Filosofia:

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Ericson Falabretti
Jelson Oliveira
Filosofia:
O Livro das Perguntas
IESDE Brasil S.A.
Curitiba
2011
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do detentor dos direitos autorais.
F177f Falabretti, Ericson. Oliveira, Jelson. / Filosofia: O Livro das Perguntas. / Ericson
Falabretti; Jelson Oliveira. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2011.
320 p.
ISBN: 978-85-387-1714-0
1. Filosofia. 2. História da Filosofia. 3. Filósofos. 4. Mito e Ciência. 5. Correntes Filosóficas. I. Título.
CDD 109
Capa: IESDE Brasil S.A.
Imagem da capa: Domínio público
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Ericson Falabretti
Doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor e
coordenador do programa de pós-graduação (mestrado) em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Autor de artigos e ensaios na área
de Filosofia.
Jelson Oliveira
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor
do programa de pós-graduação (mestrado) em Filosofia na Universidade Federal
do Paraná (PUCPR). Diretor do curso de licenciatura em Filosofia na PUCPR. Poeta
e escritor, tem artigos e livros publicados na área de Filosofia, dentre os quais A
solidão como virtude moral em Nietzsche (Curitiba: Champagnat, 2010).
Sumário
O Livro das Perguntas.................................................................9
De onde viemos? (O mito)..................................................... 15
O mito no mundo grego.......................................................................................................... 18
Depois do mito, a Filosofia...................................................................................................... 23
Qual a origem do mundo? (Período naturalista)........... 37
O momento pré-socrático....................................................................................................... 37
Os filósofos originários............................................................................................................. 40
Quem somos? (Platão)............................................................. 59
O nascimento da Filosofia....................................................................................................... 59
O inteligível e o sensível.......................................................................................................... 62
A dialética e o conhecimento................................................................................................ 64
A alma e o conhecimento como reminiscência.............................................................. 67
O que são o ser, o mundo e o homem? (Aristóteles).... 83
A sistematização do conhecimento.................................................................................... 83
A metafísica.................................................................................................................................. 87
A física............................................................................................................................................ 91
A psicologia.................................................................................................................................. 94
Como devemos viver? (Helenistas)...................................109
O estoicismo...............................................................................................................................113
Epicurismo..................................................................................................................................115
Ceticismo e cinismo.................................................................................................................120
Neoplatonismo.........................................................................................................................122
É possível conciliar fé e razão? (Patrística
e escolástica) . ..........................................................................135
Santo Agostinho: fé e razão como garantias da felicidade.......................................137
Fé e razão na escolástica........................................................................................................143
A sistematização de São Tomás de Aquino.....................................................................145
Como podemos conhecer? (Empirismo
e racionalismo).........................................................................159
Velhos e novos problemas....................................................................................................159
Bacon e o empirismo..............................................................................................................163
Descartes e o racionalismo moderno...............................................................................169
A dúvida metódica e a experiência estruturada...........................................................176
Somos livres? (Maquiavel e Rousseau)............................189
A força..........................................................................................................................................189
O direito político.......................................................................................................................191
Até onde podemos conhecer? (Kant)..............................219
A era moderna e uma nova visão de mundo.................................................................221
O que posso saber?.................................................................................................................223
O que devo fazer?....................................................................................................................228
Qual o valor da vida? (Niilismo)..........................................243
O século da suspeita...............................................................................................................243
A crise niilista.............................................................................................................................245
A morte de Deus.......................................................................................................................247
A ambiguidade do niilismo..................................................................................................250
O que é estar no mundo? (Husserl e
Merleau-Ponty)........................................................................267
O esquecimento da experiência primeira.......................................................................267
Intencionalidade e redução: a redescoberta da experiência subjetiva................273
O ser no mundo: corpo e existência..................................................................................277
Para onde vamos? (Natureza e técnica)..........................295
A técnica como aumento do poder...................................................................................295
O poder de Prometeu.............................................................................................................297
De como a técnica pode se converter em uma ameaça............................................300
O princípio responsabilidade...............................................................................................302
O poder do homem sobre si mesmo................................................................................306
O Livro das Perguntas
Quis o mito que Athena – aquela deusa parida da cabeça de Zeus a golpes de
machado, já senhora das reflexões, deusa do raio, da guerra e da inteligência –
adotasse uma ave como sua. Desde então, a coruja de olhar vigilante aninhou-se
nas colônias gregas até as periferias da Hélade e as colunas monumentais do areópago central do mundo helênico, seus jardins e perípatos, sobrevoando homens
e mares como poucas vezes se viu. Faz tempo que é assim. Desde que o entusiasmo do voo dessa ave sagrada entusiasmou um velho obscuro como Heráclito e/
ou um desastrado como Tales. E fez profundas as marcas de suas garras na alma
grega de um Sócrates ou de um Platão, ainda atônitos com a grande descoberta
da razão e seus encantos, até os píncaros de um sistema tão intangível quanto o
de Aristóteles e tão encantador quanto o de Epicuro e seus colegas helenistas. Tal
como a fênix renascida para novo zênite depois da autocombustão, também a
coruja de Athena arremeteu com força divinal ainda sob a pena de um Agostinho
e um Tomás de Aquino, retraçando a metáfora do voo com um tão grande esforço
de interrogação e mil olhos de lince em direção ao infinito, batizado agora com o
maiúsculo codinome de Deus. Ave metafórica, com que olhos se olhou no espelho engendrado por um Descartes ou por um Bacon, e se debateu nas redes de
um Kant ou de um Hegel, e com que espírito enfrentou o perigo de uma obra tão
corrosiva como a de um Nietzsche, aquele que escreveu com sangue não para ser
lido, mas para ser cantado.
Ah... Quantas viagens e quantas ressurreições foram necessárias para que essa
ave rupestre, em seu hierogâmico exercício de rotas em torno do absoluto, fizesse seu ninho ainda no coração de nossa cultura, arrebatando novos adeptos, representantes de uma humanidade reflorescida em sempre outros rostos e outras
interrogações. Jovens no tempo, nas alianças e nas indagações.
Pois! Que força tem o poder encantador universal dessa ave: a sombra de suas
asas e o encanto de seus rodopios continuam arrebatando gente como nós. Faz
muito tempo que é assim. Energia fundamental e suprema, força cega e incontrolada? Talvez. Não existimos sem ela. Com ela, dançamos um balé de opostos
complementares – alguma coisa que, parafraseando José Saramago, por mais
voltas que pudéssemos dar às palavras, não conseguiríamos achar um nome
para isso. Com ela, a vida ganha uma conotação ritual obediente a um princípio
maior, chamado pela pomposa palavra Verdade – assunto de tantas aulas, tema
de tantos discursos, mote de tantas leituras. No eclipse de uma sala de aula ou
sobre o mofo de um velho livro, o filósofo coteja a verdade como quem reencena
a invenção do universo. Ou como quem decifra o pensamento de um deus. A verdade é sua frequentação mais assídua. A coreografia de uma vida. Às vezes, sua
fuga. Sua caça. Sua tontura! Seu enigmático ritual de silêncios e arrebatamentos.
Dessa matéria, há tempos se diz, faz-se a vida enlevada pela filosofia. O tal filósofo, amante da sabedoria, enfim, como pretendemos mostrar neste livro, encarna-
-se em todo aquele que for capaz de se deixar levar pelo encanto do voo filosófico.
A filosofia não é assunto de livros empoeirados. Trata-se de uma atitude. Por isso,
realiza-se pela capacidade de formular perguntas, muitas das quais, pelo exagero
ou pela obviedade da aporia, tornam os seus formuladores algo estranhos, ausentes, arrebatados. Como toda amante, a filosofia também exige exclusividade.
Quase sempre ensimesmado (e por vezes também abobalhado), esse novo tipo
de ser humano, mais completo, mais vivaz e plenamente realizado, apenas realiza
a grandiosa tarefa que lhe foi reservada: filosofar.
Ver pelo olho da ave de hábitos crepusculares é também amar o crepúsculo,
rapinando por sobre a cultura com uma desenvoltura de 360 graus. O filósofo
sabe que precisa levar muitos ídolos ao crepúsculo. Foi Hegel quem disse que a
coruja de Athena (ou de Minerva, entre os romanos) só levanta voo ao entardecer.
E o faz para caçar. A caça, lembrem, é símbolo da sobrevivência, pelo abatimento da presa. Depois da refeição, dizem os biólogos, a coruja lança fora restos de
ossos e pelos dos animais abatidos. Em uma época, a nossa, de tantas ignorâncias
e mediocridades, tantos tecnicismos ordinários e esvaziadas comédias midiáticas espetacularizadas como mercadoria falsificada, é preciso manter-se prudente
para completar os ciclos e derrubar falsos ídolos. Alimentar-se de seu tempo para
jogar fora seus dejetos.
O homem pergunta: “É esta a minha hora?” Então, o estranho em pele de filósofo lhe ensina como tocar a flauta do espírito para desencantar os habitantes
dessa nova aldeia global, comovida pelo dote de malditas melodias. O percurso
do som envolve uma descida ao centro desconhecido de nós mesmos, entre ressonâncias ancestrais de um trajeto iniciático, tal como o de Orfeu em busca de
sua Eurídice, aquela que habita o carvalho e fornece a matéria para o som. Ali,
no mundo desconhecido das sombras, exige-se agora, mais uma vez, vigilância
absoluta e um novo tipo de saúde. Aquela que não apenas se tem, mas se perde
e se reconquista, para citar de novo Nietzsche, o filósofo de Sils Maria. É o drama
animal de uma fênix, batizado pelos gregos de mistérios órficos. É disso que se
fazem, desde muito tempo, as inúmeras ressurreições que nós temos de fabricar.
Com a filosofia, o universo se faz de novo a cada instante e nós subimos à
vida novamente, em nossa anábase de mil retornos. E atrás do filósofo talvez siga
ainda a cultura, como Eurídice caminhou atrás de seu amado. Mas, como Orfeu,
também não corremos nós o risco de olhar para trás, contrariando as ordens dos
senhores do mundo, e perdê-la para sempre? Nenhuma dor é maior que o vazio
ontológico dessa perda. Porque, com ela, perdemos as joias de nossa arca, nada
mais do que um alaúde de instantes que arrastamos desde o nascimento. Somos
gente da reversão, da recondução, do retorno e, por isso mesmo, da resistência, da
religação. Fazer vibrar a lira da filosofia pela teimosia de sempre novas perguntas,
é fazer vibrar de novo a música do mundo, a harpa da cultura inventada naqueles
primórdios, por Hermes, e emprestada a Orfeu e a tantos outros daqueles poetas
originários. Nossa tarefa agora? Descer ao oco de nós mesmos para aí reanimar-se dessa mesma ancestralidade, em horas e horas de leituras e devaneios, desbravamentos hesitantes e dolorosos. Essa jornada interpretativa é o arroubo,
ainda, da coruja de Athena. E, como jornada, o que interessa não é a chegada,
mas a viagem mesma, suas errâncias e a beleza da paisagem. Solidão haverá, e
talvez inúmeros daqueles sustos, dos quais falara Sócrates. Mas é esse, também, o
eixo central de todos os amores.
A tarefa da pergunta, como tarefa fundamental da humanidade, torna-nos a
todos herdeiros dessa tradição. E também de suas rupturas e da necessidade de
suas reinaugurações. É por isso que, nesta obra didática, dirigimos nosso convite
para que você, caro leitor ou leitora, reflita sobre esses valores ancestrais e sobre
a necessidade de sua atualização, em um tempo em que a razão, malgrado seus
benefícios, ainda pode ser responsabilizada pela tortura de corpos até envelhecer
as almas, pelas milhões de crianças que sucumbem no purgatório diário da fome,
ou pela destruição diária de inúmeras formas de vida sobre o planeta. Em nosso
tempo, como escreveu o poeta uruguaio Mario Benedetti, “já é bastante grave
que um só homem ou uma só mulher contemplem distraídos o horizonte neutro”,
o que dizer quando toda a humanidade dá de ombros e vira as costas para si
mesma. É preciso lembrar-se também do esquecimento.
Neste Livro das Perguntas, toda a humanidade está. E sua forma de estar pode
ser a da indiferença ou do compromisso. Mas de sua leitura deve partir a tarefa viva
da Filosofia. É preciso usar essa poderosa ferramenta para a educação. E educar é
recorrer à memória e engendrá-la com o presente, em forma de projeto. Sonhar
é o nome poético dessa atividade. Filosofia não é excentricidade, não é adorno,
não é luxo, não é privilégio. Filosofia é a arte de refundar mundos. Faz tempo que
é assim. Do jeito como sonhamos. Não somos sábios. Somos amantes. Não somos
juízes, somos intérpretes. Não somos viajantes, mas andarilhos. Sentido último,
se há? Verdade decisiva, quem poderá afirmar? A beleza está na busca. Disposto
para a vertigem, como a coruja, noturno é nosso voo e estendido sobre abismos.
Vale a beleza da vista. Em um tempo de misósofos (os que odeiam a sabedoria),
pela força das perguntas convidamos a todos para que sejam filósofos (os que a
amam). Mas essa não é uma atividade puramente intelectual, exige envolvimento
absoluto e capacidade de se deixar contaminar e emocionar por ideias e ideais.
Na filosofia, assim como na vida, é preciso perder o prumo. Porque todo amor é
carência e falta, e todo objeto amado é completude e descontrole. Velho, doente,
frágil, louco o filósofo? O homem sem ação, calado, triste, misógino, misantropo?
Nada disso! Desde Nietzsche, a filosofia aprendeu a dançar e exige força aeróbica.
Tarefa inútil e alienada? Não: coragem de enfrentar a suspeita, de questionar o
útil, de engajar-se com o principal, isso sim. Em um tempo de resultados imediatos, os nossos nunca são alcançados. De projeções desastrosas, as nossas ainda
respiram utopias. E se alguém ainda perguntar para que servem as utopias, teríamos apenas de responder: para caminhar, ora bolas!
E, nesse caminho, o presente livro pode servir de mapa. Na sua grafia, muitos
nomes, muitos lugares, muitas experiências. O livro é uma carta-convite para
uma grande aventura. Tentamos marcar no mapa, perseguindo as pistas dos que
nos precederam, as principais perguntas que envolvem a condição humana. Dos
poetas e filósofos originários gregos aos pensadores cristãos, dos modernos até
os contemporâneos. Passamos por várias áreas: política, estética, ética, epistemologia, linguagem etc. Encontramos fundamentos, desvelamentos, encobrimentos,
construções e desconstruções. No caminho, haverá atalhos, picadas, passagens
estreitas, mares abertos, momentos sem rumo, encruzilhadas. De todos esses momentos comoventes se faz a arte de caminhar – e de filosofar!
O que dizemos? O que perguntamos? Qual o rumo da estrada? O que desejamos? Que a ave de Athena também pouse nos seus ombros, caro leitor, e, com
você, a filosofia continue sendo essa tarefa do “por quê?” E não esqueçam: quanto
mais a resposta pareça óbvia, mais vocês devem evitar o conforto das evidências.
Que a paciência e a admiração sejam o exercício diário da Filosofia. Fujamos da
pressa, prefiramos a contemplação, exijamos alegria. Não colecionemos banalidades, não afugentemos as diferenças, não banalizemos as indiferenças. Sejamos
lentos no olhar e leves na avaliação. Imparciais no trato, mas corajosos nas escolhas. Deixemo-nos mobilizar pelas infinitas perspectivas, amemos o complexo,
prefiramos o mar ao porto e as viagens longas e perigosas à permanência e ao
comodismo. Pedra que rola não cria limo. Faz tempo que é assim. Com vocês,
também será.
Boa aventura!
Os Autores
De onde viemos? (O mito)
A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano.
Albert Camus
Domínio público.
A pergunta fundamental do mito é uma indagação sobre a origem de
todas as coisas – homens, mundo e deuses incluídos. Como uma narrativa
alegórica e/ou simbólica, o mito é uma tentativa de dizer e explicar a realidade, em um tempo em que a linguagem racional ainda não tinha o status
que apresenta em nossos dias. Por isso, as explicações míticas não são lógicas, mostrando-se, ao contrário, carregadas de ambiguidade (algo que,
no limite, está presente em qualquer texto poético). Um exemplo disso
pode ser encontrado no prólogo escrito pelo poeta grego Hesíodo, ao seu
livro Teogonia: a origem dos deuses, no qual as musas afirmam que sabem
dizer a Alétheia (“verdade”) e também a Apáte (“engano”).
Hesíodo.
Como inspiradoras dos poetas, as musas tanto podem dizer verdades
quanto enganar, já que seu discurso é fantasioso e tem caráter de sacralidade, sendo articulado por meio de uma linguagem que não segue os
padrões da lógica ou da semântica, efetivando-se pelas imprecisões, as
fantasias e rupturas, nas quais a verdade pode ser desvelada.
15
De onde viemos? (O mito)
O mito é uma forma de conhecer o mundo e, nas suas lacunas, muitos autores
têm tentado encontrar a veracidade de seus conteúdos, já que ele se apresenta
com uma riqueza imensa que não cabe na lógica linguística e, por isso mesmo,
só pode ser dito em forma de narrativa mítica. O mito é algo vivo e nele a imaginação se apresenta de forma exuberante, possibilitando que de seu tecido cheio
de cores possamos extrair o sentido da vida. Assim, em seu conteúdo, linguagem, função e estrutura, todo mito se apresenta como antecipação da própria
filosofia.
Não por outro motivo, o mito também
está marcado pelo mistério, que é constituinte da essência humana. O verbo
miéin, donde ele deriva etimologicamente, remete à ideia de que é preciso
“manter a boca e os olhos fechados” para
se deixar iniciar nos mistérios. De miéin
também derivam mystérion e mýstes,
que estão ligados àqueles que se deixam
iniciar nos rituais com quais o homem
tenta explicar (por essa língua enigmática) os grandes segredos interiores e exteriores. Por isso, Carl Gustav Jung – que
usou os mitos de forma decisiva em sua
psicologia – escreveu que “Para a razão,
o fato de ‘mitologizar’ (mythologein) é
uma especulação estéril, enquanto que
para o coração e a sensibilidade é vital
e salutar: confere à existência um brilho
ao qual não se queria renunciar” (JUNG,
1978, p. 261).
16
Domínio público.
Como uma história sagrada, todo mito fala da criação do mundo, do aparecimento dos homens e dos deuses, das façanhas de criaturas extraordinárias, tentando explicar atitudes e sentimentos que expressam uma relação entre todos
os seres naturais. Cada cultura tem seus próprios modos de explicar esses “acontecimentos” e, muitas vezes, essas narrativas são transmitidas oralmente de geração para geração. Assim, o mito tem uma base oral extremamente relevante:
quanto menos letrada é uma sociedade, mais afeita às explicações míticas ela é.
Em torno do mito, criam-se cerimônias, rituais, gestos, ornamentos, vestuários
etc., que dão concretude à expressão mítica.
Carl Gustav Jung (aqui em uma fotografia de 1909)
demonstrou o vínculo dos mitos com a estrutura psíquica do indivíduo.
De onde viemos? (O mito)
O mito devolve brilho à vida, e isso o torna tão encantador. Entre os pensadores contemporâneos, talvez Joseph Campbell deva ser citado como um dos que
mais se interessaram pela vitalidade dos mitos, tentando classificar essa importância em quatro questões:
cosmológica;
metafísica;
sociológica;
psicológica.
Domínio público.
Em outras palavras, o mito tenta ordenar o mundo, dar explicações sobre as
coisas que nos cercam, estruturar a sociedade humana e ajudar cada indivíduo
a entender a si mesmo como parte do mundo. Segundo Campbell, “o alegre
espanto diante da maravilha das coisas é, por fim, o presente imortal do mito”
(CAMPBELL, 2001, p. 134).
Joseph Campbell (aqui com sua esposa, a bailarina
Jean Erdman) demonstrou a onipresença do mito
nas narrativas, e logrou influenciar artistas da cultura pop, como o diretor George Lucas, da saga Guerra
nas Estrelas.
17
De onde viemos? (O mito)
Como história sagrada, todo mito revisita as origens primordiais para perscrutar como as coisas vieram a ser o que são. Mas não só isso: ele oferece a chance
de que os homens de todas as épocas possam se deixar orientar por ele, por sua
fecundidade e sua vivacidade:
O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade
científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeira, que satisfaz a profundas
necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e
mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função
indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; [...] garante a eficácia do ritual e
oferece as regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente
vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade
viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma
fantasia artística [...]. (MALINOWSKI apud ELIADE, 2000, p. 23)
É essa riqueza simbólica que continua fazendo com que pensadores de distintas épocas continuem recorrendo ao mito, como maneira de explicar a realidade e forma de compreensão dos mistérios que envolvem o espírito humano,
em todos os tempos.
O mito no mundo grego
No mundo grego, o mito se revelou como forma de expressão metafórica e
sagrada das verdades que davam sentido à vida dos homens dóricos. Sutis e flexíveis, essas narrativas encaixam fatos que transmitem ensinamentos estéticos,
religiosos e práticos, expressando uma íntima relação do homem com a natureza.
Arranjados nos poemas épicos de Homero e Hesíodo (que foram os dois principais
poetas gregos, tendo vivido entre os séculos VIII e VII a.C.), os mitos são o conteúdo
principal das primeiras formas literárias do Ocidente, logo após a invenção do alfabeto grego. Como histórias que visam a dar sentido à vida e à morte dos homens,
esses poemas revelam a estrutura social, a forma de compreensão de mundo, os
dilemas e os valores que fundam a sociedade antiga. Questões humanas e cotidianas se dissolvem nas narrativas épicas, que contam a história na forma versificada
dos primeiros textos poéticos. A importância do mito para a Grécia é tão forte que
podemos afirmar, com certeza, que por ele passam as grandes contribuições dóricas em termos de arquitetura, religião e estética: templos, teatros, tesouros, textos
literários, esculturas – tudo vem da visão mítica alimentada pelos gregos, tendo
uma influência duradoura sobre a nossa cultura.
18
Domínio público.
De onde viemos? (O mito)
Sísifo, 1920. Franz von Stuck. O mito de Sísifo representa a condição humana, a condenação a existir.
Assim, para os gregos, o mito representa o primeiro discurso que, entre
outras funções, procura responder sobre a origem da natureza, dos deuses, dos
homens e de todas as formas de vida.
Etimologicamente, mythos deriva de dois verbos, que têm grafias e significados semelhantes:
mytheyo (“contar, narrar, falar alguma coisa para os outros”);
mytheo (“conversar, contar, anunciar, nomear, designar”).
O mito é um discurso pronunciado para pessoas que o recebem como verdadeiro, na medida em que confiam na própria história narrada, seja para explicar
o presente ou para anunciar um futuro não determinado, conforme sugere o uso
do verbo mytheo.
19
De onde viemos? (O mito)
Diferentemente da religião cristã, e de quase todas as crenças monoteístas,
o mito grego não está assentado em uma fonte transcendente1, isto é, distinta
da realidade. Ao contrário, ele estava integrado à vida como a fala ao cotidiano,
como os hábitos de comer à mesa e a moral às regras de sociabilidade. Praticar
o culto e honrar os deuses eram tradições que não demandavam qualquer justificação ou persuasão. E assim como não havia revelação de origem completamente transcendente, não havia casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e tampouco dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao homem grego
dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas, as quais, em suas inúmeras
variações, sempre repetidas e reafirmadas de geração em geração. E ainda que
permanecessem abertas a interpretações pessoais, pois não contavam com um
corpo doutrinal fixo, essas narrativas guardavam o lugar e a função dos deuses,
mantinham a memória dos antepassados e da própria pólis (a cidade-Estado
grega). Além disso, elas marcavam, junto à prática dos cultos e dos ritos, o sentido de uma religião que permanecia viva somente enquanto contava com
a adesão dos homens, pois: “Rejeitar esse fundo de crenças comuns seria, da
mesma forma que já não falar grego, já não viver de modo grego, deixar de ser si
mesmo” (VERNANT, p. 22, 1992).
Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do cristianismo,
não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião sempre aberta à
interpretação dos fatos narrados. Se para o homem grego era preciso aceitar a
veracidade da narrativa, escutar a fala com a confiança de uma confissão íntima
e praticar os ritos com a obediência de quem recebe uma ordem severa, por
outro lado, sempre permanecia aberta para os gregos a leitura das intenções e
das armadilhas dos deuses. Diante da materialidade do discurso, abria-se a liberdade da interpretação. Aqui, certamente encontramos um ponto fundamental,
que parece aproximar rito mitológico e exercício filosófico. Assim como a religião
mitológica, a filosofia nasceu, antes de tudo, como um pensamento que não se
reduziu à assimilação ou a conformação dos fenômenos e dos sinais da natureza.
1
De modo geral, transcendente é o que se eleva para além de um limite ou de nível qualquer. De modo particular, é aquilo que resulta da intervenção certa de classe de seres ou de ações exteriores. Nesse aspecto, o transcendente se opõe ao imanente, aquilo que resulta do arranjo natural das
coisas. No sentido kantiano, transcendente é aquilo que está além de toda experiência possível e todo juízo – por exemplo, Deus e as essências. De
modo vulgar, transcendente é o que não participa de uma determinada realidade, está além dela; já imanente é o que está entre as coisas.
20
De onde viemos? (O mito)
Do mesmo modo que era preciso interpretar as mensagens do oráculo, já que os
deuses falam por sinais, na filosofia foi fundamental procurar as razões, as causas
dos fenômenos, interrogando a realidade e buscando o sentido último, que explica o aparecer de todas as coisas.
Na prática diária da religião, que apresentava as aventuras divinas e discorria
sobre os motivos para a ordem das estações do ano, por exemplo, esses mythoi
– as narrativas – encontravam seu primeiro abrigo na vida privada e na educação, patrocinada pelas mulheres. Todo grego era iniciado no culto aos mitos no
interior do próprio lar, sempre por meio de colóquios privados. Mas a voz das
mães não era a única que cantava os feitos dos deuses, pois a ela se somavam os
cânticos dos poetas. Na tradição da oralidade, os poetas cantavam as aventuras
e dádivas divinas em festas religiosas, em grandes banquetes, em concursos e
jogos. A essa tradição oral dos poetas se uniu a literatura, com a invenção e o
desenvolvimento da escrita. Principalmente com as obras de Homero e Hesíodo,
a expressão verbal dos feitos divinos, que era fácil de memorizar e de reinventar
sobretudo pela condição etérea da oralidade, adquiriu uma rigidez quase canônica. Desse modo, finalmente o mito grego ganhou a coesão e a duração que
só a escrita podia conferir. Recolher um mito, construir uma narrativa definitiva,
reconhecer a ordem no conjunto aparentemente caótico das aventuras, fixar o
lugar dos deuses no panteão, e ainda transcrever em fábulas as razões da vida
e da morte, foi a tarefa dos primeiros poetas. Hesíodo e Homero legaram para
a filosofia uma técnica que, paradoxalmente, liberta as ideias da domesticidade
para aprisioná-las na publicidade. Portanto, por meio da literatura mitológica, os
poetas anteciparam as condições do pensamento filosófico: estendido na duração do tempo, debatido nos espaços públicos e ordenado pela lógica da letra.
No contexto da cultura grega, a religião mitológica representa a unidade do
homem com a natureza, com a família e com a pólis. A mitologia grega é politeísta e os diferentes deuses fazem parte de uma sociedade hierarquizada, cada um
deles possuindo dons e poderes específicos. Mas os deuses não criaram o mundo:
diferentemente do que ensina o cristianismo, as potências divinas gregas nasceram no mundo. Assim, na religião grega, não há transcendência, pois os deuses
21
De onde viemos? (O mito)
estão no mundo, interagem com a natureza e com os homens. Portanto, a partir
da mitologia, o homem grego forjou a ideia da unidade ontológica do cosmo,
contribuição central para o nascimento da filosofia como pensamento da totalidade. Na medida em que os mitos gregos não separam em campos opostos a
natureza e o sobrenatural, o humano e o divino, esse comércio mundano dos
deuses significa, entre outras coisas, que não há outro mundo a ser conhecido
além deste que experimentamos, não há mundo proibido ou fechado e a realidade sobre a qual devemos indagar é a do cosmo, que se apresenta, ao mesmo
tempo, como profana e sagrada.
Desse modo, a diferença entre o mito e a religião cristã, por exemplo, deve
ser procurada na análise da estrutura complexa que separa as duas crenças. Não
há entre as duas formas de religião uma relação de linearidade ou evolução. O
cristianismo não suplantou o mito porque não evolui em relação a ele. Mas é
preciso dizer que a estrutura complexa do mito – que, entre coisas, explica a
existência humana e a existência natural, além de organizar a vida em torno de
códigos sagrados – mantém, com a filosofia, um pensamento posterior, uma relação paradoxal. Se a filosofia superou o mito na medida em que apresentou
novos problemas, constitui um novo pensamento sobre o mundo e forjou uma
nova estrutura de saber, ela conserva no horizonte do seu discurso todas as inquietações que fizeram os homens falarem por mitos. Sobre isso, vejamos o que
nos diz Aristóteles: “Ora, quem duvida e se admira julga ignorar: por isso quem
ama os mitos é, de certa maneira, filósofo, porque o mito resulta do maravilhoso”
(ARISTÓTELES, 1978, p. 214).
O papel do poeta rapsodo
A narrativa mítica é sempre contada pelo poeta, que tem a função de dizer
publicamente as verdades recebidas em revelação, pela via das musas (filhas da
deusa Mnemosyne, ou seja, Memória). Assim, ao dizer o que deve ser dito, o
poeta transmite a palavra dos deuses e sua fala se torna sagrada, ganha contornos de verdade. Ele é o porta-voz das musas e sua mensagem serve de mote
educativo, revestindo-se de um ambiente pedagógico: cantando publicamente
suas poesias (é bom lembrar que a poesia não é apenas a linguagem escrita,
mas também – como se lê na Poética, de Aristóteles – a arte geral, que envolve
melodia e ritmo), o poeta torna-se um pedagogo, já que os ouvintes decoram os
seus textos e os repetem, como forma de aprendizado.
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Domínio público.
De onde viemos? (O mito)
Homero, o poeta cego a quem são atribuídas as
epopeias Ilíada e Odisseia.
Mas se o primeiro contato dos gregos com os mitos era doméstico, pois era
função das mulheres habituar as crianças à autoridade do sagrado, os poetas
davam às narrativas o seu gosto público. Escolhidos pelos deuses (segundo a
crença), eles eram pessoas especiais, a quem os deuses deram a conhecer os
eventos passados que explicam a existência, a origem e o significado de todas
as coisas. O discurso do poeta rapsodo (o mito) torna-se, assim, algo sagrado e,
por isso mesmo, incontestável, pois é um discurso de origem divina, portador de
uma verdade inalienável.
Depois do mito, a Filosofia
Aos poucos, a palavra poética foi deixando escapar de sua influência vários âmbitos da vida humana, nos quais um novo tipo de palavra começa a despertar, a palavra dialógica. A Grécia viveu, por volta do século VI a.C., um processo de secularização da palavra, na qual os deuses deixam de ser conteúdos essenciais e, no seu lugar,
o próprio homem faz nascer aos poucos uma nova relação com o real: a palavra
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De onde viemos? (O mito)
Domínio público.
sagrada já não satisfazia o ser humano, assolado por novas perguntas, dúvidas e interrogações. Ao novo tecido, logo se deu o nome de Filosofia, um discurso que, por
ser costurado em retalhos míticos, encontra-se alinhavado em fios lógicos, cuja natureza é uma séria e provocadora especulação a respeito das coisas existentes.
O pensador, Auguste Rodin. Estátua em bronze. Atualmente no
Museu Rodin, em Paris.
Mas o que é filosofia? Qual o sentido desse saber que, ao mesmo tempo, ama
mitos e procura superá-los?
A filosofia que estamos estudando nasceu na Grécia, por volta do século VII
a.C. No entanto, a palavra filosofia, inventada pelo filósofo Pitágoras de Samos,
apareceu apenas no século V a.C., para designar um saber que havia se estruturado em função de princípios racionais. A palavra Philosophia é composta por
duas palavras: Phília (“amor, amizade”) + Sophia (“sabedoria”). Portanto, etimologicamente, filosofia significa “amor, amizade pela sabedoria”. O filósofo, nesse
caso, seria aquele que vive pelo saber e busca o saber como um fim.
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De onde viemos? (O mito)
Segundo afirma Aristóteles, no livro Metafísica, a filosofia nasceu quando os
gregos, descontentes com as respostas da tradição, e ao mesmo tempo admirados com a ordem da realidade, formularam novas questões e descobriram um
estilo próprio para responder aos problemas e às dúvidas:
Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados
a filosofar, sendo primeiramente abalados por dificuldades mais óbvias, e pouco a pouco até
resolverem problemas maiores: por exemplo as mudanças da Lua, as do Sol e dos Astros e a
gênese do Universo. (ARISTÓTELES, 1978, p. 214)
Mas a inquietação – uma parte desse grandioso sentimento de admiração
– não nasceu apenas da dúvida e da crítica à tradição. Os homens, os primeiros
filósofos, admiraram-se também com o reconhecimento da possibilidade intrínseca de conhecer e elaborar um novo discurso sobre a realidade, cujo sentido
podia ser entendido por todos, porque a realidade não é sagrada, porque não
é fabulosa, e está estruturado racionalmente. Portanto, a filosofia nasceu com a
descoberta do poder e da presença universal da razão.
A palavra razão se origina da palavra grega logos que, por sua vez, vem do
verbo grego legein, que pode ser traduzido como “contar, reunir, juntar, calcular”. Desse modo, é fácil compreender que a razão designa o nosso poder de
pensar ordenadamente (contar), de entender as diferenças (reunir) e de descobrir, a partir de operações mentais, como calcular o segredo da ordem racional
que está no mundo. Pois a filosofia nasceu quando os gregos entenderam que
o logos que organiza as nossas ideias, e permite a expressão do pensamento,
também está presente como força ordenadora do próprio cosmo. Podemos
fazer uma filosofia sobre o mundo somente na medida em que consideramos
que os eventos do mundo seguem regras e leis necessárias e universais. Com
o nascimento da filosofia, os poderes divinos, na explicação do real, cederam o
lugar para a força necessária das leis.
Mas se as palavras de Aristóteles dão os primeiros motivos da admiração de
um filósofo, também indicam, em um segundo momento, as questões iniciais
da filosofia:
Qual a origem do cosmo e de todas as coisas?
Quais as causas de transformações dos seres?
Portanto, a filosofia nasceu quando o homem reaprendeu a ver o mundo e,
por meio da razão, encontrou uma nova maneira de formular problemas e narrar
a verdade. Por isso, a razão, diferentemente do mito, explica tudo em função
de causas naturais, procurando demonstrar como e por que, no passado, no
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De onde viemos? (O mito)
presente e no futuro, as coisas são como são. Em seu início, a razão tentou explicar o surgimento da natureza por forças e relações entre os elementos naturais
– água, terra, fogo e ar.
Se o mito se caracteriza pelo fabuloso e aceita o incompreensível e o discurso
contraditório como verdadeiro, a razão, por seu turno, não aceita contradições,
exige coerência e lógica na explicação. Enquanto o mito se fundamenta na autoridade sagrada do poeta, o discurso racional encontra a sua legitimidade nos
princípios racionais, no debate público e na possibilidade da dúvida.
Texto complementar
O texto a seguir foi escrito pelo filósofo e literato franco-argelino Albert
Camus, e nele podemos encontrar um exemplo da riqueza interpretativa da linguagem mítica. Ao se apropriar da narrativa mítica, o autor evidencia a condição humana na perspectiva da filosofia existencialista: o homem, como Sísifo,
está condenado a existir. Nessa bela passagem, o mito e a filosofia se encontram
como discurso que dá sentido ao existir – na verdade, uma afirmação da vida
que não oculta a sua “absurdidade.”
O Mito de Sísifo (fragmento)
(CAMUS, 2004, p. 135-144)
Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente
até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição
mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Se acreditarmos em
Homero, Sísifo era o mais sábio e mais prudente dos mortais. Segundo uma
outra tradição, porém, ele tinha queda para o ofício de salteador. Não vejo
aí contradição. Diferem as opiniões sobre os motivos que lhe valeram ser o
trabalhador inútil dos infernos. Reprovam-lhe, antes de tudo, certa leviandade para com os deuses. Espalhou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi
raptada por Júpiter. O pai, abalado por esse desaparecimento, se queixou a
Sísifo. Este, que tomara conhecimento do rapto, ofereceu a Asopo orientá-lo
a respeito, com a condição de que fornecesse água à cidadela de Corinto.
Às cóleras celestes ele preferiu a bênção da água. Foi punido por isso nos
infernos. Homero nos conta ainda que Sísifo acorrentara a Morte. Plutão não
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De onde viemos? (O mito)
pôde tolerar o espetáculo de seu império deserto e silencioso. Despachou o
deus da guerra, que libertou a Morte das mãos de seu vencedor.
Diz-se também que Sísifo, estando prestes a morrer, imprudentemente
quis por à prova o amor de sua mulher. Ele lhe ordenou jogar o seu corpo insepulto em plena praça pública. Sísifo se recobrou nos infernos. Ali, exasperado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão
o consentimento para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando ele de
novo pôde rever a face deste mundo, provar a água e o sol, as pedras aquecidas e o mar, não quis mais retornar à escuridão infernal. Os chamamentos,
as iras, as advertências de nada adiantaram. Ainda por muitos anos ele viveu
diante da curva do golfo, do mar arrebentando e dos sorrisos da terra. Foi
necessária uma sentença dos deuses. Mercúrio veio apanhar o atrevido pelo
pescoço e, arrancando-o de suas alegrias, reconduziu-o à força aos infernos,
onde seu rochedo estava preparado. Já deu para compreender que Sísifo é
o herói absurdo. Ele o é tanto por suas paixões como por seu tormento. O
desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse
suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. É
o preço a pagar pelas paixões deste mundo. Nada nos foi dito sobre Sísifo
nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste caso,
vê-se apenas todo o esforço de um corpo estirado para levantar a pedra
enorme, rolá-la e fazê-la subir uma encosta, tarefa cem vezes recomeçada.
Vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de uma espádua que
recebe a massa recoberta de barro, e de um pé que a escora, a repetição
na base do braço, a segurança toda humana de duas mãos cheias de terra.
Ao final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo
sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar em
alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la
até os cimos. E desce de novo para a planície.
É durante esse retorno, essa pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que
pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra! Vejo esse homem
redescer, com o passo pesado mas igual, para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamente quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um
desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no
covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo.
Se esse mito é trágico, é que seu herói é consciente. Onde estaria, de fato, a
sua pena, se a cada passo o sustentasse a esperança de ser bem-sucedido?
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De onde viemos? (O mito)
O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas e
esse destino não é menos absurdo. Mas ele só é trágico nos raros momentos em que se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e
revoltado, conhece toda a extensão de sua condição miserável: é nela que
ele pensa enquanto desce. A lucidez que devia produzir o seu tormento consome, com a mesma força, sua vitória. Não existe destino que não se supere
pelo desprezo.
Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se
fazer para a alegria. Esta palavra não está demais. Imagino ainda Sísifo indo
outra vez para seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens
da terra se mantêm muito intensas na lembrança, quando o apelo da felicidade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza se impõe ao
coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme desgosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas
as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas. Assim, Édipo de
início obedece ao destino sem o saber. A partir do momento em que ele
sabe, sua tragédia principia. Mas no mesmo instante, cego e desesperado,
reconhece que o único laço que o prende ao mundo é o frescor da mão de
uma garota. Uma fala descomedida ressoa então: “Apesar de tantas experiências, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me fazem achar que
tudo está bem.” O Édipo de Sófocles, como o Kirílov de Dostoiévski, dá assim
a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga torna a se encontrar com o
heroísmo moderno. Não se descobre o absurdo sem ser tentado a escrever
algum manual de felicidade. “Mas como, com umas trilhas tão estreitas?” No
entanto, só existe um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da
mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Ocorre do mesmo modo o sentimento
do absurdo nascer da felicidade. “Acho que tudo está bem”, diz Édipo, e essa
fala é sagrada. Ela ressoa no universo feroz e limitado do homem. Ensina que
tudo não é e não foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele havia
entrado com a insatisfação e o gosto pelas dores inúteis. Faz do destino um
assunto do homem e que deve ser acertado entre os homens.
Toda a alegria silenciosa de Sísifo está aí. Seu destino lhe pertence. Seu
rochedo é sua questão. Da mesma forma o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente
restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da
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De onde viemos? (O mito)
terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não existe sol sem sombra, e é preciso
conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se
há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos,
só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais, ele se tem como
senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre
sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência
de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o
olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido
da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que
sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar. Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu
fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta
os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo doravante
sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa
pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma
um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher
um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz.
Dicas de estudo
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus,
1992.
Atividades
1. Considerando o mito grego como expressão de uma religião, explique, de
modo geral, a distinção entre o mito e o cristianismo, a partir da perspectiva
da revelação.
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De onde viemos? (O mito)
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De onde viemos? (O mito)
2. Explique, de modo geral, a diferença entre mito e filosofia.
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De onde viemos? (O mito)
3. Qual é a função do poeta rapsodo no mito?
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De onde viemos? (O mito)
Gabarito
1. A distinção mais evidente entre a religião mítica grega e o cristianismo é
que a primeira é politeísta, e a segunda, monoteísta. Mas a diferença fundamental do mito em relação à religião cristã, e quase todas as crenças
monoteístas, é que o mito grego não está assentado em uma revelação
que deve ser aceita como um dogma. Ao contrário, o mito estava integrado à vida como a fala ao cotidiano, como os hábitos de comer à mesa e a
moral às regras de sociabilidade. Praticar o culto e honrar os deuses eram
tradições que não demandavam qualquer justificação ou persuasão. Assim, no mito, não encontramos casta sacerdotal, igreja, livro sagrado e,
tampouco, dogmas. Para cumprir suas obrigações religiosas, bastava ao
grego dar crédito, ter fé perante o conjunto de narrativas que eram, apesar das inúmeras variações, sempre repetidas e afirmadas de geração em
geração. Portanto, é preciso dizer que o mito grego, diferentemente do
cristianismo, não é uma religião de revelação: ao contrário, é uma religião
sempre aberta à interpretação dos fatos narrados. Mesmo considerando
que os poetas recebiam os mitos das musas por meio de revelações, esses mitos não permaneciam como dogmas porque, diferentemente do
cristianismo, no mito a história revelada ganha o seu sentido na interpretação e na leitura sempre aberta das experiências contingentes da
vida privada, e no exercício da imaginação. Enquanto no cristianismo a
revelação é sobre uma verdade que deve ser obedecida, no mito, sobre
toda e qualquer revelação, temos que construir a verdade: enquanto o
cristianismo aceita a palavra, o mito constrói.
2. O mito representa o primeiro discurso que, entre outras funções, procura
responder sobre a origem da natureza, dos deuses, dos homens e de todas as formas de vida. Etimologicamente, mythos deriva de dois verbos,
que têm grafias e significados semelhantes: mytheyo (“contar, narrar, falar
alguma coisa para outros”) e mytheo (“conversar, contar, anunciar, nomear, designar”). O mito é um discurso pronunciado para pessoas que o recebem como verdadeiro, na medida em que confiam na própria história
narrada, seja para explicar o presente ou, ainda, para anunciar um futuro
não determinado, conforme sugere o uso do verbo mytheo. Portanto, o
mito se caracteriza pelo fabuloso e aceita o incompreensível e o discurso contraditório como verdadeiro. Diferentemente dessa perspectiva, a
filosofia, por seu turno, não aceita contradições, exige coerência e lógica
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De onde viemos? (O mito)
na explicação. Enquanto o mito se fundamenta na autoridade sagrada
do poeta, o discurso racional encontra a sua legitimidade nos princípios
racionais, no debate público e na possibilidade da dúvida.
3. A narrativa mítica é sempre contada pelo poeta, que tem a função de
dizer publicamente as verdades recebidas em revelação, pela via das
musas (filhas da deusa Mnemosyne, ou Memória). Assim, ao dizer o que
deve ser dito, o poeta transmite a palavra dos deuses e sua palavra se torna sagrada, ganha contornos de verdade. Ele é o porta-voz das musas e
sua mensagem serve de mote educativo, revestindo-se de um ambiente
pedagógico: cantando publicamente suas poesias (é bom lembrar que
a poesia não é apenas a linguagem escrita, mas também – como se lê
na Poética, de Aristóteles – a arte geral, que envolve melodia e ritmo), o
poeta se torna um pedagogo, já que os ouvintes decoram os seus textos
e os repetem, como forma de aprendizado.
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
CAMPBELL, Joseph. Mitos, Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2003.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2000.
HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006.
JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1978.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus,
1992.
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