TRÓIA E A GUERRA DE TRÓIA: RELEITURAS DA ODISSEIA DE ULISSES Sauloéber Tarsio de Souza (UFU) [email protected] Todo filme é um documento. Marc Ferro Ensino de História; História da Educação; Grega Antiga. Esse texto, como os demais que compõem a mesa coordenada, tem a preocupação de realizar reflexão quanto ao uso da linguagem cinematográfica no ensino de História da Educação. Portanto, tratamos aqui muito mais das possibilidades e limites do uso do cinema como recurso didático no cotidiano acadêmico, do que propriamente uma análise sistemática e aprofundada dos filmes selecionados para discussão, o que não caberia nesse espaço e iria além da competência do autor. Nesse sentido, não buscamos indagar se as releituras da Odisseia/Ilíada são apropriadas para o trabalho em sala de aula, mas partimos da assertiva de que são recursos importantes em contexto contemporâneo que é permeado por apelo estético midiático em excesso. Assim, nossa proposta objetiva questionar a construção do conhecimento histórico a partir do presente, traçando paralelos entre as duas versões cinematográficas contemporâneas e esses clássicos textos gregos. Existe a concordância que os diferentes estilos historiográficos são resultados de seu tempo, como afirmou Le Goff (1990, p.51): “Toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é só inevitável, como legítimo.” Muito embora apresentemos aspectos da realização (contexto) e produção dos filmes Tróia (EUA, 2004) e A Guerra de Tróia (França-Itália, 1961) assumimos estas películas como documentos, tal qual Ferro (1992) anunciou. Também ressaltamos, desde já, que entendemos esses filmes como adaptações da literatura e que nesta condição são restritas relativamente ao texto original, acabando por revelarem muito mais do tempo presente do que do mundo grego antigo. Isso representa justamente a proposta da mesa que busca pensar formas de como promover a aprendizagem histórica em tempos de “ditadura do presente” ou do “presentismo” em que vivemos. O grande desafio que se apresenta, portanto, consiste na busca de alternativas que convertam a indústria midiática, de alienante e massificadora, em instrumento de trabalho nos cursos de graduação e, em especial, naqueles de formação de professores. Dessa maneira, a questão que nos norteou é: qual o caminho mais adequado para que os filmes aqui trabalhados possam desencadear aprendizagem significativa sobre os processos educativos na Grécia Antiga? Mesmo se reconhecendo que ainda existe grande resistência a esse tipo de atividade, acusada de promover a banalização da história, é preciso entender que a linguagem cinematográfica pode ser amplamente utilizada na formação histórica dos alunos, especialmente, na disciplina de História da Educação que em sua primeira etapa trata das culturas ágrafas e antigas, existindo grandes limitações no que tange ao acesso a recursos pedagógicos (sobretudo bibliográficos) que, sob alguns pontos de vista, ainda permanece presa à concepção linear da história.i Cinema e Educação Escolar O impacto causado pela criação e difusão do cinema e outros meios de comunicação de massa no século XX, não pode ser ignorado pelos profissionais do ensino. Os grandes avanços tecnológicos e científicos no domínio da comunicação modificaram o formato das relações sociais. O mundo atual é o da extrema regulação cultural, vivemos sob a centralidade da cultura, em “mundo totalmente administrado” (ADORNO, 2003), o que modifica radicalmente nossa relação com os artefatos culturais, assim, também a escola não fica imune a tal processo. A indústria da cultura destituiu o indivíduo de seu elemento de causalidade inserindo-o em um presente contínuo, assim, o resultado é que “a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente” (ADORNO, 2003, p.33). Portanto, fugir a tal alienação é tarefa da educação em seu processo de constituição de indivíduos críticos e reflexivos em meio ao todo massificado. E a consideração do passado em seu elemento de esclarecimento somente vai ocorrer “no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou” (Ibidem, p.49). Isto justifica a necessidade de vínculo entre passado, presente e a dimensão utópica da existência humana (seu caráter de crítica). Tais mudanças impõem discussões intensas sobre os rumos da educação, verificando-se o esgotamento das certezas que davam direção ao processo educativo. São esses motivos que nos impelem a buscar outros sentidos para o fazer pedagógico, a discutir o que temos entendido e praticado até agora como pedagogia (FABRIS, 2001). A partir dessa perspectiva, na utilização do cinema como recurso didático é fundamental compreender que a imagem não é ilustração ou reprodução da realidade, ela apenas representa determinado contexto, a partir da produção de uma linguagem própria. Isso pressupõe uma série de indagações que vão muito além do requinte estético, de forma que o professor deve se submeter ao processo de educação do olhar, possibilitando-lhe "ler" as entrelinhas das películas cinematográficas. Ressalta-se de acordo com Ferro (1992) que “todo filme é um documento” independente se seu tema central remeta a um passado remoto ou imediato, indo sempre além de seu conteúdo na medida em que for questionado. Toda imagem é histórica, já que ela é produto de seu tempo e carrega consigo, mesmo que de forma indireta e muitas vezes inconsciente para quem a produziu, ideologias e costumes do período em que foi produzida (NÓVOA e NOVA, 1998). Ainda sobre a relação do cinema com a história: A invenção do cinema revelou a possibilidade da história dos homens ser registrada num formato que assegura ao imaginário dos sujeitos/espectadores uma impregnação visual, fato que lhes permite re-viver o evento na condição de espectador, [...] realizando, portanto uma ‘interação’ onde ele julga, pensa e sente junto com seus personagens (BRAGA, 2004, s/p). Há décadas que se aponta o uso da linguagem cinematográfica como importante instrumento de formação histórica, integrando, orientando e estimulando a capacidade de análise dos estudantes, a partir da utilização de filmes já existentes como fontes para a discussão de temas históricos, acompanhando-se os anseios decorrentes da revolução promovida pelos meios de comunicação e informação e que a academia parecia ignorar: A introdução do cinema como instrumento de apoio ao processo de aprendizado possibilita uma primeira ruptura nesse sistema acadêmico. Através da utilização de fitas cinematográficas como recurso didático, estaríamos lançando mão de um dos mais poderosos meios de comunicação e também utilizando uma linguagem absolutamente atual. É inegável o alcance e a popularidade adquiridas pelo cinema nos dias de hoje, a ponto dele ter-se tornado um dos elementos centrais da vida cultural, intelectual e informativa do homem moderno (NÓVOA, 1995, s/p). É claro que a linguagem cinematográfica permite uma série de abordagens, por isso mesmo, é complexa, nos colocando frente a uma questão preliminar: que tipo de filmes utilizar em nossas atividades pedagógicas? Conforme Nóvoa (1995) nos indica, tal resposta deve ser a mais abrangente possível já que o conteúdo do filme, seja de que tipo for, tem as suas relações com a história. O filme é um recurso particular e insubstituível que toma de assalto os indivíduos e suas razões, envolvendo-os na trama do real.ii Os Filmes em Contextos Específicos “Essa Guerra nunca será esquecida, tampouco os heróis que nela lutaram.” O conteúdo desse trecho de diálogo é repetido no decorrer dos filmes aqui trabalhados, especialmente, em Troia do diretor Wolfgang Petersen (2004) superprodução de Hollywoodiii com atores premiados (Brad Pitt, Orlando Bloom, etc.). Essas leituras cinematográficas do texto poético a Ilíada, creditada a Homero, tratam do épico conflito entre gregos e troianos desencadeado pela fuga de Helena (“a mais bela” e esposa do rei espartano Menelau) com o príncipe troiano Páris, o que levaria a união dos exércitos gregos liderados por figuras como a de Ajax, Diomedes, Ulisses e do semideus Aquiles (filho da Deusa Tétis com o mortal Peleuiv) que se imortalizariam na guerra de Troia. Nessas películas existe a ênfase em organização social voltada para o exercício da guerra, a mais nobre de todas as atividades do mundo clássico, por meio da qual se alcançaria a imortalidade, esta última o pano de fundo dessa filmografia. A herança legada por essa peça literária grega ao mundo ocidental vai muito além de expressões amplamente popularizadas como “presente de grego” cunhada a partir do episódio do cavalo de madeira deixado como oferta a Poseidon e, também “o calcanhar de Aquiles” que expressa ainda hoje o ponto fraco de determinado indivíduo ou instituição, mas essa discussão não caberia nesse capítulo. É preciso alertar que o texto clássico apenas serviu como inspiração para se compor as películas, tratando de adaptações para o cinema, o que pode ser apontado por divergências importantes a partir de breve olhar sobre a última película produzida por Hollywood e que teve grande inserção mundial por se apoiar nos mais avançados recursos tecnológicos e midiáticos. Assim, ressaltaríamos como diferenças marcantes entre a literatura e o filme: A duração da guerra que se passa em semanas, enquanto que na literatura se estendeu por 10 anos. O conflito não foi interrompido com a morte de Pátroclo. Páris viajou para Esparta e sem a companhia de seu irmão Héctor. Aquiles não estava no interior do cavalo (o presente de grego)v. O rei Menelau não foi morto por Héctor em Troia, mas levou Helena de volta a Esparta. Páris não sobreviveu a guerra, tampouco fugiu com Helena. O Rei Príamo não foi morto por Aquiles, mas por seu filho Neoptólemo. Muito embora, A Guerra de Troia (1961), produção Franco-italiana dirigida por Giorgio Ferroni, tenha buscado observar com mais proximidade os fatos presentes no texto literário clássico, não deixa de ser uma adaptação para o cinema que implicou em seleção de fatos e personagens que seriam apresentados. Nessa película, também se enfatizou a figura de um semideus, mas diferentemente da versão de Hollywood que coloca Aquiles como protagonista, o foco é no troiano Enéas vi que tem romance com Creúsa (filha de Príamo e irmã de Páris). Porém, em ambos os casos, as rotinas dos exércitos gregos e troianos foram apresentadas destacando-se um dos seus bravos guerreiros: ora Aquiles, ora Enéas. A produção Franco-italiana do início dos anos de 1960 ficou longe do neorealismovii presente no cinema italiano. Ainda que os cenários e a produção dessa película fosse bastante mais modesto do que a superprodução americana, o filme A Guerra de Troia teve em seu elenco atores populares como Steve Reeves (Enéas). Esse filme relata o último ano da Guerra, após quase uma década do rapto de Helena, os gregos decidem por um fim ao conflito reunindo grande exército contra os troianos, nesse aspecto, essa adaptação para o cinema foi mais “atenta” ao texto da Ilíada. O filme tem início já com a morte de Heitor que havia matado Pátroclo o melhor amigo de Aquiles, enquanto que em Troia a trama se inicia com a fuga de Helena e a história segue até o fim da guerra apresentada em semanas. Nas duas películas, a mitologia é simplificada para o público da época, na produção Franco-Italiana por exemplo, Aquiles é morto por Páris com uma flechada em seu calcanhar, mas não há referência ao mito do semideus, e sua morte é explicada em decorrência do veneno na ponta da flecha e não por ter sido atingido em seu ponto vulnerávelviii. A figura de Helena também é controversa e apresentada de maneiras distintas nestas adaptações: em Hollywood é a mulher injustiçada e infeliz que encontra o amor e a esperança no príncipe troiano Páris, mas na produção Franco-italiana é apresentada como a adúltera que tem a oposição do heroi Enéas. A figura de Páris em ambas as releituras está mais próxima do antiheroi, imagem bastante clara no filme Francoitaliano se opondo a Enéas durante toda a trama. Páris foi descrito na Ilíada como “um homem de pouca coragem e nenhum valor” (NUNES, 1969). Diante desses breves apontamentos poderíamos nos indagar a validade do apelo a esse recurso audiovisual na discussão da educação para a guerra no mundo clássico, já que o roteiro do filme exalaria a moral e os valores hollywoodianos ou franco-italianos, ambos contemporâneos. Mas é justamente nesse sentido que inserimos o problema da verdade histórica, onde a Odisseia e a Ilíada remetem a um tipo de narrativa de um tempo incerto, talvez distante séculos dos acontecimentos da guerra de Troia. A cultura clássica transmitida oralmente pelas gerações por meio dos cantadores era, certamente, sujeita as adaptações de cada época. No caso desses textos clássicos, Homero teria escrito esse poema por volta do século VIII a.C., ou seja, quatro séculos depois do conflito entre gregos e troianos. À altura do século XII a.C., a escrita com base no alfabeto ainda não havia sido desenvolvida. Por esta razão, não há registros históricos que comprovem os eventuais fatos históricos ocorridos. Na ocasião, as tradições eram transmitidas oralmente, de geração a geração, por cantadores, e estavam sujeitas a todo tipo de alteração que essa categoria de divulgação provoca. Assim, quando Homero - ele próprio uma figura sobre a qual não há comprovação histórica da existência, ou mesmo de que tenha, de fato, sido o autor original da Ilíada e da Odisséia - perpetuou seus poemas, fez com base em outras histórias que relatavam feitos - reais ou imaginários - que vinham de uma tradição de centenas de anos. Dessa forma, colocar as produções fílmicas em torno desse acontecimento do mundo antigo mostra não apenas os valores e a moral da época em que foram produzidos, mas as diferentes representações históricas de um mesmo acontecimento. Assim, questionar os motivos que levariam os dois povos ao conflito na Ilíada e também nos filmes deve fomentar a reflexão crítica sobre os sentidos produzidos pelo texto ou película que retratam a história, facilitando a percepção dos diferentes tempos históricos diversificando as possibilidades de construção do conhecimento sobre o passado. Muitas questões poderiam fomentar esse processo: Seria a guerra desencadeada apenas pela fuga de Helena com Páris? Na produção americana onde estariam os imortais do Olimpo tal como Ajax Menor, Ajax Maior ou Diomedes que ocupam boa parte das páginas iniciais do texto da Ilíada? Por que a ênfase na figura de Aquiles no filme de Hollywood e em Enéas no Franco-italiano? Teria a mitologia ocultado os interesses nas riquezas territoriais de Troia (rica em minérios e trigo) por parte de Agamenon, irmão do rei traído Menelau que reuniu o exército dos 50 mil? O filme Tróia insere-se na velha fórmula hollywoodiana que associa heroísmo, paixões e morte, num cenário bastante bonito. Além disso, faz adaptações que encaixam perfeitamente na regulação ou normatização social atual, como a supressão de referências as práticas homossexuais, tão comuns à época retratada pelo filme. Por isso a necessidade da análise crítica e o diálogo com os filmes para desconstrução da pedagogia do herói montada sobre seu roteiro. É importante apresentar aos alunos o contraponto a “normatização” da vida que tem como centro de referência as sociedades desenvolvidas e seus valores, por isso, o cinema deve estimular o pensamento investigativo, o exame crítico-reflexivo e o diálogo em sala de aula. A Experimentação Fílmica Nesta última seção, buscamos relatar um pouco de nossa prática pedagógica a partir da exibição dessas duas produções junto aos alunos dos cursos de pedagogia de duas instituições diferentes, uma localizada no norte e outra no sudeste do país. A disciplina de História da Educação I, em geral, tem em seu conteúdo programático a abordagem da educação em diferentes tempos históricos, passando desde o estudo das populações ágrafas e seguindo até o fim das civilizações antigas (Egito, Grécia e Roma). Para a discussão da educação no mundo grego antigo, exibimos os filmes aqui trabalhados para fomentar os debates iniciais que deveriam ser acompanhados pela leitura de alguns capítulos da Ilíada. Adotamos como metodologia de trabalho a exibição de um dos filmes na íntegra e apenas trechos do outro, buscando traçar paralelos com o texto clássico. Como esperávamos, Troia agradou mais aos alunos especialmente, acreditamos, por adotar linguagem audiovisual e estética mais contemporânea, além de expressar com maior proximidade os valores atuais, com uma dose maior de cenas de violência, além de atores que lembram cantores cabeludos de uma banda de rockix. A Guerra de Troia, do nosso ponto de vista, parece ter despertado nos alunos a percepção de ritmo lento da trama, as cenas de batalhas, por exemplo, não convenciam como a produção hollywoodiana (com impressionante realismo da melhor tradição dos filmes de ação) e para alguns ganhavam aspecto caricato. Porém, com a leitura do texto da Ilíada, os discentes apontavam o filme Franco-italiano como o que teria sido mais “fiel” ao texto clássico. Dessa forma, por meio dos debates buscamos proporcionar o diálogo com os filmes, não transferindo para eles a responsabilidade explicativa, de forma que a tentativa foi a de desconstruir a pedagogia do herói, reflexo da necessidade de se promover a indústria cinematográfica contemporânea, muito embora, a morte heroica seria o caminho para a imortalidade entre os gregos. Os debates em torno dos filmes e do texto clássico introduziram os estudos sobre a Grécia Antiga, sua cultura militar, a relação com o mar, a substituição do matriarcado pela autoridade paterna, os primórdios da propriedade privada, enfim, o nascimento de um Estado que estimularia um tipo de educação voltada para as virtudes guerreiras. Assegurar a superioridade militar garantiria às classes dominantes o controle da situação interna e a expansão externa como fica bem representado nos filmes (CAMBI, 2001). O importante para a disciplina de História da Educação é a compreensão dessa cultura para guerra que tinha como base uma economia focada em conquistas e saques aos vizinhos, característica especialmente marcante nos gregos de Esparta, mas comum aos outros povos. Os filmes falam de honra, de lealdade e das virtudes militares, de forma que fazer parte do exército desde a mais tenra idade era um privilégio ao mesmo tempo uma necessidade. Em uma das cenas de Troia, Aquiles dispensa seus soldados mirmidões (que lutavam em troca de pagamento) e um deles se nega a abandonar seu líder dizendo: “A honra da minha vida foi lutar ao seu lado senhor”. Em A Guerra de Troia, por sua vez, as figuras de Ajax, Diomedes e Ulisses também são importantes e, mesmo que a primeira cena de batalha só ocorra no meio da película, a cultura para a guerra surgia em muitas falas, Enéas, por exemplo assim afirmou: “Cada dia arrancamos com as armas um novo dia de esperança.” A bravura e o heroísmo eram valores ensinados pelos mais velhos, em outra cena o Rei Príamo no Conselho dos Anciões profetiza: “Ninguém lembrará de um povo por sua covardia, mas todos honrarão um gesto que levará a imortalidade.” Contudo, a bravura apresentada pelos filmes passou pela censura contemporânea, de forma que os laços de companheirismo entre os soldados que muitas vezes eram estimulados pela prática do homossexualismo, não surgem em nenhuma das películas por meio de referências explícitas a essas práticas, obviamente, por não se tratar de um valor próprio as sociedades contemporâneas. Mesmo as inferências presentes no texto clássico são dissimuladas no filme de Hollywood, que apresenta Aquiles e Pátroclo como primos, buscando-se afastar qualquer dúvida sobre a virilidade do semideus capaz de dar a própria vida pelo parente, reforçando-se estereótipos hegemônicos modernos. Outro dado importante para a compreensão dessa cultura da guerra é a religiosidade desses povos politeístas e circundados cotidianamente por presságios, intuições, rituais e sacrifícios aos deuses. Homens e mulheres adoravam e temiam seus deuses e semideuses além de outras figuras mitológicas. Muito embora, a representação fílmica da religiosidade de gregos e troianos é bem diferente, os primeiros seriam muito menos religiosos do que os outros, de maneira que Hollywood coloca a astúcia e bravura grega derrotando a religiosidade troiana. Para se reforçar a compreensão dessa educação para a guerra entre os alunos, também destacamos os rituais de cremação de guerreiros mortos nas batalhas que eram bastante valorizados, depositavam-se duas moedas nos olhos do morto que representavam o pagamento a Caronte, o barqueiro com cara de caveira responsável por atravessar os mortos para o outro lado do Estige, o rio dos mortos, como se pode ver após a morte de Pátroclo, de Heitor e de Aquiles em Troia. Aliás, a navegação para a cultura clássica era um ponto central em suas estratégias militares e comerciais, o Mediterrâneo era a principal via de integração e rivalidade entre os povos que o circundavam. Por isso, a representação de Poseidon, o deus do mar, era envolta de poder que conferia respeito e medo. Esses filmes não apresentam em detalhes os hábitos e costumes de gregos e troianos, pouco vão além de seus rituais militares, mas em Troia a pesquisa realizada pelos seus diretores no Museu Britânico permitiu reproduzir parte das peças feitas em bronze, como lanças, espadas, escudos, utensílios utilizados no cotidiano desses povos, muito embora, as informações sobre a arquitetura daquela cidade não condiziam com o cenário construído para o filme, muito maior e grandiosa, como pode-se observar a partir das muralhas. Nesse ponto, o filme A Guerra de Troia aproxima-se mais da realidade da época, com figurinos bastante modestos, montarias sem selas e uma Troia com muralhas menores. Quando encerradas as atividades da disciplina, pelas avaliações notamos que cerca de 50% dos alunos solicitavam a ampliação dos filmes exibidos, em muitas dessas, salientou-se o papel importante do cinema para a reflexão sobre aquela época (“de nossos antepassados”), enriquecendo-se as aulas. Vejamos algumas falas sobre o uso do cinema em sala de aula: As diferentes abordagens com vídeos e transparências contribuíram bastante para uma melhor interpretação. (Aluno, 2o. sem/2003) A utilização de recursos como filmes, dinâmica para interação entre os alunos, foi de grande valia, na minha opinião realmente houve o aprendizado. (Aluna, 1o. sem/2004) Uma boa maneira de termos uma visão melhor do que está sendo exposto. (Aluno, 1o. sem/2005) Foram muito bem colocados, auxiliando o entendimento dos conteúdos. (Aluna, 1o. sem/2006) Mesmo assim, o problema da cultura visual dos alunos calcada na TV aberta, fez com que surgissem comentários do tipo “Só não gostei pois eram legendados, ou agente lia ou olhava as cenas, mas é importante (...)”, demonstrando também a massificação autoritária que a grande mídia promove junto ao seu público e é exatamente aí que o trabalho com o cinema em sala de aula deve atuar. Em se tratando de alunos de primeiro ano, o esforço para a mudança dessa visão alienada frente ao mundo das imagens é muito maior e os resultados são naturalmente, processuais, de forma que alguns alunos se referiram ao trabalho com cinema na sala de aula de forma distorcida, como vemos nessas falas: “apenas um filme foi bastante interessante com ação” ou ainda “gosto muito de aprender em tele aulas”. As limitações dos equipamentos de projeção ou a qualidade dos vídeos também geraram queixas, sugerindo-se a melhoria dos mesmos, algo considerável, em função de que a qualidade ruim da imagem prejudica a essência do cinema. Considerações Finais Nesse espaço conclusivo, ressaltamos mais uma vez, que essas películas são ficções históricas ou adaptações literárias para o cinema dado não apenas ao caráter de releitura dos textos clássicos carregada de valores e moral do presente, mas também pela peculiar forma de escrita (poesia) desse episódio do mundo Antigo. Da mesma forma em que os deuses gregos interviram na narrativa de Homero, os diretores de cinema apelaram para a estética contemporânea na produção e criação de cenários, figurinos, personagens, muitas vezes pagas pelos patrocinadores dos filmes. Nesse sentido, sobretudo em relação a Hollywood, poder-ia-se dizer que existe um esforço de “colonização cultural” que seria: [...] uma forma de regulação, onde as marcas culturais hegemônicas recebem um espaço não apenas diferente, mas com mais poder. Onde a marca da raça, da classe, da etnia, da religião, da sexualidade, etc, sob o olhar de um artefato cultural, aqui, neste caso, o cinema hollywoodiano, que possui um poder colonizador tanto do ponto de vista econômico como cultural, são representadas e narradas objetivando o controle e a regulação cultural. Essa colonização cultural define um padrão de identidade como “o melhor”, “o verdadeiro”, e tudo que foge dele como “excêntrico”, “exótico”, “anormal”. (FABRIS, 2001, p.2) Ao projetar um filme dessa natureza, torna-se essencial destacar esse olhar junto aos alunos, reforçando-se a ideia de que toda filmagem de textos literários no cinema não passam de adaptações, e que os filmes mesmo que reportem a um período histórico distante, fala muito mais da época em que foram produzidos do que do contexto pretérito que enfoca. Certamente, existem muitos outros aspectos envolvidos na experimentação de alunos que são expostos aos filmes no interior das universidades decorrentes desse novo contexto social atrelado as mídias. O professor não deve se distanciar desse novo cenário, é uma necessidade histórica o entendimento dos processos de modernização das sociedades e sua integração com os novos recursos da comunicação e, no nosso caso específico, com o cinema. A guerra de Troia presente nos textos clássicos e nos filmes revela mais do que o cotidiano militar, é, sobretudo, um evento político que mostra do que a natureza humana é capaz. Não representa apenas a rivalidade entre gregos e troianos, mas anos de agonia, morte e sofrimento colocando situações em que era necessário atravessá-las, por isso não é algo para se celebrar no presente, do contrário estaríamos esquecendo-se das lições do passado. Seria perdoável o fato dos roteiristas e diretores matarem personagens nos filmes diferindo do texto clássico? Seriam simplificações do belo poema em nome da audiência massiva, desprezando-se a rica e fascinante cultura grega antiga? Ou seriam apenas ficções históricas e, portanto, os seus criadores teriam ampla liberdade criativa? Em Troia o narcisismo de Aquiles se assemelha ao de atores contemporâneos que lutam pela fama, ele não estava interessado em servir aos deuses ou a glória grega, tampouco ao seu rei corrupto, sua lealdade era consigo próprio, não amava Briseida era apenas uma motivação para a batalha, esse romance pareceu deslocado, representando um clichê onde o homem apaixonado por uma mulher abandonaria a guerra. Finalizando, esse tipo de atividade fomenta não apenas o interesse por determinada temática, mas também a diversificação da aprendizagem histórica por meio do cinema, de forma que promover a crítica as películas é fundamental para se opor a essa modernização que a indústria cinematrográfica estimula que ameaça a diversidade cultural em favor de um monólogo hollywoodiano. Esperamos ter despertado o interesse por essas produções fílmicas, mas que estão longe do espírito da tradição clássica. Por isso, o convite é também pelas leituras da Odisseia e da Ilíada! 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In Revista História da Educação, v.16, n.36, Jan/abr. 2012, p. 70-88. i No ensino da disciplina História da Educação I são amplamente difundidas as obras de Manacorda, Cambi, Aranha e Ponce, que buscam explicar alguns dos processos educativos a partir da divisão cronológica tradicional, partindo da educação nas comunidades primitivas passando pelas civilizações antigas, medievais até o período contemporâneo, o que indica pouca ou quase nenhuma renovação historiográfica ao menos no que diz respeito ao ensino dessa primeira etapa da disciplina (SOUZA; RIBEIRO, 2012). ii O autor ainda sugere observar o público a ser trabalhado e os objetivos a serem alcançados, de forma que o fascínio do cinema possa colaborar para o desenvolvimento da interpretação, algo indispensável aos estudantes: “Como retratar a vida sem refletir a história? Através da vida pulsando numa tela, é-se arremetido para outros tempos e espaços, a exemplo do que acontece nos filme A Guerra do Fogo e O Nome da Rosa em que os espectadores são transportados, respectivamente, para a pré-história paleolítica e para os infernos dos subterrâneos dos mosteiros medievais, onde a mão de ferro obscurantista da Santa Inquisição domina implacavelmente.” (NÓVOA, 1995). iii É certo que Hollywood nos Estados Unidos é o mais importante pólo do cinema mundial, ocupando lugar de destaque na produção de sentidos, um meio educativo nas regiões onde tem alcance. Hollywood exerce uma pedagogia que ensina de um modo peculiar, possuindo circulação considerável com forte apelo produzido pela linguagem cinematográfica, apoiada no mundo da magia e da arte, em que o uso da câmera, da iluminação, da edição, som e outros efeitos contribuem para a construção dos significados a partir das histórias projetadas na grande tela (FABRIS, 2001). iv O filme não mostra o mito que relata a união entre Páris e Helena. Anteriormente a fuga do casal para Troia, na festa de casamento dos pais de Aquiles, Éris, deusa da discórdia,que não fora convidada, joga entre os convidados uma maçã de ouro com a inscrição “a mais bela”. As deusas Hera, Atena e Afrodite começam a disputar a posse da maçã, porém Zeus determina que Páris, na época um pastor, decida quem ficaria com o título de mais bela. Hera, para ser a escolhida, oferece a Páris riqueza e poder, Atena lhe dispõe poder na batalha e sabedoria, e Afrodite promete-lhe o amor da mulher mais bela do mundo. Ele entrega o prêmio para esta última conquistando a ira das outras duas deusas que ajudariam os gregos na conquista de Tróia. v O fim da guerra tem como personagem principal Ulisses, rei da ilha de Ítaca. Ulisses era um bravo guerreiro que ao perceber que era praticamente impossível adentrar os portões de Troia, teve a ideia de construir um enorme cavalo de madeira oco por dentro e dá-lo de presente aos deuses troianos simulando que tinham desistido da luta. Assim, alguns soldados entraram dentro do cavalo que foi levado para o interior de Tróia pelos próprios troianos. De madrugada eles saíram e abriram os portões da cidade para que os outros guerreiros entrassem incendiando e destruindo tudo. (A Ilíada, tradução Carlos Alberto Nunes, 1962) vi Tanta atenção a esse personagem da mitologia grega teve um propósito: o diretor faria a continuação do filme a partir de Eneas (A lenda de Enéas – 1962) que lideraria os troianos na reconstrução de sua cidade em outra localidade. Enéas era semideus filho de Afrodite. vii O neo-realismo cinematográfico, também classificado como a “arte de resistência” foi movimento rico em transgressividade relativamente às tendências gerais de oferta e da demanda cinematográfica da época, e em termos de produção foi bastante circunscrito e comercialmente marginal (baixo custo e atores desconhecidos), mesmo que importante culturalmente em fins dos anos de 1950 e início da década seguinte (AUGUSTO, 2009). viii De acordo com a mitologia, quando Aquiles nasceu, sua mãe Tétis o banhou de cabeça para baixo no rio Estige para protegê-lo, mas ela o segurou pelo calcanhar deixando vulnerável essa parte de seu corpo. ix Como explicar, por exemplo, dentes tão bem preservados em bravos guerreiros gregos? Ou a que tratamentos as mulheres gregas eram submetidas para terem tão vistosas e longas madeixas na produção Hollywoodiana? Ficção ou realidade?