Psiquiatras

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Psiquiatras
Jeffrey A. Lieberman
com Ogi Ogas
Psiquiatras
Uma
História
por Contar
INT RO DU Ç ÃO
O que se Passa com Elena?
Qualquer pessoa que vá a um psiquiatra devia
ser mandada fazer um exame à cabeça.
SAMUEL GOLDWYN
H
á alguns anos, uma celebridade famosa – chamemos-lhe Sr. Conway – trouxe-me relutantemente a
sua filha de vinte e dois anos para que eu a examinasse.
Elena interrompera os seus estudos em Yale, explicou-me
o Sr. Conway, por causa de questões que rodeavam uma
misteriosa descida nas suas notas. A Sra. Conway assentiu
com a cabeça e acrescentou que o abrandamento de Elena
resultava de «ausência de motivação e baixa autoestima».
Como resposta ao que lhes parecia ser os problemas da
filha, os Conways tinham contratado uma multidão de especialistas motivacionais, de professores particulares e de
orientadores. Apesar desta dispendiosa seita de peritos, o seu
comportamento não melhorava. Na realidade, um dos orientadores arriscou mesmo (de modo bastante hesitante, dada a
celebridade do Sr. Conway) que se «passava alguma coisa de
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errado com Elena». Os Conways ignoraram a preocupação
do orientador como uma desculpa para a sua própria incompetência e continuaram à procura de formas de ajudarem a
filha a sair daquela situação difícil.
Voltaram-se para os agentes naturopáticos e para a meditação e, quando isso também não ajudou, desembolsaram
mais dinheiro com a hipnose e a acupunctura. Na realidade,
fizeram tudo que estava ao seu alcance para evitarem ir a um
psiquiatra, até ao «incidente».
Enquanto se deslocava para a baixa de Nova Iorque no
metropolitano para ir almoçar com a mãe, Elena foi abordada por um homem de meia-idade já a ficar careca, vestido
com um seboso casaco de cabedal, que a convenceu a sair
do metro. Sem informar a mãe, Elena ignorou o encontro
para almoçar e acompanhou o homem até ao seu esquálido
apartamento, numa cave do Lower East Side. O homem estava na cozinha a preparar-lhe uma qualquer bebida alcoólica,
quando Elena atendeu por fim no telemóvel a chamada da
desvairada mãe.
Quando a Sra. Conway soube onde Elena estava, ligou de
imediato à polícia, que interveio e a transportou para casa
dos pais. Elena não se queixou da abrupta intervenção da
mãe; na realidade, Elena não parecia minimamente perturbada pelo incidente.
À medida que os Conways narravam estes acontecimentos no meu consultório de Manhattan, tornava-se evidente
que amavam a filha e estavam genuinamente preocupados
com o seu bem-estar. Tendo eu próprio dois filhos, era fácil identificar-me com a sua aflição em relação ao possível
drama que se poderia ter abatido sobre a sua filha. Apesar da sua preocupação, tornaram patentes as suas dúvi4
INTRODUÇ ÃO
das acerca da necessidade dos meus serviços. Depois de se
sentar, a primeira coisa que o Sr. Conway disse foi: «Tenho
de ser franco, na verdade não acho que ela precise de um
psiquiatra.»
A profissão a que dediquei a minha vida continua a ser a
mais desacreditada, receada e denegrida de todas as especialidades médicas. Não existe um movimento anticardiologia a exigir a eliminação dos médicos do coração. Não
existe um movimento antioncologia a protestar contra o
tratamento do cancro. Mas existe um grande e audível movimento antipsiquiatria, a exigir que os psiquiatras sejam
restringidos, controlados, ou extirpados. Como diretor do
Departamento de Psiquiatria da Universidade de Colúmbia, psiquiatra-chefe do Centro de Medicina da Universidade de Colúmbia do Hospital Presbiteriano de Nova Iorque
e antigo presidente da Associação Americana de Psiquiatria, recebo todas as semanas emails com críticas aceradas,
como as que se seguem:
«Os vossos diagnósticos fictícios só existem para enriquecer a indústria farmacêutica.»
«Vocês pegam em comportamentos perfeitamente normais e chamam-lhes doenças para justificar a vossa existência.»
«As perturbações mentais não existem, o que existe são
mentalidades diversificadas.»
«Vocês são uns charlatães que não sabem o que andam
a fazer. Mas deviam saber o seguinte: as vossas drogas destroem os cérebros das pessoas.»
Céticos como estes não procuram a psiquiatria para ajudar a resolver problemas de saúde mental: acham que a psiquiatria é um problema de saúde mental. Em todo o mundo,
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as pessoas têm uma persistente desconfiança em relação aos
shrinks – o epíteto mais comum para designar os convencidos
charlatães que creem constituir a minha profissão.
Ignorei o ceticismo dos Conways e iniciei a avaliação de
Elena informando-me sobre a sua história, solicitando pormenores biográficos e clínicos aos pais. Elena, fiquei a saber,
era a mais velha e a mais inteligente dos quatro filhos dos
Conways e aquela que parecia ter o maior potencial. Tudo na
sua vida tinha corrido bem, confessaram-me nostalgicamente os pais – até ao seu segundo ano em Yale.
Aberta, sociável e popular durante o seu primeiro ano,
num período de alguns meses Elena deixou gradualmente
de discutir a sua vida académica e os seus interesses românticos com as amigas e com os pais. Adotou uma dieta estritamente vegetariana e tornou-se obcecada com a Cabala,
acreditando que a sua simbologia secreta a conduziria à sabedoria cósmica. As suas idas às aulas tornaram-se erráticas e
as suas notas baixaram drasticamente.
Ao princípio, os pais não se inquietaram com aquelas mudanças. «É preciso dar espaço aos miúdos para que se encontrem», adiantou a Sra. Conway. «Eu também fiz os meus disparates quando tinha a idade dela», concordou o Sr. Conway.
Mas os pais de Elena ficaram por fim preocupados, depois
de um telefonema dos serviços de saúde estudantis de Yale.
Elena acusara algumas raparigas do seu dormitório de se
meterem com ela e de lhe roubarem uma pulseira de ouro.
Mas, quando foram interrogadas, as raparigas do dormitório
de Elena negaram qualquer pressão sobre ela – e insistiram
que nunca tinham visto a pulseira. Por outro lado, haviam
reparado que o comportamento de Elena começara a tornar-se cada vez mais estranho. Um dos professores de Elena ti6
INTRODUÇ ÃO
nha mesmo exprimido preocupação por causa da resposta
que Elena dera a uma pergunta num exame. Tendo-lhe sido
pedido que explicasse a técnica de James Joyce do fluxo de
consciência, Elena escrevera que o estilo literário de Joyce
consistia num «código com uma mensagem especial para leitores selecionados, com uma sabedoria implantada nas suas
mentes pelas forças espirituais do universo».
Depois disso, os Conways pediram uma dispensa da escola
para Elena e contrataram professores particulares e usaram
remédios alternativos, até que um amigo recomendou uma
popular psicoterapeuta de Manhattan. Esta assistente social
era conhecida por promover um modelo decididamente
não-clínico da doença mental, designando as questões psicológicas como «bloqueios mentais». Como tratamento, optava
por uma forma de terapia verbal confrontadora, da sua própria invenção. Diagnosticou Elena como sofrendo de uma
«perturbação da autoestima» e iniciou uma série de dispendiosas sessões de terapia bissemanais, para ajudá-la a remover os seus bloqueios.
Depois de um ano inteiro de terapia verbal confrontadora
não ter produzido quaisquer efeitos, os Conways voltaram-se
para um curandeiro holístico. Prescreveu um regime purgativo, uma dieta vegetariana e exercícios de meditação, mas,
apesar dos seus esforços mais criativos, Elena manteve-se emocionalmente desidentificada e mentalmente fragmentada.
Então, aconteceu o episódio do rapto abortado do perverso estranho, forçando os Conways a enfrentarem o facto desconcertante de a sua filha parecer inconsciente dos perigos
de acompanhar a casa um sujeito lascivo. Nessa altura, o seu
exasperado médico de família implorou-lhes: «Por amor de
Deus, levem-na a um médico a sério!»; e foram ter comigo.
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Completada a entrevista com os pais de Elena, pedi-lhes
a oportunidade de falar com a sua filha em privado. Abandonaram o meu gabinete e fiquei a sós com Elena. Era alta,
esguia e pálida, com um comprido cabelo louro, emaranhado e por lavar. Anteriormente, enquanto eu falava com os
pais, exibira um comportamento de desprendida distração,
como uma gata preguiçosa. Agora, enquanto me dirigia diretamente a ela, o seu olhar divagava ao acaso, como se considerasse os candeeiros do teto mais interessantes do que o
seu entrevistador.
Em vez de me sentir desprezado, senti uma genuína
preocupação. Aquele olhar vazio e inconstante era-me
familiar, era aquilo a que um colega meu chamou «atenção fragmentada». Sugeria que Elena reagia a estímulos
vindos de dentro da sua mente e não aos que se desenrolavam na sala em seu redor. Continuando a observar o
comportamento distraído de Elena, perguntei-lhe como
se sentia. Ela apontou para uma fotografia da minha mulher e dos meus filhos sobre a secretária. «Conheço essas
pessoas», respondeu-me, num tom baixo e monótono,
como o ruído de uma ventoinha de teto. Quando eu começava a perguntar-lhe como podia conhecê-los, interrompeu-me: «Tenho de ir embora. Estou atrasada para a
minha consulta.»
Sorri-lhe encorajadoramente. «Estás na tua consulta, Elena. Sou o doutor Lieberman e os teus pais marcaram este encontro para ver se posso fazer alguma coisa para te ajudar.»
«Não se passa nada de errado comigo», respondeu-me
na sua voz monocórdica e suspirada. «Sinto-me bem, só que
as minhas irmãs gozam comigo e estragam-me os trabalhos
artísticos.»
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INTRODUÇ ÃO
Quando lhe perguntei sobre a escola e por que razão se
viera embora, anunciou abruptamente que já não estava interessada na escola – encontrava-se numa missão para salvar
o mundo, descobrindo a fonte secreta do poder divino. Acreditava que Deus colocara anjos nos corpos dos pais para que
a guiassem na sua missão sagrada.
«A sua secretária também sabe disso», acrescentou Elena.
«Porque é que achas isso?»
«Por causa da forma como me sorriu quando entrei. Foi
um sinal.»
Estas ilusões, que os psiquiatras classificam como «narcisísticas» (relacionando acontecimentos externos incidentais com o «eu») ou «grandiosas» (imbuindo as atividades
mundanas com um objetivo transcendente), são conhecidas
como sintomas de primeira ordem de Schneider, segundo o
psiquiatra alemão Kurt Schneider, que as descreveu pela primeira vez na década de 1940 como sintomas característicos
de psicose. Esta constelação inicial de comportamentos e de
historial sugeria fortemente um diagnóstico de esquizofrenia, a mais grave e perigosa das doenças mentais e a doença
que eu estudei durante três décadas.
Receei ter de informar os Conways daquelas notícias, mas,
ao mesmo tempo, estava chocado e entristecido por aquela outrora alegre rapariga poder ter sofrido de uma doença
que tinha uma elevada probabilidade de tratamento durante três anos, sendo repetidamente exposta a uma série de
remédios inúteis. Pior: ao evitarem um tratamento psiquiátrico genuíno, os pais tinham-na colocado perante perigos
muito reais. Em primeiro lugar, o seu julgamento deficiente
poderia tê-la conduzido a decisões desastrosas. Em segundo,
sabemos agora que, se a esquizofrenia não for tratada, induz
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gradualmente danos cerebrais irrecuperáveis, como o motor
de um carro a que não seja mudado o óleo.
Convidei os pais de Elena a voltarem para dentro. «Então, qual é o veredito?», perguntou a Sra. Conway descontraidamente, tamborilando com os dedos na cadeira.
Disse-lhes que não podia ter a certeza absoluta até ter realizado mais testes, mas que parecia provável que a sua filha padecesse de esquizofrenia, uma perturbação cerebral
que afeta cerca de uma em cada cem pessoas e que se manifesta geralmente no final da adolescência e no princípio
da idade adulta. As más notícias eram que a doença era
grave, recorrente e incurável. As boas notícias eram que,
com o tratamento adequado e os cuidados continuados,
havia uma excelente probabilidade de ela poder recuperar e levar uma vida relativamente normal e mesmo regressar à universidade. Sabia que a parte que se seguia iria
ser complicada: olhei os Conways nos olhos e incitei-os a
internarem a filha de imediato.
A Sra. Conway pôs-se aos berros, protestando de incredulidade. O marido abanou a cabeça em desafio e vociferou:
«Ela não precisa de ficar fechada num hospital, por amor de
Deus. Só precisa de atinar e portar-se como deve ser!» Eu
persisti, explicando que Elena precisava de supervisão continuada e de tratamento urgente para recuperar a sanidade
em segurança e evitar outros episódios como o incidente do
metropolitano. Acabaram por se acalmar e concordaram em
interná-la na unidade psiquiátrica do Centro de Medicina
da Universidade de Colúmbia do Hospital Presbiteriano de
Nova Iorque.
Supervisionei pessoalmente o tratamento de Elena. Requisitei testes sanguíneos, bem como eletroencefalogramas,
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INTRODUÇ ÃO
ressonâncias magnéticas e avaliações neuropsicológicas,
para eliminar outras causas para o seu estado e, em seguida,
prescrevi risperidona, um medicamento antipsicótico muito
eficaz, com um potencial muito modesto de efeitos secundários. Ao mesmo tempo, em grupos de socialização, os terapeutas ajudavam-na nas suas capacidades sociais. A terapia
cognitiva aumentou a sua atenção e concentração. A instrução orientada nas tarefas básicas do dia a dia ajudou a melhorar a sua aparência e higiene. Após três semanas de medicação e cuidados intensivos, a atenção de Elena desviara-se dos
símbolos cósmicos e a sua personalidade natural começou a
despontar: era alegre e inteligente, com um divertido sentido de humor. Expressava embaraço em relação ao seu comportamento recente e um forte desejo de regressar à universidade e aos seus amigos de New Haven.
As suas melhorias espetaculares eram um testemunho do
poder da moderna psiquiatria e eu estava ansioso por ver
Elena reunida com os pais. Os Conways ficaram encantados
por recuperarem a filha e vi mesmo o Sr. Conway sorrir pela
primeira vez, depois de tomar consciência da sua transformação.
Mas, quando a nossa equipa de tratamento se reuniu com
os Conways para discutir o plano de alta de Elena e a necessidade de cuidados externos continuados, mantiveram-se
convencidos de que as espetaculares melhorias de Elena não
se deviam ao tratamento médico que acabara de receber. Evidentemente, algumas semanas mais tarde, foi-me dito pela
clínica de cuidados externos que Elena deixara de comparecer. Contactei os Conways e implorei-lhes que prosseguissem
o tratamento médico de Elena, insistindo que, sem ele, ela
de certeza teria uma recaída. Embora me tivessem agradeci11
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do a ajuda, afirmaram que sabiam o que era melhor para a
filha e que se encarregariam do seu tratamento.
A verdade é que, se isto tivesse acontecido na década de
1970, quando eu estava na Faculdade de Medicina e tratava
os meus primeiros pacientes, poderia ter simpatizado – ou
mesmo partilhado – com a aversão dos Conways pelos psiquiatras. Nessa altura, a maioria das instituições psiquiátricas
estava ensombrada pela ideologia e pela ciência dúbia, atolada numa paisagem pseudomédica, em que os devotos de
Sigmund Freud ocupavam todas as posições de poder. Mas os
Conways procuravam tratamento para a filha no século xxi.
Pela primeira vez na sua longa e famigerada história, a
psiquiatria pode oferecer tratamentos científicos, humanos
e eficazes para quem sofre de doença mental. Tornei-me presidente da Associação Americana de Psiquiatria num momento de viragem histórica na minha profissão. Enquanto
escrevo isto, a psiquiatria está, pela primeira vez, a ocupar o
seu lugar de direito na comunidade médica, depois de uma
longa permanência no deserto científico. Apoiada em nova
investigação, novas tecnologias e novas interpretações, a psiquiatria não só tem a capacidade para se erguer das sombras,
mas a obrigação de se firmar e mostrar ao mundo a sua luz
revivificadora.
De acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental,
uma em cada quatro pessoas sofrerá de doença mental e será
mais provável qualquer um de nós vir a precisar dos serviços
de psiquiatria do que de qualquer outra especialidade médica. Porém, um grande número de pessoas – como os Conways – evitam conscientemente os próprios tratamentos que
já provaram eliminar os sintomas. Não me interpretem mal:
eu seria o primeiro a admitir que a psiquiatria mereceu uma
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INTRODUÇ ÃO
grande parte do seu estigma dominante. Existem boas razões
para que tantas pessoas façam tudo para evitar consultar um
psiquiatra. Acredito que a única maneira de os psiquiatras
poderem demonstrar até que ponto nos erguemos das trevas
é confrontando a nossa longa história de passos errados e
partilhando a história não-censurada de como suplantámos
o nosso dúbio passado.
Essa é uma das razões pela qual escrevi este livro: fornecer
uma crónica honesta da psiquiatria, com todos os seus biltres
e charlatães, os seus tratamentos excêntricos e as suas ridículas teorias. Até bastante recentemente, os autênticos triunfos
científicos eram raros e os heróis psiquiátricos genuínos ainda mais raros. A história de especialidades irmãs como a cardiologia, as doenças infetocontagiosas e a oncologia são sobretudo narrativas de um progresso contínuo, ponteado por
grandes saltos em frente, ao passo que a história da psiquiatria consiste sobretudo em falsas partidas, extensos períodos
de estagnação, e dois passos em frente e um à retaguarda.
Mas a história completa da psiquiatria não consiste apenas
na sombria comédia de extravagantes erros. É também um
conto policial, alimentado por três profundas questões que
têm atormentado e atraído cada uma das sucessivas gerações
de psiquiatras. O que é a doença mental? De onde vem? E, a
mais premente de qualquer disciplina devotada ao juramento de Hipócrates, como podemos tratar a doença mental?
Desde o início do século xix até ao princípio do século xx, cada nova onda de investigadores psiquiátricos desvendou novas pistas – e, erradamente, perseguiu atraentes
ilusões – terminando com conclusões radicalmente diferentes acerca da natureza básica da doença mental, arrastando a
psiquiatria num incessante movimento pendular entre duas
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perspetivas aparentemente antitéticas sobre a doença mental: a crença que a doença mental reside inteiramente no
interior da mente e a crença que reside inteiramente no interior do cérebro. Lamentavelmente, nenhuma outra especialidade médica suportou uma tal volatilidade extrema nos
seus princípios fundamentais e esta volatilidade contribuiu
para forjar a reputação da psiquiatria como a ovelha ronhosa
da família médica, troçada tanto pelos outros médicos como
pelos pacientes. Mas, apesar das suas muitas falsas pistas e becos sem saída, a história policial da psiquiatria tem um final
feliz, em que os seus impenetráveis mistérios começaram a
ser elucidados.
Ao longo deste livro, veremos uma mão-cheia de renegados e visionários que desafiaram corajosamente as convicções prevalecentes do seu tempo, de modo a elevarem a sua
atacada profissão. Estes heróis declararam que os psiquiatras
não estavam condenados a ser shrinks, mas destinados a constituírem uma classe única de médicos.
Em resultado dos seus triunfos pioneiros, os psiquiatras
compreendem agora que o tratamento bem-sucedido da
doença mental exige que abarquemos simultaneamente a
mente e o cérebro. A psiquiatria não tem comparação com
qualquer outra especialidade médica; transcende a mera
medicina, na medida em que aborda questões fundamentais acerca da nossa identidade, finalidade e potencial. Está
alicerçada numa relação médico-paciente totalmente singular: os psiquiatras ficam muitas vezes inteirados dos mundos
privados e dos pensamentos mais íntimos dos seus pacientes
– das suas mais secretas vergonhas e dos seus mais queridos
sonhos. A intimidade desta relação coloca uma grave responsabilidade pelo bem-estar do paciente nas mãos do psiquia14
INTRODUÇ ÃO
tra, uma responsabilidade que os psiquiatras muitas vezes
não cumpriram – mas isso acabou. O psiquiatra moderno
possui agora as ferramentas para conduzir qualquer pessoa
para fora do labirinto da confusão mental até um local de
clareza, cuidado e recuperação. O mundo precisa de uma
psiquiatria compadecida e científica e aqui vos digo, com
pouca fanfarra pública, que essa psiquiatria chegou por fim.
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