INTRODUÇÃO A literatura dramática é expressiva e

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INTRODUÇÃO
A literatura dramática é expressiva e importante no cenário da cultura mundial.
Com sua gênese atrelada às manifestações religiosas dos primórdios da humanidade,
essa arte evoluiu concomitantemente à história do homem em sociedade. Já na
Antigüidade, entretanto, com os gregos Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, se
estabeleceu com uma linguagem própria - por se vislumbrar a comunicação com um
público, a escolha das palavras, mais especificamente do texto, sempre esteve em
harmonia com a representação, com a ação do homem imaginário - correspondendo ao
projeto ideológico de homem real, o autor, envolto por um contexto histórico e social;
demarcando a transposição do espaço da vida real para o espaço da ficção.
Alguns dramaturgos que marcaram a vanguarda de seu tempo, como o
renascentista inglês Shakespeare, ampliaram e asseguraram o campo de atuação e
contemplação da arte dramatúrgica. Da Antigüidade até Shakespeare, e deste até a
contemporaneidade, desenrolou-se um vasto universo de criações na literatura
dramática. São diversas as questões que denotam toda a expressão cultural presente
nos textos; são contribuições dos autores, que podem ser reconhecidas e evidenciadas
no meio acadêmico e pelo público leitor.
Assim, com o intuito de contribuir para a elucidação dessas questões, uma vez
reconhecida a abrangência da arte dramatúrgica para os estudos da evolução do
homem, no presente trabalho tem-se por objetivo, a partir de pesquisa bibliográfica,
engendrar uma análise que aponte o valor representativo da dramaturgia para os
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estudos da linguagem e da cultura, investigando em que medida essa arte refrata1 a
memória ideológica da humanidade, uma vez que esses dois fundamentos, linguagem
e ideologia, caracterizam a escrita do texto de arte literária.
O gênero dramático, além do texto, possui mais dois elementos essenciais: o
ator e o público. Para Magaldi (2003, p. 8) "O fenômeno teatral não se processa, sem a
conjugação dessa tríade". O teatro, ao mesmo tempo em que explora a linguagem
escrita, o texto, vislumbra a representação, pelo ator, para um público. Roubine (2003)
salienta que as teorias relativas ao teatro visam a cobrir essa heterogeneidade que
diferencia a literatura dramática das demais; ora elaboram doutrinas que tomam por
objeto o texto, ora a representação, às vezes ambos simultaneamente.
Neste estudo, porém, enfocar-se-á, sobretudo, o texto dramático com todos os
seus níveis de significação, porque é pelo texto que se pode perenizar uma peça e
instituí-la como literatura; é pelo texto que se pode estabelecer, entre meio a outros
textos de fundamentação teórica, uma pesquisa bibliográfica sobre a linguagem. No
entanto, levar-se-á em consideração que o dramaturgo, ao escrever uma peça, supõe a
encenação. O diálogo teatral, como propõe Magaldi (2003, p. 16) "requer um
encadeamento próprio, porque deve ser transmitido pelo ator. Sua matéria, na boca de
um ser humano que o pronuncia, visa à criação da personagem", ou seja, a
representação atrela a palavra ao ato ideológico e a representação desse ato é que
promove a ação; dessa maneira se configura a imagem dos personagens.
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O verbo refratar esta sendo usado no sentido metafórico, proposto por Bakhtin, de que a arte não reflete uma
realidade como um espelho, com imagem em semelhança, mas a refrata, como um raio obliquo, de um meio para
outro; a literatura refrata a história da humanidade, com uma liberdade maior que a própria História, por possuir
uma linguagem e uma forma de expressão que lhes são próprias.
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Nessa perspectiva, com a fundamentação teórica amparada nas contribuições de
Bakhtin, realizar-se-á uma análise comparativa entre dois textos representativos da
literatura dramática, com o objetivo de verificar as relações de reciprocidade ocorridas
entre eles, não, porém, no sentido de estabelecer um confronto entre as obras e os
autores, mas no sentido, já proposto por Carvalhal (2003, p. 86), sobre literatura
comparada, “de contribuir para a elucidação de questões literárias que exijam
perspectivas mais amplas".
Os textos escolhidos diferenciam-se tanto pelo tempo, aproximadamente quatro
séculos, quanto pelo espaço. Um fora escrito no final do século XVI e pertence à
literatura inglesa; outro, escrito no século XX, pertence à literatura brasileira.
O primeiro texto a ser abordado, O Mercador de Veneza (1596), faz parte da
obra de William Shakespeare. Suas peças trazem não só a crônica de seu contexto
histórico como também descrevem a condição humana, as relações entre os indivíduos
e destes com a sociedade.
Bakhtin (2000) frisa que Shakespeare construiu sua obra a partir de formas
repletas de sentidos; estas, elaboradas e acumuladas no correr dos séculos, e até dos
milênios - na evolução social.
Em O Mercador de Veneza, Shakespeare explora o contraste de uma
intrincada rede social, que refrata as relações humanas introduzidas pelas relações
comerciais e religiosas de Veneza, na época do Renascimento. Dois comerciantes
representam, na peça, o âmago do conflito; um judeu, Shylock, que empresta dinheiro
a quem precisa e explorando seus devedores, aufere lucros e prospera; e outro, o
mercador de Veneza, Antônio, um cristão, que também empresta dinheiro, mas,
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aparentemente, apenas no intuito de ajudar - este resgata o discurso franciscano em
várias passagens da peça, demonstrando o desapego aos bens materiais. Antônio, ao
ser procurado por um amigo, não dispondo da quantia solicitada e não vendo outra
saída, indica Shylock e avaliza o empréstimo, dando como garantia, por exigência do
credor, uma libra da sua própria carne. O conflito é gerado por essa dívida, pois
Antônio não consegue saldá-la e fica à mercê de Shylock.
A peça dialoga com a estrutura da comédia antiga de Aristófanes que, segundo
Brandão, se divide em duas partes bem distintas: a primeira comporta uma ação; a
segunda, é uma espécie de "sketches" - esboço da primeira - na qual se resgataria a
ação para estabelecer uma reflexão (2001). A primeira parte em O mercador de
Veneza corresponderia às ações proferidas pelos personagens e, a segunda, a uma
sessão de julgamento que resgata toda a ação e direciona o desenlace da trama - a
solução do conflito.
O segundo texto escolhido para o estudo faz parte da literatura brasileira
contemporânea e apesar de ter sido escrito quatro séculos depois, tal qual a peça de
Shakespeare, mantém a mesma estrutura da comédia grega de Aristófanes. Trata-se do
Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna; o dramaturgo também utiliza
uma sessão de julgamento, na segunda parte da peça, para refletir sobre as ações das
personagens e solucionar o conflito.
A elaboração de Suassuna mantém um diálogo com a peça de Shakespeare e,
ainda, institui a interpretação de uma realidade que é do seu contexto histórico e social,
o que produz uma identidade. O dramaturgo coloca diante do tribunal divino almas
que carregam os pecados da condição social: um bispo e um padre acusados de
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simonia; um comerciante sovina e sua mulher, adúltera; um bando de cangaceiros; e,
ainda, os personagens centrais, João Grilo, astuto, ardiloso, conversador e Chicó, seu
comparsa.
O viés dialógico proposto por Bakhtin, que se pretende destacar nas duas peças,
é evidenciado por essas sessões de julgamentos; nas quais, tanto em O Mercador de
Veneza, quanto no Auto da Compadecida, são focalizadas as astúcias das
personagens, destacadas pela linguagem, na solução dos conflitos.
Outras questões das peças também dialogam: o gênero tragicômico; os valores
humanos, que são intensamente questionados; a religiosidade sob diferentes prismas; a
opressão e a discriminação. As duas obras, a partir de seus contextos, de épocas
distintas, propõem quadros de significação universalmente válidos, pois exploram
como temática as relações de poder. Os enunciados apresentam um emaranhado de
vozes que entrelaçam, metaforicamente, realidade e ficção.
Todas essas questões que norteiam a pesquisa serão, antes da análise,
evidenciadas em dois capítulos. Um deles intitula-se A concepção bakhtiniana da
linguagem: a ideologia presente nos enunciados que configuram os gêneros do
discurso. Nesse capítulo, além das contribuições de Bakhtin, e também as já
destacadas contribuições de Carvalhal (2003), são utilizadas as de autores como
Gnerre (1994), Kristeva (1974), Roselfeld (1986) entre outros.
O conceito de ideologia tem sido discutido por vários autores com
especificidades diversas; mas, é a partir da conceituação explicitada por Marx que se
pretende elucidar as contribuições de Bakhtin.
Em A Ideologia Alemã, o conceito de ideologia aparece como equivalente à
ilusão, falsa consciência, concepção idealista na qual a realidade é invertida
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e as idéias aparecem como motor da vida real. Mais tarde Marx amplia o
conceito e fala das formas ideológicas através das quais os indivíduos tomam
consciência da vida real, ou melhor, a sociedade toma consciência da vida
real. Ele as enumera como sendo a religião, a filosofia, a moral, o direito, as
doutrinas políticas, etc. (LOWY, 1992, p.12)
Bakhtin (2002a, p. 31) retoma o conceito de Marx e acrescenta a construção
sígnica da ideologia: "tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo
situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem
signos não existe ideologia".
Nesse sentido, Bakhtin estabelece uma correspondência dialética entre o signo e
ideologia. O primeiro termo pode representar uma realidade e, pode também, refletir e
refratar outra de acordo com um contexto específico - assim, torna-se ideológico; o
segundo, pela sua condição de representação, constitui-se num signo. Tanto um quanto
outro dependem de uma convenção; são criados pelos indivíduos num processo de
interação e compreensão responsiva.
O indivíduo, porém, ao passo que cria os signos e as ideologias com seus pares
sociais, tem sua consciência individual formada por esses mesmos signos e ideologias.
À essa formação deve-se acrescentar um outro fator, a linguagem verbal. É pela
palavra que se estabelece a relação social.
A palavra constitui o âmago da comunicação verbal. Mas, ao se pensar no
processo de compreensão e interpretação de determinadas realidades, é necessário se
evidenciar, a partir da palavra, a constituição de enunciados. O contato que se dá entre
a linguagem e a realidade concreta formula um enunciado. Os diálogos, estabelecidos
socialmente, configuram-se por enunciados; estes estão sempre carregados pela
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intencionalidade do enunciador. O enunciador escolhe palavras específicas que
correspondam ao que exige a circunstância da fala ou ao gênero estabelecido.
A comunicação verbal é constituída por vários gêneros do discurso. Bakhtin
estabelece uma classificação entre o gênero primário (diálogos orais, linguagem das
reuniões sociais, linguagem familiar, cotidiana, linguagem sociopolítica, filosófica,
etc.) e o gênero secundário, mais elaborado (ideológico, científico e literário).
No gênero da Literatura existem as duas formas de diálogos. A primeira
estabelece uma comunicação cultural; é o diálogo que ocorre entre o autor, através de
sua obra, e o leitor. A outra forma trata-se do diálogo estabelecido na parte interna da
obra, o autor elabora uma simulação que incorpora o gênero primário do discurso: a
criação dos enunciados e a alternância das falas entre os personagens fundamentam um
diálogo fictício. Para Bakhtin (2000), a literatura formula com uma linguagem que lhe
é própria, uma forma diferente de percepção, que permite ver as coisas que estão
obscurecidas em outros tipos de discurso.
Em Problemas da poética de Dostoiévski (1929), por exemplo, Bakhtin reflete
sobre a transposição para o gênero literário do espírito do carnaval, pelo que representa
essa festa para a sociedade.
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores. No carnaval todos são participantes ativos. [...] No carnaval
forja-se, em forma concreto-sensorial semi-real, semi-representada e
vivenciável, um novo modus de relações mútuas do homem com o homem,
capaz de opor-se às onipotentes relações hierárquico-sociais da vida
extracarnavalesca. O comportamento, o gesto e a palavra do homem
libertam-se de qualquer posição hierárquica (de classe, título, idade, fortuna)
que os determinava totalmente na vida extracarnavalesca. [...] Ao longo dos
milênios, essas categorias carnavalescas, antes de tudo a categoria de livre
familiarização do homem com o mundo, foram transpostas para a literatura.
(BAKHTIN, 2002b, p. 122, 123 e 12)
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Esse processo de carnavalização da literatura pode, depois de Bakhtin, ser
observado em várias obras, de vários autores do gênero cômico, como um recurso que
dialoga com as diferentes realidades; como nas peças O Mercador de Veneza e Auto
da Compadecida.
Nas duas peças ocorre um jogo de inversão dos papéis sociais. Essa inversão é
uma das principais características da carnavalização da linguagem literária. Além
dessa característica, outra, que fazem uso Shakespeare e Suassuna, é a miscigenação
dos gêneros trágico e cômico. Essa miscigenação pode ser melhor compreendida ao se
analisar como se deu a evolução da arte dramática.
Assim, no capítulo imediatamente anterior à análise, intitulado Os diálogos
estabelecidos na literatura dramática: a evolução dos gêneros, faz-se um breve
resgate sobre a origem e a evolução do teatro - com um aprofundamento histórico que
aborda questões relevantes sobre a obra dos autores estudados e evidencia as peças
escolhidas como objetos de estudo deste trabalho, localizando-as no tempo e no
espaço, a fim de comprovar as relações das produções dramatúrgicas com o cenário
social e histórico de diferentes contextos, usufruindo das questões explicitadas por
Berthold (2003), Lesky (1990), Brandão (2001), Hauser (2000), Burgess (2002),
Bloom (2001) e Peixoto (1989), entre outros.
A origem do teatro pode ser atrelada à origem das sociedades primitivas, nas
quais se acreditava no uso de danças como propiciadoras de poderes sobrenaturais que
controlavam todos os fatos necessários à sobrevivência (fertilidade da terra, casa,
sucesso nas batalhas), instituindo diálogos com os deuses. Berthold, em sua obra
História mundial do teatro (1968), confirma: "A forma e o conteúdo da expressão
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teatral foram, inicialmente, condicionados pelas necessidades da vida e pelas
concepções religiosas" (2003, p. 2).
E, sobre a origem do teatro, o autor, sistematiza:
A história da religião, a etnologia e o folclore oferecem um material
abundante sobre danças, rituais e festivais das mais diversas formas que
carregam em si as sementes do teatro. [..] A forma de arte começa com a
epifania do deus e, em termos puramente utilitários, com o esforço humano
para angariar o favorecimento e a ajuda do deus. (BERTHOLD, 2003, p. 2)
O teatro permaneceu atrelado às festas religiosas e míticas durante muito tempo,
embora, desde a Grécia Antiga, a questão do religioso e do mítico já estivesse
implicitamente relacionada à história sócio-política do homem.
Os quatro grandes poetas gregos, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes e Aristófanes,
foram, a partir de suas obras, historiadores em arte. Instituindo o inter-discurso2 pela
expressão de suas específicas visões de mundo, formadas certamente no meio social, já
refratavam questões de sua época, se não explicitamente, implicitamente refratavam a
cultura de seu povo - os mitos e as crenças, as questões históricas e sociais. Suas
contribuições culminaram não só no drama europeu, como em todo o drama ocidental.
Os dois gêneros gregos - a tragédia e a comédia - deram origem aos gêneros
explorados na dramaturgia. Shakespeare e Suassuna dialogam com os gregos, não só
em consonância com a evolução que se deu a partir desses autores nos séculos que os
seguiram, mas em essência, na fonte grega. A estrutura das peças O Mercador de
Veneza e o Auto da Compadecida remetem à mesma estrutura da comédia Antiga de
Aristófanes, e ainda, os elementos religiosos e mitológicos abordados retomam os
2
O inter-discurso se dá pelo resgate do discurso de outrem, que fora estabelecido a partir das discussões de
Bakhtin.
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textos gregos, numa mistura de elementos da tragédia e da comédia - Bakhtin assevera
sobre essa mistura de gênero na literatura.
Para o autor, apesar de alguns gêneros estabelecidos para a literatura serem,
exteriormente, bastante diversos, interiormente, por explorarem essa mistura de
elementos da tragédia e da comédia, tornam-se cognatos "constituindo, por isso, um
campo especial que os antigos denominaram muito expressivamente campo do sériocômico" (2002b, p.106), hoje também conhecido como tragicômico, como é o caso de
O Mercador de Veneza e do Auto da Compadecida.
No terceiro capítulo, intitulado Relações dialógicas entre Shakespeare e
Suassuna, a partir das questões explicitadas nos capítulos anteriores, realiza-se a
análise buscando apontar tanto as especificidades de cada peça, nos aspectos da
criação dos enunciados que configuram as personagens, observando o projeto estético
e ideológico do texto, quanto os entrelaçamentos possíveis que romperam o tempo e o
espaço e estabeleceram o diálogo entre as duas peças e destas, com o contexto
histórico e social de cada autor.
Nas duas peças os autores refratam a realidade de cada contexto com temas que
convergem mesmo após quase quatro séculos. Dentre outras questões, Shakespeare
constrói um mercador que possui uma frota de navios justamente à época do advento
das grandes navegações, em que as relações comerciais da Europa, especificamente na
Itália, estavam voltadas às explorações de novas rotas marítimas. Entrelaçadas à essas
relações estão as questões religiosas - a rivalidade entre os cristãos e os judeus; essa
divergência é explicitada na construção dos enunciados de vários personagens.
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Suassuna também explora a temática da religiosidade em sua peça. Como o
próprio nome sugere, o Auto da Compadecida é uma peça que explora os preceitos
cristãos, e, de uma certa forma, também expõe algumas divergências entre as religiões.
O autor também refrata questões históricas e sociais em sua obra. Uma delas é o
sentimento de repulsa do povo nordestino por algumas ações dos americanos,
evidenciado pelos enunciados criados para Manuel, nos quais, implicitamente,
Suassuna apresenta os resquícios da Segunda Guerra Mundial deixados pelas bases
americanas que foram instaladas no Nordeste.
Além do tratamento dispensado por cada autor - Shakespeare e Suassuna - para
refratar sua realidade, outra questão abordada nesse capítulo que expõe o diálogo entre
as peças é a já citada transposição para a literatura da cosmovisão do espírito
carnavalesco. Tanto Shakespeare quanto Suassuna metaforizam com a ação
carnavalesca explorando as formas de relação entre os homens. Os dois autores,
usufruindo dessa relação dicotômica, que promove a transposição de papéis sociais,
estabelecem o caráter de mudanças e transformações, de morte e de renovação, nos
enredos das peças. Como frisaria Bakhtin, tudo o que é marginalizado e excluído, pode
tornar-se central (2002b).
Assim, tanto esse processo de carnavalização, que promove a inversão de
papéis e a miscigenação dos gêneros na literatura, quanto a ideologia presente na
formação dos enunciados e a ambivalência de sentidos produzidos na elaboração dos
textos serão elementos norteadores para a análise dos diálogos que promovem a
transposição cultural entre ficção e ficção e mesmo entre ficção e realidade.
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1 A CONCEPÇÃO BAKHTINIANA DA LINGUAGEM: A IDEOLOGIA
PRESENTE NOS ENUNCIADOS QUE CONFIGURAM OS GÊNEROS DO
DISCURSO
Vários são os conceitos explicitados sobre a linguagem; alguns estabelecem que
a linguagem é a faculdade que o homem possui de poder expressar seus pensamentos
por um sistema de signos, sinais, símbolos, gestos ou regras, com significados
convencionais; outros denominam a linguagem apenas como o vocabulário ou a
fraseologia expressada por um povo. Numa definição apresentada por Sacconi, “a
linguagem é o estudo da língua em toda a sua amplitude, nas coordenadas de tempo e
espaço" (1996, p. 426).
Nenhum desses conceitos, no entanto, esclarece os meandros da linguagem. Se
a linguagem fosse considerada apenas como a forma do homem expressar-se pelos
signos convencionais, como seriam formados esses signos? E quanto ao conceito que
expressa ser a linguagem apenas o vocabulário ou a fraseologia? Como seriam
formadas as palavras e as frases? Qual seria a amplitude da língua proferida por
Sacconi?
Ao definir uma concepção para estabelecer metodologicamente os estudos da
linguagem, Bakhtin propõe a elucidação de todas essas questões. O autor estabelece
um entrelaçamento das bases de uma teoria marxista da criação ideológica com a
filosofia da linguagem; a língua é definida como expressão das relações e lutas sociais,
que veicula e, ao mesmo tempo, evolui pelos efeitos dessas relações. Nesse sentido, na
23
obra Marxismo e filosofia da linguagem (1929), Bakhtin busca delimitar qual é o
objeto para a análise da constituição e da evolução da linguagem.
Para tanto, apresenta, inicialmente, uma crítica às duas correntes do pensamento
filosófico e lingüístico. A primeira, denominada por “subjetivismo idealista”, ligada ao
Romantismo, estabelece, como princípios básicos, que as leis da criação lingüística são
essencialmente as leis da psicologia individual e que a língua enquanto sistema estável
(léxico, gramática, fonética) se apresenta como um produto acabado, pronto para ser
usado. Os principais representantes dessa tendência são Humboldt e Vossler
(BAKHTIN, 2002a).
A segunda, ligada ao Racionalismo e ao Neoclassicismo, é denominada
“objetivismo abstrato” e tem como centro organizador de todos os fatos da língua o
sistema das formas fonéticas, gramaticais e lexicais. Segundo essa tendência "cada
enunciação, cada ato da criação individual é único e não reiterável, mas em cada
enunciação encontram-se elementos idênticos aos de outras enunciações no seio de um
determinado grupo de locutores" (idem, p. 77). Ferdinand Saussure, fundador da
Escola de Lingüística de Genebra, é um dos principais representantes dessa corrente.
Saussure defende a abordagem sincrônica da língua, ou seja, uma abordagem que
estuda a língua como uma totalidade funcional num dado momento no tempo, no
interior da qual os motivos ideológicos têm pouca importância. (STAM, 2000)
Bakhtin contesta as duas correntes e inverte o sistema da língua como modelo
abstrato. Para o autor é a interação social que rege o processo de construção da
linguagem verbal. A língua não é um sistema imutável e a sua evolução não pode ser
compreendida desvinculada dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam.
24
Para Bakhtin a linguagem é constituída por signos ideológicos que refratam
uma realidade.
Cada signo ideológico não é apenas um reflexo, uma sombra da realidade,
mas também um fragmento material dessa realidade. [...] Um signo é um
fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas
as suas ações, reações e novos signos que ele gera no meio social
circundante) aparecem na experiência exterior. (BAKHTIN, 2002a, p.33)
Dessa forma, as leis da evolução lingüística não são as leis da psicologia
individual, são essencialmente leis sociológicas; a lógica da consciência individual é a
lógica da comunicação ideológica de um grupo social, engendrada por signos que
evoluem. A interpretação errônea de que a evolução da linguagem se dá de maneira
individual sugere que a evolução ideológica, que é atrelada a linguagem, também
aconteça de maneira individual. Essa questão é evidenciada por Bakhtin:
A regularidade social objetiva da criação ideológica, quando indevidamente
interpretada como estando em conformidade com as leis da consciência
individual, deve, inevitavelmente, ser excluída de seu verdadeiro lugar na
existência e transportada quer para a empíreo supra-existencial do
transcendentalismo, quer para os recônditos pré-sociais do organismo
psicofisiológico, biológico. (idem, p. 34 e 35)
A autonomia da formação da linguagem pela consciência individual assume,
assim, além da posição estabelecida pela corrente do subjetivismo idealista, a condição
de mito; na verdade, a realização psíquica transforma-se pelo suporte ideológico assim
como, paradoxalmente, os signos ideológicos só emergem no processo de interação
entre uma consciência individual e outra, o que necessariamente vai compondo a
coletividade. Pelos postulados de Bakhtin, então, a consciência individual é formada a
partir de algum tipo de material semiótico, que se estabelece no processo de interação
verbal com o outro, com a coletividade.
25
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual.[...] não basta
colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se
constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo [...] A consciência individual não só
nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir
do meio ideológico e social. (BAKHTIN, 2002a, p. 35)
A consciência não poderia se desenvolver se não usufruísse de um material um signo - que fosse assimilável pelo corpo e desenvolvido ideologicamente pela
coletividade. Esse signo configura-se na linguagem pela palavra: "a palavra é o modo
mais puro e sensível da relação social [...] é na palavra que melhor se revelam as
formas básicas, as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica" (idem, 2002a,
p. 36).
Para Bakhtin (2002a, p.41), "a palavra penetra literalmente em todas as relações
entre os indivíduos". É pela palavra que se refletem as mais imperceptíveis alterações
da existência humana; não apenas no sentido de formação lexical de uma língua, mas a
partir da sua condição sígnica que reflete e refrata uma determinada realidade - a sua
significação vai muito além daquilo que é estabelecido apenas nos dicionários. Aliás, a
palavra só constitui o âmago da comunicação verbal quando assume sua principal
função - ser um instrumento semiótico que compõe um enunciado e propicia a
interação social.
O indivíduo, então, ao passo que estabelece com seus pares sociais os diversos
sentidos ideológicos da palavra, tem sua consciência individual formada por esses
mesmos signos e ideologias. Para Gnerre, o poder de algumas palavras é enorme,
porque encerram em cada cultura, mais notadamente nas sociedades complexas, o
conjunto de crenças e valores aceitos pelas classes dominantes (1994).
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Bakhtin, relevando o sentido ideológico da palavra, acrescenta a sentença:
Na realidade não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas
verdades ou mentiras, coisas boas ou coisas más, importantes ou triviais,
agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um
conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que
compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em
nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (2002a, p.95)
No entanto, paradoxalmente, a palavra também se configura como um signo
neutro. Essa neutralidade reside no fato de que, se a palavra estabelece o modo mais
puro e sensível de qualquer relação social, e que estabelece diferentes reações, ela será
responsável pela formação de todos os discursos, indistintamente, nos mais diversos
segmentos sociais; contribuindo, assim, para a disseminação de diferentes ideologias,
uma vez que assume as opções dos indivíduos que formulam seus discursos de acordo
com diferentes contextos históricos e sociais. Assim, para uma interpretação coerente
da palavra é necessário perceber que lugar ela ocupa no enunciado e em que contexto
social é proferida - por quem, para quem e com qual objetivo.
Na maior parte dos casos, é preciso supor um certo horizonte social definido
e estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da época
a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa literatura, da
nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito. O mundo interior e a
reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem
estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas
motivações, suas apreciações, etc. Quanto mais aculturado for o indivíduo
mais o auditório em questão se aproximará do auditório médio da criação
ideológica. (BAKHTIN, 2002a, p. 112 - 113)
Dessa forma, a partir do léxico de uma única língua, podem-se produzir
discursos ideologicamente opostos; a palavra acompanha todo ato ideológico, seja ele
qual for; assim, como também, a representação desse ato, no processo de compreensão
e de interpretação.
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Esses atos de compreender e de interpretar determinadas realidades se
estabelecem porque, como denuncia Bakhtin, “toda a palavra comporta duas faces. Ela
é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se
dirige para alguém" (idem, p. 112). Os diálogos, estabelecidos socialmente,
configuram-se a partir da escolha das palavras que formarão os enunciados; estes, ao
contrário da palavra, não possuem, em momento algum, neutralidade; estão sempre
carregados pela intencionalidade do enunciador, que escolhe palavras específicas
correspondendo à circunstância da fala.
Dentre as características estruturais do enunciado, o autor destaca a clara
delimitação das fronteiras, que são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes.
"Todo enunciado - desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou tratado
científico - comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, há os
enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados respostas dos outros."
(BAKHTIN, 2000, p. 294).
Outra questão que deve ser evidenciada na constituição do enunciado (como
unidade da comunicação verbal) é a relação deste com a oração (unidade da língua).
Na comunicação não são trocadas apenas orações ou palavras, mas sim, enunciados
constituídos com essas unidades da língua. Entretanto, não se exclui o fato de que uma
única oração ou palavra possa constituir um enunciado.
São três os fatores propostos por Bakhtin para determinar a totalidade acabada
do enunciado e a possibilidade de compreendê-lo: o tratamento exaustivo do objeto do
tema; a intenção do locutor; e as formas típicas de acabamento. Mas, para que o
28
diálogo se efetive e produza a atitude responsiva ativa
3
proposta na interlocução, o
enunciado deve constituir-se de elementos que pertençam ao universo sígnico de todos
os interlocutores, ou ele se tornará incompreensível.
Na interlocução cada enunciado corresponde ao elo de uma cadeia complexa do
diálogo que configura a linguagem. Todos os setores da atividade humana, por mais
variados que sejam, estão sempre relacionados com a utilização da linguagem, que
configurada por signos ideológicos, efetua-se pelos enunciados (orais ou escritos).
Bakhtin evidencia o "enunciado" como unidade real da comunicação verbal. A fala só
existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo. O discurso se
molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante.
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato
de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo
ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação
verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN,
2002a, p. 123)
Assim, para que o enunciador atinja seus objetivos, o discurso deve ser
construído em vista do outro, que fará a sua interpretação; a linguagem funciona
diferentemente para diferentes grupos sociais, compondo um quadro ideologicamente
significativo. A linguagem, nesse sentido, pode demonstrar as posições que os
interlocutores ocupam na sociedade. Segundo Gnerre (1994, p. 5), "as pessoas falam
3
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva
ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável) toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma
forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor; [...]o próprio locutor pressupõe não só a
existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados anteriores. (BAKHTIN,
2000, p. 290)
29
para serem 'ouvidas', às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma
influência no ambiente em que realizam os atos lingüísticos".
Cada esfera de utilização da língua na sociedade elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, o que Bakhtin denomina de gêneros do discurso.
A comunicação verbal é constituída por vários gêneros do discurso. Bakhtin (2000)
estabelece uma classificação destes gêneros; o gênero primário, que trata da
comunicação espontânea - diálogos orais, linguagem das reuniões sociais, linguagem
familiar, cotidiana, etc. - e o gênero secundário - ideológico, científico e literário.
Em cada época de seu desenvolvimento, a língua escrita é marcada pelos
gêneros do discurso e não só pelos gêneros secundários, mas também pelos gêneros
primários. É a partir das condições visualizadas pelo enunciador - para quem se fala,
sobre o que se fala e com qual intenção se estabelecerá qual gênero será usado para a
formulação do enunciado.
É inegável que a falta de domínio do repertório dos gêneros impede o
conhecimento a respeito do todo do enunciado; o domínio total de uma língua não
garante a desenvoltura em todas as esferas da comunicação verbal.
A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma
de discurso social, corresponde um grupo de temas. Entre as formas de
comunicação (por exemplo, relações entre colaboradores num contexto
puramente técnico), a forma de enunciação (“respostas curtas” na
“linguagem de negócios”) e, enfim, o tema, existe uma unidade orgânica que
nada poderia destruir. Eis porque a classificação das formas de enunciação
deve apoiar-se sobre uma classificação das formas da comunicação verbal.
Estas últimas são inteiramente determinadas pelas relações de produção e
pela estrutura socio-política. (BAKHTIN, 2002a, p. 43)
30
Essa estrutura da linguagem pode, o que configura uma dicotomia, ser usada
para impedir a comunicação de informações nos grandes setores da sociedade. Os
meios de comunicação, por exemplo, quando julgam necessário, propositalmente,
constroem os enunciados incluindo metáforas, metonímias e outras figuras de
linguagem ou termos específicos à determinadas áreas que podem ser entendidos
somente por uma parcela da população, excluindo da interação a grande massa.
Por vezes, "é necessário um aparato de conhecimento sócio-político
relativamente amplo para poder ter um acesso qualquer à compreensão e
principalmente à produção de mensagens de nível sócio-político" (GNERRE, 1994, p.
21)
Assim, uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários
tipos de gênero é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua orientação
específica; as mudanças históricas dos estilos da língua são indissociáveis das
mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso e consequentemente no modo de
interação verbal.
Bakhtin propõe uma ordem metodológica para o estudo da língua com a
seguinte seqüência:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza;
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação
estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias
de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma
determinação pela interação verbal;
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística
habitual. (2002a, p. 124)
31
Para o autor, é nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua;
a comunicação e a interação verbais evoluem a partir da evolução das relações sociais,
depois, as formas dos atos da fala evoluem em conseqüência da interação verbal, e o
processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua.
Essa evolução acontece porque cada sujeito falante, de acordo com seu
conhecimento de mundo, com sua visão, que é adquirida no meio social, complementa,
muito além do sentido dicionarizado, os outros sentidos já estabelecidos às palavras
por seus pares sociais.
Isso ocorre porque, segundo Bakhtin, o que se vê é determinado pelo lugar e
pelo tempo em que se vê; cada indivíduo pode ver o que os outros, por estarem em
lugares e em épocas diferentes, não podem. A exemplo disso, Bakhtin cita a expansão
da base econômica:
À medida que a base econômica se expande, ela promove uma real expansão
no escopo de existência que é acessível, compreensível e vital para o
homem. O criador de gado pré-histórico não tinha preocupações, não havia
muita coisa que realmente o tocasse. O homem do fim da era capitalista está
diretamente relacionado com todas as coisas, seus interesses atingem os
cantos mais remotos da terra e mesmo as mais distantes estrelas. Esse
alargamento do horizonte apreciativo efetua-se de maneira dialética [...] Essa
evolução reflete-se na evolução semântica. (2002a, p. 136)
Dessa forma, a evolução semântica da língua é diretamente influenciada pela
mudança no horizonte apreciativo do homem, pela sua evolução histórica e social. O
que reitera o conceito de que a fala, mais especificamente a sua estrutura, a
enunciação, não pode ser considerada como um ato psicofisiológico do sujeito
individual, mas sim, um ato social. O sentido da palavra é totalmente determinado pelo
seu contexto e depende, ainda, da abordagem dada a cada tema.
32
O tema da enunciação, segundo Bakhtin, se apresenta como a expressão de uma
situação histórica concreta que dá origem à enunciação, ou seja, "o tema é um sistema
de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições
de um dado momento da evolução" (2002a p. 129).
Assim, a carga semântica da palavra evolui a cada novo diálogo, que configura
um mesmo tema ou não, seja escrito ou oral, porque à ela são acrescidos novos
significados dados por outras vozes, por ocuparem outro espaço num novo tempo.
Para Stam, "essa necessária e produtiva complementaridade de visões,
compreensões e sensibilidade, forma o cerne da noção bakhtiniana de diálogo" (2000,
p. 17). Na verdade, o entrelaçamento de várias vozes na consciência do indivíduo é
que constitui seu discurso. A formação e a evolução da linguagem, então, giram em
torno dessa noção de diálogo do indivíduo com seus pares sociais e as diversas vozes
que vão se aglomerando em sua consciência. Mas, é o próprio Bakhtin quem delimita
algumas questões: "Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? [...]
Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele
tem sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida?" (2002a,
p. 146). Para, depois, evidenciar que as escolhas dos discursos de outrem são atreladas
às tendências sociais estáveis características da apreensão ativa.
O mecanismo desse processo não se situa na alma individual, mas na
sociedade, que escolhe e gramaticaliza – isto é, associa às estruturas
gramaticais da língua - apenas os elementos da apreensão ativa, apreciativa
da enunciação de outrem que são socialmente pertinentes e constantes e que,
por conseqüência, tem seu fundamento na existência econômica de uma
comunidade lingüística dada. Naturalmente, há diferenças essenciais entre a
recepção ativa da enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um
contexto. (BAKHTIN, 2002a. p. 146)
33
Isso significa que toda a transmissão - o uso da palavra de outrem em outro
enunciado - tem um objetivo específico e diferente daquele no qual o discurso fora
proferido anteriormente.
O sentido dialógico da obra literária, por exemplo, pode ser evidenciado porque
a literatura sempre usufruiu a pluralidade de vozes, presente tanto na consciência dos
locutores, quanto na diversidade dos discursos que se encontra representada no próprio
interior do texto. O discurso citado e o contexto objetivado para a narrativa unem-se
por relações complexas. É impossível compreender a obra sem levar em conta essas
relações. Bakhtin ainda evidencia: "O discurso citado e o contexto de transmissão são
somente os termos de uma inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez, reflete a
dinâmica da inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica verbal".
(2002a, p. 148)
O autor de literatura pode usar os enunciados proferidos por outrem para
configurar a criação de seus personagens de duas maneiras: ou para resgatar e manter o
sentido e a autenticidade de um discurso, esforçando-se por delimitá-lo com fronteiras
nítidas; ou, pelo contrário, atenuando as fronteiras, acrescentando-lhe um novo
sentido, respaldado pela ambivalência que encontra suporte em determinadas figuras
de linguagem, como a ironia, por exemplo. Segundo Kristeva, a ambivalência das
palavras, além de manter o sentido que ela já possui, acrescenta-lhe um novo. "Resulta
daí, que a palavra adquire duas significações, que ela se torna ambivalente [...] É o
efeito da estilização que estabelece uma distância relativamente à palavra de outrem."
(1974, p. 72).
34
Ainda, segundo a autora, a palavra em literatura não possui um sentido fixo
porque, além da ambivalência, estabelece também um cruzamento de superfícies
textuais, "um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da
personagem), do contexto cultural atual ou anterior" (1974, p. 62).
Uma reflexão sobre a linguagem literária pode partir, então, da análise desses
novos sentidos que vão sendo dados às palavras, que as tornam ambivalentes e
relativas, e, ainda, desse cruzamento de vozes e visões que promovem o diálogo na
literatura, desvendando em que tempo e em que espaço viveu o autor e o seu
público/leitor.
1.1 A transposição de gênero na literatura e o processo de carnavalização
No gênero da literatura, muitas vezes, os autores resgatam um discurso
proferido por um indivíduo na vida real para caracterizar os personagens quando a
intenção é a denúncia de uma determinada realidade. Ironicamente, nesse sentido, a
literatura tem maior liberdade de denúncia do que a própria realidade.
Pode-se acusar um repórter ou um historiador de enunciados errados ou
falsos ou mesmo de mentira e fraude. Tal acusação é absurda em face da
ficção, [...] cujas orações não têm antes de tudo o sentido de corresponder
exatamente à realidade referida, mas de caracterizar as personagens e de
suscitar a ação dramática, isto é, de desempenharem uma função estética.
(ROSENFELD, 1986, p. 88)
35
Essa relação de retratar a realidade, que pode ser auferida no gênero da
literatura não deve suplantar, contudo, seu caráter artístico, até porque o autor faz a sua
interpretação da realidade e tem liberdade para refletir ou refratar outra. Assim, a
verificação do inter-discurso nos enunciados da obra ficcional tanto pode estabelecer
uma correspondência com a vida real, quanto impor um certo limite entre o que é real
e o que é ficção.
Além do processo de citação do discurso de outrem, que aproxima e delimita
realidade e ficção, ocorre também, em literatura, o resgate de outros textos, da ficção
para a ficção, pelo processo que Kristeva chama de intertextualidade. Para a autora,
"todo o texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é a transformação
de um outro texto [...] instala-se a intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo
menos como dupla" (1974, p. 64).
Dessa maneira, o texto literário situa-se na história e na sociedade, e ainda, na
história da literatura; o autor de literatura escreve seu texto amparando-se nas
constatações da realidade, no diálogo com seus pares sociais e ainda, resgatando textos
já escritos - pelo processo de intertextualidade.
Pode-se, ainda, estabelecer que a literatura, a partir de sua escritura, promove
duas formas de diálogos. Uma, fictícia, que ocorre na parte interna da obra, na qual o
autor elabora uma simulação que incorpora o gênero primário do discurso para a
criação dos enunciados, que pela escolha das palavras já é ideológica, com a
alternância das falas entre as personagens que fundamentam o diálogo e estabelecem a
confirmação da verossimilhança do projeto.
36
A simulação é, em partes, paradoxal, uma vez que pode instituir a interpretação
de uma realidade que é denunciada pelo autor; até porque, mesmo não sendo essa a sua
intenção, o autor, por estar inserido em um meio social, não consegue se desvencilhar,
no ato da criação, da sua compreensão de mundo estabelecida com seus pares sociais.
Em determinadas obras a intenção de denúncia é evidenciada. As
personalidades reais, contudo, na medida em que são refratadas pelo universo
imaginário do autor, assumem uma condição fictícia. O autor cria sua personagem e
resgata, para ela, o discurso do indivíduo real, estabelecendo, dessa forma, uma
interdiscursividade explicitada, que contribui para configurar o caráter dialógico da
obra.
A outra forma de diálogo estabelece uma comunicação cultural; é o diálogo que
ocorre entre o texto e o leitor. Este, a partir da leitura, elaborará uma atitude
responsiva ativa, que poderá encontrar um eco no discurso ou no comportamento
subseqüente do "leitor"- interlocutor.
Qualquer texto literário, enquanto desempenho verbal impresso, constitui
uma forma de ação verbal, calculada para leitura ativa e respostas internas, e
para reação impressa por parte de críticos, e pastiche ou paródia por outros
escritores. Essa concepção ampla de dialogismo, considerada como o modo
característico de um universo marcado pela heteroglassia, oferece inúmeras
implicações para os estudos sobre a cultura. (STAM, 2000, p.34)
Para Bakhtin "a ciência literária deve, acima de tudo, estreitar seu vínculo com
a história da cultura" (2000, p. 362). Segundo o autor, há uma interdependência entre a
literatura e a cultura, sendo impossível compreender a primeira fora do contexto global
da segunda numa dada época; não se pode, por evidência, separar uma da outra, e a
37
compreensão de um fato literário pode ser buscada na totalidade da cultura de uma
época, com a formulação de enunciados que lhes são próprios.
Nesse sentido, para se refletir sobre uma obra literária, é necessário, antes de
tudo, focalizá-la como um fenômeno de comunicação cultural, no qual o autor perfaz,
mesmo inconscientemente, a interpretação de uma determinada realidade. Para
Bakhtin (2000), a literatura formula com uma linguagem que lhe é própria, uma forma
diferente de percepção, que permite ver as coisas que estão obscurecidas em outros
gêneros do discurso. É o registro estético da visão crítica de um homem, inserido no
seu momento histórico.
O diálogo cultural que esse registro estético propicia pode perpassar anos,
séculos. Pelo distanciamento de tempo, a obra, além de expor o projeto estético e
ideológico do autor inserido em sua época, pode transpor seus primeiros sentidos,
adquirir novos significados, evidenciar a evolução da linguagem, propiciando com os
novos leitores outras formas de diálogos. Bakhtin evidencia que "as obras rompem as
fronteiras de seu tempo, vivem nos séculos, ou seja, na grande temporalidade, e, assim,
não é raro que essa vida seja mais intensa e mais plena do que nos tempos de sua
contemporaneidade" (2000, p. 365).
Em A estética da criação verbal (1979) Bakhtin exemplifica essa questão
dialógica da obra literária utilizando-se dos valores universais atribuídos à literatura
Shakespeareana - evidenciando que esse autor dialoga, além de todas as gerações que
o sucederam, também com as que o precederam.
Os tesouros de sentido colocados por Shakespeare em sua obra foram
elaborados e acumulados no decorrer dos séculos, e até dos milênios;
estavam ocultos na língua - e não só na língua escrita, mas também naqueles
38
estratos da língua popular que, antes de Shakespeare, não haviam penetrado
na literatura - ocultos na variedade dos gêneros e das formas da comunicação
verbal, nas formas poderosas da comunicação popular (sobretudo na
carnavalesca) que se moldava ao longo dos milênios, nos gêneros do
espetáculo teatral (mistérios, farsas, etc.), nos temas que remontam a uma
Antigüidade pré-histórica, e, finalmente, nas formas do pensamento. (2000,
p. 365)
Esse exemplo remete a teoria de Bakhtin, transcrita aqui, dos diálogos que
ocorrem nos discursos; a formação ideológica do enunciado e, principalmente, o
diálogo entre a realidade e a ficção. Antes de Shakespeare outros autores já haviam
estabelecido essa transposição inter-discursiva - diálogos entre a realidade e a ficção e ainda outra, intertextual, o diálogo entre as obras - ficção e ficção - configurando o
eco discursivo no gênero da literatura.
Em outra obra, Problemas da poética de Dostiévski (1929), Bakhtin já havia
ressaltado o caráter dialógico e de transposição de tempo que possui o gênero literário:
Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais
estáveis, "perenes" da evolução da literatura. [...] O gênero sempre é e não é
o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se
renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura. Nisto consiste
a vida do gênero. [...] vive no presente mas sempre recorda o seu passado, o
seu começo. É o representante da memória criativa no processo de
desenvolvimento literário. É precisamente por isto que tem a capacidade de
assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento. (2002b, p. 106)
Na literatura, correlacionam-se, desde a Antigüidade, gêneros assegurados por
uma estrutura definida e estabelecidos por críticos literários. Dentre eles, os primeiros
foram a tragédia e a comédia.
Samuel, entretanto, ao discutir teoria literária, propõe uma definição específica
para gênero em literatura que extrapola os cânones tradicionais e comunga com a
proposta por Bakhtin:
39
O que se entende por gêneros literários pode ser resumido se levarmos em
conta a própria etimologia do vocábulo "gênero", oriundo do latim genuseris, que significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração.
Deste modo, toda a obra literária se origina de uma determinada época e de
uma determinada cultura, isto é, é gerada num certo tempo e num certo
espaço, filiando-se a uma determinada classe ou espécie ou inaugurando um
novo horizonte através de um conjunto próprio de regras. (SAMUEL, 1984,
p. 64)
Essa organização das obras literárias, agrupadas por determinadas regras, em
gêneros específicos, não as impede, porém, de conterem elementos característicos de
vários gêneros. Bakhtin evidencia que alguns gêneros estabelecidos para a literatura
são, exteriormente, bastante diversos, mas interiormente cognatos "constituindo, por
isso, um campo especial que os antigos denominaram muito expressivamente campo
do sério-cômico" (2002b, p.106). Segundo o autor, as particularidades características
dos gêneros do sério-cômico são conjugadas por uma profunda relação com o folclore
carnavalesco; é a transposição do espírito do carnaval:
Variando de grau, todos eles são impregnados de uma cosmovisão
carnavalesca específica e alguns deles são variantes literárias diretas dos
gêneros folclórico-carnavalescos orais. A cosmovisão carnavalesca, que
penetra totalmente esses gêneros, determina-lhes as particularidades
fundamentais e coloca-lhes a imagem e a palavra numa relação especial com
a realidade. É bem verdade que em todos os gêneros do sério-cômico há
também um forte elemento retórico, mas este muda essencialmente no clima
de alegre relatividade da cosmovisão carnavalesca. [...] A cosmovisão
carnavalesca é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora e
de uma vitalidade indestrutível. (BAKHTIN, 2002b, p. 107)
Todo o campo do gênero sério-cômico demarca bem as influências das
diferentes modalidades do folclore carnavalesco; o que irá compor um novo quadro no
gênero da literatura.
Bakhtin delimita que são três as peculiaridades comuns a todos os gêneros
integrante do sério-cômico, já observados na literatura da Antigüidade Clássica e,
40
posteriormente, na época do Helenismo, que exercem grandes influências na evolução
dos gêneros da literatura. A primeira, seria o novo tratamento que eles dão à realidade.
A segunda, dialogando com a primeira, aponta que os gêneros do sério-cômico
baseiam-se na experiência e na fantasia livre. E, a terceira, evoca a pluralidade de
estilos e a variedade de vozes de todos os gêneros.
Sobre o novo tratamento dispensado à realidade, explicitado na primeira
peculiaridade, o autor frisa que:
A atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é objeto da interpretação, apreciação
e formalização da realidade. [..] o objeto da representação é dado sem
qualquer distância épica ou trágica, no nível da atualidade, na zona do
contato imediato e até profundamente familiar com os contemporâneos vivos
e não no passado absoluto dos mitos e lendas. (BAKHTIN, 2002b, p. 102)
O resgate das experiências cotidianas nos gêneros que integram o sério-cômico
é complementado pela elaboração baseada na experiência e na fantasia livre; fatores,
da segunda peculiaridade, que perfazem, segundo Bakhtin, uma reviravolta na história
da imagem literária - o abandono da representação apenas baseada em lendas e mitos.
Ainda, segundo o autor, na terceira peculiaridade, que evoca a pluralidade de estilos e
a variedade de vozes de todos os gêneros
Eles renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade
estilística) da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica.
Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do
vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros
intercalados: cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias
dos gêneros elevados, citações recriadas em paródias, etc. Em alguns deles
observa-se a fusão do discurso da prosa e do verso, inserem-se dialetos e
jargões vivos. (idem, p. 108)
41
Essas transposições é que atrelaram a literatura à cosmovisão do espírito
carnavalesco. O carnaval, como festa popular, não corresponde especificamente à
literatura. Sobre a festa, Bakhtin ressalta: "É uma forma sincrética de espetáculo de
caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta
diversas matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos
particulares" (idem, p.122). O que sempre se manteve em todas as épocas, porém, é
que, no carnaval, todas as diferenças sociais, todas as distinções hierárquicas, as
proibições são temporariamente suspensas, todos participam e divertem-se, sem
distinções.
Na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais, publicada em 1965, Bakhtin assinala a importância dos festejos
do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos, na vida do homem medieval:
Os homens na Idade Média participavam igualmente de duas vidas: a oficial
e a carnavalesca, e de dois aspectos do mundo: um piedoso é sério, outro,
cômico. Esses dois aspectos coexistiam na sua consciência, e isso se reflete
claramente nas páginas dos manuscritos dos séculos XIII e XIV, nas lendas
que narram a vida dos santos. Na mesma página encontram-se lado a lado
iluminuras piedosas e austeras, ilustrando o texto e toda uma série de
desenhos quiméricos de inspiração livre, isto é, sem relação com o texto,
diabetes cômicos, jograis executando acrobacias, figuras mascaradas, etc.
(BAKHTIN, 1999, p.83)
Nem mesmo as festas religiosas se realizavam sem a intervenção dos elementos
de uma organização cômica. Esses ritos cômicos apresentavam uma diferença notável,
uma diferença de princípio, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais
sérias da Igreja ou do Estado feudal. Eles ofereciam uma visão de mundo totalmente
diferente, exterior à Igreja e ao Estado.
42
A alegre verdade proferida sobre o mundo, e baseada sobre a confiança na matéria e
nas forças materiais e espirituais do homem que o Renascimento devia proclamar,
afirmava-se de maneira espontânea na Idade Média nas imagens materiais, corporais
e utópicas da cultura popular, embora a consciência dos indivíduos estivesse longe
de poder libertar-se da seriedade que engendrava medo e debilidade. A liberdade
oferecida pelo riso era apenas um luxo, permitido somente em período de festa
(BAKHTIN, 1999, p. 82)
Como se os rituais metaforizassem uma outra forma de vida, que os homens
podiam usufruir em situações determinadas, como uma dupla consciência da realidade,
numa liberdade utópica. O carnaval, paradoxalmente, não era uma forma artística de
espetáculo, "mas uma forma concreta (embora provisória) da própria vida, que não era
simplesmente representada no palco, antes, pelo contrário, vivida enquanto durava o
carnaval" (BAKHTIN, 1999, p. 6).
Essa outra forma de vida propiciava ao homem um contato com seu semelhante
caracterizado por um autêntico humanismo, livre das regras e das restrições
convencionais.
Contrastando com a excepcional hierarquização do regime feudal, com sua
extrema compartimentação em estados e corporações na vida diária, esse
contato livre e familiar era vivido intensamente e constituía uma parte
essencial da visão carnavalesca de mundo. O indivíduo parecia dotado de
uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas,
verdadeiramente humanas, com seus semelhantes. A alienação desaparecia
provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano
entre os seus semelhantes. (BAKHTIN, 1999, p. 9)
Na ação carnavalesca surge uma nova forma de relação entre os homens, tudo o
que é marginalizado e excluído torna-se central, numa explosão libertadora; forjam-se
novas posições sociais. Nesse sentido, como alerta Bakhtin: "o carnaval aproxima,
reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o
baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc." (2002b, p. 123).
43
Essa relação dicotômica do carnaval, que promove a transposição de papéis
sociais, estabelece o caráter de mudanças e transformações, de morte e de renovação,
que em todos os períodos de sua evolução passou a exercer uma forte influência na
literatura, que teve seus gêneros submetidos ao processo de carnavalização.
A literatura passa a usufruir de uma linguagem capaz de expressar as formas e
símbolos do carnaval. Segundo Bakhtin,
uma linguagem de grande riqueza, capaz de transmitir a percepção
carnavalesca de mundo, peculiar, porém complexa [...] impregnada do
lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade
das verdades e autoridades no poder. (1999, p. 10)
A transposição da carnavalização para o gênero da literatura assume
metaforicamente, com as dicotomias destacadas, com as diferentes linguagens que
sempre afloraram nos festejos, não só diferenças sociais e as inversões de papéis,
como também, as diferentes ideologias estabelecidas pelas relações de poder,
criticando, amplificando poeticamente e indicando caminhos para uma transformação
social possível, mesmo que, muitas vezes, de forma ironizada ou utilizando-se de
recursos implícitos pelas figuras de linguagem.
1.2 A literatura comparada como proposta de análise
A carnavalização, como se explicitou, já estava presente na literatura desde a
Antigüidade, estabelecendo com o campo do sério-cômico sensíveis mudanças no
44
gênero da literatura. Todas essas mudanças, como também os diálogos que se
mantiveram na evolução da literatura podem ser melhor observados se for estabelecida
uma comparação ampla com obras de literatura de diferentes contextos - de épocas e
espaços distintos.
Essa investigação, com o objetivo de comparar obras de literatura, pode ser
desenvolvida a partir dos postulados nos estudos da literatura comparada. Carvalhal,
ao discutir sobre os objetivos da literatura comparada, argumenta que:
a literatura comparada ambiciona um alcance maior, que é o de contribuir
para a elucidação de questões literárias que exijam perspectivas amplas.
Assim, a investigação de um mesmo problema em diferentes contextos
literários permite que se ampliem os horizontes do conhecimento estético ao
mesmo tempo que, pela análise contrastiva, favorece a visão crítica das
literaturas. ( 2003, p. 86)
Nesse caso, a análise e a interpretação na comparação entre os textos podem
evidenciar as relações que os textos possuem, verificando a presença do discurso do
outro, não para estabelecer uma concepção de influência ou uma relação de
dependência de um texto com seu antecessor, mas para estabelecer os possíveis
diálogos existentes entre as obras.
Carvalhal ainda estabelece que:
A compreensão do texto literário nessa perspectiva conduz à análise dos
procedimentos que caracterizam as relações entre eles. Essa é a atitude de
crítica textual que passa a ser incorporada pelo comparativista, fazendo com
que não estacione na simples identificação de relações mas que as analise em
profundidade, chegando às interpretações dos motivos que geraram essas
relações. [...] Vai ainda mais além, ao perguntar porque determinado texto,
ou vários são resgatados em dado momento por outra obra. Quais as razões
que levaram o autor do texto mais recente a reler textos anteriores? Se o
autor decidiu rescrevê-los, copiá-los, enfim, relançá-los no seu tempo, que
novo sentido lhes atribui com esse deslocamento? (idem , p. 52)
45
Assim, usufruindo de todas essas questões explicitadas até aqui, sobre a
evolução da linguagem, ideologia presente na formação dos enunciados, a
ambivalência das palavras, os diálogos estabelecidos entre os gêneros delimitados por
Bakhtin de primários e secundários, o processo de carnavalização da literatura, o
campo do sério-cômico, as relações interdiscusivas e intertextuais, realizar-se-á a
análise comparativa entre os dois textos já destacados, O Mercador de Veneza e o
Auto da Compadecida.
Para melhor evidenciar o diálogo e localizar as duas obras no tempo e no espaço
em que foram criadas, justificando a escolha dos textos e dos autores, realizar-se-á,
antes da análise, um breve resgate histórico da evolução do gênero dramático da
literatura e a inter-relação deste gênero com o contexto socio-histórico.
46
2 OS DIÁLOGOS ESTABELECIDOS NA LITERATURA DRAMÁTICA E
A EVOLUÇÃO DOS GÊNEROS
Assim como o mito e a ciência são modos de organização da existência
humana, o primeiro baseado na emoção e o segundo na razão, também a arte, pelo viés
da literatura dramática, usufruindo dos outros dois modos, vai aparecer no mundo
humano como forma arquetípica da expressão humana - o que Bakhtin chamaria de
diálogos ideológicos.
Com sua gênese atrelada aos rituais dos povos primitivos, o teatro irá se
configurar com uma linguagem própria, a da representação. Constituído na
contemporaneidade por elementos que Magaldi (2003) denominou de tríade essencial o ator, o texto e o público - não deixará, porém, em nenhum momento de sua evolução,
de propiciar, por todas as questões evidenciadas no capítulo anterior, diálogos entre os
gêneros que o configuraram - tragédia, comédia, tragicomédia, o auto, a farsa - e os
demais gêneros do discurso, na classificação estabelecida por Bakhtin - primários e
secundários.
Essas transposições dos gêneros do discurso - os diálogos entre as obras - que
também poderiam ser caracterizadas como as influências de um gênero no outro,
retomam tempo e espaços diferentes e podem ser constatados num breve resgate da
evolução histórica da arte dramatúrgica; como diferentes textos dialogam entre si e
com as questões históricas e sociais.
Nesse sentido, Goldmann (1990), ao produzir a obra A Sociologia do
Romance, discute a atividade intelectual e sustenta que, por meio do criador, os
47
verdadeiros sujeitos da criação são os grupos sociais. Essa questão sobre a autoria da
obra, ou do próprio discurso, também remonta à teoria de Bakhtin, explicitada no
capítulo anterior, sobre a atuação social na evolução semântica das palavras e na
formação do enunciado. Goldmann, frisa:
O caráter histórico-social de uma obra reside, sobretudo, no fato de que um
indivíduo jamais seria capaz de estabelecer por si mesmo uma estrutura
mental coerente, correspondendo ao que se denomina uma visão de mundo.
Semelhante estrutura só poderia ser elaborada por um grupo, podendo o
indivíduo, o autor, imprimir-lhe apenas um grau de coerência muito elevado
e transpô-la para o plano da criação imaginária, do pensamento conceptual.
(1990, p.19)
Dessa forma, a estrutura elaborada no grupo social é resgatada pelo
indivíduo/autor, mesmo de maneira inconsciente, para a criação da obra; a elaboração
do discurso secundário se dá pela simulação do discurso primário. O autor escolhe
determinados discursos e, a partir dessa escolha, configura a sua autoria.
Pelas contribuições de Lesky, que destaca as vicissitudes do desejo de
conhecimento de uma criação artística e os entrelaçamentos da arte com a realidade,
pode-se compreender como um autor realiza a escolha dos discursos; as obras que
estabelecerão o elo discursivo com a sua obra, pela intertextualidade, e os discursos pelo processo de resgate do discurso de outrem.
Como fenômeno único, irreiterável, (a criação) coloca-se diante de nós e
exige, se é que se deve converter em verdadeira possessão, que mergulhemos
em sua essência, que compreendamos as forças que nela encontraram sua
configuração e as leis pela qual foi regida [...] do mesmo modo, porém, que a
obra viva está em parte condicionada pelas potências da história, assim é
também uma parte dos processos históricos e com isso engrena sua posição
individual no curso das séries de evolução histórica. (LESKY, 1990, p. 4748)
48
Essa tendência de análise, evidenciada por Lesky, estabelece, então, que não é
possível conhecer a essência da criação artística sem uma compreensão da sua
evolução histórica e do contexto da sua criação. Isso pode ser mais especificamente
verificado com a literatura dramática. A origem e a evolução do teatro sempre
estiveram estreitamente ligadas com a evolução do homem em sociedade. Assim, para
se estudar a literatura dramática, é relevante que se compreenda como se deu a sua
evolução e de que forma ocorreu a transposição da realidade para a ficção, ou mesmo
da ficção para a ficção.
2.1 Um breve histórico da literatura dramática: a gênese e alguns pontos de sua
evolução
A origem do teatro pode ser remontada com a origem das sociedades primitivas.
Segundo Berthold (2003) são três as principais fontes de pesquisa do teatro primitivo:
as tribos aborígines, cujo estilo de vida e pantomimas mágicas devem ser próximos
daquilo que se presume ser o estágio primordial da humanidade; as pinturas das
cavernas pré-históricas e entalhes em rochas e ossos; e as danças mímicas e costumes
populares (desta última, são mais evidentes os vestígios que perduraram até a
contemporaneidade - as danças ao redor de um mastro nas festas juninas, os rituais de
iniciação à vida adulta que ainda ocorrem em muitas sociedades).
Por muito tempo, essa arte esteve relacionada às festas religiosas. Na Grécia
Antiga, no entanto, como salientam Costa & Remédios, "a questão do religioso e do
49
mítico está implicitamente relacionada à história sócio-político-econômica [...], é da
religião que vai surgir a mitologia a que os literatos e dramaturgos gregos recorrem"
(1988, p. 8).
Segundo as autoras, a religião oficial da Grécia era a politeísta - religião
olímpica constituída por deuses, semideuses e heróis. Seus deuses, porém, não tinham
poder para alterar o andamento do mundo. De feitio aristocrata, essa religião, no
entanto não impedia a existência de outros cultos mais populares, que já lhe eram
anteriores, vinculados à natureza humana (1988).
Dentre esses cultos populares que coexistiam com a religião oficial, o teatro
teve sua culminação com as homenagens prestadas a Dioniso4. De caráter popular,
grandes festas coletivas eram organizadas para cultuá-lo pela fartura do vinho, e de
alimentos, como o mel e o leite.
Segundo Berthold, no século VI a.C., em Atenas, eram organizados as grandes
Dionisíacas - que duravam vários dias e tinham a participação maciça da população,
que cantava e dançava. Essas festas evoluíram e foram assumindo um novo caráter,
que configuraria uma das primeiras grandes criações artísticas, a tragédia; o gênero
viria a ser a origem européia do teatro.
A história registra as primeiras alterações dos cultos dionisíacos:
Psístrato, o sagaz tirano de Atenas que promoveu o comércio e as artes e foi
o fundador [...] das grandes Dionisíacas. Em março do ano de 534 a.C.,
trouxe de Icária para Atenas Téspis, e ordenou que ele participasse da grande
Dionisíaca. Téspis teve uma criativa idéia que faria história. Ele se colocou à
parte do coro como solista, e assim criou o papel de hypokrites (respondedor,
mais tarde, ator). Essa inovação, primeiramente não mais que um embrião
4
Segundo a mitologia, Dioniso, filho de Zeus com a mortal Sêmele, foi criado pelas Ninfas e Sátiros no Monte
Nisa. Certa vez, colheu alguns cachos de uvas, espremeu-os em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de
sua corte - o vinho, assim, acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, embriagaram-se do delírio báquico.
Nesse estado acreditavam sair de si, numa superação da condição humana, ultrapassando o métrón, tornando-se
hypocrites, isto é o ator, um outro. (BRANDÂO, 2001)
50
dentro do rito do sacrifício, se desenvolveria mais tarde na tragédia,
etimologicamente, tragos ("bode") e ode ("canto"). (BERTHOLD, 2003, p.
104 e 105)
Na festa, a função do hypocrites foi ampliada por Frínico de Atenas, que
incorporou como respondedor um duplo papel - masculino e feminino - o fazendo com
a alternância do uso de máscaras, o que já sublimava a troca de figurinos e uma certa
organização cênica.
Esse adereço, instituído às Grandes Dionisíacas por Frínico, também pode ser
remontado com significação própria desde a cultura dos tempos primitivos.
Seu emprego nas culturas primitivas é múltiplo; a mais freqüente é a
mascara protetora, que deve subtrair o homem aos poderes hostis, e a
máscara mágica, que transfere ao portador a força e as propriedades dos
demônios por ela representados [...] nela se encontra o elemento da
transformação em que se baseia a essência da representação dramática.
(LESKI, 1990, p. 49)
Foi no sentido de transformação que Frínico, com o uso da máscara, inaugurou
a ação nas Dionisíacas - o ator necessitava fazer várias entradas e saídas para a troca
de figurino. Logo, a máscara passou a ser usada, não só pelos seguidores da
Dionisíaca, como também, pendurada num mastro, como objeto do culto, para
representar o próprio deus Dioniso.
A máscara passa a ser a essência da representação dramática, propiciadora da
metamorfose. Lesky evidencia que "as máscaras da tragédia, assim como as da
comédia, têm suas raízes totalmente implantadas neste domínio cultual". (idem, p. 49)
Na evolução, as Grandes Dionisíacas passaram a ser festivais, com uma nova
estrutura - a da representação, se desenvolveram e resultaram na tragédia, com
51
Ésquilo, Sófocles e Eurípides; depois, na comédia, com Aristófanes, seu principal
representante. Dioniso, então, passou a ser considerado o deus do teatro.
Os quatro grandes poetas gregos foram, a partir de suas obras, historiadores em
arte, por já retratarem questões de sua época, se não explicitamente fatos históricos,
retratavam fatos sociais - a cultura de seu povo - os mitos e as crenças. Suas
contribuições culminaram não só no drama europeu, como em todo o drama ocidental.
Os dois gêneros gregos estabelecidos - a tragédia e a comédia - deram origem aos
gêneros da dramaturgia contemporânea.
A tragédia, como gênero literário, surge num universo ambíguo; o povo grego
já não concebia mais o mundo apenas pela visão mítica, e a racionalidade já começava
a trazer algumas respostas. Essa dualidade de forças - míticas e racionais - que passou
a reger o povo grego na Antigüidade configura o surgimento do gênero trágico.
Segundo Lesky o conflito da tragédia se localiza na articulação dos atos humanos com
os deuses. (1990)
Além do conflito entre o humano e o divino e o uso da máscara como a essência
da metamorfose, Lesky também descreve o herói trágico, com características que
resgatam e questionam os valores religiosos, políticos e aristocráticos da época. Costa
& Remédios sobre o herói, acrescentam: "O herói trágico quer guiar-se por seu próprio
caráter (ethos), mas está subordinado à força, ao gênio mau (dáimon)" (1988, p. 9). As
autoras também caracterizam a tragédia grega como um acontecimento aterrorizante,
representado pelas interdições do mundo cultural grego: o parricídio, o incesto, o
regicídio.
52
Há quase quatro séculos antes de Cristo, Aristóteles em sua obra Poética
distingue a arte dramática das demais. Para o discípulo de Platão a arte dramática,
assim como a poesia, é a imitação da vida - mímese; uma imitação, no entanto, de
caráter elevado, realizada por atores, que suscitam o terror e a piedade, para alcançar a
purificação (ARISTÓTELES, 1966).
Brandão, na obra Teatro Grego: tragédia e comédia (1984) comenta a
formação do gênero: "a tragédia só se realiza quando a métron é ultrapassada" (2001,
p. 12). E, metodologicamente, sobre o enquadramento trágico, esclarece:
Os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa (explicação - embriagados
pelo vinho) caíam desfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si pelo
processo de "ekstasis", êxtase. Esse sair de si, numa superação da condição
humana, implicava num mergulho em Dioniso e este no seu adorador pelo
processo do "enthusiasmós", entusiasmo. O homem, simples mortal, com
êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se anér , isto
é, um herói , um varão que ultrapassou o métron, a medida de cada um.
Tendo ultrapassado o métron, o anér é, ipso facto, um "hypocrités", quer
dizer aquele que responde em êxtase e entusiasmo, isto é o ATOR, um outro.
(BRANDÃO, 2001, p. 11)
A ultrapassagem da métron, provoca a ira dos deuses e a punição contra o herói
é imediata - a cegueira da razão. "Tudo o que o hypocrités fizer, realiza-lo-á contra si
mesmo. Mais um passo e fechar-se-ão sobre ele as garras da 'Moira', o destino cego"
(idem , p. 11). O trágico, portanto está no rompimento da medida, na desmedida. O
herói comete um erro, hamartía e, por causa desta falta, seu destino sofre uma
reviravolta; passa da felicidade à infelicidade; aquele que ultrapassa a medida recebe o
castigo dos deuses.
Ésquilo, primeiro grande poeta grego, em suas tragédias, evidenciava os abalos
que o destino, enviado pelos deuses, produzia na vida dos homens.
53
Suas obras apresentam intrigas simples e menos elaboradas do que as de
Sófocles e Eurípides [...] Premiado inúmeras vezes, lutou na Grécia nas
batalhas de Maratona e Salamina e criou uma nova estrutura poética no
mundo helênico, ao sintetizar a ação heróica (mito das epopéias e batalhas
heróicas) com os espetáculos corais das tradições, nas festividades religiosas.
N' Os persas, Ésquilo compõe uma tragédia a partir de um acontecimento do
qual participou pessoalmente. Situa-se frente à história como se estivesse
frente ao mito. O assunto desenvolvido é a derrota dos persas pelos gregos,
na batalha de Salamina, em 480 a.C.. (COSTA & REMÉDIOS, 1988, P.11)
Segundo Brandão, o teatro de Ésquilo, por evidenciar a fábula, possui um
desfecho aberto: "é um drama sem esperança e sem promessas [...] o sofrimento é uma
página de sabedoria. 'Sofrer para compreender': a dor redime e concilia" (2001, p. 20).
O que não caracteriza, necessariamente, todas as tragédias. Para Brandão, "o trágico
pode não estar no fecho, mas no corpo da tragédia. [...] o conteúdo é trágico e não
necessariamente o fecho" (idem, p. 15).
Em Sófocles, sucessor histórico de Ésquilo, entretanto, encontra-se uma das
mais conhecidas tragédias gregas: Édipo Rei, na qual a hamartía é cometida contra
laços consangüíneos - parricídio e, como elemento secundário, o incesto. Édipo, mata
seu pai e casa-se com sua mãe. Sófocles dá aos deuses a vitória - Édipo ao descobrir
sua falta, cega a si mesmo. E o desfecho que é trágico.
Sófocles estabeleceu um diálogo na tragédia; sua obra resgatou a estrutura e o
enquadramento trágico com a tragédia de Ésquilo. A diferença entre os dois, segundo
evidencia Brandão, é que o primeiro concebeu seu teatro como a representação
religiosa de um evento lendário e, o segundo, fez de sua tragédia o desenvolvimento
normal de uma vontade numa situação determinada:
Em Sófocles, ao revés (de Ésquilo) o teatro é essencialmente antropocêntrico
e teosférico, quer dizer, o herói é dotado de uma vontade livre para agir,
pouco importa quais sejam as conseqüências, e os deuses agem, mas sua
atuação é a distância, por meios de adivinhos e de oráculos. Tirésias e o
54
Oráculo de Delfos têm sempre um encontro marcado com os heróis de
Sófocles. (BRANDÃO, 2001, P. 42)
Brandão também evidencia que Sófocles, em Édipo Rei, propõe a partir do mito
da esfinge, numa linguagem metafórica, que é o próprio homem, e não um deus, quem
sabe a resposta mais importante para a pergunta mais difícil com a qual o homem
poderia se defrontar (2001). O enigma da esfinge serviria então apenas como metáfora
para o sentido latente que Sófocles queria destacar; a importância do homem, que por
si só, por suas escolhas, poderia salvar a humanidade.
Com Eurípides, depois de Ésquilo e de Sófocles, o terceiro dos grandes poetas
trágicos, acentua-se o diálogo entre a realidade e a ficção, ou, como estabelecido por
Bakhtin, entre o discurso primário e o secundário. Segundo Brandão,
Eurípides, pensador, observador atento de todos os movimentos e idéias de
seu tempo, dotado de alta sensibilidade, não podia e não pode ficar
indiferente a coisa alguma de seu século e de seu meio. Bebeu em todas as
fontes e não podendo chegar a uma conclusão, tornou-se o poeta da busca.
(2001, P. 58)
Berthold relembra o conceito de Sófocles sobre Eurípedes: "Eu represento os
homens como devem ser, Eurípedes os representa como o são" (2001, P. 110). Hauser
questiona a autoria deste conceito. Para o autor essa visão sobre Eurípides teria sido
observada por Aristóteles em sua Poética. A partir da comparação das peças de
Eurípides, com as dos outros dois poetas, segundo Brandão (2001), pode-se
estabelecer a evolução inicial do gênero trágico:
Se em Ésquilo o teatro é a teomorfização e suas personagens são mais
gigantes que os seres humanos, uma vez que sua tragédia é um confronto
entre o Hades e o Olimpo; se já em Sófocles, com seu antropocentrismo, se
observa um certo distanciamento, com os deuses agindo pela voz dos
Oráculos e dos Adivinhos e a Moira como causa segunda, em Eurípides o
55
rompimento foi total. Nota-se em suas peças uma consciente dessacralização
do mito com uma conseqüente proletarização da tragédia. (BRANDÃO,
2001, P. 57)
Em Eurípides destaca-se a ambigüidade entre o mundo dos deuses e o mundo
dos homens que, de fato, produziu a evolução da tragédia ao teatro moderno. Segundo
Berthold, Eurípedes, em suas setenta e oito tragédias - destas restaram dezessete concede às suas personagens o direito, que é humano, de hesitar, de duvidar. E, a
tragédia se desenvolve não mais nas trevas ou no Olimpo, mas nas ruas de Atenas.
Hauser, em História social da arte e da literatura (1995), propõe que o
gênero da tragédia é a criação artística mais característica da democracia ateniense.
Para o autor, no gênero, os conflitos internos da estrutura social de Atenas eram
expostos claramente, o que configurava uma dicotomia. "Os aspectos externos de sua
apresentação às massas eram democráticos, mas o conteúdo, as sagas heróicas com sua
perspectiva trágico-heróica da vida, era aristocrático" (2000, P. 84). O autor ainda
afirma que na crítica de Aristófanes, Eurípides, com o novo enfoque dado em suas
tragédias sobre a condição social do homem em Atenas, corroeu "os antigos ideais
éticos da aristocracia e, ao mesmo tempo, os velhos cânones5 'idealistas' da arte"
(idem, p. 84).
Com Aristófanes evidencia-se o outro gênero grego, a comédia. Os críticos
afirmam que é pelo gênero da comédia, muito mais do que pela tragédia, que as
questões de cunho político e social são escancaradas para o público.
5
Segundo Hauser, "a concepção do estilo clássico como idealista e da arte clássica como representativa de um
mundo melhor, normativo, de seres eticamente superiores é uma expressão característica da disposição de
espírito aristocrática que prevaleceu na época". (2000, p. 84)
56
Assim como a tragédia, a comédia Antiga tem sua gênese atrelada aos rituais
dionisíacos. Aristóteles define a origem do gênero com as cerimônias fálicas. "A
palavra 'comédia' é derivada do Komos, orgias noturnas nas quais os cavalheiros da
sociedade ática se despojavam de toda a sua dignidade por alguns dias, em nome de
Dioniso" (BERTHOLD, 2003, P. 120)
No entanto, a comédia só irá aparecer, oficialmente, segundo Brandão, em 486
a.C., configurada pela fusão do ritual com o popular, estabelecida como uma sátira
exagerada na qual a política teve lugar de destaque, necessitava de grande liberdade
para compor sua principal característica - a crítica irônica e sagaz.
Percebe-se o surgimento da comédia atrelado à consolidação da democracia em
Atenas. Historicamente, Brandão sentencia que, em 510 a.C., Clístenes expulsou o
último dos tiranos de Atenas, Hípias, e a democracia foi consolidada por Efialtes e
Péricles, quando então a Comédia Antiga chegou a seu apogeu. (2001)
Paradoxalmente, um dos pontos culminantes ligados à origem da comédia,
gênero considerado o avesso da tragédia, segundo Bertold, deve-se a Aristófanes, que
acompanhou o desenvolvimento dos grandes trágicos Sófocles e Eurípedes. As
comédias de Aristófanes estabeleciam um diálogo com os textos trágicos, com o mito
e, ainda, com o contexto histórico e social da época.
N' As rãs, comédia escrita num breve intervalo que mediou entre a morte de
Sófocles e Eurípides e a queda de Atenas, Aristófanes contrapõe o autor d'
As bacantes a Ésquilo, tomando a este como o mais alto representante da
dignidade moral e religiosa da tragédia. Sendo uma espécie de poética de
Aristófanes, As rãs consiste numa forma de disputa entre a arte poética
antiga e a moderna. É uma espécie de peça-testemunho do século V sobre a
posição da poesia trágica na vida da comunidade política. (COSTA &
REMÉDIOS, 1988, p. 26)
57
Segundo Brandão, Aristófanes foi um intérprete de sua época – dizia em seus
textos, com audácia, aquilo que ninguém tinha coragem de dizer. Acusava de
charlatões vulgares e demagogos os políticos de Atenas (2001).
Sobre a estrutura das peças de Aristófanes, Brandão estabelece, a partir das
análises feitas, que a Comédia Antiga se divide em duas partes bem distintas:
a primeira é um 'agón', uma luta, um debate; a segunda é uma revista. A
primeira comporta uma ação, com o prólogo, o párodo, o 'agón'
propriamente dito, a parábase6 e o êxodo, que foi deslocado para o fim da
comédia; a Segunda parte é uma espécie de 'sketches' que esclarecem o
sucesso da ação desenvolvida na primeira. Nesta o coro desempenha o papel
de um verdadeiro ator; na segunda, ele é tão-somente porta-voz do poeta,
que caustica seus contemporâneos com as chicotadas de sua crítica mordaz e
ferina. (2001, p. 72)
Essa estrutura será utilizada, com algumas alterações advindas da evolução do
gênero, por Shakespeare, no teatro Elizabetano e, também, Suassuna, na
contemporaneidade.
Já na Idade Média, segundo Magaldi, o teatro estabeleceu uma comunicação de
religiosidade com o público semelhante às festas de cultos a Dioniso. Com a
cristianização da Europa Ocidental, no entanto, as encenações passaram a celebravar
as duas principais festas cristãs: a Páscoa e o Natal.
Os espectadores dos dramas litúrgicos ou dos milagres acompanhavam a
representação como um ato de fé. A adesão, de natureza religiosa, estava
assegurada. [...] A cerimônia religiosa era o terreno próprio do teatro
medieval. Em 1496, em Seurre, foram proibidos trabalho e abertura do
comércio nos três dias reservados a uma montagem. (MAGALDI, 2003,
p.74)
6
Segundo Brandão, a parábase, em termos de teatro, significa uma suspensão da ação é como se fosse uma
chamada dos espectadores à realidade, "isto é uma sátira que o poeta-cidadão faz contra os cidadãos
responsáveis pela política, social e religiosamente pela polis" ( 2001, p. 73)
58
A grande diferença do teatro Primitivo para o Medieval é que a representação
deixou de ser um atributo relegado a um ser com condições superiores (capaz de
estabelecer um diálogo com os deuses) e passou a ser uma forma de manifestação
terrena. O próprio Cristo, que até então aparecia apenas como símbolo, a partir do
século XIII, passou a ser representado por um ator. Cenas que demonstravam o
inferno, no qual eram esperados os pecadores, foram, gradativamente, modificando a
representação da Paixão.
Nos ciclos da Paixão dos séculos XV e XVI [...] o inferno assumiu um papel
mais importante e provocativo. [...] O poder do inferno que aguardava
imperadores e reis, da mesma forma que sacerdotes indignos, prostitutas,
assassinos, e alcoviteiras, era assim reconhecido. Uma vez que o auto do
Juízo Final se desvinculava do cenário da igreja, foi necessário somente um
passo a mais para chegar às sátiras seculares das corporações e para as
representações profanas da Dança da Morte. (BERTHOLD, 2003, p. 198)
O teatro da Idade Média assume características mais naturais, com um estilo
mais realista de representação; com o uso de diferentes línguas vernáculas e diferentes
figurinos e acessórios cênicos. Berthold registra que "na cena do Noli me tangere,
Cristo é um jardineiro com um grande chapéu e uma pá [...] O monólogo de Maria
Madalena cobre o tempo que o intérprete do Cristo necessita para trocar de roupa"
(idem, p. 199).
Mas, não só dos autos sagrados se configurou o teatro na Idade Média. Nessa
época, ressalta o historiador, junto aos atores considerados "nobres", coexistiam
também palhaços, bufões, comediantes, saltimbancos, dançarinos e tocadores de cítara.
"A julgar pela biografia do erudito arcebispo Bruno de Colônia, a herança teatral da
Antigüidade estava tão em evidência nesse tempo quanto a comédia atelana. As farsas,
59
os autos, os mimos, ele nos conta, com os quais os outros se torciam de rir"
(BERTHOLD, 2003, p.245)
Num estreito vínculo com os costumes populares, se evidenciam os autos
carnavalescos, nos quais os atores cantavam temas específicos da época com destacada
comicidade. Violavam os tabus da época; falavam sobre cavaleiros, judeus e cléricos,
imperadores, camponeses e damas da nobreza. Para esses autos, não havia preparativos
cênicos especiais. Segundo Berthold, "um tablado de madeira sobre tonéis, uma parede
como fundo e uma porta para as entradas dos atores [...] eram simples acessórios"
(2003, p. 250).
A esses autos carnavalescos, que se baseiam experiência e na fantasia livre, já
se reportou Bakhtin; seriam o cerne da reviravolta da história da imagem literária - o
abandono da representação apenas baseada em lendas, a pluralidade de estilos; a união
da tragédia e da comédia - o tragicômico ou o que Bakhtin denominou de sériocômico.
A relação dicotômica na inversão dos papéis sociais discutida por Bakhtin na
teoria da carnavalização tem seu cerne nesses autos, historicisada por Berthold:
As velhas se convertem em jovens donzelas na roda dos bufões; juízes de
paz matreiros tiram vantagens de seus demandantes, principalmente se forem
mulheres; um pai de três filhos promete sua herança ao filho que demonstra
ser o mais rematado caluniador e vadio; camponeses lascivos têm de
suportar punições cuja obscenidade faria enrubecer um soldado. (2003, p.
252)
A transposição da carnavalização para o gênero da literatura, proposto
metaforicamente por Bakhtin, resgata esse primeiro caráter de representação que
possuía o carnaval na Idade Média; com as dicotomias destacadas, com as diferentes
60
linguagens que afloraram nos festejos, não só diferenças sociais e as inversões de
papéis, como também, as diferentes ideologias estabelecidas pelas relações de poder,
que os autos criticavam e amplificavam.
A carnavalização na literatura externaliza, num diálogo poético, forças
antagônicas: o alto e o baixo, o nascimento e a morte, a alimentação e o excremento, o
riso e as lágrimas. Nesse sentido não é mais cômico que trágico; mas sim, os dois, ao
mesmo tempo, o gênero também estabelecido por Bakhtin, sério-cômico ou como
estabelecem os manuais de literatura contemporânea, o tragicômico.
A tradição carnavalesca popular se manifestou na literatura da Idade Média,
permanecendo, até os nossos dias, como salienta Kristeva, "a fonte viva que reanima o
pensamento literário, orientando-o para novas perspectivas" (1974, p. 79).
Esse processo de carnavalização na literatura será destacado pelos dois autores
escolhidos para este estudo; Shakespeare, em O mercador de Veneza e, depois,
Suassuna, no Auto da Compadecida.
2.1.1 A Renascença e o teatro de Shakespeare
O renascer do homem já era almejado desde o espírito da Antigüidade, mas,
apenas no final do século XV, com as grandes alterações ocorridas no período principalmente no campo do intelecto e da geografia - que, segundo Berthold, irão
fortalecer as duas molas propulsoras da Renascença: a liberação do individualismo e o
despertar da personalidade (HAUSER, 2003).
61
Nessa época, ocorreram grandes descobertas que modificaram a vida do
homem, resultando em muitos questionamentos - é a época da desintegração das
certezas, ou o que Hauser irá definir como uma deliberação consciente e uma maior
consistência nos critérios de observação e análise da realidade (2000).
Na Europa, essa consistência de análise estendeu-se para todos os campos da
organização humana: religioso, político, econômico e cultural, promovendo o
aparecimento de um movimento cultural denominado Renascimento. Segundo César,
"Este movimento representava, em geral, os valores da burguesia, classe social em
ascensão, que necessitava de uma nova moral cultural teve seu ápice na Península
Itálica, no século XVI" (CESAR, 2001, p. 70).
O espírito crítico do homem no Renascimento contribuiu para o crescimento da
pesquisa em várias áreas. A própria posição da Terra no universo, que até então se
acreditava ser central, passa a ser questionada pelas idéias de Copérnico, que propõe o
heliocentrismo; teoria comprovada por Galileu Galilei a partir dos estudos da lei da
gravidade.
A igreja contesta tentando manter suas verdades dogmáticas, no entanto,
destacam-se como principais características desse movimento, o racionalismo (em
oposição à fé), o antropocentrismo (em oposição ao teocentrismo da Idade Média), e o
individualismo (em oposição ao coletivismo cristão), além disso, a cultura
renascentista foi marcadamente humanista, por valorizar a vida terrena e a natureza e
difundir a necessidade da pesquisa, contrariando o princípio de autoridade (pregado
pela igreja).
62
Tanto o Renascimento quanto o Humanismo são movimentos de origem
italiana. "Foi da Itália que o mundo recebeu as diretrizes no domínio das ciências e
artes, da literatura e diplomacia, da cultura e da educação" (BERTHOLD, 2003, P.
270). Destacam-se como renascentistas italianos, Dante Alighieri, com a obra Divina
Comédia; Francesco Petrarca, considerado o pai da literatura renascentista italiana;
Boccaccio, com Decameron; Maquiavel, com o Princípe, foi considerado o pai do
pensamento político moderno; Leonardo da Vinci, atuou em áreas como a pintura Monalisa e a Santa Ceia- escultura, engenharia, música, filosofia, entre outras;
Michelangelo Buonarroti, conhecido como poeta do corpo - pintou um conjunto de
afrescos na Capela Sistina sobre as passagens da Bíblia (CÉSAR, 2001).
No, entanto, é na Inglaterra, sob o reinado de Elisabeth, animado pelo
sentimento de autovalor do nascente poderio mundial inglês, advindo da empatia do
povo com sua rainha, com o ressurgimento das artes, que o teatro irá florescer.
Na era elisabetana perde-se, por vez, a dependência religiosa, e o teatro, em
ascensão, assumiu uma nova condição na arte; delimitou novos pressupostos, com
diferentes temas e estilos e, a partir dessa nova forma, instituiu-se com um novo papel
na vida em sociedade; deixou de ser amador, itinerante para se profissionalizar. O
tema principal da Renascença, o indivíduo consciente de si mesmo "alcançou seu
zênite de perfeição artística no teatro elisabetano" (BERTHOLD, 2003, p. 312).
Dramas históricos são elaborados por William Shakespeare e seus colegas
dramaturgos. Segundo Berthold,
Shakespeare mergulhou na história da própria Inglaterra e posicionou-se
apaixonadamente em relação aos problemas do poder e do destino. Ascenção
repentina e queda brupta, a embriaguez do poder, vingança e assassinato dão
63
vazão as imagens plenas de linguagem e culminam numa brilhante síntese
(2003, p. 312).
No entanto, as peças de Shakespeare trazem não só a crônica de seu contexto
histórico como também descrevem a condição humana, as relações entre os indivíduos
e destes com a sociedade. Isso, provavelmente, se deve ao fato de que Shakespeare
experimentou o convívio com diversas classes sociais; foi abastado e pobre entre a
infância e a adolescência, circulava com desenvoltura entre a nobreza e, pelo mundo
da boêmia, tinha contato com figuras excêntricas.
Questões religiosas, problemas de governos, personagens históricos, filosofia
humanista são conteúdos que fazem parte de sua obra. Hauser o intitulou como "'portavoz' de sua época, por proclamar o que era por toda a parte evidente" (2000, p.414).
Esses aspectos da humanidade capturados por Shakespeare em sua obra são
projetados, no entanto, para um plano mais elevado. Nesse sentido, Shakespeare soube
usufruir muito bem da diferença entre registrar de fato a realidade e a liberdade no
registro da ficção conferida pelas contribuições da teoria de Bakhtin.
Segundo Berthold, "ele saltou por cima das regras clássicas pela força de seu
gênio poético. Trouxe à vida períodos e lugares, ternura e rudeza na 'arena' do teatro"
(2003, p. 313).
Shakespeare, confirmando as previsões de Sócrates, de que um mesmo homem
poderia ser capaz de escrever tragédia e comédia, perpassou todos os gêneros da arte
dramática. E, de acordo com a cronologia de Bloom, escreveu peças históricas, como
Henrique VI (1589-90), Ricardo III (1592-93), O Rei João (1594); comédias,
Sonho de uma noite de verão (1595-96), Muito barulho para nada (1598-99), O
mercador de Veneza (1596-97) - que também pode ser enquadrada no gênero
64
tragicômico; e, as tragédias, Romeu e Julieta (1595), Hamlet (1600), Otelo (1604),
Rei Lear (1605), Macbeth (1606), entre outras (2001a).
Suas peças atendiam ao gosto do público e às inclinações do contexto. Segundo
Burgess, Shakespeare mostrava-se muito consciente em relação à platéia elizabetana
"uma mistura de aristocratas, letrados, almofadinhas, gatunos marinheiros e soldados
de licença, estudantes e aprendizes" (BURGESS, 2002, p. 92). Ainda segundo
Burgess,
Essa platéia tinha de receber o que queria e, sendo uma mistura, queria
coisas variadas - ação e sangue para os iletrados, belas frases e engenho para
os almofadinhas, humor sutil para os refinados, palhaçada escandalosa para
os não-refinados, assuntos amorosos para as damas canção e dança para
todos. Shakespeare dá todas essas coisas. Nenhum outro dramaturgo jamais
consegui dar tanto. (idem, p.92)
Segundo Harold Bloom, crítico literário norte-americano que há duas décadas
se dedica quase que integralmente aos estudos sobre a obra completa do dramaturgo,
há duas maneiras contraditórias de explicar a grandeza de Shakespeare:
No entendimento dos que pensam ser a literatura basicamente linguagem, a
primazia de Shakespeare é um fenômeno cultural, produzido a partir de
crises sociopolíticas. Nessa ótica, Shakespeare não escreveu suas próprias
obras: estas foram escritas pela energia social, política e econômica da
época. [...] A outra maneira parte da noção de que Shakespeare é
universalmente considerado o autor que melhor representou o universo
concreto, em todos os tempos. [...] revisitamos Shakespeare porque dele
precisamos; ninguém nos apresenta tanto do mundo pela maioria de nós
considerado relevante. (BLOOM, 2001a, p. 42)
Entretanto, poder-se-ia dizer que as duas formas não são excludentes, pelo
contrário, são complementares; o dramaturgo apresenta as questões relevantes do
mundo concreto, de acordo com sua visão de mundo, que fora formada por ele estar
inserido no contexto histórico e social de uma época. Nesse sentido, é o próprio Bloom
65
quem, numa outra passagem, salienta (idem, p. 242): "Jamais deveremos supor que
Shakespeare fosse alheio ao mundo que o cercava; sua curiosidade era insaciável, sua
ânsia de informações, sem limites". Pelo processo de diálogos entre os discursos,
Shakespeare podia não só refratar o mundo concreto que lhe cercava, como também
outros textos de literatura.
Na era elisabetana já se evidenciava o que Kristeva propôs como
intertextualidade. Segundo Burgess, a colaboração entre os autores dramáticos era
comum, "Shakespeare provavelmente trabalhou com Beaumont e Fletcher, assim
como com outros escritores notáveis" (2002, p. 92). Além disso, segundo o autor,
Shakespeare
[...] ocasionalmente pegava uma peça que já existia (tal como Hamlet,
escrito por Kid) e a reelaborava, sempre melhorando-a . [...] de fato, ele
normalmente preferia tomar emprestado a trama de alguém ou extrair uma
narrativa de um livro de história ou de um panfleto popular - seu interesse se
concentrava mais em contar a história do que a própria história. (BURGESS,
2002 p. 92).
Burges, no entanto, reconhece a autoria de Shakespeare nas peças mais
conhecidas e evidenciadas de sua história cronológica como dramaturgo. Na verdade,
essa constatação de Burgess não diminui em nada a grandiosidade de Shakespeare,
apenas destaca que as contribuições de Bakhtin sobre o processo dialógico, mesmo
entre enunciados do gênero secundário, podem também ser destacados no universo
shakespeariano.
Além disso, Bloom destaca que:
A peculiar magnificência de Shakespeare está em seu poder de representação
do caráter e personalidade humanos e suas mutabilidades. [...] Shakespeare
abre de tal modo suas personagens a múltiplas perspectivas que elas se
tornam instrumentos analíticos para nos julgar. Se somos moralistas, Falstaff
nos ofende; se rançosos, Rosalinda nos denuncia; se dogmáticos, Hamlet no
66
escapa para sempre. E se somos explicadores, os grandes vilões de
Shakespeare nos farão desesperar. (2001b, p. 67 e p. 69).
Bloom também retoma um pequeno trecho do prefácio de Samuel Johnson ao
Shakespeare de 1975, que expõe o dialogismo da obra do autor: "Shakespeare é acima
de todos os escritores, pelo menos acima de todos os escritores modernos, o poeta da
natureza, o poeta que estende aos seus leitores um espelho fiel dos costumes e da
vida". (idem, p. 68)
Essa sua misteriosa capacidade de construir o discurso fictício, ou secundário,
como chamou Bakhtin, com vozes aparentemente reais e consistentes promove a
invasão do mais abundante senso de realidade na literatura. Paradoxalmente, como
salienta Berthold, o tratamento dispensado por Shakespeare sobre a linguagem em suas
obras, explora tão bem a realidade que induz o público à construção mental, mesmo a
partir de metáforas, dos componentes inexistentes na encenação.
O hálito ardente dos acontecimentos, que a tragédie classique francesa
aprisionou nos grandes monólogos do drama com unidade de lugar,
explodiu com Shakespeare, em diálogos curtos e poderosamente delineados.
Cada ocorrência é transposta para ação. [...] "Imaginai que no cinturão destas
muralhas / Estejam encerradas duas poderosas monarquias [...]. Porque é
vossa imaginação que deve hoje vestir os reis, transporta-los de um lugar
para o outro, transpor os tempos / colocando a realização de acumular numa
hora de ampulheta os acontecimentos de muitos anos". (BERTHOLD, 2003,
p. 313)
Não só a linguagem, mas a estrutura é resultado de condições extremamente
diversas. Shakespeare foi um homem de sua época, porém o tratamento dado a sua
obra o libertou do tempo e do espaço que o criaram e o tornou universal, tanto que
suas peças, cada vez que lidas ou encenadas, mesmo na contemporaneidade são
compreendidas e assimiladas por novos interlocutores. A grandeza de sua obra, então,
67
reside no fato de que diferentes platéias, como era um de seus objetivos, podem
analisar e compreender sua obra com diferentes olhares. É nesse sentido, com um novo
olhar que se pretende perceber quais os diálogos que podem ser estabelecidos entre
Shakespeare e um autor contemporâneo, como Suassuna.
2.1.2 O teatro no Brasil: a evidência de Suassuna
A gênese do teatro no Brasil também está atrelada aos princípios religiosos com
as representações para a catequização dos índios. As peças eram escritas com
intenções didáticas, como forma de encontrar meios de traduzir a crença cristã para a
cultura indígena. As representações eram realizadas com grande carga dramática e
com alguns efeitos cênicos.
Depois, segundo Peixoto, a passagem do teatro sagrado ao profano, como toda a
literatura brasileira, deu-se por influências do teatro europeu, com a imitação do teatro
de estrutura Portuguesa, Espanhola e até mesmo a Francesa. (1989). Influência esta
que Faria denominaria de "um fenômeno típico de países pobres e colonizados" (1993,
p. 261), mas que configuraria o que Bakhtin denominou de a relação entre os discursos
- é a evolução ideológica da linguagem, ocorrida também na literatura dramática
brasileira.
No século XIX, juntamente com o fervor da independência política, surge, nas
artes, o movimento romântico: "os dramaturgos, sem perder de vista os modelos
europeus, voltaram-se para uma temática nacional, reencontrando um sentimento de
68
brasilidade que surpreendeu por constituir-se num esforço de resgatar valores de nossa
identidade específica" (PEIXOTO, 1989, p. 63). Ainda nessa época, numa busca pela
representação do cotidiano urbano e rural, surgem as primeiras manifestações do
movimento realista.
Um esforço de emancipação nacional configura a história do teatro brasileiro no
século XX. O teatro com caráter profissional, com estrutura empresarial é encontrado
nos dois maiores centros de desenvolvimento industrial e econômico, Rio de Janeiro e
São Paulo.
Com a deflagração da Primeira Guerra Mundial interromperam-se as visitas de
companhias estrangeiras que vinham regularmente ao país. O teatro brasileiro viu-se
isolado, e esse isolamento o fez voltar para suas raízes para as suas tradições. Em
1922, ocorre a Semana de Arte Moderna, uma manifestação contra o que os críticos
denominavam de cultura importada, uma exaltação aos valores nacionais; não inclui
diretamente a literatura dramática, no entanto, as influências modernistas podem, mais
tarde, ser conferidas nos textos de teatro.
Nos anos 50, o Brasil vive um clima de desenvolvimento. Depois do governo de
Dutra (1946-1950), que já fora escolhido por eleições diretas, no qual o Brasil
estabeleceu uma aliança com Estados Unidos e rompeu com os soviéticos, volta ao
poder Getúlio Vargas. Contudo, segundo Arbex e Senise,
Sem o aparato repressivo que lhe dera sustentação, durante os longos anos da
ditadura, Getúlio ficou exposto a intensas pressões políticas [...] reconhecido
como o 'pai dos pobres', Vargas agora era obrigado a adotar medidas duras,
que atingiam a classe trabalhadora, para tentar segurar a inflação [...] em
agosto de 1954, um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda
desencadearia violenta campanha contra Vargas, culminando em seu
suicídio, no dia 24 daquele mesmo mês. (2002, p. 130)
69
Encerra-se a chamada "Era Vargas". No governo de Kubitschek, que sucedeu
Getúlio, há um movimento de ascensão das classes populares. Empresas estrangeiras,
como montadoras de automóveis, se instalaram no Brasil; hidrelétricas foram
construídas e Brasília foi inaugurada. "Com seu 'programa de metas' Juscelino
pretendeu desenvolver o país, especialmente a indústria, não só com recursos
nacionais, mas também com aporte de capital estrangeiro. Seu lema era '50 anos em 5'"
(idem, p. 132)
Essa ideologia de desenvolvimento também se reflete nas artes e,
principalmente, no teatro. O teatro se renova, com o surgimento de grupos
experimentais, que buscam um novo modo de representar.
Segundo Peixoto, em 1943, configurando uma nova geração na dramaturgia,
surgem o "Grupo Experimental de Teatro", o "Grupo Universitário de Teatro" e os
"Comediantes"; com este último e a direção do polonês Zbigniev Ziembinsky, é
encenado Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, um marco definitivo do teatro
moderno no país (1989). A direção desta peça marca novamente a introdução de um
modelo estrangeiro de encenação.
Está aberto o caminho para uma geração assumir o teatro como realização
mais aprofundada e objetiva com a realidade, deixando de lado certa
ingenuidade em nome de um período de forte mas fecunda influência do
teatro europeu. Pois a Segunda Guerra Mundial enviou ou permitiu a
importação de encenadores, sobretudo italianos, preocupados com um teatro
não vinculado aos valores mais especificamente nacionais; esta contradição
abriria em seguida o caminho para uma segunda renovação, esta sim
decididamente nacional e voltada para a conquista do popular, com
conotação social e até comunista. (PEIXOTO, 1989, p.68)
70
Juntamente com A moratória (1955), de Jorge de Andrade, a peça o Auto da
Compadecida (1955), de Ariano Suassuna abre novos rumos para a dramaturgia
nacional. Segundo Peixoto, esses textos configuram o nascimento de uma dramaturgia
com a preocupação sócio-política clara, "fornecendo inclusive, por seu talvez ainda
romântico, mas decidido e apaixonado mergulho no confronto com a realidade" (1989,
p. 68).
Suassuna, por sua obra atrelada à cultura popular, foi chamado de o decifrador
das brasilidades; alia os valores de sua região nordestina ao seu imenso arcabouço
erudito e teórico. Com sua escrita produz um intertexto com elementos do barroco e da
literatura de cordel, sendo considerado um dos principais preservadores da cultura do
país.
Em nome dessa preservação, o dramaturgo envolveu-se em grandes polêmicas;
rejeitou a Bossa Nova, por influência do Jazz, o tropicalismo, pelo uso das guitarras
elétricas, e, ainda, recusou o prêmio Sharp, por ter nome de multinacional.
No entanto, como alerta Santos: "A relação com a cultura popular nordestina,
em vez de limitar a obra de Suassuna a um regionalismo ou nacionalismo estreito,
incentiva a uma viagem dentro das culturas brasileiras e universais" (2000, p. 97).
Paradoxalmente, sua obra possui elementos que podem ser comparados aos do teatro
grego e, também, ao teatro europeu Shakespeariano; são diálogos entre os discursos
que podem perpassar o tempo e o espaço.
Sobre os possíveis diálogos entre os discursos primários e secundários nas obras
de Ariano Suassuna, Vassalo expõe, entre outros, os seguintes:
[...] 1) adoção parcial da fonte, como os personagens Canção e João Grilo
em relação ao folheto e ao mito; 2) adoção de fragmento de texto,
71
reelaborando-o, como a cena da cortina de Hamlet em O casamento
suspeitoso (1957), as inúmeras passagens dos Evangelhos, as orações literais
ou paródicas; 3) adoção de texto completo, com suas motivações temas e
seqüências, traduzindo-os para outro contexto e outro gênero literário,
conforme a transposição do folheto de cordel para os entremezes; 4) adoção
de mais de uma fonte para o mesmo texto, segundo vemos na relação entre
Aulularia, O rico avarento e O santo e a porca (1957); 5) citação literal de
texto popular (cantiga de Canário Pardo no Auto da Compadecida), erudito
(parte de soneto de Camões) ou religioso; 6) citação literal de folheto mas
com deslocamento paródico, como o ofício dos mortos para enterrar o
cachorro Auto da Compadecida. (2000, p. 154)
O teatro de Ariano Suassuna, a partir de textos múltiplos e reescritas sucessivas,
como prática freqüente, adquire uma dimensão religiosa e humanística ampla, e ainda,
que nesse processo de diálogos entre os discursos, uma reescrita esconde a outra, e
várias outras. "Essas reescrituras em cascatas permitem integrar outros textos ainda populares, tanto quanto eruditos -, criando assim um texto inteiramente novo."
(SANTOS, 2000, p. 100)
Entre as constantes que orientaram a obra de Ariano Suassuna estão a busca da
poética popular como modelo de criação e a consciência do seu engajamento em prol
da cultura brasileira.
As primeiras manifestações desse engajamento (1946-69) foram coletivas,
feitas pelo grupo de estudantes que, sob a influência de Hermílio Borba
Filho, se propôs a pensar e trabalhar com vistas à criação de uma arte
dramática nacional que refletisse as idéias, os problemas e interesses do
povo. (idem, p. 102)
Dentre suas peças, destacam-se, além do Auto da Compadecida (1955), Uma
mulher vestida de sol (1948), Ode (1955), Farsa da boa preguiça (1974), Sonetos
com mote alheio (1980), A história de amor de Romeu e Julieta (1997). Em 1989,
Suassuna foi eleito por aclamação para membro da Academia Brasileira de Letras,
tomando posse em Maio de 1990, na cadeira número 32.
72
Com seus textos, Suassuna reafirma o caráter de registro estético histórico e
social que possui a literatura dramática; o autor resgata discursos populares, religiosos
e eruditos para transformar o sertão no palco das questões humanas e, assim como
Shakespeare, explora temas universais - as relações de poder, que podem ser
destacadas em sua obra, bem evidenciam isso.
Todas as contribuições de Bakhtin, sobre a formação ideológica do enunciado,
as relações entre os discursos que perpassam o tempo e o espaço serão evidenciadas na
literatura dramática de Shakespeare e de Suassuna. As duas obras escolhidas, O
mercador de Veneza, e Auto da compadecida, mesmo separadas por quase quatro
séculos, cada uma atrelada ao seu contexto histórico e social, ao serem comparadas,
poderão configurar, numa convergência entre os textos, um estreito diálogo teatral.
73
3 RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE SHAKESPEARE E SUASSUNA
As considerações tecidas nos dois primeiros capítulos, sobre o processo de
construção da linguagem atrelado à interação social - a formação do enunciado, os
gêneros do discurso, a evolução semântica da língua - em convergência com a
evolução da literatura dramatúrgica, destacando-se o gênero tragicômico e a
carnavalização, serão utilizadas para evidenciar a inter-relação entre os discursos
elaborados por Shakespeare e Suassuna nas peças O mercador de Veneza (1596), e o
Auto da Compadecida (1956), na análise comparativa.
Nesta análise, como já fora estabelecido, não se tem por objetivo promover uma
concepção de influência ou uma relação de dependência de um texto com o outro, mas,
sim, perceber e analisar os possíveis diálogos existentes entre as obras com relação à
estrutura, ao gênero, aos temas, aos personagens e à maneira como refratam seus
contextos históricos e sociais, que estão separados por quase quatro séculos.
3.1 Shakespeare, Suassuna e a Comédia Antiga de Aristófanes
O primeiro elemento que destaca o diálogo entre O mercador de Veneza e o
Auto da Compadecida, pode remontar à estrutura das comédias escritas por
Aristófanes, no teatro Grego, quatro séculos a.C.. Há duas partes bem distintas, nas
quais a primeira representa a ação, uma luta, um debate e a segunda, denominada por
Brandão (2001) de sketches, no sentido de esboço - uma espécie de revista, julgamento
74
da ação ocorrida na primeira parte. Os dois textos são divididos em duas partes; uma
primeira, que apresenta a ação configurada de acordo com o projeto estético e
ideológico de cada autor e uma segunda, na qual acontece, em cada peça, uma sessão
de julgamento, com a reflexão dos atos e a solução dos conflitos.
Shakespeare explora o contraste de uma intrincada rede social, que tanto refrata
as relações de comércio em Veneza, na época do Renascimento, quanto expõe as
relações familiares e religiosas do século XVI. Dois comerciantes, Antônio - o
mercador que dá o título à obra - e Shylock, um judeu sarcástico, demarcam o conflito
da peça. Bassânio, amigo de Antônio, pede-lhe uma quantia em dinheiro para tentar
com a sorte, ir a Belmonte para decifrar o enigma de Pórcia. O enigma fora criado pelo
pai da moça em seu leito de morte para escolher um pretendente que desposaria a filha
e herdaria sua fortuna. Pórcia é a heroína da peça. Antônio, conhecido por sua
bondade, não dispondo da quantia desejada por Bassânio, avaliza-lhe um empréstimo
concedido por Shylock. Este exige como garantia uma libra de carne que seria extraída
de Antônio caso a dívida não fosse saldada.
Shylock: Acompanhai-me ao notário e assinai-me o documento da dívida, no
qual, por brincadeira, declarado será que se no dia tal ou tal, em lugar
também sabido, a quantia ou quantias não pagardes, concordais em ceder,
por eqüidade, uma libra de vossa bela carne, que do corpo vos há de ser
cortada, onde bem me aprouver (Mercador de Veneza, p. 90)7/8
7
As citações da obra O Mercador de Veneza serão feitas a partir da tradução de Carlos Alberto Nunes. Os
mesmos trechos da versão inglesa, publicada pela The Folger Shakespeare Library, serão lançados em notas de
rodapé, com as respectivas páginas, para esclarecimentos de possíveis dúvidas de interpretação. A partir desta
citação, serão utilizadas as inicias M.V. com a página entre parênteses.
8
Go with me to a notary, seal me there Your single bond; and in a merry sport, If you repay me not on such a
day, In such a place , such sum or sums as areexpressed in the condition, let the forfeit be nominated for na equal
pound of your body pleaseth me. (SHAKESPEARE, 1992, p. 37)
75
O conflito é gerado por essa dívida. Antônio, que possuía uma frota de navios,
vai à falência quando perde sua frota em alto mar. Bassânio chega a Belmonte, decifra
o enigma, casa-se com Pórcia, volta a Veneza, mas não consegue chegar a tempo de
pagar a dívida no prazo estipulado por Shylock. Este exige a cobrança do acordo - a
libra de carne de Antônio.
Shylock esperava por essa oportunidade para vingar-se de Antônio; os dois
possuíam diferenças que foram bem delimitadas no texto; um judeu, outro cristão, um
emprestava dinheiro e cobrava altas taxas de juro, outro emprestava, sem cobrá-las.
Um enunciado criado para Shylock põe essa questão em evidência "por ele ser cristão
é que o odeio, mas acima de tudo, porque em sua simplicidade vil, dinheiro empresta
gratuitamente e faz baixar a taxa de juros entre nós aqui em Veneza." (M.V., p. 87)9
Para decidir a solução da dívida, institui-se um julgamento na corte da Justiça
de Veneza. Pórcia, com a ajuda de sua fiel companheira, Nerissa, monta uma farsa, e
parte para Veneza para realizar o julgamento no lugar do jurista Belário, que era seu
parente e que por uma carta assegura sua atuação.
Pórcia surge, disfarçada de jurista, para apreciar a questão e conduzir o
julgamento. Utilizando-se de palavras específicas para compor ideologicamente seu
personagem, um homem íntegro, que segue corretamente as leis, tenta, inicialmente,
persuadir o judeu a desistir da pena, angariando, para a sua primeira argumentação, os
preceitos do discurso religioso:
A natureza da graça não comporta compulsão. Gota a gotas ela cai, tal como
a chuva benéfica do céu. É duas vezes abençoada e por isso que enaltece
9
I hate him for he is a Christian, but more for that in low simplicity he lends out money gratis and brings down
the rate of usance here with us in Venice. (SHAKESPEARE, 1992, p. 29)
76
quem dá e quem recebe. É mais possante junto ao monarca no trono adorna
mais do que a coroa; quase divino fica o poder terreno nos instantes em que
a justiça se associa à graça. (M.V. p. 135)10
O judeu não se demove da cobrança da letra. Nesse sentido a peça enfatiza o
atavismo dramático provocado pela inquietação e a reflexão de uma questão jurídica
em seus primórdios, o contrato - que nesta peça é, supostamente, amparado pelas leis
de Veneza.
Shylock confirma a sua intenção de cobrar a execução da letra, e ainda exige
que a libra de carne seja extraída perto do coração. Mesmo antes de ser questionado
justifica sua intenção, ironicamente: "Decerto há de perguntar-me a causa de eu
preferir um peso de carniça, a ter de volta os meus três mil ducados. Se um rato a casa
me estragasse, e para envenená-lo eu resolvesse gastar dez mil ducados? Não vos basta
semelhante resposta?" (M.V. p. 131)11
Pórcia, depois de convencer a todos no julgamento que a lei deveria
preponderar, que o contrato seria cobrado e que a sentença seria justa, no momento em
que Shylock se preparava para a cobrança - o corte - retoma a palavra e expõe uma
nova questão, apela para uma subjetiva análise nos meandros da linguagem que reverte
o teor da letra, para livrar Antônio da morte:
Um momentinho, apenas. Há mais uma coisa. Pela letra, a sangue jus não
tens; nem uma gota. São palavras expressas: Uma libra de carne". Tira, pois,
o combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a
10
The quality of mercy is not strained. It droppeth as the gentle rain from heaven upon the place beneath. It is
twice blest: It blesseth him that gives and him that takes. Tis mightiest in the mightiest; it becomes the throned
monarch better than his crown. His scepter shows the force of temporal power, the attribute to awe and majesty.
(SHAKESPEARE, 1992, p. 155)
11
You'll ask me why I rather choose to have a weight of carrion flesh than to receive three thousand ducats.
What if my house be troubled with a rat, and I be pleased to give ten thousand ducats to have it banned? What,
are you answered yet? (SHAKESPEARE, 1992, p. 143)
77
cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras
todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito. (M.V. p.
138)12
Shylock desiste da cobrança, mas perde, além do dinheiro emprestado, a metade
da sua fortuna. Pórcia, no final do julgamento alega que, pelas leis de Veneza, o
estrangeiro que atentasse contra a vida de um dos membros da comunidade perderia
todos os seus bens, estes passariam para a pessoa visada e para os cofres públicos. A
metade que deveria passar para o Estado é perdoada, mas de Shylock, em troca, é
cobrada a conversão ao cristianismo.
Quatro séculos depois, Suassuna produz sua peça como se fosse um eco
cultural, uma comunicação dialógica; o Auto da Compadecida, assim como O
Mercador de Veneza, tem uma primeira parte com muita ação e uma segunda, que se
desenrola numa sessão de julgamento, resgatando e avaliando as ações da primeira
parte.
Essa elaboração de Suassuna reflete bem como tem se dado a evolução da
literatura dramática; a peça intertextualiza elementos que promovem um diálogo
cultural com a peça de Shakespeare - um autor inglês, que descreve uma tragicomédia
Veneziana no século XVI - e, ainda, institui a interpretação da uma realidade que é do
seu contexto histórico e social no século XX.
O Auto da Compadecida conduz o espectador/leitor a uma meditação sobre as
relações entre Deus e os homens. Apresentando uma autêntica ação sacra popular, o
autor resgata, intertextualmente, componentes de lendas difundidas no Nordeste, como
12
Tarry a little. There is something else. This bond doth give thee here no jot of blood. The words expressly are
"a pound of flesh". Take then thy bond, take thou thy pound of flesh, but in the cutting it, if thou dost shed one
drop of Christianblood, thy lands and goods are by the laws of Venice confiscate unto the state of Venice.
(SHAKESPEARE, 1992, p.163)
78
a intervenção misericordiosa de Nossa Senhora, que intercede em favor de uma alma,
a história do enterro de um cachorro e a de um gato que defeca dinheiro, mesclando-os
à personagens, como um Bispo e um Padre - pouco afeitos à ética cristã - e um
indivíduo astuto, ardiloso, conversador, João Grilo, para fundamentar uma crítica
social.
A história tem início com João Grilo e seu amigo Chicó tentando persuadir o
padre a benzer um cachorro que estava agonizando, que pertencia a mulher do padeiro,
para o qual os dois trabalhavam. Para tanto, inventam várias histórias:
João grilo: Padre João ! Padre João!
Padre: Que há? Que gritaria e essa?
Chicó: Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa
aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.
Padre: Não benzo de jeito nenhum.
[...]
João Grilo: Eu disse que uma coisa era o motor [benzido em outra ocasião] e
outra o cachorro do major Antônio de Morais.
[...] Não vejo mal nenhum em abençoar as criaturas de Deus ((Auto da
Compadecida,p. 34)13
Por fim, o cachorro morre e o Sacristão acaba fazendo um enterro exequial - em
latim - depois que João Grilo comunica ao Padre a existência de um testamento, no
qual o cachorro havia deixado para o Padre e para o Sacristão uma quantia em
dinheiro. Na confusão João Grilo envolve Antônio de Morais, um figurão da cidade.
Este, achando que o padre estava louco, vai se queixar ao Bispo, que vem tirar
satisfação com o Padre. João Grilo, para apaziguar a situação, inclui o Bispo no
suposto testamento do cachorro. Depois, ainda engana a Mulher do padeiro lhe
vendendo um gato com a história de que este defecaria dinheiro. De repente aparece na
13
De agora em diante, nesse trabalho, todas as citações da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna,
publicada pela editora Agir, de 2002, passarão a ser caracterizadas com as maiúsculas (A. C.)
79
igreja o padeiro dirigindo-se para o João Grilo: "Ah, você está aí? (pega João pela
camisa.) O gato não descome dinheiro coisa nenhuma, descome o que todo gato
descome. Mas você me paga" (A.C., p. 102)
Quando estão todos na igreja, João Grilo, Chicó, Sacristão, Padre, Bispo,
Padeiro, entra gritando a mulher do padeiro:
Mulher: Valha-me Deus! Ai, meu marido de minha alma, vai morrer todo
mundo agora. Socorro, Senhor Bispo.
Bispo: Que há? Que é isso? Que barulho!
Mulher: É Severino do Aracaju, que entrou na cidade com um cabra e vem
para cá roubar a igreja
Padre: Ave-maria! Valha-me Nossa Senhora!
Bispo: Quem é Severino de Aracaju?
Sacristão: Um cangaceiro, um homem horrível.
Bispo à mulher: Chame a polícia.
Mulher: A polícia correu (A.C., p. 108)
Severino entra na igreja, e depois de arrecadar o dinheiro de todos, mata o
Bispo, o Padre, o Sacristão, o Padeiro e a Mulher. Novamente, João Grilo consegue
engambelar Severino com a história de uma gaita mágica que ressuscita defunto.
Severino pede para um outro cangaceiro de seu bando lhe dar um tiro, pois ele morto
por apenas um determinado tempo poderia ver seu Padrinho Padre Cícero. Severino
morre, João Grilo e Chicó ferem o outro cangaceiro. Mas, este, antes de morrer, dá um
tiro em João Grilo.
Na segunda parte da peça, todos os personagens estão mortos aguardando o
julgamento que daria o destino de suas almas. Para o julgamento aparecem outros
personagens, resgatados por Suassuna, num diálogo com a cultura religiosa - Deus
(Manoel), sua mãe - a Compadecida -, o Demônio e o Encourado. É a Compadecida
quem intervém a favor dos personagens. Com ela, Suassuna propõe uma reflexão
80
sobre a ação de cada um. Todos condenados pelo Demônio, recebem uma defesa da
Compadecida, que argumenta explicando os motivos que os levaram a agir dessa ou
daquela maneira. Assim como Pórcia, de Shakespeare, mais uma vez é uma heroína
quem soluciona os conflitos da peça.
Além da estrutura com as sessões de julgamento, as duas peças também
estabelecem, como as comédias de Aristófanes um diálogo com os textos trágicos e
com a mitologia.
Aristófanes, no século V, na comédia As rãs, resgata Sófocles, Eurípedes e
Ésquilo, segundo Costa e Remédios (1988), para discutir e satirizar a dignidade moral
e religiosa expostas na tragédia. Na tragédia grega os valores religiosos, políticos e
aristocráticos são intensamente questionados. Shakespeare e Suassuna abordam os
mesmos temas, embora com enfoques condizentes com seus contextos.
Os personagens, nas duas peças, evocam uma construção ambígua; são
elaborados a partir de uma dualidade entre o bem e o mal - Eurípedes, em suas
tragédias já configurava esse direito do ser humano, de hesitar, de duvidar - o
sentimento ambíguo. Com esse autor grego, a tragédia ultrapassaria o Olimpo; iria
para as ruas de Atenas, formulando uma crítica social, assim como fazem Suassuna e
Shakespeare. Embora esses dois autores também dialoguem com elementos da
mitologia.
Shakespeare, num processo intertextual, resgata alguns mitos gregos, que
constituíam as versões das tragédias de Eurípedes e Ésquilo. Como, por exemplo, o
enigma que definiria a escolha daquele que, não só se casaria com Pórcia, mas também
81
herdaria toda a sua riqueza. Por empreender um arriscado caminho, foi, por Bassânio,
já no inicio da peça, comparado à busca dos argonautas pelo Velo de Ouro14.
Depois, em outros enunciados, no último ato da peça, já com o conflito maior
resolvido, Shakespeare, com uma linguagem metafórica, novamente retoma o mito de
Medéia. Lourenço e Jéssica resgatam tanto fatos passados no início da peça quanto os
mitos gregos.
Lourenço: A lua brilha. Numa noite assim, quando a brisa beijava de
mansinho as árvores, sem que estas sussurrassem; numa noite como esta, só
parece, Tróilo as muralhas escalou de Tróia e mandou a alma para as tendas
gregas, onde Cressida estava.
[...]
Jessica: Numa noite tal como esta, Medéia as ervas mágicas apanhou, porque
o velho Esão fizesse voltar à mocidade.
Lourenço: Numa noite tal como esta, Jessica deixa a casa do opulento judeu,
em companhia do namorado pródigo, correndo de Veneza a Belmonte.
(M.V., p. 144)15
Jéssica, assim como Medéia, trai o pai e foge com sua paixão. Na história de
Shakespeare, Jéssica e Lourenço terminam enamorados. Medéia, no entanto, é
abandonada por Jasão, que se apaixona por Glauce. A feiticeira, inconformada, mata a
rival queimando-a com um manto mágico, depois, estrangula os filhos que tivera com
Jasão. Medéia casa-se com o rei Egeu, com quem tem mais um filho, Medo. Medéia
14
Segundo a lenda, o rei Eetes, ao entregar sua filha, Calcíope, em casamento para Frixo, recebera deste um velo
de ouro e o colocara, guardado por um dragão, no bosque sagrado de Ares. Na cidade de Iolco, na Grécia, o rei
Esão é destronado por seu irmão Pélias. Jasão, filho de Esão, reclama o trono. Seu tio condiciona a devolução do
poder à conquista por Jasão do Velo de Ouro. Jasão com o auxílio de Argos, filho de Frixo, constrói um navio,
reúne cinqüenta e cinco heróis, que foram denominados os Argonautas ("náutes", do grego, significa
marinheiro), e parte em busca do Velo. A feiticeira Medéia, outra filha do rei Eetes, apaixonasse por Jasão e,
depois de ajudá-lo a obter o velo, segue com o grupo de volta à pátria do líder dos Argonautas, na Tessália. O
mito é conhecido, segundo Brandão (2001), pela versão literária que lhe dera Eurípedes.
15
The moon shines bright. In such a night as this, When the sweet wind didgently kiss the trees and they did
make no noise, in such a night Troilus, methinks, mounted the Trojan walls and sighed his soul toward the
Grecian tentsWhere Cressid lay that night.
[…]
Jessica: In such a night Medea gathered the enchanted herbs that did renew old Aeson.
Lorenzo: In such a night did Jessica steal from the wealthy Jew, and with an unthrift love did run from Venice as
far Belmonte.( SHAKESPEARE, 1992, p.181)
82
tenta assassinar Teseu, outro filho de Egeu, dando-lhe um copo com vinho
envenenado. Egeu percebe e impede que o filho beba. Teseu, então, quer vingar-se de
Medéia, esta foge de Atenas, levando consigo seu filho, Medo.
A ação de Medéia, ao tentar acabar com Teseu, para que seu filho Medo não
tivesse que competir com o irmão, demonstra a superproteção que ela lhe conferia. O
Medo mitológico pode ter fornecido a explicação atrelada à carga semântica que o
vocábulo "medo" tem na contemporaneidade.
Curiosamente,
Suassuna
constrói
enunciados
para
seus
personagens
evidenciando o vocábulo medo, com o qual os personagens justificam os atos
indecorosos praticados pelos homens. Com o “medo”, a Compadecida, no julgamento,
argumenta em defesa dos homens, e depois sua idéia é compartilhada pelos demais
personagens:
Compadecida: [...] É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é
preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica
em todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era
por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com
medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É
medo.
Encourado: Medo? Medo do que?
Bispo: Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte...
Padre: Medo do sofrimento...
Sacristão: Medo da fome...
Padeiro: Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a
amava e porque sempre tive um medo terrível da solidão. (A.C., p. 177)
Suassuna destaca o caráter subjetivo do sentimento. Cada personagem evidencia
o medo a partir de suas escolhas ideológicas. Todos, porém, o sentem quando Severino
do Aracaju entra na igreja. É o medo da morte conjugado por todos os homens. A
83
morte é o destino inexorável de todos os seres vivos. Só o homem, no entanto, tem
consciência de sua finitude. Segundo Aranha e Martins,
Estudos a respeito dos primórdios relacionam o aparecimento das primeiras
angústias metafísicas do homem ao registro de sinais de culto aos mortos [...]
a morte se apresenta desde o início como uma fronteira que não significa
apenas o fim da vida, mas o limiar de outra realidade instigante porque
ininteligível, além de atemorizadora. (1999, p. 331)
A iminência da própria morte e o temor diante do desconhecido têm
estimulado, desde os primórdios, a fé; é o homem, diante do medo do seu
desconhecido destino, se apegando ao princípio de imortalidade. Todos os personagens
de Suassuna evocam o Divino diante do medo da morte. "Ai! Meu Deus", dizem eles.
A construção de Suassuna retoma os princípios da religião cristã, que
remontam, segundo Martins, novos mitos. Para o autor (2004, p. 191), o cristianismo,
originado da cooperação de fatores históricos como "a piedade israelita, a escatologia
egípcia, o idealismo helênico e a universalidade ou Catolicismo da abstração latina [e]
do amálgama de elementos formulados pelas civilizações circum-mediterrâneas,
unificadas pelo império romano" poderia configurar, se não uma religião, um novo
corpo de mitologia teológica. Suassuna estaria então explorando os mitos novos
advindos do Cristianismo: o monoteísmo; o divino não mais com poderes mágicos,
mas enfocado pelo poder de justiça; o livre-arbítrio que permite o homem escolher
entre o bem e o mal; a morte como uma passagem para a vida eterna; o purgatório para
a purificação. Ainda segundo Martins,
Esse modo de representação que põe no mundo uma causa estranha, e acima
das leis da natureza, uma vontade geradora, criadora, governadora do
Universo, dá de si fenômenos igualmente novos nessa esfera, a que
chamamos objetiva, da religião - na esfera dos sentimentos provocados pelos
mitos. O medo primitivo das almas povoando o mundo é maior aqui, porque
84
essas almas são vontades e potências; porém, ao lado do medo surge a
piedade, a compunção. (ARANHA e MARTINS, 2004, p. 92)
Os personagens de Suassuna encontram-se, depois de mortos, no limiar entre o
céu e o inferno, ou ainda, na fronteira que distingue e opõe dois mundos;
paradoxalmente, no lugar onde esses dois mundos se comunicam. Esse limiar mostra,
de uma certa maneira, a continuidade do espaço e do tempo; é a confirmação da
imortalidade da alma; daí a sua grande importância religiosa, destacada por Eliade,
"porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem"
(2001, p. 29), ou ainda, do mito do ritual de passagem.
Esse ritual de passagem poderia evidenciar os três níveis cósmicos - terra, céu e
regiões inferiores. Para Eliade a religião operou-se por uma abertura em cima (o
mundo divino) ou embaixo (o mundo dos mortos ou inferno) "Um grande número de
mitos ritos e crenças diversas deriva desse sistema de mundo tradicional" (1992, p.
38); o inimigo humano é, por muitas vezes, pelo pensamento simbólico assimilado ao
demônio e a morte.
Torna-se evidente que tanto em O Mercador de Veneza quanto no Auto da
Compadecida são resgatados elementos da Comédia Grega, que se estruturou a partir
da Tragédia, da qual também são encontrados resquícios nas duas peças. Esses
elementos da tragédia e da comédia mesclados à crítica histórica e social feita por
Shakespeare e, depois de quatro séculos, por Suassuna acaba por configurar o campo
explorado por estes autores - nem só a comédia, nem só a tragédia, mas o tragicômico
ou, como disse Bakhtin sério-cômico.
85
3.2 O Mercador de Veneza e o Auto da Compadecida, tragicomédias com temáticas
convergentes
As duas peças, apesar de configurarem gêneros, exteriormente, bastante
diversos - O Mercador de Veneza é enquadrada por muitos críticos como uma das
comédias de Shakespeare, e o texto de Suassuna analisado como um auto muito
próximo das histórias farsescas da Idade Média - são, interiormente, cognatas por
constituírem expressivamente o campo que Bakhtin denominou de sério-cômico,
também conhecido como tragicômico.
As peculiaridades comuns a todos os gêneros integrantes do tragicômico, já
observados na literatura da Antigüidade Clássica e, posteriormente, na época do
Helenismo, podem bem ser verificadas entre as duas peças.
Uma dessas peculiaridades seria o tratamento dado à realidade, como objeto de
interpretação, apreciação e formalização do texto. A literatura dos dois autores refrata
a realidade de cada contexto com temas que convergem mesmo após quase
quatrocentos anos.
Shakespeare elabora enunciados que refratam as relações de comércio em
Veneza, à época do Renascimento. Segundo Samuel, a Itália, nessa época, leva
vantagens em desenvolvimento sobre os demais povos da Europa Ocidental
[...] porquanto de lá partira o renascimento econômico e, entre outros fatos,
lá se organizara tecnicamente o financiamento das cruzadas. Na Itália surge
a primeira construção bancária e começa a se desenvolver a livre
concorrência frente ao ideal corporativo da Idade Média. A emancipação da
burguesia citadina triunfa mais cedo na Itália que no resto da Europa.
(SAMUEL, 1984, p. 135)
86
O dramaturgo constrói o mercador, Antônio, e lhe dá uma frota de navios,
justamente em tempo de maior exploração e descobrimento de novas rotas marítimas.
A inconstância desse comércio, no entanto, faz com que o mercador perca todos os
seus bens em alto mar. Mas, isso não aborrece o personagem - o “bom” cristão
Shakespereano - mesmo sabendo que a sua derrocada lhe custaria a própria vida. Sem
dinheiro para saldar a dívida contraída por Bassânio, Antônio ficaria a mercê de
Shylock, o "terrível vilão judeu".
É necessário destacar outro fator importante na formação da mentalidade
renascentista; o movimento franciscano, surgido também na Itália, sob a inspiração de
São Francisco de Assis. Antônio, em alguns enunciados da peça, demonstra uma
incrível bondade e um total desapego aos bens materiais:
Antônio: Confiai-me, bom Bassânio, esses projetos, que, se estiveres ainda,
como sempre, sob a mira da honra, ficai certo de que a minha pessoa, a
bolsa, todos os meus recursos ficarão patentes à vossa precisão. [...] Basta
dizerdes-me o que é necessário que eu faça, o que julgardes que só pode ser
por mim realizado, e eis-me disposto para tudo fazer. (M.V., p. 83)16
Antônio: "Querido Bassânio, todos os meus navios naufragaram, meus
credores tornaram-se cruéis, minha situação financeira é desesperada, a letra
que tenho com o judeu já está vencida, e uma vez que, pagando-a, não me
será possível viver, ficam liquidadas todas as dívidas existentes entre mim e
vós [...]". (M.V., p. 123)17
16
I pray you, good Bassanio, let me Know it; and if stand, as you yourself still do, within the eye of honor, be
assured my purse, my person, my extremest means lie all unlocked to your occasions. [...] Then do but say to me
what I should do than in your knowledge may by done, and I am prest unt it. Therefone speak.
(SHAKESPEARE, 1992, p 15 e 17)
17
"Sweet Bassanio, my ships have all miscarried, my creditors grow cruel, my estate is very low, my bond to the
Jew is forfeit, and since in paying it, it is impossible I should live, alldebts are clered between you and I if[...]"
(SHAKESPEARE, 1992, p. 123).
87
Paradoxalmente, Antônio, o "bom cristão" dá como garantia a própria vida
para ajudar o amigo a garantir um casamento lucrativo. E, no final da peça, fica
satisfeito ao auferir a metade dos bens de Shylock e, ainda, garantir que seus amigos,
Nerissa - filha do judeu - e Graciano, com quem ela havia fugido, voltem a ser os
herdeiros do judeu.
Shakespeare, mesmo evidenciando em alguns enunciados, um inter-discurso
com o discurso do Cristão Franciscano - que demarca a bondade e o desinteresse pelos
lucros - estabelece uma dicotomia ao, implicitamente, registrar o apego aos bens
materiais pelo "bom cristão" Antônio. Essa ambigüidade registrada pode estar
relacionada ao fato de que a hegemonia da Igreja Católica fora extremamente abalada
à época do Renascimento. Todos os preceitos cristãos ligados à fé estavam sendo
questionados ou pelas suas contradições ou pelo advento da racionalidade, o que
poderia estar influenciando essa crítica mascarada ao cristianismo.
De maneira ambígua também se dá a construção de Shylock. Aparentemente, a
condição de vilão é evidenciada por Shakespeare para o judeu. Muitos críticos já
discutiram a relação anti-semita da peça. Bloom, no entanto, afirma que a Inglaterra,
na época de Shakespeare, não conjugava com a problemática dos judeus, porque
[...] apenas cem ou duzentos judeus, a maioria, presumivelmente, convertida
ao cristianismo, viviam em Londres. Os judeus haviam sido, de certa forma
expulsos da Inglaterra em 1290, três séculos antes de Shakespeare, e só
seriam ,digamos, readmitidos quando da revolução de Cromwell. (2001a, p.
222)
Ora, Shakespeare, provavelmente, não estava atrelado apenas aos fatos que
ocorriam na Inglaterra; a própria peça se passa na Itália, e os judeus já sofriam
perseguições séculos antes das produções do autor. O fato de, no ano de 1264, ter
88
havido uma grande matança e, por um decreto do ano de 1290, os judeus terem sido
expulsos da Inglaterra, só evitou que Shakespeare tivesse um maior contato com esse
povo e com o preconceito que imperava sobre eles no século XVI. Segundo Algazi
(s/d), os judeus não podiam ter autoridade alguma sobre os cristãos; eram afastados
dos cargos públicos e eram privados dos direitos de cidadania quando implicava em
algum cargo de autoridade.
Bloom relata que um judeu, médico da Rainha Elizabeth, Dr. Lopez, acusado de
tentar envenená-la, "foi enforcado, estripado e esquartejado (possivelmente, com a
presença de Shakespeare na multidão); Lopez teria sido incriminado pelo Conde de
Essex e, portanto, talvez, falsamente acusado" (2001a, p. 223). Para Bloom, Doutor
Lopez talvez tenha servido de motivação para a criação do judeu de "O Mercador de
Veneza".
De fato, os judeus especializavam-se na medicina e no comércio, pois todas as
outras profissões lhes eram vedadas. No comércio, no entanto, auferiam altos lucros,
tanto que passaram a exercer, segundo Algazi, por excelência, a condição de
banqueiros. Dessa forma, "foram criando tantos inimigos como credores, e ao
despertar do espirito comercial, ante o imperativo da luta pela existência, o capitalista
cristão perseguiu no judeu o competidor e detentor de um monopólio produtivo"
(ALGAZI, s/d, p. 3).
Essa rivalidade é evidenciada em alguns enunciados criados tanto para o judeu
quanto para o cristão. Shylock, ao ser interrogado por Salarino sobre se cobraria
mesmo a libra de carne e para que esta lhe serviria, responde:
Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servira para alimentar
minha vingança. Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus
89
prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se nos
negócios, fez que meus amigos se arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo
por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos,
órgão, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos
alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas
doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o
mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescamos cristãos? Se nos
espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes
veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo
mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu
ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a
um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do Cristão?
Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de
18
censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda. (M.V., p. 113 e 114)
São enunciados como esse, com uma carga semântica ambivalente, que
demonstram a grandiosidade do autor inglês. Shakespeare, a partir dessa construção,
pode estar propondo uma reviravolta na trama, uma inversão de papéis, que só irá de
fato se dar se houver uma predisposição do interlocutor da obra. A atitude responsiva
do interlocutor poderá manter Shylock como um vilão, e a partir deste enunciado ainda
lhe acrescentar uma carga imensa de ironia e sarcasmo, ou poderá transformá-lo num
herói tragicômico, que está na obra para vingar séculos de apatia e subjugação de seu
povo.
Num outro enunciado criado para Shylock, Shakespeare resgata o discurso
Bíblico do livro de Gênesis, "Astúcia de Jacó" e produz um discurso intertextual19,
como uma forma de o personagem justificar a cobrança de juros efetivada nas quantias
18
To bait fish withal; if it will feed nothing else, it will feed my revenge. He hath discgraced me and hindered
me half a million, laughed at my losses, mocked at my gains, scorned my nation, thwarted my bargains, cooled
my friends, heated mine enemies - and what's his reason? I am a Jew. Hath not a Jew eyes? Hath not a Jew
hands, organs, dimensions, senses , affections, passions? Fed with the same food, hurt with the same weapons,
subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer as a
Christian is? If you prick us, do we not bleed? If you tickle us, do we not laugh? If you poison us, do we not die?
And if you wrong us, shallwe not revenge? If we are like you in the rest, we willresemble you in that. If a Jew
wrong a Christian, what is his humility? Revenge. If a Christian wrong a Jew, What should his sufferance be by
Christian example? Why, revenge! The villainy you teach me I will execute, and it shall go hard but I will better
the instruction. (SHAKESPEARE, 1992, p. 99)
19
Processo intertextual fora proposto por Kristeva, conforme explicitado no capítulo II, a partir das contribuições
de Bakhtin.
90
que emprestava para quem necessitasse. Nesse enunciado mais uma vez se destaca a
mesma ambivalência da carga semântica anteriormente destacada:
Não, não cobrava, o que chamais de juros, diretamente. Agora tomai nota do
que fez Jacó. Quando ele e o tio assentaram que todos os cordeiros malhados
e de rajas ficariam para Jacó, à guisa de salário, as ovelhas em cio foram
postas, no fim do outono, junto dos carneiros. E quando entre esses animais
velosos o ato da geração se processava, pelou-me algumas varas o astucioso
pastor e, ao trabalhar a natureza, frente as pos das ovelhas voluptuosas que,
concebendo então, no tempo próprio só paririam cordeiros variegados, que
com Jacó ficaram. Eis um meio de ganhar, e Jacó foi abençoado. Não sendo
roubo, todo lucro é benção. (M.V., p. 89)20
Shakespeare construiu o discurso de Shylock num interdiscurso com o Antigo
Testamento. Justamente a parte que expõe valores eternos e imutáveis que são
compartilhados por judeus e cristãos. Antônio, o mercador, também conhecia a história
de Jacó e acreditava, como cristão, que ele havia sido abençoado por Deus com a
riqueza. No entanto, justifica: "Bassânio, observa como o diabo sabe tirar partido da
Escritura. Uma alma vil, que cita as coisas santas, é como um biltre de sorriso ameno,
ou uma bela maçã podre por dentro. Como é belo o exterior da falsidade!" (M.V., p.
89)21
Depois, na segunda parte da peça, no ato do julgamento, o autor continua
usufruindo da intertextualidade para a construção do discurso de Shylock; quando
Pórcia, na posição de jurista, declara todos os direitos da letra ao judeu, este a chama
de um "novo Daniel".
20
No, not take interest, not, as you woul say, directly "interest". Mark what Jacob did. When Laban and himself
were compromised that all the eanlings which were streaked and pied should fall as Jacob's hire, the ewes being
rank in end of autumn turned to the rams, and when the work of generation was between these woolly breeders
in the act, the skillful shepherd pilled me certain wands, and in the doing of the deed of kind He stuck them up
before the fulsome ewes, who then convenceiving did in eaning time fall parti-colored lambs, and those were
jacob's. This was a way to thrive, and he was blest; and thrift is blessing if men steal it not (SHAKESPEARE,
1992, p.33).
91
Conta também o Antigo Testamento que Daniel era um jovem judeu que vivia
na Babilônia no reinado de Nabucodonosor. Daniel havia recebido de Deus "a
inteligência de todas as visões e sonhos" (DANIEL, s/d, p. 753); o jovem tinha visões
apocalípticas que prometiam libertação e glória para os judeus no futuro.
Ironicamente, quando, no julgamento, Pórcia expõe as condições que deveriam
ser seguidas para que o judeu executasse a letra, é Graciano, amigo de Antônio e de
Bassânio, quem resgata a intertextualidade proferida por Shylock, e chama novamente
Pórcia, o juiz, de "outro Daniel". Novamente Shakespeare usufrui da ambivalência da
carga semântica do discurso. O intertexto é produzido com um novo sentido - há ironia
no enunciado de Graciano.
Julgar a peça de Shakespeare anti-semita ou não, irá depender do diálogo
cultural que se estabelecer entre obra e interlocutor; o texto evoca a ambigüidade de
sentidos. No entanto, um julgamento pode ser feito, que Shakespeare soube explorar
muito bem a temática da religião de seu tempo; a rivalidade entre os judeus e os
cristãos e o preconceito.
Suassuna também explora a temática da religiosidade em sua peça, como o
próprio nome sugere, o Auto da Compadecida é uma peça que explora os preceitos
cristãos do catolicismo, e, de uma certa forma, também expõe um preconceito contra
outras religiões. Quando João Grilo protesta dizendo que o Encourado exagera ao
alegar falta de respeito diante de tudo o que é dito para valorizar a acusação, a
Compadecida afirma: "É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito
21
Mark you this, Bassanio, the devil can cite Scripture for his purpose!Na evil soul producing holy witness is
like a villain with a smiling cheek, a goodly apple rotten at the heart. O, what a goodly outside falsehood hath!
(SHAKESPEARE, 1992, p. 33)
92
apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado" (A.C., p. 171). E no
enunciado resposta criado para o Encourado, este ainda protesta por ser chamado de
fariseu. Num outro enunciado, com Manuel, o autor estabelece uma crítica ao
espiritismo, ao justificar o porquê de João Grilo estar sentindo tanto medo: "É besteira
do demônio. Esse sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica" (A.C., p. 161).
A esse preconceito velado - apresentado por poucos enunciados, Suassuna
acrescenta uma crítica escancarada aos representantes da igreja católica. Na segunda
parte da peça, no ato de julgamento, são os enunciados criados para o Encourado personagem responsável pelas acusações - que retomam as ações do Bispo, do Padre e
do Sacristão, ocorridas na primeira parte.
Sobre as falhas do Bispo, o Encourado ressalta:
Simonia: negociou com o cargo, aprovando o enterro de um cachorro em
latim, porque o dono lhe deu seis contos.
[...]
Falso testemunho: citou levianamente o Código canônico, primeiro para
condenar o ato do padre e contentar o ricaço Antônio de Morais, depois para
justificar o enterro. Velhacaria: esse bispo tinha fama de grande
administrador, mas não passava de um político, apodrecido de sabedoria
mundana.
[...] Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse
bispo falando com um pequeno, tinha uma soberba só comparável à
subserviência que usava para tratar com os grandes. (A.C., p. 152)
Para o julgamento do padre, o Encourado retoma todas as acusações feitas ao
bispo - simonia, velhacaria, política mundana, arrogância com os pequenos,
subserviência com os grandes - e, a estas ainda acrescenta a preguiça.
Os enunciados destacam a configuração do profano naqueles que deveriam ser
os representantes do sagrado na terra. Segundo Eliade, o homem que recusa a
sacralidade do mundo, assume uma existência profana, mas ainda assim, não consegue
93
abolir completamente o comportamento religioso. “[...] até a existência mais
dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo (1992, p.
27). Os personagens Bispo e Padre configuram o registro estético da condição
ambígua do ser humano, ninguém é totalmente bom ou mal o tempo todo.
Além dessa crítica, Suassuna, como um homem imerso na cultura de seu tempo,
também refrata questões históricas e sociais em sua obra. Uma delas é o preconceito
de cor evidenciado quando o personagem, João Grilo, se espanta ao ver o Cristo negro.
Este responde que veio assim para mostrar que ele tanto pode ser branco quanto negro
e complementa: "Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça"
(A.C., p. 149).
Um fato histórico pode ter contribuído com a denúncia de Suassuna. Conforme
nos alerta Oscar no prefácio do Auto, durante a Segunda Guerra Mundial, bases
americanas foram instaladas no Nordeste. Provavelmente, os ocupantes dessas bases
deram abundantes provas desse lamentável sentimento. E isso, certamente, produziu
um efeito de repulsa no povo nordestino, o que o autor soube muito bem registrar em
poucos enunciados.
Pelas duas tragicomédias, a de Suassuna e a de Shakespeare, se efetiva a
concepção de gênero de Bakhtin. Os diálogos estabelecidos entre as peças e destas
com seu contexto histórico e social salientam a importância cultural da literatura.
Todos os elementos encontrados nas peças e citados como peculiaridades do gênero
tragicômico devem ser entendidos como propiciadores de uma mediação entre o
mundo real e o texto de ficção.
94
3.3 A carnavalização e a inversão de papéis
Além do tratamento dispensado por cada autor - Shakespeare e Suassuna - para
refratar sua realidade, outra peculiaridade do gênero tragicômico pode ser evidenciada
nas duas peças. Trata-se da transposição para a literatura da cosmovisão do espírito
carnavalesco, já discutida nos capítulos anteriores.
Tanto Shakespeare quanto Suassuna metaforizam com a ação carnavalesca, com
a qual exploram as formas de relação entre os homens. No decorrer das peças, alteramse as posições sociais numa relação dicotômica; essa transposição de papéis sociais
estabelece o caráter de mudanças e transformações, de morte e de renovação, nos
enredos das peças. Como frisaria Bakhtin, tudo o que é marginalizado e excluído, pode
tornar-se central (2002).
No entanto, esse processo de carnavalização das peças pode ser destacado não
só pelas diferenças sociais e as inversões de papéis, como também, pelas diferentes
ideologias estabelecidas pelas relações de poder. Os autores criticam poeticamente de
forma ironizada ou utilizam-se de recursos implícitos pelas figuras de linguagem.
Em Shakespeare, o judeu Shylock, de vilão, no início da peça e no início do
julgamento, passa, de uma certa forma, à vítima, quando lhe é imposta a conversão ao
cristianismo, sob o risco de morte. O enunciado proferido por Shylock no final do IV
Ato, "Estou contente" (M.V., 140), nada mais significa do que uma resposta irônica,
induzida pela situação em que se encontrava o judeu. Destaca-se aí a inversão de poder
e, em conseqüência desta, de papel social - Shylock um estrangeiro, ao aceitar sua
nova condição, supostamente, teria se tornado um veneziano cristão.
95
O interlocutor da peça pode até concluir que Shylock tenha de fato se
convertido ao cristianismo, mas seria incoerente ao imaginar que ele o faria de bom
grado; provavelmente, a sua resistência estaria implícita na ironia do seu enunciado.
Sobre a conversão, Bloom argumenta:
Shylock nada tem de lírico e, portanto, não há lugar para ele em Belmonte
[lugar escolhido para o último ato da peça]. Mas o que faria Shakespeare
com Shylock? Enforcá-lo, estripá-lo e esquartejá-lo, ou qualquer
divertimento semelhante, constituiria prelúdio nada apropriado a Belmonte.
Não temos como saber ao certo o que o autor pensava a respeito das
'conversões' de judeus que ocorriam à sua volta, mas não seria menos cético
do que a grande maioria de seus contemporâneos. Mais de um século havia
se passado desde a expulsão dos judeus da Espanha, empreitada que
fracassara, em parte, devido à maciça recalcitrância e a tendência dos judeus
a dissimulação. (2001a, p. 228)
A conversão estabelecida por Shakespeare, além de refratar essa questão
especificada por Bloom, configura, certamente, a punição e a humilhação de Shylock.
Punição essa, avalizada pelo 'bom cristão Antônio'. E, se o discurso de Antônio não for
atrelado ao discurso franciscano, há que se considerar uma outra questão. O amor do
mercador por Bassânio. E se assim fosse, Antônio, também seria punido pelas astúcias
de Pórcia; passaria a viver em Veneza, só, sem Bassânio. Sobre essa punição, também
Bloom se manifesta:
Antônio, embora presente em Belmonte, dormirá sozinho, supostamente,
consolado por seu altruísmo, sua religiosidade e o triunfo sobre Shylock.
Bassânio, devemos supor, é bissexual, mas Antônio, claramente, não, e seu
homossexualismo é, talvez, menos relevante do que o sadomasoquismo em
cujo o frêmito ele firmara um contrato insano com Shylock. (2001a, p. 230)
Em vários enunciados da peça, Shakespeare evidencia o amor de Antônio por
Bassânio. Por ele, o mercador estaria disposto a morrer, sem nenhum ressentimento.
Bassânio, entretanto, dissimulado, não demonstra muita preocupação com esse
96
sentimento, apenas usufrui dele para extorquir dinheiro do mercador; no início da peça
o personagem não passa de um caçador de dotes, depois, ao desvendar o enigma dos
cofres de Pórcia - assume a mesma condição de Jasão, ao conseguir o velo de ouro passa a reinar em Belmonte. Essa inversão de papéis atrelada a valores cobiçados é,
ironicamente, debatida em um enunciado metafórico criado para o próprio Bassânio,
quando este reverbera em frente aos cofres:
Bastante vezes a aparência externa carece de valor. Sempre enganado tem
sido o mundo pelos ornamentos. Em direito, que causa tão corruta e
estragada, não fica apresentável por um voz graciosa, que a aparência
malévola disfarça? Que heresia poderá haver em religião, se alguma fronte
austera a defende, e justifica com a citação de um texto, mascarando com
bonito fraseado a enormidade? Não há vício por crasso, que não possa
revelar a aparência de virtude. Quantos poltrões não vemos, cujo peito
resiste tanto como areia ao vento, que no queixo nos mostram barba de
Hércules ou do sombrio Marte, e que por dentro fígados como leite só
possuem? (M.V., 117)22
Depois dessa reflexão, Bassânio escolhe o cofre de chumbo, no qual se encontra
o retrato de Pórcia, decifra o enigma e é aceito por Pórcia. Embora, ela não tivesse
muita escolha, pela condição a que fora subjugada por seu pai - estar a mercê daqueles
que quisessem tentar com a sorte. O enigma dos cofres e o julgamento do mercador
marcam a ambigüidade e a inversão de papéis da personagem. Pórcia não rejeita a
autoridade do pai nem mesmo após a morte deste, mas ao mesmo tempo age
clandestinamente para livrar Antônio e, consequentemente, Bassânio. Pela sua astúcia
e inteligência é Pórcia, e não Antônio - o mercador, quem assume a posição de heroína
da peça.
22
So may the outward shows be least themselves; /The world is still deceived with ornament./ In law, what plea
so tainted and corrupt / But, being seasoned with a gracious voice/ Obscures the show of evil? In religion,/ What
damned error but some sober brow /Will bless it and approve it with a tex,/ Hiding the grossness with fair
ornament?/ There is no vice so simple but assumes/ Some mark of virtue on his outward patrs./ How many
cowards whose hearts are all as false/ as stairs of sand, wear yet upon their chins/ The beards of Hercules and
frowning Mars,/ Who inward searched have livers wuite as milk.( SHAKESPEARE, 1992, p.107)
97
Diante de Bassânio, profere o discurso de mulher objeto, que aceita a autoridade
do pai e do marido, e assume a sua condição de submissão:
Senhor Bassânio, assim como me vedes neste momento, eu sou. Para mim
própria não seria ambiciosa em meus desejos de querer ser muito melhor em
tudo. Mas triplicar quisera vinte vezes, para vós, o que sou, ser mais formosa
dez mil vezes, dez mil vezes mais senhora de um rico patrimônio. Para em
vosso conceito ser mais alta, desejara ter conta incalculável de virtudes,
belezas, bens e amigos; mas a soma total de quanto valho é soma negativa,
que define, grosso modo, uma jovem sem preparo, talentos e experiência,
que se julga feliz apenas por não ser tão velha que não possa aprender, e
venturosa por não ser tão obtusa de nascença que aprender não consiga coisa
alguma. Mas a suma ventura nisto tudo consiste em poder ela inteiramente
vos confiar o espírito maleável, para que a dirijas, na qualidade de marido,
senhor e soberano. Eu, com tudo o que tenho, desde agora passo a ser toda
vossa. (M.V., 119)23
Pórcia, no entanto, é uma personagem extremamente complexa, que se destaca
não pela sua submissão, mas pelos seus dotes de intelecto. É ela quem, disfarçada de
jurista, resolve o conflito da peça. É para ela que Shakespeare cria os enunciados que
demovem o judeu da cobrança da libra de carne, e salvam o mercador. É ela quem,
astutamente, testa sua prioridade sobre Antônio no afeto de Bassânio, ao cobrar deste,
quando estava disfarçada de jurista, o anel que havia lhe presenteado como
recompensa por ter livrado o mercador da morte.
Sobre essa complexidade da personagem Bloom salienta:
A personagem de Pórcia, cerne da peça, é bem mais complexa e enigmática
do que tenho visto representada no palco. Sofisticada e irônica, ela aceita de
bom grado Bassãnio, caçador de dotes, condena ao celibato, em atitude de
desprezo, os príncipes de Marrocos e Aragão, e deleita-se com Veneza e
Belmonte. Ainda mais do que o corrupto Graziano, Pórcia encarna a
23
You see me, Lord bassânio, where I stand,/ Such as I am. Though for myself alone. I would not be ambitious
in my wish/ To wish myself much better, yet for you/ I would be trebled twenty times myself,/ A thousand times
more fair, tem thousand times/ More rich, that only to stand high in your account/ I might in virtues, beauties,
livings, friends,/ Exceed acount. But the full sum of me/ Is sum of something, which, to term in gross,/ Is na
unlessoned girl, unschooled, unpracticed; Happy in this, she is not yet so old/ But she may learn; happier than
this, She is not bred so dull but she can learn;/ Happiest of all, is that her gentle spirit/ Commits itself to yours to
be directed as from her lord, her governor, her King. Myself, and what is mine, to you and yours is now
converted.( SHAKESPEARE, 1992, p.111)
98
mentalidade do 'vale-tudo' que prevalece em Veneza e, com sua
misericórdia, sorrindo, arranca de Shylock a poupança de uma vida inteira,
para enriquecimento de seus amigos. (2001, p. 228)
Ao se analisar o contexto histórico e social da peça, torna-se instigante pensar
na metamorfose da personagem. Pórcia, uma personagem feminina, fora criada para
ser representada, na encenação da peça, por um ator, visto que, à época de
Shakespeare, as mulheres não atuavam em peças - os papéis femininos eram
encenados por rapazotes que ainda não possuíssem nem a voz nem a fisionomia
definida pela masculinidade. Este ator, então, interpretaria uma mulher, Pórcia, que, na
segunda parte da peça, se disfarçaria de homem, Baltasar - o jurista. Shakespeare,
como dramaturgo já preveria a encenação, pensaria num homem que interpretasse uma
mulher, que se disfarçaria de homem - é o processo escancarado da carnavalização
pela inversão de papéis. Como, então, analisar a personagem Pórcia?
Prado, ao discutir sobre a análise da personagem em teatro restitui as três vias
indicadas pelos manuais de dramaturgia: "o que a personagem revela sobre si mesma,
o que ela faz e o que os outros dizem a seu respeito" (2002, p.88). Percebe-se, no
entanto, que no caso de Pórcia as três questões não devem ser analisadas de maneira
desvinculada, mas sim de forma complementar, porque não estão explicitadas no texto.
O que a personagem revela sobre si mesma poderia ser trazido à tona pelas reflexões
de Pórcia, mas essas não evidenciadas na peça, podem sim ser supostas de acordo com
as ações executadas por ela. E o que os outros personagens, com exceção de Nerissa,
falariam ao seu respeito - uma rica donzela, que aguarda ansiosa a chegada daquele
que, ao decifrar o enigma deixado por seu pai, tornar-se ia seu soberano. Mulher
99
recatada, que na ausência de seu senhor, passa a vigilância da casa para outro homem,
Lourenço, e busca reclusão em um mosteiro.
Shakespeare faz de Pórcia uma heroína sagaz, mas esta sagacidade só é, de fato,
evidenciada no momento em que a personagem assume, perante a sociedade
veneziana, a condição de homem. Essa inversão de papéis pode, talvez, ter assegurado,
por essa questão ideológica da subjugação da mulher pelo homem, o posto que os
críticos deram à Pórcia - ser a mais aceita pelo público elizabetano, dentre as heroínas
de Shakespeare.
Essa subjugação da mulher remonta ao início da produção de cereais
comestíveis, aproximadamente 11.000 a.C., quando as mulheres passaram a ser
consideradas uma mercadoria, uma vez que, pelo exercício da maternidade, garantiam
a futura mão-de-obra. Segundo Reis, "tidas como objeto, as mulheres passaram a ser
consideradas propriedades intercambiáveis entre tribos, sendo até mesmo roubadas
quando as trocas não se efetuavam. Supõe-se, inclusive, o consentimento ao estupro a
partir desse tratamento" (2002, p. 21).
No contexto do século XVI, quando as funções principais da sociedade, capazes
de elevar o ser ao mais alto reconhecimento social, ainda eram exercidas por homens,
Elizabeth sobe ao trono do reino Inglês e, aos vinte e cinco anos de idade, enfrenta a
descrença de todos por ser mulher. Foi acusada, ao ser coroada, de querer governar a
Inglaterra com o coração e não com a razão. Elizabeth, além de sofrer preconceito por
ser mulher, chegou a correr riscos de vida por ser protestante. Representantes da igreja
católica em Roma estimulavam manifestações contra a rainha "herege". A rainha
100
sobreviveu ao preconceito e aos ataques e governou a Inglaterra por mais de quarenta
anos.
Para confirmar sua soberania, negou as propostas de casamento que
promoveriam alianças ou com a França ou com a Espanha e dedicou-se inteiramente
às causas da Inglaterra.
Shakespeare conviveu com Elisabeth; o teatro tornara-se uma instituição na
Inglaterra, conforme o exposto no capítulo anterior. Como salienta Berthold, livre da
França e do papado, o teatro inglês “encontrou seus pressupostos artísticos, seus temas
e seus estilos [...] O tema principal da Renascença, o indivíduo consciente de si
mesmo, alcançou seu zênite de perfeição artística no teatro elizabetano" (2003, p.
312).
Pórcia, uma heroína veneziana criada por Shakespeare, poderia, de uma
maneira mascarada, lembrar os atributos da Rainha Elisabeth - a astúcia, a sagacidade,
a inteligência, o poder de manipulação e de persuasão. No entanto, ela não era, de fato,
uma rainha. Como, então, evidenciar tudo isso num contexto dominado por homens?
Transformando-a num deles.
Quase quatro séculos depois, Suassuna também irá explorar os lugares
estanques que homens e mulheres vêm ocupando na sociedade desde o surgimento da
sociedade patriarcal. O homem como sujeito e a mulher, objeto. A Compadecida, que
divide o papel de heroína da peça com João Grilo, é retratada por Suassuna como
benevolente, aquela que aceita e justifica as falhas de seus filhos - os homens. Durante
o julgamento, é ela quem, também de uma maneira astuta, defende os personagens das
acusações do Encourado e resolve o conflito da peça. No entanto, a astúcia mundana é
101
atribuída a outro personagem, João Grilo; como se no Auto da Compadecida
houvesse um desdobramento daquilo que representava Pórcia em O Mercador de
Veneza.
É João Grilo quem, no ato do julgamento, requisita a intervenção de Nossa
Senhora como sua advogada de defesa. Essa criação do imaginário popular, respaldada
por preceitos religiosos é exposta por Suassuna. A Virgem bondosa, que tudo aceita,
configura a imagem da mulher ideal acentuada a partir do século XVIII, com o
advento da burguesia. A mulher, deveria aceitar suas limitações e apenas se
responsabilizar pelo bem-estar do marido e dos filhos. Essa condição irá prevalecer até
o século XX, quando começam a fervilhar os movimentos feministas.
Suassuna ainda irá retratar uma outra versão da mulher. A mulher profana. Esta
personagem nem nome próprio tem; é apenas a mulher do Padeiro. A única indicação
que demonstra sua condição de uma personagem específica é a letra maiúscula usada
no início do substantivo comum que lhe confere. A Mulher do Padeiro, se não fosse
elaborada pela ambigüidade, apenas demonstraria a condição que as mulheres
assumiam ao se casarem no final do século XIX, início do século XX.
Como salienta Fortes, a mulher, nessa época, rompia com seu passado e era
anexada ao universo do marido. Como o homem era, economicamente, o chefe da
comunidade, cabia à mulher associar-se a sua classe, tomar-lhe o nome, seguir seu
culto, devendo, ainda, lhe apresentar virgindade e, depois, fidelidade absoluta (1996).
Mas, ironicamente, a Mulher ao tentar se rebelar, comete justamente a
manifestação que mais lhe incriminaria na época, o adultério. Ora, a peça fora escrita
às vésperas do movimento social da libertação feminina dos anos 60, mas Suassuna
102
ainda não poderia, de maneira explícita, ter em seu texto uma mulher lutando por
direitos iguais, ou questionando as antigas "verdades" disseminadas pelo pensamento
masculino, mas também já não poderia mais expô-la apenas como submissa. Os
enunciados proferidos no julgamento evidenciam a questão:
Encourado: Enganava o marido com todo mundo.
Mulher: Por que era maltratada por ele. Logo no começo do casamento,
começou a me enganar. A senhora não sabe o que eu passei, porque nunca
foi moça pobre casada com homem rico, como eu. Amor com amor se paga.
A Compadecida: Eu entendo tudo isso. Mais do que você pensa. Sei o que as
mulheres passam no mundo [...] Já aleguei sua condição de mulher,
escravizada pelo marido e sem grande possibilidade de se libertar. Que posso
ainda alegar em seu favor? (A.C. , p. 178, 179)
Suassuna produz, com a personagem, Mulher, uma evidente inversão de papéis,
não só no decorrer da peça, como também uma inversão cultural. A Mulher mantém os
resquícios da submissão, a própria ausência do nome assim sugere, é relegada a
posição social do marido, que na peça é denominado também apenas como Padeiro,
mas revolta-se e, de uma certa forma, já busca os direitos iguais, mesmo sendo pelo
adultério, já que ainda não poderia sair encabeçando uma passeata.
Além dessas questões abordadas com as personagens femininas, Suassuna
explora, a partir do processo de carnavalização, a alternância da rede de dispositivos
que relaciona as várias tramas de poder. As posições são alteradas. Aqueles que
representavam o poder da igreja, o poder do dinheiro e o da posição social na terra, ao
encontrarem-se no limiar entre o céu e o inferno, ou seja, durante o julgamento, ficam
relegados a um único poder - o da linguagem - o da astúcia da enunciação, que tem
como representante João Grilo.
Apesar da condição social desprivilegiada de João grilo, é a ele que Suassuna dá
o poder da argumentação. João Grilo, assim como Pórcia, é astuto e sagaz. É ele, com
103
a intervenção da Compadecida, que resolve o conflito da peça; é a partir de suas ações,
ainda na primeira parte, que Suassuna pode retomar, num processo intertextual,
histórias extraídas de folhetos populares. Segundo Vassalo, o enterro do cachorro
resgata um fragmento do folheto O dinheiro, de Leandro Gomes Barros; o gato que
defeca dinheiro mantém um intertexto com a História do cavalo que defecava
dinheiro, também de Barros. Deste mesmo romanceiro, ainda provém a cantiga de
Canário Pardo utilizada como invocação de João Grilo a Compadecida (2000). Esses
intertextos provocaram na peça de Suassuna hilariantes situações que também
serviram para confirmar o espírito carnavalesco da literatura.
A transposição da carnavalização para o gênero da literatura, tanto na peça de
Suassuna quanto na de Shakespeare, assumiu metaforicamente, com todas as
dicotomias destacadas, não só as diferenças sociais e as inversões de papéis, como
também, as diferentes ideologias estabelecidas pelas relações de poder. Os autores
refratam seus contextos elaborando enunciados que entrecruzam poesia e crítica social.
104
CONCLUSÃO
São quase quatrocentos anos que separam O mercador de Veneza (1596), de
Shakespeare, do Auto da Compadecida (1956), de Suassuna, e, ainda, quase dois mil
anos que separam as duas peças das comédias gregas de Aristófanes, escritas a mais de
quatrocentos anos a.C.. No entanto, nesta análise, várias foram as questões que
configuraram o diálogo entre estas obras.
Tanto Shakespeare quanto Suassuna dialogam com a estrutura estabelecida por
Brandão (2001) para a comédia Antiga de Aristófanes; embora as ações ocorridas na
primeira parte do Mercador de Veneza e do Auto da Compadecida, certamente,
diferem-se entre si e das ações que eram apresentadas nas comédias gregas. Enquanto
os personagens de Shakespeare promovem a elaboração de um contrato que com todos
os seus atares põe em jogo uma libra de carne humana em troca da viagem de um
aventureiro que iria desposar uma moça rica, os personagens de Suassuna realizam o
enterro, em latim, do cachorro da mulher do padeiro e dão de cara com um cangaceiro
que elimina quase todos os personagens da peça.
Na segunda parte das duas peças, assim como em Aristófanes, ocorre a revisão
das ações, mas Shakespeare e Suassuna promovem essa revisão com sessões de
julgamento. Em Shakespeare é julgada a cobrança do contrato e, consequentemente, os
destinos do mercador e do judeu. O julgamento é atrelado às questões religiosas – as
divergências entre judeus e cristãos – e ao merecimento de bens materiais. Em
Suassuna é a eternidade dos personagens no paraíso que está em jogo; as ações
realizadas em vida, de todos aqueles que foram mortos, são avaliadas.
105
Nas duas peças os personagens são configurados pela ambigüidade; assim como
o homem real, tanto em Shakespeare quanto em Suassuna, nenhum personagem é
completamente bom ou completamente mau. Shylock é, aparentemente, o vilão, no
entanto, passa a ser vítima dos cristãos, que o insultam e o tratam como escárnio. Essa
mesma complexidade se reflete nos personagens de Suassuna. João Grilo, tido, na
primeira parte da peça, como mentiroso, enganador, recebe, pela sua bondade, uma
segunda chance para viver na terra. A compadecida evidencia, em seus enunciados, os
aspectos de bondade de cada personagem que era julgado por seus “atos pecaminosos”
na terra. Nas duas peças essa dualidade se evidencia nos atos de julgamento pelo
discurso da misericórdia tanto usado por Pórcia e por Shylock quanto pela
Compadecida e mesmo por João Grilo.
As peças dialogam também, de fato, porque possuem peculiaridades comuns
que as enquadram no gênero tragicômico, ou como Bakhtin denominou, no gênero
sério-cômico. Uma dessas peculiaridades seria o tratamento dado à realidade, como
objeto de interpretação, apreciação e formalização do texto, o que, paradoxalmente,
salienta também a diferença entre as duas.
A literatura dos dois autores refrata a realidade de cada contexto; a realidade do
contexto inglês do século XVI é, certamente, diferente do contexto brasileiro do século
XX. Enquanto que à época d’O mercador de Veneza, a Inglaterra estava vivenciando
o Renascimento; o homem com um espírito mais crítico, o desenvolvimento de
pesquisas nos mais variados campos, um novo espaço para as questões culturais, o
desabrochar de um novo teatro mais voltado para as questões sociais, à época do Auto
106
da Compadecida, o Brasil vivia ainda com os resquícios da Segunda Guerra Mundial
e às vésperas do Golpe Militar, que desencadeou a censura em várias peças teatrais.
No entanto, apesar de todas essas diferenças de contextos, os temas discutidos
acabam por convergirem. Os autores discutem religião - as diferenças entre cristãos e
judeus, entre cristãos e espíritas - expondo críticas às questões que são defendidas
demagogicamente em nome da fé; discutem mitologia, dialogando com os mitos
gregos; discutem preconceitos, evidenciando, principalmente, o papel relegado à
mulher na sociedade. Esses temas são explicitados na linguagem das peças pela
ideologia presente na formação dos enunciados e pela ambivalência de sentidos
produzidos na elaboração dos textos. Ambivalência essa que aponta para uma outra
questão, a inversão de papéis. Essa inversão compõe a carnavalização na literatura,
outra peculiaridade do gênero tragicômico.
No texto shakespeareano um judeu considerado o vilão é obrigado pelos bons
cristãos à conversão; a mocinha astuta que aguarda a chegada daquele que viria a ser
seu marido, transforma-se na esposa submissa e, depois, mais uma vez, transforma-se
num juiz sagaz que resolve o conflito da peça; o bom cristão de franciscano passa a
vilão ao exigir os bens do judeu e a conversão deste. Em Suassuna a inversão se dá
quando aqueles que ideologicamente detinham o poder na terra, o bispo, o padre, o
Padeiro e Severino, cangaceiro, ficam a mercê de João Grilo, aquele que na terra, pelas
leis sociais, não detinha poder algum.
As inversões nas peças são sempre evidenciadas pela troca dos detentores do
poder. E o poder assumido pela inversão de papéis, nos dois casos, está atrelado à
argumentação, à linguagem. Para Pórcia, João Grilo e à Compadecida foram criados
107
enunciados carregados de palavras que demonstram toda a flexibilidade e a sagacidade
dos personagens que se transformaram nos heróis das duas peças. Mas isso só
aconteceu porque eles abandonaram suas condições iniciais e assumiram outros papéis
sociais, o que reafirma as contribuições de Bakhtin e de Gnerre discutidas no início
deste trabalho. As pessoas ao proferirem seus enunciados numa circunstância de fala
esperam uma atitude responsiva dos interlocutores, mas essas respostas são dadas
dependendo do papel que exercer o falante na sociedade.
A análise dos enunciados dos personagens a partir dessa inversão de papéis,
com a observância da construção semântica da língua a partir das relações de poder em convergência com a evolução da literatura dramatúrgica e o destaque do gênero
tragicômico - evidenciaram os diálogos entre os textos de Shakespeare e de Suassuna.
Esses diálogos, certamente, promoveram a transposição cultural entre uma obra e
outra.
Essa transposição, no entanto, não demarcou, como então seria de se pensar, um
efeito de imutabilidade na evolução da literatura dramática; pelo contrário, contribuiu
para dinamizar o processo de evolução literária, uma vez que cada obra manteve sua
originalidade ao dialogar também com seu contexto histórico e social. Os dois últimos
capítulos deste trabalho bem evidenciam tanto essa evolução quanto esses diálogos
entre as obras e destas com seus contextos históricos e sociais.
Assim, apesar de a arte dramatúrgica ser configurada como ficção, ou como
denominou Bakhtin de gênero secundário, por seu caráter de elaboração, o
entrecruzamento de vozes extraídas da vida real, permeiam a essência da criação
artística. Esse entrecruzamento, que contribui para a denúncia que o autor faz da sua
108
realidade histórica e social, vem refratando a história da humanidade desde os
primórdios.
No entanto, o sentido de uma obra não fica preso apenas ao seu contexto.
Primeiro, porque o autor pode resgatar também elementos e discursos de outros
contextos ou mesmo de outras obras - pela intertextualidade. Segundo, porque uma
obra exige interlocutores e estes também contribuem para configurar o diálogo
cultural. O diálogo entre a obra e seus interlocutores, certamente, acrescenta novos
sentidos à obra, que podem ou não estar de acordo com aqueles almejados no projeto
do autor. Cada obra literária recebe diferentes olhares em diferentes momentos e é
exatamente isso que propicia a transposição de tempo e espaço.
109
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