40º Encontro Anual da Anpocs ST29 Religião, política e direitos na contemporaneidade Abominações do Levítico II: judeus, ortodoxos e gays, os dilemas de uma identidade fragmentada Marta F. Topel 1 Introdução Nas últimas décadas, novos modos de compatibilizar religião, gênero e política se incrementaram e diversificaram entre os judeus, contestando a hetero-normatividade do judaísmo. Assim, se bem que as correntes liberais do judaísmo aceitem as identidades LGTB, a ortodoxia continua olhando como abominaçãoa homossexualidade masculina. Entretanto,a condena de identidades LGBT não se expressa de forma linear na ortodoxia judaica, seja entre as lideranças do grupo, seja entre seus membros. O objetivo deste trabalho é: 1) compreender as reivindicações dos judeus ortodoxos para terem legitimadas suas identidades LGBT qua ortodoxos, isto é, sem ter de trocar a ortodoxia por uma versão liberal do judaísmo, e 2) analisar o fenômeno conhecido como pinkwashing israelense, tão debatido nos últimos anos. Os dois objetivos se entrecruzam uma vez que, por não existir separação entre igreja e Estado em Israel, a legitimação das reivindicações LGBT e a construção de uma identidade homonormativa devem confrontar-se com as lideranças religiosas por um lado, e com as instâncias civis por outro. Na última década, comunidades ortodoxas LGBT têm sido criadas em Israel e nas diásporas judias com o objetivo de incluir gays, bissexuais e transexuais no universo ortodoxo. Estas comunidades atuam basicamente no ciberespaço, mas há encontros pessoais entre seus integrantes além de existirem alguns grupos de ativistas nos Estados Unidos e Israel, e sinagogas liberais que aceitam indivíduos que assumem uma identidade LGBT entre seus membros, além de existirem rabinos gays e rabinas lésbicas liderando algumas delas. A homossexualidade nas fontes judaicas Segundo os codificadores judeus da Idade Média, considerados a autoridade exegética soberana no judaísmo ortodoxo, na Bíblia hebraica a condenação da homossexualidade aparece sempre no contexto de outros atos 2 abomináveis, como o incesto, o adultério e manter relações sexuais com animais (Lev. 18:16-20). Ao mesmo tempo, os codificadores salientam que o termo abominação qualifica condutas que nada têm a ver com a sexualidade, como comer algum alimento proibido pela Lei judaica (Deut. 14:3) e adorar ídolosdas nações conquistadas pelos israelitas (Deut. 7:25-26). O denominador comum dos atos considerados abomináveis é a sua atribuição aos povos pagãos e, consequentemente, a sua definição como a antítesedos valores e ideais do monoteísmo judaico. Assim, o homossexual se distancia do povo de Israel e do mandato de pureza exigida dele. Nessa linha, não há como não mencionar o célebre Pureza e Castigo de Mary Douglas, que em sua análise das leis dietéticas judaicas, conclui que elas têm como objetivo separar os judeus dos outros povos. O mandamento do Deus de Israel de transformar o Antigo Israel em um povo de sacerdotes, isto é, em um povo sagrado, exige de cada indivíduo e do grupo como um todo manter-se separados dos outros povos, de suas práticas e rituais. As análises de Mary Douglas foram inovadoras em demonstrar o princípio de que toda religião é, simultaneamente, um sistema classificatório, uma cosmologia e uma instância moral. Outraquestão fundamental se relaciona com a função social das relações homossexuais para o cumprimento do primeiro mandamento instituído pelo Deus de Israel: “Frutificai e multiplicai-vos” (Gen. 1: 28). Praguer (2009) destaca que o primeiro mandato que Deus impõe a Adão é “Não é bom que o homem esteja só”(Gen. 2:18), salientando que para resolver a solidão do homem, Deus não criou outro homem ou uma comunidade de mulheres: a solidão do homem não era resultado de não estar com mais pessoas, mais de não estar com uma mulher. As fontes judaicas medievais esclarecem que, no caso da homossexualidade, o termo abominação indica “extravio” no sentido de que o homossexual desobedece ao mandamento Divino. É importante salientar que o judaísmo nunca estimulou ou aprovou o ascetismo, a vida monástica e o celibato. A união entre homem e mulher é o ideal de amor e de sexualidade, cujo objetivo é a formação da família, instituição medular na religião e cultura judaicas,uma vez que a família, e não o indivíduo, constitui o alicerce da sociedade. Prager (2009) explica que pelo fato de o judaísmo ter como ideal 3 sexual o amor marital, todas as outras formas de condutas sexuais constituem um desvio em relação a ele. Além do mais, existe um continuum dos comportamentos sexuais desviados que se inicia no sexo pré-marital e continua no celibato, adultério, homossexualidade, incesto e bestialismo. Assim, por exemplo, o homem solteiro não tem o mesmo status que o homem casado e sua vida como judeu é considerada incompleta do ponto de vista da ortodoxia. A mulher solteira, por sua vez, é alvo de compaixão. Mas se a homossexualidade masculina foi condenada pelos autores da bíblia e pelos exegetas judeus –e continua sendo condenada entre os ortodoxos-, a homossexualidade feminina sequer é mencionada na bíblia. Por mais de três mil anos o lesbianismo foi alvo de pouco interesse nos textos e nas comunidades judaicas. Segundo Alpert (2009),existem algumas tentativas de responder a isto, mas nenhuma delas é conclusiva. Em primeiro lugar, o autor assinala o fato de que a conduta homoerótica entre mulheres não implica desperdiço de sêmen1, o que levou a que o lesbianismo não fosse enquadrado na categoria de ato sexual. Segundo, constituindo o Antigo Israel uma sociedade eminentemente patriarcal, nada que fizessem as mulheres sem os homens despertava demasiado interesse. Terceiro, os redatores da bíblia pouco sabiam sobre as relações homossexuais entre mulheres, razão pela qual não se expediram sobre o assunto. Quarto, a bíblia aceita o amor entre mulheres como uma situação normal, partindo do pressuposto de que elas não são conscientes e/ou completamente responsáveis pelos seus atos.Consequentemente, Maimónides define a homossexualidade masculina como um crime capital e o lesbianismo, como obscenidade. Finalmente, embora existam diferentes interpretações a respeito, a história de Sodoma e Gomorra destruídas pela ira Divina é um tópico extremamente difícil de ser reinterpretadopara gays e lésbicas que aspiram a um modus vivendi ortodoxo. 1 - Na religião judaica, a masturbação e o relacionamento sexual entre homem e mulher utilizando algum contraceptivo mecânico são categorizados como “desperdiço de sémen”, compreendido como o impedimento de gerar novas vidas judaicas. O “desperdiço de sémen” é uma transgressão grave da Lei judaica. 4 Identidades LGBT no universo ortodoxo: uma luta pletórica em paradoxos O grupo israelense Hod (Esplendor), criado em 2008, tem entre seus objetivos iniciar um diálogo público com os rabinos ortodoxos que leve em consideraçãoquestões haláchicas (relativas à Lei judaica), a fim de obter o reconhecimento pleno dos homens homossexuais como parte da comunidade religiosa. O grupo destaca que esse diálogo não pode ser mais protelado e negligenciado. Poucos dias depois de ter colocado seu website no ar, Hod estendeu suas atividades e apelou à comunidade ortodoxa para que reconhecesse os homens gays como parte dela. Uma carta foi enviada para vários rabinos, parlamentares de partidos religiosos, prefeitos, líderes comunitários e chefes de diferentes organizações de judeus observantes, destacando que só a ignorância e a falta de consciência levam ao ódio sem sentido contra os homossexuais dentro das comunidade ortodoxas2. Nesse mesmo dia, um operador do siteescreveu: “nossa intenção não é subverter Halachá”, salientando que “como todas as pessoas religiosas aceitamos as exigências rigorosas da lei da Torá e de bom grado nos sacrificaremos no altar de Deus”.3 Um caminho interessante para conhecer as reivindicações de homens e mulheres homossexuais para serem aceitos nas comunidades ortodoxas é o documentário Tembling before G-d4. Nele o espectador se depara com o dilema que assola gays e lesbianas que, ao mesmo tempo em que demonstram um grande respeito e devoção pelo judaísmo ortodoxo, devem confrontar-se com as sanções impostas pelas lideranças ortodoxas aos homossexuais. Esse fato os obriga a viver uma dupla vida, isto é,“ficar no 2 http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3504952,00.html http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3504952,00.html 4 Documentário de 2001 dirigido pelo norte-americano Sandi Simcha Dubowski, ele mesmo gay e religioso. O filme teve grande repercussão e recebeu várias nominações em prestigiosos festivais internacionais, ganhando o prêmio de melhor documental nos festivais de Berlim e Chicago em 2001. 3 5 armário” ou afastar-se das comunidades ortodoxas com todas as consequênciasdecorrentes dessa situação5. Ao longo do documentário, vemos muita frustração entre mulheres e homens ortodoxos que tiveram de abandonar seus lares e comunidades eforam humilhados por seus rabinos, mas mesmo assim, fazem uma desesperada tentativa de conciliar o que pareceria irreconciliável: sua identidade sexual e suaidentidade ortodoxa. No filme são apresentados casos em Israel e nos Estados Unidos. O caso de um casal de lesbianas de Nova Iorque, que longe de suas famílias vivem uma vida ortodoxa é emblemático da situação dos homossexuais ortodoxos. Ambas têm certeza de que seguir estritamente os rituais judaicos e as boas ações6 que realizam neste mundo lhes abrirá as portas ao mundo vindouro. Essa escolha pareceria ser o único modo de se revelarem contra a misoginia e a homonormatividade ortodoxas e as injustiças decorrentes dela. Entretanto, o foco central do documentário é David, um jovem ortodoxo gay norte-americano,cuja trajetória revela ao espectador o difícil caminho de quem aspira a um arranjo a priori impossível: ser “judeu-ortodoxo-gay”. A história de David é quase uma quimera para ser aceito pelo Deus de Israel e a Torá que Ele revelou a Moisés, mas na qual está escrito: “O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e seu sangue cairá sobre eles (Lev. 20:13). Depois de compartilhar seu segredo com seu rabino em Israel, David é aconselhado a voltar para os Estados Unidos e realizar uma terapia reparadora com um psiquiatra recomendado por ele. O tratamento não dá resultado e, anos mais tarde, convencido de que é impossível mudar sua condição gay, David volta a Israel e se encontra com seu rabino, que o recebe calorosamente. À pergunta de se o rabino, ciente do fracasso da terapia, lhe daria o mesmo conselho, o rabino hesita, responde negativamente e acrescenta que depois de saber o nível de sofrimento ocasionado a seu discípulo e a ineficácia das terapias indicadas, não tentaria transformar David 5 Para compreender a pletora de obstáculos que devem enfrentar os dissidentes da ortodoxia judaica, cf. Topel, M. A ortodoxia judaica e seus descontentes: dissidência religiosa no Israel contemporâneo. 6 - Ao longo do filme o espectador assiste Leah e Malka se prepararem para o shabat (descanso sabático cuja celebração se realiza através de diversos rituais) seguindo os costumes ortodoxos. 6 em heterossexual. Qual é, então, a soluçãoproposta pela ortodoxia para David, homossexual que aspira a continuar sendo um judeu obserante? Tendo como base as fontes judaicas o rabino explica que Deus não coloca um fardo mais pesado daquele que o homem é capaz de suportar, aconselhando David a viver em celibato7. As pesquisas de Shokeid (1995) e Schnoor (2006) sobre os percursos de indivíduos gays em sinagogas norte-americanas e canadenses8 revelam que por diferentes razões, esses indivíduos preferem fazer parte de sinagogas tradicionalistas e ortodoxas em lugar de participar de sinagogas liberais que abrem suas portas para pessoas com identidades LGBT. Entre os depoimentoscolhidos pelos antropólogos, o fato de “se sentirem em casa” nas sinagogas mais tradicionalistas é a causa que justifica essa escolha. Desses dados é possível concluir que ser ortodoxo e gay implica estar de acordo com o caráter autoritário da ortodoxia, aceitar seu componente misógino e identificarse com o espectro mais conservador dos judeus na esfera política9. Homonacionalismo e pinkwashing: monopólio israelense? Nos últimos anos, em diversos fóruns LGBT e queer internacionais se debateu o pinkwashing israelense, criando atritos entre diferentes grupos que apoiam e discordam da participação de delegados israelenses10. Os defensores do boycott aos representantes de Israel justificam seu posicionamento aludindo à propaganda dos governos israelenses que manipulam o liberalismo existente nesse país com os homossexuais para defender Israel como o único Estado democrático do Oriente Médio. O Pinkwashing israelensese expressa numa política exterior que salienta o liberalismo do país vis-à-visas sociedades homofóbicas muçulmanas e árabes, 7 - Para uma análise aprofundada do filme Trembling before G´od, cf. Topel (2010). - Nos Estados Unidos, que tem a maior diáspora judaica, existem várias sinagogas LGBT, além de grupos que criaram espaços de estudos religiosos, cujo objetivo é prover apoio e informação a judeus ortodoxos LGBT para reafirmarem de modo positivo a suas identidades judaico-ortodoxa e gay. 9 - É importante salientar, entretanto, que indivíduos gays desertam das fileiras da ortodoxia por essa causa. Cf. Topel, 2011. 10 - Dados precisos sobre o boycott a grupos israelenses LGBT se encontram no artigo de Jason Ritchie, 2015. 8 7 principalmente, a Autonomia Palestina e o Irão11. Em outras palavras: segundo os Pinkwatchers, os governos israelenses fazem uma propaganda do país apresentando-o comouma sociedade liberal e tolerante no afã de apagar a violação dos direitos humanos nos territórios ocupados. Antes de dar início à discussão, é necessário mencionar alguns dados sobre a situação dos indivíduos israelenses que se enquadram em alguma identidade incluída na sigla LGBT. As relações entre pessoas do mesmo sexo foram legalizadas em Israel em 1988, embora a lei contra a criminalização da sodomia começasse a vigorar a partir de uma decisão judicial de 1963. Israel tornou-se o primeiro país asiático em reconhecer a coabitação não registada entre casais do mesmo sexo e,em 1992, qualquer discriminação em razão da orientação sexual foi proibida. Uma decisão judicial de 2008 autorizou a adopção conjunta por casais do mesmo sexo, e gays e lésbicas estão autorizados a servir abertamente noexercito. Pesquisas recentes indicam que a maioria dos israelenses apóia o casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Por sua vez, Tel Aviv tem sido frequentemente referida por editores de guias turísticos como uma das cidades gay mais amigável do mundo, famosa pela sua parada anual e pelas praias gays, o que lhe fez ganhar o apelido “a capital gay do Oriente Médio”. Ziv (2010: 540) resume a imagem projetada pela comunidade LGBT israelense ao mundo heterosexual como a de homens e mulheres profissionais que serviram no exército, mantêm relações afetivas duradouras e costumam ter filhos. Isto é, pessoas que seguem o modelo heterosexual de respetabilidade condizente com os valores israelenses, nos quais a maternidade e o exército são pilares fundamentais. No que diz respeito aos indivíduos gays árabes com cidadania israelense, eles gozam dos mesmos direitos, apesar de serem severamente 11 - No artigo “Israel and Pinkwashing” publicado no New York Times em 22 de novembro de 2011, Sarah Schulman, ativista no movimento de boycott ao Pinkwashing israelense, traz os seguintes dados: “In 2005, with help from American marketing executives, the Israeli government began amarketing campaign, “Brand Israel,” aimed at men ages 18 to 34. The campaign, as reported byThe Jewish Daily Forward, sought to depict Israel as “relevant and modern.” The governmentlater expanded the marketing plan by harnessing the gay community to reposition its globalimage”. 8 punidos em suas comunidades caso manifestem a abertamente a sua identidade sexual. Por outro lado, a despeito das restrições cada vez mais rígidas para a entrada de palestinos no território israelense, com a decorrente repressão daqueles que conseguem burlar os postos de controle, Tel Aviv continua sendo um polo de atração para os palestinos que se identificam como LGBT12. Esses dados mostram a complexidade da situação israelense e nos levam, inevitavelmente, a pensá-la a partir da intersecionalidade, isto é, a partir de uma perspectiva que leve em consideração as variáveis nacionalidade, cidadania e identidade sexual.Aintersecionalidade destaca as maneiras em que múltiplas dimensões das relações socialmente construídas, a exemplo de raça, classe, gênero, capital, religião e corpo interagem, configurando diferentes níveis de desigualdade social(Crenshaw, 1989). Ser mulher negra implica uma discriminação maior que ser mulher branca; no caso que nos ocupa, ser judeu israelense gay é diferente do que ser árabe israelense gay ou ser palestina e lesbiana. Como fora mancionado, Tel Aviv é considerada um paraíso gay, mas nesse paraíso –como em outros paraísos- no entram todos com a mesma facilidade, e alguns nem sequer conseguem entrar. A partir dessa constatação, é relevante trazer para a discussão os conceitos homonacionalismo e homonormatividade, apesar das críticas das quais o primeiro tem sido alvo nos últimos anos pelo reducionismo com o qual é utilizado. Puar (2013: 337) define o homonacionalismo como uma categoria analítica para apreender o Estado moderno no qual se observa uma mudança histórica significativa: a entrada em cena de alguns corpos homossexuais considerados dignos de serem 12 - No começo do longo Relatório da Faculdade de Direito da Universidade de Tel Aviv, assinado por Michael Kagan & Anat Ben-Dor, intitulado: Nowhere to Run:Gay Palestinian Asylum-Seekers in Israelencontramos um resumo desta realidade: “Gay Palestinians are caught in the middle of the Israeli-Palestinian conflict. They are persecuted in the Occupied Territories by militant groups, Palestinian security forces and members of their own families. When they flee, they are hunted inside Israel by police who seek to return them to the territories from which they have escaped, usually forcing them to live in hiding and eventually run away again” (2008:5) 9 protegidos pelos estados nacionais. A autora descreve o homonacionalismo como uma homonormatividade de cunho nacional em cujo quadro entidades gays “domesticadas” fornecem munição para o fortalecimento do projeto nacionalista. Como conceito, o homonacionalismo ganhou força depois dos ataques de 11 de setembro e o recrudecimento da guerra ao terror, sendo utilizado para descrever diferentes situações em países ocidentais. Puar (2013) acrescenta que na atualidade, o Estado não é exclusivamente heteronormativo, mas, também, homonormativo. A discussão em torno do homonacionalismo tem como objetivo destacar que o homosexualismo já não é visto como ameaça à segurança do Estado, mas como um corpo integrado a ele. Finalmente, o homonacionalismo e a homonormatividade são consideradas condições necessárias para o desenvolvimento de um processo de Pinkwashing. É interessante salientar que se bem o Pinkwashing seja considerado monopólio israelense, principalmente pelas diferentes mídias e por movimentos sociais que abraçam a causa palestina e por grupos que defendem o BDS, ele nasceu como subsídio para definir diferentes países da Europa nos quais a política de direitos LGBT está integrada à direita e à islamofobia,idealizadoras de campanhas homossexuais conservadoras que distinguem entre os “bons cidadãos” e aqueles que são percebidos como uma ameaça aos valores ocidentais (Gross, 2015: 117). Historicamente, o movimento LGBT em Israelfoi apoiado pelo partido Mertez, representante da esquerda do país, e só depois do atentado em um clube gay em 2009, o movimento recebeu apoio de partidos políticos de centro e de direita. Por sua vez, se bem que o movimento LGBT israelense esteja controlado por homens israelenses asheknazitas, na última década houve dissidências de grupos autodefinidos queer quedesafiam a ordem normativa do movimento desconstruindo a sua estrutura baseada em identidades essencialistas. Performático e transgressor, na parada gay de 2001, o grupo Kvisá Shchorá se separou das fileiras principais e seus membros ergueram cartazes, entre os quais se destacou: “não há orgulho na ocupação” e provocadoras inscrições nos corpos dos ativistas, a exemplo de: “somos as 10 putas de Arafat”, “inimigos de Israel”, “feministas pervertidas”, “transgênero, não transferência”, “Palestina Livre”13 entre outros. Duplamente marginais, pelas suas reivindicações e pelo seu número, a lógica dos grupos queer israelenses é formulada em termos de uma relação sistemática entre diferentes tipos de opressão. Esse tipo de demonstração revela a recusa dos grupos queer em separar políticas sexuais de políticas nacionais (Ziv: 2010). De modo frontal, a partir do ano 2000 a política queerisraelense se caracteriza pela tentativa de substituir categorias de identidade hegemônicas pela fluidez e hibridismo de quaisquer identidades e pela rejeição de identidades binárias monolíticas (Gross, 2015: 125). A intersecionalidade existente no universo LGBT israelense se caracteriza pelas seguintes situações: a liberdade da qual gozam os grupos LGBT e queers judeus, a complexa realidade de gays e lésbicas árabes com cidadania israelense e, finalmente, a trágica situação dos palestinos identificados com uma das identidades LGBT que moram na Cisjordânia, na Franja de Gaza e em Jerusalém oriental. No que diz respeito aos árabes e aos palestinos, membros de ambos os setores procuram Tel Aviv como refúgio para expressar abertamente sua identidade sexual. Entretanto, principalmente no que diz respeito aos palestinos dos territórios ocupados, a situação é extremamente complexa, já que são alvo de dois modos de repressão no que concerne à sua identidade. Em Israel são perseguidos por serem palestinos e na Autonomia palestina são silenciados e humilhados por sua orientação sexual. Nesse cenário, mesmo com todas as represálias das quais são objeto, milhares de palestinos identificados como LGBT procuram asilo em Israel. No detalhado relatório realizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Tel Aviv, com o título de Nowhere to Run:Gay Palestinian Asylum-Seekers in Israel, os autores assinalam que na Clínica dos Direitos dos Refugiados da Universidade de Tel Aviv, a partir de 2002 foram assistidos palestinos à procura de asilo político em Israel. Os autores do relatório explicam com as seguintes palavras a sua missão: 13 - Cf. Amalia Ziv “Performative Politics in Israeli Queer Anti-Occupation Activism”, 2010. 11 Nós publicamos nossos resultados primeiro, porque acreditamos que é essencial que os ataques contra homens homossexuais nos territórios ocupados sejam devidamente divulgados e, segundo, porque acreditamos que os indivíduos que poderiam ser torturados ou assassinados não devem ser forçados a esperar que a paz chegue ao Oriente Médio para ser consideradosaptosa pedir asilo em Israel... Nosso interesse neste assunto surgiu através de palestinos que se refugiaram em Israel. Embora as organizações palestinas nos territórios ocupados devam carregar com a primeira responsabilidade por perseguir os palestinos homossexuais, nosso principal interesse é focar a resposta de Israel para aqueles que escapam e procuram segurança no outro lado da Linha Verde (Kagan & Ben-Dor2008:7)14. Mas Israel não é só alvo para os palestinos gays que procuram asilo político, mas, também, um polo de atração no sentido de expressar abertamente a identidade sexualde milhares deles em espaços de lazer, fenômeno que se manifesta na visita a bares e boates gays em Tel Aviv e no conhecido bar Shushan, considerado um “oásis de tolerância em Jerusalém”. Outro dado relevante é que a ONG Al-Qaws, organização palestina LGBTQ que adere ao BDS contra Israel, organiza festas, não nos territórios ocupados15, mas nas cidades israelenses de Haifa e Yaffo, duas cidades emblemáticas da co-existência entre judeus e árabes israelenses. Não menos importante é o fato de a ONG ter sido criada no marco da Open House, organização israelense para os direitos LGBT em Jerusalém. No relatório mencionado, Kagan & Ben-Dor(2008: 11) trazem dados e depoimentos que revelam que centenas de palestinos identificados com alguma letra da sigla LGBT são pressionados a trabalhar como informantes 14 15 - Tradução do inglês da autora. Cf. site da ONG Al-Qaws: http://alqaws.org/news/Palestinian-Queer-Party?category_id=0 12 para ambos lados do conflito: para a polícia palestina e para as forças de segurança israelense, revelando a trágica situação dessas pessoas. Por sua vez, os grupos LGBT e queer da Autonomia Palestina, entre os quais se destaca Al-Qaws, fazem questão de salientar que sua preocupação central é a ocupação e não a homofobia existente na sociedade palestina além de rejeitar as políticas ocidentais em relação a grupos LGBT e queers(Puar 2015). No Electronic intifada, esta questão aparece entre as primeiras discutidas, expressada nos seguintes termos: ... a noção de sair do armário -ou a política de visibilidade- é uma estratégia que tem sido adotada por alguns ativistas LGBT no norte global devido a circunstâncias específicas. A imposição desta estratégia ao resto do mundo, sem entender o contexto, é um projeto colonial. Pergunte-nos, em vez disto, que estratégias de mudança social se aplicam a nosso contexto, e se a noção de sair do armário faz sentido para nós16. A modo de reflexão final A sociedade israelense, definida como uma sociedade de enclaves nacionais e étnico-religiosos -que também se manifestam geograficamente, a exemplo dos bairros ortodoxos, bairros seculares, cidades de judeus orientais, cidades e bairros de imigrantes anglo-saxões e russos, além da divisão mais radical entre espaços árabes e espaços judeus- é o cenário no qual encontramos as problemáticas analisadas nestas páginas. Todavia, não existe qualquer contato e/ou identificação entre judeus seculares LGBT e judeus 16 Cf. Eight questions Palestinian queers are tired of hearing IN The Electronic Intifada: https://electronicintifada.net/content/eight-questions-palestinian-queers-are-tiredhearing/12951Tradução da autora. 13 ortodoxos LGBT, da mesma forma em que, com exceções, é efêmero o contato entre judeus seculares LGBT e árabes e palestinos LGBT. Em relação aos judeus ortodoxos gays, apesar de sua condição ser um tabu nas comunidades ortodoxas, não há dúvidas em relação ao aumento desua visibilidade nas últimas duas décadas que se manifesta, principalmente, na quantidade de sites e blogs criados por homens ortodoxos gays, além de reivindicações pontuais entre os judeus ortodoxos que se identificam como LGBT em diferentes comunidades dos Estados Unidos. Documentários e filmes sobre a condição dos judeus ortodoxos LGBT (tanto sobre homens, como sobre mulheres) têm se multiplicado nos últimos anos. E se bem que eles sejam produzidos e dirigidos por pessoas seculares e seu público alvo sejam os judeus seculares, algum resquício dos mesmos consegue penetrar o supostamente infranqueávelgueto ortodoxo, criando discussões a respeito entre alguns segmentos e indivíduos nas comunidades ortodoxas. Simultaneamente, nos últimos anos diversos rabinos ortodoxos têm se pronunciado em relação ao papel dos homossexuais nas comunidades ortodoxas contemporâneas. O rabino mor da comunidade ultra-ortodoxa de Baltimore, por exemplo, afirmou veementemente que os homossexuais ortodoxos que não praticam a sodomia têm um papel importante na vida judaica. Tendo como base o pilar do judaísmo segundo o qual o judeu não é julgado pela sua orientação, mas pela sua ação, o mencionado rabino tem mostrado receptividade em acolher indivíduos gays nas comunidades ortodoxas. Segundo esse raciocínio, uma vez que só se proíbem as ações e não as inclinações, o judeu homossexual deve controlar suas açõesapesar de esta ser uma tarefa difícil. Por sua vez, Shmuel Kamenetzky, renomado rabino da Filadélfia, é contundente ao afirmar que as comunidades ortodoxas não podem mais ignorar o discurso em torno da homossexualidade e dos homossexuais. Além disso, o rabino afirma que é um dever criar uma atmosfera nas comunidades ortodoxas que permita que qualquer indivíduoprincipalmente os adolescentes- possa falar livremente sobre sua orientação sexual com pais e rabinos, e ser tratado por estes com “amor e compaixão” porque aqueles que lutam contra o mau instinto são vítimas inocentes 14 (Rapoport, 2012:33). Mas se o posicionamento do rabino Kamenetzky revela uma abertura na visão ortodoxa sobre a homossexualidade, o seu limite é claro e o conselho para os homens gays é a terapia reparadora. Na visão do rabino Kamenetzky, se todos os homens são capazes de superar adições sexuais como a adição à pornografia na internet, assim devem agir os homossexuais(Rapoport, 2012:35). . Também em Israel, alguns segmentos da ortodoxia têm mostrado maior receptividade no que diz respeito à homossexualidade feminina e masculina. Numa matéria do prestigioso jornal Ha´aretz de 2015, o rabino Daniel Sperber, defensor ativo de uma maior participação das mulheres nos serviços religiosos, afirma existir uma mudança nas atitudes da ortodoxia diante da homossexualidade. Esse novo olhar se reflete nos debates sobre o tópico em diversas comunidades ortodoxas que, décadas atrás, consideravam a homossexualidade um tabu. Mas se algumas correntes da ortodoxia israelense demonstram certa compaixão pelos homossexuais e até cogitam a ideia de uma inclusão de gays e lesbianas nas suas comunidades, o mesmo rabino alerta que o reverso também existe: uma abordagem agressiva sobre a homossexualidade e os homossexuais entre outras correntes que se expressou de modo trágico na morte de uma jovem lesbiana na parada gay de Jerusalém em agosto de 2015, como resultado de um ataque cometido por um homem ortodoxo17. Para Sperber, estas atitudes revelam uma possível ruptura entre ortodoxos liberais e ultra-ortodoxos em torno do tópico da homossexualidade. Diante do cenário descrito, no qual sobressai o desejo de homossexuais e lésbicas ortodoxos de permanecerem em suas comunidades, a primeira pergunta que assalta os judeus seculares é por que pessoas ortodoxas identificadas com alguma letra da sigla LGBT não abandonam a ortodoxia para fazer parte de alguma comunidade judaica liberal que aceita entre seus membros pessoas sem fazer quaisquer discriminações relacionadas à sua identidade sexual,permitindo-lhes manifestar abertamente a sua orientação sexual. Outra interrogação não menos importante é como e por que indivíduos 17 http://www.haaretz.com/israel-news/.premium-1.669680 15 gays ortodoxos –tanto mulheres como homens- escolhem uma forma de judaísmo que condena a homossexualidade, cuja matriz é patriarcal e que discrimina a mulher sistematicamente, proibindo-a de exercer funções na esfera pública. Uma resposta possível a encontramos na pesquisa de Shnoor (2006) que relata que os informantes que escolheram uma congregação judaica liberal, posteriormente a abandonaram por sentir-se estranhos em comunidades que exigem um compromisso menos estreito com o judaísmo e nas quais a liturgia é diferente; enfim: comunidades nas quais foi construída uma visão de mundo diferente daquela das comunidades ortodoxas. Mas a pesquisa de Schnoor (2006: 49) traz outra resposta ao mesmo interrogante que se relaciona com o sentimento de culpa dos atores sociais pela sua orientação sexual. Em vários depoimentos colhidos pelo antropólogo,os interlocutores afirmaram que a identidade judaica fica em primeiro lugar vis-à-vis a identidade gay. Por essa razão, continuar na ortodoxia e consumar os preceitos da forma mais estritaajuda os homens gays a purgar a vergonha e a culpa suscitada por sua orientação sexual. Um interlocutor ilustrou esta decisão ao mencionar seu objetivo de lograr um nível superior de espiritualidade, expressada em certa obsessão pelas leis dietéticas judaicas, pelo descanso sabático e por consumar os rituais das festas do calendário judaico da forma mais rígida possível. Disto se infere que os judeus LGBT ortodoxos se identificam com a ortodoxia da qual exigem uma única mudança: aceitar homossexuais e lésbicas como pares em suas comunidades, permitindo-lhes consumar todos os preceitos que cabem aos homens e mulheres observantes. Suas reivindicações se restringem à sua própria condição, sem demandas que a extrapolem. Divididos entre a sua obrigação com a Torá e sua orientação sexual, esses judeus aduzem que ambas foram dadas a eles pelo mesmo Deus. Entretanto e como fora mencionado, se bem que alguns rabinos ortodoxos estejam dispostos a aceitar os gays em suas comunidades, na maioria dos casos a exigência é o celibato, isto é, a condena a viver uma vida de solidão, sem a possibilidade de criar uma família que, como vimos, é o pilar do universo ortodoxo. No que diz respeito ao Pinkwashing israelense, acredito que a exposição e análise do fenômeno –ainda que sem entrar em todos os seus 16 desdobramentos- tenha mostrado a sua complexidade. É por esta mesma complexidade que as posições que levantam a bandeira do BDS e do Pinkwashing israelenseme parecem reducionistas, já que não é a partir de variáveis teóricas criadas em contextos diferentes ao israelense que se possa compreender a situação, muito menos, a partir de slogans. O reducionismo que se observa em alguns textos acadêmicos que descrevem a situação em Israel e na Autonomia Palestina e os alertas dos chamados Pinkwatchers desemboca em um reducionismo perigoso que pouco ajuda a compreender em profundidade uma situação que tem produzido numerosas injustiças das quais são objeto os palestinos LGBT e queers, além da tentativa cínica de relativizar o liberalismo existente em Israel com as comunidades LGBT e queers. No seu longo artigo “The politics of LGBT rights in israel and beyond: nationality, normativity, and queer politics”, Gross (2015: 117) salienta que a evolução da política dos direitos LGBT como parte de um projeto e ideologia nacionalistas, distanciada de uma agenda progressista, não é um fenômeno exclusivo de Israel. Mas o único país a ser boycotado por essa questão é Israel. Não é o caso de me estender aqui sobre a história da comunidade LGBT israelense. Entretanto, acredito importante destacar que apesar de existir o que se conhece como Pinkwashing israelense, a realidade é multifacetada e menos monolítica, exigindo mais do que slogans ou debates extremamente politizados e enviesados para apreendê-la. Consciente dessa situação, Jason Ritchie (2015: 621-622) defende a necessidade de um trabalho etnográfico para superar as distorções mencionadas ao afirmar: Utilizo o trabalho de campo etnográfico em Israel-Palestina com palestinos queer para sugerir que, seja o que for que o homonacionalismo nos diz sobre como e por que circulam imagens de um Israel gay-friendly –ou sua contrapartida, imagens da homofobia palestina- com tanta frequência em centros urbanos gay da Europa e da América do Norte, isto nos diz muito pouco sobre a realidade do dia-a-dia do queerness 17 em Israel-Palestina, e muito menos sobre a realidade da experiência dos palestinos. BIBLIOGRAFIA Alpert, R.T. “Lesbianism”. 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