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A Importância da Cultura Afro-Brasileira Dentro das Escolas:
utilizando a educação musical através das cantigas de domínio
público do samba de terreiro
Fabiano Paula Camilo1
Carlos Geovane Nunes2
DOI: 10.15601/2237-0587/fd.v7n1p55-68
Resumo
Este artigo traz parte dos apontamentos e reflexões apresentados em meu trabalho de
conclusão de curso de mesmo nome. Em consonância com as leis 10.639/03 e 11.645/08, este
trabalho objetiva oferecer uma possibilidade de ação pedagógica que possa contribuir para a
prática da educação musical nas escolas, indicando as cantigas de domínio público do samba
de terreiros para ensino de música. Este trabalho também apresenta dados e informações
sobre a origem dessa modalidade de samba, destacando as possibilidades pedagógicas que
podem ajudar o aprendiz a desenvolver a sua educação musical através de metodologias
fundamentadas na teoria musical aliada à tradição da cultura negra, que tem a característica de
abordar o ensino da música utilizando o corpo como primeiro instrumento base no
aprendizado e no fazer musical.
Palavras-chave: Samba. Educação musical nas escolas. Cultura afro-brasileira. Cantigas de
domínio público.
The Importance of Afro-Brazilian Culture in Schools: using musical education through
the songs in the public domain from samba de terreiro
Abstract
This article presents part of the notes and reflections presented in my work of course
completion, of the same name. In line with the laws 10.639 / 03 and 11.645 / 08, this paper
aims to offer a possibility of pedagogical action that might contribute to the practice of music
education in schools, indicating the songs of samba de terreiro in the public domain for
1
Licenciado em Música pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH). Percussionista,
dançarino, coreógrafo, compositor, poeta, construtor de instrumentos de percussão, educador musical,
restaurador de acordeons e sanfonas. E-mail: [email protected]
2
Especialista em Educação Musical e Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor de Percussão do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix (CEUNIH) e da
Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Fundador do grupo de percussão Tambolelê e do projeto
social Bloco Oficina Tambolelê. E-mail: [email protected]
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teaching music. This paper also presents data and information about the origin of this kind of
samba, highlighting the pedagogical possibilities that can help the pupil to develop his
musical education through methodologies based on music theory combined with the tradition
of black culture, that has the characteristic to approach the teaching of music using the body
as first based instrument based for musical learning and musical making.
Keywords: Samba. Music education in schools. African-Brazilian culture. Public domain
songs.
Introdução
Saúdo meus ancestrais, agradecendo por todos os
ensinamentos que me foram oferecidos nessa vida.
Dentro dos limites impostos pelas regras registrais do
mundo acadêmico, pretendo me empenhar na promessa
de dar maior legitimidade possível às fontes detentoras
dos saberes que propiciaram a mutação da energia
“samba” em terras brasileiras.
Apesar dos grandes avanços das pesquisas e estudos relacionados às questões étnicoraciais e as práticas culturais e educativas que envolvem a cultura, tradição e religiosidade
afro-brasileiras, essas, infelizmente, são pouco divulgadas devido a aspectos de intolerância e
preconceito em relação aos templos religiosos de matrizes africanas, popularmente mais
conhecidos no Brasil como “terreiros de candomblé”.
O grande desafio proposto por essa pesquisa é contribuir para a implementação do
ensino de música nas escolas, tendo o samba de terreiro como norteador do aprendizado
musical. Aliando simultaneamente elementos didaticamente filosóficos que atuam na quebra
de preconceitos e estereótipos atribuídos aos negros e suas práticas sócio-culturais, o estudo
justifica-se por contribuir para a implementação das leis 10.639/03 e 11.645/088, que
instituem aos estabelecimentos de ensino formais a obrigatoriedade do ensino da história e
cultura afro-brasileira e indígena, possibilitando mudanças importantes nas diretrizes
curriculares da educação brasileira na promoção de uma educação antirracista.
Sendo assim, este estudo traz apontamentos que revelam indícios contundentes de que
o terreiro é o principal berço do samba, matriz que por sua vez dá origem, principalmente, aos
sambas que se manifestam não só através de cantigas de domínio público, como também na
maioria dos outros estilos ou modalidades de sambas existentes hoje no Brasil. Os
procedimentos adotados para alcançar as reflexões do trabalho consistiram em pesquisa
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bibliográfica sobre a história e origem do samba, aliada à experiência e vivência do autor com
as práticas do samba e nos terreiros, bem como sua experiência como educador musical.
Neste artigo, serão abordados elementos da matriz étnica, sagrada e profana do samba
de terreiros. Adotaremos o samba como abordagem na prática de ensino, destacando-o
didaticamente como um veículo de filosofia educacional musical que tem como conduta a
valorização, prioritariamente, do corpo enquanto instrumento musical.
Durante a pesquisa, foi constatada a carência de materiais sobre o samba enquanto
possibilidade do ensino musical nas escolas. Dessa maneira, o material oferece alternativas
viáveis para possibilitar educadores, professores e interessados no ensino de uma educação
musical pautada nas práticas afro-brasileiras.
Samba de terreiro e sua origem
“Terreiro” é o termo mais popularmente usado para identificar os templos religiosos
de matrizes africanas no Brasil. É nele que se atribui o nascimento não só do samba, mas
também de diversas manifestações musicais que fazem parte do nosso patrimônio cultural3.
O termo Samba de terreiro foi escolhido nesse estudo para designar essa modalidade
de samba e ao mesmo tempo fazer jus ao local de origem dela. Podemos encontrar elementos
mais detalhados acerca da relação entre o samba e os terreiros na análise de Sodré:
[...] os terreiros - nome dado às comunidades litúrgico-culturais que agrupam os
descendentes de africanos no Brasil. Os terreiros de candomblé (Bahia), xangô
(Pernambuco), macumba (Rio de Janeiro), tambor de mina (Maranhão), etc. sempre
constituíram em polos dinamizadores, não apenas das danças dramáticas brasileiras
(maracatus, chegança, reisado, congada, bumba-meu-boi, etc.), mas também de
outras danças e cantos profanos. Esta vinculação, fora do terreiro, entre a dança e a
religião ainda é perfeitamente evidente no jongo (que já teve seu reduto no bairro
carioca de Oswaldo Cruz) do qual é derivado o samba de partido alto, segundo Luís
Filipe de Lima (SODRÉ, 1998, p.28).
Os sambas dos terreiros são aqueles que provavelmente se iniciaram por
manifestações de força dos encantados (entidades de luz que se manifestam por meio de
incorporação em pessoas iniciadas nos fundamentos de determinadas religiões de matriz
africana).
3
“... em sua etimologia tem o significado de herança: é um bem ou conjunto de bens que se recebe do pai (pater,
patri). Mas é também uma metáfora para o legado de uma memória coletiva, de algo culturalmente comum a um
grupo” (SODRÉ, 1988, apud CAPUTO 2012, p.47).
58
Segundo a tradição oral passada pelos mais velhos dessas comunidades religiosas, ao
longo do tempo, os membros pertencentes aos terreiros começaram a cantar algumas cantigas
de samba pertencentes aos encantados, principalmente as cantigas de características mais
lúdicas.
A apropriação exercida primeiramente pelos membros das comunidades religiosas,
consequentemente, veio condicionar o surgimento de composições feitas espontaneamente ao
longo do tempo pelos mesmos. Estas, em sua maioria, trazem nas letras as narrativas de coisas
da vida cotidiana, como por exemplo: falar de namoro, de casamentos, de coisas relacionadas
ao trabalho na roça, ou ainda descrições de partes do corpo como, a cintura, cabeça, bunda,
pé, barriga, umbigo, dentre outros.
É a partir dessa apropriação que as composições tornam-se profanas, pois saem do
espaço religioso para ocupar outros espaços, podendo acontecer em diversos lugares externo
aos terreiros.
A mãe do samba
Os povos africanos denominados bantos são, possivelmente, os responsáveis pela
fonte cultural que dá origem ao samba, por vários traços reconhecíveis em sua identidade
sócio-cultural. O termo Banto foi atribuído por estudiosos do continente africano para
identificar certa família linguística de povos africanos:
[...] o que é Banto, de posse de uma série de informações, vemos que “banto” é uma
designação apenas linguística dos integrantes de centenas de grupos étnicos que se
localizaram na grande floresta equatorial, ao longo dos afluentes do rio Congo, e
abaixo dela, numa faixa que vai de Angola e Namíbia, passando pelo sul do Zaire,
até o Oceano Índico. Entretanto, essa denominação se estendeu pelo uso, e hoje, sob
a designação “bantos” estão compreendidos praticamente todos os grupos étnicos
negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que apresentam
características físicas comuns e um modo de vida determinado por atividades afins
[...] (NASCIMENTO, 2008 apud LOPES, 2006, p.33–34).
Podemos dizer que em todos os ambientes em que os grupos étnicos bantos estiveram
presentes na condição de escravo, se desenvolveu o samba. Ao longo de sua história, o samba
se tornou elemento não só de divertimento, mas também um importante símbolo de
59
resistência cultural e da afirmação das comunidades afrodescendentes na diáspora4,
ressignificando a cultura negra no Brasil. Segundo Sodré;
Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava
o negro, como uma inequívoca demonstração de resistência ao imperativo social
(escravagista) de redução do corpo do negro a uma máquina produtiva e como uma
afirmação de continuidade do universo cultural africano (SODRÉ, 1998, p.12).
Dentro e fora do Brasil, a palavra samba, no senso comum, está relacionada a um
gênero musical. Porém, essa palavra, que a maioria das pessoas desconhece ser de origem
africana, tem valores muito mais elevados do que se pode imaginar. Em terras africanas, a
palavra samba designava direitos sacerdotais e monárquicos, títulos atribuídos exclusivamente
às mulheres.
Nei Lopes, especialista em pesquisas sobre o samba, em sua obra O Novo Dicionário
Banto do Brasil (LOPES, 2003), apresenta diversas significações para o termo samba. Para
justificar o termo samba de terreiro, encontramos a definição religiosa que a palavra samba
tinha antes de sua ressignificação enquanto gênero musical. Segundo Lopes:
Samba [3], s. f. (1) Em antigos terreiros bantos, sacerdotisa com as mesmas funções
da equéde dos terreiros nagôs. (2) Em terreiros bantos atuais, filha- de-santo, iaô. (3)
Em alguns terreiros de umbanda, auxiliar de mãe de santo ou da mãe pequena (OC)
– DO Quimbundo samba, pessoa que vive na intimidade de alguém ou faz parte de
sua família; cortesã, dama da corte (LOPES, 2003, p.198).
Podemos encontrar como referências do termo samba, a palavra semba. Esta que é
utilizada por alguns estudiosos como uma das origens do samba. Segundo Santos e Cardoso:
Os escravos chamavam as suas danças de SEMBA, que significava “umbigada” ou
“união do baixo” ventre. Pesquisadores semeiam teses sobre a origem da palavra
“samba”, que variam de “divindade angolana protetora dos caçadores” a culto à
divindade pela dança, passando por SAM, como pagar, BA, como receber, sendo
assim a dança do dar e do receber (SANTOS; CARDOSO, 2003, P. 27).
Lopes (2003, p. 203) apresenta as seguintes informações sobre o termo:
SEMBA [1], s. m. Espécie de dança (MM) – Do quimbundo semba, umbigada. Cp.
Samba”. Lopes (2003, p.203): “SEMBA [2], s.f. Mulher pertencente à hierarquia
sacerdotal, na umbanda (BH) – De samba [3], talvez por erro de grafia”.
SAMBA [1], s. m. (1) Nome genérico de várias danças populares brasileiras. (2) A
música que acompanha cada uma dessas danças – Do quioco samba, cabriolar,
brincar, divertir-se como cabrito; ou do quicongo samba, espécie de dança em que
um dançarino bate contra o peito do outro (Laman, pág.870). No umbundo, semba é
a “dança caracterizada pelo apartamento dos dois dançarinos que se encontram no
meio da arena” da raiz semba, separar (Alves 1951), que também originou o
4
Nas pesquisas realizadas sobre o termo diáspora, encontramos seu significado relacionado à dispersão dos
povos, com ênfase nos judeus. Nessa pesquisa, utilizamos o termo para nos referir ao processo de migração
forçado a qual os africanos foram submetidos no período escravocrata.
60
multilinguístico disemba. Pl. masemba, umbigada. Vê-se, então, que o choque de
um dançarino contra o outro (Laman) e o consequente apartamento (Alves) é nada
mais que a umbigada que ainda hoje caracteriza o samba, em suas formas mais
antigas. Assim, podemos apontar como étimo remoto o termo multilinguístico
semba, cuja raiz é a mesma do quicongo e do quioco samba (LOPES, 2003, p. 197198).
A importância do samba dentro das escolas como ação para a promoção da cultura afrobrasileira.
A historiografia oficial, disseminada nos ambientes escolares, não aborda as devidas
contribuições das culturas africanas na construção da identidade cultural e da sociedade
brasileira. Temos, nas escolas públicas, a história oficial eurocêntrica e hegemônica que
mantém um viés colonizador e universalista que não reconhece a multiculturalidade,
resultando na exclusão e na invisibilidade da história dos povos negros e indígenas.
Ao abordar a prática do samba de terreiro nas escolas contribuímos para afirmação de
uma representatividade afro-brasileira e sua importância histórica e cultural, tornando-se um
instrumento que pode ser utilizado na produção de ações e pensamentos pedagógicos
pautados nas tradições africanas e afro-brasileiras.
A criação da lei 10.639/03, complementada pela lei 11.645/08 que regula questões
sobre a cultura e história indígena, é um importante passo para a adoção de ferramentas
pedagógicas do ensino de música afro-brasileira nas escolas. Essa lei tem sua função descrita
no I Relatório das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004, p. 9) 5, e
apresentou um avanço na possibilidade de discussão acerca de uma educação anti-racista.
O samba, com todo o seu legado, é um viés interessante de se adotar como prática
pedagógica eficiente na implementação da lei 10.639/03 nas escolas. A aplicação de
atividades que inter-relacionem a educação musical aos fatores que reverenciam os valores da
cultura afro-brasileira promove uma nova concepção ao ensino musical, propagando
5
Este parecer visa a atender os propósitos expressos na Indicação CNE/CP 6/2002, bem como regulamentar a
alteração trazida à Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10.639/2000, que
estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica.
Desta forma, busca cumprir o estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1°
do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como
garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às
diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.
61
informações desmistificadoras que desconstroem opiniões preconceituosas sobre as
manifestações culturais de origem africana.
O samba, sendo uma das manifestações culturais de origem africana mais
representativa no Brasil e conhecida no território nacional e no exterior, obtém detalhes que
podem ilustrar a memória ancestral do povo afro-brasileiro a partir de um ponto de vista
positivo. Para Nascimento:
Portanto, o samba, semba ou batuque, que já nasceu polêmico, atravessou o
Atlântico nos navios negreiros (tumbeiros), incorporou os chocalhos e maracás dos
povos indígenas, anexou a viola dos portugueses, e deu origem ao ritmo de maior
popularidade no país e que hoje é referência do Brasil em qualquer parte do mundo
(NASCIMENTO, 2003, p. 28).
As aulas de história na escola continuam abordando o negro negativamente, focando-o
somente na condição de escravo. Não se fala sobre as inúmeras contribuições e riquezas
existentes na nossa cultura promovidas pela presença do povo negro no Brasil, sobre essa
invisibilidade e subalternidade, afirma Valentin;
É ainda comum que nos livros didáticos o povo africano apareça em condições
isoladas, de desvantagem, de inferioridade ou de submissão, construindo
estereótipos no imaginário dos alunos. Com isso, são eliminadas do conhecimento
da cultura considerada civilizada as informações sobre o povo africano, reduzindo-o,
simplesmente, a um estereótipo de primitivo e incapaz; desrespeitando-se assim as
origens da população negra e mestiça (VALENTIN, 2004, p.8).
As cantigas do samba de terreiro são evidenciadas neste estudo como elemento
principal a ser utilizado como ferramenta pedagógica, devido principalmente à sua
importância para o patrimônio cultural nacional. Nos dizeres de Barbosa:
É importante também apontar o valor da canção como instrumento de representação
da nossa cultura. As canções são um meio de transmitir e conservar elementos
culturais de um povo, um país ou uma região e isso pode ser feito através das
canções folclóricas, regionais e até mesmo das cantigas de roda. As canções
folclóricas retratam hábitos de um povo e se referem a lendas, mitos, comidas,
festas, utensílios, brincadeiras e enfeites que foram conservados e transmitidos de
geração em geração. Nesse sentido, essas canções representam uma forma de
expressão cultural que retrata a riqueza de um povo. No entanto, as canções
folclóricas vêm, paulatinamente, caindo no esquecimento. Basta observarmos que,
em um grupo de crianças brincando, dificilmente as canções folclóricas vão ser
cantadas durante a brincadeira. Isto se deve em parte pelo contato que estas têm com
a música veiculada na mídia. As crianças dos grandes centros urbanos são
influenciadas diretamente pela televisão e pelo rádio. É razoável supor que elas
reproduzirão o que estão habituadas a ouvir, o que justifica o desconhecimento de
muitas canções que fazem parte do folclore e da cultura brasileira (BARBOSA,
2008, p.5).
Elementos musicais que compõe o samba de terreiro e as suas ferramentas pedagógicas
62
Quando o samba de terreiro desloca-se do terreiro e passa a ocupar os diversos
espaços, ele apresenta uma performance que tem caráter lúdico e inclusivo. Todos os
presentes, mesmo os que ali estejam pela primeira vez, são convidados a participar, cantando
as respostas corais, batendo palmas no ritmo e até mesmo dançando no meio da roda,
conforme as circunstâncias da cena.
Os elementos humanos presentes no universo do samba são identificados como:
puxador ou cantador6, sambadores ou sambadeiras7. Essas pessoas se revezam em várias
funções tais como: entoar as cantigas, tocar e dançar respectivamente. O saber musical e o
aprendizado desta modalidade de samba têm suas bases fundamentadas nas características
tradicionais da cultura negra. Tais saberes prezam muito a importância da corporeidade na
compreensão musical. O corpo é primordial no fazer musical. Ele é parte da música e se torna
não só executor musical através dos instrumentos e do canto, mas também uma partitura
orgânica que se expressa gestualmente pela dança, interpretando sensações sonoras e o
próprio ritmo.
Na cultura negra, entretanto, a interdependência da música com a dança afeta as
estruturas formais de uma e de outra, de tal maneira que a forma musical pode ser
elaborada em função de determinados movimentos de dança, assim como a dança
pode ser concebida como uma dimensão visual da forma musical (SODRÉ, 1998,
p.22).
Podemos dizer que as cantigas exercem um papel fundamental no acontecimento desta
modalidade de samba. Elas trazem, em suas letras, mensagens que sugerem comandos
corporais que devem ser dançados e cantados ao mesmo tempo, na maioria das vezes. Estes
atos descritos e propostos pelas cantigas trazem consigo inúmeras ludicidades que
possivelmente podem tornar o aprendizado musical mais estimulante e aplicável em todas as
faixas etárias. As cantigas são representadas por melodias cantadas. Sem elas, existirá apenas
nesta proposta, o som da percussão instrumental ou corporal através de palmas, o que pode
limitar as possibilidades de se trabalhar outras habilidades musicais que vão além do ritmo.
Cada pessoa fica livre para expressar os movimentos indicados pelas cantigas de
acordo com sua corporeidade individual e suas limitações. Assim, podemos pensar a cantiga
também como uma estratégia criadora no ambiente educacional. O aprendiz, motivado a se
mostrar corporalmente, poderá fornecer ao educador musical ferramentas que possam
proporcionar atividades que exercitem o próprio corpo como o primeiro instrumento a qual se
6
7
Puxador ou cantador : aquele que faz a pergunta cantada para os elementos que compõem a roda de samba.
Sambador ou sambadeira: denominação masculina e feminina daqueles que fazem parte do samba.
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aprende a dominar. Sobre a educação musical expressada através do corpo, destacamos o
educador musical Dalcroze e a sua teoria chamada “Euritmia”. Segundo Goulart e Fernandes:
[...]. Aos 27 anos de idade, como professor no Conservatório de Música de Genebra
e já então um compositor reconhecido, Emile Jaques-Dalcroze constatou que os
estudantes não conseguiam ouvir (pela escuta interna ou mental) a música que viam
escrita na partitura impressa, e que estes mesmos estudantes executavam o que liam
de uma forma mecânica e pouco musical. [...]. Assim, percebeu que o primeiro
instrumento musical que se deveria treinar era o corpo. [...] Euritmia significa
literalmente “bom ritmo” (de eu = bom, rhythm = fluxo, rio ou movimento). A
euritmia de Dalcroze estuda todos os elementos da música através do movimento,
partindo de três pressupostos básicos: Todos os elementos da música podem ser
experimentados (vivenciados) através do movimento; Todo som musical começa
com um movimento - portanto o corpo, que faz os sons, é o primeiro instrumento
musical a ser treinado; Há um gesto para cada som, e um som para cada gesto. Cada
um dos elementos musicais - acentuação, fraseado, dinâmica, pulso, andamento,
métrica - pode ser estudado através do movimento (GOULART; FERNANDES,
2000, p. 5).
Orientações metodológicas para o ensino da música através do samba de terreiro.
É de extrema importância a utilização dos recursos do samba para a musicalização.
Através de concepções pedagógicas que dialoguem com o aprendizado formal e o informal
das práticas educativas, as manifestações dos Samba de terreiro preservam principalmente
abordagens peculiares da cultura negra. Por isso, o estudo aponta a importância do educador
se atentar em não desprezar a aprendizagem oral, historicamente utilizada para transmitir os
saberes necessários para o ensino dessa modalidade de samba, reivindicando sua importância
como tradição afro-brasileira. Este aprendizado vem resistindo na atualidade, embora muitas
vezes seja visto e classificado como ultrapassado ou frágil em relação à preservação da
memória da cultura em si. Para Abib:
A grande maioria das tradições populares ainda tem, na oralidade, o seu meio mais
importante de transmissão, já que a escrita - juntamente com os meios formais de
aprendizado, como a escola, por exemplo - não tem um papel central nos processos
de ensino-aprendizagem desenvolvidos pelos sujeitos protagonistas dessas tradições.
Nesse universo, a oralidade ainda prevalece resistindo aos avanços da modernidade
(ABIB, 2005, p. 25, apud SANTOS; CARDOSO, 2009, p. 102).
O processo de aprendizado deve ser apresentado e repassado aos alunos sem
imposições de regras metodológicas desenvolvidas pela educação musical de tradição
européia. As práticas devem estar envolvidas primeiramente a observação, ouvindo histórias
de origem de todos os elementos presentes no samba de terreiro, vivenciando gradativamente
a estrutura musical da linguagem, apreciando DVDs, documentários, CDs e outras tecnologias
e instrumentos pedagógicos. É fundamental que os educadores promovam aulas-passeio,
64
direcionadas à visita de ambientes em que o samba de terreiro acontece. Assim, o aprendiz
vivencia, através da prática, a realização do samba de terreiro em seu contexto tradicional.
Ao adotar essa maneira de “se aprender na tradição afro - brasileira”, trazemos ao
ambiente escolar contribuições para transformações que atuem no processo de construção e
aplicação de metodologias que promovam a autonomia para o educando como aprendiz.
Exemplo do que afirma Oliveira, (1996, p. 10), “Uma pedagogia fundada na ética, no respeito
à dignidade e à própria autonomia do educando”. Concepção pedagógica também defendida
pelo educador Koellreutter na abertura oficial do Primeiro Seminário Internacional de Música,
em Salvador, Bahia:
Sabemos que é necessário libertar a educação e o ensino artísticos de métodos
obtusos que ainda oprimem os nossos jovens e esmagam, neles, o que possuem de
melhor. A fadiga e a monotonia de exercícios conduzem à mecanização tanto dos
professores quanto dos alunos. [...] Inútil a atividade daqueles professores de música
que repetem, doutoral e fastidiosamente, a lição já pronunciada no ano anterior. Não
há normas, nem fórmulas, nem regras, que possam salvar uma obra de arte na qual
não vive o poder de invenção. É necessário que o aluno compreenda a importância
da personalidade e da formação do caráter para o valor da atuação artística e que na
criação de novas ideias reside o valor do artista (KOELLREUTTER, 1997 apud
BRITO, 1997, p.4).
Elementos pedagógicos presentes no samba de terreiro e suas atribuições para o ensino
da música.
Cantigas/oralidade
A abordagem educativa para a prática musical proposta deve se iniciar através da
oralidade das cantigas presentes nos sambas de terreiro. Essas cantigas, em geral, são de
autoria desconhecida, classificadas como de domínio público. As letras se apresentam como
narrativas dos acontecimentos da vida cotidiana, algumas também trazem parlendas8 e
onomatopéias9 que objetivam a imitação de sons de instrumentos musicais e sons emitidos
por animais. As cantigas são patrimônios imateriais que pertencem a uma longa tradição de
uso da linguagem para cantar, recitar e brincar. Foram passadas “boca a boca” das pessoas
mais velhas para as pessoas mais novas e oferecem possibilidades de trabalhar exercícios
vocais para o canto e a criatividade, uma vez que existem os sambas versados, que exigem
8
Parlendas: são frases com rimas ou versos recitados em brincadeiras; podem ser utilizadas em atividades de
memorização. Fazem parte do folclore brasileiro pois representam uma importante tradição cultural do nosso
povo.
9
Onomatopeias: imitações de sons com fonemas ou palavras. Ruídos, gritos, canto de animais, sons da natureza
e barulho de máquinas fazem parte do universo das onomatopeias. Ex.: quando dizemos que o grilo faz “cri-cri”.
65
que as pessoas improvisem versos que são entoados intercaladamente ao refrão principal. As
mesmas são acompanhadas pelos instrumentos que compõem a base tradicional da estrutura
musical do samba de terreiro: atabaque, agogô e, contemporaneamente, vários grupos
passaram a incorporar instrumentos como o pandeiro, a timba, o surdo, o tantan, a bacurinha e
o tamborim, dentre outros.
As cantigas do samba de terreiro se dividem em funções específicas na sua ação
dinâmica e, podem ser nomeadas da seguinte forma:
Cantigas de abertura são as que têm a função de iniciar o samba, pedir licença ao
dono (a) da casa ou ao local onde será realizado o samba:
Eu cheguei agora
Êh ê ê ... / eu cheguei agora (pc)10
Nesse palácio de ouro arrodeado de jóia. (pc)
Cantigas de martelo são as que têm a função de duelo. Nelas, as pessoas se desafiam,
entoando versos com intencionalidade de diminuir o caráter do outro.
Cantigas de namoro são aquelas cujas letras contêm pedidos de casamento, namoros,
beijos e, a louvação do ser feminino e masculino:
Eu vô me embora pra Mina
Eu vô me embora pra mina / que na mina eu me do bem
Vô casar com uma mineira / vô ser mineiro também. (pc)
Cantigas de viola são as que reverenciam o instrumento musical viola, mas ao mesmo
tempo pode ter a conotação metafórica relacionada ao corpo da mulher.
Cantigas de pandeiro são as que exaltam a masculinidade e, podem estar associados
metaforicamente ao homem.
Cantigas de despedida são aquelas que têm a função de anunciar o fim do samba:
Adeus Gente
Adeus gente / adeus gente
Adeus que eu já vou - me embora / adeus gente. (pc)
10
As cantigas são de caráter responsorial: A parte do puxador está representada pela letra (p) e a parte do coro
está representada pela letra (c).
66
Corporeidade / dança
A umbigada é um elemento importante a ser ensinado, por ser um ato que serve
também para convidar o outro a sambar. Esse ato acontece através do encontro de uma barriga
na outra.
A palma é o segundo elemento a entrar, logo depois da cantiga. Ela pode ser
trabalhada no sentido de desenvolver habilidades relacionadas ao ritmo e ao tempo, podendo
se recriar várias configurações rítmicas de ostinatos11 a partir da célula rítmica matriz.
A dança do samba de terreiro, parte fundamentalmente da base dos pés, onde os que
sambam, movimentam-se arrastando.
Considerações finais
Conforme afirmado nas reflexões desse artigo, o samba de terreiro é um gênero
musical importante para se realizar a prática da educação musical nas escolas. Ele traz
consigo fatores importantes que além da música, se reportam à sua origem histórica vinculada
à tradição afro-brasileira. O povo africano e seus descendentes, mesmo em regime
escravocrata por séculos a fio, privados dos seus direitos e com a liberdade tardia, resistiram o
tempo todo, principalmente à colonização dos seus corpos e dos seus valores ancestrais.
Mesmo em condições desumanas, eles conseguiram recriar as suas heranças, enriquecendo o
nosso país com uma variedade de manifestações culturais, dentre elas o samba e sua origem
nas senzalas e nos terreiros.
Ao apontar uma das inúmeras possibilidades de se realizar a educação musical através
da cultura afro-brasileira, esse trabalho dialoga e contribui na implementação da lei
10.639/2003, fortalecendo os estudos sobre a identidade musical brasileira. A expectativa é
que as reflexões venham inspirar ideologicamente outros educadores, estimulando ações que
considerem a possibilidade de transformação das maneiras de se educar musicalmente na
11
Ostinato: Estrutura que se repete inúmeras vezes. Termo originado da palavra obstinado. Ex.: ostinatos
rítmicos.
67
atualidade, promovendo uma prática de ensino que utilize didaticamente ferramentas que
incluam os nossos valores musicais nacionais.
No intuito de reverenciar o legado musical e cultural trazido pelos povos bantos e
ressignificado no Brasil, esse estudo traz contribuições didáticas e históricas no ensino da
música. Didaticamente, podemos destacar o samba como um veículo de filosofia educacional
musical que ressalta a cultura afro-brasileira. Ao priorizar e valorizar o corpo como
instrumento musical, além de reforçarmos a consciência dos aprendizes em relação a sua
cultura, apresenta a ludicidade como um elemento importante na condução das aulas.
Evidentemente esse estudo é apenas um pequeno movimento para se adentrar,
desvendar e apresentar todo o imenso universo de recursos pedagógicos existentes no samba
proveniente dos terreiros. A intenção é que as apresentadas neste trabalho possam inspirar
outros educadores, estimulando o desenvolvimento de ações que transformem as maneiras de
se educar musicalmente, no sentido de promover uma prática de ensino que utilize
didaticamente ferramentas que incluam, principalmente, os nossos valores musicais nacionais.
Durante a pesquisa percebemos a carência de materiais sobre o assunto, bem como de
elementos pedagógicos que pudessem informar e auxiliar os interessados em educação
musical por meio da modalidade trabalhada. Além da pesquisa teórica, é importante que o
educador vivencie espaços onde essa manifestação acontece, materializando seus
conhecimentos para a aplicação em sala de aula.
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