Interessa-me mostrar um estado da moda que não tenha

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20/03/2017
A moda vai nua - PÚBLICO
A moda vai nua
Algures no coração do sistema, um agente provocador dispôs­se acabar de
vez com o desfile, antes que a gloriosa história da moda se espalhe
definitivamente ao comprido numa passerelle. Chama­se Olivier Saillard e
estreia esta sexta­feira no Porto Couture Essentielle.
INÊS NADAIS
16 de Março de 2017, 21 11
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Blusão de cabedal com estofo para aguentar mais dez ou 20 Invernos, calças
de ganga com bruta dobra lá em baixo, junto às botas preparadas para a
chuva desgovernada dos últimos dias, Olivier Saillard tem as mãos na cauda
de um vestido preto quando o encontramos numa galeria do Museu
Bourdelle a poucos dias de ali inaugurar Balenciaga: L’Oeuvre au Noir. É só
mais um corpo esculpido na floresta de corpos esculpidos — uns pela
escultura, outros pela alta costura — que será a sua segunda exposição neste
discreto museu de Paris, a uma galáxia de distância do tumulto à porta do
Louvre ou debaixo da Torre Eiffel, onde a esta mesma hora da manhã se
formam filas cada dia mais gigantescas e mais policiadas: “Quando tiramos a
ÚLTIMAdo
HORA
moda
museu de moda, a condensação diminui e tudo se vê melhor: as
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pessoas falam mais da obra e menos da moda. Este ambiente sinaliza
FBI confirma investigação a suspeitas entre campanha de Trump e Rússia
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imediatamente que uma peça de vestuário está muito próxima da escultura
(mais do que da pintura, ou do que da fotografia): é preciso andar à volta
dela, as costas de uma peça de vestuário são bonitas, são interessantes, têm
técnica.”
Não é por causa desta exposição, nem sequer por causa do singular trabalho
(“erudito e iconoclasta”, resume a L’Express) como historiador e curador que
o levou em 2010 à direcção do Palais Galliera — Museu de Moda da Cidade
de Paris, que andamos à volta do seu corpo alto e estreito esculpido por um
blusão de cabedal e por umas calças Levi’s (falaremos deles daqui a minutos,
a propósito, quando nos sentarmos para um café). Olivier Saillard tem uma
vida dupla no território não exactamente inimigo mas ainda assim
estrangeiro das artes performativas, e a convite de Tiago Guedes, o director
do Teatro Municipal do Porto, fará a estreia mundial da sua nova
performance de moda, género que praticamente inventou, no Salão Árabe do
Palácio da Bolsa.
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Couture Essentielle, que Olivier Saillard estreia hoje e amanhã no Porto, é a sua maneira de
dizer que o desfile de moda vai nu: aqui as peças de roupa desfazem‑se assim que as mãos
que as seguram as deixam cair…
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Couture Essentielle (sexta e sábado no Porto, de 21 a 23 no Centre National
de la Danse, em Paris) retoma a sua colaboração com quatro corpos que
fazem parte do património iconográfico da segunda metade do século XX, as
ex-modelos Christine Bergstrom, Axelle Doué, Claudia Huidobro e Anne
Rohart, mas sobretudo retoma a sua metódica campanha de denúncia do
desfile enquanto dispositivo absolutamente esgotado onde já não se exibe
nada a não ser a morte cerebral de uma indústria submetida à “histeria” das
redes sociais”. Sim, temos aqui o D. Quixote: um director de museu que no
mundo ideal abriria as portas apenas a um visitante por dia e para o inferno
com os números de público (outra histeria); um encenador que se habituou a
arriscar a pele a cada nova performance (“São a minha segunda casa: perco
dinheiro com elas, mas dão-me imenso prazer, reinventaram a minha vida”);
um activista no olho do furacão da mais capitalista das indústrias
capitalistas. “Mas um activista não muito ouvido, parece-me. O grande
público acompanha as minhas performances, o público especializado
acompanha as minhas performances. E a seguir tudo continua igual.”
É uma batalha perdida a que se dedica há vários anos — entretanto, passou
das pequenas soirées privadas, totalmente off, com que durante a primeira
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década dos anos 2000 se tornou uma espécie de comentador residente, mas
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nada alinhado, da Semana da Moda de Paris, a um dos mais cobiçados
patamares do circuito europeu das artes performativas, o Festival de Outono,
que definitivamente fez dele um autor.
Não são menos subversivas do que os seus primeiros serões activistas, as três
performances com Tilda Swinton que o Festival de Outono lhe encomendou
e que acabaram compiladas num volume luxuoso, Impossible Wardrobes
(Rizzoli, 2015): na primeira, The Impossible Wardrobe (2012), Olivier
Saillard depositou-lhe nos braços, “como belas adormecidas”, algumas das
mais valiosas peças saídas das reservas do Palais Galliera, incluindo um
uniforme de gala de Napoleão Bonaparte e uma estola de arminho de Sarah
Bernhardt; na segunda, Eternity Dress (2013), produzia à frente dos
espectadores um vestido à medida da figura esfíngica da actriz, resgatando
do esquecimento saberes artesanais ameaçados de extinção num mundo de
fast fashion; na última, Vestiaire Obligatoire (2014), pô-la a explorar
livremente, até à última prega, até ao último bolso, as roupas e os acessórios
deixados pelos espectadores no bengaleiro. É uma das suas fixações, dirá ao
Ípsilon: “As pessoas cultivam uma verdadeira relação com as suas peças de
roupa, uma relação bem mais íntima do que a moda quer dizer. Disso
ninguém se ocupa: é um território infinito e não há um costureiro a cuidar
dele. Justamente, o retorno que tenho destas performances é que as pessoas
se sentem ao mesmo tempo indignadas com o estado do mundo, de que a
moda é um dos arquétipos mais extremos, e confortadas com o grau de
intimidade que ela lhes significa.”
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Tilda Swinton abraçava um uniforme de gala de Napoleão em The Impossible Wardrobe, a
primeira das três performances de moda em que Olivier Saillard a dirigiu; seguiram‑se
Eternity Dress e Vestiaire Obligatoire
Vem a propósito do blusão de cabedal, a conversa favorita de Olivier Saillard:
“Nem sei há quantos anos o tenho, mas não me imagino a deixar de o usar.
Mesmo as pessoas que compram muita roupa têm dificuldade em
desprender-se de certas peças. Só que a indústria não quer admitir que as
pessoas normais não compram roupa todos os dias, que há peças que
guardamos para sempre. Há a máquina comercial por trás e parece que se
exultarmos a ideia de as pessoas se ligarem ao que têm deixa de ser possível
vender — mentira, mas enfim, este síndroma da novidade precipitou um
enorme desamor na indústria…”.
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As pessoas normais que não se desprendem dos seus blusões de cabedal (e
que nunca comprarão umas calças de ganga Prada “a 3600 euros” enquanto
for possível encontrar “na H&M umas a 20 que servem perfeitamente”) é
outro assunto que ele domina. Filho mais novo (o sexto) de pais taxistas,
cresceu no fim do mundo, em Pontarlier, uma pequena cidade da Borgonha,
colada à fronteira suíça e infamemente conhecida como “a pequena Sibéria”.
Não teve um quarto só dele mas teve um sótão, onde passou anos e anos
entrincheirado nas roupas velhas dos oito elementos da prole que a mãe ali
empilhava para irem morrer longe (“como numa instalação de Boltanski”).
Daí até Paris foi um salto quântico, embora haja uma apreciável coincidência
entre o miúdo que aos 12 anos produziu sozinho a sua revista de moda, Le
Grand Couturier, o rapaz de 18 que quis cumprir o seu serviço cívico como
objector de consciência no Museu da Moda e do Têxtil de Paris, um anexo do
grande Museu das Artes Decorativas, e o adulto que viria a ser director do
Museu da Moda de Marselha (1995-2000), conservador responsável pela
programação de moda das mesmas Artes Decorativas por onde tinha passado
como voluntário, e director do Palais Galliera. ÚLTIMA HORA
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Hoje, 40 anos depois dessas experiências no sótão, diz que se divide “mal”
entre a sua dupla vocação de historiador-curador-director de museu e
artista-encenador, embora as operações de organizar uma exposição e
imaginar uma performance não sejam “assim tão diferentes”. Tanto em
Models Never Talk (2014), a sua primeira produção com as quatro modelos
que estarão no Porto (a que então se juntavam Charlotte Flossaut, Amalia
Vairelli e Violeta Sanchez) como em Couture Essentielle, trata-se de activar a
história da moda através de associações mais ou menos inusitadas, como nas
várias exposições que foi produzindo. “A diferença é que o suporte são
mulheres vivas em vez de manequins, paredes ou pedestais, o que é muito
mais encorajador”, diz. Essas mulheres vivas são quatro encarnações da
história da moda, do seu património de carne e osso; podiam, deviam, estar
num museu, ri-se, “se não falassem demasiado”: “A Claudia foi a musa de
Jean-Paul Gaultier; a Axelle foi a musa de Claude Montana e de Thierry
Mugler, mas trabalhou com todos os grandes, desde a Madame Grès; a Anne
Rohart trabalhou imenso com a Sonia Rykiel e fez fotografias míticas para a
Dominique Issermann; a Christine foi o braço direito do Jean-Paul Gaultier
no estúdio, uma prática que se perdeu e que nenhuma modelo tem
actualmente”.
É com elas que Olivier Saillard pretende aventurar-se no lugar do crime, o
dispositivo em que vê concentradas todas as insuficiências e todas as
ÚLTIMA HORA da indústria da moda: “Em todas as performances anteriores
impotências
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tentámos contornar o espaço do desfile para fazer outras coisas, para ir aos
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interditos. Agora vamos fazer um verdadeiro desfile de moda, ou a fantasia
de um desfile de moda, porque as peças que vamos mostrar não se aguentam
sobre o corpo se não as segurarmos com as mãos. Trabalharemos sobre os
caracteres mais efémeros de uma peça de roupa, mas seguindo o protocolo
de encenação de um desfile.”
Seguindo-o para o sabotar, claro, antes que a moda se estampe
definitivamente ao comprido num dos 500 desfiles (perfazendo um
impressionante total de 13.800 coordenados) que a cada estação se realizam
só nas semanas da moda de Paris, Londres, Milão e Nova Iorque: são
números reais, Olivier Saillard pediu ao seu assistente para os contabilizar na
manhã em que o encontramos, e agora ei-lo à nossa frente em estado de
choque. “Nos anos 50, os desfiles duravam duas horas; hoje duram sete
minutos, são desfiles iPad. Vês os fotógrafos a chegarem, depois as estrelas,
toda a gente se fotografa alarvemente, a coisa arrasta-se por uma boa hora e
não é de todo interessante, à parte esse teatro um pouco estúpido e
excludente… e de repente, em sete minutos, acabou. As pessoas já nem
sequer aplaudem: têm as mãos ocupadas com os seus telemóveis.” É, diz,
“um protocolo à beira de se tornar patético”, e a inércia incomoda-o: “Uma
casa com poder poderia decidir fazer um desfile de 20 minutos, não seria um
escândalo. Mas o que mais me surpreende é que nos últimos 15 anos — desde
as últimas tentativas de Martin Margiela, Hussein Chalayan, Viktor&Rolf…
— não houve um jovem criador a querer reinventar o dispositivo, a querer
partir o que quer que seja. Toda a gente é muito dócil com o sistema.”
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Olivier Saillard divide‑se (“mal”, confessa) entre a sua dupla vocação de historiador‑ ‑
curador de moda (dirige o Palais Galliera — Museu da Moda de Paris) e de artista‑ ‑
encenador
Interessa-me mostrar um estado da moda que não tenha
nada a ver com a indústria nem com o dinheiro; um
estado que corresponda a zero economia
Olivier Saillard
Não há violência gratuita nas palavras nem nos actos de Olivier Saillard:
“Falo de tudo isto porque o que estamos a fazer põe a nu, espero, o carácter
aberrante deste mundo viciado num excesso de abundância que não serve a
criação. Nos grandes criadores — Comme des Garçons, Yohji Yamamoto,
Azzedine Alaïa… — nunca é o dinheiro que está no coração da motivação.
Interessa-me mostrar um estado da moda que não tenha nada a ver com a
indústria nem com o dinheiro; um estado que corresponda a zero
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economia.” ×
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Couture Essentielle será esse grau zero: quatro modelos no fim da sua
própria história enquanto corpos de moda, alguns pedaços de tecido, não
muito texto, bastante silêncio. “Quando comecei a fazer as minhas
performances, tinha muito mais na cabeça o Martin Margiela do que
qualquer coreógrafo. Ele fazia desaparecer toda a comunicação para fazer
aparecer a roupa, eu quero fazer desaparecer a roupa para fazer aparecer o
pensamento.” É dessa história, uma história da moda, que Olivier Saillard
descende, não das artes visuais ou performativas. Claro que lhe interessam,
responde-nos, “todos os artistas que trabalharam sobre o vestuário”, como
Christian Boltanski nas funéreas esculturas em que “evidencia as formas de
desaparecimento de uma peça de roupa com incrível eloquência”, Jérôme Bel
em Shirtologie (1997) ou Trisha Brown em Floor of the Forest (1970); mas
sempre teve “o cuidado” de não inscrever o seu trabalho nessas disciplinas:
“Não quero que isto se torne dança nem teatro, não quero que as modelos
façam outra coisa que não o seu papel de modelos; quero que isto permaneça
dentro do território da moda, que é verdadeiramente aquilo que eu amo, ou
pelo menos no território do vestuário e da sua memória.”
Também vem daí o seu fétiche pelas “modelos envelhecidas” e pela memória
que os seus corpos encerram, mais do que por actrizes — “à parte a Tilda
Swinton e a Charlotte Rampling [juntou-as em Sur­Exposition (2016)], ou a
Isabelle Huppert”, com quem gostaria de trabalhar, a partir de vestidos da
colecção permanente do Palais Galliera, numa visita encenada à memória
das míticas Soeurs Callot, de que é descendente directa. “Acho que fazemos o
nosso trabalho de museu quando fazemos estas coisas. Mais do que quando
mostramos as peças em manequins por trás de vitrinas”, sublinha. O seu
museu ideal, aliás, é parecido com o Museu Efémero da Moda que vai
inaugurar em Julho no Palácio Pitti, em Florença, onde as peças estarão
expostas com o mínimo de aparato (“sobre as costas de uma cadeira,
espalhadas pelo chão, penduradas num cabide…”), o mesmo mínimo aparato
que levaria para um desfile convencional, se o convidassem. “Adoraria fazer,
no final de uma semana da moda, um desfile com todas as modelos que
tivessem desfilado, mas nas suas roupas normais, como se passassem na rua,
sem maquilhagem, sem penteados. Nalguma altura terei de defrontar o
inimigo
no seu próprio terreno.”
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O Ípsilon viajou a convite do Teatro Municipal do Porto
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