Visualizar - Revista Interlinguagens

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ASPECTOS MORFOLÓGICOS DA CONSTRUÇÃO DA INTERLÍNGUA
Ms. Ruth Mara Buffa (UNICENTRO/I)
Resumo. O processamento da linguagem humana depende, inicialmente, do
conhecimento do léxico que a compõe. Sem a atribuição de significado às palavras de
um idioma, as relações semânticas, sintáticas e fonológicas não existiriam, porque tal
idioma seria incompreensível. Essa atribuição de significados depende, por sua vez, do
conhecimento da estrutura interna das palavras, do conhecimento de seus elementos
formadores, ou seja, de sua Morfologia. Este artigo, portanto, tem como objetivo de
apresentar e discutir as interfaces atuantes na construção da Interlíngua em relação ao
sistema morfológico da Língua Inglesa, por meio da revisão da bibliografia disponível.
Os estudos aqui apresentados estão centrados na análise dos conceitos de aquisição
linguística, levando-se em consideração os mecanismos que determinam a aquisição de
Língua Inglesa como Língua Materna (L1) por crianças. Os resultados obtidos
permitirão que se estabeleçam os parâmetros envolvidos na aquisição desse idioma
como Língua Estrangeira por falantes adultos e o papel da transferência nesse processo.
Palavras-chave: Língua Inglesa – Interlíngua – Interfaces – Transferência
Abstract. The human language processing depends, at first, on the knowledge of its
lexicon. If it weren’t assigned meanings to the words of a language, its semantic,
syntactic and phonological relations would not exist, being that language an
incomprehensible one. This meaning assignment depends, by its turn, on the knowledge
of the internal structure of the words and of the elements they are formed of, that is,
their Morphology. Thus, this paper aims to present and discuss some of the interfaces
which take part in the construction of the Interlanguage, concerning the English
Language, through a review of the available bibliographical corpus. The studies
presented here are focused on the analysis of the concepts of language acquisition,
taking into account the mental devices which rule the acquisition of the English
Language as a child’s native language (L1). The results obtained will allow the
establishment of the parameters involved in this language acquisition process as a
Foreign Language by grown-up ones and the role of transfer in it.
Key words: English Language – Interlanguage – Interfaces - Transfer
116
1. A Formação do léxico mental
Segundo Pinker (2002: 156), assim como a Sintaxe, a Morfologia é um sistema
com uma organização inteligente, e muitas das aparentes excentricidades das palavras
são produtos passíveis de sua lógica interna. As palavras têm uma anatomia delicada,
composta de partes chamadas morfemas, que se associam de determinadas maneiras. O
sistema de regras vocabulares é uma extensão do sistema de regras sintagmáticas Xbarra, no qual “grandes coisas substantivas são construídas a partir de coisas
substantivas menores, coisas substantivas menores são construídas a partir de coisas
substantivas ainda menores, e assim por diante” (p. 157).
A maneira pela qual as informações lexicais vão ser processadas pelo falante vai
depender, basicamente, de sua capacidade de decodificar os diversos elementos
presentes nas palavras. Este processo envolve a decomposição das palavras em seus
diversos afixos, até chegar à raiz, atribuindo-lhe um significado a partir da
recomposição das partes. Mas de que maneira esse processo simultâneo de
composição/recomposição ocorre?
Na percepção de Lowie (2008) existem duas possibilidades a serem estudadas:
(i) Quando se trata de palavras complexas, como por exemplo, em indefinidamente,
pode-se imaginar que o processamento morfológico ocorre por meio da análise
segmentada das partes que compõem a palavra, focalizando-se somente a raiz, que é
armazenada no léxico mental. Tal afirmação encontra respaldo na teoria psicolinguística
da “economia linguística”, segundo a qual não seria econômico armazenar todas as
palavras de uma língua separadamente, porque o resultado seria uma grande quantidade
de informações redundantes; processamento esse que seria evitado condicionando-se a
atribuição de significado somente à raiz. Este enfoque é bastante interessante na
produção de significados de línguas aglutinantes.
Mas a opção por esse tipo de processamento, segundo apontam algumas
pesquisas, seria eficiente na recepção e compreensão de significados, dificultando a
produção devido à complexidade das operações necessárias para tal nos níveis sintático,
semântico e fonológico. Contra esse tipo de processamento ainda pesam as anomalias
morfológicas encontradas em todas as línguas, e que fogem das regras de regularidade.
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(ii) Outra estratégia de processamento consistiria no oposto da primeira: o
armazenamento de uma listagem cada vez mais complexa de itens lexicais, em direção à
formação do léxico mental de uma língua. A opção por esse tipo de processamento
permitiria ao falante reconhecer e distinguir imediatamente o significado de palavras
como preferência e inferência, cujas raízes não possuem significado próprio, passíveis
de serem decompostas. Além disso, o armazenamento total facilitaria a construção de
uma realidade psicológica na qual o falante não precisaria distinguir entre palavras com
afixos reais, como em inconveniente, e palavras pseudo-derivadas, como em intrínseco.
Os estudos apresentados por Pinker (2002), por sua vez, apontam para um
processamento crescente de regras observáveis e aplicáveis a toda Língua Inglesa a
qual, segundo ele, apresenta uma “capacidade criativa patética, se comparada com o que
encontramos em outros idiomas” (p. 152). Por ser uma língua pobre em termos de
morfologia flexional - em que se modifica uma palavra para que ela se encaixe na frase,
como marcar um substantivo com –s para o plural ou um verbo com –ed para o passado,
a morfologia derivacional apresenta várias possibilidades. Como exemplo, ele menciona
o sufixo –able [-ável, ível], que transforma o significado de um verbo “fazer X” num
adjetivo com sentido de “capaz de sofrer a ação X”:
To learn (aprender) → learnable (aprendível)
To teach (ensinar) → teachable (ensinável)
To hug (abraçar) → huggable (abraçável)
Além disso, o inglês é livre para formar “compostos” criativos, como em toothbrush e mouse-eater, que aumenta em muito a quantidade de palavras possíveis, mesmo
em um inglês “morfologicamente empobrecido” (Pinker 2002: 154)
As possibilidades apresentadas acima constituem-se em parâmetros disponíveis
para as análises que se pretende desenvolver nos próximos capítulos, pois não são
argumentos fechados e mutuamente excludentes. Como Lowie (2008) afirma, “o
processamento morfológico mostra-se muito mais complexo do que uma simples
escolha de procedimentos, [...] e o mais provável é que haja uma interação de ambos
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para a formação de um modelo completo de produção e processamento de palavras
morfologicamente complexas”.
1.1 Morfemas e Palavras
Considerando-se que o foco deste trabalho é a aquisição da Língua Inglesa como
Língua Estrangeira por falantes adultos, julgo necessário definir claramente morfemas e
palavras do ponto de vista desse idioma, devido às suas particularidades. A definição de
morfema tradicionalmente aceita nos meios linguísticos é a de que ele seja a menor
unidade indivisível de significado em uma palavra, o que leva à suposição de que haja
uma estreita ligação entre forma e função, ou seja, cada morfema deveria apresentar
uma função e um significado.
Halle (1973) (apud Lowie, 2008, p.7), por exemplo, adota em seus estudos
morfológicos, uma definição de morfema que teria sua aplicação perfeitamente
justificada em casos como o da palavra brother, onde bro- e -ther são aceitos como dois
morfemas distintos, sendo que o último é visto como um afixo agrupado à raiz bro-, que
poderia ser igualmente afixado a raízes como fa- (father) e mo- (mother), conservando a
lógica de seu significado.
Mas, se o mesmo critério for aplicado a palavras como
prefer, infer, confer, transfer e refer, por exemplo, fica difícil estabelecer uma
regularidade de significado, para o elemento –fer como morfema. Ainda que se possa
reconhecer o significado do elemento precedente a –fer, não é possível atribuir a ele um
significado consistente.
Katamba (1993) (apud Lowie (2008, p.8) sugeriu a seguinte definição para
tentar resolver essa discrepância: “O morfema é a menor diferença perceptível na forma
de uma palavra que remete à menor diferença entre o significado de uma palavra ou
frase ou na estrutura gramatical”. Mas tal definição, além de não esclarecer a função dos
elementos formadores da palavra brother, também não dá conta da amplitude da
produtividade dos afixos presentes no léxico.
Em relação à definição de palavras, as divergências também são grandes.
Qualquer falante de qualquer idioma conhecido e elaborado pelo gênero humano é
capaz de identificar emissões sonoras que podem ser reconhecidas como “palavras”, por
serem elas a base da comunicação. Ou, segundo Spencer (1991, apud Lowie (2008)), as
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palavras podem ser definidas sintaticamente como as menores unidades que possam
carregar significados em si mesmas, ou seja, “formas livres mínimas”. Mas,
culturalmente, ocorrerão divergências quanto à sua classificação, principalmente pela
percepção fonológica que os falantes têm delas ou, até mesmo, pelo uso que fazem de
certas expressões da língua. Lowie (2008) cita o exemplo da expressão all right, em
inglês, que pode gerar dúvidas em falantes da Língua Inglesa ao classificá-la como
sendo formada por duas palavras ou uma só (a qual equivaleria à expressão toda). Outro
problema sintático surge quando expressões compostas traduzem um significado
próprio, totalmente ausente quando seus elementos constituintes são analisados
separadamente, como em sister-in-law. O critério sintático, por si só, não garante a
lexicalidade do vocábulo.
Existe, também, a possibilidade de análise segundo critérios semânticos, mas as
ressalvas à sua aplicação levam igualmente a ambiguidades. Segundo Lowie (2008),
geralmente as palavras não são semanticamente transparentes, ou seja, não se pode
definir “palavras” como unidades de conteúdo semântico uma vez que as expressões
idiomáticas também podem ser assim classificadas, em inglês. Lyons (1991, p.77)
também levanta essa questão a partir de outro viés: quantas palavras há em um idioma?
Se considerarmos a palavra como unidade mínima de significado, as formas derivadas
do verbo ‘sing’, como sing, sings, singing, sang, sung são palavras distintas; mas
também podem ser consideradas somente como formas diferentes de uma mesma
palavra.
Uma saída possível para resolver tais ambiguidades terminológicas parece ser
consenso em Lyons (1991) e Lowie (2008), ao sugerirem a adoção de uma terminologia
menos confusa. Ambos propõem que seja adotado o termo “formas vocabulares” em
casos como o do verbo sing, mencionado acima- uma vez que também são palavras-, e
que se passe a chamar de “lexema” as formas que dão origem a outras realizações,
diferenciadas destas por sua notação capitalizada. Assim, SING seria o lexema de
origem de todas as outras realizações conhecidas. Esse olhar especializado sobre a
classificação convencional leva, por conseguinte, a uma nova distinção entre flexão e
derivação, uma vez que o que se convencionou definir como paradigmas flexionais
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passam a ser vistos como formas vocabulares de um mesmo lexema, enquanto que a
derivação cria novos lexemas (Lowie 2009).
Lyons (1991) parte da conceituação de lexema para distinguir mais claramente a
sintaxe da flexão e, consequentemente, a sintaxe da morfologia. Segundo ele, a sintaxe e
a flexão são complementares na determinação da gramaticalidade das sentenças: a
sintaxe especifica como os lexemas se combinam uns com os outros em determinadas
construções e os paradigmas flexionais especificam quais formas do lexema devem
aparecer, em detrimento de outras.
Fundamentado nesse conceito, Lyons argumenta que a distinção moderna entre
sintaxe e morfologia acrescenta elementos à distinção tradicional entre sintaxe a flexão,
a saber: a morfologia passa a dar conta tanto da flexão quanto da derivação, tratando-as
por meio de regras que operam sobre as mesmas unidades básicas – os morfemas. Os
morfemas passam a ser, então, as unidades básicas da estrutura gramatical, ao invés das
palavras.
Pinker (2002) apresenta outro foco de análise para “palavra”, definindo-a como
um “objeto linguístico que, mesmo que seja construído a partir de partes segundo as
regras da morfologia, comporta-se como algo indivisível, a menor unidade no que diz
respeito às regras da sintaxe” (p. 180). Esse conceito pode ser complementado com a
idéia de que “palavra” refere-se a um fragmento memorizado, uma sequência de
material linguístico arbitrariamente associada a um significado particular, ou seja, um
dos itens da longa lista do dicionário mental. A esse conjunto de palavras que formam o
léxico mental, ele atribui o termo “listemas”, no qual estão incluídos não somente itens
lexicais, mas também as expressões idiomáticas, como analisado anteriormente.
Realizado esse aporte teórico para direcionar os estudos em foco, passa-se, a
seguir, para os processos de aquisição envolvidos na aprendizagem da língua.
2. Processos de aquisição morfológica da Língua Inglesa como L1
Os estudos disponibilizados em Lowie (2008) e Pinker (2002) serão amplamente
utilizados nesta seção para explicitar os mecanismos de aquisição de Língua Inglesa por
crianças falantes nativas. Espera-se, com a contribuição desses estudos, formular uma
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base de comparação com os mecanismos de aquisição de uma falante adulto não nativo
e o papel da transferência nesse processo.
Se considerarmos a rápida expansão lexical de crianças pequenas, que começam
a se expressar por volta de um ano de idade e, aos dois anos já possuem um léxico em
torno de 500 palavras, é possível supor que mecanismos poderosos e eficientes estejam
operando para que, por volta dos seis anos de idade esse vocabulário já compreenda
cerca de 14.000 palavras. No curso desse processamento as generalizações morfológicas
podem explicar essa rápida evolução. Segundo Lowie (2008), os estudos feitos com
crianças em fase de aquisição linguística demonstraram que três princípios de aquisição
são operantes: transparência, contraste e convencionalidade.
Quando confrontadas com situações em que é necessário nomear novos
elementos no ambiente, as crianças pequenas recorrem a itens lexicais conhecidos para
traduzir os novos elementos. Clark (1993 apud Lowie 2008) apresenta alguns exemplos
dessa “inovação”:
(a) ao brincar com uma colher e colocá-la dentro de um copo normalmente usado para
tomar sucos, a criança referiu-se a ela como “a colher- suqueira”, particularizando seu
uso;
(b) ao observar a figura de um bolo de aniversário com vela em cima, sugeriu que ele
fosse chamado de “bolo-velado”;
(c) ao ver uma meia remendada, ela perguntou se a mão havia “agulhado” a meia;
(d) ao ser indagado sobre o que tinha feito com os lápis, ela respondeu: eu “aponti” eles.
Essa tendência infantil de regularizar a língua é baseada principalmente na
transparência. Clark (1993) consegue demonstrar, com os exemplos acima, que a
transparência de significados e a simplicidade da forma, aliadas à produtividade, podem
indicar o caminho para previsões precisas sobre a aquisição da formação lexical entre as
línguas. O processo de composição de termos, que parece ser o mais utilizado pelas
crianças (como em colher-suqueira e bolo-velado), indica uma maior probabilidade de
criação de novas formas nessa fase linguística, do que os processos de afixação
determinados pela gramática formal das línguas. Nesse caso, tanto o componente
semântico quanto o fonológico são mais significativos pelo fato das raízes serem
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conhecidas. Além disso, ao contrário dos procedimentos de afixação, a composição
mantém as raízes das palavras fonologicamente intactas.
Clark (1981 apud Lowie 2008) ressalta, ainda, a importância da transparência na
composição, pelo “artifício” utilizado por crianças pequenas que ainda não dominam a
partícula –er (de agente, em inglês)para suprir essa lacuna de aprendizagem: ao invés de
realizar a construção reader (leitor), elas optam por formas como read-man (homem
que lê), ou formas mistas de composição e afixação. Outro exemplo fornecido por Clark
(1991) é a expressão puller wagon, na qual a inversão ainda não ocorre, mas a forma –
er foi generalizada como marca de agente, na significação da construção “alguém
puxando um vagão”, expressando uma nova composição. Os exemplos acima
demonstram que a transparência, evidenciada pela predileção pelas composições,
precedem a produtividade e a frequência, como a do sufixo –er, mesmo que ocorra com
frequência na fala. Pode-se imaginar que o processo de composição seja a primeira
regra morfológica que a criança adquire devido à manutenção da integridade semântica
das raízes.
As formações verbais, como em “agulhou” e “aponti” (correspondentes em
português) mencionadas acima, também parecem seguir parâmetros da transparência e
regularização em prol de uma produtividade maior da expressão. A forma adulta
“remendou” realmente não corresponde à ação executada, em primeiro lugar, por uma
agulha; e a forma “apontei” não segue a mesma simplicidade de comi ou bebi, formas
simplificadas e utilizadas em português pelas crianças ao iniciar seu treinamento com
verbos (veja-se senão: fazi, dizi, por fiz e disse). As formas simplificadas são comuns na
fala de crianças pequenas, segundo Clark (apud Lowie), e sua frequência de uso está
diretamente relacionada ao número de modificações necessárias para que a afixação
ocorra, incluindo aí as modificações fonológicas subjacentes.
A questão da produtividade, aliás, parece ser um fator extremamente relevante
para a aquisição da morfologia, por estar diretamente relacionada e ser, até mesmo,
dependente da transparência. Lowie (2008) destaca que os mecanismos utilizados para
uma formação lexical produtiva levam sempre a formações transparentes e não o
contrário: palavras complexas morfologicamente transparentes não são formadas de
maneira morfologicamente produtiva. Um outro fator a ser considerado é a definição de
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produtividade como o resultado das preferências ou convenções de uma comunidade de
fala em certo período do tempo, expressas conscientemente pelos adultos e que deverão,
necessariamente, ser adquiridas pelas crianças.
O processo fica mais claro se as características da produtividade são levadas em
consideração. Segundo Lowie (2008), os mecanismos produtivos para a formação de
palavras são caracterizados pela ocorrência de muitas formas diferentes com baixa
frequência simbólica. O input recebido pela criança terá, portanto, tipos diferentes de
formações produtivas com poucos índices, visto que a criança encontrará muitos
símbolos idênticos de tipos que são menos produtivos. Ele exemplifica o seguinte caso,
em inglês: o número de palavras diferentes contendo o sufixo –th será grandemente
superado pelas várias palavras diferentes contendo o sufixo –ness, o que levará a criança
a supor que o uso do sufixo improdutivo –th está limitado a um conjunto de raízes fixas,
enquanto que afixos produtivos como –ness podem ser anexados a (quase) qualquer raiz
(nesse caso, adjetivas).
O mecanismo exato das conclusões das crianças pode ser ainda explicado em
termos de suspensão e retomada da ativação. Lowie (2008) afirma que, uma vez que a
criança tenha percebido a produtividade relativa de diferentes mecanismos de formação
de palavras, ela será capaz de selecionar os afixos mais produtivos nos casos de
sinonímia: quando uma criança pode escolher entre mais de uma formação lexical
simples e transparente para expressar o mesmo significado, ela optará pela alternativa
mais produtiva.
2.1 Aspectos desenvolvimentais
2.1.1 O desenvolvimento do conhecimento lexical
Lowie (2008) aponta para uma análise gradual das formas e uma combinação
subsequente dessas formas a significados para explicar o desenvolvimento do
conhecimento lexical. Os estudos fornecidos por Barrett (1986 apud Lowie, 2008)
apresentam o seguinte exemplo: com a idade de um ano, um garotinho chamado Adam
gritava “dut” toda vez que batia com seu patinho de borracha (duck) na borda da
124
banheira, criando um vínculo dessa formação com um contexto particular de uso.
Somente em estágios posteriores ele começou a utilizar tal formação para se referir ao
patinho de borracha, mesmo que não estivesse na banheira. Mais tarde ainda, a palavra
“dut” foi usada para se referir aos pássaros aquáticos em geral (patos, gansos e cisnes)
para, gradualmente ser utilizada em relação somente aos patos.
Aitchinson (1994 apud Lowie 2008) divide esse processo em três etapas:
rotulação, empacotamento e construção de relações. Na primeira fase, a rotulação, a
criança classifica todos os elementos de seu ambiente a partir de sua própria percepção,
muitas vezes incompreensível para os adultos. Na próxima fase, a do empacotamento,
acontece a generalização dos elementos em protótipos que são colocados sob um rótulo
particular, criado pela observação expandida pela classificação. E, no estagio final, que
pode continuar ocorrendo durante a vida, as palavras são relacionadas a outras palavras,
formando expressões próprias e campos semânticos.
Essas observações, segundo Lowie (2008) levam à suposição de que os
aprendizes adquirirão e utilizarão palavras morfologicamente complexas recém
encontradas como se fossem um conjunto indistinto. No caso do inglês, se uma criança
for intensivamente exposta a um sufixo como -able, por exemplo, ela começará a
perceber os constituintes das palavras contendo essa partícula e irá, na sequência,
relacionar essa forma à sua categoria funcional e semântica. Mas, para que esse
processo se efetive, duas condições são ainda necessárias: a primeira é que as palavras
analisadas sejam completamente transparentes e regulares. Se não houver uma relação
clara entre o mecanismo de formação da palavra (afixação, composição) e seu
significado, nenhum reconhecimento de forma e função ou significado ocorrerá. Podese até mesmo imaginar que a transparência semântica seja um princípio operante de
destaque na aquisição da linguagem, à medida que as crianças (e também adultos
aprendizes de uma L2) constantemente buscarão por estruturas linguísticas
transparentes. Esse empenho justifica-se pela “necessidade de apropriar-se de um
código linguístico ideal ou o melhor possível, no qual cada unidade superficial,
especialmente os morfemas, esteja associada a um significado ou função clara, saliente
e razoavelmente consistente, e cada elemento semântico da sentença esteja associado a
uma forma distinta e reconhecível” (Langacker, 1977:10).
125
A segunda condição seria a motivação do aprendiz para adquirir um mecanismo
de formação de palavras próprio que estivesse pronto a para preencher lacunas lexicais
quando fosse necessário, de modo que ele pudesse expressar ou compreender conceitos
que, de outra forma, seriam incompreensíveis. Esta condição implica, por sua vez, que o
aprendiz esteja cognitivamente “pronto” para adquirir o novo conceito.
E essa prontidão muitas vezes é determinada pelo contexto de fala do qual a
criança participa, pois após várias tentativas de aplicação de um determinado elemento,
ela perceberá que a generalização não é adequada e acabará usando as formas prescritas
pela comunidade, abandonando a generalização e adotando as formas usadas pelos
adultos. Clark (1993 apud Lowie 2008) aponta que esse procedimento advém de dois
princípios pragmáticos: a convencionalidade e o contraste. Seus estudos demonstram
que as crianças tendem a rejeitar a co-ocorrência de sinônimos puros, porque sempre
farão a suposição de uma correspondência direta entre forma e significado (princípio da
transparência). Ela exemplifica esses dois princípios a partir de observações feitas com
algumas crianças de três anos que não conseguiram identificar mais de 50% das
palavras selecionadas, pronunciadas da maneira pela qual o faziam; mas identificaram
100% das mesmas palavras pronunciadas na forma que os adultos faziam. Quando a
criança é confrontada com uma forma adulta que não contrasta com sua própria
produção, o princípio da convencionalidade assegura que a forma adulta será preferida.
Pode-se inferir daí, que desde que a produtividade seja definida como o reflexo das
preferências de uma comunidade de fala, a forma convencional adulta representará, em
muitos casos, o tipo morfológico mais produtivo.
2.1.2 A sequência de aquisição
O segundo aspecto ligado ao desenvolvimento morfológico é como ele ocorre
com o passar do tempo, uma vez que estudos demonstram que algumas crianças
apresentam episódios de composição já aos dois anos, mas que outras ainda não
completaram o processo de aquisição morfológica no início da puberdade. Se os
princípios que regem a aquisição da morfologia também forem aplicáveis ao
126
desenvolvimento da sequência de aquisição, os mecanismos estabelecidos como
simplicidade, transparência e produtividade também serão ativados nesse processo.
Segundo estudos mencionados de Derwing e Baker (1979 apud Lowie 2008), a
capacidade para reconhecimento de morfemas aumenta com a idade, pois a partir de
experiências com morfologia derivacional, foi possível observar que crianças pequenas
demonstraram maior sensibilidade às variações ortográficas e fonéticas, enquanto
adultos eram mais afetados por aspectos semânticos.
Quanto à ordem, estudos anteriores demonstraram que as crianças seguem uma
ordem razoavelmente fixa na aquisição da Língua Inglesa, com destaque para a flexão.
Nesse aspecto em particular, Lowie (2008) ressalta que a aquisição de morfemas
individualizados segue, igualmente, alguns estágios, conhecidos como “comportamento
em U”: primeiro, a criança utiliza a forma corretamente, mas sem analisá-la (por
exemplo, a forma went). Na sequência, ela regulariza a formação do passado e produz
formas generalizadas para o passado (e.g. goed) para, finalmente, adquirir as exceções à
regra (went novamente). Comportamentos como esse dificultam a determinação do
período exato em que as regras morfológicas são adquiridas.
Quanto ao papel da flexão e da derivação na aquisição e no uso da língua,
estudos sugerem que a flexão é frequentemente considerada como tendo um caráter
global, indispensável para o aprendiz, enquanto que a derivação é mais periférica,
opcional, ou “local”. Tal asserção pode ser justificada pelo fato de que a flexão é
tipicamente a parte mais produtiva da morfologia, e a que leva a formações regulares,
transparentes, conduzindo a uma aquisição simultânea dos afixos derivacionais.
Experiências conduzidas por Jones (1991 apud Lowie 2008) demonstraram que crianças
recém alfabetizadas eram capazes de reconhecer raízes em palavras morfologicamente
complexas, em um teste que solicitava que deletassem um segmento da palavra e então
explicassem o significado da palavra restante. Em relação a palavras simples e
completamente transparentes (não necessariamente formadas por produtividade), como
em eighth, as crianças se saíram melhor do que em relação a itens menos transparentes e
derivados complexos, como em pressure ou natural. Esse tipo de habilidade cognitiva
só é encontrada quando as crianças chegam ao terceiro ou quarto anos de escolarização.
127
Tyler & Nagy (1989apud Lowie 2008) sugerem a distinção de três tipos de
conhecimento morfológico: relacional (indicando as relações formais entre raiz e
palavras derivadas), sintático (relacionado à (sub) categorização de afixos) e
distribucional (relacionado à limitação distribucional de afixos). Os resultados dos
estudos publicados por eles sugerem que tais tipos de conhecimentos são adquiridos em
diferentes momentos: o conhecimento relacional básico das formas derivadas são
adquiridas por volta da quarta série, mas “ganhos substanciais na quantidade e natureza
do conhecimento distribucional ocorrem somente após a oitava série, sendo que esses
ganhos diferenciam claramente os sufixos neutros dos não-neutros” (p. 665). O tipo de
conhecimento que os autores denominam de “distribucional” pode ser visto sob a ótica
da produtividade: o sufixo –ity será muito mais produtivo se a forma –able já tiver sido
internalizada.
Ainda, considerando-se que a aquisição da produtividade depende da frequência
de uso de um tipo familiar de afixo, será lógico imaginar que diferenças muito sutis,
como critérios distribucionais, sejam percebidos em um estágio posterior. As diferenças
encontradas entre sufixos neutros e não-neutros podem ser, então, atribuídas às
variações entre transparência e simplicidade: sufixos não-neutros, que frequentemente
envolvem mudança vocálica, geralmente não estão claramente relacionados a suas
raízes e muitas vezes se ligam a morfemas limítrofes.
Outro aspecto relacionado à sequência de aquisição da morfologia é a distinção
entre conhecimento e prontidão. A prontidão morfológica pode ser definida como a
consciência metalinguística da estrutura mórfica das palavras e a habilidade para refletir
sobre essa estrutura, enquanto que o conhecimento da morfologia refere-se à habilidade
(inconsciente) para produzir e compreender palavras morfologicamente complexas.
Considerando-se que o conhecimento morfológico só pode ser mensurado por meio da
análise de dados relacionados à linguagem espontânea para determinar a precisão da
aplicação morfológica, os resultados desses estudos não podem ser comparados a outros
nos quais os sujeitos eram solicitados a refletir sobre a complexidade morfológica de
palavras ou para manipular palavras, segundo esclarece Lowie (2008). A conclusão a
que se pode chegar, portanto, é que a prontidão morfológica depende do conhecimento
128
morfológico, por se imaginar que, na sequência da aquisição, o conhecimento preceda a
prontidão.
2.1.3 A Produção e a Compreensão
Segundo Lowie (2008) estudos empíricos comprovam a afirmação de que a
compreensão normalmente precede a produção, em crianças, pois geralmente elas
demonstram compreensão de fenômenos que ainda não produzem corretamente. Ele
menciona estudos nos quais crianças de três anos interpretam corretamente o afixo-er
como formador de agente, mas em suas produções não adotam esse procedimento, em
favor da forma composta –man (como mencionado anteriormente). Clark (1993 apud
Lowie 2008) justifica esse comportamento propondo a existência de representações
separadas para a compreensão (C-representações) e para a produção (P-representações)
no léxico mental. Ela argumenta que os aprendizes primeiramente estabelecem uma Crepresentação auditiva da palavra recém encontrada, para qual um significado será
mapeado, cujas bases poderão conter, igualmente, informações sobre a estrutura interna
das palavras. Uma vez que uma C-representação tenha sido armazenada na memória, a
criança pode tentar produzir a palavra, operação para a qual ela precisará estabelecer
uma P-representação, contendo toda informação articulatória necessária para produzi-la.
Não se pode, portanto, aceitar algumas visões conceituais que apontam para um único
conjunto de representações na memória, neutro entre produção e compreensão; ao
contrário, é possível pensar em um sistema central de representações com acessos
diferenciados para a produção e a compreensão.
Esse conceito, aliás, corresponde aos pressupostos elencados na Gramática
Léxico-Funcional proposta por Levelt e são compatíveis com a Teoria da
Processabilidade proposta por Pienemann. Ambos os estudos apontam, igualmente, que
a carga de conteúdo apresentada pelo lemma precisa ser compartilhada pelas duas
representações para obter significação cognitiva sendo, portanto, justo, que seja
armazenado uma só vez. Na ordem da aquisição, segundo Lowie (2008) parece lógico
que a compreensão preceda a produção, uma vez que as novas entradas lexicais vão ser
estabelecidas sob a percepção de uma nova palavra cujas representações, por sua vez,
precisam ser mapeadas para poderem ser usadas na produção.
129
Referências
LANGACKER, Ronald W. A Linguagem e sua Estrutura. 3 ed. RJ: Editora Vozes,
1977.
LOWIE, Wander Marius. The acquisition of interlanguage morphology : a study
into the role of morphology in the L2 learner's mental lexicon. Disponível em:
http://dissertations.ub.rug.nl/faculties/arts/2008/w. m.lowie/
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