Ana Cecilia Magtaz Scazufca ABORDAGEM PSICANALÍTICA DA ANOREXIA E DA BULIMIA COMO DISTÚRBIOS DA ORALIDADE Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica, sob a orientação do Professor Doutor Manoel Tosta Berlinck. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1998 2 BANCA EXAMINADORA __________________________ __________________________ __________________________ ___________________________ 3 RESUMO Este estudo pretende abordar, a partir do ponto de vista psicanalítico, a anorexia e a bulimia como distúrbios da oralidade e refletir sobre o tratamento dessas manifestações psicopatológicas. Resgata a tradição judaico-cristã que une o corpo, a carne e a sexualidade; esta deve ser eliminada, pois é vista como pecado. Isto aponta para uma relação patológica entre a anorexia, a bulimia e a sexualidade. Sexualidade entendida não apenas como as atividades de prazer genital, mas toda uma série de vivências presentes desde o nascimento. Na contemporaneidade, essas manifestações psicopatológicas aparecem associadas ao ideal do corpo perfeito, sem falhas, representado no corpo das top models. Inicialmente, a anorexia e a bulimia são estudadas como transtornos alimentares, principalmente, sob o ponto de vista psiquiátrico do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais na sua quarta edição, o DSM IV. Em seguida, o critério diagnóstico que indica haver uma “distorção da imagem corporal” nestes pacientes é ampliado, numa ótica psicanalítica. Não se trata da compreensão da imagem distorcida como uma visão distorcida da realidade, e sim, da imagem metafórica que relaciona o sujeito ao outro. Através de questões suscitadas a partir de dois fragmentos clínicos e da leitura de autores que tratam do tema, propõe situar o problema psicopatológico da anorexia e da bulimia relacionando-as às adicções e à concepção freudiana da melancolia e do ideal do ego. Entende que a dimensão perversa do comportamento adictivo na anorexia e na bulimia possui uma dimensão melancólica subjacente. Estas 4 duas dimensões remetem à um nível primitivo das relações de objeto. A noção de oralidade torna-se pertinente para a compreensão dessas manifestações psicopatológicas e reflete sobre o enquadre, a técnica e a transferência, pois a gravidade do conflito oral nessas patologias demanda atenção especial do psicoterapeuta. É preciso, nesses tratamentos psicoterápicos, reintegrar os movimentos de vida, apagados pela destrutividade. Procura pensar o que a clínica da anorexia e da bulima, como distúrbios da oralidade, contribui para a clínica de um modo geral e percebe que a literatura médica sobre a anorexia e a bulimia, como transtornos alimentares, as trata de forma desapaixonada e dessexualizada. Abordá-las como distúrbios da oralidade, sob a ótica psicanalítica, leva ao problema da paixão e resgata a possibilidade de se pensar o que há de mais importante no sujeito: o seu desejo que se constitui nas relações com o objeto de amor. 5 SUMMARY The aim of this study to approach anorexia and bulimia as oral disturbances, and to consider carefully the treatment of these psychopathological manifestations from the psychoanalytic view. Restablish judaic-christian tradition that connects body, flesh and sexuality; the latter, viewed as a sin, must be eliminated. It points to a pathological relation between anorexia, bulimia and sexuality, the latter perceived not only as genital pleasure activities, but a range of experiences that have taken place since birth. Nowadays these psychopatological manifestations are associated with the perfect body ideal, without imperfections, represented by the top model’s body. Firstly, anorexia and bulimia are studied as alimentary perturbations, especially in Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM IV) psychiatric view. Secundly, the diagnostical criterion that suggests the occurrence of a “corporal image distortion” in these patients is amplified to a psychoanalytic viewpoint. It deals with the comprehension of the distorted image as a methaphorical image that relates one person to another, rather than a distorced view of reality. It is proposed, through the questions raised from two clinical fragments and from reading authors that have addressed the theme, to place the psychopathological problem of anorexia and bulimia in regard to the addictions and to the freudian’s conception of melancholia and ideal of ego. The perverse dimension of the addicted behaviour in anorexia and is understood as having a subjacent melancholical dimension. These dimensions go back to a primitive level of object relations. The oral notion becomes pertinent to the comprehension of these psychopathological 6 manifestations. The framework, the technique and the transference is considered, since the gravity of these oral conflict pathologies demands special attention from the psychotherapist. In these psychoterapy treatments the life motion, damped by destructiveness, must be restored. Being anorexia and bulimia oral disturbances, it has been considereded how their clinic may contribute to the clinic treatment in general. Medical literature concerning anorexia and bulimia treats them as alimentary disturbances in a dispassionate and asexual manner. A psychoanalytic approach to them as oral disturbances shows the problem of passion and restores the possibility of thinking about them in light of what is most important in the subject: the disire constituted in relation to the love object. 7 RÉSUMÉ Ce travail prétend étudier, d’un point de vue psychanalytique, l’anorexie et la bulimie en tant que troubles de l’oralité, et réfléchir sur le traitement de ces manifestations psychopathologiques. Il se réfère à la tradition judéo-chrétienne qui unit le corps, la chair et la sexualité; cette dernière doit être éliminée, parce que considérée comme péché. Cela indique une relation pathologique entre anorexie, boulimie et sexualité. Sexualité étant prise non seulement dans le sens des activités du páisir génital, mais de tout un ensemble d’expériences vécues depuis la naissance. Dans le contemporanéité, ces manifestations psychopathologiques se trouvent associées à l’idéal du corps parfait, sans défaut, idéalisé dans le corps des top models. L’anorexie et la boulimie sont d’abord étudiées comme troubles alimentaires, principalemet du point de vue psychiatrique du Manuel Diagnostique et Statistique des Troubles Mentaux, 4o.édition (DSM IV). Ensuite, le critère diagnostique qui indique une “déformation de l’image corporelle”chez ces patients est élargi, dans une optique psychanalytique. Par image déformée, il ne s’agit pas d’une vision déformée de la réalité, mais de l’image métaphorique qui relie le sujet à l’autre. A partir de deux fragments cliniques et des questions qu’ils suscitent, ainsi que de la lecture d’auteurs qui traitent du sujet, ce texte propose de situer le problème psychopathologique de l’anorexie et de la boulimie dans leur rapport avec les addictions et avec la conception freudienne de la mélancolie et de l’idéal du moi. Étant entendu que la dimension perverse du comportement addictif dans l’anorexie et la boulimie possède une dimension mélancolique sous-jacente. Ces deux dimensions 8 renoivent à un niveau primitif des relations d’objet. La notion d’oralité se montre pertinente pour comprendre ces manifestations psychopatologiques. Une réflexion est faite sur le cadre, la techinique et le transfert, car la gravité du conflit oral des ces pathologies exige une attention particulière du psychothérapeute. Il faut, dans ces tratements psychothérapiques, réintégrer les mouvements de vie effacés par la destructivité. Cette étude enfin séfforce de pensar ce que la clinique de l’anorexie et de la boulimie comme troubles de l’oralité, apporte comme contribution à la clinique en général et remarque que la tittérature médicale sur l’anorexie et la boulimie comme troubles alimentaires, les traite de façon dé-passionnée et dé-sexualisée. Montre que les aborder comme troubles de l’oralité dans l’optique psychanalytique, conduit à la question de la passion et permet de revenir à ce qu’il y a de plus important chez le sujet: son désir constitué dans les relations avec l’objet d’amour. 9 À menória de meu pai, Oscar Magtaz. Para Bertha, Janete, Sérgio e Luis, pela felicidade de tê-los. 10 AGRADECIMENTOS Ao CNPq, pelo auxílio - bolsa, sem o qual não teria realizado esta pesquisa. Ao Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, pela oportunidade de pensar e escrever sobre a clínica psicanalítica e, por me ouvir e me acolher em São Paulo. Aos professores Milton Lopes de Souza e Paulo Roberto Ceccarelli, quando do Exame de Qualificação, pelas importantes observações e sugestões que enriqueceram este texto. A Veridiana Fráguas e a Lou Muniz Atem, amigas queridas, pela paciência da leitura da primeira versão deste trabalho, apontando imprecisões e confusões do texto. Ao Antônio Ricardo Rodrigues da Silva, pelo incentivo de expor minhas idéias e defendê-las sem medo. A Daniela Kurcgant, amiga sempre presente nos momentos importantes da minha vida. Que me forneceu preciosas contribuições para o trabalho institucional com pacientes psiquiátricos. A Andrea R. de Mazzieri Rathsam, grande amiga, com quem pude dividir as angústias produzidas pelo difícil trabalho de escrita em psicanálise. Aos pesquisadores do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, pelas valiosas contribuições durante todo trajeto deste estudo: Mira Wajntal, Lou Muniz Atem, Manoel Tosta Berlinck, David Calderoni, Paulo Roberto Ceccarelli, Marta Conte, Daniel Delouya, Claudia Gigante Ferraz, Veridiana Fráguas, Maurício Silveira Garrote, Maria Elisa de Abreu Pessôa Labaki, Ney Branco de Miranda, , Júlio Cesar Cordeiro do Nascimento, Edilene Freire de Queiroz, Renate Meyer Sanches, Mônica Seincman, Antônio Ricardo Rodrigues da Silva, Milton Lopes de Souza e, 11 especialmente aos amigos: Ana Cleide Guedes Moreira, Rubens Marcelo Volich, e Claudio Waks. A Janete Rosen Magtaz, pelas discussões esclarecedoras sobre o tema e por acolher minhas angústias enquanto produzia o texto. A Maria Scazufca, leitora atenta, pelo cuidadoso trabalho de tradução dos textos franceses e de revisão final do texto. Ao Sérgio Scazufca que me acompanhou carinhosamente durante todo o percurso. A Isabel da Silva Khan Marin, pela sua presença afetuosa que muito me ajudou a enfrentar momentos difíceis durante este trajeto. A Flávia Gusmão Eid, pela sua generosidade, pelo seu estímulo. A Simone, com quem dividi a oportunidade de aprender com estes pacientes. Aos amigos cariocas que me incentivaram a produzir este trabalho: Marisa, Doca, Beto, Regina e Selma. A “Clara” e “Vera”, pela oportunidade de entrar num campo de estudos tão denso e rico. 12 ÍNDICE INTRODUÇÃO.................................................................................................13 CAPÍTULO I: A ANOREXIA E A BULIMIA COMO TRANSTORNOS ALIMENTARES..................................................35 Abordagem psiquiátrica.......................................................................................35 Abordagem psicodinâmica..................................................................................42 A imagem corporal..............................................................................................50 CAPÍTULO II: CLÍNICA................................................................................63 Introdução à parte clínica....................................................................................63 Caso 1: Clara, uma mocinha amarrada................................................................64 Caso 2: Vera, de sua torre matava o outro...........................................................75 Comentários.........................................................................................................83 CAPÍTULO III: A ANOREXIA E A BULIMIA COMO DISTÚRBIOS DA ORALIDADE.......................................................89 A anorexia e a bulimia como adicções.................................................................89 Anorexia, Bulimia e Melancolia.........................................................................102 A questão do Ideal...............................................................................................109 CAPÍTULO IV:O TRATAMENTO DOS DISTÚRBIOS DA ORALIDADE SEGUNDO UMA ÓTICA PSICANALÍTICA.......................119 CONCLUSÃO....................................................................................................129 BIBLIOGRAFIA CITADA...............................................................................136 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA...................................................................141 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA........................................................................143 INTRODUÇÃO 13 Nas últimas duas décadas, a anorexia, a bulimia e a obesidade, difundiram-se nos meios de comunicação, juntamente com as dietas milagrosas, os moderadores de apetite e as cirurgias estéticas. Estas manifestações aparecem associadas, principalmente, às mulheres jovens, à imagem de um corpo ideal, à perfeição, ao excesso e à morte. A psiquiatria anglo-saxâ descreve a anorexia nervosa e a bulimia nervosa como transtornos alimentares. Resumidamente, a anorexia nervosa é caracterizada por uma recusa a manter em um nível normal o peso do corpo e a bulimia nervosa, por uma ingestão descontrolada de muitos alimentos seguida de comportamentos de expulsão, como vômitos, jejuns e exercícios físicos excessivos. A principal característica destes transtornos é uma séria perturbação da imagem corporal e o medo exagerado de engordar. Não é raro encontrar em jornais e revistas femininas reportagens a respeito da anorexia e da bulimia como “obsessões”, em que o cuidado com o corpo e a beleza transformam-se em morte. Em fevereiro de 1996, o jornal O Globo traz como título a seguinte matéria assinada pela jornalista Leneide Duarte: “Anorexia: a obsessão pela magreza leva adolescentes à morte”. A matéria prossegue: “Doença ainda desconhecida, a anorexia é um flagelo que atinge principalmente as mulheres entre 12 e 20 anos. Definida como um distúrbio alimentar, ela costuma se manifestar logo depois da puberdade e se caracteriza pela obsessão de não engordar, que acaba levando à desnutrição, inanição e até à morte.”1 Ainda na matéria, a psicóloga Rosita Chaves comenta ser a alimentação, nessas meninas, uma verdadeira obsessão. Inicialmente, há uma ideal de 1 “Anorexia: a obsessão pela magreza leva adolescentes à morte”, in: O Globo,24/02/96. 14 purificação do corpo, de comer o que é somente saudável. No entanto, este ideal transforma-se em um verdadeiro pânico de se alimentar, um dos principais sintomas deste distúrbio que começa com a distorção da imagem corporal, isto é, a pessoa se vê gorda quando não é. Outra reportagem, do jornal O Estado de São Paulo assinada pela jornalista Stella Galvão em 19 de Janeiro de 1997, intitulada “Guia ensina pais a lidar com anorexia de jovens. Obsessão de adolescentes por dieta e ginástica pode ser sinal de doença de origem nervosa”, diz o seguinte: “Pais de adolescentes devem se manter alerta para a possibilidade de que a obsessão de suas filhas por dietas e exercícios físicos possa ser sinal de anorexia nervosa, um distúrbio psiquiátrico cuja incidência é crescente na faixa pré-adolescente”. Ainda na matéria, o psiquiatra Táki Cordás, coordenador do Ambulatório de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, comenta: “Cada vez mais precocemente crianças estão assumindo o papel de adultos e passando a sofrer os efeitos da pressão social em torno da imagem corporal.”2 Com relação a este comentário, na literatura específica sobre o tema, chamam a atenção as considerações sobre a obsessão pelo baixo peso e o medo intenso de engordar que caracterizam a anorexia nervosa e a bulimia nervosa como transtornos alimentares, como sintomas decorrentes das exigências sociais contemporâneas de que para ser bela, a mulher precisa ser magra. Essa questão tem sido abordada por alguns psicanalistas da seguinte maneira. Silvia Wainstein3 entende a anorexia nervosa como uma forma de mal-estar em nossa cultura. Segundo ela, a valorização das imagens é uma característica do 2 “Guia ensina pais a lidar com anorexia de jovens”, in: O Estado de São Paulo, 19/01/97. Wainstein, Silvia. “Tratamiento Posible de la Anorexia”, in: Anorexia, Bulimia e Hipocondria Clínica de Borde 1. Buenos Aires, Convocatória Clínica Ediciones, 1995, p. 85-89. 3 15 imaginário pós-moderno. Os valores de mercado e consumo são regidos pelas imagens pois, estas são criadas constantemente. A imagem perfeita e idealizada como, por exemplo, a da top model, transmite para muitas adolescentes um estilo que as fascina. As mudanças corporais e as fantasias sobre o corpo, próprias da puberdade, abrem um campo para a idealização dessas imagens, possibilitando aos adolescentes pertencer a um conjunto de sujeitos semelhantes, ou seja, sujeitos que possuem uma imagem aceita socialmente. Desta forma, a autora observa que a dinâmica de nosso momento histórico, que valoriza o consumo de imagens, tende a propiciar o surgimento de uma obsessão pelas imagens, uma característica importante em patologias como a anorexia e a bulimia. Na clínica com pacientes anoréxicas, escuta-se freqüentemente que a anorexia teve início depois que a adolescente passou a viver em função de tentar emagrecer achando que, assim, se tornaria linda como a imagem de uma top model. A frustração de não conseguir transformar-se numa imagem perfeita pareceu reforçar a obsessão pela mesma, propiciando um círculo vicioso. Ampliando a compreensão sobre esta questão da obsessão pela imagem, no artigo “Beleza Feminina: Um Tema da Clínica Contemporânea”4, as autoras percebem um discurso da mulher muito voltado para o corpo, a aparência externa e a beleza. Há um grande investimento libidinal em cuidados com a imagem corporal e, em alguns casos, há um excesso de preocupação com isto e tanto sofrimento, que sugerem um desvio para a doença. “Adolescentes graciosas torturam-se por alguma imperfeição física imaginada; mulheres maduras se desesperam ante a perspectiva de 4 Minerbo, Marion; Guimarães Khouri, Magda; Ajzenberg, Raquel e Grunberg, Stela. “Beleza Feminina: Um Tema da Clínica Contemporânea”, in: Revista Brasileira de Psicanálise, vol. XXXI, número 3, 1997, p. 809-819. 16 envelhecer.”5 Mostram existir um limiar entre a beleza a favor da mulher e a excessiva preocupação que leva a patologias graves, como a anorexia e a bulimia. Mas o que define este limiar? O que faz com que uma preocupação, que significa um cuidado consigo transforme-se numa obsessão que pode levar à morte? Segundo as autoras, o nosso momento histórico abre espaço para uma fantasia que seria a seguinte: “escolha seu estilo de vida, escolha sua imagem, escolha o rosto e o corpo que deseja, a tecnologia torna seu sonho possível.”6 “Instrumento de arrependimento e penitência característico de nossa época, o espelho evoca Narciso e sua morte.”7 Neste ponto, as autoras começam a se aproximar do que elas chamam de “uma patologia da beleza”. Numa ótica freudiana, apontam que o ideal do ego, herdeiro do narcisismo primário, tende a colocar a exigência de beleza num limite extremo. Neste limite, a mulher não busca mais a beleza natural, explorar suas qualidades, mas sim, ter um corpo completamente perfeito. Porém, o resultado desta busca impossível pela perfeição resulta em uma insatisfação crônica com o próprio corpo. É neste ponto que as autoras alertam que, com estes procedimentos, do saudável cuidado com o corpo, pode-se desviar para uma obsessão, uma patologia. Pois o corpo perfeito passa a ser oferecido como algo possível, ao mesmo tempo que não é. Neste contexto cultural, o sujeito busca a perfeição pelo cuidado com a imagem corporal, entregando-se ao que elas chamam de “narcisismo militante”8. Daí o risco que se corre, apontam as autoras, “de que a busca pela beleza torne-se um fim em si mesmo. Pois o padrão de beleza colado com o ideal torna-se uma figura mítica, 5 Idem, p.810. Idem, p.813. 7 Idem, p.814. 6 17 em que se busca ser todas as mulheres belas numa só”. A top model encarna este mito; ela não é apenas bela, representa-se como a Beleza. Ela , na sua perfeição, chegou ao “grau zero de beleza” como denominam as autoras, ou seja, uma beleza máxima, idealizada por homens e mulheres, à distância, em fotos ou nas passarelas da moda. A falha, que é própria do humano, está excluída dessa imagem perfeita. “O efeito produzido por esta potencialização máxima da beleza se situa entre o estático e o extático, entre a imobilidade e o êxtase, entre o grau zero e o infinito.”9 Uma imagem perfeita que paralisa os expectadores diante dela. A top model deixa de ser uma mulher linda e passa a ser um dogma: ser bela é ser como uma top model. No entanto, ela, como imagem utópica de mulher, torna-se sem vida, de tão perfeita que é. Curiosamente, cada vez mais, vê-se top models muito parecidas, andrógenas e maquiadas de forma a transmitir uma imagem desvitalizada: olheiras fundas, cores escuras e muita sombra nos olhos, além de estarem cada vez mais magras. Um desfile de silhuetas ditas perfeitas, com passos idênticos e repetidos, pelos corredores da moda, fascinando, principalmente, as mulheres. De qualquer forma, o efeito top model apontado pelas autoras produz a confirmação, embora por pouco tempo, de que é possível ser perfeita. “Os avanços da medicina, imunologia, cirúrgia plástica, academias de aperfeiçoamento físico, permitem encarnar na ordem do possível algo que pertencia anteriormente ao campo do ideal.”10 Como foi visto, os cuidados obsessivos e compulsivos com o corpo, as punições corporais (exercícios físicos em excesso, as inúmeras cirurgias, as dietas rígidas, etc.) podem representar uma tentativa de extinguir o sofrimento causado pela 8 Idem, p.815 Idem. 10 Idem,p.816. 9 18 busca impossível de um ideal de corpo perfeito, por mais que as top models acenem a perfeição como uma possibilidade objetiva. Porém, a perfeição significa algo sem vida, ou seja, sem conflitos, sem falhas e nem lugar para o inusitado, próprios da vida. Não é essa a imagem que revelam as anoréxicas, uma imagem desvitalizada, assexuada? Entre bonecas bebês que são alimentadas e cuidadas encontra-se a Barbie, uma boneca que também encarna este ideal de perfeição. Ela tem o corpo de uma top model, é a boneca da moda, não é uma boneca bebê ou menina, é a mulher que todas as meninas almejam ser. Explora a imagem perfeita, uma imagem utópica de mulher. Dizem os médicos que, provavelmente, se alguma mulher tivesse as medidas da Barbie, não menstruaria. Pode-se pensar que o corpo “divino” da top model e da boneca Barbie, ou seja, um corpo perfeito é o que deseja a anoréxica. Em oposição à busca deste corpo perfeito encontra-se a obesidade e a voracidade bulímica (bulimia quer dizer “fome de boi”11). Parece haver uma oposição entre o orgulho de ser anoréxica e a vergonha de ser obesa ou bulímica. Na clínica, é possível ver a anoréxica exibir o seu corpo esquelético como um trunfo e a bulímica esconder, a sete chaves, seu segredo vergonhoso de perder o controle, algo extremamente condenado. É interessante pensar que a utilização de jejuns alimentares pelo Homem não se limita à contemporaneidade através dessas patologias. Como se poderá ver, a anorexia sempre esteve ligada a rituais de purificação do corpo e da alma e a bulimia, ao pecado. 11 Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, RJ, Editora Nova Fronteira, 1975. 19 Por exemplo, Halmi12, que se dedicou ao estudo da anorexia, descobriu nos anais do Vaticano, que a vida da princesa Margarita da Hungria no século XIII, documentada nos anais do Vaticano, corresponde a uma jovem com anorexia. Margarita foi entregue pelo pai à Igreja para que fosse educada. Seus jejuns e trabalhos corporais excessivos foram considerados sacrifícios religiosos não exigidos pela Ordem. A superiora dizia-lhe para parar de jejuar, mas ela implorava que a deixassem sem comer. Trabalhava na cozinha sem provar nada e durante as refeições retirava-se para rezar. Morreu aos vinte e seis anos vítima de uma desnutrição grave. Tradicionalmente, a bulimia como ingestão alimentar desmesurada, como uma fome de boi, segundo Brusset13, aparece como exemplo do pecado da gula, que é a imagem bíblica do pecado original e um dos sete pecados capitais. Em oposição a ela, encontra-se, por exemplo, as restrições alimentares dos ascetismos que se opõem ao corpo pecaminoso e animal, do qual é preciso libertar-se para se alcançar a redenção. Na literatura sobre a luta ascética, encontram-se os inimigos do homem sendo as forças do mal. São eles: o mundo, o demônio e, principalmente, a carne.14 Todo obstáculo que se oponha à consecução dos bens espirituais é um desvio do homem com relação ao seu objetivo. Ele precisa lutar contra o mal e as forças que são postas a seu serviço e que o impedem de chegar à perfeição do espírito, para conseguir uma união com Deus. A carne é vista como o pior dos inimigos, pois ela está no homem e seus ataques são constantes. A carne está em oposição ao espírito. Ela tem um valor afetivo e passional. As paixões estão radicadas na carne, são violentas, por isso perigosas, não 12 Halmi, K. A and Sherman, B. M. “Prediction of treatment response in Anorexia Nervosa”, Elsevier, North Holland Biomedical Press. Biological Psychiatry Today, In: Békei, M., Transtornos psicosomáticos en la niñez y la adolescencia, Buenos Aires, Nueva Visión, 1984, p.199-200. 13 Brusset, B. La Bulimie.Paris, PUF( coll Monographie de la Rev. Fr. Psychanal.), 1991, p.7. 14 Garcia Hoz, Victor. Pedagogía de la Lucha Ascética, Madrid, Estabelecimento Tipográfico Sucs, 1946. 20 só pela impulsividade que denotam, mas pela confusão que introduzem na alma, confusão que é negação da ordem.15 E a carne é utilizada para se referir à sexualidade. “A carne é fraca”, por exemplo, é uma expressão muito utilizada. Paixão, carne e sexualidade deveriam ser recusadas, eliminadas. Prevalece a idéia de que a perfeição humana depende da abdicação, da recusa de todos os apetites e desejos da carne. No discurso dos teólogos, o amor consiste na relação com Deus, uma forma de contemplação. Amar significava entregar-se a Deus com a alma e o corpo limpos; unir-se a Ele e renunciar a si mesmo, aos pecados da carne e às paixões.16 Surge, assim, uma “erótica celeste”17 que supõe uma hierarquia entre Deus e os homens. Um erotismo no qual os exercícios do amor são confundidos com a devoção à Deus. Um erotismo sem sexualidade, que implica na recusa da carne, do desejo e do prazer, ou seja, na recusa do corpo. Já o afeto e a paixão são perigosos porque impulsionam o homem ao ato e, é nos atos que encontram-se a perdição ou a salvação do homem. Os jejuns religiosos seriam atos pelos quais o corpo é purificado e a alma também. Os tratamentos punitivos ao corpo têm como objetivo machucar a carne e debilitá-la em oposição à tendência ao vício, ao excesso. O corpo pesado e farto não poderá alcançar a Deus18. É uma luta constante entre o bem e o mal. A religião judaica também dispõe desta dicotomia, bem/mal, mas de uma forma um pouco diferente: O Iom Kipúr (Dia do Perdão) é caracterizado pelo jejum de purificação. Ele marca o fim dos dez dias de arrependimento que começaram em Rosh Hashaná (Ano Novo). Na época do templo de Jerusalém, Iom Kipúr era um dia para a realização de rituais e cultos elaborados para realizar a expiação do povo. Ele 15 Idem, p. 160. Vainfas, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão, São Paulo, Editora Ática, 1986, p. 50. 16 21 continua sendo um dia de absolvição, ainda que tenha se deslocado do templo para a sinagoga, onde se passa quase o dia todo rezando. Para ajudar na reparação de suas mentes e no arrependimento, os judeus são levados a afligir seus corpos através do jejum e de outras formas de abstinência. Sentem-se como se o curso natural de sua existência fosse suspenso enquanto suas vidas estão em balanço.19 Busca-se um reencontro com o poder revitalizador das preces e meditações, com suas mensagens de renascimento, perdão, responsabilidade individual e social. Os judeus apresentam-se diante do Todo Poderoso com uma relação detalhada dos erros, solicitando o perdão e a absolvição no julgamento, para que sejam inscritos no Livro da Vida. É possível citar alguns desses erros: pede-se perdão pelo pecado cometido diante de Deus, “coagidos ou voluntariamente, abertamente ou em segredo, através dos pensamentos íntimos, pela execração do Nome, com comidas e bebidas, por propensão ao mal, perturbado pela emoção, conscientemente ou inconscientemente.”20 No Iom Kipúr todos assumem seus pecados perante Deus como um ritual de purificação. Na celebração do Pessah, a Páscoa judaica, os judeus comemoram a libertação dos filhos de Israel depois de ficarem mais de dois séculos presos no Egito. É proibido, durante os sete dias de Pessah, ingerir produtos fermentados. Não se come pães, biscoitos, bolos, massas, etc. à base de farinha, como também os judeus mais ortodoxos excluem de sua dieta os alimentos enlatados, engarrafados ou industrializados, a não ser que possuam um certificado de Kasher (puro, permitido) para Pessah, concedido por uma autoridade rabínica, de acordo com a lei judaica. Para os ensinamentos judaicos, o fermento representa as imperfeições morais e 17 Idem, p.73. Garcia Hoz, op cit., p.163. 19 Fridlin, Jairo, Iom Kipúr, Congregação Israelita Paulista, 1996. 18 22 tendências negativas do ser humano: “Assim como a massa se enche de ar e cresce, assim também o homem se enche de vaidade vazia”. A razão de se eliminar os produtos fermentados no Pessah diz respeito à busca da purificação espiritual do coração e da alma.21 Todos os rituais e comidas simbólicas do Seder de Pessah - resas e ceia festiva - têm a intenção de fazer reviver o sofrimento dos judeus no Egito. Retomando Brusset, a orgia alimentar remete, também, à teoria freudiana da origem do homem moral e religioso na revolta de uma horda assassina que mata e devora o pai. É interessante esta observação do autor, pois é possível refletir sobre a anorexia e a bulimia a partir desta situação mítica criada por Freud. Seguindo Freud, em “Totem e Tabu”22, na horda primeva, um pai violento e ciumento possui todas as mulheres e expulsa os filhos à medida que eles vão crescendo. Um dia, porém, os irmãos que tinham sido expulsos retornam e, juntos, matam e devoram o pai, terminando com o poder soberano do pai. O violento pai primevo era o temido e invejado modelo de cada um dos irmãos do grupo. E, pelo ato de devorá-lo, identificavam-se com ele, cada um deles adquirindo a sua força e poder.23 Os irmãos, por um lado, odiavam o pai, que castrava a realização de seus desejos sexuais. De outro lado, amavam-no e admiravam-no pelo seu poder. Após o terem eliminado, satisfeito o ódio e identificados com ele, a afeição que tinha sido recalcada retorna sob a forma do remorso e culpa. Surgiu, assim, o sentimento de culpa, que coincidia com este remorso sentido pelos filhos.24 20 Idem, p.41-42. Pessah. A Celebração da Liberdade. Revista produzida pelo Rabinato da Congregação Israelita Paulista (CIP) em Abril de 1989, p.5. 22 Freud, S. “Totem e Tabu. Alguns Pontos de Concordância entre a Vida Mental dos Selvagens e dos Neuróticos”, E. S. B. , Imago, Rio de Janeiro, vol. XIII, 21-162. 23 Idem, p.145. 24 Idem, p.146. 21 23 O que até então era proibido pelo pai real, passou a ser proibido pelos próprios filhos, cada qual à sua maneira. Abriram mão dos seus desejos, deixando de lado as mulheres que tinham sido libertadas. Criaram, do sentimento de culpa, os dois tabus fundamentais: o parricídio e o incesto.25 Este ato bulímico mítico (a morte e a devoração do pai), provocou um sentimento ambivalente nos homens, levando-os a desejar transgredir a proibição do parricídio e do incesto a partir do desejo. O incesto aparece como uma tentação, já que, com freqüência, a proibição é transgredida nas fantasias e, em alguns casos, na realidade. Mais uma vez a bulimia aparece como tentação do mal. O crime bulímico aparece como uma transgressão experimentada na forma de culpa, exigindo expiação. Pode-se pensar que de um lado, estão os filhos maus - bulímicos - que matam e devoram o pai e de outro lado, os filhos que não questionam o lugar poderoso deste pai, os filhos ideais. A anorexia poderia ser compreendida como sendo característica destes filhos ideais. Filhos que não se deixam levar pelas pulsões, pelas identificações e culpas necessárias ao desejo. Ao observar o cristianismo, o judaísmo e o crime da horda primitiva de Freud, com a morte e a devoração do pai, de sua carne humana, vê-se uma relação de recusa da carne que porta o pecado, o mal. A carne trazendo a marca do tabu e do pecado impedindo o renascimento do espírito, a sua ascensão. Se a carne é apresentada como um inimigo do homem, muitos contos, também mostram uma crença na ressureição partindo dos ossos. O esqueleto pode ser tanto um símbolo de morte como de vida. No antigo Egito, o crânio e os fêmures cruzados representavam as duas fontes vitais de poder. Conservar os ossos para preservar o corpo é um tema constante no Antigo Testamento. Em alguns contos de 25 Idem, p.147. 24 fadas, os ossos que cantam servem com freqüência como meio de delatar um assassino e, em alguns casos, com os ossos da pessoa assassinada se faz uma flauta que tem o poder de contar a verdade para corrigir as injustiças que foram feitas com o morto.26 A partir de tudo o que foi dito, é interessante pensar na anorexia, em que o sujeito torna-se somente pele e osso, como estando ligada à tradição da purificação do corpo cheio de pecados e à idéia dos ossos como representantes do renascimento. Como se vê, a anorexia começa, muitas vezes, como uma dieta para purificar o corpo. Não se pode esquecer a tradição que une o corpo, a carne, com a sexualidade, que deve ser eliminada, pois é vista como pecado, algo demoníaco. Isto aponta uma relação bastante patológica entre a anorexia e a sexualidade. Se a anorexia revela uma dificuldade de lidar com a sexualidade, não é difícil imaginar porque esta patologia ocorre mais em mulheres. A imagem do excesso alimentar, citando novamente Brusset, “está associada àquela do excesso sexual, da orgia e a certas qualificações da sexualidade feminina: como insaciável, vampiresca, devoradora e perigosa para o homem. A mulher sempre teve uma imagem diabólica. As bruxas da gula das lendas orientais se apresentam como mulheres jovens e sedutoras que se reúnem à noite nos cemitérios, desenterrando os cadáveres e devorando-os. De dia, elas seduzem os homens e os degolam para se saciar de seu sangue.”27 O pecado original parece ter estimulado esta imagem diabólica da mulher, em oposição à imagem do “homem espiritual, contrário ao pecado, embora responsável por ele sempre que aja como Adão”.28 As principais religiões consideram a menstruação feminina como algo impuro e sujo. Tradicionalmente, as mulheres 26 Cooper, J. C. Cuentos de Hadas. Alegorias de los Mundos Internos. Málaga, Editorial Sírio,1986,p.156. 27 Brusset, Op cit, p.7. 25 trazem em seu corpo a imagem do pecado, do impuro, de algo que perverte a busca da ordem. Pode-se dizer que tanto a anorexia como a bulimia se inserem numa tradição que mantém uma ligação patológica com a sexualidade, com os pecados do corpo que devem ser combatidos. Mas também propõem uma modificação do corpo, fazendo parte de uma demanda contemporânea de que, para ser bela, é preciso ser magra como uma top model ou a boneca Barbie A anorexia, a restrição alimentar, sempre esteve do lado do bem, e a bulimia, o excesso alimentar, do lado do mal, da queda e do pecado. Neste sentido, não é arriscado dizer que elas não podem ser entendidas separadamente, a anorexia complementa-se com a bulimia, são dois lados da mesma moeda, uma luta entre o bem e o mal, entre a redenção e o pecado. Na cultura contemporânea, retomando Brusset, a bulimia representa-se como um ato que subverte a ordem de uma alimentação equilibrada e racional, não animal. Ou seja, a bulimia desafia através da devoração animal, seguida de vômitos, a racionalidade da dieta balanceada, construída segundo a ciência. “De todos os comportamentos humanos e animais, o alimentar é o mais facilmente mensurável, quantificável e que pode ser transformado por fatores controláveis, o que parece permitir uma objetivação científica ideal.”29 Na clínica, ainda segundo o autor, “a bulimia apresenta-se como a busca de um gozo impossível, um tormento, um sofrimento, uma doença. Esta conduta repetida torna-se fonte de angústia e causa de alienação: o sujeito sente-se obrigado a atos que o afastam dele mesmo. A procura de ajuda faz desse ato privado um sintoma. Como o alcoolismo, ela é uma patologia do excesso apresenta as mesmas características de 28 Vainfas, Op cit. 26 impulsividade, de voracidade, de violência, de repetição e de dificuldade de sair da dependência.”30 Outro autor, Kovalovsky31, diz que a anorexia e a bulimia parecem se encontrar fora da moda, ou seja, a moda (entendida como um padrão de beleza a ser seguido ou mesmo as dietas para ter uma boa saúde) deixa de fazer efeito e algo horrível passa a dominar: o esqueleto anoréxico ou os atos violentos de voracidade e expulsão bulímicos que podem levar à morte. O autor supõe que a imagem de horror é o que nos devolve a anoréxica quando acaba o argumento da moda, que na época de Lasègue32 era o argumento hipocondríaco, as dores abdominais e a impossibilidade de suportar alimentos no estômago. Segundo Lasègue, as histéricas reduziam, aos poucos, sua alimentação em função de dores de cabeça ou de mal estares passageiros. Ao final de algumas semanas, não era mais um enjôo passageiro que ocorria e, sim, uma recusa a alimentar-se que se prolongaria por meses e até anos. A doença estava instalada e, seguiria um caminho em direção a um “futuro maldito”, a morte. O mais impressionante, para ele, era o fato delas não se sentirem doentes, e estarem bem desta forma. Esta era a característica principal que chamava a atenção do médico, e a que parece continuar a ser a mesma na atualidade. Mas, de que horror se trata? Para Kovalovsky, algo da ordem do horror é exibido na anorexia, assim como no ataque histérico, o que é preciso investigar. Isto 29 Idem, p. 9. Idem, p. 8. 31 Kovalovsky, Pablo. “Anorexia e feminineidad”, in: Anorexia, Bulimia e Hipocondria - Clínica de borde 1, Buenos Aires, Convocatória Clínica Ediciones, 1995, p. 171-177. 32 Lasègue, Charles. “De L’Anoréxie Hystérique”, in: Archieves Générales de Médecine, Paris, Libraire de la Faculté de Médicine, 21, 1873. Publicado na revista Anorexia, Bulimia e Hipocondria Clínica de Borde I, Buenos Aires, Convocatória Clínica Ediciones, 1995, 19-27, tradução de Silvia Raitzin. A tradução para o português é minha. 30 27 não significa que tem-se que ficar com o olhar fascinado e petrificado frente a anorexia, tão pouco, virar os olhos para o outro lado e ignorá-la. É preciso suportar estar ali diante desse horror, os comportamentos bizarros e a imagem de uma mortaviva, que impede essas mulheres de pensar e ao mesmo tempo, convoca os psicanalistas a questionar sobre a angústia que elas provocam. * A partir de uma experiência psicoterapêutica de uma equipe multiprofissional especializada em transtornos alimentares de um hospital - escola, algumas questões foram suscitadas para uma reflexão sobre a clínica da anorexia e da bulimia (aspectos teóricos e tratamento) . Muitas vezes, na clínica, percebe-se não haver problemas para falar sobre anorexia e bulimia utilizando-se de uma fenomenologia sintomática descritiva, quase médica. No entanto, ao tentar teorizar a partir de uma compreensão psicanalítica, aparecem as dificuldades. Parece que não há o que dizer, nem o que pensar. Este é o desafio desta dissertação: pensar a anorexia e a bulimia a partir de uma experiência clínica difícil e angustiante. O trabalho multiprofissional com pacientes anoréxicas e bulímicas graves, internadas numa enfermaria feminina de um hospital psiquiátrico, e um grupo de mulheres obesas mórbidas, permitiu observar um discurso circular por parte das pacientes com relação a alimentação. De um lado, um discurso centrado na quantidade de comida e no peso ideal a ser alcançado e, de outro, uma crítica a essa preocupação por parte da instituição. Alegavam que comer, no caso das anoréxicas, ou não comer, no caso das obesas não resolveria em nada as suas vidas. O pedido de ajuda vinha para que se solucionasse estas questões alimentares com o médico e o 28 nutricionista ou, dito de outra forma, o pedido de ajuda vinha para que o psicólogo entrasse nessa relação circular de desencontros. O psicólogo não deveria ter a intenção de colocar-se neste lugar, já havia muitos profissionais preocupados com as questões relacionadas ao comportamento alimentar dessas pacientes. Ao invés de ocupar o lugar de “facilitador da relação médico - paciente - comida”, o psicólogo pode seguir um caminho diferente do comum na instituição: o da escuta psicanalítica. Às vezes, como efeito da transferência, o psicólogo angustia-se pensando no que deveria “fazer” para ajudá-las. Ora, fazer, era o que estas pacientes queriam dos profissionais o tempo todo: tudo por elas. Como suas mães, a equipe queixa-se de darlhes um atendimento completo, tudo o que precisavam e, mesmo assim, elas continuavam com os comportamentos excessivos, algumas chegando a morrer ao terem alta. Neste sentido, um trabalho psicoterápico mostrava-se bastante difícil, pois, elas queriam tudo mas nada bastava que as deixassem satisfeitas. Este desafio clínico norteou as questões deste trabalho: o que se pode aprender com estes pacientes, ao invés de ficar paralisado, ou até mesmo petrificado diante de sua sintomatologia? Como a anorexia e a bulimia, que são vistas como “obsessões pelo ideal de perfeição” e como “patologias do excesso” podem ser entendidas numa abordagem psicanalítica? Qual a relação com a melancolia, já que a auto- destrutividade é a sua marca? Qual a relação que elas estabelecem com a sexualidade (sexualidade entendida como conceito psicanalítico: não supõe apenas as atividades e o prazer genitais, mas toda uma série de vivências e excitações presentes desde o nascimento), já que a anorexia se insere numa tradição de eliminar os pecados próprios do corpo, de redenção e a bulimia aparece como um pecado? Quais os 29 limites e possibilidades quanto ao tratamento dessas patologias sob uma ótica psicanalítica? Essas questões são particularmente importantes pois impulsionam a pensar a clínica da anorexia e da bulimia a partir de conceitos tais como: adicção, a perseguição do ideal, a destrutividade e a melancolia. Conceitos fundamentais que possuem questões relacionadas à oralidade e, permitem pensar a clínica da anorexia e da bulimia como distúrbios da oralidade. Logo, encontram-se diante de um campo de estudos privilegiado, que decorre de múltiplas perspectivas de reflexão centradas na psicopatologia e na psicanálise. Neste ponto, é preciso dizer o que vem a ser a Psicopatologia Fundamental, para explicitar a problemática metapsicológica e terapêutica da anorexia e da bulimia que esta dissertação pretende desenvolver. O psicanalista Pierre Fédida33 propõe que o termo psicopatologia seja pensado da mesma forma que o é por Ésquilo na peça Agamenon. Nesta, o poeta utiliza a expressão “Patei-matos” para tudo aquilo que se refere à paixão e que pode se tornar experiência. Psicopatologia significa, nesta perspectiva, “um sofrimento que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno. Como paixão, torna-se uma prova e como tal, sob a condição de que seja ouvida por alguém, traz em si mesma o poder da cura. Uma paixão não pode ensinar nada, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvida por aquele que está fora, por aquele que pode cuidar dela.”34 O fundamental aí é a possibilidade de resgatar a importância das paixões e do sofrimento para a clínica psicopatológica e não somente as descrições e classificações 33 34 Fédida, Pierre. Clínica psicanalítica, São Paulo, Escuta, 1988. Idem, p.29. 30 sintomáticas. Mas, para Berlinck35, para que isto possa ocorrer é preciso ocupar uma posição clínica específica. Ele nos fala que a Psicopatologia Fundamental ocupa uma posição diferente da psicopatologia geral. Enquanto esta está interessada numa abordagem objetiva e universal da sintomatologia dos distúrbios mentais, a Psicopatologia Fundamental está interessada numa abordagem subjetiva e particular das crises psíquicas. Para o autor, a Psicopatologia Fundamental constitui uma posição clínica específica. Uma posição que ele refere ao teatro grego do tempo de Péricles e à medicina de cidadãos praticada em Atenas, nessa época. Ele diz o seguinte: “Tanto o espectador como o médico de cidadãos se inclinam, como na Psicopatologia Fundamental, diante de alguém que porta uma voz única diante de seu pathos, de sua tragicomédia, mas também, de seu sofrimento, de suas paixões, de sua passividade. É clínica, portanto, porque respeita o princípio da voz única que suscita experiência e terapia.”36 Trata-se, para Berlinck, de uma posição especificamente clínica porque ele reconhece que existem outras posições na cidade, dentre as quais destaca a posição do orthos, em que não há lugar para as falhas e o inusitado e a posição do historiador, que se atém a registrar e a relatar o que ocorre na cidade através do que pode ser visto e contado. Berlinck observa: “Desde que a posição da Psicopatologia Fundamental é tal que se dispõe sempre a escutar um sujeito, que porta uma única voz, que fale do pathos, que é somático e que vem de longe e de fora, ela é sempre objeto da transferência, ou seja, de um discurso que narra o sofrimento, as paixões, a 35 Berlinck, Manoel Tosta; “O que é Psicopatologia Fundamental”, in: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, Vol 1, número 1, março de 1998, p. 46 - 59. 36 Idem, p. 56. 31 passividade que possui um corpo onde brota, para um interlocutor que, por suposição, seja capaz de transformar, com o sujeito, essa narrativa numa experiência. Esta palavra, aqui, adquire o sentido preciso de enriquecimento, ou seja, a experiência é a possibilidade de se pensar aquilo que ainda não foi pensado.”37 Para Berlinck, a Psicopatologia Fundamental reconhece existir diferentes posições na cidade, como a posição do orthos e a do historiador. Parece que a necessidade de se reconhecer outras posições na cidade faz parte da posição de escuta ocupada pela Psicopatologia Fundamental, o que leva a pensar que há uma constante necessidade de se visitar e conhecer outras áreas de saber. Sendo assim, a posição da Psicopatologia Fundamental deve permitir, através dos encontros multidisciplinares que suscita, o enriquecimento da pesquisa e o desenvolvimento da terapêutica, o que é imprescindível em qualquer discussão em psicopatologia. Do ponto de vista da Psicopatologia Fundamental, este trabalho tem como objetivo transformar uma vivência clínica com pacientes anoréxicas e bulímicas em uma experiência, ou seja, reconhecer na clínica da anorexia e da bulimia um saber subjetivo que se constrói pela relação transferêncial. A partir de dois fragmentos clínicos, a anorexia procurará eliminar as paixões e o sofrimento, próprios da sexualidade humana. A Psicopatologia Fundamental possibilitará resgatar o pensamento de que na anorexia há um paradoxo: tradicionalmente, ela tenta eliminar as paixões estabelecendo com a sexualidade uma relação psicopatológica. Mas uma relação deste tipo, como foi visto a partir das considerações sobre a Psicopatologia Fundamental, é uma relação apaixonada, pathológica. Pode-se pensar então que, na anorexia, há uma paixão por um ideal de corpo perfeito, sem falhas, sem pecados opondo-se à bulimia. Será notado, assim, 37 Idem, p.57. 32 como esta questão pode ser articulada com a relação psicopatológica estabelecida entre a anorexia, a bulimia e a oralidade, primeira fase do desenvolvimento sexual humano. Oralidade vista como um modo de relação que aponta, fundamentalmente, para os primeiros investimentos objetais pelo Eu. Esta dissertação começará pelo estudo da especificação de transtorno alimentar, característico da psicopatologia geral, com as definições objetivas da psiquiatria contemporâneas acerca do diagnóstico e do tratamento, até chegar a uma formulação subjetiva do que representam estes sintomas e algumas possibilidades de tratamento segundo a Psicanálise. Em conferência proferida no III Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, em Abril de 1998, o Dr. Jorge Saurí falou a respeito de três fantasias básicas que aparecem na clínica contemporânea: a fantasia de onipotência, a fantasia de invunerabilidade e a fantasia de imortalidade. Acredito que estas fantasias aparecem de maneira evidente, representadas no corpo perfeito da top model como um corpo sem falhas. Questões fundamentais do homem contemporâneo, que as anoréxicas e bulímicas apresentam de forma extremada, como se verá ao longo deste trabalho. A clínica da anorexia e da bulimia traz questões importantes para a clínica de um modo geral, por isso ela é fundamental. Três pontos servirão de base para esta investigação: O primeiro ponto, referese aos transtornos alimentares, ao que se diz sobre esses fatos clínicos; o segundo, diz respeito à experiência clínica; e o terceiro, o que, a partir dela, pode-se formular como sendo fundamental para esta clínica e para a clínica de um modo geral. Este último ponto pode ser dividido em mais três interligados: a destrutividade, o comportamento adictivo e sua relação com a melancolia; e o ideal do ego. 33 O primeiro capítulo servirá para uma apresentação da anorexia nervosa e da bulimia nervosa como transtornos alimentares, quais os critérios objetivos traçados para o diagnóstico destas manifestações psicopatológicas e algumas indicações de tratamento. Discutirá critérios e observações objetivas sob um referencial psicanalítico. O segundo capítulo traz o relato de dois casos clínicos e levanta algumas questões sobre a metapsicologia psicanalítica suscitadas por eles e, que serão trabalhadas no capítulo seguinte. No terceiro capítulo, serão vistas, através do pensamento de alguns autores sobre este tema, as relações ente a anorexia, a bulimia e as adicções, a destrutividade e a melancolia. E como estas relações podem nos auxiliar na compreensão da anorexia e da bulimia como distúrbios da oralidade. Por último, o quarto capítulo, traçará algumas possibilidades de tratamento para os distúrbios da oralidade sob uma ótica psicanalítica. As conclusões refletirão sobre a importância da clínica da anorexia e da bulimia como distúrbios da oralidade para a clínica psicanalítica de um modo geral. 34 PRIMEIRO CAPÍTULO A ANOREXIA E A BULIMIA COMO TRANSTORNOS ALIMENTARES Abordagem psiquiátrica: Este capítulo tratará da apresentação psiquiátrica de critérios objetivos para diagnóstico da anorexia e bulimia e algumas indicações para tratamento. A seguir serão utilizados os princípios da Psicanálise para indicar e desenvolver alguns pontos relevantes. Sendo assim, este capítulo tem o objetivo de levantar questões muito mais do que tentar respondê-las, o que se dará mais adiante. A abordagem psiquiátrica sobre a anorexia e a bulimia será vista segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais na sua quarta edição de 35 1994 (DSM IV)38 por reconhecer, ser ele, a principal fonte que orienta a prática da psiquiatria na atualidade. Não será propósito, aqui, fazer uma análise da evolução das idéias psiquiátricas sobre anorexia e bulimia mas, extrair alguns pontos escolhidos na descrição de seus sintomas e de sua fenomenologia para dar relevo aos problemas que estas patologias indicam para a psicanálise, questão central deste trabalho. Para o DSM IV, os dois transtornos alimentares mais importantes são a anorexia nervosa e a bulimia nervosa. As características diagnósticas fundamentais da anorexia nervosa são a rígida recusa a manter um peso corporal em um nível mínimo de normalidade, um medo aterrador de engordar e uma perturbação na percepção da forma e tamanho do corpo distorção da imagem corporal. Além disso, nas mulheres, há a suspensão da menstruação.39 O quadro físico destes casos é terrível: magreza extrema, olhos fundos, cabelos ralos. Ou seja, apresenta as características de um estado de inanição. Segundo o Manual, a perda de peso é obtida, geralmente, através da redução de quase todo o consumo alimentar . Apesar dos pacientes começarem excluindo de sua alimentação os alimentos percebidos como sendo muito gordurosos, a maioria chega a uma dieta extremamente pobre, por vezes somente líquida. Alguns métodos utilizados para a perda de peso compreendem vômitos, uso indevido de laxantes e diuréticos, exercícios físicos excessivos e enemas. Os pacientes referem ter muito medo de ficar gordos e ganhar peso. No entanto, chama a atenção este medo intenso de engordar não diminuir com a perda de peso. 38 Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais. Quarta edição, Porto Alegre, Artes Médicas, 1995. 39 Idem, p.511. 36 “A vivência e a importância do peso e da forma corporal são distorcidas nesses pacientes.”40 A maioria acha que está gorda. Alguns se vêem magros, mas preocupam-se com algumas partes do corpo estarem muito gordas ( barriga e nádegas, principalmente). A auto-estima desses pacientes depende diretamente de sua forma e peso corporais. A perda de peso é vista como uma conquista e auto-disciplina, enquanto que engordar é visto como um sinal de fraqueza e fracasso. Não se encaixa no ideal ascético, como foi apontado no início deste trabalho? A restrição do lado do bem e a gula do lado do mal? Mas, voltando ao Manual. O paciente é levado, freqüentemente, para tratamento pela família, após a ocorrência de uma importante perda de peso. Quando parte do paciente buscar ajuda, isto geralmente ocorre em função do sofrimento subjetivo acerca das seqüelas somáticas e psicológicas da desnutrição: irritação, insônia e isolamento. “Quando seriamente abaixo do peso, muitos indivíduos manifestam sintomas depressivos tais como, insônia, retraimento social, irritabilidade, que satisfazem os critérios para transtorno depressivo maior. Uma vez que esses aspectos também são observados em indivíduos sem anorexia nervosa que estão restringindo sua alimentação, muitos dos aspectos depressivos podem ser conseqüência do estado de desnutrição. No transtorno depressivo maior pode ocorrer uma grande perda de peso, mas a maioria dos indivíduos com esse transtorno não tem um desejo excessivo de perder peso e nem o medo de engordar.”41 Raramente um paciente com anorexia nervosa queixa-se da perda de peso em si. Geralmente não possui insight sobre o problema ou apresenta uma considerável negação quanto a este. “A anorexia nervosa parece ter uma prevalência bem maior nas sociedades industrializadas, nas quais existe uma abundância de alimentos e, no tocante às 40 Idem, p.512. 37 mulheres, ser atraente significa ser magra.”42 Fatores culturais também podem influenciar nas manifestações do transtorno. Por exemplo, em algumas culturas a percepção distorcida do corpo pode não ser salientada, podendo a motivação expressada para a restrição alimentar ter um conteúdo diferente, como desconforto epigástrico ou antipatia por certos alimentos.43 O aparecimento da doença, que ocorre na maioria das vezes na adolescência, está associado com “um acontecimento vital estressante”44, como por exemplo, sair de casa para cursar a universidade. O Manual afirma que mais de 90% dos casos de anorexia ocorrem em mulheres jovens. Para a bulimia nervosa, o Manual apresenta outros critérios diagnósticos diferenciando-a da anorexia nervosa. Os pacientes com bulimia apresentam episódios repetidos de comer compulsivo, envolvem-se em comportamentos inadequados de expulsão e preocupam-se excessivamente com a imagem e o peso do corpo. Entretanto, diferente dos pacientes anoréxicos, os indivíduos com bulimia são capazes de manter normal o peso ou estarem um pouco acima deste. Parece ser esta a diferença fundamental, segundo o Manual, entre a anorexia do tipo bulímico (com momentos de comer compulsivo seguidos de métodos de expulsão) e a bulimia. As características essenciais da bulimia nervosa consistem de “compulsões periódicas”(ingestão, em um período limitado de tempo, de uma quantidade de alimento exagerada) e “métodos compensatórios inadequados”(vômitos, laxantes, diuréticos e exercícios excessivos)45. Para a confirmação do diagnóstico, estes devem ocorrer, em média, pelo menos duas vezes por semana durante três meses. 41 Idem, p.515. Idem, p.514. 43 Idem. 44 Idem, p.515. 45 Idem, p.517. 42 38 Geralmente, o Manual observa que os pacientes com bulimia se envergonham de seus problemas alimentares e procuram esconder seus sintomas. As compulsões periódicas ocorrem em segredo. Um episódio pode, ou não, ser planejado com antecedência e em geral caracteriza-se por um consumo rápido e voraz. Este quase sempre vem acompanhado de um imenso sentimento de falta de controle e culpa. Outra característica essencial da bulimia é o uso compulsivo de comportamentos para prevenir o aumento de peso e a ingestão voraz. A técnica mais comum é induzir o vômito, pois seus efeitos imediatos incluem alívio do mal estar físico e do medo de engordar. As vezes o paciente come para vomitar depois. O uso de laxantes e diuréticos também é comum. A bulimia começa, geralmente, no final da adolescência ou início da idade adulta. O comportamento alimentar patológico continua, pelo menos, por vários anos e apresenta uma freqüência maior de sintomas depressivos do que a anorexia. Na maior parte dessas pessoas, o distúrbio depressivo começa simultaneamente ou aparece ao longo do desenvolvimento da bulimia, sendo que com freqüência atribuem sua tristeza e irritação a esta.46 Para o DSM IV, tanto a anorexia como a bulimia representam uma desadaptação decorrente de falhas no aprendizado alimentar. Porém, os aspectos psicodinâmicos responsáveis por essa desadaptação não são levados em conta, não se constituindo como objeto de estudo. Assim, nesta perspectiva, a compreensão do paciente que apresenta estes transtornos alimentares limita-se à descrição de dados objetivos e gerais. Mas, o que propõem alguns psiquiatras para o tratamento dessas patologias? 46 Idem, p.518. 39 O artigo “Anorexia nervosa e bulimia. Como diagnosticar e tratar”47 mostra como alguns psiquiatras entendem este tratamento, segundo o DSM IV. Com relação à anorexia nervosa, abordam que a grande dificuldade enfrentada é a forma “egossintônica do transtorno”, ou seja, o paciente não acha seu comportamento alimentar estranho e nem anormal, o que leva, desde o início, a um vínculo terapêutico difícil e, até mesmo impossível. O paciente não apresenta uma demanda para tratamento. De acordo com os autores, o objetivo principal do tratamento é a recuperação do peso corporal comprometido pela recusa alimentar e pelos vômitos repetidos. A necessidade de alcançar o peso mínimo aceitável é fundamental, sem o qual abordagens psicoterápicas individuais ou familiares não terão efeito. Alguns casos, para os psiquiatras, precisaram de internação hospitalar, devendo esta ser adequadamente indicada e conduzida. Deve-se estar atento para dificuldades durante a internação como sentimentos de rejeição ou de culpa por parte, principalmente, dos pais, ou após a alta, volta do comportamento alimentar patológico como uma forma de vingança do paciente. No Brasil, Cordás sugere os seguintes critérios para indicar internação, elaborados por psiquiatras e endocrinologistas, em conjunto: “1) Acentuada perda de peso: alguns autores sugerem o índice de massa corpórea menor que 17 como parâmetro, embora posturas mais flexíveis em relação a estes limites possam ser adotadas, tentando beneficiar o tratamento ambulatorial; 2)Complicações clínicas severas; 3)Depressão com ideação suicida; 47 Scivoletto, S., Segal, A, Castilho, S. M. e Cordás, T. A, “Anorexia nervosa e bulimia, como diagnosticar e tratar”, in Revista Brasileira de Medicina, V. 52, Edição Especial de Dezembro de 1995, p.132-142. 40 4) Quadro psicótico presente; 5)Resposta inadequada ao tratamento ambulatorial.”48 Os autores recomendam o atendimento multiprofissional (psiquiatras, psicólogos, nutricionista e um médico que faça um acompanhamento clínico do paciente), uma vez que o tratamento feito por apenas um profissional é, na maioria das vezes limitado. Apontam, ainda, a eficácia da terapia comportamental para aumentar rapidamente o peso garantindo sua participação na maior parte dos programas estruturados de tratamento da anorexia nervosa. Embora sua aplicação mais adequada seja feita em regime de internação hospitalar, algumas das técnicas podem ser empregadas também no acompanhamento ambulatorial ou em consultório. Costumase pedir para o paciente elaborar um diário alimentar pelo qual guiará seu ganho de peso. Não ganhar peso, seja ou não em regime ambulatorial, levará a restrições e o ganho de peso ao advento de vantagens, isto é, todas as regalias conquistadas pelo paciente serão secundárias ao cumprimento do contrato terapêutico de ganhar peso. Tanto no ambulatório como durante a internação o emprego de técnicas cognitivas são utilizadas, ajudando o paciente a rever suas crenças sobre alimentação, imagem corporal e identificando pensamentos distorcidos. A parte educativa, como esclarecimentos quanto à doença, o papel do jejum na manutenção dos sintomas e as formas de tratamento é muito importante para melhorar o vínculo do paciente com a equipe que o assiste. 48 Idem, p. 139. 41 Com relação ao encaminhamento para a terapia individual, a grande maioria dos estudos psiquiátricos não reconhece a abordagem psicanalítica clássica como eficaz. Defendem uma postura atuante por parte do terapeuta, que deve estar capacitado a explorar aspectos psicodinâmicos, como também educar, encorajar, negociar e até desafiar o paciente em temas freqüentes, tais como depressão, sensação de vazio e impotência diante dos sintomas. A terapia individual deve ser uma terapia breve e focal. Ou seja, precisa ter o objetivo de tratar o comportamento patológico alimentar. Para o tratamento da bulimia, em que as internações são mais raras, apesar de existirem diversas abordagens psicoterápicas que podem ser utilizadas, técnicas comportamentais e cognitivas, aconselhamento e orientação nutricional, também são os que têm obtido melhores resultados, segundo os autores. Abordagem psicodinâmica: De fato muitas publicações sobre transtornos alimentares apontam a psicanálise como sendo contra indicada, principalmente, para o tratamento da anorexia nervosa, o que deu margem a outras tentativas de compreensão psicodinâmica.49 Dentre elas, o trabalho de Hilde Bruch. Bruch50 desenvolveu uma valiosa pesquisa sobre “desordens alimentares” que talvez seja a mais importante sobre a origem psicológica da anorexia nervosa. No entanto, é importante ressaltar que parece haver, por parte da autora, uma grande preocupação com os dados objetivos, mais do que com o funcionamento 49 Figueirôa, Lúcia de Fátima de Souza, “Anorexia Nervosa II”, in: Jornal Brasileiro de psiquiatria, 33, p.317-326, 1984. 42 psicodinâmico, na apresentação da anorexia nervosa como manifestação psicopatológica. Partindo de suas observações clínicas, Bruch diferencia a anorexia primária do que ela chama de anorexia atípica. Esta não traz o medo de engordar como fonte de preocupações e, quando o paciente ganha peso fica satisfeito com a situação. A perda de peso possui características pessoais e pode, por exemplo, ser conseqüência de uma depressão expressa. A anorexia atípica baseia-se no fato de que os pacientes geralmente sofrem de uma verdadeira perda do apetite, isto é, a perda de peso é secundária. Não há, nestes casos, a negação delirante de sua imagem corporal, hiperatividade, busca da perfeição e a preocupação constante com a comida, nem episódios de bulimia. A anorexia primária, por outro lado, é caracterizada por um medo desesperador de engordar. Os principais sintomas são o rígido controle do peso (este não pode subir nem uma grama) e o desejo de dominar o próprio corpo, sintomas que encobrem um problema subjacente: a tentativa de controlar tudo e a todos que estão a sua volta, a busca de um sentido de identidade pessoal e de dependência. O anoréxico quer parecer perfeito epor isto aceito aos olhos dos outros.51 Segundo Bruch, a perturbação básica na anorexia primária consiste no distúrbio de três áreas do funcionamento psíquico: “1) Distúrbio da imagem corporal; 2) Percepção errônea dos estímulos e sensações corporais e 3) Sentimento de ineficácia paralisante.” A primeira área é “um distúrbio delirante da imagem corporal”. Segundo a autora, para identificar uma anoréxica primária basta encontrar uma pessoa com a 50 Bruch, Hilde. Eating Disorders - Obesity, Anorexia Nervosa and the Person Within, Basic Books, Harper torchbooks,1973. 51 Idem, p. 251. 43 aparência esquelética, achando-a normal e fazendo tudo para mantê-la. Pacientes podem alcançar o peso mínimo normal ou fazer progressos durante o tratamento quanto a retomar a alimentação, mas se não houver uma verdadeira modificação na percepção e interpretação que têm a respeito do próprio corpo e de suas emoções, é provável que ocorram recaídas e a instalação de um quadro psicopatológico crônico podendo levar à morte.52 A segunda área é “um distúrbio na percepção e interpretação dos estímulos que surgem no corpo”. Este distúrbio mostra que na anorexia há uma incapacidade de perceber a fome. Não há perda do apetite como na recusa a alimentar-se da melancolia. As anoréxicas podem sentir contrações e dores por estarem com fome mas não a reconhecem. O mais comum é se queixarem de mal estar e estarem “cheias” demais após a ingestão de um mínimo de alimento, como por exemplo, uma fatia pequena de bolo. A desorganização dos hábitos alimentares geralmente apresenta uma recusa a se alimentar que se alterna com o aparecimento de uma voracidade descontrolada (episódios bulímicos), porém sem reconhecimento de fome e seguida de comportamentos de expulsão, como o vômito provocado, para aplacar a angústia desencadeada pelo descontrole. Muitas anoréxicas provocam vômitos mesmo sem sofrer episódios bulímicos.53 Outra manifestação típica e muito importante da percepção distorcida da imagem corporal é a hiperatividade. A hiperatividade pode ser considerada a expressão do distúrbio perceptivo da imagem corporal, ou seja, a anoréxica transcende a sua fragilidade corporal mostrando o quanto é onipotente com sua recusa tanto a alimentar-se como a reconhecer que algo não vai bem consigo. O medo de engordar significa medo de perder o controle e tornar-se fraco. Os problemas 52 Idem, p. 252. 44 característicos dos pacientes com anorexia também se explicam pelo não reconhecimento de seus estados emocionais e não somente por uma percepção errônea da fome. A falta de angústia e o afastamento de reações depressivas graves é resultado de uma negação sustentada por uma falha na percepção e na interpretação de suas sensações corporais.54 Para a autora, isto acaba criando a terceira área comprometida que é “o forte sentimento de ineficácia paralisante”. As pacientes sentem que são objetos nas mãos dos outros, que não fazem nada pelo seu próprio desejo. Em contrapartida a este sentimento de dóceis e obedientes passam a ser exigentes e verdadeiras “senhoras de escravos”. São irritáveis e arrogantes e fazem com que a família, principalmente a mãe, passem a viver em função delas e de sua recusa alimentar. Em um outro trabalho, Bruch, parece se descolar um pouco dessa fenomenologia sintomática descritiva e passa a dar uma interpretação psicodinâmica a partir do que ela observou em sua clínica com pacientes anoréxicas. Ela defende que estes distúrbios seriam originários de uma falha nas primeiras experiências dos pacientes com suas mães, comprometendo a habilidade em identificar a fome e comprometendo o reconhecimento de suas sensações internas. Uma mãe narcisista que atribui suas próprias normas ao bebê, respondendo à demanda dele somente oferecendo-lhe comida, impede sua diferenciação, auto-reconhecimento e formação de um esquema corporal que reflita a realidade, impossibilitando a aquisição de uma individualidade e um ego firme. Para Bruch, uma menina indiferenciada, ao chegar a adolescência tem de enfrentar uma segunda individuação. Sentindo-se incapaz de separar-se e de afirmarse, tenta provocar sua força e libertar-se da dependência e a anorexia surge como 53 Idem. 45 mecanismo de defesa. A agressividade volta-se contra o ego ameaçando-o de destruição sob a forma da negação das necessidades vitais. Este mecanismo autoagressivo pode ser acompanhado de traços neuróticos e psicóticos. Segundo ela, algumas particularidades da anorexia também caracterizam a psicose: falha na percepção corporal, identidade confusa e desorganização dos processos simbólicos. Neste sentido, a autora conclui que a anorexia está mais próxima de um processo esquizofrênico ou a um estado borderline do que a uma neurose.55 Em outro artigo intitulado “Morte na Anorexia Nervosa”56, Bruch novamente defende que a recusa do alimento representa a busca de um senso de identidade através de um rígido controle do corpo, um pedido de ajuda e de imposição de limites. Neste sentido, a autora discorda da tradição clínica que diz que a anorexia é sempre “um suicídio que ocorre aos poucos”. A partir de sua observação clínica percebe os pacientes não acreditarem que vão morrer e mais do que isto, ela considera a anorexia, por mais estranho que possa parecer, como uma busca pela vida, por alguma identidade pessoal. A morte na anorexia apresenta-se de forma bastante variável. Não existe uma causa comum de morte e múltiplos e determinados fatores individuais estão envolvidos no desenvolvimento da doença. A autora conclui enfatizando que o psiquiatra precisa ficar alerta com relação a complicações médicas, assim como o médico deve estar apto a reconhecer problemas psicológicos. Para que o tratamento tenha sucesso e evitar um final desastroso, como a morte do paciente, estabelecer uma colaboração psicossomática se faz essencial. 54 Idem, p. 253. Bruch, H. “Cap. Sobre Anorexia Nervosa en el Tratado de Psiquiatria de Arrieti”, in: Békei, M., Op cit.,p.207. 56 Bruch, Hilde. “Death in Anorexia Nervosa”, in Psycossomatic Medicine, v.33, n.2, p.135-144, 1971. 55 46 A experiência de Bruch levou-a a perceber que os pacientes anoréxicos não respondiam bem a um trabalho tradicional de psicanálise. A autora pensa que os motivos da inadequação do tratamento psicanalítico tradicional se dá em função do não tratamento das áreas psíquicas afetadas, ou seja, estas podem ser reforçadas no setting analítico, já que aí o paciente expressa seus pensamentos secretos e o analista interpreta seus significados inconscientes. Isto pode representar a repetição da relação de dependência da anoréxica com seus pais como se ela constatasse algo como: “minha mãe sempre sabe como me sinto”. Uma interpretação sobre as dificuldades do paciente, no sentido de apontá-las para ele, compreendendo como se sente, pode ter um efeito devastador vindo confirmar e reforçar o seu senso de inadequação e ineficácia. Mais uma vez estarão dizendo não ser ele perfeito.57 Estas constatações levaram a autora a reformular a terapêutica para estes pacientes. Para uma psicoterapia ser eficaz, o paciente deve expressar-se como participante ativo no processo terapêutico. Se algo deve ser interpretado, é importante que o paciente descubra sozinho e tenha a chance de falar primeiro. O psicoterapeuta pode concordar ou não se ele achar relevante. Isto tudo é necessário para desenvolver sua autonomia, iniciativa e senso de responsabilidade. O método terapêutico de Bruch, denominado “uso construtivo da ignorância”58, tem como principal objetivo propiciar o surgimento das capacidades próprias de seus pacientes pensarem por eles mesmos. Os pacientes costumam responder bem a esta atitude, reconhecendo no terapeuta um colaborador e não alguém que possui segredos a seu respeito. Segundo ela, uma psicanálise tradicional pode facilitar o surgimento de fantasias como esta nos pacientes. Mas não seria objetivo de qualquer psicoterapia, incluindo o método psicanalítico, o abrir espaço para os pacientes pensarem por eles mesmos? 57 Bruch, H. Eating Disorders..., op cit, p. 336. 47 De qualquer maneira, chama a atenção a constatação de que a psicanálise é contra-indicada no tratamento da anorexia e da bulimia. Será realmente a psicanálise contra-indicada nesses casos? Parece que a questão em torno da eficácia do tratamento psicanalítico situa-se na posição que o psicoterapeuta deve ocupar diante desses pacientes. Retomando a perspectiva psiquiátrica apresentada, o psicoterapeuta deve ser ativo: deve educar, dar conselhos, sugerir. De outro lado, o objetivo terapêutico de Bruch, leva-nos a pensar no psicoterapeuta como alguém que procura atenuar as conseqüências provocadas nos pacientes pelos distúrbios das três áreas do funcionamento psíquico apresentadas anteriormente. A autora parece querer afastar do espaço terapêutico este forte sentimento de ineficácia. Mas não seria importante que ele fosse enfrentado, para poder ser compreendido ao invés de ser afastado? Bruch fala que a anoréxica se sente nas mãos dos outros e vive em função do desejo do outro. De outro lado, este quadro é revertido e de dócil e obediente passa a exigir que todos façam o que ela quer. Há uma alternância entre dominar e ser dominada, ser destruída e destruir. Refletindo sobre o método terapêutico de Bruch, quanto à questão da destrutividade, parece que ela evita entrar em contato com a destrutividade própria desses pacientes quando propõe um trabalho no sentido de atenuar os efeitos dela. Mas estes pacientes desafiam através da destrutividade que será expressa na relação terapêutica pela repetição. Desta forma, se faz necessário pensar que a vivência de repetição que ocorre na transferência, a vivência da destrutividade é fundamental para o tratamento dessas patologias. Isto, na verdade, traduz uma forma de tratamento que traz a vivência da repetição como ponto importante para o seu método. Neste sentido, surge uma posição que se opõe aos autores que afirmam que o método psicanalítico 58 Idem, p.338. 48 não é eficaz. Durante todo este livro, a destrutividade é pensada como uma forma de relação estabelecida por estes pacientes. Retornando às propostas da psiquiatria e de Bruch, a partir do que se viu pode-se perceber uma preocupação excessiva com os sintomas, com a sua eliminação. O que se propõe, por exemplo, é que o paciente se alimente e consiga enfrentar suas dificuldades quanto a autonomia. Não seria esta postura o contrário da anorexia, quer dizer, uma excessiva preocupação quanto a ingestão de comida, o contrário da recusa a comer e ao desenvolvimento da autonomia, o contrário da dependência? Seguindo o conselho de Bruch quanto ao uso construtivo que podemos fazer da nossa ignorância frente a esta patologia, parece interessante a pergunta: O que é possível aprender com estes pacientes, ao invés de incentivar a alimentação e a autonomia neles sem, no entanto, compreender os possíveis significados para tal recusa e dependência? É importante ressaltar novamente o trabalho de Charles Lasègue59. A partir do relato de alguns casos clínicos observados, o autor referia-se, com relação ao saber médico, que “faltam-nos expressões para as variedades de inapetência” e, “a pobreza de vocabulário responde a uma insuficiência de saber”.60 Admitia, portanto, uma ignorância a respeito da anorexia, “desgraça do médico que, desconhecendo o perigo de morte, interpreta essa obstinação anoréxica, esperando dominá-la com conselhos amistosos, medicações e por meio da intimidação!”61 Parece que a anorexia apresentava-se como um enigma, algo incompreensível e desafiador para Lasègue. Desafiador na medida em que sinaliza a dificuldade de tratamento a partir de uma clínica centrada no sintoma, questionando intervenções que teriam como objetivo único controlar os sintomas. 59 Op cit. Idem, p.19. 61 Idem, p.20 60 49 Voltando ao DSM IV e a Bruch, estas abordagens parecem impedir a compreensão da anorexia e da bulimia como enigmas (enigma entendido como algo que revela ao mesmo tempo que oculta) insistindo numa abordagem centrada na suspensão dos sintomas, a recusa a alimentar-se e a falta de autonomia. Mas, apesar dos critérios diagnósticos serem objetivos e restritivos, os dois transtornos possuem um aspecto em comum que vale a pena ressaltar e que pode nos ajudar a pensar estes sintomas na clínica como um enigma: a distorção da imagem corporal. O que significa isto? O que é imagem corporal? A imagem corporal: A distorção da imagem corporal pode transformar-se num enigma como numa sala de espelhos mágicos de um parque de diversões no qual muitas imagens bizarras aparecem e, diante delas, colocam uma situação de horror e descontrole. Dessas diferentes imagens que vão se formando nos diferentes espelhos da sala, o interessante é perguntar quais espelhos distorcem as anoréxicas e bulímicas? Qual a possível relação com o espelho materno? Como se sabe, a mãe funciona como espelho estruturante que deve ter a função de sustentação narcísica. Finalmente, pode-se pensar que, pelo desamparo que revelam através de seu corpo descarnado, foram deixadas nessa sala bizarra de espelhos, que não tiveram escolha e se vêem distorcidas porque talvez tenham sido vistas assim?62 Estas questões levam a pensar que o comportamento alimentar, muito mais do que apenas permitir uma objetivação científica ideal como propõe o DSM IV, permite 62 Digo anoréxica e bulímica no feminino pois 90% dos casos ocorrem em mulheres e só tive contato, na clínica, com mulheres com estes sintomas. 50 a observação e a reflexão sobre as primeiras trocas mãe-filho, ou seja, a história das primitivas relações do sujeito com o objeto quanto aos investimentos objetais. Alguns autores abrem o conceito de imagem corporal para uma reflexão sob a ótica psicanalítica, como Lacan e Dolto. O estádio do espelho, trabalhado por Lacan63, assinala o momento fundamental da constituição do primeiro esboço de ego. A criança, a partir de seis meses de idade, percebe na imagem do semelhante ou na sua própria imagem no espelho, este entendido como metáfora, uma gestalt , uma unidade corporal que lhe falta e com a qual se identifica, ou seja, assume esta imagem como sua. Mais do que conotar um fenômeno que representa o desenvolvimento da criança, ilustra o caráter de conflito da relação dual. “Tudo o que a criança aprende nessa cativação por sua própria imagem é, precisamente, a distância que há de suas tensões internas, aquelas mesmas que são evocadas nessa relação, a identificação com esta imagem.”64 Há no estádio do espelho o que o autor chama de reciprocidade imaginária: ver - ser visto, atacar - ser atacado, passivo - ativo. O sujeito vive estas relações de um modo que implica sua identificação com o outro. Como aponta Lacan, “a identificação com o objeto está no fundo de toda relação com este”.65 Garcia - Roza66 ao comentar o Estádio do Espelho de Lacan, diz que, apesar do nome, este não corresponde necessariamente à experiência concreta da criança frente ao espelho. O que ele assinala é um tipo de relação da criança com seu semelhante através da qual ela constitui uma demarcação da totalidade de seu corpo. Essa experiência pode se dar tanto diante do espelho como diante de outra pessoa. O 63 Lacan,J. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. RJ, Jorge Zahar, 1995, p.15. Idem, p.15. 65 Idem. 64 51 que a criança tem devolvido pelo espelho, pela mãe ou pelo outro é uma gestalt cuja função primeira é ser estruturante do sujeito, mas ainda ao nível imaginário. A vivência do corpo fragmentado cede lugar a uma primeira totalização do eu por um processo de identificação ao outro. Bastos nos fala que, para que o ego se constitua numa imagem tanto corporal como psíquica, é necessário um investimento libidinal sobre a criança vindo dos pais. Este investimento ao qual a criança é submetida precisa do tempo do desmame, da perda do objeto, para se organizar de forma narcísica. Contudo, a constituição do corpo narcísico totalizado não apaga o corpo auto-erótico que o precede, domínio das pulsões sexuais parciais. Levando-se em conta que os dois coexistem, podemos pensar que as experiências de falta e de perda referem-se ao corpo fragmentado auto-erótico. “Isto se dá porque a imagem do espelho é a imagem do duplo, do outro que está dentro de cada um e que, sendo o outro em um, ameaça a totalidade. Ameaçando o corpo, este outro produz uma fratura na totalização. O outro, como parte de si, representa uma contínua ameaça de fragmentação. Assim, tão logo a totalização é alcançada ela é, simultaneamente perdida. Mas para ser alcançada ela precisa deste outro que a quebra. Não há corpo narcísico sem corpo auto-erótico.”67 O resultado dessa identificação ao outro, então, é um eu especular que corresponde ao narcisismo primário (eu ideal). O que caracteriza esse modo de relação é, acima de tudo, a indiferenciação entre o eu e o outro, e, se alguma individualidade surge nesse momento, ela constitui-se ainda como uma primeira unidade corporal do que uma individualidade em termos de sujeito. Esse corpo é, portanto, um corpo imaginário, uma imagem de corpo formada pelas inscrições maternas, pelo outro. 66 Garcia - Roza, L. A, Freud e o Inconsciente, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1991. 52 Nesta relação dual imaginária, o desejo da criança, tal como o seu corpo, não são vividos como seus mas projetados na imagem do outro. Existem duas saídas para esse desejo amarrado ao desejo do outro. Uma, seria pela palavra que, como mediadora, possibilita a entrada no simbólico através do reconhecimento do outro como diferente e a superação do desejo de destruição que marca a relação dual imaginária. Outra saída seria a destruição do outro que possui a imagem da criança. Ao procurar a si mesma só encontra a imagem do outro, já que a criança percebe seu corpo na imagem do outro. Esta identificação produz uma tensão. Há uma necessidade de destruir esse outro para que o eu possa tomar o seu lugar como diferenciado também. A palavra é o que vai permitir ao indivíduo superar a disputa mortal que caracteriza a relação dual imaginária. É a palavra, como mediadora, que vai possibilitar o reconhecimento do outro e a superação do simples desejo de sua destruição. Qual a saída encontrada na anorexia e na bulimia? É preciso ver o que diz Dolto68 para responder esta questão mais adiante. Dolto faz uma importante distinção entre esquema corporal e imagem do corpo. O esquema corporal caracteriza o indivíduo como representante da espécie, quaisquer que sejam o lugar, a época ou as condições nas quais ele vive. “ É ele, o esquema corporal, que será o intérprete ativo ou passivo da imagem do corpo, no sentido de que permite a objetivação de uma intersubjetividade, de uma relação libidinal linguageira com os outros que, sem ele, sem o suporte que ele representa, permaneceria para sempre um fantasma não comunicável”.69 67 Bastos, Liana Albernaz de Melo, Eu-corpando: o ego e o corpo em Freud, SP, Escuta, 1998, p.174. Dolto, Françoise. A Imagem Inconsciente do Corpo, Editora Perspectiva, São Paulo, 1984. 69 Idem, p.14. 68 53 Se o esquema corporal é, segundo a autora, em princípio, o mesmo para todos os indivíduos da espécie humana, a imagem corporal, em contrapartida é própria a cada um: está ligada ao sujeito e à sua história. Ela se representa nas experiências emocionais inter-humanas, vividas de maneira repetida através das sensações erógenas primitivas ou atuais. A imagem do corpo é, a cada momento, memória inconsciente das relações vivenciadas e, ao mesmo tempo, ela é simultaneamente narcísica e inter-relacional. Dolto diz a este respeito: “É graças à nossa imagem do corpo sustentada pelo nosso esquema corporal que podemos entrar em contato com o outro. Todo o contato com o outro, quer o contato seja de comunicação ou para evitá-la, é subentendido pela imagem do corpo; pois é na imagem do corpo, suporte do narcisismo, que o tempo se cruza com o espaço, e que o passado inconsciente ressoa na relação presente. No tempo atual sempre se repete em filigrana algo de uma relação atual, mas pode encontrar-se ali, desperta, re-suscitada, uma imagem relacional arcaica, que permanecera recalcada e que retorna, então.”70 Ainda segundo Dolto, a percepção do mundo da criança se dá conforme a sua imagem atual do corpo e depende desta. Será, portanto, por intermédio desta imagem do corpo que poderemos entrar em contato com ela. É na relação transferencial que poderemos compreender melhor o papel da imagem do corpo do paciente, da sua própria imagem, e da sua projeção sobre o outro. Os encontros com os outros dentre os quais o contato com a mãe é fundamental. Neste momento é oportuno citar Piera Aulagnier71 que trabalha com a representação que a mãe faz do corpo do bebê que ela recebe depois de tê-lo esperado 70 Idem, p.15. Aulagnier, Piera. “Nacimiento de un cuerpo, origen de una história”, in: Horstein, Luis. Cuerpo, História, Interpretación, Buenos Aires, Barcelona, México, Paidós, 1991, 117-170. 71 54 por nove meses. A mãe que espera um bebê, se depara com um corpo quando ele nasce. Este encontro vai exigir uma reorganização de sua própria economia psíquica, que deverá ser estendida a este corpo que ela recebeu. Segundo ela, as manifestações corporais do bebê, seu choro, seu sorriso, sua forma de alimentar-se, etc. produzirão emoções e reações na mãe, que em contrapartida também vai manifestar corporalmente emoções na vida psicossomática do bebê. A relação da mãe com o bebê diz respeito ao prazer ou desprazer que ela sente em estar em contato com o corpo dele. A visão do corpo do seu filho, o toque e a amamentação, por exemplo, são ou deveriam ser, para ela, fontes de um prazer que seu próprio corpo participa e faz seu bebê participar. Este prazer ou desprazer corporal materno se transmite de corpo a corpo; ou seja, “o contato do corpo emocionado da mãe com o corpo emocionado do bebê” vai aos poucos constituindo a vida psicossomática deste. Uma mãe que alimenta o seu bebê com prazer ou não, ou mesmo com indiferença irá afetá-lo de forma marcante. Para a autora, as primeiras representações criadas pela mãe sobre o corpo do bebê, compreenderão um modo de relação que poderá fazer com que a expressão de uma necessidade passe para a formulação de uma demanda de amor, de prazer e de presença, e que transformará os sofrimentos corporais do bebê em um sofrimento vinculado a uma relação que une mãe e filho. O que a mãe percebe nas expressões e posturas corporais de seu filho, seu sono, seu estado de relaxamento ou de ansiedade, seu sofrimento, seu crescer, seu alimentar-se, seu balbuciar e seus silêncios, será decodificado por ela - mãe - decodificação que será transmitida ao filho constituindo, assim, a imagem corporal a partir de uma relação singular. 55 Aulagnier diz também que a percepção materna estará marcada por sua relação com o pai do bebê, por sua própria história infantil, pelas conseqüências de sua atividade de repressão e sublimação, pelos seus sentimentos inconscientes de culpa, um conjunto de fatores que determina, de maneira singular, o modo de viver o investimento materno a respeito do bebê. A partir do que foi visto, os dizeres da mãe, as fantasias da mãe diante do corpo do recém nascido, a decodificação das necessidades do filho que serão transformadas em demanda de amor, tudo isto é transmitido ao filho na fase dual imaginária e constrói aos poucos a imagem corporal. O que é importante ressaltar aqui é que a imagem corporal só existe numa base relacional, de contato com o outro. Voltemos a Dolto. Ela entende a anorexia (inclui nela a bulimia) como uma patologia das imagens do corpo. Essas pacientes (muito mais freqüentes nas meninas do que nos meninos) apresentam uma obsessão consciente que é o medo de engordar. A anoréxica não suporta ver que tem seios, barriga e quadris largos. Isto, segundo a autora, precisa ser analisado, e se trata de “uma perturbação das relações entre a menina e seu pai, entre sua feminilidade imaginária e sua inexperiência com os meninos, mas principalmente, entre a menina e sua mãe, entre a menina e seu espelho. É sobretudo a ela mesma no espelho, a ela mesma em seu próprio olhar, que ela quer agradar, apagando todos os contornos arredondados do seu corpo o que nos leva a pensar este sintoma como estando situado num momento anterior ao Édipo.”72 Neste sentido, é importante retomar algumas questões levantadas por Freud sobre o complexo de Édipo feminino. 72 Dolto, F. Op cit, p.290. 56 Freud73 nos diz que a intensa dependência de uma mulher com relação ao pai faz parte de uma ligação igualmente forte com a mãe, uma ligação que faz parte da fase pré-edipiana e que, nas mulheres, tem uma importância maior do que nos homens. Os níveis pré-edipianos são níveis de relacionamento em que predomina a dualidade (a relação é só com a mãe). Quanto mais primitivo for o aparelho psíquico, mais narcísico e, portanto, mais dual e indiferenciado este será. O movimento progressivo em direção à triangulação, ao Édipo, concede importância à função da terceira pessoa, o pai. Já o movimento regressivo tende à fusão com esse objeto primitivo, único e onipresente, a mãe. Segundo Freud, o eixo central em torno do qual desenvolve-se a problemática do Complexo de Édipo feminino é o deslocamento do objeto primário. O menino está em posição de relacionamento heterossexual com a mãe desde o nascimento e, portanto, tem o pai como rival; daí que o movimento exogâmico será somente um afastamento da estrutura elementar. Na menina, porém, o relacionamento inicial é com uma pessoa do mesmo sexo, tendo o pai como rival. Compreende-se, então, que o eixo do complexo deverá sofrer uma mudança para colocar a mãe como rival e o pai como objeto amoroso. O afastar-se da mãe, na menina, vem acompanhado de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Freud limita-se a estudá-lo na época em que a menina volta-se para seu pai, e a pesquisar os motivos desse fato.74 É a descoberta da possibilidade de castração, comprovada pela visão dos orgãos genitais femininos, que impõe ao menino a transformação de seu Complexo de 73 Freud, S. “A Sexualidade Feminina”. Vol. XXI, E. S. B., Imago, R. J., 1969, 259-279. Freud, S. “Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise - Conferência XXXIII: Feminilidade”, E. S. B., Imago, R. J., 1969, Vol. XXII, (113-134), p. 122. 74 57 Édipo e conduz à criação de seu superego, iniciando assim todos os processos que destinam o sujeito ao encontro de um lugar na cultura. Muito diferentes são os efeitos do complexo de castração na mulher. Ela reconhece o fato de ser castrada, e, com ele, também a superioridade do homem e sua inferioridade, mas rebela-se contra esta sua condição. Dessa revolta abrem-se, seguindo Freud, três linhas de desenvolvimento possíveis: “uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal.”75 “Na primeira, a menina, assustada pela comparação com os meninos, cresce insatisfeita com seu clitóris, abandona sua atividade fálica e, com ela, sua sexualidade em geral, bem como boa parte de sua masculinidade em outros campos. A segunda linha a leva a se aferrar com desafiadora auto-afirmidade à sua masculinidade ameaçada. Até uma idade tardia, aferra-se à esperança de conseguir um pênis em alguma ocasião. Esse complexo de masculinidade nas mulheres pode também resultar numa escolha de objeto sexual manifesta. Só se seu desenvolvimento seguir o terceiro caminho, muito indireto, ela atingirá a atitude feminina normal final, em que toma o pai como objeto, encontrando assim o caminho para a forma feminina do complexo de Édipo.”76 Ao final dessa primeira fase de ligação à mãe, surge, como motivo mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não ter lhe dado um pênis, isto é, ter sido trazida ao mundo como mulher. Uma segunda censura é que sua mãe não lhe deu leite suficiente. Freud conclui, entretanto, que a intensa ligação da menina à mãe é fortemente ambivalente. Nas primeiras fases da vida a ambivalência predomina. Como esta relação da menina traz em si um amor intenso, traz também um ódio 75 Idem, p. 126. 58 intenso. “Uma poderosa tendência à agressividade está sempre presente ao lado de um amor intenso e, quanto mais profundamente uma criança ama seu objeto, mais sensível se torna aos desapontamentos e frustrações provenientes desse objeto; e, no final, o amor deve sucumbir à hostilidade acumulada.”77 O desejo que conduz a menina ao encontro do pai é, certamente, o desejo de possuir o pênis que a mãe não lhe deu e que agora espera receber de seu pai. No entanto, para Freud, a condição feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê. Na fase fálica a menina desejou um bebê; este era o significado de brincar com bonecas-bebês. Entretanto esse brincar não expressava sua feminilidade, serviu-a como identificação com sua mãe, com a intenção de substituir a atividade pela passividade, o ser cuidada pelo cuidar. A menina ocupava, assim, o lugar de sua mãe, e a boneca representava ela mesma. Com o desejo de um pênis-bebê, a menina inicia a situação do complexo de Édipo. A hostilidade contra sua mãe é intensificada, passando a mãe a ser rival da menina, rival porque recebe do pai tudo o que deseja e ela (filha) não. “A identificação de uma mulher com sua mãe permite-nos distinguir duas camadas: a pré-edipiana, sobre a qual se apoia a vinculação afetuosa com a mãe e esta é tomada como modelo, e a camada subseqüente, advinda do complexo de Édipo, que procura eliminar a mãe e tomar-lhe o lugar junto ao pai. A fase de ligação afetuosa pré-edipiana, contudo, é decisiva para o futuro de uma mulher: durante essa fase são feitos os preparativos para a aquisição das características com que mais tarde exercerá seu papel na função sexual e realizará suas inestimáveis tarefas sociais.”78 76 Freud, S. “A sexualidade Feminina”, Op cit, p. 264. Freud, S. Op cit, p. 124. 78 Idem, p. 133. 77 59 Na adolescência, encontramos uma luta interna entre uma tendência à escolha objetal primária e uma outra tendência cujo sentido é o de fazer desaparecer, transformar a escolha primária numa escolha que esteja em conformidade com as proibições impostas pelo Édipo. Em termos objetais, o impasse se apresenta entre um retorno a escolhas primárias narcísicas duais, e outra mais amadurecida que tende a triangular os vínculos e a genitalizá-los. Parece-me que a anoréxica e a bulímica estão fixadas numa relação dual já que a destrutividade, a voracidade, a fusão e a dependência características dessas patologias também fazem parte desta relação. A anoréxica e a bulímica parecem estar detidas, amarradas em sua ligação original à mãe. E na adolescência esta relação vem à tona. As mudanças corporais próprias da adolescência proporcionam ao sujeito a possibilidade de concretizar a sexualidade genital. A energia pulsional pré-genital reativada encontra, neste momento, possibilidade de se satisfazer. Penso que estas patologias surgem na adolescência a partir das mudanças corporais que aí ocorrem de forma rápida e violenta. As meninas passam a ter seios, formas arredondadas e quadris largos como suas mães. Neste momento, o corpo que se transforma passa a ser inaceitável. As pacientes relatam que o corpo de mulher torna-se diante delas um corpo enorme, sem limites. Poderíamos nos perguntar: A distorção da imagem corporal que eclode na adolescência estaria reativando uma indiferenciação insuportável da menina com a sua mãe? Esta questão leva a pensar, para a psicanálise, estar em jogo tanto na anorexia como na bulimia não a alimentação e, sim, a oralidade. O interesse nesta constatação está na medida em que a imagem corporal é entendida como uma 60 imagem metafórica que reflete as relações primitivas do Eu com o objeto. Oralidade vista como um modo de relação que aponta para os primeiros investimentos do objeto pelo Eu. Segundo Laplanche e Pontalis79, se nos referirmos, como exemplo, à fase oral descrita por Freud, o objeto é, na linguagem da pulsão de auto-conservação, o que alimenta; na linguagem da pulsão oral, é aquilo que se incorpora. “A função alimentar fornece o modelo da incorporação. Ela não é o comer, é um processo psíquico que toma a atividade biológica como modelo. O ego incorporando os objetos prazerosos e expulsando os desprazerosos, se constitui marcado por estas constituições primeiras. A gênese do ego se dá pela incorporação e pela expulsão. A incorporação é um modo de relação característico da fase oral.”80 Laplanche e Pontalis nos dizem que a análise das fantasias orais mostra que esta atividade de incorporação pode incidir sobre objetos muito diferentes dos objetos da alimentação, definindo a relação de objeto oral. A incorporação constitui uma relação privilegiada com a boca e a ingestão de alimentos, mas pode também ser vivida em relação com outras zonas erógenas e outras funções podem ser sua base: “incorporação pela pele, pela visão, pela audição. Do mesmo modo, existe também uma incorporação anal e uma incorporação genital, manifesta na fantasia de retenção do pênis no interior do corpo.”81 “Na verdade, estão bem presentes na incorporação três significações: obter um prazer fazendo penetrar um objeto em si; destruir este objeto; assimilar as 79 Laplanche, J., Op. cit. Bastos, Liana Albernaz. Op cit, p.83. 81 Idem p. 239. 80 61 qualidades desse objeto conservando-o dentro de si. É este último aspecto que faz da incorporação a matriz da introjeção e da identificação.”82 Destaca-se, então, que é preciso compreender a anorexia e a bulimia tendo em mente que o objeto oral é mais amplo que o objeto da alimentação (comida), pois nos remete às formas primitivas de relação com o outro e ao equilíbrio narcísico objetal. Neste estudo, portanto, a anorexia e a bulimia não serão tratadas como distúrbios alimentares - da relação do sujeito com o objeto comida - e, sim, como distúrbios da oralidade, ou seja, distúrbios provenientes da relação entre o eu e o objeto, uma relação de extrema dependência e destrutividade que, como vimos, é revelada através de sua sintomatologia. O próximo capítulo conterá o relato sobre dois fragmentos clínicos através dos quais poderemos nos aprofundar nas questões introduzidas neste capítulo relativas à metapsicologia: relação de dependência entre o eu e o objeto, oralidade, destrutividade e, ao tratamento psicanalítico da anorexia e da bulimia. 82 Idem. 62 SEGUNDO CAPÍTULO A CLÍNICA Introdução: A partir do relato sobre dois casos atendidos por mim em uma enfermaria psiquiátrica de um hospital escola, gostaria de refletir sobre algumas questões suscitadas a partir da relação transferencial com estas pacientes. Não pretendo fazer uma análise clínica detalhada das sessões e nem do tratamento como um todo. Os casos são inspiradores de questões fundamentais sobre a clínica da anorexia e da bulimia como distúrbios da oralidade desenvolvidas nos capítulos seguintes. Muitas vezes sentia que não tinha o que dizer sobre os atendimentos, o que ser trabalhado e, neste momento me dei conta de que estava “amarrada”, capturada pela destrutividade que aparecia na transferência com estas pacientes. A decisão de escrever este estudo partiu desta minha sensação de falta de movimento, falta de vida e do desejo de compreendê-las para poder dar continuidade ao trabalho psicoterapêutico. Os nomes e quaisquer possibilidades de identificação foram alterados para preservar a identidade das pacientes. 63 Caso 1 : Clara, uma mocinha amarrada Clara tem vinte e cinco anos e concordou em ser internada em uma enfermaria psiquiátrica pública para tratamento de sua anorexia nervosa. Segundo suas próprias palavras, não agüentava mais comer compulsivamente para ter que vomitar depois. Fui solicitada a atendê-la individualmente, duas vezes por semana, desde o início de sua internação. A paciente apresentava seqüelas da anorexia como: osteoporose, dentes fracos e suspensão da menstruação desde os doze anos. A necessidade de internação deveu-se a idéias suicidas. Quando comecei a atendê-la, Clara já estava internada há duas semanas. Não lhe era permitido descer ao pátio e uma enfermeira deveria sempre acompanhá-la ao banheiro para impedir-lhe vomitar. Estava aguardando ser chamada para atendimento psicoterápico individual. Em nosso primeiro encontro, Clara contou o início de sua paixão pela magreza. Começou a sentir verdadeira repulsa pela comida aos doze anos. Antes da anorexia lembra ter sido uma menina saudável e ativa. Gostava de comer e sempre que chegava da escola tomava uma “copada” de leite com chocolate. Não se preocupava em engordar. Lembra de seu pai ter comentado que ela estava comendo muito e a partir daí começou a sentir nojo da comida, uma verdadeira repulsa. Este episódio coincidiu com a primeira menstruação, com a qual tinha ficado muito confusa: achava que iria sujar de sangue o seu pai quando sentasse no seu colo, e perderia o amor dele por ter-se tornado mulher. Ficou com medo de ficar gorda e com barriga de grávida, desde então. Nesta época, ficou anorética, só vindo a tornar-se bulímica alguns anos depois. 64 Perguntei-lhe o que significava ficar gorda e ela disse que, acima de tudo, significava dependência e sinal de extrema fraqueza. Queria ter o corpo de uma modelo, um corpo perfeito, bem delineado. Não gosta do seu corpo porque se julga muito baixa com quadris muito largos. Lembrou ter começado o regime e a ginástica pensando poder mudar seu corpo, transformá-lo num corpo ideal. Contou também burlar a vigilância da enfermagem, pelo menos numa refeição, para vomitar e experimentar uma sensação de paz. Disse sentir-se “violentada” quando comia e era impedida de vomitar depois. Sentia-se enorme, como se fosse explodir e perder os limites do seu corpo. Seus ataques de comer compulsivo consistiam de uma fatia de bolo ou uma colher a mais de comida. Isto era o bastante para se desesperar achando estar gorda demais. A impressão que tive de Clara nesse primeiro encontro foi de uma “menina” de feições tristes e ar melancólico. Falava para dentro, mantinha a cabeça baixa e as mãos na barriga como se estivesse sentindo dores abdominais. Apesar dessa postura e estar usando roupas muito largas para o seu tamanho, em alguns momentos, uma vitalidade deixava-se transparecer. Ainda na primeira entrevista, contou ter vivido um quadro sério de anorexia na adolescência. No auge de seu sintoma chegou a pesar vinte e seis quilos, precisando ser internada numa clínica especializada em drogados. Os médicos chegaram a comunicar a seus pais que não havia mais o que fazer para salvá-la. Conseguiu sair daquela situação limite com a ajuda de um psicoterapeuta que lhe possibilitou falar sobre sua angústia e tristeza. Lembrou que foi melhorando aos poucos, conseguindo retomar a faculdade e hoje trabalha na área de saúde. Lembrou também que na época foi internada contra a sua vontade. Não achava que pudesse morrer ou que houvesse algo errado com a sua saúde. Estava perdida, sem ter noção 65 da realidade. Quando se olhava no espelho, sentia-se monstruosa, deformada, e só conseguia pensar nisto o dia todo. Hoje, resolveu procurar tratamento nesta instituição por conta própria, porque tem tido pensamentos sobre suicídio ultimamente e medo de cometê-lo. No final dessa primeira entrevista estabeleci com ela um contrato para os dias e horários das sessões que seriam realizadas dentro da enfermaria em uma das salas de atendimentos. Nas primeiras sessões, Clara falava somente de comida e vômitos. Dizia precisar melhorar, mas não sabia como sair desse “círculo vicioso”. Deixar de vomitar era insuportável e impossível. Comer também. Muitas vezes, não conseguia alimentar-se daquilo prescrito pela nutricionista e chegava a chorar quando forçavamna a comer. Sentia-me desanimada com os atendimentos, enjoada de ouvi-la falar dos vômitos mas, principalmente, muito angustiada. Eu entendia ser esta uma angústia sobre a qual Clara não conseguia falar protegendo-se de maneira bastante primitiva. O que ela tinha a dizer só poderia ser expresso por seus sintomas, por um ato repetido compulsivamente. Esta sua postura na sessão persistiu até o dia em que ela quis atuar na sessão, ameaçando vomitar no chão. Transferencialmente, imaginei que ela poderia vomitar em mim e reagi dizendo para não faze-lo no meu pé. Esta intervenção representou um desequilíbrio na estrutura defensiva que ela vinha mantendo. Clara tentou reagir e restabelecer aquele equilíbrio de volta olhando-me surpresa e indignada dizendo não estar brincando. Ela que raramente me olhava, encarou-me durante alguns minutos, emburrada. Esta intervenção inesperada tanto para ela como para mim, teve uma função de inscrever um limite entre nós. Um limite que foi dado pela minha fala e confirmado pelo seu olhar contrariado. 66 No entanto, depois dessa intervenção, Clara lembrou de uma brincadeira com as primas quando criança: havia uma mocinha prisioneira de um bandido que a amarrava e a beijava na boca à força. Ela era sempre a mocinha e não deixava ninguém ocupar o seu lugar. O relato dessa brincadeira possibilitou o rompimento do relato sempre idêntico das crises. Isto possibilitou-me sair daquele marasmo e pensar a situação de Clara como se ela estivesse atualizando, na internação, essa brincadeira infantil. Sentia-se amarrada como a mocinha e violentada pelo bandido quando obrigada a comer. Desta forma, começava a investir na situação analítica, transformando a realidade concreta do espaço analítico em uma realidade fantasística pela qual estava capturada e da qual eu começava a fazer parte. Percebi que deveria tomar cuidado para não ficar no lugar do bandido na relação transferencial com Clara. Isto é, não ficar confundida com o restante da equipe do hospital que, segundo ela, obrigavam-na a comer e a vigiavam como o bandido. Neste sentido, não deveria de forma alguma me ocupar com seu peso e com sua preocupação com a comida. Como conseqüência, começou, aos poucos, a falar do medo de ficar sozinha e perder o amor dos pais. Sempre foi a filha frágil que precisava de cuidados especiais. Lembrou da mãe chorando desesperada quando os médicos a desenganaram. Nesta época achava que para ser frágil precisava passar fome. No entanto, ficava irritada com a preocupação da mãe com relação a sua alimentação. Não gostava de ser mandada e vigiada, trancava-se na cozinha e comia compulsivamente para vomitar depois. Seus pais chegaram a ter de arrombar a porta da cozinha para que parasse com essa loucura. Hoje, recolhe-se ao banheiro para não agredir seus pais. 67 Enquanto Clara narrava estes acontecimentos fui me sentindo profundamente angustiada, chocada com as crises relatadas, como se estivesse sendo torturada pela sua fala que foi provocando em mim uma sensação de letargia e desânimo. A partir dessas sensações, pude pensar que Clara parecia gozar do sofrimento que provocava nos outros. Fazia questão de dizer que sempre teve de tudo. Seus pais sempre lhe deram tudo e, por esta razão, precisava “dar-lhes o troco”. Para ela darlhes o troco, ao contrário do que se pensa como uma vingança, significava retribuirlhes todo o carinho com que a tratavam. No entanto, ela os agredia imensamente como estava fazendo comigo. Numa sessão, Clara conta este sonho: havia uma mão( escrevendo o caso fiz um ato falho e disse mãe) enfiando-lhe pizzas na boca. Era obrigada a engolir tudo sem respirar. Sentia-se sufocada e iria morrer. Acordou muito assustada e disse que a primeira coisa que lhe passou pela cabeça, foi o bandido da brincadeira infantil. Queria libertar-se dele. Um bandido que sufoca, que lhe impede viver? Este sonho e o relato sobre seus pais levou-me a pensar que Clara sentia seu corpo prisioneiro de uma mãe que, como o bandido, amarrava-a e dela passava a depender. Essa amarração parecia significar a indiferenciação que ela sentia existir entre ela e sua mãe. A fantasia de falta de limites, de fusão entre as duas a levava a recusar o alimento. Recusar o alimento parecia significar a tentativa de existir com um corpo e uma demanda próprios, uma tentativa de separar-se da mãe. Muitas vezes, Clara relatava a imagem de dois corpos sem sexo e entrelaçados, imagem embaçada que revelava uma indiferenciação de si e do outro. Apesar de não me colocar no lugar do bandido, Clara tentava seduzir-me a tratá-la como a mocinha frágil, desesperada diante de suas crises bulímicas, ocupando 68 o lugar de seus pais. Com freqüência entrava em atrito com outras pacientes e, muitas vezes, chegou a pedir-me que a defendesse, o que neguei sempre. Numa sessão, chegou a dizer sentir-se triste por eu não tê-la ajudado durante uma briga com outra paciente na enfermaria, de quem teria levado um tapa no rosto por não emprestar-lhe um estojo de lápis de cor. Ficou magoada com as enfermeiras por terem defendido a agressora. Sentiu-se sozinha e desamparada. Lembrou de um sonho no qual estava preparando um sanduíche em sua casa, mas não conseguia terminá-lo, pois sempre faltava um ingrediente. Sua irmã chegava com amigos e a colocava para fora de casa. Chorava sozinha na rua quando seu pai aparecia e a levava embora acariciando seu cabelo. Clara chorou na sessão e pediu que eu a tirasse da enfermaria. Neste momento, era como se eu representasse quem a salvaria diante do bandido. Produzia em mim vontade de salvá-la, de tirá-la da enfermaria. Muitas vezes, sentia-me presa durante os atendimentos sem saber qual caminho seguir. Se o lugar do bandido era uma amarração, o do mocinho, que a salvaria poderia não ser diferente. Eu deveria ficar atenta já que, dessa forma, ela sentia-se cuidada de uma maneira especial. Clara, muitas vezes descrevia o pai como uma pessoa depressiva e sem autoridade frente à mãe. Uma pessoa carinhosa, mas que jamais se interpunha entre ela e sua mãe. Não aparecia como aquele que a mãe desejava. Além disso, o pai trazia a marca de uma tragédia familiar: vários homens da família tinham praticado suicídio quando Clara era criança. Hoje, Clara é internada por medo de praticar suicídio. Observamos, aqui, uma cisão da figura paterna: de um lado, um pai exemplar, perfeito, e de outro, um pai fraco que não pode desempenhar a sua função de corte da 69 relação dual da menina e sua mãe. Ele não pôde salvá-la do bandido - mãe. Uma relação que impede a possibilidade de Clara existir. A brincadeira infantil narrada por Clara é a mesma que se repete na internação. Uma brincadeira que repete sua relação com a mãe: uma relação de dependência. Mas existe um terceiro elemento, o pai, príncipe que está fora da brincadeira, esperado por ela. Pensava que, para o trabalho poder prosseguir, era importante que eu ocupasse o lugar da lei, da terceira pessoa, um papel que estava apagado. Um terceiro que deveria propiciar um distanciamento com a figura materna, com o bandido. Estabelecer com ele uma relação menos persecutória. Em alguns momentos, Clara era uma menina desamparada diante de todos, como na briga relatada por ela e, em outros, era uma senhora de escravos, que colocava todos em função de suas vontades e de seus sintomas. Depois de ouvi-la contar a briga, recordei que trazia comigo uma poesia de Fernando Pessoa chamada “Eros e Psique”83 e li para ela: “Conta a lenda que dormia Uma princesa encantada A quem só despertaria Um infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à princesa vem. A princesa adormecida Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida Verde, uma grinalda de hera. 83 Pessoa, Fernando. Poesias de Fernando Pessoa, Lisboa, Edições Ática, 1958. 70 Longe o infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sonho ela mora. E, inda tonto do que houvera, A cabeça em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era a princesa que dormia.” Talvez eu tenha tentado dar um colorido diferente àquela sessão, já que Clara trazia a caixa de lápis de cor. Clara disse ter ficado emocionada com a poesia, perguntei-lhe o que a tinha emocionado e ela disse ter ficado surpresa com o fato do príncipe ser também a princesa. Encerrei a sessão e os efeitos dessa intervenção foram aparecer a posteriori. Procurei mostrar a Clara que a princesa também poderia ser príncipe, ou seja, buscar um caminho, sair daquela redoma em que ela se encontrava. Esta foi a maneira que encontrei de tentar desencantar Clara, não como um príncipe que a salvaria, mas como alguém que acreditava que ela poderia ter vontade própria e sair da enfermaria quando quisesse. Ficar amarrada-encantada na internação parecia funcionar como um suporte defensivo de sua integridade narcísica. Disse-lhe que desamarrada, corria o risco de ser aniquilada. Amarrada, permanecia como a mocinha frágil e “encantada”, o tempo 71 não passaria e era como se protegesse contra os perigos do mundo externo. A poesia permitiu-me falar com ela sobre estas questões como se fossem conhecidas dela, a partir de uma brincadeira relatada com afeto. Clara comparava sua vida a um conto de fadas e que começou a se dar conta disso depois da poesia que eu lhe recitara. Pensava poder parar o tempo e ficar pequena para sempre. Não conseguia considerar a possibilidade dos pais morrerem, não agüentaria a dor da perda. O medo da morte sempre esteve presente em sua vida. Era como se tivesse criado, com a anorexia, uma morte controlada. Quando pequena tinha ficado muito confusa por ocasião da morte do avô. Não conseguia entender o que havia acontecido e lembra-se de ter ficado muito angustiada ao ver seu pai tão triste. A temática da morte esteve presente em seu relato: o medo da sua morte, o medo da morte dos pais e o não entendimento da morte do avô paterno quando criança. Tornar-se a mocinha da brincadeira infantil parecia torná-la imortal. Desta forma, Clara parecia brincar de viver entre a vida e a morte, capturada por um pensamento infantil onipotente de poder controlá-las. Clara parecia construir, assim, uma teoria sexual infantil, como a que Freud descreveu nos “Três Ensaios sobre a Sexualidade”84, na qual a criança busca organizar, através da fantasia, questões ameaçadoras do mundo real como, por exemplo, as hipóteses dadas pela criança em relação a sua curiosidade com o corpo: como lugar fonte das pulsões; como um corpo articulador de contato com outros corpos; como um corpo sede de outros corpos, bem como um corpo morte. Interessou-se por um rapaz, amigo da família, que a visitava semanalmente durante a internação. Disse que depois de muito tempo tinha se apaixonado 72 novamente. Começou a falar do medo que sentia de manter relações sexuais. Imaginava que sentiria muita dor durante a penetração, pois era virgem e nunca tinha namorado seriamente. Quando pensava numa relação sexual só conseguia ver um borrão, como se fossem corpos entrelaçados, mas sem forma. Quando se via no espelho, via somente a cabeça, como se ela não possuísse corpo. Dizia querer ser feminina como eu, poder casar e ter filhos. Lembrou do único namorado que teve e com quem namorou durante um ano e meio. Nunca teve relações sexuais. Chegaram a ter momentos de carícias mais intimas, mas ela não se imaginava tendo uma relação sexual completa. Achava a penetração um ato ilógico. Via a sexualidade como algo pecaminoso e sujo. Neste momento do atendimento, Clara passou a cuidar mais de sua aparência, passou a usar batom e vestidos. Vi o quanto era bonita. Pude perceber que, dizer-lhe para não vomitar em mim e recitar-lhe a poesia, possibilitou-me um contato próximo com Clara. Através desses meus atos sinalizeilhe uma possibilidade de desencantamento que ela respondeu estabelecendo comigo um vínculo de confiança, tanto que pôde falar sobre assuntos tão difíceis como o medo da sexualidade. Depois de oito meses de internação, Clara recebeu uma licença de final de semana e viajou para visitar sua família. Voltou dizendo não desejar mais continuar internada. Ao sair da enfermaria se deu conta que o tempo estava passando e isto a deixou angustiada. Decidiu voltar a trabalhar e cuidar de sua casa ( morava sozinha ). Resolveu sair antes da alta prevista, porque não fazia mais sentido viver como num conto de fadas. O desejo de ter um corpo ideal e a preocupação com o peso sempre 84 Freud, S. “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, in: E. S. B., RJ, Imago, 1989, vol. VII, p.127-228. 73 fariam parte da sua vida mas precisava ir ao encontro das pessoas. Amarrada, ela só poderia ser encontrada; desamarrada poderia viver. Na última sessão, antes de sair da internação, Clara despediu-se de mim com um forte abraço (um abraço de corpo inteiro?). O tratamento encerrou-se quando Clara saiu da internação. Ela morava longe de São Paulo e por isso começou um novo tratamento em sua cidade. Mantive contato com ela durante alguns meses. Caso II: Vera, de sua torre matava o outro 74 Estremeci quando a vi pela primeira vez. Vera pesava menos de trinta quilos e parecia um paciente terminal. Na primeira entrevista tive muito medo de que ela morresse na minha frente. O mais impressionante é que me contou sorridente e gesticulando muito, estar furiosa por estar internada, pois sentia-se muito bem. Queria dançar, sair com os amigos, andar a cavalo e viajar. O mais incrível é que Vera quase me convenceu estar bem. Curiosamente, terminei a entrevista questionando-me se ela realmente estava precisando da internação. Algum tempo depois, porém, fui invadida por um grande mal estar, uma angústia terrível e uma sensação de impotência diante dela. Sentia-me incapaz de atendê-la, como se eu estivesse num beco sem saída, prestes a ser atacada por alguém que me mataria. Esta fantasia de morte revelou-se mais tarde como uma questão fundamental no tratamento de Vera. A médica residente da psiquiatria, que fez a entrevista inicial com Vera e sua mãe, contou-me ter sentido algo semelhante. Em algum momento da entrevista com Vera e a mãe, sentiu-se incapaz de interná-la, como se Vera não precisasse. A médica disse ter falado várias vezes do risco de vida que Vera corria e a mãe, passiva, perguntava a Vera se ela queria ser internada. A mãe parecia não acreditar que a filha estivesse à beira da morte. Precisou intervir e interná-la contra a sua vontade e a da mãe, ou melhor, a mãe parecia não ter vontades. Como uma mãe pode ter deixado a filha chegar neste ponto? O que aconteceria a Vera ? Estas eram perguntas que nos atormentavam ao mesmo tempo que nos assustavam. A médica contou-me, também, ter ficado profundamente enjoada depois desse atendimento, um mal estar que a acompanhou pela noite inteira. Sentia-se destruída, 75 queria e precisava descansar. Foi a partir de seu adoecimento e do meu que comecei a ficar atenta à questão da destrutividade no tratamento de Vera. Atendi Vera durante toda a internação, durante seis meses( foi o que durou a internação), duas vezes por semana. Se Vera não comparecesse aos atendimentos(médico, psicoterapia, com nutricionista e terapia ocupacional) seria descontada de alguma maneira, não poderia ir ao pátio ou ver TV. Dizia estar lá para tratar de problemas clínicos em função do baixo peso. Pedi a Vera que me contasse sobre sua vida esperando pouco em função de seu estado bastante debilitado. Mas ela me contou muitas coisas. Disse ter vinte e dois anos e ser a mais nova de três filhos, tendo um irmão de vinte e quatro e uma irmã de vinte e seis. Morou em Nova York até o ano anterior, quando o pai resolveu trazê-la de volta ao Brasil, porque achou que ela não estava bem de saúde. Contou que estava triste nesta época, pois morava sozinha e sentia muita falta da família. Definia a si mesma como sendo uma menina muito emocional. Vive em função dos outros e só se sente feliz quando sente que os outros estão felizes ao seu lado. Se alguma amiga fica triste, ou um namorado, sente-se triste e abandonada e acha que estão assim por sua culpa. Sempre teve muitos relacionamentos mas era sempre abandonada pelos outros. Lembrou ter se sentido abandonada pelos amigos quando entrou para a faculdade em Boston e mudou de cidade, por isso voltou para a casa dos pais em Nova York e fez a faculdade lá mesmo. Novamente sentiu-se abandonada quando os pais voltaram para o Brasil e ela ficou em Nova York morando com a irmã até acabar seus estudos. E, mais uma vez, sentiu-se abandonada quando a irmã casou-se e ela ficou sozinha no apartamento. Trabalhava e estudava muito a ponto de esquecer-se de 76 comer. Nesta época, lembrou entrar na “onda” de ter um corpo saudável. Deixou de comer hamburguer e chocolates, depois perdeu o controle e passou a não comer mais. Dizia não saber viver sozinha, ao mesmo tempo, queria ficar sossegada. Perguntei a ela o que significava ficar sossegada e ela respondeu-me, chorando, estar cansada e querer descansar um pouco das coisas que a chateavam, e só. Vera não falava claramente sobre querer morrer, mas escutei isto quando ela me falou querer descansar. Descansar em paz, como falamos aos mortos? No início do ano, seu pai foi a Nova York a trabalho e ao visitá-la pediu a ela que voltasse com ele ao Brasil. Disse ter aceito pensando que seria bom afastar-se um pouco dos estudos e do trabalho. No entanto, achava todos muito preocupados com ela, o que a estava deixando profundamente irritada. Chorou novamente e dizia querer descansar, e só. Voltou a contar sobre sua vida. Aos dezenove anos apaixonou-se por um rapaz com quem esperava casar-se. Não lembra de forçá-lo a nada, mas ele de repente desinteressou-se dela e acabou com o relacionamento. A paciente dizia que na época em que começou a emagrecer, seus amigos alertaram-na estar ficando doente. No entanto, sentia-se cobrada, queria que as pessoas a pegassem no colo, mas só ouvia delas que ela precisava cuidar-se. Quis pegar Vera no colo neste momento mas, ao mesmo tempo, sentia-me incapaz de fazê-lo. Fiquei paralisada, não conseguia mexer-me neste sentido. O que consegui foi segurar-lhe a mão, uma mão fria, descascada e azulada. Vera parecia estar morta e isso me horrorizava. Vera contou que tinha feito um aborto em função de uma gravidez indesejada para o namorado. Ela queria ter o bebê, mas o namorado a levou para fazer o aborto. Chorou novamente ao contar o acontecimento. Depois voltou a falar, animadamente, 77 da família, do quanto sua vida tinha sido boa nos Estados Unidos quando criança. Vera falava sem parar, e isso me atordoava, não conseguia pensar e sentia-me profundamente cansada. Ela estava prestes a ser amarrada no leito se não parasse de fazer exercícios escondidos na enfermaria. Comecei a pensar ser ela pura destrutividade. Só consegui dizer-lhe: “Quanta destrutividade!” E ela pareceu nem me ouvir. Terminei a sessão imensamente triste. Sentia-me desamparada e incapaz de atendê-la. Aos poucos, ao sair da enfermaria, a agitação do dia-a-dia afastou-me de Vera e daquela enfermaria. Voltei para o calor e as cores da vida. Depois dessa sessão tive o seguinte sonho com Vera: Eu recebia um presente envolto em papel cor de rosa e, ao abrir, encontrava ossos soltos como se fizessem parte de um quebra - cabeças a ser montado. De repente, os ossos começam a se mexer sozinhos e eu gritava que era a minha paciente anoréxica. Vera dizia que as pessoas mostravam através de seu olhar que sentiam nojo dela. No sonho, pareceu-me sentir algo parecido quando me dei conta de que eram ossos vivos. Senti, mais do que nojo, uma aflição, um descontrole, como se os ossos fossem me atacar. Este sonho de morte levou-me a pensar numa incapacidade da mãe de Vera cuidar dela. Não conseguia esquecer o olhar perdido de sua mãe quando de sua internação e a sua incapacidade de tomar uma decisão de internar a filha em estado grave. Penso que este sonho de Vera revela um desamparo da mãe frente a ela e um forte sentimento de impotência vivido como extremamente ameaçador. Uma incapacidade de pegá-la no colo, embalá-la, aconchegá-la. Uma incapacidade que senti na sessão anterior e que atualizava-se na transferência. De fato, poderia matá-la? 78 Como sabemos, um bebê desamparado morrerá de fome se não for cuidado. No entanto, Vera dizia não sofrer, estava bem dessa forma. Quase sempre Vera me perguntava se o tempo estava nublado e se eu achava que o sol iria sair. Numa sessão, chamei-a até a janela e perguntei o que ela achava. Responde-me que sentia falta do sol. Vera estava há um mês internada sem poder ir ao pátio e nem sair de licença nos finais de semana. Estava completamente presa na enfermaria. No entanto, dizia estar melhor aqui do que em casa. Tinha feito boas amigas e gostava de estar com elas. Em casa, logo que acordava, sua mãe já lhe dizia que tinha de comer. Sentia que a mãe só queria “enfiar-lhe” a comida. Dizia estar bem adaptada na enfermaria, querer engordar e parar de fazer exercícios porque não queria correr riscos. Queria voltar a menstruar, casar e ter filhos. Segundo a família, Vera já tinha passado por inúmeras internações clínicas para tratar de complicações decorrentes da anorexia e vários tipos de tratamentos psicoterápicos, todos sem resultados satisfatórios. Quando estava internada, comia e ganhava peso. Mas ao sair e voltar para casa, retomava o jejum e os exercícios excessivos. Nesta internação, Vera também estava se alimentando e era considerada uma boa paciente pela equipe multiprofissional da enfermaria. Apesar de Vera fazer parte do programa para tratamento dos transtornos alimentares, juntamente com outras pacientes com anorexias e bulimias graves, também dividia o espaço da enfermaria com pacientes esquizofrênicas, depressivas, borderlines, etc. Vera parecia não se importar em estar naquele lugar, era como se estivesse numa colônia de férias divertindo-se a valer. Desta forma, era muito difícil atendê-la, pois, ao mesmo tempo que dizia estar bem na enfermaria, Vera parecia estar freqüentando os atendimentos para ser uma boa paciente e sair logo da enfermaria. Não falava de suas angústias e estava engordando 79 sem resistência. Vera dizia não ter mais problemas, estava tudo resolvido com ela a partir do momento que decidiu comer novamente. Diante disto, eu me perguntava, freqüentemente, o que estava fazendo ali com Vera. E sentia que ela estava matando a mim e a ela. Era como uma cura milagrosa, algo falso. Percebi isto pois sentia-me leve durante os atendimentos ao ouvi-la, mas ao sair do atendimento sentia uma angústia terrível, como se estivesse sendo enganada. Um conto do irmãos Grimm chamado “O ouriço do mar”85 ajudou-me a pensar sobre a destrutividade que aparecia na relação transferencial através da sensação que provocava em mim de não ter como pensar com ela. No conto, uma princesa morava num castelo, onde havia uma torre altíssima. No topo, havia uma sala com doze janela que dominavam todo o horizonte. Quando a princesa subia até lá e olhava à sua volta, abraçava com o olhar todo o seu reino e nada lhe ficava oculto. A princesa era muito orgulhosa e não queria submeter-se a ninguém, queria reinar sozinha. Portanto, um dia, publicou um édito anunciando que só se casaria com o homem que conseguisse esconder-se tão bem que lhe fosse impossível descobri-lo. Se alguém, no entanto, aceitasse a prova e fosse descoberto, ser-lhe-ia decepada a cabeça, que seria exposta num varapau. Em frente ao castelo já havia noventa e sete varapaus exibindo noventa e sete cabeças espetadas. Por isso, passou-se muito tempo sem que se apresentasse um pretendente. A princesa estava satisfeita e pensava que assim viveria livre e feliz o resto de sua vida. O conto prossegue, mas gostaria de deter-me neste ponto. Esta princesa levou-me a entender que a angústia terrível que a médica e eu 85 Grimm, Contos e lendas dos Irmãos Grimm, v.III, São Paulo, Edigraf, 1963, tradução de Íside M. Bonini. 80 sentíamos nos atendimentos de Vera, era que nossas cabeças estavam prestes a serem expostas em varapaus, juntamente com todos os outros tratamentos fracassados. Sentia-me como o novo pretendente desta princesa cujo objetivo era destruir qualquer possibilidade de relação com o outro. Penso que, de sua torre, Vera tinha um saber inigualável sobre calorias, dietas, ginásticas. Não era possível competir com ela , e nem era essa a minha intenção. Aliás não havia como brincar de esconde-esconde com Vera. Ela descobria e destruía todos de sua torre poderosa. Não havia lugar para o não-saber, o não-teridéia, a associação livre. Numa sessão, Vera contou-me que tinha visto um filme muito interessante na enfermaria, sobre bruxas. Estava encantada com as bruxas, três mulheres maravilhosas, lindas e poderosas. Tinha ficado profundamente mobilizada com o filme. As três mulheres, segundo ela, manipulavam as pessoas, conseguiam tudo o que queriam e não envelheciam, eram imortais. Penso que Vera vivia esta fantasia de ser imortal, talvez, assim pudesse descansar em paz da vida dos mortais. Como Vera atendia à demanda médica, indo aos atendimentos comigo, supus que talvez ela estivesse esperando por um príncipe que pudesse enfrentá-la. Resolvi então contar-lhe sobre a nossa princesa - bruxa, que de sua torre poderosa lutava para ser imortal. O contato com o outro parecia trazer uma ameaça de morte imensa. Esta foi a forma que encontrei para começar a falar sobre sua destrutividade . Mas parecia que Vera não conseguia escutar de sua torre altíssima. Precisaria descer de lá para ouvir-me, ou deixar-me subir ate lá. E isto estava longe de acontecer. Neste sentido, achava importante tocá-la nos atendimentos, marcar minha presença junto a ela dando-lhe a mão no início e final da sessão. A meu ver, estes eram os recursos que eu dispunha para tentar estabelecer alguma ligação positiva com 81 ela e mostrar que eu continuava viva apesar de seus ataques constantes. De alguma forma eu achava que Vera queria se ligar a mim pois deixava que eu a tocasse. Aliás, o conto prossegue e um príncipe acaba conseguindo esconder-se da princesa e casarse com ela. Nem tudo esta princesa sabia. No entanto, não chegamos a estabelecer ligação alguma, porque ela teve alta, interrompendo o tratamento com a equipe toda. Ela não quis continuar com o tratamento ambulatorial, vindo a falecer alguns meses depois devido a um grave estado de desnutrição. Podemos dizer que Vera matou, de sua torre poderosa, todos os profissionais da equipe e espetou suas cabeças em varapaus. Porém, esta foi a última vez em que fez isto. Parece que pôde descansar em paz. A imagem mais marcante no relato era imaginar Vera andando a cavalo. Esta imagem, associada ao sonho do quebra - cabeças de ossos, possibilitou-me pensar numa representação da morte. Vera representava-se como a morte. Poderosa e imortal, montada em seu cavalo, dava sentenças de morte, assim como a princesa do conto. Neste momento, pude entender o fato de ter estremecido diante dela em nosso primeiro encontro. Na verdade, tinha estremecido diante da morte e não de alguém prestes a morrer, como tinha pensado. 82 Comentários: Meu objetivo, neste capítulo, é salientar a importância da questão da dimensão destrutiva da transferência para a clínica da anorexia e da bulimia e mostrar que alguns pacientes, apesar da destrutividade, abrem a possibilidade para algo de novo acontecer na transferência. Outros sentem-se totalmente ameaçados diante da possibilidade de estabelecer alguma relação e a única solução parece ser a morte do outro. Podemos pensar que Clara apresentava uma demanda de ajuda, ao dizer querer parar com o círculo vicioso que vivia. Houve um trabalho analítico com Clara. Investiu no espaço analítico ligando-se a mim de forma intensa e amorosa. Quanto a Vera, veio para tratamento por ordem médica e não por vontade própria. Não achava que havia algo errado consigo. Apesar de ter pensado que Vera atendia à demanda médica apenas para obter alta, supunha que poderia ser proveitoso o fato de que ela comparecia ao atendimento e contava-me sobre sua vida, o que me possibilitou pensar em algumas questões importantes sobre a destrutividade. Uma das muitas dificuldades no tratamento de Vera foi a de que não via motivos para se tratar. O sentimento que eu tinha era o de que não havia lugar para o “sujeito suposto saber”, no sentido de que o paciente, ao falar, cria o lugar de um poder fictício que o analista terá ou não que ocupar. O analisando, sofrendo de um sintoma, tenta, ao se dirigir ao analista, encontrar razões para seu sofrimento. O que percebia, neste caso, eram atuações e uma verdadeira intenção de conservar-se em atos repetidos. Vera, diferente de Clara, não se queixava de estar dependente de um ato que, ao mesmo tempo que provocava angústia, também provocava uma sensação 83 de alívio. Clara dizia sofrer e apresentava-se aprisionada num vínculo de repetições, alienada numa relação que, segundo ela, não conseguia interromper. Vera dizia não sofrer. É interessante pensarmos como a palavra amarrar aparece nos dois relatos. Clara estava amarrada ao bandido, presa na enfermaria. Vera quase precisou ser amarrada ao leito, para deixar de andar pelos corredores da enfermaria fazendo exercícios físicos sem parar. Sentia-me amarrada durante os atendimentos: sentia muita dificuldade de pensar sobre os atendimentos. Considero as sensações de amarração e de morte, vivenciadas nesses atendimentos, particularmente importantes pois compreendem um traço fundamental da clínica da anorexia e da bulimia: a dimensão destrutiva da transferência. A internação é necessária em casos graves como estes. Para existir tratamento é preciso que exista o paciente. Mas, a internação parecia reforçar, promover um sentido de identidade a elas. A preocupação com o ganho de peso e uma normalização do comportamento alimentar eram os objetivos da internação. Clara pareceu conseguir formular questões diferentes a respeito de si mesma: quem sou eu? O que sinto, penso? Desta forma pôde ir se desamarrando aos poucos do rótulo de se apresentar ao outro dizendo-se anoréxica. A partir dos dois casos, percebemos que a anorexia precisa ser contida. Clara, a mocinha amarrada e Vera quase amarrada ao leito. O que é preciso conter aí? Como a questão da destrutividade pode nos ser útil para entendermos esse movimento de contenção? Clara e Vera, duas princesas diferentes. A primeira, uma princesa que esperava ser encontrada que, de alguma forma, esperava sair de sua redoma de vidro através de um amor incondicional. Uma princesa que em sono espera, sono entendido aqui como 84 quietude, morte. Vera, uma princesa destrutiva, que matava tudo e todos, mas que também queria ser encontrada. Podemos pensar que ambas queriam ser encontradas pela vida, representada pelo príncipe que as procura e movimenta-se pelas estradas afora? Pude perceber que outros profissionais que atendiam pacientes anoréxicas também recorriam aos contos de fadas. Suzanne Robell86 utiliza na sua tese de mestrado “Anorexia Nervosa e os Limites de seu Tratamento” o conto “Branca de Neve e os sete anões” para colocar sua forma de compreender a anorexia nervosa. Não pretendo me deter em suas considerações, mas ilustrar que esta demanda pelos contos talvez faça parte da transferência, uma vez que a clínica nos mostra essas pacientes como princesas adormecidas em uma redoma de vidro, bruxas, sobre humanas. Os atendimentos são cheios de mistérios, situações de muita onipotência como acontece nos contos de fadas. Fui coordenadora da atividade “contos de fadas” num hospital - dia no Rio de Janeiro. O meu interesse terapêutico pelos contos de fadas vem desta vivência clínica com pacientes psicóticos. Contava-lhes estórias e eles as comentavam depois. O resultado era surpreendente. Muito pude aprender com suas observações, colocações, associações livres. Talvez, este tenha sido o ensinamento maior: trabalhar os contos como sonhos, a partir das falas individuais dos pacientes. Podemos pensar as aventuras do príncipe e da princesa representando a busca da outra metade, da força complementar mediante a qual se consegue o equilíbrio. Podemos falar de uma combinação que deve ocorrer, que simboliza o 86 Robell, S. “Anorexia Nervosa e os Limites de seu Tratamento”. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica da PUC/SP, sob a orientação do Prof. Dr. Renato Mezan, em 1996. 85 dualismo pulsional: da pulsão de vida e pulsão de morte. Segundo Freud, é impossível existir, na dinâmica do psiquismo, uma sem a outra.87 Ainda em Freud, nunca encontramos uma destas pulsões fundamentais em estado puro mas sempre ligadas, ora com o predomínio da libido, ora com o da energia destrutiva e que, quando ocorre uma disfusão pulsional, somente uma parte da energia destrutiva fica livre. Segundo Freud, a pulsão de morte busca o imobilismo. E a pulsão de vida a ligação. A disfusão seria, então, a predominância da pulsão de morte no psiquismo, como por exemplo, a busca de um isolamento expresso nos relacionamentos através de um afastamento ou de atos destrutivos. Freud diz: “Depois de muito hesitar e vacilar decidimos presumir a existência de apenas dois instintos ( ler pulsões ) básicos, Eros e o instinto destrutivo. O objetivo do primeiro desses instintos básicos é estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las, em resumo, unir; o objetivo do segundo, pelo contrário, é desfazer conexões e, assim, destruir coisas. No caso do instinto destrutivo, podemos supor que seu objetivo final é levar o que é vivo a um estado inorgânico. Por essa razão, chamamo-lo também de instinto de morte.”88 E Freud continua: “Nas funções biológicas, os dois instintos básicos operam um contra o outro ou combinam-se mutuamente. Assim, o ato de comer é uma destruição do objeto com o objetivo final de incorporá-lo, e o ato sexual é um ato de agressão com o intuito da mais íntima união. Esta ação concorrente e mutuamente oposta dos dois instintos fundamentais dá origem a toda a variedade dos fenômenos 87 Freud, S. “Além do Princípio do Prazer” (1920), in: E.S.B., Imago, RJ, 1969, v.XVIII, 17-85. Freud, S. “Esboço de Psicanálise”(1940[1938]), in: E. S. B., Imago, Rio de Janeiro,1975, vol. XXIII,165-237, p.173. 88 86 da vida. A analogia de nossos dois instintos básicos estende-se da esfera das coisas vivas até o par de forças opostas - atração e repulsão - que governa o mundo inorgânico.”89 Em outras palavras, poderíamos dizer que Eros sem a interferência da pulsão de morte leva à imobilidade da dinâmica psíquica tanto quanto a pulsão de morte sem a interferência da pulsão de vida. Nos dois casos apresentados podemos entender a figura da princesa como uma manifestação da pulsão de morte. No primeiro caso a princesa amarrada que fica a espera e, no segundo, a princesa que impede a aproximação do outro. Podemos interpretar que ambas esperavam ser encontradas por príncipes, portadores da possibilidade do encontro e do despertar para a vida, isto é, manifestações da pulsão de vida. Neste sentido, ao contar o poema e o conto, procurei inserir a dimensão de vida e de simbolização em suas vivências. Tentei, com isto, resgatar os sinais libidinais existentes, pois acreditava na dualidade “príncipe/princesa”, pulsão de vida/pulsão de morte. Ou seja, que por traz do desejo de morte revelado na relação transferencial, deveria também existir um desejo de vida. Penso ser necessário indicar um aspecto relacionado aos contos de fadas. Eles revelam imagens de uma princesa e de um príncipe como seres etéreos, sobrehumanos, perfeitos e assexuados. Vivem em busca de um encontro sublime e de felicidade eterna. O encontro esperado, o final feliz, traduz um equilíbrio de forças perfeito, nos leva a imaginar que o príncipe e a princesa vão se encontrar e viver felizes para sempre. Seria este encontro narcísico, esta união sublime dessexualizada 89 Idem, p.174. 87 dos contos de fadas aquilo que a anoréxica busca como ideal? Um encontro perfeito que visa eliminar concretamente a turbulência da vida pulsional? No próximo capítulo tentaremos responder estas questões através da compreensão da anorexia e da bulimia relacionadas com as adicções e com a melancolia. 88 TERCEIRO CAPÍTULO A ANOREXIA E A BULIMIA COMO DISTÚRBIOS DA ORALIDADE O capítulo anterior foi dedicado aos relatos sobre Clara e Vera, através dos quais foram ilustradas e levantadas algumas questões a respeito da anorexia e bulimia como problemáticas narcísicas. Neste capítulo, tentarei responder estas questões, a partir do pensamento de autores que relacionam a anorexia e a bulimia às adicções, às perversões e à concepção freudiana da melancolia e do ideal do ego. A anorexia e a bulimia como adicções: A palavra adicto significa “propenso, destinado, fiel”90. Então podemos dizer que adicção significa propensão, algo a que se é fiel, de que se é dependente. Neste sentido, uma relação de dependência deste tipo se faz evidente no anoréxico e no bulímico. Estes pacientes referem-se à comida como uma droga com a qual estabelecem uma relação de submissão. Vejamos alguns autores que pensam a anorexia e a bulimia como adicções. Marcelo Heckier91 diz que a anorexia e a bulimia têm a dimensão de um ato que não pode ser evitado. Para ele, a compulsão bulímica é caracterizada pelo comer 90 91 Michaelis. Dicionário. São Paulo, Melhoramentos, 1992. Heckier, Marcelo e Miller, Celina; Anorexia - Bulimia: deseo de nada, Buenos Aires, Paidós, 1995. 89 compulsivo e pelos mecanismos compensatórios posteriores de vômitos, uso de diuréticos, de laxantes e de enemas. Já a compulsão anoréxica está centrada na sustentação de uma rígida restrição alimentar. Estas duas compulsões levariam alguns profissionais, principalmente os médicos, a compreendê-las como formas de adicção à comida. O autor aponta: “existe entre o sujeito bulímico, o sujeito anoréxico e a comida, um vínculo de sujeição. Sujeição que é escravidão, como um laço, um vínculo muito especial, intenso e exclusivo, amoroso e despótico entre o sujeito e aquilo que ele considera como seu objeto. Objeto este idealizado e temido, idealizado e sinistro.”92 Para Heckier adicto pode significar também não- dito e, é a partir daí que ele sustenta teoricamente sua prática analítica com pacientes anoréxicos e bulímicos. O que ele desenvolve é a necessidade dos pacientes falarem sobre aquilo que não pode ser dito e, ao invés disso, é atuado (ação impulsiva que irrompe no comportamento do sujeito) através dos sintomas. A dimensão do ato compulsivo é uma característica mais importante do que o ato de comer. Apoia-se no trabalho de Nasio93 ao considerar as crises de anorexia e de bulimia como formações do objeto a. Para podermos acompanhar o pensamento de Heckier, penso ser importante apresentar a diferença entre as formações do inconsciente e as formações do objeto a, trabalhadas por Nasio. Lacan nomeia o objeto do desejo e ao mesmo tempo objeto causa do desejo como objeto a . Este objeto, por ser testemunha de uma perda, é objeto que produz falta, na medida em que essa perda é impossível de ser preenchida. O objeto a, enquanto eternamente faltante e inapreensível, inscreve a presença de um vazio que 92 93 Idem, p.24. A tradução é minha. Nasio,J. D. Os Olhos de Laura. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991. 90 qualquer objeto poderá ocupar, estabelecendo uma tensão fundamental para o movimento desejante.94 Para Nasio o objeto a nasce da impossibilidade da psicanálise em definir exatamente o que é o gozo. Tem-se o a (o outro do desejo) no lugar de um gozo impossível. Admitindo que o a é o substituto do gozo, o autor destaca quatro aspectos gerais do gozo indispensáveis para se poder entender as formações provenientes do objeto a . O primeiro aspecto é o de que o gozo “permanece inconsciente”, não podendo ser experimentado como prazer ou desprazer. O segundo aspecto é o de “não se limitar a ser uma experiência de satisfação ou de insatisfação”. O terceiro é o de que o gozo inconsciente é denominado “auto-erótico” porque basta a si mesmo. O quarto aspecto, segundo o autor, o mais importante para a sua tese sobre as formações do objeto a, é o de que “não há gozo a não ser que haja um corpo vivo”.95 Ele diz: “ o gozo que interessa à psicanálise não se submete nem segue as flutuações físicas da idade, das doenças e das mudanças; sempre invariável, ele atravessa como uma constante nosso corpo maltratado pelos significantes. Em suma, o gozo, não esqueçamos, o objeto a, necessita da anterioridade de uma vida, mas é excluído dessa vida, fora do corpo vivo e sexuado do qual tira, no entanto, sua origem. Lacan fixa em uma palavra esse traço do gozo dizendo: o objeto a é um gozar ‘fora-corpo’. ”96 Desta forma, o autor define as formações do objeto a “como diferentes modos através dos quais o sujeito encontra o gozo auto-erótico que lhe vem do exterior. Cada formação de a é uma maneira particular de apreender o objeto. Mas 94 Dor, J. Introdução à leitura de Lacan, Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, p.143. Idem, p.57-58. 96 Idem, p. 58-59. 95 91 que o sujeito acolha o objeto ou seja por ele atraído, quer capture-o ou seja por ele capturado, partamos da suposição de que entre esses dois pólos opera-se uma percepção, cujos diferentes modos se chamam: formações do objeto a .”97 Neste sentido, Nasio aponta haver outros acontecimentos transferenciais que não são acontecimentos significantes e aponta a existência de uma matriz da transferência diferente da matriz da palavra. Enquanto permanecemos no nível do dizer e consideramos um lapso, um sintoma ou uma interpretação do psicanalista, como atos significantes, a transferência se atualizará no âmbito da palavra. Mas, o autor se questiona como a transferência se atualiza “quando estamos diante de formações psíquicas mais próximas do fazer do que do dizer, da paixão do que do amor.”98 O autor propõe, então, três diferentes formações do objeto a, isto é, três conjuntos de configurações psíquicas, cujo mecanismo de defesa subjacente é o retorno desse objeto, que só existe fora do corpo, no exterior: A primeira compreende às “formações de a produzidas por recalcamento”99, em que a fantasia é o seu modelo. O meio (meio entendido como a transferência analítica) em que o objeto surge na fantasia é o inconsciente estruturado como uma linguagem e o mecanismo de defesa primordial é o recalque. O sujeito, aqui, percebe e se identifica com o objeto, reencontrando-o na fantasia. A reação terapêutica negativa é um exemplo clínico dessas formações. A segunda diz respeito às “formações de a produzidas por forclusão”100. O meio que circunda o objeto no qual se opera a percepção tem uma outra estrutura diferente do meio recalcante, porque o mecanismo de defesa dominante é a forclusão. 97 Idem, p. 59. Idem, p. 51. 99 Idem, p.67. 98 92 Esta consiste numa rejeição de um significante (a castração, por exemplo) para fora do universo simbólico do sujeito. Estes significantes acabam, assim, retornando do exterior. Compreendem a alucinação, a passagem ao ato e a lesão psicossomática. A terceira seria composta pelas ”formações imaginárias”. Aqui, a apreensão de a produz-se no seio da dimensão imaginária por um sujeito egóico: “é o ego que percebe o objeto, isto é, é o ego que percebe uma imagem fálica ou uma imagem encobrindo o objeto a . Entre as numerosas aparências imaginárias de que a se reveste, na experiência de uma análise, determinamos duas fundamentais: enquanto ausência suscitando a angústia e, enquanto silêncio, como manifestação do lugar do psicanalista. ”101 Assim, segundo Nasio, uma fantasia posta em ato, o surgimento de maneira súbita de uma alucinação, o aparecimento de uma lesão psicossomática são consideradas como formações psíquicas mais próximas de um fazer. Essas formações também fazem e atualizam a transferência, mas de um modo muito diferente da colocação em ato significante, o dizer. As formações psíquicas do objeto a também criam vínculo, segundo ele, mas de modo diverso das formações do inconsciente. Fazem-no através de uma fusão e não de uma ligação. Unem o analista e o paciente em um lugar bem determinado que ele identifica como o lugar do objeto a. Este lugar não se apresenta como um significante, como um dito que faz circular os significantes, mas se manifesta como um fazer. Fantasiar, alucinar, passar ao ato, são exemplos de “fazeres” cujo elemento ativo não é o sujeito, mas uma região independente do corpo. 100 101 Idem. Idem, p.68. 93 O surgimento de uma dessas formações relativas ao objeto a, faz com que a transferência não mais se apresente estruturada como uma linguagem, mas se converta em uma ação, cristalizando assim a relação analista paciente em um fazer. Baseando-se nestas considerações, para Heckier, o que o sujeito não pode dizer revela-se na sessão através das crises, de um fazer. As crises excluem a dimensão discursiva e se resumem a um ato bem definido e separado da ordem significante. É nesse fazer que a transferência se resume: um fazer silêncio, a exposição de um corpo descarnado. “Uma parte do corpo atua, adoece e o sujeito nada consegue dizer sobre isto.”102 O fazer desses pacientes parece dominar o tratamento. O dizer resume-se quase que exclusivamente a uma fala sobre o corpo, a gordura, a comida, as dietas. Como conseqüência, o sujeito vai se colocando fora da cadeia significante, tornando-se dependente de seu não - dizer, envolvido numa trama de repetições mortíferas, sem vontade própria, totalmente alienado e impossibilitado de interromper este estado de coisas. A comida, as dietas, o corpo e o peso passam a ocupar um lugar central e único em sua vida, fazendo parte de sua identidade. Mas por que estes sujeitos ficam capturados nessa dimensão do fazer? Enquanto Heckier somente apresenta a anorexia e a bulimia como adicções no que se referem às formações do objeto a - dimensão do fazer (gozo) e não do dizer (significante) - , Jeammet103 indica que a tentativa de encontrar um objeto substituto no comportamento adictivo dessas patologias configura uma organização perversa, que constitui uma defesa contra um sentimento aniquilante de dependência. Para Jeammet, trata-se de uma organização perversa porque o objeto de amor não é reconhecido como independente do eu. Não há uma diferenciação eu- 102 Heckier, Op cit, p.31. Jeammet, Ph. “L’Approche Psychanalytique des Troubles des Conduites Alimentaires”, in: Neuropsychiatrie de L’Enfance, 1993,41(5/6), 235-244. 103 94 objeto, passando o objeto, desta forma, a ser usado para um reasseguramento narcísico. O que seria esse reasseguramento narcísico? Para o autor, seria a manutenção de um contato com o objeto sem destruí-lo. Um contato que mantivesse este objeto nos limites do eu, de alguma forma próximo para não ser perdido e distante para o eu não ser invadido por ele. Uma organização extremamente primitiva, uma defesa contra a alternância entre ser engolido e engolir, ser destruído e destruir. Haveria uma tentativa de afastar estas angústias primitivas e a depressão provocadas pelo objeto. Ainda segundo este autor, a relação com um objeto mantido no exterior acaba protegendo o sujeito do vazio interno e do risco de perder este objeto - eu. O objeto fica colocado no exterior sem que o sujeito se deixe penetrar por ele, ou se desvencilhe dele. A busca de sensações como estar cheio ou vazio, por exemplo, substitui os sentimentos intoleráveis de perda. O único recurso do qual o sujeito consegue lançar mão para fugir concomitantemente de sua dependência e da possível ruptura com o objeto é o desencadeamento de um comportamento adictivo, através do qual o sujeito tenta dominar o objeto. Também, para Jeammet, nos comportamentos adictivos em geral, há uma alternância de sensações de vazio e apaziguamento. Na anorexia, no entanto, algo se passa de maneira diferente das toxicomanias (necessidade da droga) e da bulimia (necessidade da comida para comer e sentir-se cheio e depois vomitar para sentir-se vazio). Na anorexia “o apaziguamento não é buscado de forma direta, ele está ligado ao triunfo de não precisar satisfazer uma necessidade”104. O que significaria uma satisfação(apaziguamento de uma tensão interna) na não - satisfação, satisfação de 104 Idem, p.241. 95 não ter que precisar do objeto? Tal comportamento adictivo estaria refletindo uma ruptura radical com o objeto? O autor mostra que o ato adictivo parece trazer a possibilidade de alguma organização para o anoréxico e o bulímico, já que esses sujeitos apresentam uma séria fragilidade narcísica. Julgo interessante este ponto de vista no qual o ato de comer e vomitar e o da recusa a comer introduzem a preocupação com o peso como algo que sustenta, organiza de alguma forma o sujeito. O peso, como se sabe, tem a função de segurar, manter um certo equilíbrio: colocamos um peso em cima de papéis para eles não voarem e se perderem por aí. Não seria esta preocupação com o peso uma tentativa de organização interna, um “reasseguramento narcísico” para esses pacientes? Neste momento, lembro-me de Clara ao sentir-se violentada quando obrigada a comer e a engordar, como se fosse perder os limites de seu corpo. Podemos pensar que a restrição de sua dieta estabelecia um limite para ela. Voltando a Jeammet, o principal risco para estes pacientes é a repetição de um processo de evitamento do objeto, levando a uma desobjetalização progressiva do conjunto de seus investimentos.105 Estes investimentos são compreendidos, por ele, em suas bases auto-eróticas (a pulsão não está dirigida para outra pessoa, satisfaz-se no próprio corpo.) que deve ter “uma função de refúgio e de apoio para o sujeito poder reencontrar nele mesmo uma relação asseguradora e de prazer nutridor da qualidade anterior da relação de objeto.”106 Um prazer já vivenciado com o objeto e agora relembrado no próprio corpo. No auto-erotismo não há anobjetalidade, mas a perda do seio como objeto parcial e a tentativa de reencontrar este objeto perdido do primeiro desmame. 105 106 Idem. Idem. 96 No entanto, o autor percebe no movimento de desobjetalização, eliminação do objeto, esse prazer auto-erótico, que tem um valor de ligação, ser substituído por um “auto-erotismo negativo”107. Este se resume numa auto-estimulação à procura de sensações e não de satisfações, como por exemplo, sensações de estar cheio ou vazio. É esta busca de sensações que deverá manter sob controle o objeto pelo movimento permanente de introdução e expulsão e, por conseguinte, o eu, que não suporta perdêlo. Esta busca de sensações passa a ser caracterizada por um aumento da autodestrutividade, pois tenta apagar todos os traços de ligação ao objeto que lhe falta. Penso que estas considerações de Jeammet são importantes para a compreensão da anorexia e da bulimia como distúrbios da oralidade. A questão da dependência está intimamente ligada à fase oral do desenvolvimento sexual, na qual ainda não há diferenciação entre o eu e o objeto, há uma dependência total e concreta do objeto, cuja falta leva ao perigo de uma aniquilação total. Esta posição de dependência ao outro coloca o bebê à mercê dos objetos externos. A este respeito, é importante lembrar que as anoréxicas sentem-se também como se estivessem nas mãos dos outros, como se fossem marionetes. Conclui-se, então, que haveria na anorexia uma tentativa de anulação deste sentimento de dependência ao objeto visando a separação: capacidade de perceber o outro e a si mesmo. A relação de dependência da fase oral do desenvolvimento nos aponta que é nutrindo-se do outro que o eu pode se desenvolver, se constituir. “Por ser incapaz de sobreviver por si, por necessitar de um colo materno, é que a criança, ao nascer, necessita ser gestada recebendo não só nutrientes vitais, mas os nutrientes psíquicos: o investimento libidinal parental. É deste narcisismo parental, transformado em libido objetal, que a criança se alimenta, mantendo a ilusão de que tudo pode, necessária 107 Idem. 97 para se contrapor à imensa fragilidade.”108 Esta constituição, que se dá graças a relação com o objeto, deve ser ancorada numa relação suficientemente segura, como nos diz Jeammet, constituída de alicerces narcísicos firmes. O que não ocorre na anorexia. Para ilustrar isto que foi dito acima lembremo-nos do sonho que tive com Vera, do quebra-cabeças de ossos. Um sonho em que podemos compreender uma situação de desamparo diante de uma rejeição dos ossos. Não consigo deixar de associar ao sonho o olhar perdido da mãe de Vera quando do momento de sua internação e a sua incapacidade de decidir sobre a internação da filha. Era como se ela não investisse a filha, não podendo nutri-la psiquicamente. Quando a mãe é capaz de receber e conter as angústias de seu filho poderá torná-las menos persecutórias para ele. Sendo assim, acredito que Vera denunciava uma incapacidade de conviver com o incerto, com a perda, através de seu corpo em pele e ossos. Para defender-se, tanto da perda como da dependência do objeto de amor, parecia tentar dominá-lo identificando-se com o vazio deixado por ele deixando-o também num vazio. Percebemos que a problemática relação de dependência ao objeto, apontada por Jeammet, surge com intensidade na adolescência. O que faz com que o corpo se torne inaceitável para uma adolescente? Brusset109 nos remete às mudanças corporais das adolescentes que passam, nesse momento, a se assemelhar à mãe: menstruar, ter seios e quadris largos. Parece que o corpo torna-se inaceitável, o que o leva a pensar numa reativação de uma indiferenciação insuportável, ao mesmo tempo que desejada. O drama que brota no corpo da anoréxica como uma recusa de um corpo de mulher diz respeito a relação 108 109 Bastos, Liana Albernaz de Melo. Eu-corpando: o ego e o corpo em Freud, SP, Escuta, 1998, p.177. Brusset, B. “Anorexie Mentale et Boulimie du point de Vue de Leur Genèse”, in: Op cit, 245-249. 98 dela com a mãe, às suas experiências primárias com o objeto materno e, também, com a figura do pai que parece colado a este objeto. Segundo Brusset, cujas considerações convergem com o pensamento de Jeammet, as marcas clínicas da necessidade de controle, do ideal onipotente, da relação perversa de objeto e do auto-erotismo arcaico conduzem a duas dimensões de conflitos fundamentais na anorexia e na bulimia: Em primeiro lugar, temos a dimensão da indiferenciação parcial sujeitoobjeto defensivamente localizada no corpo sexuado que identifica a adolescente à sua mãe. As identificações secundárias (do Édipo) se estabeleceriam em cima desta identificação primária fusional. Desta forma, a organização edipiana não pode acontecer e se estruturar, pois, o pai tende a não ser mais do que um duplo da mãe. A segunda dimensão é a da ambivalência amor/ódio. A perda do objeto eqüivale a uma perda do eu, pois não existe a possibilidade de uma elaboração simbólica da atividade introjetiva, que seria fazer um luto do objeto(só é possível pelo conflito). Há uma dependência ao objeto e uma tendência a eliminá-la pelo movimento adictivo de domínio do objeto.110 O que estes autores nos apontam é que unir-se à mãe significa proteger-se do abandono e de uma situação de desamparo, um ideal de completude, mas significa também a perda dos limites da individualidade criando, assim, o sentimento de dependência aniquilante, mortal, que deve ser combatido. Ainda segundo Brusset, é a partir da compreensão deste nível primitivo das relações de objeto que podemos usar a noção de oralidade para o mapeamento da clínica da anorexia e da bulimia. “A noção da oralidade manifesta-se nas relações alimentares com os alimentos, mas também com as roupas, o saber, nas relações do 110 Idem, p.248 99 sujeito com o seu corpo, nas relações afetivas e terapêuticas. Observa-se uma avidez, impaciência, intolerância à passividade, à dependência, donde as necessidades de domínio, de controle, desejo de ser olhado e adivinhar sem ter que perguntar nem dizer, são marcantes.”111 Penso com Brusset que a anorexia e a bulimia, manifestações patológicas da oralidade, não devem ser consideradas apenas como repetição de esquemas primitivos infantis ou como lugar de fixações. Podem ser compreendidas como uma tentativa de elaboração da ambivalente relação amor/ódio que especifica as relações pulsionais primitivas dos objetos: amar significa também destruir; receber também é perder, o bom torna-se mau, pois na incorporação amor e ódio encontram-se fusionados. Freud, através da melancolia, nos fala sobre a incorporação revelar a fusão da destrutividade com a libido, isto é, o objeto é trazido ao ego pela libido e ao mesmo tempo é destruído. Segundo o autor, a noção de fixação só pode dar conta da relação entre problemas alimentares e sexualidade oral infantil, na medida em que as representações inconscientes, regressivamente ativadas, determinam um conflito intrapsíquico constituído como tal, como no caso das anorexias histéricas. Nas anorexias mentais (nervosas), como foi visto anteriormente, a tentativa de eliminar os conflitos depressivos suscita a busca de uma saída nas passagens ao ato, no comportamento adictivo. As condutas anoréxicas e bulímicas compõem uma situação atual na qual as relações com o próprio corpo e as necessidades estão no primeiro plano das preocupações, substituindo assim a pensamento e de relação.112 111 112 Idem, p.248-249. Idem, p.249. atividade de representação, de 100 Podemos ilustrar o que foi dito acima através de Deutsch113. A autora aponta que as fantasias primitivas sobre a gravidez são bastante comuns nas mulheres, mas existe uma diferença marcante entre as fantasias das histéricas e das anoréxicas. A histérica faz uma fantasia libidinal em que é seduzida pelo pai e fecundada pela boca. Na anorexia há um segundo ato nesta fantasia. A anoréxica elimina a mãe rival, se fundindo com ela, e o ataque que faz ao ventre materno acaba se voltando sobre ela mesma. Neste sentido, o alimento que recebe pela boca para fecundá-la passa a ameaça-la de morte. Estas considerações são importantes porque é preciso ter em mente que, na clínica com estes pacientes, o psicoterapeuta é investido da mesma forma que este objeto materno: é atacado e solicitado constantemente, numa relação baseada no tudo ou nada. Para que o trabalho terapêutico tenha continuidade, é preciso compreender este processo, senão, ao focalizarmos somente o comportamento alimentar corremos o risco de ficarmos “amarrados” ao comportamento adictivo extremamente destrutivo. A anorexia, a bulimia e a melancolia: Freud escreveu muito pouco sobre anorexia e bulimia, mas quando o fez relacionou a anorexia com a melancolia. No rascunho G, dedicado à melancolia, diz o seguinte: “A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. A famosa anorexia nervosa das moças jovens, segundo me parece, é uma melancolia em que a 113 Deutsch, H. “Anorexia Nervosa”, in: Op. Cit. p.7-24. 101 sexualidade não se desenvolveu. A paciente afirma que não se alimenta simplesmente porque não tem nenhum apetite; não há qualquer outro motivo. Perda de apetite, em termos sexuais, perda da libido.”114 O desenvolvimento posterior da concepção da melancolia revela a importância da vivência de perda para a constituição do psiquismo. Como vimos, existe na anoréxica e na bulímica uma tentativa de negação da vivência da perda através do comportamento adictivo. Chabert115 escolhe trabalhar uma característica que remete ao aspecto da qualidade, do lugar e da função singular daquilo que ele chama de “recurso ao comportamento na bulimia”116. A descrição sintomática feita pela maioria dos pacientes e a atuação nos comportamentos alimentares é considerável e acaba criando um sistema ritualístico. A crise bulímica sempre se repete, qualquer que seja o estado de angústia ou de excitação que a determina. Segundo ao autor, estes rituais têm sido comparados aos rituais obsessivos, porém, na neurose obsessiva, os rituais conjuratórios buscam anular ou inibir pensamentos compulsivos de realizar atos indesejáveis. Nos acessos bulímicos parece ocorrer algo diferente: o ato parece ter por finalidade destruir, e não afastar o pensamento e as fantasias que o sustentam. O que podemos entender por destruição da capacidade de pensar? Este comportamento parece evidenciar a existência de uma lacuna, uma falha, um vazio. “O recurso ao comportamento repetitivo permite descarregar os fantasmas oferecendo uma via de descarga a uma excitação insustentável: as 114 Freud, S. “Extratos de documentos dirigidos à Fliess”, E. S. B., Imago, RJ,1969, Vol. I, p. 282. Chabert, C. “La Bulimia: Perversión o Melancolia?”, in: Revista de Psicoanálisis de Ninõs e Adolescentes, número 6, 79-83. 116 Idem, p. 79. 115 102 sensações de estar cheio demais - o comer compulsivo e o ato de vomitar, ou mesmo os exercícios intensos permitem o vazio do pensamento.”117 O autor prossegue dizendo que a repetição imutável do comportamento bulímico é justificada por um gozo dominado pelo auto-erotismo e a relação de domínio. Trata-se de uma perversão narcísica na medida em que o sujeito se constitui como autor e beneficiário de um estado de gozo supremo, sem precisar do outro; mas de um gozo frágil porque esta sempre ameaçado pela presença e desejo do outro. Quando essas condutas se tornam constantes, a compulsão à repetição perde seus efeitos de domínio e reconquista narcísica. Consomem-se em atos repetitivos nos quais o investimento libidinal se empobrece cada vez mais até transformar-se num sistema automático, isto é, termina por transformar-se em uma atividade anônima e mecânica, na medida que a satisfação libidinal está praticamente banida. O autor observa que, através da ingestão exagerada, o comportamento adictivo vai atacar violentamente um corpo que, com a chegada da puberdade e da adolescência, irá constituir-se como fonte de desejos. Corpo violentado pela desmesura e pelos vômitos, confundindo o desejo de ter com o de expulsar. Desta maneira, o corpo acaba ficando desobjetalizado quando tenta constituir-se como suscitando o desejo do outro. Como já foi visto anteriormente, o objeto, o outro e o seu desejo ameaçam o sujeito pelo risco de domínio de seu corpo. As primeiras emoções sexuais são sentidas, então, em um clima de pânico, sendo a adolescência brutalmente confrontada com a existência nela de sensações excitantes altamente condenadas. O que se revela no transcorrer do processo terapêutico é uma culpabilidade imensa, suscitada pela excessiva proximidade de uma problemática edípica pouco estruturante. 117 Idem, p. 80. 103 Diz Chabert, “o que domina é a convicção de seduzir ativamente o pai em uma organização fantasmática que parece inverter a construção histérica da sedução. Não encontramos a fantasia designando o outro como agente sedutor da cena excitante. Contrário ao cenário da sedução histérica, não se descobre uma denúncia possível de atentado sedutor senão a necessidade de fixá-lo do lado do sujeito”. Isto é, “o próprio corpo e a excitação do qual é portador passam a ser tão persecutórios que por isso mesmo devem ser destruídos pela extinção dos movimentos pulsionais. Tudo aquilo que é sentido como forças do mal, é submetido a uma retorção drástica, traduzida pela amplitude de uma desqualificação de si que impõe condutas sacrificiais apontadas, justamente, para o corpo em sua capacidade de seduzir e experimentar prazer.”118 Esta desqualificação de si apresenta-se como auto-acusações e autoreprovações proferidas de um modo melancólico. Este sentimento se reflete na escolha de alimentos pesados e gordurosos, reforçando uma representação de si maltratada e viciada. Aqui, podemos retomar as elaborações freudianas sobre a melancolia em “Luto e Melancolia” de 1915: “Existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada , a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal - uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo -, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, 118 Idem, p. 81-82. 104 contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado.”119 Voltemos a Chabert. A perda do objeto parece ocupar um lugar essencial na dinâmica destas pacientes. O eu sente-se pobre e vazio em função de suas autoreprovações encobrindo as recusas contra o objeto de amor. A intensidade destas auto-reprovações é a medida da intensidade de uma problemática de perda que nenhum trabalho de luto pode até então resolver. A sexualização excessiva ligada aos desejos incestuosos provocam ataques mortais às vivências infantis, significando a morte da infância e a renúncia impossível aos objetos de amor originais. Totalmente fixadas a seus objetos de amor, algumas anoréxicas e bulímicas podem, às vezes, comprometer-se a um processo melancólico no qual o objeto castigado é atacado ao mesmo tempo que preservado através de um comportamento compulsivo. A relação com o objeto, ao invés de ser deslocada sobre as pessoas viventes, consideradas como seres desejantes, é dominada nas conquistas alimentícias exibindo a vantagem ilusória de colocar o objeto à disposição, para dissimular o intolerável reconhecimento de sua ausência e de sua falta. Rodolfo Urribarri120, através de sua experiência com pacientes anoréxicas, observa a importância das vivências prematuras de perda, tanto das perdas objetivas, 119 Freud, S., “Luto e Melancolia”, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, vol. XIV, 275 - 291. (P. 281) 120 Urribarri, Rodolfo. Comentarios sobre o artigo de Helene Deutsch “Anorexia Nerviosa”, in: Revista de Psicoanálisis de Ninõs e Adolescentes, número 6 20-24. 105 como das mais sutis modificações a sua volta. As situações de morte precoce e silêncios, segredos em torno delas, parecem ser elementos constantes que se unem e dão conta de muitas associações e significações. O autor assinala que há, nestas jovens, um profundo desamparo que elas se esforçam por negar, ligado às vivências de desamparo precoce. Sensações de vazio e de solidão, que as afastam de seus vínculos. A perda tem uma expressão/inscrição direta no corpo, na qual as vivências de solidão e vazio são correspondentes da falta de alimento. Sendo assim, o vazio é causa e conseqüência dos comportamentos adictivos na bulimia. Reproduz-se na transferência o mesmo conflito e modo relacional que liga o paciente à comida, em particular à perda traumática do objeto original e seu anseio interminável pelo mesmo, que o impulsiona a realizar ações defensivas. Até aqui, vimos como a dimensão perversa do comportamento anoréxico e bulímico tem uma dimensão melancólica subjacente. O comportamento adictivo funciona como uma defesa, uma forma de ataque contra um sentimento de dependência do objeto, que foi incorporado ao ego, fundido a ele quando de sua perda. A forma de reverter este sentimento de dependência é tentar dominar este egoobjeto perdido. Se há na anorexia e na bulimia uma dimensão melancólica importante, parece-me necessário discutir a questão do ideal do ego nestas patologias, já que a melancolia, considerada uma neurose narcísica, compreende um conflito entre o ego e o superego e sabemos que a formação de ideais é uma das funções atribuídas por Freud ao superego. 106 Freud, em “Narcisismo, uma introdução”121, é levado a evidência do narcisismo pela aplicação das concepções psicanalíticas às psicoses. Freud , neste texto, considera como equivalentes as neuroses narcísicas e as psicoses. Indica uma impossibilidade de transferência libidinal e retirada da libido sobre o ego. Foi somente no artigo “Neurose e psicose” de 1924 que Freud restringe o uso da expressão neuroses narcísicas à melancolia, diferenciando-a das neuroses de transferência e das psicoses. Para Freud, já com base na segunda tópica do aparelho psíquico, a neurose de transferência resulta de um conflito entre o ego e o id e a psicose resulta de um conflito entre o ego e o mundo externo.122 As neuroses originam-se a partir de um movimento de recuo do ego em aceitar uma poderosa reivindicação pulsional do id. O ego defende-se contra estes impulsos mediante o mecanismo do recalque. O material recalcado luta contra o recalque, criando caminhos alternativos para os quais o ego não pode causar inibição, que são os sintomas. Empreendendo o recalque, o ego passa a seguir as ordens do superego, ordens originadas do mundo externo que encontram representação no superego. “O ego entrou em conflito com o id, a serviço do superego e da realidade, e esse é o estado de coisas em toda neurose de transferência.”123 Na psicose, seguindo Freud, produz-se uma ruptura entre o ego e o mundo externo. Esta ruptura deixa o ego à mercê do id, arrancado da realidade. O ego, diante disso, tenta construir uma nova realidade de acordo com os desejos do id. Neste texto, Freud aponta que há também patologias que se baseiam em um conflito entre o ego e o superego. A melancolia aparece como um exemplo típico deste grupo, que ele chamou de neurose narcísica. 121 Freud, S. “Sobre o narcisismo: uma introdução”, (1914) in: op cit, v. XIV. Laplanche, Op cit, p.313. 123 Freud, S. “Neurose e Psicose”(1924), in: Op cit., p.190. 122 107 A partir da concepção da sua segunda teoria do aparelho psíquico, Freud constitui, do ponto de vista econômico, o id como o pólo pulsional: composto pelas pulsões de vida e pelas pulsões de morte é o reservatório da energia psíquica, o ego aparece como centro de ligação dos processos psíquicos e de trocas de investimentos entre ele e o objeto e o Superego traz em si a função de formação de ideais, de consciência moral e de auto-observação. Segundo Freud, em “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”124, a distinção entre a função de consciência moral e a função de ideal é ilustrada nas diferenças que ele procura estabelecer entre sentimento de culpa e sentimento de inferioridade. Ambos são resultantes de uma tensão entre o ego e o superego, mas o sentimento de inferioridade estaria relacionado a uma tensão entre o ego e o ideal, na medida em que o ideal é mais amado do que temido. Na melancolia, segundo Freud, o ego se divide quando é abandonado pelo objeto. Uma parte do ego incorpora o objeto, identificando-se com ele. A outra parte do ego ataca cruelmente a primeira. A parte que ataca é aquela que sente a perda do objeto como uma ferida narcísica e, por isto, ataca este objeto. Estabelece-se, assim, uma luta entre o herdeiro do ego narcísico infantil, o ideal do ego, e o objeto perdido agora fazendo parte do ego.125 Observamos na anorexia uma exigência por perfeição (ser o melhor aluno, o mais competente, ter um corpo sem falhas, etc.) que o ego se esforça por cumprir. qual a relação entre o ego e o ideal do ego nos anoréxicos e nos bulímicos já que o sentimento de impotência rodeia estes sujeitos? A questão do ideal: 124 Freud, S. “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise ( 1933[1932])”, in: E.S.B., RJ, Imago, 1994, Vol. XXII, p.71. 125 Freud, S. ”Psicologia de Grupo e Análise do ego”, Op. cit., 91- 179, p.138. 108 Lippe126 também concorda que a reativação pulsional da adolescência leva a mudanças internas que conduzem à uma organização edipiana “definitiva”. A elaboração destas mudanças depende de elaborações pré-edipianas sobre as quais se fundamentam e se estruturam. Essa reativação pulsional depende do processo de separação - individuação precoce, relacionado aos investimentos do objeto e aos destinos da libido nas diferentes etapas da evolução da sexualidade. A problemática da separação - individuação, que surge na adolescência, reativa, assim, a problemática da diferenciação original (sujeito - objeto) e a dependência primitiva que ocorria em torno da relação oral ao seio materno, na qual a frustração da perda do seio introduz a dimensão do tempo e a diferenciação eu nãoeu, sujeito - objeto(objeto entendido como o outro do eu narcísico). Nesta reativação da adolescência o autor situa o que ele chama de “regressão vertiginosa”127 a que muitos autores fazem referência a propósito de pacientes anoréxicos apontando, então, que algo não foi elaborado nesta relação oral primitiva. Na anorexia, para Lippe, o objeto representaria um ideal de completude. Este Ideal previne o sujeito das angústias de perda e das fantasias de destruição (o risco da destruição do objeto e de sua perda ) ligados ao movimento de diferenciação. O autor mostra estes movimentos descritos acima postos em ação novamente na adolescência, o que levará a organização de uma interrupção defensiva dos processos evolutivos buscando, por sua vez, reencontrar a relação de completude original. A questão do ideal como ideal de completude vem então, em contraponto, sublinhar a questão da falta que tende a ser negada. A imagem do corpo ideal reflete a 126 Lippe, D., “Troubles des conduites alimentaires et idéal”, in: Neuropsychiatrie de l`Enfance, 1993, 41 (5-6), 372-374. 127 Idem, p.372. 109 imagem de um corpo completo que não será ou não seria submetido à falta, ou seja, à nada. Esta falta que dá origem à insatisfação e reativa as pulsões, tenderá, assim, a ser designada pelo seu oposto, o excesso: excesso de peso (as pacientes relatam que estão sempre muito gordas). Não lhes falta nada, pelo contrário, estão cheias demais. É interessante pensarmos, também, que as mães dessas pacientes quase sempre relatam que deram tudo para suas filhas, e por isso não entendem o porque de seus sintomas. Como vimos não há lugar para a falta, somente para o excesso. É nesta perspectiva, onde se situa a falta, que se pode constatar, nestes pacientes, a busca ou a exibição fálica, na qual não é tanto uma questão de ter o falo como representação simbólica do pênis, mas de viver como entidade total, autosuficiente, para tentar se situar fora da falta. O ideal do ego da anoréxica aparece amarrado ao rastro do ego ideal, isto é, a um poder de satisfação onipotente, em que tudo pode e, por isso mesmo, não precisa de nada. Mas, qualquer fracasso ou decepção infligida pelo objeto ao ideal do ego, provoca a depressão aniquilante que deverá ser combatida. Estas considerações são importantes, pois, o que chama a atenção na anorexia é a arrogância com que os pacientes se apresentam àqueles que deles se propõem a tratar e as dificuldades derivadas desta onipotência. Para tentar avançar nesta questão gostaria de me remeter às considerações de Green128 sobre uma estrutura patológica do narcisismo. Aqui, encontrarei elementos importantes para a reflexão sobre a questão do ideal na anorexia e na bulimia. Green compara as fantasias masoquistas com as fantasias narcisistas. No masoquismo encontra-se a fantasia de ser reduzido à passividade pela dor que exige a 128 Green, André. Narcisismo de Vida, narcisismo de Morte, SP, Escuta, 1988. 110 presença do outro. O outro é fundamental para a obtenção de prazer. A fantasia narcisista é a de “querer ser puro, de estar sozinho, de renunciar ao mundo, aos seus prazeres como aos seus desprazeres, pois sabemos que do desprazer pode-se também tirar prazer. Mais difícil e mais tentador é situar-se para além do prazer-desprazer fazendo voto de resistência, sem busca da dor, de pobreza, de privação, de solidão; todas estas condições que aproximam de Deus. Tem Deus fome ou sede, depende Deus do amor , do ódio dos homens?”129 “O masoquista conserva através da negativação do prazer e a busca do desprazer, um vínculo rico com o objeto, o que o narcisista tenta abandonar. Este procurará, como solução do conflito, empobrecer mais suas relações objetais para levar o Eu ao seu mínimo vital objetal e conduzi-lo assim ao seu triunfo libertador. A solução será o investimento objetal narcisista, sobre o qual sabemos que, quando o objeto está ausente, perdido ou então decepciona, a conseqüência é a depressão.”130 Qualquer fracasso infligido pelo objeto ao ideal do ego, provoca a depressão. Por isto o ego sempre está em dívida com o seu ideal: ele permanece fixado em sua megalomania, onipotência infantil e está sempre em dívida com o ideal, com a perfeição. Mas, esta finalidade fracassa e a punição, a vergonha de não ser perfeito, de ter falhas destrói o orgulho de não tê-las. “tudo está perdido, porque nada pode lavar a mácula de uma honra manchada, a não ser uma nova renúncia que empobrecerá as relações objetais pela glória do narcisismo.”131 Quando Green reflete sobre qual a satisfação encontrada pelo narcisista em seu empobrecimento entende que é pelo sentimento de ser melhor pela renúncia, fundamento do orgulho humano. Através desse ascetismo, elimina-se a dependência 129 Idem, p.203. Idem, p.204. 131 Idem. 130 111 ao objeto e há o desejo por um auto-erotismo pobre, desprovido de fantasias. Não é sobre isto que eu discutia anteriormente quando falava num auto-erotismo negativo somente em busca de sensações numa tentativa de manter sob controle o objeto na anorexia? Penso com Brusset132 que o ideal de emagrecimento é um ideal de recusa à sexualidade, à feminilidade reativada pela indiferenciação sujeito-objeto. A anoréxica tem o ideal de ser auto-suficiente. Neste ideal existe um desejo de renascimento, o que me faz pensar numa tentativa de diferenciação, de ter uma individualidade. Por isso, tantos autores que tratam da anorexia referem-se a ela como uma busca pela vida, ou seja, que para defender-se da morte(sentimento de dependência aniquilante) a anoréxica busca viver na onipotência de não precisar de nada, nem de ninguém. No início deste estudo vimos como a anorexia e a bulimia estão inseridas numa tradição de purificação e de pecado. Brusset indica que o orgulho anoréxico das restrições se opõe à vergonha bulímica, ao exagero do pecado. Poderíamos nos perguntar então: o orgulho da anoréxica, o seu ideal , seria o de ter um corpo sem pecados, sem sexualidade? Resgatar este aspecto da vergonha e do orgulho na anorexia parece enriquecer a nossa discussão. A anorexia e a bulimia não podem ser entendidas separadamente uma da outra, mas possuem diferenças significativas. Tendo com base um ideal do ego ascético, que procura os desligamentos, a não-relação com os objetos, temos o orgulho anoréxico. De outro lado, a anoréxica tem muito medo de tornar-se bulímica, pois a bulimia corresponde a uma vergonha, por não ter controle. Parece-me que a vergonha é ser dotado de uma vida pulsional como todo ser humano, é sofrer, é sentir dor, perder, amar e odiar. A anorexia seria uma defesa contra tudo isto característico 132 Brusset, Op cit, p.247. 112 do humano. “O superego vigilante persegue o desejo de absolvição para os restos de vida pulsional que continuam a atormentar o Eu.”133 Estes restos parecem vir à tona numa crise bulímica que causa vergonha e deve ser combatida. Para a anoréxica o corpo com carne, com sexualidade e paixão é a sua vergonha. Podemos pensar que o corpo que se modifica na adolescência num corpo de mulher, que faz desejar, é um corpo vergonhoso por denunciar a existência das pulsões, da vida. É este corpo que deve ser combatido, purificado de seus pecados transformado num corpo vazio. Neste momento, lembro-me de que a anorexia se inicia, quase sempre, com uma dieta para purificar o corpo, eliminar os alimentos que podem sobrecarregar o corpo e deixá-lo pesado. Green diz que na vergonha, não se trata do temor de ser castrado, mas de proibir qualquer contato com o ser castrado, já que este carrega a marca da falha que pode contaminar ao mínimo contato. Penso ser a negação da falta deslocada para a perfeição ascética o que aspira a anoréxica. A anoréxica anseia pela fusão narcisista com um ideal com o qual se alcançaria a perfeição, a completude, a eternidade, a supressão de todas as falhas e o desaparecimento de todas as diferenças. Mas a anoréxica se coloca aquém das exigências impostas pelo ideal quando sobrevem uma crise bulímica. Neste momento a vergonha se impõe, o que deverá ser combatido, mesmo que isto custe a sua vida. Investir, cair em tentação, parece significar um risco imenso para o ego: não estaríamos novamente remontando ao sentimento de dependência aniquilante apresentado anteriormente que deve ser combatido? As considerações dos autores aqui apresentadas são importantes na medida em que podemos pensar que na anorexia procura-se destruir a capacidade de investimento libidinal - o objeto é desinvestido. Busca-se um desinvestimento porque 133 Idem, p. 211. 113 há um superinvestimento do objeto perdido. Poderíamos então nos perguntar se não estamos diante de atos que têm a finalidade de livrar o sujeito dos pecados da sexualidade, do prazer, do erotismo? A anorexia tem um ideal de corpo puro, seco, sem investimentos, sem trocas com o objeto de relação, sem sexualidade, sem libido. Ela afasta a possibilidade de sentir vergonha, de ser dotada de vida pulsional. Compreende uma recusa dos investimentos do objeto pelo eu e uma diminuição dos investimentos pulsionais. Como vimos, na anorexia o que se pretende é abolir as diferenças, apagar os traços do objeto (o outro do eu narcísico). O ideal de um corpo puro seria o ideal da libertação do corpo no ascetismo: alcançar a Deus, que é descarnado e assexuado. Mas, o orgulho anoréxico pode transformar-se em uma vergonha bulímica, entregando-se à desmesura. Penso que a anoréxica possui um desejo bulímico expresso através de sua paixão por tudo aquilo que se refere à alimentação. Ela coleciona alimentos, sabe tudo sobre eles, os guarda como troféus e gosta de alimentar os outros, parecendo alimentar-se do crime bulímico imaginariamente. Não é raro uma paciente anoréxica tornar-se bulímica e, uma paciente bulímica ter desenvolvido uma anorexia anteriormente. Como Vimos, existem diferenças entre a anorexia e a bulimia, mas, não vejo como pensá-las separadamente. Elas se complementam como a depressão melancólica e a mania, isto é, são dois lados da mesma moeda. Pensar a anorexia e a bulimia como neuroses narcísicas abre uma possibilidade rica de reflexão clínica. Urânia Tourinho Perez nos diz o seguinte: “No que se refere à melancolia, Freud nos deixa com a afirmativa da dimensão narcisista dessa afecção, uma neurose narcisista proveniente de conflitos entre o ego e o superego. Afirmar uma neurose narcisista nos coloca frente a uma 114 complexidade e, portanto, a uma riqueza teórica. As psicoses até então desfrutavam o privilégio dos distúrbios do narcisismo sendo demarcada uma fronteira. Ao falar de neurose narcisista abre-se um novo domínio que pode ser interpretado de diferentes maneiras, como uma zona limítrofe de uma neurose-psicose ou de uma psicoseneurose. Sendo assim, os limites entre a psicose e a neurose estão questionados, assim como a rigidez da concepção das estruturas.”134 Deste ponto de vista, arriscaria dizer que a vergonha bulímica, está mais próxima da neurose, pois o ato bulímico compreende, de um lado, a vivência ilusória de ser completo, ter o falo e, de outro, o vômito trazendo à tona a castração, a culpa e a vergonha de ter que admiti-la. Já o orgulho anoréxico coloca-se acima da castração, recusando-a, assumindo uma posição sobre-humana e auto-suficiente, isto é, possuindo um poder de satisfação onipotente, de que tudo pode e, por isso, não precisa de nada e nem de ninguém. Isto me leva a pensar que o orgulho anoréxico está mais próximo da psicose. Trata-se na anorexia de uma recusa da realidade da castração e de uma recusa do Eu em investir os objetos. O ideal anoréxico de ter um corpo sem pecados, sem a circulação pulsional apresenta-se como negação da ausência, o que impede o movimento vital dos investimentos e leva ao imobilismo e à morte. Em “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, Freud diz o seguinte com relação à recusa da realidade da castração: “... pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de recusa, processo que, na vida mental das crianças, não aparece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo de uma psicose.”135 134 Tourinho Peres, Urania (org). Melancolia, São Paulo, Escuta, 1996, p.51-52. Freud, S. “Algumes considerações sobre a distinção anatômica entre os sexos” (1925), in: op cit, v.XIX, 309-320. 135 115 A bulimia, diferente da anorexia, significa entregar-se ao pecado. Ela traz a marca do pecado e a culpa por tê-lo cometido. Parece-me que, por esta razão, no tratamento da bulimia tem-se mais resultados positivos pois, há uma possibilidade do sujeito deprimir e reconhecer-se como portador de algum sofrimento. Lembramo-nos de Clara que disse ter procurado ajuda por não agüentar mais viver amarrada ao seu círculo vicioso de comer e vomitar. E de como pôde ir se desamarrando durante o tratamento, a partir da lembrança da brincadeira infantil da mocinha amarrada ao bandido. Concordo com os autores citados, que a anorexia e a bulimia revelam uma impossibilidade de diferenciação sujeito-objeto, uma problemática narcísica primitiva que se alterna entre o orgulho de não precisar do objeto e a vergonha de depender dele. O que se percebe é que estas relações comprometem o equilíbrio narcísico, que é extremamente frágil pelo seu caráter primitivo e dual. A relação com o objeto introduz o conflito, a desordem e o desamparo. É exatamente isto que a anoréxica procura eliminar: a relação com o objeto que foi o ponto de ligação das primeiras vivências de satisfação e não pode ser perdido para que outros objetos sejam buscados. Relembremos Brusset que diz o seguinte: “Mais do que somente uma regressão para as fixações orais, trata-se da transferência de uma problemática pulsional e narcísica arcaicas (que compromete as relações com o objeto e a autoestima) para o comportamento alimentar, para as relações com o corpo e, mais freqüentemente, para com a mãe.”136 A gravidade do conflito oral na anorexia e na bulimia - a questão da dependência ao objeto pela indiferenciação sujeito - objeto, a ambivalência e o ideal onipotente - demanda uma especial atenção por parte do psicoterapeuta. É preciso, no 136 Brusset, Op cit, p. 245. 116 tratamento destes pacientes, compreender os sinais libidinais subjacentes, isto é, reintegrar os movimentos de vida, no sentido de uma reconstrução narcísica permitindo o surgimento de mudanças e de simbolizações que possam assegurar as representações e sua associação com os afetos sobre os quais a destrutividade está, sem cessar, buscando o domínio objetal (vingar-se do objeto). No próximo capítulo, abordarei algumas questões relativas ao tratamento destes distúrbios. É importante não perder de vista as grandes dificuldades que esse trabalho coloca. As tentativas podem ser fracassadas¸ como nos mostrou o caso de Vera. QUARTO CAPÍTULO O TRATAMENTO DOS DISTÚRBIOS DA ORALIDADE SEGUNDO UMA ÓTICA PSICANALÍTICA Neste capítulo abordarei o tratamento da anorexia e da bulimia entendidas como distúrbios da oralidade - relação de dependência ao objeto, o comportamento adictivo como defesa contra esta dependência e o Ideal de um corpo sem sexualidade. Penso ser fundamental, a partir dos relatos sobre Clara e Vera, uma reflexão referente ao enquadre, à técnica e à transferência. Procurarei mostrar como a técnica pode e deve ser maleável no sentido de criar um enquadre, isto é, criar condições que favoreçam o trabalho do inconsciente: associação livre do paciente e atenção flutuante do psicanalista, para que algum 117 trabalho possível possa ocorrer com estes pacientes. Principalmente na anorexia, o difícil acesso ao material relacionado à relação objetal, pois esta tende a ser negada pelo paciente, domina a transferência. “Como entender a transferência quando esta se apresenta além de um dizer, num fazer que pode acarretar a perda da vida? “137 Esta questão orienta Heckier nas suas considerações sobre o tratamento da anorexia e da bulimia. Relembrando, o autor diz ser “o fazer” uma constante nas etapas iniciais do tratamento de pacientes anoréxicos e bulímicos e, “o dizer” faz referência quase que exclusivamente, ao corpo, ao peso e às dietas. Baseando-se nos pressupostos de Lacan aponta-nos que o dizer do sujeito na análise possibilita o deslizamento significante e supõe um saber do sujeito. Em contrapartida, o fazer do sujeito reduz a relação, impossibilitando qualquer articulação possível. Há, assim, uma substituição da ação significante por um ato compulsivo. Nesta substituição, uma parte do corpo atua, adoece e o sujeito não consegue falar sobre isto. E quando o que aparece subitamente no espaço analítico é uma formação que não é significante, tudo parece concentrado em um só foco: o medo de engordar. Como vimos, Heckier diz ainda que a dimensão do fazer remete a transferência às formações do objeto a. Estas, de maneira diversa das formações do inconsciente rompem com o movimento associativo. De fato, o psicanalista frente a elas, fica fora do lugar do sujeito suposto saber. A maneira de reinstalar-se no lugar do qual foi desalojado parece ser o de transformar o silêncio do objeto em um enigma para, assim, retomar o trabalho associativo. Mas como fazer esta passagem? Estes impasses clínicos deram ao autor a idéia de incluir nas sessões, em alguns casos, principalmente aqueles em que o fazer na sessão é um fazer silêncio, o 137 Heckier,M. Op cit, p.30. 118 uso de certos materiais como papel, lápis de cor, massa para modelar e argila. Sustenta teoricamente esta prática a partir das contribuições de Dolto em “A Imagem Inconsciente do Corpo” em que a autora aponta: “as produções do paciente devem ser entendidas como autênticos fantasmas representados, a partir dos quais pode-se decifrar as estruturas do Inconsciente.”138 Heckier observa, quando as associações são detidas e uma grande angústia impede a fala, o fazer do paciente na sessão (um fazer arte através de desenhos ou massa de modelar) possibilita ao sujeito, através de sua produção, articular um dizer que funcione como “suporte de seus fantasmas em sua relação de transferência”139. É a imagem inconsciente do corpo, aquela que é projetada em toda a representação. Para ele, a imagem do corpo, para que fique bem entendido, não é a desenhada e/ou modelada, mas a que se revela no diálogo analítico sobre o material produzido. Esta abordagem é a que possibilitará um movimento da clínica do fazer para a clínica do dizer. O autor chega a sugerir aos pacientes que “façam algo” com os elementos lúdicos disponíveis quando reconhecem que uma crise se aproxima, e escrevam suas associações acerca do material produzido. Uma indicação que tem como objetivo amenizar e distanciar as crises que se sucedem repetidamente. Esta modalidade de intervenção faz com que, paulatinamente, ceda a dificuldade do sujeito por em palavras as crises em si e o que elas representam para ele, o que facilitaria uma passagem da pura mudez pulsional ao discurso significante.140 Sua proposta é: “sustentar uma clínica centrada na escuta, e possibilitar assim a passagem de uma 138 Idem, p.32 idem. 140 Idem, p.34. 139 119 boca forçada a comer ou a restringir-se para uma boca que possa por em palavras o sofrimento do sujeito.”141 Estabelecer condições especiais de contrato, como vimos com Heckier, para estabelecer o enquadre com pacientes anoréxicos ou bulímicos parece ser fundamental para o tratamento. A psicanalista Helene Deutsch142 também foi inovadora em seu tratamento a uma paciente anoréxica. Descreveu sua paciente como estando aprisionada numa luta entre uma compulsão a sofrer fome contra uma outra compulsão a comer em excesso. A primeira medida que ela tomou foi a de não fazer menção da problemática do comer, mas como parte do contrato, a paciente deveria manter seu peso e concordar em ser pesada periodicamente. Combina com a paciente que o tratamento só prosseguiria se ela (paciente) tomasse para si a responsabilidade de manter constante seu peso. O contrato estabelecido pela autora, a meu ver, aponta-nos para uma posição que deve ser ocupada pelo psicoterapeuta. Uma posição que deve ser sustentada como condição básica para que a vida do paciente e o trabalho associativo e de elaboração possam existir e ter lugar, isto é, para a constituição de um enquadre psicanalítico. A problemática da oralidade na anorexia e na bulimia, como vimos no capítulo anterior, gira em torno da indiferenciação sujeito - objeto e da relação de dependência decorrente desta indiferenciação, da falta de limites, da ambivalência afetiva, etc. Podemos pensar, a partir do contrato estabelecido por Deutsch, que este impunha um limite para a sua paciente, condição para uma possível diferenciação. O 141 142 Idem, p.13. Deutsch, Op. Cit, p.13. 120 contrato deve ser “um contrato de peso”143, não como um método para ganhar peso, mas, como um limite organizador para o paciente. O contrato, então, deve ter a função de mediação do contato objetal perigoso e insuportável, pois na relação dual a anoréxica e a bulímica estão capturadas pelo outro em função dos superinvestimentos feitos nessa relação. Héctor Fiorini144 nos ajuda a avançar nesta questão. Em seu trabalho clínico com patologias narcisistas, que ele chama de pacientes psicossomáticos, adictos e borderlines, comprovou a necessidade de desenvolver um vínculo de continência com eles. Desenvolve, então, um conceito técnico denominado “intervenção vincular”145, que é continente porque cria vínculo, e compreende na realidade uma gama ampla de intervenções ativas do analista sobre o vínculo com o paciente. Dada a história infantil com que chegam estes pacientes, a intervenção vincular oferece outro modelo de vínculos, provavelmente inédito. Estas intervenções mostram que o analista tolera um vínculo e que o deseja. Trata-se de uma expressão ativa e manifesta de um desejo de relação. Comentando o trabalho de Deutsch, diz ser isto o que ela faz, quando deseja a existência de sua paciente. Refere-se ao estágio do espelho de Lacan, dizendo que o espelho como metáfora nos mostra que o outro deve ser ativo e desejar a existência do bebê. Neste sentido, para ele, é preciso desenvolver com estes pacientes uma situação de ilusão clinicamente necessária, ilusão que é um ato vincular de passagem para qualquer desenvolvimento evolutivo posterior ao estádio do espelho. 143 Jeammet, Op cit, p. 243. O autor diz o seguinte: “Com efeito, impondo um contrato de peso nós fazemos de alguma maneira o auxiliar de um recalcamento em parte deficiente nesses pacientes...” 144 Fiorini, H. “Comentários sobre o artigo de H. Deutsch: ‘Anorexia Nervosa’ in: Op Cit, p.18. 145 Idem, p 19. 121 As considerações até aqui apresentadas são importantes porquê suscitam em mim a necessidade de reflexão a respeito do tratamento institucional, já que a minha experiência com pacientes anoréxicas e bulímicas ocorreu em um hospital - escola. A partir de Clara e Vera percebemos que os sujeitos com os sintomas da anorexia e da bulimia precisam ser contidos, senão, podem chegar a morrer. As pacientes que atendi estavam internadas. Já estavam contidas pela instituição. É sobre esta contenção que gostaria de refletir neste momento. Na enfermaria, as pacientes eram submetidas a regras rígidas. Não podiam se pesar, deixar de comer, ter licenças de final de semana até alcançar o peso mínimo esperado. Toda a atenção da equipe multiprofissional ( psiquiatras, psicólogos, nutricionistas, terapeutas ocupacionais e clínicos gerais) era voltada para o aspecto do comportamento alimentar: fazer com que as pacientes adotassem práticas alimentares adequadas e ganhassem peso progressivamente. Assim, o trabalho da equipe de psicoterapia, da qual eu fazia parte, deveria enfocar esta problemática da paciente, vista como prioridade. Percebia que esta atitude criava muitos impasses para o tratamento, pois algumas pacientes comiam para sair logo da enfermaria, como foi visto no caso de Vera. Outras ficavam lá por muitos meses, continuando com seus sintomas, mobilizando a equipe toda a ficar preocupada com elas. E a maioria das pacientes que tinham alta voltavam a ser internadas em função do baixo peso. Podemos, aqui, retomar uma questão levantada no primeiro capítulo deste estudo quando apresentei o método da psiquiatria: o tratamento que tem como principal objetivo fazer com que os pacientes voltem a comer, não seria o contrário da recusa? Parece-me que ocupar esta posição favorece a fantasia de se entrar numa luta de poder com eles, na qual um terá que sair perdendo. Esta posição tende a impor métodos que podem vir a ser sentidos como intrusivos pelos pacientes, fazendo com 122 que eles se refugiem em sua sintomatologia. Podemos pensar que trabalhar nesta posição não facilita a contenção da destrutividade mas, ao contrário, aumenta a sua estimulação já que, não sendo compreendida, luta-se contra ela. Como sair dessa relação dual de contrários, em que uma posição “contraria” a outra? Uma posição que produz destrutividade já que uma precisa anular a outra, uma precisa mostrar que é mais forte do que a outra. É preciso, então, abandonar o comportamento anoréxico de recusa à comida. Esta questão me fez buscar um caminho diferente do percorrido na instituição pois, eu pensava que esta posição era uma recusa à anorexia, isto é, uma recusa a entender o que se passava com estas pacientes, o que elas poderiam nos falar sobre seu sofrimento. Não sou contra a internação. Em alguns casos ela é necessária e a separação dos pais parece mobilizar sentimentos ( raiva, saudades, medo de ficar sozinho, etc.) no paciente. Acredito ser a preocupação com o ganho de peso um dos principais problemas apresentados nos tratamentos que visam a eliminação dos sintomas dessas psicopatologias. A preocupação com o peso, a meu ver, funciona como um equilíbrio narcísico: o sujeito só pode existir através do ato compulsivo e por isso pode vir a sentir-se profundamente violentado quando forçado a deixar o seu ato. Clara dizia sentir-se violentada quando abrigada a comer e impedida de vomitar depois, sentia como se fosse perder os limites de seu corpo. Muitas vezes, via-me diante de um vazio transferencial no atendimento dessas pacientes. Tratava-se de uma transferência vazia de “carne”, de paixões e de vida. Muitas vezes, fui tomada pelo desejo de preencher este vazio e de atenuá-lo escutando a fala sobre o medo de engordar e a compulsão de comer e vomitar, tentando entendêlas. Mas, esta postura só reforçava a sintomatologia da paciente e a minha sensação de vazio, de impotência. Não é raro profissionais sentirem-se profundamente 123 desanimados e exauridos diante desses pacientes, alegando ter feito tudo o que podiam. O vazio parece nos tragar e nos lançar num buraco negro. É preciso então enfrentar esta sensação de vazio, de amarração que a transferência com estes pacientes nos lança. Podemos pensar que uma forma de enfrentar o vazio seja a de colocá-lo para o paciente, sem se deixar tragar por ele. Gostaria de retomar os relatos sobre Clara e Vera para tentar refletir sobre esta questão. Temos a Regra Fundamental como primeiro ponto a ser pensado. A Regra Fundamental estrutura a situação analítica através do convite feito ao paciente para falar o que sente ou pensa sem censura. Penso que a formulação desta regra já estabelecia uma diferença no tratamento dessas pacientes com o resto da equipe da enfermaria e dava limite para elas. Revelava-se uma imensa dificuldade dessas pacientes em aplicarem esta regra e, diante disso, a atuação do psicoterapeuta se fazia necessária. Reconheço no atendimento de Clara que, ao dizer-lhe para não vomitar no meu pé, estabeleci um limite para a sua destrutividade. Era como se eu dissesse que ela poderia vomitar, mas não em mim. Este limite, na minha opinião foi muito importante porque permitiu uma mudança na sua fala com a lembrança da brincadeira infantil. Parece que me fiz desamarrar do dizer sobre as compulsões de Clara e pude escutar e participar de sua brincadeira infantil como uma possibilidade de contato e de relação. Penso que ao contar-me esta brincadeira, Clara manifestou mais da vida, um interesse pelo encontro, um interesse pela brincadeira infantil e pela curiosidade sexual. No atendimento de Vera, contudo, não reconheço uma atuação minha nesta direção de imposição de limites e aceitação destes. Penso que tentei algo neste sentido quando mostrava à ela quanta destrutividade estava transbordando em suas atuações. 124 Vera deixava-me muito angustiada com sua onipotência e arrogância. Lembremo-nos que Vera quase foi amarrada ao leito. Estaria ela precisando deste limite real? Com Vera, encontrava-me numa posição difícil na transferência que gerava uma sensação de fracasso constante no tratamento. No entanto, acredito ser esta transferência um meio de desamarrar-se da compulsão à repetição. A transferência, é antes de mais nada, oferecimento de relação e ligação, uma forma de vida. Observamos isto nos casos que não são muito marcados pela onipotência da repetição. Mas, como quebrar a repetição mortal das transferências marcadas pela destrutividade, como nos mostrou Vera? Segundo Green146, a transferência mortífera, como ele a chama, é um problema freqüente na clínica psicanalítica. Parece-lhe que a solução, desde que seja possível, e isto está longe de ser sempre o caso, está na tentativa de desfazer as ligações internas que ajudam a ter o conjunto compulsivamente fechado. Propõe substituir a relação da compulsão repetitiva, por uma ligação nova, uma re-ligação, com um traço de ligação ao analista, abrindo para uma possibilidade de vida. Qual seria este traço de ligação ao analista? Acredito que seria o ato vincular, o desejo do analista que o paciente exista para que haja o enquadre. Penso que poderia ter contado a Vera o meu sonho do quebra-cabeça de ossos. Um sonho que fala de uma incapacidade de cuidar, mas também de algo que pode ser montado, conter uma forma unificada e não fragmentada como os ossos soltos. Este sonho é um sonho agressivo, que denuncia uma incapacidade materna de cuidar da filha. De outro lado, é um sonho em que os ossos pedem para serem cuidados. Haveria aí um pedido de ajuda, por mais que a onipotência de Vera tentasse 146 Green, André, “A carne como cadeia erótica”, in: Caderno André Green, Encontro promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Outubro de 1996. Tradução conjunta de Fernando Coutinho, Helena Besserman Vianna e Marília Daher da Silva Abreu. 125 escamoteá-lo? Acredito que uma atitude ativa por parte do psicoterapeuta, neste caso, deveria ser trabalhada para trazer à tona o conflito de Vera. Não devemos esperar do paciente um modo de funcionamento psíquico que ele não é capaz. Talvez eu tenha esperado que Vera pudesse me pedir ajuda. A partir do relato sobre Clara e Vera, percebi que o psicoterapeuta precisa desejar desamarrar-se do “fazer” do seu paciente para o tratamento progredir. Desamarrar-se da impossibilidade de simbolização e do vazio mental vivenciados transferencialmente com estes pacientes. Penso que, para o psicoterapeuta poder desamarrar-se, é preciso atuar nas sessões, falar com o paciente, se fazer presente com seu corpo, com sua capacidade de sonhar. Entendi isto a partir do momento que me senti impulsionada a recitar a poesia para Clara e a contar a história para Vera, deixando-me sonhar com as princesas que me ajudaram a aproximar-me delas e a começar a refletir sobre a problemática da anorexia e da bulimia. 126 CONCLUSÃO Neste momento importante do estudo lembro-me que quando comecei a atender pacientes anoréxicas e bulímicas não sabia nada sobre estas manifestações psicopatológicas. Não tinha lido a respeito e nem tido contato. Este estudo traduz, assim, um caminho de aprendizado, o que se deve muito aos autores que tratam destas questões e à minha vivência clínica com estes pacientes. À guisa de conclusão, não pretendo fazer um fechamento definitivo, mas apontar alguns aspectos teórico clínicos que poderão ser aprofundados posteriormente e o que esta clínica nos acrescenta para a clínica de um modo geral. Minha proposta neste estudo, foi abordar a anorexia e a bulimia como distúrbios da oralidade a partir de uma ótica psicanalítica. Para tal, iniciei-o com a visão psiquiátrica da anorexia e da bulimia como transtornos alimentares. A partir da apresentação dos critérios objetivos para diagnóstico destes transtornos e algumas indicações de tratamento procurei apontar, através do conceito de imagem corporal, alguns pontos que foram sendo trabalhados ao longo deste estudo sob a ótica 127 psicanalítica. Vimos que a imagem corporal é uma imagem metafórica que relaciona o sujeito ao outro, pois o Eu se constitui a partir da identificação ao outro, ao objeto. Tratando-se de um objeto de relação que não é o objeto - comida, minha intenção era começar a deixar a preocupação com os comportamentos alimentares aberrantes nestas patologias e passar a preocupar-me com os modos de funcionamento psíquicos que os sustentam. A partir de dois fragmentos clínicos, tentei refletir sobre algumas questões suscitadas a partir da relação transferencial: a dimensão destrutiva da transferência e a dificuldade de tratamento. Questões fundamentais que me remeteram aos autores que apresentei no capítulo seguinte, para poder pensá-las como distúrbios da oralidade que trazem em si uma problemática narcísica. Vimos como a anorexia e a bulimia podem ser compreendidas como distúrbios da oralidade através de sua relação com as adicções e a melancolia. Os distúrbios da oralidade compreendem uma problemática pulsional e narcísica primitiva. A anorexia e a bulimia se inserem numa tradição de purificação do corpo e da eliminação dos pecados, do prazer e da sexualidade. A recusa anoréxica pode ser entendida como motivo de orgulho, o que levará a alcançar a perfeição. O orgulho anoréxico se opõe à vergonha bulímica. O ideal anoréxico seria um ideal de um corpo sem pecados, isto é, um corpo sem sexualidade, sem investimentos. Um ideal de ser auto-suficiente e não precisar do outro. Finalmente, no capítulo sobre o tratamento, vimos como o psicoterapeuta deve e pode se utilizar de uma técnica maleável no sentido de proporcionar um enquadre para que um trabalho possível possa ocorrer com estes pacientes. Limites devem ser dados visando uma diferenciação, um limite entre o eu e o não - eu, para que uma relação menos persecutória possa ocorrer. Esta diferenciação, como foi visto, 128 traz uma relação de perseguição tanto por parte do objeto e sofrida pelo sujeito, como por parte do sujeito e sofrida pelo objeto. Este foi o caminho seguido neste estudo. Outros rumos podem ser tomados com relação aos distúrbios da oralidade. Neste momento, lembro-me da sensação de estar num beco sem saída no tratamento com Vera. Uma sensação de imobilidade e impossibilidade de pensar. Apresento para continuarmos a pensar sobre a clínica da anorexia e da bulimia, uma questão que mereceria ser aprofundada em trabalhos posteriores: a questão da negação de um profundo desamparo nesses pacientes que está associado às vivências de desamparo precoce. Refletir sobre a qualidade dessas vivências me parece fundamental para o aprofundamento da clínica dos distúrbios da oralidade, já que a perda do objeto primeiro investido ocupa um lugar essencial na dinâmica desses pacientes. André Green147 refere-se à imagem da “mãe morta”, na qual a mãe enquanto primeiro objeto de investimento do bebê, não está sendo capaz de investir libidinalmente em seu filho, por exemplo, em razão de uma depressão, o que levará a futuros problemas em sua relação com o bebê. Uma dessas possibilidades é a anorexia e bulimia, como conseqüência de uma vivência traumática, uma forma de resposta a este desinvestimento precoce. Vemos então na clínica, a manifestação de uma primeira identificação do bebê com o vazio sentido pela mãe, identificação que nesses casos será marcante se tornando um traço formador da estrutura. Green diz o seguinte: “ O traço essencial desta depressão é que ela se dá em presença de um objeto, ele mesmo absorto num luto. A mãe, por uma razão ou outra, se deprimiu. A variedade dos fatores desencadeantes é aqui muito grande. É claro que 129 entre as principais causas desta depressão materna, encontramos a perda de um ser querido. Mas pode tratar-se também de uma depressão desencadeada por uma decepção que inflige uma ferida narcisita: infortúnio na família nuclear ou na família de origem, ligação amorosa do pai que abandona a mãe, etc. Em todos os casos, a tristeza e a diminuição do interesse pela criança estão em primeiro plano.”148 Gostaria, agora, de refletir sobre o que a clínica da anorexia-bulimia contribui, do ponto de vista da teoria e da técnica, para a clinica psicanalítica de um modo geral. Vimos como a dimensão da adicção - um ato que é uma defesa contra um sentimento de dependência ao objeto que deve ser combatido - é uma questão fundamental para entendermos a problemática da anorexia e da bulimia. O comportamento adictivo substitui a atividade de representação, de pensamento e de relação. A adicção poderia ser tomada como um paradigma, já que aparece em outras manifestações psicopatológicas como, por exemplo, algumas toxicomanias. Poderia ser entendida como um modo de ser no mundo absolutamente compulsivo, em que o não pensar, que é substituído por um ato, conduz os sujeitos. Este paradigma diz respeito a um movimento mecânico que confronta o sujeito com o vazio. Em confronto com o vazio, o sujeito é impelido a preenchê-lo com um comportamento compulsivo (o não pensar). O “não pensar” aparece como uma defesa primitiva e narcísica, que aponta para uma impossibilidade de separação sujeito - objeto de amor. Podemos ver, com relação à clínica, que este “não pensar”, esta dependência, pode também aparecer na busca, sempre insatisfeita, de uma relação amorosa ideal, uma vida profissional perfeita, de uma criança objeto de completude, etc. 147 Green, A . “A mãe morta”, in: Narcisismo de vida, narcisismo de morte, São Paulo, Escuta,1988, 247-282. 148 Idem, 255. 130 Ilustro isto que foi dito, citando uma paciente, que não é anoréxica mas que, numa sessão, fala compulsivamente sobre seu trabalho. É engenheira e queixa-se de só pensar no trabalho e seus projetos não poderem ter falhas. Mas ela vê falhas por todos os lados, o que provoca uma imensa frustração e, em contra - partida, uma exigência ainda maior. Chega a dizer que vai morrer de tanto se desesperar com as falhas. Quando se depara com as elas, sente-se profundamente vazia e não há lugar para mais nada em sua vida. Pesquisar a questão do ideal de perfeição ascético na anorexia e na bulimia ajudou-me a pensar sobre a destrutividade nessa paciente, vinculada à um ideal de perfeição. Como foi visto, o tratamento psicanalítico da anorexia e da bulimia deve ser maleável. Apresentei dois relatos, em que temos um tratamento que deu certo e o outro não. Quando escrevi sobre Clara pareceu-me estar diante de uma cura ideal, onde tudo dera certo, que o tratamento psicanalítico da anorexia e da bulimia é sempre possível e eficaz. Por isso, talvez, depois de algum tempo senti necessidade de falar de Vera, com quem me deparei com a destrutividade de forma mais direta e mortal. Os resultados freqüentemente negativos de muitos métodos terapêuticos centrados exclusivamente sobre o sintoma anoréxico e bulímico conduzem a um questionamento sobre a cura nesses pacientes. Estas perspectivas não costumam incluir as relações intersubjetivas do sujeito e buscam, como foi visto no primeiro capítulo, eliminar o sintoma, transformando um comportamento alimentar patológico num comportamento normal, ideal. A clínica da anorexia e da bulimia convida-nos a discutir sobre o enquadre ideal, a cura ideal e o tratamento ideal. O que, a meu ver, não acontece somente em tratamentos centrados no sintoma como visa a psiquiatria mais organicista. Muitas 131 vezes, na clínica psicanalítica, também esperamos do paciente uma transformação de seu modo de funcionamento psíquico que ele não é capaz. Lembro-me de ter esperado, a partir de meu sonho com Vera, que ela pudesse me falar de seu sofrimento e sua angústia. Hoje, penso que deveria ter-lhe contado este sonho, pois este era um sonho que ela não podia sonhar. Um tratamento que vislumbra uma transformação no paciente. Uma transformação como desejam as anoréxicas e as bulímicas, que esperam, com suas dietas transformarem-se em top models, perfeitas ao olhar do outro. Entendo a anorexia como uma defesa (recusa) contra o sofrimento, a dor, a sexualidade, tudo aquilo que diz respeito ao ser humano, que para ser precisa do contato com o outro: um outro que o escute e o acolha. Sendo assim, o tratamento ideal pode transformarse num espaço que impede a escuta em favor de uma obsessão pela cura do paciente. Pode transformar-se também, por exemplo, em favor de uma precisão diagnóstica, num espaço que deixará de lado a escuta sobre o sofrimento, as paixões e as diferenças. Visitar outras posições, como as apresentadas no primeiro capítulo, indica uma questão importante que é a da possibilidade de interlocução com outras áreas de saber. Aprendi muito dividindo estas vivências clínicas com psiquiatras, nutricionistas, enfermeiras, etc.. Surpreendi-me com a possibilidade de diálogo com alguns profissionais que estavam muito mais preocupados em aprender com estes pacientes do que impor métodos visando apenas a suspensão dos sintomas. A clínica dos distúrbios da oralidade ajuda-nos a formular questões da clínica em geral, principalmente com relação à técnica e à prática clínica psicanalítica. Mostra-nos o quanto a busca obsessiva pelo ideal de perfeição pode ser perigosa e frustrante. 132 O que, do meu ponto de vista, parece valer a pena é o psicoterapeuta poder conservar-se numa posição em que a escuta promova as associações, ou seja, que a capacidade de sonhar ocupe cada vez mais espaços e resgate a possibilidade de relação com o outro. Atender pacientes anoréxicas e bulímicas graves em uma instituição hospitalar, possibilitou-me refletir sobre questões importantes relativas à destrutividade, ao ideal e ao paradigma da adicção. Para desenvolvermos um trabalho interdisciplinar, é preciso superar as dificuldades que criam verdadeiros impasses ao trabalho de interlocução, ao trabalho terapêutico, e, principalmente, leva à morte qualquer esperança de vida. Ao exame deste texto percebe-se que a literatura médica sobre a anorexia e a bulimia as trata de forma desapaixonada e dessexualizada, apenas comos distúrbios do comportamento alimentar. Na minha opinião tratá-las como distúrbios da oralidade leva ao problema da paixão e resgata a possibilidade de se pensar o que há de mais importante no sujeito: o seu desejo que se constitui nas relações com o objeto de amor. 133 BIBLIOGRAFIA CITADA AULANGNIER, Piera. “Nacimiento de un cuerpo, origen de una história”, in: Horstein, Luis (org.). 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