o Rui Costa, tornaram-se no que são graças
à experiência internacional”, sublinha. Só que “a globalização não
pode matar as identidades”, contrapõe, considerando que a proposta
da FIFA (ver outro texto) ajudaria a
“proteger estilos de futebol, manter
identidades clubísticas e defender a
formação”.
Para Paulo Barbosa, agente acreditado pela FIFA em Portugal, “a formação não pode ser defendida apenas
por via administrativa”, considerando
por isso as quotas como uma solução
“incompleta”.
A presença de estrangeiros nas
maiores ligas europeias também
tem aumentado, com a proporção
de não-comunitários a crescer a um
ritmo superior. Dos 2742 jogadores
inscritos nas cinco grandes ligas, 38,9
por cento são estrangeiros (em 1995,
eram apenas 18 por cento).
A Premier League inglesa contabiliza, esta época, 287 estrangeiros,
o que corresponde a 62,6 por cento
dos jogadores da primeira divisão.
Segundo dados do CIES, relativos à
última época, na Alemanha eram 44,8
por cento, em Espanha eram 34,3 por
cento, na Liga francesa representavam 33,2 por cento dos jogadores, e
a Serie A italiana é a que tem o menor
número de estrangeiros – são 28,9 por
cento. V.F./F.E.L.
ALESSANDRO BIANCHI
Figo tornou-se no que é graças à experiência internacional
Três perguntas a Raffaele Poli
“Impor um tecto salarial aos clubes
seria uma solução mais inteligente”
Victor Ferreira
a Investigador da Universidade de
Neuchatel, tem estudado, a partir
de 1995, a presença de jogadores
estrangeiros nas principais ligas
europeias.
As quotas servem para proteger
as selecções e a formação de
jovens?
Não é fácil concluir que a presença
de jogadores estrangeiros nos
clubes constitua um perigo. Do
ponto de vista sociológico, eu diria
que é uma questão que merece
ser estudada. Numa equipa que
tenha apenas jogadores africanos
ou sul-americanos mas que ganha,
o problema não se levanta. Não se
pode simplesmente concluir que a
presença de estrangeiros constitui
uma ameaça e que as quotas
resolvem esse problema.
Deveria restringir-se a livre
circulação de jogadores?
É uma pergunta difícil e o debate
tem sido longo. Se os jogadores
oriundos de fora forem melhores
do que os nacionais, por que não
abrir-lhes a porta? Eu diria que
seria melhor fazer como a Holanda
e a Bélgica e impor um tecto
salarial para jogadores não-europeus. Desse modo, os clubes
contratariam apenas os jogadores
que precisam mesmo e que valem
a pena. Parece-me uma solução
mais inteligente, que combate
o verdadeiro problema que é a
especulação em torno dos jovens
jogadores.
O problema principal, para mim,
não é proteger os clubes e as
selecções europeias, porque a
França, por exemplo, compra
jogadores fora e, no entanto, tira
Pequeno
destaque em
caixa com fundo
que tambem
pode servir de
legenda para
a fotografia do
lado esquerdo
partido disso, tal como Portugal,
que tem muitos portugueses a
jogar fora.
A especificidade do desporto
definida no novo Tratado
constitucional poderá vir a pôr
em causa o acórdão Bosman?
Julgo que não. Essa alínea tem
mais a ver com o reconhecimento
do potencial educativo e formativo
do desporto. Mesmo que a
Comissão Europeia e o Conselho
de Ministros do Desporto queiram
introduzir quotas, o Tribunal
Europeu não o permitiria, porque
isso violaria um dos pilares
fundamentais da UE. Não se pode
afirmar, como a FIFA, que os
jogadores de futebol são artistas
e não trabalhadores. É uma falsa
questão. A verdadeira questão
é por que é que é rentável para
clubes, dirigentes e agentes,
comprar jogadores estrangeiros
em vez de apostar na formação?
Tem mais a ver com economia do
que com resultados desportivos.
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