Prova comentada - Sociologia

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Comentário geral
Bela prova de sociologia que a Universidade Federal do Paraná nos ofereceu neste ano. Questões
contundentes, em geral, com enunciados claros e concisos, que permitem, a um só tempo,
desenvolvimento de respostas sociologicamente balizadas, porém, com liberdade para reflexões
ensaísticas. Além disso, a bibliografia indicada, pela primeira vez para provas de sociologia, foi utilizada
de maneira produtiva, ou seja, oferecendo pontos de partida para as questões, mas sem comprometer a
resolução por parte de quem não teve chance de consultar as obras.
O Bom Jesus parabeniza a UFPR pela prova. Assim, todos nós, universidade, escolas e alunos, só têm a
ganhar.
01 - Weber concebe a Sociologia como uma ciência interpretativa, cujo objeto é a ação social, a
qual deve ser compreendida pelo sentido que lhe atribuem os atores sociais.
O que é a ação social para Weber?
Uma das poucas questões da prova que não permite respostas interpretativas. A sociologia weberiana
privilegia o indivíduo embebido em relações com outros. Desse modo, ação social, para Weber, é uma
espécie de comunicação, ou seja, uma ação individual orientada de acordo com as ações dos outros. A
resposta precisa parar aí. Se o enunciado não pede justificações ou exemplificações, qualquer descrição
dessa natureza é supérflua e, mais ainda, margem para erros desnecessários.
02 - Em 2010, o IPEA divulgou um estudo mostrando que trinta milhões de brasileiros saíram da
pobreza nos últimos anos no Brasil. Relacione redução da pobreza e mobilidade social.
A relação que a questão demanda é mecânica. Se a pobreza diminuiu, consequentemente, a riqueza ou,
no mínimo, o poder de compra, aumentou. Bastava ao candidato abordar tal relação nos termos do
conceito sociológico de mobilidade social, apontando que, para um aumento do poder de compra,
corresponde um processo de mobilidade social para cima, ou seja, vertical ou ascendente.
03 - “As classes sociais são agrupamentos que têm a mesma posição na estrutura de produção e
mantêm relações umas com as outras, produzindo e reproduzindo a estrutura social”. (ARAÚJO,
S.; BRIDI, M. A.; MOTIM, B. Sociologia um olhar crítico, p. 26)
Com base nessa afirmação, discorra sobre as relações entre capital e trabalho na sociedade
contemporânea.
Apesar da inspiração marxista da citação, o comando da questão permitia que o candidato desenvolvesse
reflexões amplas sobre a relação entre trabalho e capital. Uma boa maneira de tratar o assunto no
contexto contemporâneo é salientar a importância que a definição de classes moldada pela desigualdade
entre capital e trabalho ainda pode ter, a despeito dos argumentos de economistas que defendem a
facilidade da mobilidade social.
04 - Normalmente, quando se fala de socialização, se pensa no processo de interiorização de
normas e de comportamentos sociais pela criança. Durkheim afirma que a socialização primária da
criança, que ocorre nos primeiros anos de vida, é de responsabilidade da família, e a socialização
secundária se faz em instituições como a igreja e a escola.
Considerando que vivemos no século XXI, que outras instituições participam hoje da socialização
da criança? Cite duas e justifique sua escolha.
O processo de socialização sempre é contemplado nas provas da UFPR. Além da família, da escola e da
igreja, o candidato poderia abordar a influência que os meios de comunicação de massa exercem na
formação individual da criança. Uma resposta inteligente poderia relacionar a entrada da mulher no
mercado de trabalho com a mudança que tal processo causa nas relações familiares, deixando à creche
ou à TV a incumbência dos cuidados com a criança. Ademais, o Estado, em uma época fortemente
marcada pela colonização jurídica de todas as esferas da vida privada, também poderia ser citado. Ou
seja, uma questão que o aluno com hábito de leitura facilmente resolve.
05 - “O trabalho é o esforço para transformar a natureza e, nesse processo, o homem transforma a
si mesmo”. (Araújo, S.; BRIDI, M. A.; Motim, B. Sociologia um olhar crítico, p. 49)
Como aplicar essa afirmação no contexto da produção atual com grande predominância da
tecnologia?
Apesar do tema pertinente, o comando da questão poderia ser mais específico. É necessário estar atento
para não ultrapassar a tênue linha que separa a compreensão de um comando como este - que permite
liberdade de reflexão na resposta - daquele que só confunde e dificulta a expressão do candidato. A
grande predominância de tecnologia no contexto da produção atual altera a relação de transformação
recíproca entre trabalho, natureza e ser humano? Por um lado, o que se observa hoje não é nada mais do
que aquilo que já se anunciava no século XIX: máquinas como quintessência da produção capitalista de
massa e seu correlato no aspecto humano, a alienação. Por outro lado, a automação do processo
industrial, mais contemporâneo, desloca o local privilegiado do mercado de trabalho da fábrica para os
serviços. A natureza continua sendo explorada de maneira predatória e o ser humano, como nunca antes,
arregimenta tecnologias, sobretudo as de informação, como próteses para a vida cotidiana.
06 - O Estatuto da Criança e do Adolescente é um marco na luta pelos direitos civis desses
segmentos da população brasileira. Qual a relação entre direitos da criança e do adolescente e
democracia?
Considerando que a democracia efetiva se constitui através da garantia jurídica dos direitos e deveres
dos diversos grupos formadores da nossa sociedade, o estatuto da criança e do adolescente confere
legitimidade ao caráter plural das instituições políticas brasileiras. Sim, somos uma democracia, porém,
para que esse regime político torne-se padrão nas nossas relações institucionais e pessoais, estatutos
como o da criança e do adolescente desempenham papel fundamental enquanto documentos jurídicos
que cerceiam aspirações desrespeitosas aos nossos jovens.
07 - A partir do livro O que é Sociologia? (Martins, 2004), responda:
Em que circunstâncias históricas se deu o surgimento da sociologia?
Questão fácil, porém, necessária. A sociologia é um dos últimos desdobramentos da institucionalização
social da ciência moderna na Europa dos séculos XVIII e XIX, esse movimento histórico que se ensina
sob a rubrica de iluminismo. Com as revoluções burguesas e a consolidação do capitalismo, a ciência
torna-se a principal matriz explicativa do mundo natural e social. Ora, fazia-se mister, pois, elaborar uma
ciência que pensasse a radical transformação pela qual a Europa estava passando e que, ao mesmo
tempo, oferecesse resoluções para os nascentes problemas sociais de então. Se as engenharias estavam
fornecendo soluções para a demanda energética das indústrias, a sociologia poderia fazer o mesmo para
a pobreza e todas suas inconveniências (obviamente, aos olhos e narizes da burguesia). Portanto, a
resposta precisava ser cuidadosa: sim, a sociologia surge das revoluções burguesas, porém, em seus
primeiros passos teóricos, não era neutra, objetiva e tampouco questionadora dos fundamentos
capitalistas.
08 - De acordo com Maquiavel, em todas as sociedades existem duas forças opostas, sendo uma
aquela do povo de não desejar ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra, a de
quererem os grandes dominar e oprimir o povo. Ainda de acordo com Maquiavel, o problema
político estaria em encontrar mecanismos que tragam a estabilidade nas mencionadas relações. O
autor sugere duas respostas: Principado e República. Na perspectiva de Maquiavel, quando o
Príncipe é necessário?
Questão muito bem pensada. É ótimo ter Maquiavel avaliado em um aporte além das discussões sobre
fortuna e virtú ou aquela clássica questão sobre os fins que justificam os meios. Todavia, questão difícil,
que exigia um conhecimento profundo da obra desse renascentista. Maquiavel é um teórico do Estado, da
unificação/unidade e estabilidade do Estado. Tal assunto percorre a sua reflexão teórica como um todo,
tanto em "O Príncipe" como em "Os discursos sobre a primeira década de Tito Lívio". O que muda entre
os dois trabalhos são as formas de governo para organizar o Estado, República ou Monarquia. O
elemento que está na base da teoria maquiaveliana sobre o Estado é o conflito. A sociedade é
conflituosa, os indivíduos são ardorosos defensores de seus interesses e lutam sem tréguas contra
vontades opostas. A forma de evitar o colapso comunitário (a luta interminável de uns contra os outros) é
fazendo com que os indivíduos respeitem as leis, as regras válidas para todos que resguardem o
processamento adequado dos conflitos sociais inerentes a qualquer organização humana. Em situações
nas quais inexiste o Estado, ou com organizações políticas precárias, os indivíduos se movem por
paixões, ímpetos e seu próprio critério de procedimento, incluindo a força desmedida e a guerra. Nesses
casos em que os indivíduos não conhecem a importância das leis, o Príncipe deve ser o responsável pela
imposição dos parâmetros necessários para a manutenção da unidade do Estado, utilizando-se de
qualquer meio para tanto, inclusive a força. Portanto, o principado tem um caráter instrumental, com um
sentido pedagógico, de submeter os indivíduos a um tipo de conduta que não seja aquele do exagero, do
conflito sangrento, de justiça com as próprias mãos. O principado é a forma de governo que ensina os
homens a viverem sob as leis, sob certos costumes e ritos públicos. Se considerarmos o conjunto dos
trabalhos de Maquiavel, percebemos que o principado aparece como uma etapa necessária, mas
transitória, para se chegar à República. Nessa forma de governo, o que se observa é a primazia da lei,
guardiã das liberdades e dos limites dos abusos dos diversos centros de poder. Sob um governo
republicano, todos sabem os limites de suas liberdades e atribuições, os cidadãos, o monarca (cônsul), a
aristocracia (senado) e o povo (tribunos do povo em assembleia).
09 - Tomando como referência a leitura do livro Os clássicos da política (WEFFORT, 1991),
explique por que Marx propunha a revolução como mecanismo para a superação do sistema
capitalista.
Assim como na prova anterior, na qual a UFPR cobrou seu conceito de ideologia, Marx e sua concepção
de revolução. A mudança social se inscreve na análise marxista como corolário do antagonismo de
classes de fundo econômico. A classe que detém os meios de produção explora a classe que, para
sobreviver, precisa trabalhar nesses mesmos meios. Contudo, ao longo da história, a classe trabalhadora
percebe que está sendo explorada, conscientiza-se de sua condição e parte para a luta ideológica e
física. É fatal, segundo o autor, a mudança de estrutura social a partir dessa luta. No Manifesto
Comunista, Marx e Engels defendem que a burguesia mudou a história assim, compreendendo a
exploração que sofriam sob o jugo da sociedade feudal dominada pela nobreza e, com isso, realizando as
revoluções que instalaram o capitalismo. Porém, entendem que chegou o momento (1848, quando o
Manifesto foi publicado) de o operariado realizar a mesma conscientização, logo, a mesma transformação
social e, portanto, fazer a roda da história girar do Capitalismo para o Comunismo. A sutileza da boa
resposta está em discorrer acerca da análise marxista sobre a revolução, e não sobre o formato que o
regime comunista teria para o autor.
10 - Em seu sentido mais amplo, cultura implica a transmissão de conhecimento, crença, arte, leis
e costumes. De acordo com Laraia, situe o conceito de cultura em relação à ideia de aquisição
inata, transmitida por mecanismos biológicos (LARAIA, R. de B. Cultura um conceito
antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008).
A antropologia, uma das disciplinas das ciências sociais, defende que cultura é, sempre, um domínio
social e simbólico relativamente autônomo frente ao registro biológico. Aliás, boa parte dos antropólogos
argumenta que a cultura conforma as características biológicas do indivíduo, como Laraia discorre
profusamente em seu livro. Portanto, uma boa resposta abordará a cultura enquanto uma série de
mecanismos simbólicos, que são adquiridos pelos sujeitos ao longo de sua socialização em um grupo
específico, contrastando com a visão de cultura enquanto elemento de natureza. Afinal, para as ciências
sociais, o ser humano só é humano enquanto ser social.
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