Arq Bras Cardiol 2001; 76: 349-51. Busnello e cols Artigo Original Abandono de tratamento de hipertensão arterial Características Associadas ao Abandono do Acompanhamento de Pacientes Hipertensos Atendidos em um Ambulatório de Referência Renné Gusmão Busnello, Raquel Melchior, Carlo Faccin, Daniela Vettori, Juliano Petter, Leila Beltrami Moreira, Flávio Danni Fuchs Porto Alegre, RS Objetivo - Determinar as características associadas ao abandono do seguimento do tratamento em um ambulatório brasileiro especializado de hipertensão. Métodos - Estudo de coorte, prospectivamente planejado, de pacientes que receberam prescrição de tratamento anti-hipertensivo após extensa avaliação inicial. Foram estudados: sexo, idade, escolaridade, tempo de doença, pressão classificatória, tratamento prévio, atividade física, tabagismo, álcool, história familiar de hipertensão e dano em órgão-alvo. Resultados - Estudaram-se 945 pacientes, sendo que 533 (56%) abandonaram o acompanhamento. A média de idade foi 52,3±12,9 anos. A maior probabilidade de abandonar o seguimento associou-se ao tabagismo atual, risco relativo 1,46 (1,04-2,06), escolaridade inferior ou igual a cinco anos, risco relativo 1,52 (1,11-2,08); duração de hipertensão inferior a cinco anos, risco relativo 1,78 (1,282,48). O aumento da idade associou-se com maior probabilidade de seguimento, risco relativo 0,98 (0,97-0,99). Conclusão - Identificou-se um grupo de risco para abandono de seguimento, constituído por pacientes de menor escolaridade, com diagnóstico recente e fumantes, para os quais devem ser dirigidas medidas de garantia de adesão. Palavras-chave: A hipertensão arterial sistêmica constitui-se um importante fator de risco para doenças cardiovasculares 1-3. Apresenta elevada prevalência na população adulta brasileira. Em Porto Alegre, aproximadamente 13% dos adultos têm hipertensão arterial sistêmica 4. Níveis de pressão sustentadamente elevados estão relacionados a uma maior incidência de eventos mórbidos, associados principalmente a aterosclerose e manifestados por cardiopatia isquêmica, acidente cerebrovascular e doenças vasculares renal e periférica 5,6. Por outro lado, ao tratamento medicamentoso da hipertensão arterial, principalmente com diuréticos tiazídicos e betabloqueadores, associou-se a diminuição de eventos cardiovasculares fatais e não-fatais em diversos ensaios clínicos 7-9. Apesar disto, estudos observacionais têm demonstrado que a maior parte dos pacientes com diagnóstico de hipertensão apresentam uma má adesão ao tratamento da pressão arterial 10-13, embora, na prática clínica, observa-se que muitos pacientes sequer retornam às consultas médicas regulares. Fuchs e cols. detectaram abandono do acompanhamento ambulatorial regular na ordem de 45% em uma coorte de pacientes hipertensos 14. O objetivo deste trabalho é determinar características associadas ao abandono do acompanhamento médico no tratamento da hipertensão arterial sistêmica, visando identificar pacientes que, potencialmente, beneficiar-se-iam com a criação de sistemas de acompanhamento ativo. hipertensão arterial sistêmica, abandono, tratamento Hospital de Clínicas de Porto Alegre - UFRGS Correspondência: Renné Gusmão Busnello – Av. Lavras, 341/303 – 90460-040 – Porto Alegre, RS Recebido para publicação em 24/3/00 Aceito em 20/9/00 Métodos A população foi constituída por pacientes cadastrados na coorte de pacientes hipertensos em acompanhamento na Unidade de Hipertensão Arterial do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Foram incluídos casos com diagnóstico estabelecido de hipertensão arterial, após extensa avaliação inicial, que incluía anamnese, exame físico completo, exames complementares padronizados (laboratoriais, Arq Bras Cardiol, volume 76 (nº 5), 349-51, 2001 349 Busnello e cols Abandono de tratamento de hipertensão arterial eletrocardiograma de repouso e fundo de olho) e medidas seriadas da pressão arterial. A pressão arterial classificatória para o diagnóstico de hipertensão foi calculada pela média de seis aferições, obtidas em três consultas consecutivas, seguindo as recomendações técnicas estabelecidas em consensos internacionais (Sixth Joint National Committee, 1997) 10. As características da amostra estão apresentadas na tabela I. Foram excluídos os pacientes que não tinham, no momento da análise, pelo menos 12 meses desde a avaliação inicial, assim como poucos casos com acompanhamento irregular, com retorno tardio à consulta. O abandono do acompanhamento médico foi definido como o não comparecimento às consultas de seguimentos, em um período entre 12 e 24 meses após a avaliação inicial. O grupo controle foi constituído por pacientes que mantiveram o acompanhamento de forma regular. Foram analisadas as seguintes variáveis: sexo, idade (≤ ou >60 anos), escolaridade (≤ ou >5 anos), tempo de doença (tempo decorrido desde o primeiro diagnóstico de hipertensão referido pelo paciente, ≤ ou >5 anos), pressão arterial classificatória (média de 6 aferições em 3 consultas consecutivas, durante avaliação inicial), tratamento prévio (uso no passado de medicação anti-hipertensiva ou início do acompanhamento no ambulatório, já em uso de medicação), atividade física (prática de exercício regular), tabagismo (atual e passado ou nunca), álcool (independente de quantidade de consumo, atual e passado ou nunca), história familiar de hipertensão e dano em órgão-alvo (repercussões da hipertensão em órgãos, como cérebro, coração, rins, retina e vasos periféricos). Na análise estatística, foram utilizados o teste qui-quadrado e modelo de regressão logística. Foi calculado o risco relativo para abandono de tratamento, apresentado com seus Tabela I - Características da amostra na avaliação inicial (n=945)* Idade † Sexo † 52,3±12,9 Feminino Masculino 629 (67) 314 (33) Atual Passado/nunca 284 (30) 632 (70) Tabagismo † Escolaridade † ≤ 5 anos > 5 anos Tempo de doença † ≥ 5 anos < 5 anos Álcool † Atual Passado/nunca História familiar † Positiva Negativa Dano em órgão alvo Presente Ausente Pressão arterial sistólica (mmHg) Pressão arterial diastólica (mmHg) 410 (52) 372 (48) 294 (31) 643 (69) respectivos intervalos de confiança de 95%. A significância estabelecida foi de 5%. Resultados Em um total de 945 pacientes estudados, 533 (56%) abandonaram o acompanhamento e 412 (44%) seguiram em acompanhamento regular durante um período de 12 a 24 meses. As características dos grupos estão apresentadas na tabela II. Na análise multivariada, realizada com 782 (82,7%) pacientes, incluindo todas as variáveis em estudo, três se associaram de maneira independente com maior probabilidade de abandono: tabagismo, escolaridade <5 anos e diagnóstico de hipertensão <5 anos (tab. III). Tabela II - Características dos pacientes identificados nos grupos abandono e seguimento Idade † <60 anos >60 anos Sexo † feminino masculino Tabagismo † atual passado/nunca Escolaridade ≤5 anos >5 anos Tempo de doença † ≥5 anos <5 anos Consumo de álcool † atual passado/nunca História familiar † positiva negativa Dano órgão-alvo presente ausente PA classificatória ≥140/90mmHg <140/90mmHg Abandono Seguimento P ajustado* (n=533) n (%) (n=412) n (%) 378 (59,1) 138 (51,9) 262 (40,9) 128 (48,1) 0,324 345 (54,8) 186 (59,2) 284 (45,2) 128 (40,8) 0,699 186 (65,5) 332 (52,5) 98 (34,5) 300 (47,5) 0,017 235 (57,3) 194 (52,2) 175 (42,7) 178 (47,8) 0,025 143 (48,6) 387 (60,2) 151 (51,4) 256 (39,8) 0,001 155 (63,3) 368 (54,0) 90 (36,7) 314 (45,0) 0,076 407 (57,5) 110 (53,4) 301 (47,4) 96 (46,6) 0,187 41 (52,6) 492 (56,7) 37 (47,4) 375 (43,3) 0,742 244 (55,3) 263 (56,8) 197 (44,7) 200 (43,2) 0,531 * P ajustado para idade, sexo, tabagismo, escolaridade, tempo de doença, consumo de álcool, história familiar, dano órgão-alvo e pressão arterial classificatória; † representa característica em que houve perda de dados; PA- pressão arterial. 245 (26) 682 (74) 708 (75) 206 (25) 78 (08) 867 (92) 156,9±25,2 95,5±15,3 * Dados representados por n (%) e md±dp; † representa característica em que houve perda de dados. 350 Arq Bras Cardiol 2001; 76: 349-51. Tabela III - Razão de risco para abandono de seguimento, variáveis significativas na análise multivariada Risco relativo Idade Tabagismo Escolaridade ≤5 anos Tempo de doença <5 anos 0,98 1,46 1,52 1,78 Intervalo de confiança 95% 0,97 1,04 1,11 1,28 – – – – 0,99 2,06 2,08 2,48 Arq Bras Cardiol 2001; 76: 349-51. Busnello e cols Abandono de tratamento de hipertensão arterial Entre os pacientes fumantes atuais, houve uma taxa de abandono de 65,5%, enquanto que entre os não tabagistas ou ex-tabagistas, o abandono foi de 52,5% (P=0,017). Pacientes com escolaridade <5 anos também apresentaram maior risco de abandono do acompanhamento, quando comparados aos com mais de cinco anos de estudo (57,2% vs. 52,2%, P=0,025). Pacientes hipertensos há menos de cinco anos abandonaram o acompanhamento com maior freqüência do que aqueles com maior tempo de doença (60,2% vs. 48,6%, P=0,001). O risco relativo para o abandono do tratamento associado a essas características foi de 1,46 (1,042,06) para o tabagismo ativo, 1,78 (1,11-2,08) para baixa escolaridade (≤5anos) e 1,98 (1,28-2,48) para diagnóstico recente de hipertensão (<5 anos). O aumento da idade (>60 anos) representou uma redução do risco de abandono do acompanhamento médico, risco relativo 0,98 (0,97-0,99) (tab. III). As demais características não se associaram significativamente com o abandono do acompanhamento médico. Discussão O tratamento da hipertensão arterial é sempre baseado em mudanças de estilo de vida e pode ou não ser farmacológico. Qualquer que seja a opção, é fundamental obter a adesão continuada dos pacientes às medidas recomendadas para a obtenção de um controle adequado da pressão arterial. Além das dificuldades usuais do seguimento de tratamento médico (dificuldades financeiras, efeitos adversos dos medicamentos, dificuldade de acesso ao sistema de saúde, inadequação da relação médico-paciente) há fatores adicionais que são característicos da hipertensão, entre eles, a usual inexistência de sintomas nos primeiros 15 a 20 anos e a cronicidade da doença. A interface entre eficácia e efetividade é particularmente crítica no tratamento da hipertensão arterial sistêmica. A efetividade, avaliada em condições reais de tratamento, mostra índices insatisfatórios de controle da pressão arterial. Muito mais que a conduta dos médicos, às vezes pouco agressiva, a adesão dos pacientes é determinante no sucesso do tratamento. Identificou-se alto percentual de abandono de acompanhamento ambulatorial nesta coorte. Além dos diversos fatores inerentes à doença que podem explicar este fato, acrescenta-se a grande dispersão geográfica dos pacientes atendidos, pois pelo menos 35% são residentes em outras cidades. Na análise multivariada, embora tenha havido perda de 163 pacientes por falta de informações de determinadas características, estes foram distribuídos de forma semelhante entre os grupos do abandono e do seguimento. O tabagismo parece estar associado ao abandono do seguimento médico, assim como demonstra menor preocupação com prevenção de doença e promoção de saúde. Da mesma forma, pacientes com diagnóstico recente de hipertensão, provavelmente por serem em sua maioria previamente hígidos e assintomáticos, não seguem adequadamente o acompanhamento médico. A baixa escolaridade, indicativa do perfil socioeconômico, também relacionou-se à maior freqüência de abandono. Para o grupo de risco identificado nesta coorte, constituído por pacientes de menor escolaridade, com diagnóstico recente e fumantes, devem ser dirigidas medidas prioritárias para garantir a adesão. O atendimento próximo a seus lares, constituição de grupos de apoio e busca ativa dos faltantes podem estender o benefício das intervenções para controle da hipertensão a um número maior de pacientes. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. Stamler J, Stamler R, Neaton JD. Blood pressure, systolic and diastolic, and cardiovascular risk: US population data. Arch Intern Med 1993; 153: 593-615. Joint National Committee. The sisth report of the Join National Committee on Prevention, detection, Evaluation and Treatment of High Blood Pressure. Arch Intern Med 1997; 157: 2413-45. Chalmers J, et al. WHO-ISH Hypertension Guidelines Committee. 1999 World Health Organization - International Society of Hypertension Guidelines for the Management of Hypertension. J Hypertens 1999; 17: 151-85. 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