TRÓIA E A GUERRA DE TRÓIA: RELEITURAS DA

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TRÓIA E A GUERRA DE TRÓIA: RELEITURAS DA ODISSEIA DE ULISSES
Sauloéber Tarsio de Souza (UFU)
[email protected]
Todo filme é um documento.
Marc Ferro
Ensino de História; História da Educação; Grega Antiga.
Esse texto, como os demais que compõem a mesa coordenada, tem a
preocupação de realizar reflexão quanto ao uso da linguagem cinematográfica no ensino
de História da Educação. Portanto, tratamos aqui muito mais das possibilidades e limites
do uso do cinema como recurso didático no cotidiano acadêmico, do que propriamente
uma análise sistemática e aprofundada dos filmes selecionados para discussão, o que
não caberia nesse espaço e iria além da competência do autor. Nesse sentido, não
buscamos indagar se as releituras da Odisseia/Ilíada são apropriadas para o trabalho em
sala de aula, mas partimos da assertiva de que são recursos importantes em contexto
contemporâneo que é permeado por apelo estético midiático em excesso.
Assim, nossa proposta objetiva questionar a construção do conhecimento
histórico a partir do presente, traçando paralelos entre as duas versões cinematográficas
contemporâneas e esses clássicos textos gregos. Existe a concordância que os diferentes
estilos historiográficos são resultados de seu tempo, como afirmou Le Goff (1990,
p.51): “Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido
no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é só inevitável, como
legítimo.”
Muito embora apresentemos aspectos da realização (contexto) e produção dos
filmes Tróia (EUA, 2004) e A Guerra de Tróia (França-Itália, 1961) assumimos estas
películas como documentos, tal qual Ferro (1992) anunciou. Também ressaltamos,
desde já, que entendemos esses filmes como adaptações da literatura e que nesta
condição são restritas relativamente ao texto original, acabando por revelarem muito
mais do tempo presente do que do mundo grego antigo.
Isso representa justamente a proposta da mesa que busca pensar formas de como
promover a aprendizagem histórica em tempos de “ditadura do presente” ou do
“presentismo” em que vivemos. O grande desafio que se apresenta, portanto, consiste na
busca de alternativas que convertam a indústria midiática, de alienante e massificadora,
em instrumento de trabalho nos cursos de graduação e, em especial, naqueles de
formação de professores. Dessa maneira, a questão que nos norteou é: qual o caminho
mais adequado para que os filmes aqui trabalhados possam desencadear aprendizagem
significativa sobre os processos educativos na Grécia Antiga?
Mesmo se reconhecendo que ainda existe grande resistência a esse tipo de
atividade, acusada de promover a banalização da história, é preciso entender que a
linguagem cinematográfica pode ser amplamente utilizada na formação histórica dos
alunos, especialmente, na disciplina de História da Educação que em sua primeira etapa
trata das culturas ágrafas e antigas, existindo grandes limitações no que tange ao acesso
a recursos pedagógicos (sobretudo bibliográficos) que, sob alguns pontos de vista, ainda
permanece presa à concepção linear da história.i
Cinema e Educação Escolar
O impacto causado pela criação e difusão do cinema e outros meios de
comunicação de massa no século XX, não pode ser ignorado pelos profissionais do
ensino. Os grandes avanços tecnológicos e científicos no domínio da comunicação
modificaram o formato das relações sociais. O mundo atual é o da extrema regulação
cultural, vivemos sob a centralidade da cultura, em “mundo totalmente administrado”
(ADORNO, 2003), o que modifica radicalmente nossa relação com os artefatos
culturais, assim, também a escola não fica imune a tal processo.
A indústria da cultura destituiu o indivíduo de seu elemento de causalidade
inserindo-o em um presente contínuo, assim, o resultado é que “a humanidade se aliena
da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente” (ADORNO, 2003,
p.33). Portanto, fugir a tal alienação é tarefa da educação em seu processo de
constituição de indivíduos críticos e reflexivos em meio ao todo massificado. E a
consideração do passado em seu elemento de esclarecimento somente vai ocorrer “no
instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou” (Ibidem, p.49). Isto
justifica a necessidade de vínculo entre passado, presente e a dimensão utópica da
existência humana (seu caráter de crítica).
Tais mudanças impõem discussões intensas sobre os rumos da educação,
verificando-se o esgotamento das certezas que davam direção ao processo educativo.
São esses motivos que nos impelem a buscar outros sentidos para o fazer pedagógico, a
discutir o que temos entendido e praticado até agora como pedagogia (FABRIS, 2001).
A partir dessa perspectiva, na utilização do cinema como recurso didático é
fundamental compreender que a imagem não é ilustração ou reprodução da realidade,
ela apenas representa determinado contexto, a partir da produção de uma linguagem
própria. Isso pressupõe uma série de indagações que vão muito além do requinte
estético, de forma que o professor deve se submeter ao processo de educação do olhar,
possibilitando-lhe "ler" as entrelinhas das películas cinematográficas.
Ressalta-se de acordo com Ferro (1992) que “todo filme é um documento”
independente se seu tema central remeta a um passado remoto ou imediato, indo sempre
além de seu conteúdo na medida em que for questionado. Toda imagem é histórica, já
que ela é produto de seu tempo e carrega consigo, mesmo que de forma indireta e
muitas vezes inconsciente para quem a produziu, ideologias e costumes do período em
que foi produzida (NÓVOA e NOVA, 1998).
Ainda sobre a relação do cinema com a história:
A invenção do cinema revelou a possibilidade da história dos homens ser registrada
num formato que assegura ao imaginário dos sujeitos/espectadores uma
impregnação visual, fato que lhes permite re-viver o evento na condição de
espectador, [...] realizando, portanto uma ‘interação’ onde ele julga, pensa e sente
junto com seus personagens (BRAGA, 2004, s/p).
Há décadas que se aponta o uso da linguagem cinematográfica como importante
instrumento de formação histórica, integrando, orientando e estimulando a capacidade
de análise dos estudantes, a partir da utilização de filmes já existentes como fontes para
a discussão de temas históricos, acompanhando-se os anseios decorrentes da revolução
promovida pelos meios de comunicação e informação e que a academia parecia ignorar:
A introdução do cinema como instrumento de apoio ao processo de aprendizado
possibilita uma primeira ruptura nesse sistema acadêmico. Através da utilização de
fitas cinematográficas como recurso didático, estaríamos lançando mão de um dos
mais poderosos meios de comunicação e também utilizando uma linguagem
absolutamente atual. É inegável o alcance e a popularidade adquiridas pelo cinema
nos dias de hoje, a ponto dele ter-se tornado um dos elementos centrais da vida
cultural, intelectual e informativa do homem moderno (NÓVOA, 1995, s/p).
É claro que a linguagem cinematográfica permite uma série de abordagens, por
isso mesmo, é complexa, nos colocando frente a uma questão preliminar: que tipo de
filmes utilizar em nossas atividades pedagógicas? Conforme Nóvoa (1995) nos indica,
tal resposta deve ser a mais abrangente possível já que o conteúdo do filme, seja de que
tipo for, tem as suas relações com a história. O filme é um recurso particular e
insubstituível que toma de assalto os indivíduos e suas razões, envolvendo-os na trama
do real.ii
Os Filmes em Contextos Específicos
“Essa Guerra nunca será esquecida, tampouco os heróis que nela lutaram.” O
conteúdo desse trecho de diálogo é repetido no decorrer dos filmes aqui trabalhados,
especialmente, em Troia do diretor Wolfgang Petersen (2004) superprodução de
Hollywoodiii com atores premiados (Brad Pitt, Orlando Bloom, etc.). Essas leituras
cinematográficas do texto poético a Ilíada, creditada a Homero, tratam do épico conflito
entre gregos e troianos desencadeado pela fuga de Helena (“a mais bela” e esposa do rei
espartano Menelau) com o príncipe troiano Páris, o que levaria a união dos exércitos
gregos liderados por figuras como a de Ajax, Diomedes, Ulisses e do semideus Aquiles
(filho da Deusa Tétis com o mortal Peleuiv) que se imortalizariam na guerra de Troia.
Nessas películas existe a ênfase em organização social voltada para o exercício
da guerra, a mais nobre de todas as atividades do mundo clássico, por meio da qual se
alcançaria a imortalidade, esta última o pano de fundo dessa filmografia. A herança
legada por essa peça literária grega ao mundo ocidental vai muito além de expressões
amplamente popularizadas como “presente de grego” cunhada a partir do episódio do
cavalo de madeira deixado como oferta a Poseidon e, também “o calcanhar de Aquiles”
que expressa ainda hoje o ponto fraco de determinado indivíduo ou instituição, mas essa
discussão não caberia nesse capítulo.
É preciso alertar que o texto clássico apenas serviu como inspiração para se
compor as películas, tratando de adaptações para o cinema, o que pode ser apontado por
divergências importantes a partir de breve olhar sobre a última película produzida por
Hollywood e que teve grande inserção mundial por se apoiar nos mais avançados
recursos tecnológicos e midiáticos. Assim, ressaltaríamos como diferenças marcantes
entre a literatura e o filme:

A duração da guerra que se passa em semanas, enquanto que na literatura se
estendeu por 10 anos.

O conflito não foi interrompido com a morte de Pátroclo.

Páris viajou para Esparta e sem a companhia de seu irmão Héctor.

Aquiles não estava no interior do cavalo (o presente de grego)v.

O rei Menelau não foi morto por Héctor em Troia, mas levou Helena de
volta a Esparta.

Páris não sobreviveu a guerra, tampouco fugiu com Helena.

O Rei Príamo não foi morto por Aquiles, mas por seu filho Neoptólemo.
Muito embora, A Guerra de Troia (1961), produção Franco-italiana dirigida por
Giorgio Ferroni, tenha buscado observar com mais proximidade os fatos presentes no
texto literário clássico, não deixa de ser uma adaptação para o cinema que implicou em
seleção de fatos e personagens que seriam apresentados. Nessa película, também se
enfatizou a figura de um semideus, mas diferentemente da versão de Hollywood que
coloca Aquiles como protagonista, o foco é no troiano Enéas vi que tem romance com
Creúsa (filha de Príamo e irmã de Páris). Porém, em ambos os casos, as rotinas dos
exércitos gregos e troianos foram apresentadas destacando-se um dos seus bravos
guerreiros: ora Aquiles, ora Enéas.
A produção Franco-italiana do início dos anos de 1960 ficou longe do neorealismovii presente no cinema italiano. Ainda que os cenários e a produção dessa
película fosse bastante mais modesto do que a superprodução americana, o filme A
Guerra de Troia teve em seu elenco atores populares como Steve Reeves (Enéas). Esse
filme relata o último ano da Guerra, após quase uma década do rapto de Helena, os
gregos decidem por um fim ao conflito reunindo grande exército contra os troianos,
nesse aspecto, essa adaptação para o cinema foi mais “atenta” ao texto da Ilíada.
O filme tem início já com a morte de Heitor que havia matado Pátroclo o melhor
amigo de Aquiles, enquanto que em Troia a trama se inicia com a fuga de Helena e a
história segue até o fim da guerra apresentada em semanas. Nas duas películas, a
mitologia é simplificada para o público da época, na produção Franco-Italiana por
exemplo, Aquiles é morto por Páris com uma flechada em seu calcanhar, mas não há
referência ao mito do semideus, e sua morte é explicada em decorrência do veneno na
ponta da flecha e não por ter sido atingido em seu ponto vulnerávelviii.
A figura de Helena também é controversa e apresentada de maneiras distintas
nestas adaptações: em Hollywood é a mulher injustiçada e infeliz que encontra o amor e
a esperança no príncipe troiano Páris, mas na produção Franco-italiana é apresentada
como a adúltera que tem a oposição do heroi Enéas. A figura de Páris em ambas as
releituras está mais próxima do antiheroi, imagem bastante clara no filme Francoitaliano se opondo a Enéas durante toda a trama. Páris foi descrito na Ilíada como “um
homem de pouca coragem e nenhum valor” (NUNES, 1969).
Diante desses breves apontamentos poderíamos nos indagar a validade do apelo
a esse recurso audiovisual na discussão da educação para a guerra no mundo clássico, já
que o roteiro do filme exalaria a moral e os valores hollywoodianos ou franco-italianos,
ambos contemporâneos. Mas é justamente nesse sentido que inserimos o problema da
verdade histórica, onde a Odisseia e a Ilíada remetem a um tipo de narrativa de um
tempo incerto, talvez distante séculos dos acontecimentos da guerra de Troia. A cultura
clássica transmitida oralmente pelas gerações por meio dos cantadores era, certamente,
sujeita as adaptações de cada época.
No caso desses textos clássicos, Homero teria escrito esse poema por volta do
século VIII a.C., ou seja, quatro séculos depois do conflito entre gregos e troianos. À
altura do século XII a.C., a escrita com base no alfabeto ainda não havia sido
desenvolvida. Por esta razão, não há registros históricos que comprovem os eventuais
fatos históricos ocorridos. Na ocasião, as tradições eram transmitidas oralmente, de
geração a geração, por cantadores, e estavam sujeitas a todo tipo de alteração que essa
categoria de divulgação provoca. Assim, quando Homero - ele próprio uma figura sobre
a qual não há comprovação histórica da existência, ou mesmo de que tenha, de fato, sido
o autor original da Ilíada e da Odisséia - perpetuou seus poemas, fez com base em
outras histórias que relatavam feitos - reais ou imaginários - que vinham de uma
tradição de centenas de anos.
Dessa forma, colocar as produções fílmicas em torno desse acontecimento do
mundo antigo mostra não apenas os valores e a moral da época em que foram
produzidos, mas as diferentes representações históricas de um mesmo acontecimento.
Assim, questionar os motivos que levariam os dois povos ao conflito na Ilíada e
também nos filmes deve fomentar a reflexão crítica sobre os sentidos produzidos pelo
texto ou película que retratam a história, facilitando a percepção dos diferentes tempos
históricos diversificando as possibilidades de construção do conhecimento sobre o
passado.
Muitas questões poderiam fomentar esse processo: Seria a guerra desencadeada
apenas pela fuga de Helena com Páris? Na produção americana onde estariam os
imortais do Olimpo tal como Ajax Menor, Ajax Maior ou Diomedes que ocupam boa
parte das páginas iniciais do texto da Ilíada? Por que a ênfase na figura de Aquiles no
filme de Hollywood e em Enéas no Franco-italiano? Teria a mitologia ocultado os
interesses nas riquezas territoriais de Troia (rica em minérios e trigo) por parte de
Agamenon, irmão do rei traído Menelau que reuniu o exército dos 50 mil?
O filme Tróia insere-se na velha fórmula hollywoodiana que associa heroísmo,
paixões e morte, num cenário bastante bonito. Além disso, faz adaptações que encaixam
perfeitamente na regulação ou normatização social atual, como a supressão de
referências as práticas homossexuais, tão comuns à época retratada pelo filme. Por isso
a necessidade da análise crítica e o diálogo com os filmes para desconstrução da
pedagogia do herói montada sobre seu roteiro. É importante apresentar aos alunos o
contraponto a “normatização” da vida que tem como centro de referência as sociedades
desenvolvidas e seus valores, por isso, o cinema deve estimular o pensamento
investigativo, o exame crítico-reflexivo e o diálogo em sala de aula.
A Experimentação Fílmica
Nesta última seção, buscamos relatar um pouco de nossa prática pedagógica a
partir da exibição dessas duas produções junto aos alunos dos cursos de pedagogia de
duas instituições diferentes, uma localizada no norte e outra no sudeste do país. A
disciplina de História da Educação I, em geral, tem em seu conteúdo programático a
abordagem da educação em diferentes tempos históricos, passando desde o estudo das
populações ágrafas e seguindo até o fim das civilizações antigas (Egito, Grécia e
Roma).
Para a discussão da educação no mundo grego antigo, exibimos os filmes aqui
trabalhados para fomentar os debates iniciais que deveriam ser acompanhados pela
leitura de alguns capítulos da Ilíada. Adotamos como metodologia de trabalho a
exibição de um dos filmes na íntegra e apenas trechos do outro, buscando traçar
paralelos com o texto clássico.
Como esperávamos, Troia agradou mais aos alunos especialmente, acreditamos,
por adotar linguagem audiovisual e estética mais contemporânea, além de expressar
com maior proximidade os valores atuais, com uma dose maior de cenas de violência,
além de atores que lembram cantores cabeludos de uma banda de rockix.
A Guerra de Troia, do nosso ponto de vista, parece ter despertado nos alunos a
percepção de ritmo lento da trama, as cenas de batalhas, por exemplo, não convenciam
como a produção hollywoodiana (com impressionante realismo da melhor tradição dos
filmes de ação) e para alguns ganhavam aspecto caricato. Porém, com a leitura do texto
da Ilíada, os discentes apontavam o filme Franco-italiano como o que teria sido mais
“fiel” ao texto clássico.
Dessa forma, por meio dos debates buscamos proporcionar o diálogo com os
filmes, não transferindo para eles a responsabilidade explicativa, de forma que a
tentativa foi a de desconstruir a pedagogia do herói, reflexo da necessidade de se
promover a indústria cinematográfica contemporânea, muito embora, a morte heroica
seria o caminho para a imortalidade entre os gregos. Os debates em torno dos filmes e
do texto clássico introduziram os estudos sobre a Grécia Antiga, sua cultura militar, a
relação com o mar, a substituição do matriarcado pela autoridade paterna, os primórdios
da propriedade privada, enfim, o nascimento de um Estado que estimularia um tipo de
educação voltada para as virtudes guerreiras. Assegurar a superioridade militar
garantiria às classes dominantes o controle da situação interna e a expansão externa
como fica bem representado nos filmes (CAMBI, 2001).
O importante para a disciplina de História da Educação é a compreensão dessa
cultura para guerra que tinha como base uma economia focada em conquistas e saques
aos vizinhos, característica especialmente marcante nos gregos de Esparta, mas comum
aos outros povos. Os filmes falam de honra, de lealdade e das virtudes militares, de
forma que fazer parte do exército desde a mais tenra idade era um privilégio ao mesmo
tempo uma necessidade.
Em uma das cenas de Troia, Aquiles dispensa seus soldados mirmidões (que
lutavam em troca de pagamento) e um deles se nega a abandonar seu líder dizendo: “A
honra da minha vida foi lutar ao seu lado senhor”. Em A Guerra de Troia, por sua vez,
as figuras de Ajax, Diomedes e Ulisses também são importantes e, mesmo que a
primeira cena de batalha só ocorra no meio da película, a cultura para a guerra surgia
em muitas falas, Enéas, por exemplo assim afirmou: “Cada dia arrancamos com as
armas um novo dia de esperança.” A bravura e o heroísmo eram valores ensinados pelos
mais velhos, em outra cena o Rei Príamo no Conselho dos Anciões profetiza: “Ninguém
lembrará de um povo por sua covardia, mas todos honrarão um gesto que levará a
imortalidade.”
Contudo,
a
bravura
apresentada
pelos
filmes
passou
pela
censura
contemporânea, de forma que os laços de companheirismo entre os soldados que muitas
vezes eram estimulados pela prática do homossexualismo, não surgem em nenhuma das
películas por meio de referências explícitas a essas práticas, obviamente, por não se
tratar de um valor próprio as sociedades contemporâneas. Mesmo as inferências
presentes no texto clássico são dissimuladas no filme de Hollywood, que apresenta
Aquiles e Pátroclo como primos, buscando-se afastar qualquer dúvida sobre a virilidade
do semideus capaz de dar a própria vida pelo parente, reforçando-se estereótipos
hegemônicos modernos.
Outro dado importante para a compreensão dessa cultura da guerra é a
religiosidade desses povos politeístas e circundados cotidianamente por presságios,
intuições, rituais e sacrifícios aos deuses. Homens e mulheres adoravam e temiam seus
deuses e semideuses além de outras figuras mitológicas. Muito embora, a representação
fílmica da religiosidade de gregos e troianos é bem diferente, os primeiros seriam muito
menos religiosos do que os outros, de maneira que Hollywood coloca a astúcia e
bravura grega derrotando a religiosidade troiana.
Para se reforçar a compreensão dessa educação para a guerra entre os alunos,
também destacamos os rituais de cremação de guerreiros mortos nas batalhas que eram
bastante valorizados, depositavam-se duas moedas nos olhos do morto que
representavam o pagamento a Caronte, o barqueiro com cara de caveira responsável por
atravessar os mortos para o outro lado do Estige, o rio dos mortos, como se pode ver
após a morte de Pátroclo, de Heitor e de Aquiles em Troia. Aliás, a navegação para a
cultura clássica era um ponto central em suas estratégias militares e comerciais, o
Mediterrâneo era a principal via de integração e rivalidade entre os povos que o
circundavam. Por isso, a representação de Poseidon, o deus do mar, era envolta de poder
que conferia respeito e medo.
Esses filmes não apresentam em detalhes os hábitos e costumes de gregos e
troianos, pouco vão além de seus rituais militares, mas em Troia a pesquisa realizada
pelos seus diretores no Museu Britânico permitiu reproduzir parte das peças feitas em
bronze, como lanças, espadas, escudos, utensílios utilizados no cotidiano desses povos,
muito embora, as informações sobre a arquitetura daquela cidade não condiziam com o
cenário construído para o filme, muito maior e grandiosa, como pode-se observar a
partir das muralhas. Nesse ponto, o filme A Guerra de Troia aproxima-se mais da
realidade da época, com figurinos bastante modestos, montarias sem selas e uma Troia
com muralhas menores.
Quando encerradas as atividades da disciplina, pelas avaliações notamos que
cerca de 50% dos alunos solicitavam a ampliação dos filmes exibidos, em muitas
dessas, salientou-se o papel importante do cinema para a reflexão sobre aquela época
(“de nossos antepassados”), enriquecendo-se as aulas. Vejamos algumas falas sobre o
uso do cinema em sala de aula:
As diferentes abordagens com vídeos e transparências contribuíram
bastante para uma melhor interpretação. (Aluno, 2o. sem/2003) A
utilização de recursos como filmes, dinâmica para interação entre os
alunos, foi de grande valia, na minha opinião realmente houve o
aprendizado. (Aluna, 1o. sem/2004) Uma boa maneira de termos uma
visão melhor do que está sendo exposto. (Aluno, 1o. sem/2005) Foram
muito bem colocados, auxiliando o entendimento dos conteúdos.
(Aluna, 1o. sem/2006)
Mesmo assim, o problema da cultura visual dos alunos calcada na TV aberta, fez
com que surgissem comentários do tipo “Só não gostei pois eram legendados, ou agente
lia ou olhava as cenas, mas é importante (...)”, demonstrando também a massificação
autoritária que a grande mídia promove junto ao seu público e é exatamente aí que o
trabalho com o cinema em sala de aula deve atuar.
Em se tratando de alunos de primeiro ano, o esforço para a mudança dessa visão
alienada frente ao mundo das imagens é muito maior e os resultados são naturalmente,
processuais, de forma que alguns alunos se referiram ao trabalho com cinema na sala de
aula de forma distorcida, como vemos nessas falas: “apenas um filme foi bastante
interessante com ação” ou ainda “gosto muito de aprender em tele aulas”. As limitações
dos equipamentos de projeção ou a qualidade dos vídeos também geraram queixas,
sugerindo-se a melhoria dos mesmos, algo considerável, em função de que a qualidade
ruim da imagem prejudica a essência do cinema.
Considerações Finais
Nesse espaço conclusivo, ressaltamos mais uma vez, que essas películas são
ficções históricas ou adaptações literárias para o cinema dado não apenas ao caráter de
releitura dos textos clássicos carregada de valores e moral do presente, mas também
pela peculiar forma de escrita (poesia) desse episódio do mundo Antigo.
Da mesma forma em que os deuses gregos interviram na narrativa de Homero,
os diretores de cinema apelaram para a estética contemporânea na produção e criação de
cenários, figurinos, personagens, muitas vezes pagas pelos patrocinadores dos filmes.
Nesse sentido, sobretudo em relação a Hollywood, poder-ia-se dizer que existe um
esforço de “colonização cultural” que seria:
[...] uma forma de regulação, onde as marcas culturais hegemônicas recebem um
espaço não apenas diferente, mas com mais poder. Onde a marca da raça, da classe,
da etnia, da religião, da sexualidade, etc, sob o olhar de um artefato cultural, aqui,
neste caso, o cinema hollywoodiano, que possui um poder colonizador tanto do
ponto de vista econômico como cultural, são representadas e narradas objetivando
o controle e a regulação cultural. Essa colonização cultural define um padrão de
identidade como “o melhor”, “o verdadeiro”, e tudo que foge dele como
“excêntrico”, “exótico”, “anormal”. (FABRIS, 2001, p.2)
Ao projetar um filme dessa natureza, torna-se essencial destacar esse olhar junto
aos alunos, reforçando-se a ideia de que toda filmagem de textos literários no cinema
não passam de adaptações, e que os filmes mesmo que reportem a um período histórico
distante, fala muito mais da época em que foram produzidos do que do contexto
pretérito que enfoca.
Certamente, existem muitos outros aspectos envolvidos na experimentação de
alunos que são expostos aos filmes no interior das universidades decorrentes desse novo
contexto social atrelado as mídias. O professor não deve se distanciar desse novo
cenário, é uma necessidade histórica o entendimento dos processos de modernização das
sociedades e sua integração com os novos recursos da comunicação e, no nosso caso
específico, com o cinema.
A guerra de Troia presente nos textos clássicos e nos filmes revela mais do que o
cotidiano militar, é, sobretudo, um evento político que mostra do que a natureza humana
é capaz. Não representa apenas a rivalidade entre gregos e troianos, mas anos de agonia,
morte e sofrimento colocando situações em que era necessário atravessá-las, por isso
não é algo para se celebrar no presente, do contrário estaríamos esquecendo-se das
lições do passado.
Seria perdoável o fato dos roteiristas e diretores matarem personagens nos filmes
diferindo do texto clássico? Seriam simplificações do belo poema em nome da
audiência massiva, desprezando-se a rica e fascinante cultura grega antiga? Ou seriam
apenas ficções históricas e, portanto, os seus criadores teriam ampla liberdade criativa?
Em Troia o narcisismo de Aquiles se assemelha ao de atores contemporâneos
que lutam pela fama, ele não estava interessado em servir aos deuses ou a glória grega,
tampouco ao seu rei corrupto, sua lealdade era consigo próprio, não amava Briseida era
apenas uma motivação para a batalha, esse romance pareceu deslocado, representando
um clichê onde o homem apaixonado por uma mulher abandonaria a guerra.
Finalizando, esse tipo de atividade fomenta não apenas o interesse por
determinada temática, mas também a diversificação da aprendizagem histórica por meio
do cinema, de forma que promover a crítica as películas é fundamental para se opor a
essa modernização que a indústria cinematrográfica estimula que ameaça a diversidade
cultural em favor de um monólogo hollywoodiano.
Esperamos ter despertado o interesse por essas produções fílmicas, mas que
estão longe do espírito da tradição clássica. Por isso, o convite é também pelas leituras
da Odisseia e da Ilíada!
Referências Bibliográficas:
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Paulo: Paz e Terra, 2003.
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Acessado
em
maio/2007,
site:
http://www.sbhe.org.br/novo/index.php?arq=arq_historico&titulo=Hist%C3%B3rico
FABRIS, Elí Terezinha Henn. As Marcas Culturais da Pedagogia do Herói. ANPED,
GT08 Formação de Professores, UFRGS, 2001.
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MANACORDA, Mario A. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. São
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PONCE, Aníbal. Educação e Luta de Classes. 20a. ed., São Paulo: Cortez, 2003.
SOUZA, S.T.; RIBEIRO, B.O.L. Ensino de História da Educação no Brasil: Reflexões
sobre o Perfil de Professores e suas Metodologias. In Revista História da Educação,
v.16, n.36, Jan/abr. 2012, p. 70-88.
i
No ensino da disciplina História da Educação I são amplamente difundidas as obras de Manacorda,
Cambi, Aranha e Ponce, que buscam explicar alguns dos processos educativos a partir da divisão
cronológica tradicional, partindo da educação nas comunidades primitivas passando pelas civilizações
antigas, medievais até o período contemporâneo, o que indica pouca ou quase nenhuma renovação
historiográfica ao menos no que diz respeito ao ensino dessa primeira etapa da disciplina (SOUZA;
RIBEIRO, 2012).
ii
O autor ainda sugere observar o público a ser trabalhado e os objetivos a serem alcançados, de forma
que o fascínio do cinema possa colaborar para o desenvolvimento da interpretação, algo indispensável aos
estudantes: “Como retratar a vida sem refletir a história? Através da vida pulsando numa tela, é-se
arremetido para outros tempos e espaços, a exemplo do que acontece nos filme A Guerra do Fogo e O
Nome da Rosa em que os espectadores são transportados, respectivamente, para a pré-história paleolítica
e para os infernos dos subterrâneos dos mosteiros medievais, onde a mão de ferro obscurantista da Santa
Inquisição domina implacavelmente.” (NÓVOA, 1995).
iii
É certo que Hollywood nos Estados Unidos é o mais importante pólo do cinema mundial, ocupando
lugar de destaque na produção de sentidos, um meio educativo nas regiões onde tem alcance. Hollywood
exerce uma pedagogia que ensina de um modo peculiar, possuindo circulação considerável com forte
apelo produzido pela linguagem cinematográfica, apoiada no mundo da magia e da arte, em que o uso da
câmera, da iluminação, da edição, som e outros efeitos contribuem para a construção dos significados a
partir das histórias projetadas na grande tela (FABRIS, 2001).
iv
O filme não mostra o mito que relata a união entre Páris e Helena. Anteriormente a fuga do casal para
Troia, na festa de casamento dos pais de Aquiles, Éris, deusa da discórdia,que não fora convidada, joga
entre os convidados uma maçã de ouro com a inscrição “a mais bela”. As deusas Hera, Atena e Afrodite
começam a disputar a posse da maçã, porém Zeus determina que Páris, na época um pastor, decida quem
ficaria com o título de mais bela. Hera, para ser a escolhida, oferece a Páris riqueza e poder, Atena lhe
dispõe poder na batalha e sabedoria, e Afrodite promete-lhe o amor da mulher mais bela do mundo. Ele
entrega o prêmio para esta última conquistando a ira das outras duas deusas que ajudariam os gregos na
conquista de Tróia.
v
O fim da guerra tem como personagem principal Ulisses, rei da ilha de Ítaca. Ulisses era um bravo
guerreiro que ao perceber que era praticamente impossível adentrar os portões de Troia, teve a ideia de
construir um enorme cavalo de madeira oco por dentro e dá-lo de presente aos deuses troianos simulando
que tinham desistido da luta. Assim, alguns soldados entraram dentro do cavalo que foi levado para o
interior de Tróia pelos próprios troianos. De madrugada eles saíram e abriram os portões da cidade para
que os outros guerreiros entrassem incendiando e destruindo tudo. (A Ilíada, tradução Carlos Alberto
Nunes, 1962)
vi
Tanta atenção a esse personagem da mitologia grega teve um propósito: o diretor faria a continuação do
filme a partir de Eneas (A lenda de Enéas – 1962) que lideraria os troianos na reconstrução de sua cidade
em outra localidade. Enéas era semideus filho de Afrodite.
vii
O neo-realismo cinematográfico, também classificado como a “arte de resistência” foi movimento rico
em transgressividade relativamente às tendências gerais de oferta e da demanda cinematográfica da
época, e em termos de produção foi bastante circunscrito e comercialmente marginal (baixo custo e
atores desconhecidos), mesmo que importante culturalmente em fins dos anos de 1950 e início da década
seguinte (AUGUSTO, 2009).
viii
De acordo com a mitologia, quando Aquiles nasceu, sua mãe Tétis o banhou de cabeça para baixo no
rio Estige para protegê-lo, mas ela o segurou pelo calcanhar deixando vulnerável essa parte de seu corpo.
ix
Como explicar, por exemplo, dentes tão bem preservados em bravos guerreiros gregos? Ou a que
tratamentos as mulheres gregas eram submetidas para terem tão vistosas e longas madeixas na produção
Hollywoodiana? Ficção ou realidade?
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