Documento 327527

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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras,
Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
ISSN 1809-3264
Revista Querubim 2008 Ano 04 Nº 06 – 280 p. (jan-jun 2008)
Rio de Janeiro: Querubim, 2008
1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais - Periódicos.
I. Título: Revista Querubim Digital.
CONSELHO EDITORIAL
Presidente: Aroldo Magno de Oliveira (UFF-RJ)
Secretário: Roberto Carlos Rodrigues
CONSULTORES
Alice Akemi Yamasaki (UFF – RJ)
Elanir França Carvalho (USP – SP)
Geralda Therezinha Ramos (UNIBH – MG)
Guilherme Wyllie (UFMT / ILTC / IBFCRL – MT)
Janaína Alexandra Capistrano da Costa (UFT – TO)
Janete Silva dos Santos (UFT – TO)
João Carlos de Carvalho (UFAC – AC)
José Carlos de Freitas (UNIRG – TO)
Jussara Bittencourt de Sá (UNISUL –SC)
Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT – TO)
Mônica Cairrão Rodrigues (UNI-SÃO LUÍS – SP)
Ruth Luz dos Santos Silva (UNIBEU – RJ)
Vanderlei Mendes de Oliveira (UFT – TO)
Venício da Cunha Fernandes (C. PEDRO II – RJ)
EDITOR
A. Magno Oliveira
DIAGRAMAÇÃO E FORMATAÇÃO
Roberto Carlos Rodrigues
PROJETO GERAL E REVISÃO TÉCNICA
A. Magno Oliveira
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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SUMÁRIO
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A construção discursiva da gramática no ensino de língua portuguesa
Aline Rodrigues e Gesualda dos Santos Rasia
Apontamentos iniciais sobre os limites da fala em João Cabral e Eliot
André Cechinel
As eumênides: justiça cruel das fúrias e a benevolência das eumênides
Bruna Raquel dos Santos
A fidelidade da tradução - Carina de Cássia Silva, Larissa dos Santos Marques e
Leonardo Moser Trevisan
Os discípulos e o comediógrafo: diálogo entre o bem e o mal das idéias socráticas
Eliane Santana Dias Debus
A morte em dois momentos: José de Alencar e Mário Quintana
Elisângela M. Sandim F. Liviz
A guerra das rosas e a incompetência política: um estudo das três partes de Henrique
VI, de Shakespeare - (Trilogia)
Enéias Farias Tavares
A análise de discurso e o ensino de línguas: algumas reflexões
Maria Cristina Giorgi e Bruno Deusdará
Uma mulher é uma mulher: questões de gênero social e assimetria de relações de
poder
Ivandilson Costa
A cabanagem em Santarém
Lauro R. do C. Figueira
A mulher em genéricos discursivos de revistas femininas no Brasil na primeira
metade do séc. XX
Leda Verdiani Tfouni e Paula Chiaretti
Aspectos da redução dos ditongos: o [poko] [pese] da [kasa]
Letícia Lemos Gritti, Eric Duarte Ferreira e Morgana Fabiola Cambrussi
Análise dos elementos de semiologia: uma investigação sobre a metáfora
Luciana Moraes Barcelos Marques
Suméria e cuneiformes: um estudo sobre a gênese da escrita
Maranúbia Pereira Barbosa
Recursos lúdicos em alfabetização de jovens e adultos
Maria Cecilia Mollica e Marisa Leal
Amiguinhos do diário: um estudo sobre o diminutivo nos encartes infantis de jornais
Maria Cristina Pires Pereira
O texto publicitário na teoria da enunciação
Maurini de Souza Alves Pereira
Uma sombra feminina no encontro da imaginação: Caeiro em foco
Miralva Ribeiro da Silva e Fani Miranda Tabak
Planejamento de Língua Portuguesa: concepções subjacentes
Mônica Cristina Metz e Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
A importância da proficiência em libras por parte dos professores de surdos: relato
de pesquisa-ação em sala de aula de surdos.
Patrícia Araújo Vieira
A formação dos diminutivos inho e zinho no português oral de São Borja
Patrícia Graciela da Rocha
Educação e arte x barbaridades
Rejane de Souza Ferreira
O ensino da gramática: o programa de Chomsky na escola
Ronald Taveira da Cruz
“O quarto do Barba-Azul”, de Angela Carter, e a representação da mulher
Carlos Augusto de Melo , Clarice Custódio da Silva e Sarah dos Santos
As figurações do feminino na tragédia Agamemnon
Neli Fabiane Mombelli e Sofia Uberti Yamin
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26 As variações da determinação da protagonista em Electra, de Sófocles
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27 A função da linguagem no processo constitutivo da estrela
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Thiago Santos da Silva
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Waldivia Maria de Jesus
Resenha - Daniel Pereira Alves
Resenha – Francisco Edmar Cialdine Arruda
Resenha – Michaell Victor Grillo
Resenha – Sílvia Perobelli
A utopia da simplicidade: um estudo sobre a influência lucreciana na poesia de
Alberto Caeiro
Ana Patrícia Silva de Sousa
Gozo fabuloso não é o soneto de hoje
Mauro Marcelo Berté
A “Nova História” na escola: o caso da escola Coronel Felipe de Brum na cidade de
Amambai/MS
Diogo da Silva Roiz, André Dioney Fonseca e Marcilene
Nascimento de Farias
Resenha – Susana dos Santos Nogueira
Um estudo das crenças de alunas-professoras quanto a sua formação universitária no
curso de letras-inglês
Janete de Fátima Ribeiro da Silva e Marcia Regina Pawlas Carazzai
Quem foi Carolina Maria de Jesus?
Elizabeth Barboza Pereira
Quanto mais cedo melhor? O fator idade na aprendizagem de uma língua estrangeira
Paulo Roberto Boa Sorte Silva
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A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA GRAMÁTICA NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA
Aline Rodrigues
Acadêmica – Letras – UNIJUI-RS – PIBIC/CNPQ
Gesualda dos Santos Rasia
Dra. em Teorias do Texto e do Discurso
Docente UNIJUÍ-RS
RESUMO: O presente artigo é resultado de uma pesquisa que aborda o discurso de
professores sobre o ensino de gramática. Tem como suporte a Análise do Discurso (AD)
com filiação em Pêcheux, e como corpus seqüências discursivas que professores produzem
em aulas de língua portuguesa. Inicialmente apresentamos um breve histórico sobre os
estudos da linguagem, seguido pela abordagem de algumas noções teóricas da AD, as quais
serão utilizadas para a compreensão dos modos de discursivização sobre a gramática.
Palavras-chave: gramática, discurso e ensino.
ABSTRACT: The present study is the result of a research that deals with the teachers
speeches about the grammar teaching. It has as support the Speech Analyses (SA) with
membership in Pêcheux, and as corpus discursive sequences that teachers produce in
Portuguese-speaking classes. Initially we presented a short historic about the studies of
language, followed by the approach of some theoretical notions of SA, which will be used
to understand the ways of discursiveness about the grammar.
Keywords: Speech – grammar - teaching
1- Constituição histórica da gramática tradicional
A gramática tradicional remonta à Grécia do séc. V a. C.. Para os gregos ela foi,
desde o início, uma parte da “filosofia”, isto é, parte da indagação geral sobre a natureza do
mundo que os cercava e das instituições sociais. Azeredo (2001) afirma que nesse contexto
a gramática destinava-se a (a) explicar a natureza da linguagem; (b) descrever a estrutura e
funcionamento da língua e (c) regulamentar seu uso consoante padrões quer lógicos quer
literários de expressão. O autor destaca que o objetivo de regulamentação da língua tinha
superioridade sobre os outros usos.
No início do séc. III a.C, a cidade grega de Alexandria tornou- se centro de
intensa pesquisa literária e lingüística. Como os manuscritos de antigos autores eram
escritos com uma linguagem considerada corrompida, os filósofos alexandrinos
procuraram restaurar os textos originais (textos literários), pois a língua diferenciava-se em
muitos aspectos do grego então atual. Assim desenvolveram a prática de publicar
comentários de textos e tratados de gramática para esclarecer e explicar a língua dos autores
clássicos para os “ignorantes” e os “iletrados”. Seu objetivo era descrever a língua desses
textos para torná-los compreensíveis. Isso conduziu à elaboração da primeira gramática da
língua grega, de Dionísio Trácio. Esta gramática cumpriria duas tarefas: explicar e
estabelecer a língua desses autores (poetas e prosadores) e proteger da corrupção essa
língua, que era considerada “pura e correta”. Servindo à interpretação e à crítica,
realizavam-se os estudos metódicos dos elementos da língua, assim compondo-se o que
tradicionalmente seria qualificada propriamente como gramática. No século V, em
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Alexandria, os filólogos estabeleceram o que Lyons (1979) denomina “erro clássico”, ao
postularem como modelo de língua aquela ligada à boa expressão, ausente de possíveis
anomalias. Assim, desde as primeiras reflexões lingüísticas, a língua falada foi deixada de
lado, conferindo mais valor à língua escrita, tanto que o termo usado para designar esse
estudo foi “grammatiké”, que designa a arte de ler e escrever.
Segundo Moura Neves (2004), a herança da dicotomia bom uso/ mau uso foi
transmitida para a gramática latina e, por extensão, à gramática da língua portuguesa.
Dionísio de Trácio, no final do séc.II e início do séc. I a.C., define como “uso correto”
somente o uso dos escritores modelares. As atividades de codificação da gramática no
Brasil, que vêm desde 1536, com Fernão de Oliveira, configuram-na como uma gramática
leve, simples, e quase simultaneamente, em 1540, com João de Barros, como uma obra
prescritivista (com privilégio à variedade culta). Seu objetivo é a correção formal da
linguagem, que vê na gramática um modelo certo de falar e de escrever.
O problema é que a gramática tradicional, como destaca Silva (2002), estabelece
regras de um predeterminado padrão de língua para aqueles que já dominam outras
variedades dessa língua e também algumas regras daquela variante que é a padrão. Essa
gramática, desde sua origem, procurou estabelecer regras para a língua escrita, com base no
uso que dela faziam aqueles que a sociedade considerava e considera os seus mais “bem
acabados” usuários, chamados “grandes escritores” (poetas e prosadores).
Moura Neves (2004) constata que antes da chegada da ciência lingüística, a
prescrição era uma prática, produziam-se as obras gramaticais para estabelecer as normas,
não importando o discurso adotado, e elas acabaram constituindo o modelo a ser seguido.
Quando era dito que as gramáticas registravam paradigmas, elas registravam normas,
afirmando que este registro constituía e consagrava um sistema e silenciava qualquer outra
forma que não fosse a norma, por mais vivo que estivesse o seu uso. Assim surgiram os
manuais de gramática, não como ciência, mas como técnica e arte, sendo a partir daí que os
paradigmas passaram a ser entendidos como padrões de pureza e de regularidade da língua.
Os parâmetros de regularidade fizeram com que a Gramática Normativa viesse a
organizar-se a partir da tradição gramatical do Ocidente em torno do par regra/exceção.
Esse lugar de fundação conduz-nos a discutirmos previamente o estatuto da exceção. Para
Moura Neves, norma “é um conceito de estatuto não apenas lingüístico mas também
sócio-político-cultural” (NEVES, 2004, p.20), afirmando que as normas se interpenetram e
fazem com que a língua torne-se um conjunto de variantes. Se em geral a língua padrão é
balizada por regras a serem seguidas, e considera a língua usada na literatura, pelos “bons
escritores”, vale sublinhar que nesta variante, a padrão, também está presente a exceção,
que, embora considerada erro, desvio, é, ao contrário, constitutiva da norma, visto ser pela
diferença que se estabelece o regularizável.
2- Da gramática ao discurso
As condições de produção da Gramática Tradicional, voltada, à época da
expansão romana, à explicitação da língua latina para os povos conquistados, conferiramlhe feição didática, fazendo com que suas enunciações se afeiçoassem às marcas desse
discurso, descrito por Orlandi (1983) como autoritário:
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No discurso autoritário, o referente está “ausente”; não há realmente
interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia
contida (o exagero é a ordem no sentido em que se diz “isso é uma
ordem”, em que o sujeito passa a instrumento de comando). Esse
discurso recusa outra forma de ser que não a linguagem. (ORLANDI,
1983, p. 15).
Ao serem colocadas, via de regra, na perspectiva da prescrição, as questões de
língua geram o efeito de “é isso”, dando sustentação para os discursos sobre a língua que a
concebem como homogênea, apagando suas diferenças internas e produzindo efeito de
unidade, como se a linguagem só tivesse uma forma de uso. Tal postura autoriza o lugar de
cientificidade que os enunciados gramaticais passam a ocupar no ensino de língua
portuguesa, com tendência a minimizar os espaços de pluralidade e de abertura para se
considerar os modos como as formas da língua produzem sentidos.
Por essa razão, o foco do analista de discurso é a ordem da língua, muito mais
que sua organização. Organização lingüística é vista como a estrutura lingüística; a regra, a
sistematicidade; já a ordem deve ser vista como a forma material, ou seja, a posição em que
o sujeito se define pela sua relação com um sistema significante investido de sentido. Para
Orlandi (1996, p.49), o que interessa ao analista não é apenas a estrutura da língua, mas
também o seu funcionamento. Desse modo, o trabalho de análise foca a organização da
língua para a partir dela compreender, no funcionamento discursivo, o modo de
constituição do sujeito e dos sentidos.
A gramática, documento da língua, conforme terminologia de Foucault (2000),
sedimenta discursos que se produzem sobre a língua em diferentes épocas, instituindo-se
apenas como evidência de homogeneidade, porque, se investigadas as diferentes condições
de produção de suas enunciações, constatar-se-á lugares de deslizes, de espaço para a
diferença, para rupturas que os sujeitos operam na língua.
As relações língua/sentido podem ser consideradas a partir de diferentes
perspectivas teóricas. No caso desta pesquisa, a teoria tomada como referência, a Análise
do Discurso de linha francesa (AD), fundada por Michel Pêcheux, na França, em 1969,
considera a língua em sua relação com a história e a ideologia. O sujeito, nessa perspectiva,
não é senhor de seu dizer, mas efeito de filiações ideológicas, o que não se lhe dá de modo
transparente, por ser ele atravessado pelo inconsciente, o que faz com que tenha a ilusão de
saber o que diz e também de dominar o conteúdo de seu dizer. Essa ilusão, necessária,
segundo Pêcheux, torna possível que a língua funcione produzindo sentidos, a partir de
posições às quais os sujeitos se filiam para enunciar.
Essa posição-sujeito resulta da relação que se estabelece entre o sujeito do
discurso e a forma-sujeito de uma dada formação discursiva. Uma posição-sujeito não é
uma realidade física, mas um objeto imaginário. Ainda, não há um sujeito empírico e único,
mas diversas posições-sujeito, as quais estão relacionadas com determinadas formações
discursivas e ideológicas. É nessa perspectiva que passam a interessar os fatos de língua,
porque “(...) a língua se apresenta, assim, como base comum dos processos discursivos
diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que os processos ideológicos
simulam os processos científicos” (PÊCHEUX, 1988, p. 91).
Os sujeitos podem corresponder a uma contradição, pois ao mesmo tempo são
sujeitos livres e sujeitos submissos. Segundo Orlandi (1999, p.50), se tomarmos a língua em
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sua relação com a ideologia, podemos observar como o sujeito cria um ideal de
completude, configurando-se como um sujeito mestre de suas palavras, determinando o
que diz. E é através da historicidade que podemos compreender a noção de sujeito,
determinado pela exterioridade na sua relação com os sentidos.
Os enunciados, por não constituírem escolhas conscientes de quem os formula,
mas resultado de condições históricas de aparecimento, denominam-se seqüências
discursivas (sds). Nesta pesquisa as referidas sds relacionar-se-ão a dois lugares de
discursivização: o das Gramáticas Normativas, em relação ao que regulamentam/explicitam
sobre fatos de língua; e o espaço pedagógico, incluindo aí as enunciações do lugar do
professor.
Courtine (1981, p.25) define as seqüências discursivas como seqüências orais e
escritas, mas com uma dimensão superior à frase, ele acrescenta que a natureza e a forma
dos materiais recolhidos são variáveis, definindo a noção de seqüência discursiva como
fluida. A segmentação de uma seqüência discursiva, escolhida para um corpus, varia
dependendo do analista.
3- Formação discursiva e Formações Imaginárias
A noção de Formação Discursiva (FD) teve seu primeiro conceito, em 1969,
formulado por Michel Foucault. Segundo ele, a FD constitui-se de enunciados dispersos,
mas marcados por uma certa regularidade:
No caso em que se puder descrever, entre certo número de enunciados,
semelhante sistema de dispersão, e no caso que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlação, posição e funcionamento,
transformação), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva. (FOUCAULT, 2002, p. 43)
A partir desta conceituação, Orlandi (1999, p.43) escreve que a noção de FD
“ainda que polêmica, é básica para a AD, pois permite compreender o processo de
produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia e também dá ao analista a
possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso”. Assim, a
caracterização de uma FD ocorre pela dispersão do fato, apresentando-se não como uma
totalidade, algo a priori, mas como agrupamento de repetibilidades, feito a partir de recortes
margeados por limites que não são fixos, pois as diferentes formações discursivas mantêm
contato, um enunciado de uma pode reaparecer em outra, com sentido diverso. Essa autora
ressalta que o discurso se constitui por aquilo que o sujeito diz, inscrevendo-se em uma FD
e não em outra. Em razão disso, “as palavras não têm sentido nelas mesmas, elas derivam
seus sentidos das FDs em que se inscrevem” (op.cit.).
No caso do presente estudo, Neste caso, o sujeito que enuncia a partir da
posição professor está inscrito no que designamos Formação Discursiva Docente (FDC). É
importante dizer também que a produção dos enunciados no interior das FDs é orientada
pelo que Pêcheux (1990) nomeou de Formações Imaginárias. Para ele o imaginário diz
respeito às condições de produção do discurso, à antecipação dos lugares sociais ocupados
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pelo sujeito que enuncia e pelo(s) interlocutor(es). Ou seja, a imagem que os interlocutores
A e B atribuem cada um a si e ao outro, mediados pela historicidade em que estão imersos.
Conforme Cazarin (2005 p. 175), o imaginário discursivo é compreendido como
realização, encenação de interesses ligados a lugares em uma formação social. Nas palavras
da autora, o imaginário discursivo não se explica pela relação com a realidade, e sim pelo fato de derivar
de determinados interesses sociais.
4- A construção da metodologia
Em AD não se tem um modelo de análise estabelecido a priori que se adapte
automaticamente a todo e qualquer discurso. Ou seja, é o analista quem vai estabelecer o
modelo de interpretação que lhe é mais conveniente, podendo, portanto, haver variações.
Vale dizer também que a AD não trabalha com pesquisa quantitativa, não sendo objetivo
esgotar possibilidades de análise ou ater-se a padrões de mensuração. Importa a produção
de sentidos nas diferentes enunciações.
Neste trabalho foi organizado um arquivo, e desse arquivo fez-se a seleção do
corpus para a análise propriamente dita. O arquivo é formado por enunciados que
professores de Língua Portuguesa produzem em sala de aula sobre questões ligadas ao
ensino de língua, mais especificamente, aquelas relacionadas ao conhecimento gramatical,
na 7ª série de uma escola pública de ensino fundamental de um município do estado do Rio
Grande do Sul. Os enunciados do corpus foram organizados sob a forma de recortes para se
proceder às análises. Dentre os recortes de análise da pesquisa elegemos o que foca a
formulação do conhecimento gramatical, pelo professor, na forma de metáforas e
comparações.
5- A análise
As sds produzidas no contexto da sala de aula são analisadas com o objetivo de
mapear como o conhecimento gramatical sobre língua é re-produzido, tendo como
referência o lugar professor. O recorte selecionado para este artigo, “Metáforas e
comparações na formulação de conhecimentos gramaticais”, é resultado do olhar de análise
que constatou incidência significativa desse tipo de construção no discurso do professor
para referir-se aos conhecimentos gramaticais.
Na perspectiva da AD a metáfora é considerada deslizamento de sentidos,
valendo salientar que a língua comporta, em sua estrutura, a possibilidade desses deslizes.
Assim, a metáfora é entendida como constitutiva do discurso. Já a comparação é vista, na
perspectiva da lingüística, de modo diverso ao da metáfora, por não impor uma
transferência de significações, as palavras empregadas pela semelhança não perdem
nenhum dos elementos de sua significação própria. Como a AD não considera o conceito
de comparação como categoria distinta da metáfora, usaremos a noção de efeito metafórico
para nos referirmos às duas.
A seguir apresentamos as sds do recorte. A aula de português, ora analisada,
tratou do tópico Colocação Pronominal, para o que o enunciador - professor partiu da
leitura de poemas de Mario Quintana. Após foram dadas as possibilidades de posição do
pronome na frase: próclise; ênclise; mesóclise.
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sd 1... servem de atração para o pronome vir antes, se colocar depois, pela lei da
gramática estaria errado, porque na gramática estando infringindo a regra, está infringindo a
lei, que nem uma lei de trânsito...
sd 2... parece a mais fácil a mais usada, só que é condenada pela regra. A regra
que é a lei. Na gramática diz: quando tem um não e dois verbos não se usa (o pronome) no
meio. Mas se usa igual, só que na escrita isto aqui vai ser cobrado...
sd 3 ... é uma coisa analítica que nem vocês fazem na matemática, analisam,
calculam, estudam o problema, aqui também tem que analisar a frase...
sd 4...A nossa gramática tem um nome muito esquisito, vou apresentar para
vocês a próclise, parece coisa de médico, dentista, é quando vem o pronome antes do
verbo, quando o pronome vem antes do verbo, nós denominamos na nossa gramática
oficial de próclise, grave bem, o nome mais esquisito tá pra vim, que é ênclise e a
mesóclise...
Nas sds 1 e 2 o sujeito professor enuncia a partir de um imaginário de gramática
como lei e regra uniforme, que deve ser seguida por todos os usuários da língua
portuguesa, sem possibilidade de mudanças, de manifestação de particularidades. A não
obediência a essas regras equivale a infringir a lei, do mesmo modo que se infringem leis de
trânsito, por exemplo. Uma conseqüência possível para infrações é a punição, com suas
especificidades; neste caso, pode-se pressupor que quem infringe uma regra que está posta
na gramática poderá sofrer algum tipo de punição pelo professor, podendo ser reprovado,
ou até mesmo poderá se punido pela sociedade, sofrendo algum tipo de discriminação.
Pode-se dizer que esse imaginário de que a gramática equivale a uma espécie de
lei constituiu-se a partir da tradição greco-latina. Moura Neves (2004) constata que antes da
chegada da ciência lingüística, a prescrição era uma prática, produziam-se as obras
gramaticais para estabelecer as normas, não importando o discurso adotado, constituindose o modelo a ser seguido. Quando era dito que as gramáticas registravam paradigmas, elas
registravam normas, e o registro constituía e consagrava um sistema e silenciava qualquer
outra forma que não fosse a norma, por mais vivo que estivesse o seu uso.
No segmento que nem vocês fazem na matemática, da sd3, há um efeito metafórico de
que aprender sintaxe equivale a aprender matemática, ambas implicando o uso do
raciocínio lógico, como se uma forma de saber fosse igual à outra. Esse modo de conceber
o conhecimento gramatical reporta à fundação da Gramática Geral e Racional, em 1660, que
tinha por objetivo demonstrar a estrutura da língua como um produto da razão, e que as
diferentes línguas são apenas variedades de um sistema lógico e racional mais geral.
O enunciado possibilita pensar que como a gramática é fundamentada na “lógica
formal”, tende a se assemelhar às ciências matemáticas. O conhecimento dos
procedimentos de análise sintática são discursivizados como se fossem tão
incompreensíveis quanto as formas algébricas.
Na sd4 o enunciador compara o conhecimento lingüístico com o conhecimento
científico, mais especificamente com a área da saúde, comparação essa justificada por ele
pelo uso de uma linguagem obscura. Quer dizer, assim como está posto na dimensão da
dificuldade do conhecimento matemático, o conhecimento gramatical é relacionado a áreas
que usam termos normalmente desconhecidos das pessoas comuns. No entanto, vale notar
que essa comparação pode, ao mesmo tempo, produzir outro efeito, no sentido de conferir
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estatuto de prestígio ao conhecimento lingüístico, porque o coloca em um espaço de
fechamento, ao qual algumas poucas pessoas, mais capacitadas, têm acesso.
6- Considerações finais
Este estudo ocupou-se em analisar os sentidos produzidos por professores em
sala de aula, na sétima série do Ensino Fundamental, sobre o ensino de gramática. Para
tanto, partimos da historicidade em que a gramática foi constituída, a tradição greco-latina,
a partir da qual ela é vista, até hoje, como fonte de estabelecimento de regras de um padrão
de língua, pautado principalmente pelas regras da língua escrita. A formação da gramática
se dá a partir do postulado alexandrino de que as analogias (regras) são sustentadas por
anomalias (exceção).
A ancoragem teórica na Análise do Discurso (AD) justifica-se pelo fato de essa
teoria oferecer o aparato necessário para “olharmos” os enunciados que são produzidos
sobre o ensino de língua na perspectiva de uma construção que é histórico-social, e que
produz sentidos a partir dessa condição. O sujeito que ocupa a posição de professor,
constatamos, não raro, limita-se a reproduzir o posto nas gramáticas, conferindo autoridade
àquele discurso, e sentindo-se inseguro para pôr em xeque algumas noções lá postas.
Sua preocupação central é com a organização da língua, o professor não se
autoriza a pensar a ordem em que as regras foram instituídas e a partir daí discutir com os
alunos a pertinência delas, possibilidades e multiplicidades de usos, diferentes estatutos
desses usos, entre outros aspectos. Poderiam mostrar aos alunos que as formas
consideradas “não corretas” também têm seu lugar dentro da gramática, como constitutivas
da regra. No momento em que os professores contemplarem a ordem na língua,
considerando que nesta há deslizes, espaço para a diferença; e não apenas a organização,
isso possibilitará que o aluno reflita sobre a língua e as possibilidades de produção de
sentido, fazendo com que haja mais interação em sala de aula, entre aluno e professor,
contribuindo para que o aluno não apenas decore o conteúdo, e sim atribua outros sentidos
possíveis para os enunciados.
7- Bibliografia
AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português. 7ª ed.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
CAZARIN, Ercília Identificação e representação Política: uma análise do discurso de Lula. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.
COURTINE, Jean-Jacques. Quelques problems theoriques et methodologiques em analyse du discours; à popos du
discours communiste adresse aux chrétiens. Langages (62), juin, 1981.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber/ Michel Foucault; tradução de Luiz Felipe Beata Neves.- 6.ed.- Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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APONTAMENTOS INICIAIS SOBRE OS LIMITES DA FALA
EM JOÃO CABRAL E ELIOT
André Cechinel
Doutorando em Teoria Literária – UFSC
Resumo: sem pretensões conclusivas acerca do tema, o presente ensaio se propõe a lançar
algumas questões iniciais sobre os limites da voz na poesia de João Cabral de Melo Neto e
T. S. Eliot, partindo principalmente dos poemas que tratam dos rios. Em outras palavras,
ao falar do tríptico do Capibaribe na obra de Cabral, por exemplo, o ensaio busca mostrar
que, embora dentro de uma motivação a princípio comunicativa, o poeta preserva em seus
versos um determinado conteúdo incomunicável, uma sorte de mensagem que não
transcende o próprio percurso que descreve. Tanto Cabral quanto Eliot, nesse sentido,
junto à temática prontamente social presente em seus poemas, preservam o interesse pelo
incomunicável, pela repetição das jornadas que descrevem.
Palavras-chave: Eliot, Cabral, voz
Abstract: with no intention of entirely covering the topic, this essay wishes to offer some initial
ideas related to the limits of the voice in the poetry of João Cabral de Melo Neto e T. S. Eliot,
starting mainly from the poems that deal with the image of the rivers. In other words, when
discussing the “tríptico do Capibaribe” in Cabral’s work, for instance, the study aims at
demonstrating that, despite the will to communicate, the poet preserves in his verses certain
incommunicable content, that is some sort of message that cannot transcend the very spot it
occupies. Both Cabral and Eliot, in this sense, together with the social content present in their
work, preserve the interest for the incommunicable, for the repetitions of the journeys they
describe.
Keywords: Eliot, Cabral, voice.
(***)
Ao abordar o tríptico do rio Capibaribe na obra do poeta João Cabral de Melo
Neto, a crítica é quase unânime quando aponta a vontade de criar "um texto de maior
acessibilidade, de estabelecer um compromisso entre a pesquisa do poeta e a audição de sua
comunidade”1. A princípio, tais afirmações parecem carregadas de um tom depreciativo,
como se ao ceder a uma linguagem mais oral o poeta estivesse, ao mesmo tempo,
prejudicando a complexidade de sua poesia anterior. Contudo, atravessadas as leituras
iniciais, pode-se perceber que, na realidade, a aparição mais explícita da temática social no
poema de Cabral traz consigo também a marca de uma profunda preocupação formal: “o
primeiro equívoco é considerar os dois tipos de dicção como espécies distintas de poesia,
uma fácil e outra difícil, uma acessível e penetrável, outra requintada e superelaborada”2.
Seja como for, os ensaios sobre O Cão sem Plumas, O rio e Morte e Vida Severina via de regra
apontam que, “da desalienação da linguagem, João Cabral de Melo Neto passa ao problema
da participação poética”, o que de forma alguma significa a busca por uma “síntese ideal,
hipostasiada no absoluto”3.
LIMA, Luiz Costa. Lira e Antilira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968, p. 315.
NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, p. 51.
3 CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1970, p. 72.
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A bem da verdade, a inquietação da crítica em torno de uma mudança de eixo
operacional motivada pelo tríptico do rio é, em parte, oriunda dos próprios ensaios teóricos
de João Cabral, especialmente daquele intitulado "Da função moderna da poesia”, datado
de 1954, mesmo ano da publicação de O Rio. O célebre texto de João Cabral assinala a
necessidade que a poesia teria de, para o bem da comunicação, aproximar-se cada vez mais
dos novos meios colocados a seu dispor pela técnica moderna. Para o autor, os poetas
modernos não somente deixaram de lado as novas tecnologias, como também “não
souberam adaptar às condições da vida moderna os gêneros capazes de serem
aproveitados”4. Segue disso, pois, o desejo de identificar na poesia de João Cabral
justamente os preceitos literários por ele estabelecidos em seus ensaios. Para ilustrar, podese citar o capítulo sobre o poema O Rio presente no livro de Antonio Carlos Secchin
intitulado João Cabral: a poesia do menos. Nas linhas iniciais do referido capítulo, o autor
lembra que “O Rio, ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife, de
1953, é o texto que parece responder mais de perto às reflexões teóricas de Cabral sobre a
necessidade de restabelecer-se o circuito entre o público e a poesia contemporânea"5.
Nesse sentido, com o intuito de rastrear o modo como a nova comunicabilidade
dos versos do poeta aparece em seu aspecto formal, os críticos fazem aproximações entre,
por exemplo, O Rio e o romance espanhol: “do ponto de vista de unidade métrica e de
rima, O Rio se assemelha ao romance espanhol. Pois como ele não tem fixo seu padrão”6.
Em outros casos, mostra-se que, dependente do próprio objeto que descreve, a linguagem
utilizada por Cabral “transmite uma crítica aguda de certas condições sociais” 7. Os
exemplos aqui rapidamente lembrados servem apenas para ilustrar que, a rigor, O Cão sem
Plumas, O rio e Morte e Vida Severina são livros prontamente deslocados para um plano
“comunicacional”, digamos, o que é facilmente verificável nos próprios versos dos poemas.
As repetições dos termos, a circularidade dos versos, a recorrência dos elementos que
compõem a paisagem, entre outros, estariam, pois, a serviço de uma pretensão de fazer-se
entender, juntamente com a problematização do ato criativo. Em resumo, podemos
acompanhar as palavras de João Alexandre Barbosa no livro A Imitação da Forma: uma
Leitura de João Cabral de Melo Neto – para o crítico, o importante nesses textos é verificar o
modo como o conteúdo social, já presente em poemas anteriores, aparece atrelado a outro
procedimento de veiculação.
De qualquer forma, cabe ressaltar que a temática do comunicável se faz
constantemente presente nos ensaios que tratam do tríptico do rio Capibaribe em Cabral.
O tom comum de uma prosa discursiva traz consigo o convite para que se fale do tema
social e de suas implicações no campo formal, tudo isso situado para além de um
individualismo poético. Como nos diz Benedito Nunes, esses livros apresentam "um
suprimento de oralidade que avoluma seu poder de comunicação e facilita sua difusão para
alcançar um receptor coletivo e ser consumido coletivamente”8. Em poucas palavras, são
vários os recursos formais utilizados por João Cabral para acentuar a possibilidade de uma
maior comunicabilidade nos seus poemas sobre o rio – como dito, a oralidade, as
repetições, o tom prosaico etc. No entanto, poderíamos nos colocar a seguinte questão:
MELO NETO, João Cabral de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 769.
SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação
Nacional Pró-Memória, 1985, p. 85.
6 LIMA, Luiz Costa. Lira e Antilira. Op. cit., p. 310.
7 PEIXOTO, Marta. Poesia com Coisas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1983, p. 84.
8 NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. Op. cit., p. 53.
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João Cabral recebe repetidas vezes o título de poeta do silêncio; ver, a título de curiosidade,
dentre outros, alguns ensaios de João Alexandre Barbosa e Modesto Carone, especialistas
em João Cabral que acentuam precisamente uma faceta silenciosa do poeta, algo que em
seus poemas não se pode comunicar. Assim sendo, como conciliar esse rio que tudo parece
dizer com o silêncio que por vezes domina o poeta dos rios? Haveria algo que, de fato, o
rio não poderia comunicar?
Exemplo dessa segunda possibilidade é o poema “Rios sem Discurso”, analisado
exaustivamente por Modesto Carone em livro de título sugestivo: A Poética do Silêncio. Esse
poema, presente em A Educação pela Pedra (1962 – 1965), nos fala de um rio cujos traços
principais muito se assemelham ao rio Capibaribe conforme descrito em O Rio, ou relação da
viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife; com efeito, poderíamos pensar que
se trata do mesmo rio. De qualquer forma, esse “rio sem discurso” mostra-se “quebrado
em pedaços”, “em poços de água, em água paralítica”. Esses cortes nele operados sugerem
exatamente uma espécie de estagnação lingüística, como se fosse uma vida burocratizada,
tal como “uma palavra em situação dicionária”, isto é, uma palavra institucionalizada, que
não flui. Logicamente, a comunicabilidade no plano sintático permanece, uma vez que os
itens lexicais se repetem a todo o momento. No entanto, pode-se dizer que essas repetições
estão agora ligadas a uma paralisia da linguagem – o rio não pode comunicar por precisar
“de muito fio de água”.
Modesto Carone é preciso ao falar de um zelo explicativo que leva o poeta a certo
didatismo: João Cabral “circunscreve higienicamente o tema, distribui as fatias da metáfora
rio-discurso, não se poupa de esclarecimentos e, se preciso, oferece variações sinonímias”9.
Ou seja, o que temos aqui se aproxima muito dos comentários críticos acerca do tríptico do
rio em seu desejo de “comunicar”. O que chama a atenção, no entanto, é que dentro da
comunicabilidade do poema está expresso de modo explícito o tema da incomunicabilidade
do rio, ou melhor, devido a suas constantes interrupções, o rio torna-se "sem discurso”, um
curso quebradiço, cansativo. No limite, as repetições lexicais que antes levavam a crítica a
abarcar o desejo de comunicar, surgem como indício de um rio parado, ao menos em um
plano temático. Entenda-se bem: a operação do poeta é praticamente a mesma
(circularidade, repetição, oralidade etc), o que muda é o fato de que essa poética versa nesse
instante sobre um rio sem-discurso. O poema que antes era só-discurso (e que, a rigor,
pode permanecer sendo, ao menos em seu aspecto formal), fala, pois, de uma interrupção,
de um não-discurso: “o ‘rio cortado’, dis-curso interrompido, quebrado em pedaços e
transformado em poços de água, vira água paralítica-palavra-dicionário que, isolada como
vocábulo, acaba, por sua vez, estanque no ‘poço dela mesma’”10. Ora, se os elementos se
repetem em outros poemas, até que ponto, então, o rio Capibaribe de João Cabral não
reserva também esse mesmo dis-curso nos demais versos que dele se ocupam? Aliás, afora
a questão prontamente social, de onde mais pode vir esse incomunicável do rio?
No ensaio intitulado “Com passo de prosa: voz, figura e movimento na poesia de
João Cabral de Melo Neto”, que consta do livro A Voz e a Série, Flora Süssekind investiga o
problema dos limites da voz na obra do poeta do Capibaribe. Como sabemos, João Cabral
mostra-se repetidas vezes avesso à música, posição essa que busca confirmar em todas as
CARONE, Modesto. A Poética do Silêncio: João Cabral de Melo Neto e Paul Celan. São Paulo: Perspectiva, 1979,
p. 25.
10 Idem, Ibidem, p. 27.
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entrevistas que suscitam o tema: “para mim a música é barulho, aquilo me faz pensar em
outra coisa, eu começo a pensar para não estar ouvindo aquilo”11. Ou então, “procuro
sempre as coisas que me fazem acordar. Por isso, tomo tanto café. E a música embala-me,
faz-me dormir”12. Para a autora de A Voz e a Série, essas declarações de João Cabral
enfatizam algo que pode ser entendido como um “paradoxo” em sua obra: “afastamento da
musicalidade, do auditivo, que se faz acompanhar, no entanto, meio paradoxalmente, de
uma proliferação de referências [...] a sotaque, fala, ritmo, dicção, timbre, acento, voz”13.
Ora, a questão é fundamental: como aliar um desgosto pelo auditivo à oralidade que
caracteriza de modo geral parte de sua poesia? Na tentativa de encontrar uma “resposta”,
Flora Süssekind aponta na obra de Cabral o surgimento de uma fala árdua que, enfim,
apresenta-se como voz “sem discurso”. Chegamos ao ponto de maior relevância: não seria
essa oralidade dos rios referência também a uma voz que soa muito pouco, uma voz “sem
discurso”?
Esse “pé atrás da voz”, tal como a ensaísta o chama, pode ser lido em inúmeros
poemas de João Cabral, inclusive no freqüente movimento de petrificação da fala. Para
exemplificar, basta-nos lembrar os versos de "O Sertanejo Falando", presentes também em
A Educação pela Pedra. Nesse poema, Cabral nos descreve um duplo aspecto da fala do
sertanejo, que é inclusive capaz de levar a um engano: uma entonação lisa que trabalha lado
a lado com a incapacidade do sertanejo “de não se expressar em pedra” – uma “fala difícil,
‘dolorosa’, ‘à força’, registrada no disfarce de ‘uma entonação lisa’ sobre um ‘idioma pedra’
[...]”14. A razão de o sertanejo dizer pouco decorre do fato de que o natural do idioma de
pedra é falar-se à força e devagar, sempre pegando as palavras com muito cuidado, em um
labor que toma muito tempo. Guardadas as devidas proporções, “O Sertanejo Falando”
esclarece muitos dos aspectos formais e temáticos do tríptico do rio Capibaribe em João
Cabral. Falar devagar por ser doloroso; trabalhar cuidadosamente com o pouco que se fala
para que as palavras de pedra não ulcerem a boca. Não se preserva em tal movimento um
silêncio?
Para Süssekind, finalmente, a escolha pela "voz fria" dos versos induz João Cabral a
avizinhar-se da poeta Marianne Moore, estabelecendo um diálogo direto com ela em pelo
menos cinco poemas. Além do rigor cirúrgico impresso na construção dos versos, João
Cabral identifica na obra de Moore a mesma discussão sobre o "tom da voz" e seus limites,
que leva diretamente à questão do “continuado esforço de despersonalização da escrita”15.
Em "O Sim contra o Sim", presente no livro Serial (1959 – 1961), João Cabral escreve que
“Marianne Moore, em vez de lápis, / emprega quando escreve / instrumento cortante: /
bisturi, simples, canivete”16. Ora, esses instrumentos cortantes são figuras recorrentes na
própria obra de Cabral, como nos indicam os títulos dos livros Uma Faca só Lâmina (1955) e
A Escola das Facas (1975 – 1978). Essa poética cirúrgica só pode se dar, obviamente, por
meio de uma economia da linguagem, de uma fuga dos sentimentos de um "eu" que se
imporia aos versos. Como Süssekind mostra, muitos versos de Cabral sobre essa
Resposta ao poeta Sebastião Uchoa Leite, 34 Letras, Rio de Janeiro, n. 3, mar. 1989. Presente em
ATHAYDE, Félix de. Idéias Fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 63.
12 Idem, Ibidem. Entrevista a Maria Leonor Nunes, JL – Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, n. 448, 05 / 10
fev. 1991.
13 SÜSSEKIND, Flora. A Voz e a Série. Rio de Janeiro: Sette Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 34.
14 Idem, Ibidem, p. 36.
15 SÜSSEKIND, Flora. A Voz e a Série. Op. cit., p. 42.
16 MELO NETO, João Cabral de. Obra Completa. Op. cit., p. 297.
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despersonalização da escrita parecem ecoar justamente a poética de Marianne Moore. Um
desses casos em que a voz oferece consigo o apagamento do sujeito, "espécie anti-sonora
de voz"17, é o poema “Silence”, que compõe os Selected Poems (1935):
My father used to say,
"Superior people never make long visits,
have to be shown Longfellow's grave
nor the glass flowers at Harvard.
Self reliant like the cat –
that takes its prey to privacy,
the mouse's limp tail hanging like a shoelace from its mouth –
they sometimes enjoy solitude,
and can be robbed of speech
by speech which has delighted them.
The deepest feeling always shows itself in silence;
not in silence, but restraint."
Nor was he insincere in saying, "
`Make my house your inn'."
Inns are not residences.
Em “Silence”, a fala do pai, que surge indiretamente (através de citação), lembra
que as pessoas superiores são, de modo geral, discretas, ou melhor, atuam como o gato que
leva sua presa a lugares privados. Diferentemente daqueles que procuram se afirmar nos
grandes eventos (“Longfellow’s grave”, "the glass flowers at Harvard”), essas pessoas se
apagam, mostram-se melhor justamente no silêncio. A complexidade do poema está em seu
jogo de vozes: a voz do pai, que defende a tese do apagamento, domina quase todos os
versos; já a voz do poeta (ou da poeta, se preferirmos), parece desaparecer para dar lugar à
"lição" do pai. Em poucas palavras, as linhas finais de “Silence” invertem a fala do pai
justamente a partir da incorporação do seu discurso – é como se o / a poeta atuasse como
o rato que leva sua presa a um espaço privado. Em suma, ao mostrar que, na realidade, o
discurso do pai revela apenas um desejo de manter-se afastado, a segunda voz faz-se muita
mais sutil que a primeira, principalmente por torná-la parte de seu mecanismo de inversão.
O segundo sujeito se apaga, tal como o pai aconselhava, para melhor aprisionar a voz
dominante.
Essa fuga dos sentimentos, que se dá no apagamento parcial da voz de um sujeito
confessional, é lição advinda dos preceitos literários estabelecidos por Ezra Pound e os
poetas "imagistas". Em 1918, Pound publica o ensaio-prospecto chamado “A Retrospect”,
presente no livro Pavannes and Divisions. No ensaio, o autor de The Cantos, alinhado a poetas
como H. D. e Richard Aldington, decreta comum acordo em torno de três princípios
basilares do fazer poético: “1) Direct treatment of the ‘thing’ whether subjective or
objective; 2) To use absolutely no word that does not contribute to the presentation; 3) As
regarding rhythm: to compose in the sequence of the musical phrase, not in sequence of a
metronome”18. As indicações de Pound, como sabemos, exerceram forte influência sobre
Marianne Moore, que via no autor dos famosos "Cantos" seu principal mestre. T. S. Eliot,
SÜSSEKIND, Flora. A Voz e a Série. Op. cit., p. 45.
POUND, Ezra. “A Retrospect”, em John Cook (ed.). Poetry in Theory – an anthology. . Oxford: Blackwell
Publishing Ltd, 2004, p. 84.
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discípulo de Pound, foi outro poeta que marcou profundamente a obra de Moore,
especialmente pela objetividade e impessoalidade impressa em seus versos. Ora, a ligação
entre João Cabral de Melo Neto e T. S. Eliot não precisa dar-se via Moore, já que Cabral
era leitor atento da obra de Eliot. Contudo, os poemas de Cabral sobre Moore têm como
subtexto o vínculo com Pound, Eliot e o princípio da economia de que nos fala “A
Retrospect”. É esse princípio da economia, expresso no tratamento direto do objeto, que
estabelece a ponte entre Eliot e Cabral. A comunicabilidade parcial da voz resulta, até certo
ponto, dessa economia.
A menção mais explícita que Cabral faz a Eliot em sua poesia, não
coincidentemente, fala do alcance da voz, de um cante hondo, canto profundo. Em “El Cante
Hondo”, presente em Museu de Tudo (1966 – 1974), João Cabral parte de uma epígrafe
retirada de The Hollow Men, poema de T. S. Eliot (1925), para tratar da música flamenca:
“This is the way the world ends / Not with a bang but a whimper”. No poema de 1925,
Eliot expõe o retrato de um ritual religioso dessacralizado, marcado pela impotência das
orações feitas pelos “homens ocos”: “Our dried voices, when / We whisper together / Are
quiet and meaningless”19. A tensão aqui está na paralisia dos homens ocos, que em seus
rituais já não conseguem comunicar nada senão um aprisionamento, uma impotência. O
poema de Cabral, por sua vez, fala que o cante hondo desconhece a distinção entre lamúria e
potência, uma vez que, em alguns momentos, “o seu lamento mais gemido / acaba em
explosão”. Ao contrário dos homens ocos, o "canto profundo" mantém sua força inclusive
onde se mostra mais triste.
O tema da linguagem que pouco comunica, visto aqui na mecanização do ato
religioso, já estava presente em Eliot desde seu primeiro volume de poemas, Prufrock and
other Observations (1917), destacando-se nos versos de "The Love Song of J. Alfred
Prufrock" e "Conversation Galante". O primeiro, que dá título ao livro, discorre sobre o
dilema de Prufrock, personagem que, preso entre o desejo e a ação, não consegue declarar
seu amor ao outro. Vítima de seus infindáveis cálculos, Prufrock é símbolo do impasse, da
minúcia, que resulta em uma auto-reflexividade hesitante – ao pensar nas possíveis
conseqüências de seus atos, o personagem opta por adiar o encontro com o outro,
recolhendo-se a sua vida medida a colherinhas de café “Have known the evenings,
mornings, afternoons, / I have measured out my life with coffee spoons;”20. No segundo
poema, a questão da incomunicabilidade é ainda mais explícita; "Conversa Galante" oferece
um diálogo no qual o poeta é percebido pela mulher amada como um ser "divagante" – sua
fala é interpretada de maneira fria, assinalando a distância irreconciliável entre os dois.
A aparição mais clara das águas em Eliot, a rigor, traz consigo essa preocupação em
torno dos limites da fala, agora demonstrada através de um conhecimento que não pode ser
repassado adiante. The Waste Land, célebre poema de 1922, situa na Londres pós-guerra
uma série de personagens autômatos, fragmentados, incapazes de estabelecer qualquer tipo
de comunicação efetiva. Exemplo disso é o encontro sexual mecânico narrado na terceira
seção do poema, "The Fire Sermon", momento em que o tédio não é superado nem
mesmo pelos carinhos do amante, que calcula o momento mais adequado para o seu
ataque: "The time is now propitious, as he guesses, / The meal is ended, she is bored and
ELIOT, T. S. Obra Completa,Vol. I – Poesia (Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira). São Paulo:
Arx, 2004, p. 176.
20 Idem, Ibidem., p. 50.
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tired, / Endeavours to engage her in caresses / Which still are unreproved, if undesired” 21.
No poema, o cansaço dos personagens é tamanho que a mulher sequer tem força para
resistir aos amantes que lhe parecem indesejados. Seja como for, nos momentos em que
mais se aproxima de um conteúdo esclarecedor, The Waste Land é rapidamente
reapropriado por um movimento de impotência, que mantém, aliás, os versos em uma
espécie de tensão permanente.
Na quarta seção do poema, intitulada “Death by Water” (“Morte por
Afogamento”), o personagem Flebas é arrastado por uma corrente submarina, e, antes de
morrer, como se em flash esclarecedor, percorre todos os estágios de sua vida. No Livro
From Ritual to Romance, Jessie L. Weston nos afirma que a morte por afogamento é
constantemente associada ao renascimento e à fertilidade por vir22. Em The Waste Land,
contudo, o excesso de água que ocasiona a visão de Flebas contrasta vivamente com a seca
que parece dominar as outras quatro seções, indicando que, de fato, o afogamento do
personagem permanece preso a uma rede maior de incomunicabilidade. Embora percorra
todos os estágios de sua vida, Flebas não pode passar adiante o saber acumulado através de
sua epifania. Resta, da quarta seção, uma singela lição para aqueles que, como Flebas no
passado, muito se importam com seus lucros e prejuízos, lição essa que, entretanto,
permanece quase que inaudível: “Gentile or Jew / O you who turn the wheel and look to
windward, / Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you”23.
Não devemos estranhar, portanto, a aparição do vidente Tirésias como personagem
central em The Waste Land (ao menos para T. S. Eliot). Dito de outra maneira, ao terminar
o processo de revisão do poema, Eliot adiciona uma série de notas explicativas, com o
intuito explicitar as referências por ele utilizadas durante a escritura dos versos. Dentre
essas notas, encontramos a seguinte observação a respeito da figura do adivinho tebano:
“Tiresias, although a mere spectator and not indeed a 'character', is yet the most important
personage in the poem, uniting all the rest. [...] What Tiresias sees, in fact, is the substance of
the poem”24. É necessário, logo, entender quem foi Tirésias e como ele aparece no poema
para compreendermos a leitura que Eliot faz. Como veremos a seguir, a imagem de Tirésias
em The Waste Land foi particularmente importante para João Cabral, motivando-o a
projetar a escritura de um livro sobre uma vidência ineficiente. Analisar cuidadosamente
essa vidência presa a uma incomunicabilidade poderia nos ajudar, inclusive, a entender
melhor o percurso dos rios em João Cabral e Eliot.
ELIOT, T. S. Obra Completa,Vol. I – Poesia. Op. cit., p. 152.
WESTON, Jessie. L. From Ritual to Romance. New York: Dover Publications, Inc, 1997, p. 44.
23 ELIOT, T. S. Obra Completa,Vol. I – Poesia. Op. cit., p. 158.
24 ELIOT, T.S. Obra Completa,Vol. I – Poesia. Op. cit., p. 170.
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AS EUMÊNIDES: JUSTIÇA CRUEL DAS FÚRIAS
E A BENEVOLÊNCIA DAS EUMÊNIDES25
Bruna Raquel dos Santos
Graduanda – Letras – UFMS 26
Resumo: Este artigo, que faz referência à tragédia de Ésquilo, As Eumênides, tem a
finalidade de mostrar a dualidade existente na fala das Fúrias e no discurso das Eumênides.
As Fúrias com suas alegações carregadas de maldade e ódio. As Eumênides com sua
oratória serena e tranqüila. As análises das falas foram feitas através de um conjunto
imagístico, da personagem do fantasma de Clitemnestra, de Apolo, do Coro e de Atena o
que nos mostra a riqueza das palavras proferidas na peça.
Palavras-chave: Fúrias, Eumênides, Ésquilo.
Abstract: This article, which refers to the tragedy of Aeschylus, The Eumenides, aims to
show the duality in the speech of the Furies and the Eumenides. The Furies with its
allegations loaded of malice and hatred. The Eumenides with its serene and calm oratory.
The analyses of speech were made through imagistic series, the character of the Ghost of
Clytemnestra, Apollo, Athena and the Choral, which shows us the richness of the words
uttered in the piece.
Key-Words: Furies, Eumenides, Aeschylus
Introdução
A segunda parte da trilogia A Orestéia, é dedicada a encenar a vingança do filho de
Agamêmnon, Orestes contra a assassina de seu pai e seu amante. A peça inicia com Orestes
diante do tumulo do rei de Argos, pedindo aos deuses por vingança. Ali, encontra sua irmã,
que a pedido da rainha Clitemnestra, foi ao túmulo levar libações em homenagem ao antigo
rei. Após o reencontro, o coro incita os irmãos à vingança contra a própria mãe dos
príncipes. Orestes vai ao palácio e se apresenta como um mensageiro que traz a notícia da
morte do filho de Agamêmnon. Diante de Egisto e Clitemnestra, Orestes é impiedoso.
Após matar os atuais reis de Argos, Orestes escuta, de um lado, o Coro cantar a purificação
do palácio e, de outro, a voz múltipla e insana das fúrias que vieram para lhe punir por ter
derramado sangue familiar.
A peça que fecha a trilogia, As Eumênides, continua o drama exatamente onde as
Coéforas terminaram. O drama abre com Orestes saindo de Argos (Micenas) sendo
perseguido pelas Erínies e se dirigindo a Delfos. Apolo, seu protetor, adormece as Erínies e
envia-o ao templo de Atena. No templo Orestes volta a encontrar-se com as Fúrias, a
deusa Atena o defende delas e propõe que ele seja julgado pelos cidadãos atenienses.
Este artigo foi escrito como trabalho final da disciplina Literatura Grego-Latina, do curso de Letras da
UFSM tendo por orientador o Prof. Ms. Enéias Farias Tavares.
26 Acadêmica do curso de Letras Licenciatura – Habilitação em Português e Literatura Língua Português,
cursando o quinto semestre.
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Durante o julgamento as Fúrias fazem as acusações e Apolo à defesa. Na contagem dos
votos há empate e a deusa absolve-o com o voto minerva. As Fúrias revoltam-se com o
resultado, mas seguem o conselho de Atena e abandonam seus antigos privilégios ficando
em Atenas e tornando-se as Eumênides, isto é, seres "benfazejas".
Esta tragédia, de Ésquilo, mostra uma dualidade no discurso do Coro quando este
tem voz pelo bramido das Fúrias e quando toma a forma de uma prece tenra das
Eumênides. A peça apresenta um jogo de palavras magnífico, que nos faz perceber tanto o
ódio, o rancor e o ressentimento das Fúrias, quanto a tranqüilidade, a serenidade e a pureza
das Eumênides. Este artigo objetiva analisar o conjunto imagístico de algumas falas para
mostrar essa oposição existente entre os dois lados das Erínies.
O sarcasmo no discurso das fúrias
As Fúrias apresentam um vocabulário que nos impressionam desde o inicio da
peça, pois nos transmitem sempre uma sensação de vingança e terror. Quando o fantasma
de Clitemnestra, dirigindo-se ao Corifeu, começa a acordar as Fúrias e incita-las a vingar
sua morte, escuta gemidos e uivos do Coro que está ainda em sono inquietante,
Clitemnestra profere suas palavras para que elas persigam Orestes numa importuna caçada
por justiça. A linguagem é repulsivo, como percebe-se na citação abaixo:
FASTASMA DE CLITEMNESTRA
(Dirigindo-se ao CORIFEU.)
Agora persegues a fera em sonho e gritas
como esses cães que nunca deixam seu canil
para atacar a caça! Diz-me: que fazes?
Vamos! Levanta-te! Não te deixes vencer
pela fadiga a ponto de esquecer ofensas!
Incita o coração com justas reprimendas,
pois elas estimulam as pessoas sábias!
Exala sobre Orestes teu sangrento hálito!
Trata de ressecá-lo com o vapor de fogo
que sai insuportável de tuas entranhas!
Deve extenuá-lo até tirar-lhe o fôlego
numa perseguição feroz e implacável!
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As palavras “fera”, “cães que nunca deixam seu canil para atacar a caça”, “fadiga”,
“esquecer ofensas”, “reprimendas”, “sangrento hálito”, “vapor de fogo”, “insuportável de
tuas entranhas”, “tirar-lhe o fôlego”, “perseguição feroz” remetem tanto às Erínies quanto
a Orestes, para provocá-las a vingar a morte de Clitemnestra e punir Orestes. Estas
elocuções repugnantes que são usadas servem para despertar as Fúrias com uma vontade
imensa de vingança, para que elas abram os olhos e persigam-no até sua morte.
Clitemnestra fala com as Fúrias com desprezo para mostrar que Orestes é realmente
culpado pelo seu assassinato, devendo pagar por ele, sendo que quem deve procurá-lo para
punir são elas, as Fúrias, seres asquerosos e responsáveis pela punição de ações violentas.
Estas palavras de perseguição são usadas para excitar a sua ira.
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Os seres sombrios que devem ir atrás de Orestes, são despertados com insultos,
tornando a sua raiva cada vez maior. Ao ser acordada pelas exclamações do espectro, uma
das Fúrias sente-se afrontada. Pronuncia palavras que remetem a lamentos provocados em
instantes de cólera no seu despertar.
OUTRA FÚRIA
Do fundo dos meus sonhos uma afronta,
brutal como aguilhão que algum cocheiro
empunha firmemente, vem ferir-me
o coração e até minhas entranhas.
Sinto passar por mim um calafrio
mortificante, similar ao látego
do mais impiedoso dos verdugos.
210
As palavras: “afronta brutal”, “aguilhão”, “impunha firmemente”, “ferir-me o
coração e até minhas entranhas”, “calafrio mortificante”, “látego”, “do mais impiedoso dos
verdugos” mostra todo o desprezo que as Fúrias sofriam, até na hora de acordá-las usam-se
palavras agressivas, e elas respondiam com a mesma hostilidade. Por serem tratadas como
seres maléficos, queriam fazer com que as pessoas que fossem perseguidas e julgadas por
elas, aprendessem a ser submissas pela angústia e pelas torturas. Acreditavam que só com o
sofrimento o condenado as torturas poderia pagar pelos seus atos desprezíveis. Como
desde o princípio, na hora do despertar, esses seres nocivos são mal tratados, a intenção
deles é continuar com esse maltrato, para punir Orestes. Os seres impiedosos, não
conhecem outra forma de julgar alguém que cometeu um assassinato, mesmo sem saber se
esta criatura é inocente ou culpada.
O Coro demonstra sua repulsa no momento em que sente-se afrontado por Apolo,
pois ele protege Orestes mesmo sabendo que é um matricida que deveria ser posse das
Fúrias. Essas, então, prenunciam sua perseguição desenfreada pelo que deveria ser delas de
direito: o castigo de Orestes.
OUTRA FÚRIA
Agindo assim ele ganhou meu ódio
sem conseguir salvar seu protegido.
Ainda que se oculte sob a terra
Orestes não se livrará de nós.
Culpado de assassínio, onde ele for
encontrará por certo um vingador
disposto a golpeá-lo na cabeça.
230
As palavras “ódio”, “sem salvar seu protegido”, “não se livrará”, “culpado”,
“assassínio”, “vingador”, “golpeá-lo na cabeça” fazem alusão a Apolo, ao Orestes e o
combate que as Erínies acabaram de anunciar. Notamos aqui, e em quase toda a peça, um
forte sufocamento que Orestes estava sofrendo. Ele fala, mas não é escutado, pois as
Fúrias não querem ouvir o que ele tem a dizer, a única intenção delas é torturá-lo e puni-lo.
Elas são como o nosso pior pesadelo, aquele em que não conseguimos acordar.
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Antes de sair de seu templo, Apolo ameaça as Fúrias ordenando que elas deixem o
local, pois não merecem estar em um lugar tão claro e tão purificado como seu templo.
Elas devem estar em um ambiente sombrio e onde as torturas são executadas. .
APOLO
(Saindo de seu templo com um arco nas mãos, pronto para ser
usado.)
(...)
vos forçarão a vomitar entre estertores
a negra espuma que deveis a tantos homens
e a expelir sangue que sugastes deles!
Esta casa, de fato, não é adequada
à vossa companhia. Não! Vosso lugar
é lá onde há sentenças de degolamento
e olhos a ser arrancados, ou então
onde gargantas são abertas, ou ainda
onde, para extinguir toda a virilidade
meninos são castrados, onde se mutila,
onde seres humanos morrem lapidados,
onde vítimas empaladas, gemebundas,
esvaem-se numa agonia interminável!
Ouvistes, monstros odiados pelos deuses,
A relação de vossas festas proferidas?
E vosso aspecto é condizente com tal gosto!
Deveríeis viver em antros de leões
Sorvedores de sangue, em vez de poluir
Os muitos visitantes do tempo profético!
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250
255
Essa fala é uma das mais violentas da tragédia, porque o conjunto imagístico está
relacionado à ações/circunstâncias repugnantes, tais como “vomitar”, “negra espuma que
deveis a tantos homens”, “expelir sangue” “sentenças de degolamento”, “olhos a ser
arrancados”, “gargantas são abertas”, “meninos são castrados”, “mutila”, “seres humanos
morem lapidados”, “vítimas empaladas”, “gemebundas”, “agonia interminável”, “monstros
odiados pelos deuses”, “antros de leões”, “sorvedores de sangue”. Quando lemos esses
versos podemos sentir o marasmo que é transmitido pelas Fúrias, experimentamos uma
sensação de martírio e de estar entre ações que nos causam repulsas. Percebemos a aflição
de um ser perseguido por elas, com suas garras presas em sua pele, sem ele conseguir
respirar e pedir proteção.
Percebemos ainda que Apolo é o adverso das Fúrias, por isso notamos que
enquanto ele quer defender Orestes, elas querem culpá-lo. Segundo Saint-Victor (p. 324326) “Apolo é o inimigo nato das Erínias, esse Deus representa com relação a elas o antagonismo da luz
contra as trevas, da harmonia contra a discórdia, do perdão contra o rancor.” Daí o ódio recíproco
entre Apolo e as Erínies, por isso ele não permite a presença delas em seu templo. 27 E as
Sobre essa relação entre Apolo e as Fúrias, o tradutor Jaa Torrano escreve: “As palavras de Apolo
descrevem as Erínies como a alteridade necessariamente excluída. Sob todos os aspectos, elas são vistas como
o outro de Apolo, o seu próprio não-ser e privação de ser. Contra-imagens de Apolo, as fúrias são vistas
vencidas pelo sono, abomináveis anciãs, vetustas virgens, a quem não se une nem Deus, nem homem, nem
fera jamais. Decrepitude e virgindade nesse contexto são imagens do não-ser e da privação de ser. As imagens
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Fúrias quando descobrem que Apolo é o protetor de Orestes, tem mais cede de vingança
pelo assassino.
O diálogo brando das Eumênides
Em contraste a essas palavras impetuosas, ao final da tragédia, encontramos a fala
de Atena, muito coerente e cheia de benfeitorias. Mostrando-nos o oposto das falas das
Fúrias. Com a decisão de absolver Orestes, a deusa dialoga com as Erínies para entronizálas. A partir daí, as Erínies mudam seu discurso e passam a usar termos cada vez mais
límpidos e mais benévolos, pois agora elas praticam o bem e a justiça.
CORO
Nós, deusas muito antigas, não queremos
ter esta sorte e residir aqui
como seres impuros e malditos!
Não! Todas nós estamos respirando
a mais intensa cólera e vingança!
Ah! Terra e céu! Ah! Quanto sofrimento
invade agora nossos corações!
Ouve-nos, Noite! Ouve-nos, nossa mãe!
Deuses maliciosos e perversos
despojam-nos de nossas honrarias,
nunca negadas e hoje suprimidas!
(...)
1110
1115
ATENA
Aquelas que trazem vitória sem tristeza.
Que soprem sobre essa cidade brisas calmas
vindas da terra, do profundo mar, do céu,
sob os raios propícios do brilhante sol!
Que o solo rico e os rebanhos nunca deixem
de dar prosperidade ao povo ateniense!
Que a semente dos homens seja protegida!
Que os descuidosos da veneração dos deuses
sejam ceifados sem nenhuma piedade,
pois como um jardineiro sempre cuidadoso
gosto de ver os mortais justos prosperarem
como uma plantação livre de ervas daninhas.
Aí estão as bênçãos que vós nos trareis.
Quanto às líderes guerreiras cuidarei eu mesma
de que elas sempre glorifiquem a cidade
proporcionando-lhe vitórias de seus homens.
1195
1200
1205
Percebemos em princípio que quando as Erínies estão renunciando seu passado de
penas e condenações, ainda utilizam um vocabulário com uma feição violenta, como “seres
impuros e malditos”, “intensa cólera e vingança”, “sofrimento”, “noite”, “maliciosos e
se sobrepõem, reiterando e ampliando os traços que caracterizam as Erínies como alteridade e exclusão: o
nascimento de males, a habitação das malignas trevas e do Tártaro subterrâneo, o objeto do ódio dos homens
e dos Deuses Olímpicos” (p. 21).
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perversos”. Palavras que continuam referindo-se a todo passado de perseguição que elas
exerceram. Essa linguagem nos revela que elas vieram das trevas para perseguir Orestes e
estão pagando por essa caça com muita dor e sofrimento.
Na fala de Atena, o conjunto de palavras nos remete a termos suaves, dignas da
mudança de atitude e comportamento: “vitórias sem tristeza”, “brisas calmas”, “raios
propícios do brilhante sol”, “solo rico e rebanhos”, “prosperidade”, “semente dos
homens”, “veneração dos deuses”, “piedade”, “jardineiro sempre cuidadoso”, “mortais
justos”, “plantação livre de ervas daninhas”, “bênçãos”, “líderes guerreiras”, “glorifiquem
as cidades” e “vitórias de seus homens”. Esses vocábulos começam a caracterizar as novas
Erínies que estão surgindo, seres cheios de virtudes e qualidade moral. As Eumênides não
julgarão nenhum ser com a sede de vingança das Fúrias, farão com que esses seres sejam
julgados com justiça e pelos próprios atenienses.
Atena confia nas Erínies e acredita também que elas possam ser absolvidas pelo mal
já causado, e tenham a capacidade de se tornar seres melhores, convertendo-as em
Eumênides, elas ao invés de perseguir e punir as pessoas, a partir de agora, irão anunciar e
transmitir o bem. A fala desses seres virtuosos vai se tornando cada vez mais doce e mais
suave, fazendo com que as criaturas que as cercam se tornem cada vez melhores e mais
benéficos.
Considerações finais
O que ainda é possível ressaltar e reafirmar, nesta peça de Ésquilo, é que a diferença
existente entre o discurso das Fúrias e o discurso das Eumênides, além de tornar o campo
imagístico muito farto, nos provoca e nos coloca cada vez mais dentro da história. Com as
falas de cada personagem, conseguimos ver suas características e o como cada uma delas
julga os outros seres. Conseguimos sentir o sufocamento de Orestes quando está sendo
perseguido, a sede de vingança das Fúrias partindo atrás do matricida, a inimizade que
Apolo tem com as Erínies, a tranqüilidade que Atena demonstra para proceder ao
julgamento e a serenidade das Fúrias quando se transformam em Eumênides.
Referências
ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides, tradução do grego, introdução e notas;
Mario da Gama Kury, Rio de Janeiro : J. Zahar,1996.
SAINT-VICTOR, Paul de. As Duas Máscaras. A cultura da Grécia em seu teatro. São Paulo:
Editora Gemape, 2003.
TORRANO, JAA. Estudo introdutório as Eumênides. In: ESQUILO, Eumênides. São Paulo:
Iluminuras FAPESP, 2004.
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A FIDELIDADE DA TRADUÇÃO
Carina de Cássia Silva
Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa)
Universidade Paulista - UNIP.
Larissa dos Santos Marques
Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa)
Universidade Paulista - UNIP
Leonardo Moser Trevisan
Licenciado em Letras (Língua Portuguesa e Língua Inglesa)
Universidade Paulista - UNIP
Resumo: Este texto apresenta uma reflexão a respeito do tipo de relação que se estabelece
entre culturas e línguas diferentes quando o texto traduzido é o veículo desse intercâmbio.
Nossa proposta é descrever e discutir o conceito de fidelidade no panorama dos Estudos
da Tradução e investigar a possibilidade de uma fidelidade inerente em textos traduzidos.
Além disso, queremos analisar as possíveis abordagens e perspectivas para visitar a
definição deste conteúdo dentro de sua aplicabilidade.
Palavras-chave: tradução, fidelidade, autoria.
Abstract: This paper present a reflexion about the kind of relation established between
different cultures and languages that are confronted when a text is translated into another
language. Our propose is to describe and discuss the concept of fidelity in the course of the
Translation Studies. We are researching on the possibility of a inherent fidelity into
translated texts. Furthermore, it is our aim to analyse the possible approaches and
perspectives for a redefinition of this concept and of its applicability.
Keywords: translation, fidelity, authorship.
O verbo traduzir, de acordo com a etimologia, é originado do latim traducere, que
significa “fazer passar de um lado para o outro”. Podemos dizer que, no contexto que nos
envolve, traduzir tornou-se uma forma de passar uma língua para outra. Alguns podem
pensar, à luz desta definição, que todas as palavras inclusas no vocabulário de uma
determinada língua, possuem um representante lexical equivalente no acervo vocabular de
outro idioma, que exprima a mesma idéia. Mas, como sabemos, toda língua funciona como
um código, e o conjunto de signos de uma língua constitui o seu léxico com regras que
regem sua gramática, assim, a tradução de texto ora pode ser trabalhada com seu foco sob a
sintaxe, ora com a morfologia, ora com o léxico.
Algumas diferentes linhas de pesquisa que surgiram na área da tradução nas últimas
décadas, visando relacionar as teorias da tradução e suas hipóteses com uma indagação
teórica na qual é abordada através da lingüística e da literatura.
Traçaremos uma breve pesquisa destas principais teorias e seus pesquisadores,
tendo por base a leitura que Cristina Carneiro Rodrigues (1999) privilegiou no trabalho
“Tradução e diferença” (1999) no qual visa a contribuição que cada um destes teóricos
trouxe para o âmbito dos estudos da tradução. A primeira proposta que vamos apresentar
conceitua-se como Teoria Lingüística da Tradução, na qual destacam-se os seguintes teóricos:
Catford (1965) e Nida (1964).
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A teoria proposta por Catford (apud RODRIGUES, 1999) implica em considerar a
tradução como uma atividade mecânica, de substituição de material textual, deixando de
lado o contexto situacional dos textos, ou seja, a teoria se prende às construções
descontextualizadas, com traduções hipotéticas e idealizadas. A teoria de Catford é falha
neste aspecto devido à impossibilidade de buscar correspondentes lingüísticos idênticos em
idiomas distintos, principalmente quando o contexto deve se manter invariável. Como cita
Rodrigues (1999, p. 45) “(...) a tradução nada tem de mecânico, ou seja, que os tradutores não aplicam
regras predeterminadas para a seleção dos itens que vão compor seus textos (...)”. Com isso, fica
duvidosa a possibilidade de elaborar um texto que consiga seguir uma regra de equivalência
como a teoria citada tenta estabelecer.
A partir das mesmas perspectivas de Catford pela teoria lingüística da tradução, as
idéias de Eugene Nida (1964), o qual propôs um trabalho voltado para a “equivalência
dinâmica”, ou seja, trata-se da reverbalização do texto original como o faria o leitor original.
Sua teoria também prevê agir como forma instrumental para a análise e solução de
problemas da tradução. O objetivo de Nida é descrever o processo de transferência de uma
mensagem de uma língua para a outra, pois ele defende a idéia de que a língua é “um
mecanismo dinâmico capaz de gerar uma série infinita de enunciados diversos” (apud BARBOSA,
1990).
De acordo com os conceitos de Nida (apud RODRIGUES, 1999) acreditamos que
para o autor a tradução deveria ter um vínculo de identidade com o original. Gostaríamos
de nos posicionar em relação à idéia, concordando de fato com a aproximação entre
tradução e original, porém, refletindo que todo original depende do tradutor para a sua
sobrevivência, logo, a tradução não ocorre somente em uma operação lingüística. Desta
forma apoiamos a afirmação de Rodrigues referente a Nida:
Com essas palavras, o autor mostra que sua concepção de
processo de tradução não é idealizada a ponto de supor etapas
estanques e ordenadas. Ainda assim, o modelo teórico é tripartite
e pressupõe que o tradutor proceda a uma operação lingüística
para atingir os significados de um texto e para transpô-los para
outra língua.
Apesar de não explicitado, parece que Nida pensa que seria na
etapa de transferência que o tradutor escolheria a ‘orientação
básica’ para a tradução. RODRIGUES (1999, p.74).
Para tentar dar conta de questões ainda não estudadas pela teoria lingüística da
tradução, surge uma nova vertente, ainda que com princípios tradicionais, que irá focalizar
suas pesquisas relacionando-as com as concepções de linguagem e leitura. Esta teoria se
apóia na descrição de traduções literárias, consistindo na forma de pensamento tradicional
da tradução. Dois de seus representantes são Gideon Toury (1981) e André Lefevere
(1992), ambos buscam delimitar o que é e o que deixa de ser tradução, isto é, conforme
afirma Rodrigues (1999, p.159) a tradução que é “(...) do poder exercido por aqueles que
determinam deste a escolha do que vai ser traduzido até o direcionamento de sua produção”. Os trabalhos
dos autores mencionados estabelecem relação com os fatores culturais e literários.
Apesar de fazer parte de uma nova perspectiva a respeito da tradução. Lefevere e
Toury apontam e retomam algumas categorias já estabelecidas na teoria lingüística. Isto
quer dizer que, apesar de aparente diversidade de concepções, ambas as teorias (lingüística
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e literária) se situam em um plano de estudo similar, ou seja, buscam a evidência através do
pressuposto de que todos os textos analisados por seus teóricos fazem parte de uma fonte
a qual surge um significado intencional que provoca efeito de poder ser reconhecido e
recuperado quando submetido a uma tradução.
Surge uma nova proposta que possui como objetivo desafiar a igualdade de valores
textuais entre dois idiomas, ou seja, trabalhar com estruturas que são consideradas
indeterminadas em uma tradução. Os representantes desta linha de pesquisa conforme
Rodrigues (1999) são Quine (1980), o qual acredita que o significado é decorrente de uma
prática social; Fish (1980), defensor da idéia de contextualização e Derrida (1980), o qual
apóia o pensamento da desconstrução textual que serve para descobrir partes do texto que
estão dissimiladas e que interditam certas condutas. Esses autores esboçam suas teorias
textuais expondo a impossibilidade de uma recuperação total de valores puros quando um
texto passa por um processo tradutório. A visão deles parte de uma concepção “pós
estruturalista” a qual enfatiza a elaboração de uma tradução atribuída à constituição de
significados formados a partir de uma rede de diferenças, onde os valores se constituem
como uma função produzida pelo sujeito em consonância com convenções de uma
comunidade sociocultural.
Na medida em que tanto o texto de partida quanto a tradução se
constituem de signos convencionais e arbitrários, ambos são
produtos de leituras construídas contextual e socialmente e não
podem ser opostos, nem equivalentes, estando em relação de
suplementariedade. O pensamento pós-moderno aproxima a
tradução dos processos de produção de significados que ocorrem
em uma mesma língua e evidencia que a tradução é um caso
particular de leitura. O tradutor, como o leitor, é sujeito social
responsável pela produção de significados. Suas decisões
relacionam-se diretamente às circunstâncias em que ocorre a
leitura e às convenções das estruturas institucionais em que se
inserem os textos. Assim, a reflexão pós-moderna desvincula o
tradutor da imagem de responsável pelo transporte da carga
semântica ou pela descoberta de correspondentes de igual valor
em duas línguas e situa o tradutor no papel de uma agente
transformador responsável pela reescritura de um texto.
RODRIGUES (1999, p.221).
O movimento que ficou conhecido como “pós-estruturalista” estava
comprometido em se opor ao conceito de significado estável, trazido pelos autores
estruturalistas. Segundo nos informa Rodrigues (1999), desta forma, novas tendências de
estudos começaram a surgir, tendo como marco inicial esta ruptura dos estudos
tradutórios.
Atualmente, as vertentes no campo dos estudos da tradução nos mostram que
algumas idéias defendidas pelas teorias tradicionais são consideradas ultrapassadas no
ponto de vista dos pesquisadores que surgiram durante este percurso. Os estudos estão
sendo realizados de maneira descritiva, sugerindo então que aquela visão do tradutor
enquanto transportador de significados estáveis deixa de ser representativa nas mais
recentes discussões.
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A fidelidade deixa de ser entendida como a tentativa de reprodução do texto de
partida e passa a ser relacionada à inevitável presença do tradutor em seu trabalho. A
interferência por parte do tradutor no texto de chegada será questionada quanto à sua
interpretação, isto é, o tradutor não será excluído do processo tradutório, tornando-se
visível na tradução.
Segundo a afirmação da pesquisadora Rosemary Arrojo, em seu livro Oficina de
Tradução (2005), “é impossível resgatar integralmente as intenções e o universo de um autor, exatamente
porque essas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter
dito”. Isso quer dizer que o autor passa a ser mais um elemento que o tradutor utiliza para
construir sua interpretação coerente com o texto da língua-fonte.
O trabalho desenvolvido por Lawrence Venuti (2002), um reconhecido teórico
bastante requisitado no que se refere à autoria na tradução, partindo também do mesmo
pressuposto da visibilidade do tradutor, ou seja, sua aparição interpretativa no processo
tradutório nos apresenta em sua perspectiva a tradução enquanto um processo de
transformação. Uma transformação implica necessariamente em mudança, a partir do
momento em que o tradutor incorpora sua visão de leitura, criando deste modo uma nova
rede de significados. Assim, para Venuti, o significado é coletivo, sendo a subjetividade
construída e determinada por elementos sociais, políticos, históricos e culturais.
Conforme sugere Venuti (2002), não existe uma fidelidade absoluta, principalmente
na tradução literária. O tradutor deve realizar uma seleção consciente de quais elementos
pretende recriar em sua tradução, tanto da forma quanto do conteúdo.
Destacam-se dois conceitos introduzidos por Venuti (2002) sobre a tradução: a
tradução domesticadora e a tradução estrangeirizada. O primeiro termo consiste por um grau de
invisibilidade do tradutor, isto é, o tradutor não se posiciona interpretativamente no texto,
pois tende a priorizar as intenções do autor adaptando-as para a cultura local e
desconsiderando pontos que venham a ser estranhos ao seu leitor. Já, o segundo conceito é
denominado de tradução estrangeirizadora. Sua estratégia é incorporar valores textuais que
estão à margem da cultura-meta, preservando-se os termos do original e colocando em
prática uma espécie de manutenção lingüística das diferenças culturais.
Contudo, o autor acredita “que a tradução é estigmatizada como uma forma de escrita,
desencorajada pela lei dos direitos autorais, depreciada pela academia, explorada pelas editoras e empresas,
organizações governamentais e religiosas.” VENUTI (2002, p.10).
Assim, Venuti (opcit) redimensiona estes aspectos para o conceito de
consumibilidade, que se refere à imposição do mercado exigida por revisores, críticos,
editoras e leitores. Resumindo, segundo Venuti (opcit) o tradutor tem como limite a
aceitação social do seu trabalho.
Considerações finais
Todas as considerações feitas até o presente momento nos mostram diferentes
pontos de vista que giram em torno de uma mesma finalidade, a procura pela fidelidade.
Com base nos estudos realizados pelos teóricos citados, e as informações que esta leitura
nos proporcionou podemos concluir que, um texto traduzido não pode estabelecer uma
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relação somente de dependência do original, da mesma forma, que não pode estabelecer
uma oposição entre ele.
Escolhemos o pesquisador Lawrence Venuti (2002), porque ele faz frente a uma
das questões mais discutidas e polêmicas na teoria da tradução nos dias de hoje. E por
concordarmos com sua linha de pensamento, que acredita que um texto fiel não está
relacionado com o maior número de equivalentes encontrados entre os enunciados, ou seja,
uma tradução realizada com base quantitativa. Ele afirma que os erros de tradução podem
ser corrigidos, entretanto esses erros não diminuem o poder de comunicação do texto,
mostra que uma tradução pura é algo utópico. E também trata da visibilidade do tradutor,
que para os estruturalistas era considerado apenas como um “transportador de significados
entre línguas” o coloca como autor de seu texto, uma autoridade.
Tratando ainda da visibilidade do tradutor é inevitável não discutir sobre autoria,
algo bastante polêmico, também abordado por Venuti (2002), há uma subordinação dos
direitos autorais do tradutor em relação aos do autor, e é garantido por lei que o autor
diminua a parte do tradutor no que equivale aos lucros da tradução, o que cria um
desinteresse dos tradutores em desenvolver melhores projetos, por haver pouco
reconhecimento.
A fidelidade de uma tradução também pode ser comparada por seu contexto. Sem
dúvida o melhor texto traduzido será aquele que conseguir estabelecer uma relação mútua
entra a língua-fonte e a língua-meta, e este processo tornou-se um elemento primordial no
ato tradutório, principalmente para os dias atuais. Se levarmos em consideração os
princípios apresentados pelas teorias até agora vistas, poderíamos concluir que, o melhor
tradutor ou a melhor tradução será aquela que consegue realizar sua obra com o mínimo de
perdas possível, seja quanto à forma, seja quanto o conteúdo; e desta maneira veríamos que
quanto menos perdas há na tradução, mais ela tende a ganhar.
É claro que todos estes fatores são bastante relativos já que a variedade de textos a
serem traduzidos é muito grande. Portanto, quando nos depararmos com textos técnicocientíficos, por exemplo, o que mais irá interessar ao tradutor é o conteúdo. Assim este tipo
de tradução fará o possível para passar de uma língua para a outra, o conteúdo que lhe tem
com interesse necessário extraído do original. Por outro lado, se o texto original for da
classe dos textos literários, que são considerados textos-artísticos, na qual a forma tem um
valor primordial, a tradução terá que preservar os elementos formais do original a fim de
manter essa aparência preponderante também no texto convertido.
À guisa de conclusão, este presente estudo posiciona-se como uma tentativa de
buscar o papel consciente do tradutor neste processo de catalisação, agente e de
intermediação cultural. A consciência é o primeiro passo para chegarmos a uma ética
diferenciada como propõe Venuti (2002). Na verdade, somente por meio desta
conscientização é que as traduções estarão livres da marginalização e banalização que este
ofício enfrenta. Cabe aos seus profissionais, a cunho do poder autoral que exercem, e sob a
responsabilidade que isto implica, organizar traduções mais honestas a fim de que sejam
fiéis não só ao texto original, mas fiel a si próprio.
Referências bibliográficas
RODRIGUES, C. C. Tradução e diferença. 1. ed. São Paulo: UNESP, 1999. 237 p.
VENUTI, L. Escândalos da tradução: por uma ética da diferença. 1. ed. Bauru, SP: EDUSC, 2002. 396 p.
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OS DISCÍPULOS E O COMEDIÓGRAFO: DIÁLOGO ENTRE O BEM E O
MAL DAS IDÉIAS SOCRÁTICAS
Eliane Santana Dias Debus
Profª Drª Letras
PPG Ciências da Linguagem
UNISUL - SC
RESUMO
A figura e as idéias de Sócrates geraram em seu tempo e há seu tempo discursos favoráveis
e contrários aos seus pensamentos. Este texto levanta estes discursos pela escrita dos
discípulos Platão e Xenofonte que exaltam as qualidades e os méritos do mestre e o
discurso do comediógrafo Aristófanes que, na peça As Nuvens, combate satiricamente às
idéias de Sócrates, ridicularizando suas ações e seus pensamentos. A tentativa desse texto é
confrontar tais discursos que ora colocam em relevância, ora ridicularizam Sócrates.
Palavras-chave: Sócrates, Aristófanes, As Nuvens.
ABSTRACT
The figure and the ideas of Socrates have been generating discourses for and against his
thoughts. This article discusses these discourses through the writings of his disciples Plato
and Xenofonte who exalt the qualities and virtues of the master as well as the discourse of
the comediographer Aristophanes who, in the play “As Nuvens”, satirically fights
Socrates`s ideas, ridiculing his actions and thoughts. This text attempts to compare these
discourses that on certain occasions ensure its relevance, and on others, ridicule Socrates.
Key words: Socrates, Aristophanes, As Nuvens
Mas vede o que nele é digno de toda admiração: é que Sócrates
não se parece com nenhum outro homem dos tempos passados
ou dos tempos atuais.
Platão
Ai, que falta de juízo! Como estava louco quando quis jogar
fora os deuses por causa de Sócrates!
Aristófanes
A figura e as idéias de Sócrates geraram em seu tempo e há seu tempo discursos
favoráveis e contrários aos seus pensamentos. A seu favor, a voz dos discípulos: Platão,
que, partindo da tarefa deixada pelo mestre, reinventou “a prática socrática do diálogo na
palavra escrita”1, bem como os registros de outro discípulo, Xenofonte; ambos exaltam as
qualidades e os méritos do mestre. Contra, a voz do comediógrafo Aristófanes que,
combate satiricamente às idéias de Sócrates, ridicularizando suas ações e seus pensamentos.
A tentativa desse texto é confrontar tais discursos que ora colocam em relevância, ora
ridicularizam Sócrates.
AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. Discurso utópico e ação política. In: Classica. Belo Horizonte: 3:
45-66, 1990. p.57.
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A força criadora de Sócrates era a palavra, e era pela oralidade que se dirigia aos
ouvintes, introduzindo na forma de conversar com o interlocutor a pergunta e a resposta,
desenvolvendo assim seu método docente por meio do diálogo, pois ele “considerava o
diálogo a forma primitiva do pensamento filosófico e o único caminho para chegarmos a
nos entender com os outros”1. Não deixando nada por escrito de seu próprio punho,
coube aos seus discípulos cristalizarem a imagem socrática por meio de duas formas
literárias: o diálogo e as memórias. Nas duas narrativas o Banquete e A República os
participantes dos diálogos são em sua maioria sujeitos historicamente situados que trazem
para o relato uma aproximação com a realidade. Sócrates é a figura principal da trama
tecida pelo discípulo.
Aristófanes, comediógrafo ateniense, introduz em suas comédias fatos e indivíduos
historicamente situados, expondo ao ridículo ações que podem ser comparadas com o
objeto imitado, levando desta forma a platéia ao riso. Na comédia As nuvens2, encenada no
festival dionisíaco em março de 423 a.C3, põe em discussão dois pontos essenciais das
acusações feitas a Sócrates, anos mais tarde, por Meleto, que levam o pensador à morte:
ensinar aos jovens a falar com artimanhas tais que resultam no prevalecimento da razão
mais fraca e a pesquisa de fenômenos subterrâneos e celestes. O primeiro resulta na
corrupção da juventude, e o segundo, na descrença dos deuses tradicionais, criando novas
divindades.
O comediógrafo coloca em cena no prólogo o velho Estrepsíades, que tenta
persuadir o filho, Fidípides, a freqüentar a casa de Sócrates com o objetivo de aprender “a
vencer com discursos nas causas justas e injustas”. Acreditava o pai que desta forma
poderia se safar das dívidas acumuladas pelo vício do filho. Não conseguindo ter êxito em
sua tarefa, Estrepsíades se dirige até Sócrates para ser ele próprio discípulo do pensador.
No prólogo somos expostos à ridicularização da pobreza de Sócrates, que habita
num “casebre” denominado pelo personagem Estrepsíades de “pensatório”; bem como de
seu aspecto físico e de seus discípulos qualificados por Fidípides de “charlatões”, “pálidos”
“funestos” e “descalços”. Aparece, também, a referência ao possível pagamento pelos
ensinamentos a serem recebidos.
Platão, no Banquete, relata o hábito de Sócrates andar descalço, calçando sandálias
somente em ocasiões especiais4 . O mesmo discípulo em Defesa de Sócrates coloca o mestre
provocando seus acusadores de incapazes “de exibir testemunha de que alguma vez tenha
recebido ou pedido remuneração. Porque da verdade de minhas alegações exibo, suponho,
uma prova cabal: minha pobreza”5. Xenofonte, por sua vez, observa que o mestre
“admirava-se de que um homem que fizesse profissão de ensinar a virtude exigisse
remuneração”6. A referência à palidez dos discípulos era provocada pela reclusão, pois eles
JAEGER, Werner. Paidéia - A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p. 348.
2 ARISTÓFANES. As nuvens. Trad. Gilda Maria Reale Starzynski. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
3 FINLEY, M.I. Aspectos da antiguidade. Trad. Marcelo Brandão Cépolla. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
4 PLATÃO. Banquete. In: Diálogos: Mênon-Bbanquete-Fedro. Trad. Jorge Paleikat. São Paulo: Ediouro,s/d.
5 PLATÃO. Defesa de Sócrates. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1972. p.22.
6 XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Trad. Líbero Rangel de Andrade. São Paulo: Abril
Cultural, 1972. p.43.
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exercitavam mais o espírito do que o corpo, abandonando o culto ao físico e os exercícios
de guerra.
Estrepsíades, ao ser introduzido nas dependências do “pensatório”, se surpreende
com todas as ferramentas de pesquisas ali expostas. Através de seu personagem, o
comediógrafo zomba e ridiculariza os experimentos sofísticos, utilizando-se de pulgas,
numa provável piada ao preceito de Protágoras - “o homem é a medida de todas as coisas”
-, e, também, mostrando o uso de outros insetos para explicar teorias da física. Os poetas
cômicos foram os primeiros a criticar Sócrates, acusando-o de pesquisar as coisas
subterrâneas e celestes - geografia, geologia, geometria, gastronomia... Aristófanes critica e
acha insignificantes as pesquisas profundas.
Na comédia o discípulo narra ao velho Estrepsíades a capacidade de Sócrates em
resolver os problemas, até os referentes à alimentação quando nada havia para cear:
“Espargiu sobre a mesa uma cinza fina, dobrou o espeto e, depois, usando-o como
compasso... surripiou o manto da palestra”. Alcibíades, no elogio a Sócrates7 , compara-o a
um flautista que hipnotiza os ouvintes com a encantadora melodia em que a sedução
hipnótica dá-se por meio das palavras. A passagem do discípulo na comédia, referida acima,
pode ser aqui similar: Sócrates teria distraído a fome de seus discípulos através do discurso.
N’As nuvens Sócrates aparece em cena no alto “dependurado num cesto”, acima de
todos, o que lhe dá uma aparência de ente superior. O pensador é apresentado negando
todos os deuses venerados pelos atenienses, e introduzindo novas divindades na cabeça de
seus alunos.
Aristófanes mostra o questionamento dos deuses, principalmente Zeus, deus
intimamente ligado com os fenômenos da natureza como as chuvas, raios e trovões - Zeus
era invocado nas secas como reunidor de nuvens e protetor das chuvas. Com o preceito
sofístico de procurar sempre vencer com as palavras, o autor apresenta Sócrates
desmistificando o papel de Zeus, mostrando razões físicas para os fenômenos naturais. Isso
certamente causou enorme impacto na educação ateniense, considerando a tradição
religiosa e sua afinidade com a educação dos jovens. Aristófanes preocupa-se, ainda, com a
proliferação do pensamento racional. Tornava-se mais forte o poder da “língua” que o
poder dos deuses. E, segundo o comediógrafo, os deuses dos sofistas variam sempre,
dependendo das descobertas que vão acontecendo.
Aristófanes confirma que os sofistas possuíam um grande poder de persuasão, e
nos mostra o cidadão comum completamente transformado, “jurando pelo vapor”,
recusando as divindades tradicionais. Mas notamos que com a arte de persuadir, os sofistas
ensinavam a arte de falar. É o choque da velha com a nova educação: a nova educação
atacava os problemas mais profundos da moralidade e do estado. Os sofistas levantavam
uma infinidade de problemas novos, que aos poucos passavam a fazer parte da vida dos
atenienses. Contra tudo isso, havia uma tradição educacional que se baseava no
profissionalismo - os filhos herdavam dos pais o ofício -, no culto aos deuses e mitos. Os
jovens iam à escola para aprender comportamentos “corretos”, altamente disciplinados;
uma educação aristocrática que ainda conservava uma cultura de guerreiros. Pode-se dizer,
também, que era o choque da força espiritual contra a racional. Mas, a julgar pelo texto de
7
PLATÃO. Banquete. op.cit.
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Aristófanes, a racionalidade não tem consistência para o autor, que apresenta um quadro
cômico da moderna educação.
Em seu discurso no Banquete, o comediógrafo alerta para a necessidade do culto e a
obediência aos deuses, recaindo sobre os infratores a ira dos deuses que lançam sobre os
homens seus castigos.
Aristófanes satiriza a metodologia de Sócrates ao iniciar seus diálogos com
exemplos cotidianos, para nos eu decorrer introduzir considerações mais elevadas (a seiva
do agrião, a gamela, o gamelão). Estrepsíades deturpa os exemplos utilizados por Sócrates.
No Banquete, Alcibíades constata esta prática metodológica, mas afirma que a
incompreensão só virá dos incultos, dos não-iniciados:
Fala em burros de carga, em ferreiros, em sapateiros e em curtidores, e assim dá a
impressão de estar sempre a repetir as mesmas coisas, com as mesmas palavras, e a tal
ponto, que desses discursos se rirão os homens incultos e levianos8 .
O autor d’As nuvens deixa transparecer que as novas idéias já eram de conhecimento
público, dos cidadãos atenienses. Mas o princípio retórico de Sócrates é mal interpretado,
cujas teorias afirmam que há sempre duas teses contraditórias: uma fraca e outra forte, e
não uma justa e outra injusta. Sócrates buscava, sim, a clareza do raciocínio, a
argumentação lógica para vencer o rival. No livro I d’A República, Trasíamaco afirma ser a
justiça “a conveniência do mais forte”; no entanto, Sócrates se utiliza da argumentação do
debatedor para refutá-lo, afirmando que não crê “que a injustiça seja mais vantajosa que a
justiça”9 .
O comediógrafo direciona suas críticas a Sócrates talvez por considerá-lo o
representante de toda a classe dos pensadores, e por isso coloca-o como um perigoso
sofista. Contudo, sabe-se que Sócrates não representa a classe sofística, muito menos a
representarão seus discípulos. A casa particular, denominada no texto de “pensatório”, a
remuneração pelos ensinamentos prestados, a especificidade de ensinar discursos
convincentes e outras críticas desenvolvidas por Aristófanes pertencem ao palco dos
sofistas. Mas todas essas situações levantadas pelo comediógrafo são completamente
desmentidas por seus discípulos.
Ao julgarmos Sócrates e os ideais da nova educação ateniense pelos socráticos,
deparamo-nos com uma enorme contradição em relação à comédia de Aristófanes. Platão,
em Defesa de Sócrates, apresenta-o desmentindo todas estas afirmações. Seu palco era a praça
pública, as bancas e nunca se considerou mestre de ninguém, mas sempre esteve à
disposição dos moços e dos velhos, dos ricos e dos pobres que quisessem ouvi-lo.
No desfecho da comédia vence o poder da palavra, mas o autor não deixa por
menos: retrata o estrago que os condutores da nova educação conseguiram provocar no
seio da família ateniense. Fidípides, exercendo a arte retórica, castiga o pai com o aval do
discurso justo/injusto. O velho, por sua vez, castiga Sócrates, incendiando o “pensatório”;
Sócrates e seus discípulos morrem sufocados e queimados.
Idem, p.126.
PLATÃO. A república. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 6.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1990. p.34.
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Segundo Werner Jaeger: “A dialética socrática era uma planta indígena peculiar, a
antítese mais completa do método educativo dos sofistas, que tinha aparecido
simultaneamente com aquela”10. Podemos deduzir, então, que a simultaneidade dessas duas
formas de encarar a educação levou o poeta cômico a colocá-los no mesmo plano, ou seja,
considerar Sócrates como espelho da educação difundida pelos sofistas.
O que perpassa nos discursos de ambos - discípulos e o adversário - é a admissão
de que Sócrates exercia um poder persuasivo sobre sua platéia de ouvintes; positivo, na
opinião de seus seguidores, e negativo, na opinião do comediógrafo Aristófanes.
REFERÊNCIAS
ARISTÓFANES. As nuvens. Trad. Gilda Maria Reale Starzynski. São Paulo: Abril
Cultural, 1972.
AUGUSTO, Maria das Graças de Moraes. Discurso utópico e ação política. In:
Classica. Belo Horizonte: 3:45-66, 1990.
FINLEY, M.I. Aspectos da antiguidade. Trad. Marcelo Brandão Cépolla. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
JAEGER, Werner. Paidéia - A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1989. p.348.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
_____. Banquete. In: Diálogos. São Paulo: Ediouro, s.d.
_____. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 6.ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1990
WERNER, Jaeger. Paidéia - A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira.
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Trad. Jaime Bruna. São Paulo:
Abril Cultural, 1972.
JAEGER, Werner. Paidéia - A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1989. p.363.
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A MORTE EM DOIS MOMENTOS:
JOSÉ DE ALENCAR E MÁRIO QUINTANA
Elisângela M. Sandim F. Liviz
Letras – UFG - GO
Resumo
A morte tem sido a companheira do homem, mesmo sem ele querer. A humanidade tem
convivido com a morte e mantido com ela uma relação dialética e conturbada. Ao mesmo
tempo em que se tem medo dela, também se tem fascinação por ela. Muitos têm sido os
escritos visando o tema da morte; estudos são realizados sobre ela, desde a medicina à
filosofia. Mas é na literatura que o tema da morte tem encontrado o solo fértil para sua
propagação. Autores tão diferentes, em contextos tão diversos, como José de Alencar e
Mário Quintana, são capazes de expor a idéia da morte de maneiras diferentes, mas não
menos fascinantes. Por isso nos debruçaremos sobre o tema da morte em duas obras, em
especial: Encarnação, de José de Alencar e o poema XIX do livro intitulado A rua dos
cataventos, de Mário Quintana.
Palavras-chaves: morte, Alencar, Mário Quintana.
Abstract
The death has been the man's companion, even without him to want. The humanity has
been living together with the death and maintained with her a relationship dialectics and
disturbed. At the same time in that afraid of her is been, also fascination is had by her.
Many have been the writings seeking the theme of the death; studies are accomplished on
her, from the medicine to the philosophy. But it is in the literature that the theme of the
death has been finding the fertile soil for its propagation. Such different authors, in such
several contexts, like José de Alencar and Mário Quintana, are capable to expose the idea of
the death in different ways, but no less fascinating. Therefore we will lean over on the
theme of the death in two works, especially: Encarnação, of José de Alencar and the poem
XIX of the entitled book A rua dos cataventos, of Mário Quintana.
Key-works: death, Alencar, Mário Quintana.
Desde os tempos mais remotos, em meio a povos primitivos, a morte tem exercido
fascínio e medo nos homens. A morte tem sido em toda sua existência, paradoxal,
propiciando ao homem emoções antagônicas, ela tem sido dialética. O tema da morte tem
acompanhado cada ser humano durante toda a sua existência, durante toda sua vida e, nem
por isso, nos sentimos mais tranqüilos com relação a esse assunto.
[...] a espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao
longo da vida, a única a acompanhar a morte com um ritual funerário, a
única a crer na sobrevivência ou no renascimento dos mortos.
A morte introduz entre o homem e o animal uma ruptura mais espantosa
ainda que a ferramenta, o cérebro, a linguagem. (MORIN, 1997, p. 13)
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Mas a visão em relação à morte e as maneiras como o homem tem lidado com ela,
sofreram variações durante toda a história da humanidade. Mesmo em sociedades
primitivas os mortos nunca são abandonados, há sempre uma cerimônia, um ritual, por
menor que seja. As práticas funerárias sempre foram uma constante, mesmo que sofrendo
variações culturais e temporais. E como diz Morin (1997), essa ligação com os mortos
implica em sua sobrevivência entre nós, por isso pode-se dizer que os mortos sempre
estiveram entre os vivos.
[...] De qualquer modo, o cadáver humano já então suscitou emoções
que se socializaram em práticas funerárias, e esta conservação do caráter
implica um prolongamento de vida. O não-abandono dos mortos implica
na sobrevivência deles.
Não existe praticamente nenhum grupo arcaico, por mais
“primitivo” que seja, que abandone seus mortos ou que os abandone
sem ritos. Assim, por exemplo, se os koriaks do leste siberiano lançam
seus mortos ao mar, estes são confiados ao oceano, e não abandonados.
(MORIN, 1997, p. 25)
Impossível esquecer, principalmente para os que fazem parte do meio literário, a
morte de Heitor na Ilíada, e em como seu pai suplicou a Aquiles que lhe entregasse o corpo
do filho para que fossem feitos todos os ritos funerários Pois entre os gregos esses ritos
eram de extrema importância para que a alma do morto pudesse passar para o outro
mundo, o mundo dos mortos.
Em todas as áreas do conhecimento humano, seja na medicina, na filosofia, na
psicologia, na sociologia, na antropologia; a morte tem funcionado como um ímã que atrai
o homem e desperta nele não só o medo, mas uma grande curiosidade. E na literatura não
poderia ser diferente, muito pelo contrário, é no campo fértil da literatura que a morte
brota e floresce em grande escala. É ali que ela nasce, vive e resplandece em toda a sua
magnitude. Nesse meio, em todos os tempos, ela foi manuseada com fascínio e horror,
avidez e cuidado, prazer e medo; desde Homero até os autores contemporâneos.
E é justamente essa morte, vista sob a ótica literária, que nos interessa nesse
momento. É nosso intento nos debruçarmos sobre dois autores de períodos bem distintos
da nossa literatura, Romantismo e Modernismo. Autores consagrados e rememorados, que
habitam nosso universo literário, são eles: José de Alencar e Mário Quintana. Com o nosso
saudoso José de Alencar, nos deteremos em sua última obra, Encarnação. E em nosso, não
menos saudoso, Mário Quintana, olharemos com particular interesse um poema que está
em seu livro intitulado A rua dos cataventos; trata-se do poema XIX, dedicado a Moysés
Vellinho. Buscaremos ver como cada um desses autores abordou o tema da morte, nessas
obras de uma maneira especial.
Como já foi exposto, o tema da morte sempre serviu de base para estudos
realizados em muitas áreas do conhecimento humano. Vários são os autores que tomaram
a morte como material de estudo, e escreverem sobre ela. Entre eles há grandes nomes
como Heidegger, Sartre, Nietzsche, Kierkegaard, Freud, entre outros, e se fôssemos citar
todos teríamos que fazer um outro trabalho à parte.
Temos um grande autor que dedicou-se ao estudo da morte e ele nos servirá de
auxílio neste trabalho, trata-se de Philippe Áries. Em seu livro História da Morte no Ocidente, o
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autor traça um histórico sobre como o homem ocidental tem lidado com morte no
decorrer dos séculos. Para ele, primeiramente, a morte era domada, o homem sentia e sabia
que iria morrer. O homem passava por todo um ritual de pressentimentos e sentimentos
até o seu último suspiro. A presença de familiares, os pedidos de perdão, a reconciliação do
moribundo com Deus e com os que ficaram vivos, a extrema-unção e, por último, o
silêncio, era o ritual de quem estava prestes a morrer. Tudo ocorria de modo cerimonial,
mas sem drama. Não se fugia à morte, revoltava-se, mas não como recusa.
[...] a simplicidade com que os ritos da morte eram aceitos e cumpridos,
de modo cerimonial, evidentemente, mas sem caráter dramático ou
gestos de emoção excessivos.
[...] Assim se morreu durante séculos ou milênios. Em um mundo sujeito
à mudança, a atitude tradicional diante da morte aparece como uma
massa de inércia e continuidade. A antiga atitude segundo a qual a morte
é ao mesmo tempo familiar e próxima, por um lado, e atenuada e
indiferente, por outro, opõe-se acentuadamente à nossa, segundo a qual a
morte amedronta a ponto de não mais ousarmos dizer o seu nome. Por
isso chamarei aqui esta morte familiar de morte domada. Não quero dizer
com isso que anteriormente a morte tenha sido selvagem, e que tenha
deixado de sê-lo. Pelo contrário, quero dizer que hoje ela se tornou
selvagem. (ARIÈS, 2003, p. 35 e 36)
Mas apesar dessa familiaridade com a morte, nessa época os vivos conviviam
menos com os mortos, com o passar dos séculos é que os mortos foram trazidos
primeiramente para serem enterrados dentro das Igrejas, para estarem perto dos santos que
também eram enterrados lá, e nas propriedades da família; depois os cemitérios foram
criados dentro das cidades.
Apesar de sua familiaridade com a morte, os antigos temiam a
proximidade com os mortos e os mantinham à distância. Honravam suas
sepulturas – nossos conhecimentos das antigas civilizações pré-cristãs
provêm em grande parte da arqueologia funerária, dos objetos
encontrados nas tumbas. Mas um dos objetivos dos cultos funerários era
impedir que os defuntos voltassem para perturbar os vivos. (ARIÈS, 2003,
p. 36)
[...] Na Idade Média ou ainda nos séculos XVI e XVII, pouco importava
a destinação exata dos ossos, contanto que permanecessem perto dos
santos ou na igreja, perto do altar da Virgem ou do Santo Sacramento. O
corpo era confiado à Igreja. Pouco importava o que fariam com ele,
contanto que conservasse dentro de seus limites sagrados. (ARIÈS, 2003,
p. 42)
O tratamento em relação aos mortos mudou, e em relação à morte também. Como
diz Áries (2003, p. 53) “mesmo persistindo até o século XIX, a solenidade ritual da morte
no leito tomou, no fim da Idade Média, entre as classes instruídas, um caráter dramático,
uma carga de emoção que antes não possuía”. A morte que era mais socializada, porque o
homem dessa época o era, tornou-se cada vez mais individualizada. Contribuíram para isso
vários fatores e entre eles, com certeza, idéias advindas com o cristianismo, como o Juízo
Final.
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Mas segundo Áries (2003, p. 83) “o caráter exaltado e comovente do culto dos
mortos não é de origem cristão, mas sim de origem positivista; os católicos filiaram-se a ele
em seguida, tendo-o assimilado com tamanha perfeição que logo acreditaram-no nascido
entre eles”. E a industrialização e urbanização também interviram nessa mudança de
comportamento nos ritos funerários.
O certo é que uma ruptura ocorreu, e no século XX se concretizou uma grande
recusa da morte. A morte passa a ser interdita. A medicina contribuiu sobremaneira para
que isso ocorresse, pois as pessoas não morrem mais em casa, em seu leito, com os
familiares ao seu redor. Morre-se nos ambientes frios e impessoais dos hospitais.
Morre-se no hospital porque este tornou-se o local ode se presta os
cuidados que já não se pode prestar em casa. Antigamente era o asilo dos
miseráveis e dos peregrinos; primeiro tornou-se um centro médico, onde
se cura e onde se luta contra a morte. Continua tendo essa função
curativa, mas começa-se também a considerar um certo tipo de hospital
como o lugar privilegiado da morte. Morre-se no hospital porque os
médicos não conseguiram curar. (ARIÈS, 2003, p. 85)
A morte tornou-se o interdito da modernidade, os pais procuram até evitar falar
sobre ela às crianças, evitam nomeá-la e apenas dizem que o ente querido está dormindo ou
foi fazer uma longa viagem. E logo tudo é esquecido, visto que, até as cerimônias funerárias
são praticadas já nos cemitérios, que é mais um fator de impessoalidade. Isso porque na
sociedade moderna não há mais espaço para se dispensar tempo com esse “assunto”, a
busca da felicidade deve prevalecer e a morte acaba com tudo o que o homem moderno
quer alcançar.
Uma causalidade imediata aparece prontamente: a necessidade da
felicidade, o dever moral e a obrigação social de contribuir para a
felicidade coletiva, evitando toda causa de tristeza ou de aborrecimento,
mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo se estamos no fundo da
depressão. Demonstrando algum sinal de tristeza, peca-se contra a
felicidade, que é posta em questão, e a sociedade arrisca-se então, a
perder sua razão de ser. (ARIÈS, 2003, p. 90)
Vemos nascer e se desenvolver, por uma série de pequenos toques, as
idéias que resultarão no interdito atual, fundado sobre as ruínas do
puritanismo, em uma cultura urbanizada na qual dominam a busca da
felicidade ligada à do lucro, e um crescimento econômico rápido.
(ARIÈS, 2003, p. 95)
Como foi demonstrado, na época moderna, apesar de ainda continuarmos com os
cultos e rituais funerários, eles não são mais os mesmos, algumas coisas se intensificaram
outras foram minimizadas. A morte se afastou discretamente do mundo familiar, passando
a significar “a separação inadmissível, a morte do outro, do amado.” (ARIÈS, 2003, p. 102).
Assim, a morte pouco a pouco tomava uma outra forma, mais longínqua
e, entretanto, mais dramática e mais tensa – a morte às vezes exaltada (a
bela morte de Lamartine) e logo contestada (a morte “feia” de Madame
Bovary).
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No século XIX, a morte parecia presente em toda parte: cortejos de
enterros, roupas de luto, extensão dos cemitérios e sua superfície, visitas
e peregrinações aos túmulos e culto da memória. Mas será que esta
pompa não ocultava o relaxamento das antigas familiaridades, as únicas a
realmente possuírem raízes? Em todo caso, esse eloqüente cenário da
morte oscilou em nossa época, tendo a morte se tornado a inominável.
Tudo se passa como se nem eu nem os que me são caros não fossem
mais mortais. Tecnicamente, admitimos que podemos morrer, fazemos
seguros de vida para preservar os nossos da miséria. Mas, realmente, no
fundo de nós mesmos, sentimo-nos não mortais. (ARIÉS, 2003, p. 102)
Mas voltemos um pouco ao século XIX, pois é de onde partiremos para o estudo
da obra do primeiro autor, com o qual nos propomos a observar o tema da morte em uma
de suas maravilhosas obras, falaremos de José de Alencar e Encarnação. Esse autor pertence
ao período da nossa literatura classificado como Romantismo. E esse período coincide
justamente com os mesmos fatores que ajudaram na mudança da visão da morte domada, da
qual falamos anteriormente. É o período advindo das contradições próprias da Revolução
Industrial e da ascensão da burguesia; o individualismo se sobressai, o niilismo é sua marca
fundamental. O tema da morte e outros que giram em torno dela se fazem presentes nesse
período. É um movimento contraditório e de descontentamento.
[...] A solidão provoca a idéia fixa da morte, e a idéia fixa da morte
completa a solidão.
As portas da literatura e da filosofia vão ser forçadas pela angústia de
morte. Sob diversos eufemismos (mal do século, melancolia, etc.), a
angústia já havia adquirido a dignidade literária e poética.
[...] O espectro da morte vai assombrar a literatura. A morte, até então
mais ou menos envolta nos temas mágicos que a exorcizavam, ou
contida na participação estética, ou camuflada sob o véu da decência,
aparece nua. [...]
A individualização se desagrega por sua vez. A morte consuma a
niilização. Absurdo o mundo, absurda a morte, absurdo o indivíduo.
Estes três termos se refletem e se revezam numa dialética infernal. Tudo
é absurdo. O círculo da morte se fecha. (MORIN, 1997, p. 286-287)
E é nesse período que se insere José de Alencar. No entanto, Encarnação é a sua
obra que diverge das demais e que se coloca pronunciadamente no caminho do nosso
tema: a morte. É interessante que tudo nesta obra se envolve com a morte, pois ela foi a
última obra escrita por Alencar e publicada postumamente. E esta obra tem tudo a ver com
o que Philippe Áries descreve em uma parte do seu livro:
[...] cenas ou motivos inumeráveis, na arte e na literatura, associam a
morte ao amor, Tanatos e Eros – temas erótico-macabros ou temas
simplesmente mórbidos, que testemunham uma extrema complacência
com os espetáculos da morte, do sofrimento, dos suplícios. (ARIÈS,
2003, p. 65)
A narrativa alencariana conta a história de um viúvo, Hermano, que se casa com
uma segunda mulher, Amália, sem conseguir esquecer-se da primeira, Julieta. E esse
triângulo amoroso tende ao sobrenatural, pois o espectro da mulher morta parece estar por
toda a casa e também entre o novo casal, atrapalhando-lhes a convivência feliz e saudável.
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A morte aparece em Encarnação de duas maneiras em especial: como redenção,
visão típica do Romantismo; e também com a presença da figura do duplo, que também
tem, no período citado, o solo mais do que propício.
No primeiro caso, a morte como redenção, ela o é para o protagonista, Hermano,
que procura se suicidar para que assim possa se redimir do mal que acredita ter causado
tanto à primeira esposa quanto à segunda. Porque ele acredita que ao ter se casado
novamente, traiu a primeira esposa, cuja presença ainda sente sempre junto de si, e
maculou a o futuro da segunda, destruindo-a como uma mulher que poderia ter se
realizado em um outro matrimônio feliz.
- Sou um miserável, Amália; sacrifiquei-a indignamente. Amei-a com
paixão, jurei fazer a sua felicidade, que era a minha, uni o meu ao seu
destino; e eu não me pertencia, não era livre, não podia dispor de mim!
Sou miserável!... Traí a minha primeira mulher, e à segunda enganei!...[...]
- Não se aflija, Amália!... Cometi uma perfídia [...] Juro restituir-lhe
intacta a sua liberdade que eu tive a desgraça de comprometer. Resignese por alguns dias a este constrangimento. Ele cessará, deixando-a outra
vez senhora de si. [...]
- Oh! Ninguém suspeitará!... Terei o cuidado de ocultar! Tomarão por
um acidente, um acaso![...]
Mas aquele estranho sorriso, e a qualificação de acidente dada pelo marido
ao fato que os deveria desligar, lançou em seu espírito uma dúvida cruel.
[...]Amália ergueu-se, trêmula de horror. Adivinhara! Hermano tinha
resolvido matar-se. Era essa a significação daquele juramento que lhe
fizera de restituir a liberdade. Para não expor a reputação dela, de sua
esposa, é que prometia levar a efeito o plano sinistro de modo que
ninguém desconfiasse do suicídio. (ALENCAR, 2005, p. 134 e 135)
Mas o plano de Hermano de se suicidar não é completado, ele se redime não
através da morte, como planejou; mas através do amor redentor de Amália. E é ela que o
salva do incêndio que ele provocara para se matar, ou “deixar-se morrer”, como ele diz.
Amor e morte se entrelaçam nessa narrativa, é mais uma antítese entre tantas outras
presentes nessa obra de Alencar e em suas obras de uma maneira geral. Antíteses estas, tão
próprias do homem dividido dessa época, e aqui vemos Tânatos x Eros.
Toda a narrativa girará em torno da morte, essa morte que acompanha a vida de
Hermano e que passará a fazer parte da vida de Amália também. Mas será incumbência de
Amália desligar o seu amado do mundo dos mortos e trazê-lo novamente para a vida. É o
tema do amor que salva, tão presente no Romantismo e nas obras alencarianas. E essa
época onde a individualidade muda o homem e o torna ambíguo, é terreno propício
também para a narrativa fantástica, onde podemos encaixar também a obra de Alencar e
nosso tema da morte também.
[...] a narrativa fantástica [...] não raro aflora questões fundamentais da
existência do homem, sobretudo a atitude (quase sempre ambígua) deste
perante o universo, o seu próprio abismo interior e o grande limite, a
morte. (FURTADO, 1980, p. 138)
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E a figura do duplo também está ligada tanto à narrativa fantástica, quanto a esse
momento de ambigüidade do homem e também ao tema a que nos propusemos explorar: a
morte. E o duplo aparece em Encarnação sob dois de seus aspectos: uma figura
fantasmagórica e o morto que sobrevive como encarnação em uma criança.
O modo primeiro como aparece a figura do duplo, a figura de uma fantasma, se dá
através das aparições da primeira esposa de Hermano. Segundo Morin (1997) essa
sobrevivência ao aniquilamento do corpo e a tomada do corpo de outra pessoa, é uma
espécie de tendência do ser humano em “salvar sua integridade para além da
decomposição” (p.135). Em Encarnação, a esposa morta é sempre um espectro que parece
estar sempre rondando o protagonista de Encarnação. Hermano parece sempre vislumbrar a
primeira esposa nos momentos mais inesperados. Um desses momentos acontece na
narração quando ele dialoga com, Amália achando-a triste, procura saber o motivo. E é
quando parece ver a esposa morta.
- Anda triste, Amália? – disse por fim ao marido.
- E não tenho razão, Hermano?
Ele tomou a mão da mulher, e atraindo-a a si reclinou-se para beijar-lhe
o rosto. Amália, cheia de rubores e júbilos, palpitante de emoção,
abandonou-se ao doce impulso; mas de repente, faltando-lhe o apoio, o
talhe descaiu sobre o recosto.
Hermano soltara-lhe as mãos no momento em seus lábios iriam toca-la; e
erguera-se pálido, hirto, com a visão pasma, como se um espectro
surgisse a seus olhos.
- Perdão! – murmurou com a voz abafada.
Esta súplica, porém, Amália conheceu que não se dirigia a ela, pois o
olhar do marido passava por cima de sua cabeça e fitava-se além.
[...] Amália, sob a influência daquele estranho pavor, emudecera.
(ALENCAR, 2005, p. 132)
E em tantos outros momentos da narrativa essa presença fantasmagórica é sentida
ou pressentida. Esse assunto da morte também é abordado por Freud em seu trabalho
sobre o estranho, e descreve com exatidão extraordinária o que acontece nessa obra de
Alencar.
Muitas pessoas experimentam a sensação, em seu mais alto grau, em
relação à morte e aos cadáveres, ao retorno dos mortos e a espíritos e
fantasmas. [...]
Duas coisas contam para o nosso conservadorismo: a força da nossa
reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso
conhecimento científico a respeito dela. [...] o primitivo medo da morte é
ainda tão intenso dentro de nós e está pronto a vir à superfície por
qualquer provocação. (FREUD, 1976, p. 301, 302)
No romance Encarnação, podemos notar que Amália acredita na presença do
espírito de Julieta, nessa presença da morte, da morta, rondando a casa e seu marido, tanto
que se revolta contra isso.
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O primeiro sentimento de Amália, depois da surpresa que lhe causara
esse fato, foi a revolta contra o império que exercia a lembrança de
Julieta no ânimo do marido, e a fraqueza desse homem que se deixara
subjugar àquele ponto.
A mulher, ou antes, a sombra que saía do seu túmulo para disputar-lhe o
marido, ela a odiava. Que direito mais tinha Julieta sobre Hermano?
Deus não os havia separado, levando-a deste mundo e deixando-o livre
de amar e escolher outra esposa? (ALENCAR, 2005, p. 132)
A todo o momento Hermano sente a presença da esposa morta, até mesmo quando
Amália canta pra ele, e normalmente são árias sempre ligadas à pessoa de Julieta e que
dizem algo sobre a história das personagens. São árias significativas para o entendimento
do romance:
A moça foi sentar-se ao piano, e abriu a ária do Fausto. Hermano lhe
dissera um momento antes que era uma das peças favoritas de Julieta.
Ela cantou; e o marido que já se tinha retirado, veio sentar-se outra vez a
seu lado, e ficou ali preso de sua voz.
À última nota ele estremeceu e partiu. Esse canto era de Julieta que o
chamava. (ALENCAR, 2005, p. 141)
A situação fica cada vez mais insustentável, porque Amália já tomara a decisão de
se fazer a mulher que antes Hermano amara, e estava se transformando em Julieta. E é
nesse momento que a ária de Lucia de Lammermoor, faz conecção com essa narrativa de
Alencar. Pois ela fala de um homem que se casará com uma morta e Hermano parece ser o
marido de uma morta, já que Julieta parece ter tomado o corpo e a alma de Amália.
Hermano já não vê mais Amália, e sim Julieta, porque até no toucador que antes fora
somente de Julieta, agora Amália ali estava também, assumindo a forma de Julieta.
Amália também se transforma até fisicamente em Julieta, pois tenta de todas as
maneiras, quer seja pintando ou colocando um renda preta sobre os cabelos, mudar a cor
loira deles para escura. É assim que o tema do duplo aparece na narrativa pela primeira vez,
mas não única, como veremos mais adiante. E no fim, as duas esposas se confundem e o
marido parece já não saber quem é quem e seus sentimentos estão confusos, seu
discernimento também.
Depois, quando na própria noite do casamento o indefinível terror de
um adultério fantástico apoderou-se de seu espírito enfermo, ele
refugiou-se nos aposentos de Julieta, encerrou-se ali naquele túmulo,
onde encontrava o sossego e a ressurreição do passado.
Agora, porém, já não tinha esse refúgio; já não podia transpor os
umbrais da eternidade para encontrar-se com Julieta e amá-la. Até ali
nesse mesmo santuário, onde guardara todas as relíquias da morta, até ali
o perseguia a formosa imagem de Amália.
Sentia a tépida fragrância que a moça deixara na sua passagem, e que
derramava um sopro de vida nesses objetos frios e abandonados. O
toque de outras mãos animara aquela solidão; e as mesmas estátuas de
cera pareciam influir-se de outra alma mais ardente, mais apaixonada do
que a de Julieta.
Assim, quando Hermano corria a abrigar-se aí da sedução de uma Amália
parecida com Julieta, ele já não encontrava a mulher de outros tempos,
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mas sim uma nova Julieta semelhante a Amália e mais formosa que a
primeira.
Quantas vezes não voltou buscando essa visão encantadora! Mas já não a
via; Amália tinha-se feito Julieta; aquela esplêndida beleza de outrora se
eclipsara.
(ALENCAR, 2005, p. 145)
O ponto culminante dessa narrativa fantástica, em que a dúvida da aparição
fantasmagórica da primeira esposa perpassa por toda a história, acontece quando Hermano
põe em prática seu plano de se matar e não chega ao final. Quando ele abre o gás e com
isso coloca fogo na casa. Ele está no toucador que pertencera a Julieta, e a vê em visão,
travando um diálogo com a mesma.
Foi então que Hermano sentiu uma dor agudíssima, como se lhe
arrancassem vivo o coração. Arrojou-se com todo o ímpeto de seu amor
para chamar a esposa, que se separava dele pela eternidade. Era ela a
primeira amada, e nesse momento a única. A ela devia pertencer
exclusivamente; por isso iam unir-se outra vez; a morte que os tinha
apartado não tardaria em ligá-los de novo, revertendo-os um ao outro.
- Julieta! – exclamou ele em um grito de ânsia.
A esposa o tinha ouvido. Ali estava ela ao seu lado. A luz desaparecera; e
os seus raios se haviam transformado em estrelas. Foi ao trêmulo dessa
luz celeste que ele divisou a sombra amada. Ela trazia o seu trajo favorito
de baile, o mesmo com que a viu a primeira vez.
Julieta lhe cingira o colo com o braço; e ele sentia o doce contato do
talhe gentil na sua espádua e no seu flanco. Depois a voz terna e
queixosa da esposa murmurou-lhe ao ouvido como um arpejo:
- Ingrato!... (ALENCAR, 2005, p. 149)
No entanto, o fantástico e a questão da morte não acabam aqui, com a aparição da
morta a Hermano e depois com Amália resgatando-o da morte. Além dessa visão da morte
sob a ótica do suicídio de Hermano, temos também a morte sob a ótica do duplo, que
aparece primeiramente com Amália assumindo ou deixando-se assumir pela figura da
esposa morta, que já foi explanado anteriormente; e o duplo que também aparece quando
depois do incêndio que Hermano provoca na casa, Amália o salva e eles viajam para a
Europa regressando cinco anos depois com uma filha. Essa menina se chama Julieta e
tanto o pai como a mãe vêem nela a figura da morta. Ela parece ser a encarnação de Julieta,
pelo menos é o que a narrativa nos leva a concluir. Além de também termos apoio na
opinião de Adélia Bezerra de Meneses, da Universidade de São Paulo:
[...] Há algo de intensamente simbólico naquele incêndio: o meio de
suicídio que Hermano imaginara para si, meio de morte, mas que se
tornará possibilidade de uma nova vida. É por isso que o romance não
acaba com o incêndio. Após a vitória do amor invencível, simbolizado
pelo fogo, há um salto de cinco anos na narrativa, e conheceremos seu
fruto: a meninazinha de quatro anos, bela como Amália, mas de olhos e
cabelos castanhos como Hermano, como Julieta: é Julieta reencarnada, a
filha do casal. (MENESES, 1996, p. 7)
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Edgar Morin, em sua obra O homem e a Morte, também fala sobre esse aspecto do
duplo e cita crenças e costumes dos povos primitivos em relação a esse assunto. E seu
texto se encaixa perfeitamente no que ocorre com a filha de Hermano e Amália:
[...] Os mitos do além carregam simbolicamente a marca dos dois
grandes sistemas de morte, ora harmonizados, ora reprimindo mais ou
menos um ao outro. Em geral, o duplo sobrevive por um tempo
indeterminado, depois vai para a morada dos antepassados, de onde
voltam os recém-nascidos; o nascimento continua a ser a provocação
direta, mas retardada, de uma morte. Como dizem os ashanti: ‘Um
nascimento neste mundo é uma morte no mundo dos espíritos’.
[...] Entre os tsis e os evhes, segundo Westermann, cada indivíduo tem
seu duplo, ao qual ele presta culto: este, após a morte, fica rondando em
torno do cadáver, depois vai viver com os mortos da família, e enfim
reencarna num recém-nascido que levará seu nome. [...]
É notável que, no interior destes sincretismos, o renascimento do morto
numa criança se realize somente quando se enfraquece a presençalembrança da individualidade do defundo. (MORIN, 1997, p. 109 e 110)
Após termos visto estes três semblantes da morte na obra de Alencar, partiremos
para explorarmos o outro autor tão saudoso e que contribuiu sobremaneira para a nossa
literatura. Veremos como Mário Quintana capta o significado da morte em um de seus
poemas, o poema XIX de A rua dos cataventos, que transcreveremos abaixo:
Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi.
Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:
Tu que és a minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...
E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti... saber que tu existes!
Como podemos notar, Mário Quintana difere em muito de José de Alencar. O
segundo era um prosador e o primeiro um poeta, apesar de ter escrito poemas em prosa.
Sim, Mário Quintana pertenceu ao período da nossa literatura conhecido como
Modernismo, mas possuía raízes simbolistas. Como o descreve Bosi (1994) ele era um
“poeta que encontrou fórmulas felizes de humor sem sair do clima neo-simbolista que
condicionara a sua formação”(p. 463)
No entanto, Mário Quintana foi muito mais que isso, muito mais do que se diz
sobre ele, e só quem puder se debruçar sobre sua rica obra, poderá encontrar um pouco do
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que realmente foi esse grande poeta. E nisso temos um ponto de convergência nele e em
Alencar, apesar do último ter sido um dos pais da nossa literatura brasileira, também foi
muito criticado e pouco reconhecido em sua época. Valores políticos e sociais contribuíram
grandemente para que tal desrespeito acontecesse com ambos os autores.
Mas não cabe a nós tratarmos desse momento na história desses autores, é um
aspecto que não nos compete analisar aqui. Depois de analisarmos a morte na obra de
Alencar, veremos o poema de Mário Quintana. E logo de início, ao lermos o poema
transcrito acima, podemos notar que a visão de Mário em relação à morte difere em muito
da de Alencar.
Um dos aspectos que contribui para isso é o próprio período histórico em que se
encontra Quintana e no qual se encontrava Alencar. A época em que Mário Quintana se
encontra, é aquela em que a sociedade muda sua relação com a morte. Trata-se da nossa
época, onde a familiaridade com a morte foi banida, onde não convivemos mais com a
espera da morte. Lutamos contra ela desde cedo, e não a aceitamos mais como parte do
ciclo da vida, é nossa inimiga. Nós tentamos reprimi-la e esquecê-la.
Mas os poetas reagem de forma diferente, e concordamos com a professora Dra.
Solange Fiúza Cardoso Yokozawa, quando ela diz em sua dissertação de mestrado que os
poetas:
[...] dançam diante de suas próprias covas não apenas para driblar e se
eternizar num poema, mas também aprender – e ensinar – nessa dança
de morte – que é também de vida – a morrer sem o temor que essa
palavra desperta e viver plenamente a vida [...]. (YOKOZAWA, 1995, p.
95)
E como não poderia ser diferente, com Quintana temos vários poemas que versam
sobre o tema da morte. No poema que escolhemos, em especial, vemos como o poeta
tenta passar para o leitor uma visão bem mais “amiga” da morte, se é que podemos colocar
assim. Notamos que ele tenta restabelecer a familiaridade com a morte, há tanto tempo
perdida, já que em nossa sociedade ela é tão reprimida.
No poema XIX, a morte nasce junto com o poeta e acompanha-o durante sua
infância, brincando com ele. É interessante notar que a morte parece se transformar
juntamente com o poeta, a um tempo ela age como uma criança, depois amadurece, se
entristece, envelhece com ele. Ela parece personificada, na pessoa do poeta, por isso
amadurece e se transforma com ele e como ele.
Já não tem mais aquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:
É como diz Yokozawa:
Para o poeta, a morte não é tida como a inimiga da vida que nos espera
no fim, como uma força exterior que surge para por termo à nossa
viagem. Ele procura conciliar as duas pontas da existência – vida e
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morte. Para tanto, abandona o pensamento consolidado no Ocidente de
que a morte é algo que nos espera no final e a concebe como um
processo intrínseco ao viver, de modo que a experiência de vida coincide
com a experiência de morte, pois começamos a morrer a partir do
momento em que nascemos. (YOKOZAWA, 1995, p. 97)
Sim, nos quintanares a morte não está interdita. O poeta a trata com uma leveza
que só ele poderia conceder a ela. Até mesmo quando ele vai falar dela como o fim da vida,
a metáfora que utiliza é a de um casamento, onde a morte é sua noiva, sua “prometida”. E
suas bodas ele não sabe quando serão, pois ninguém sabe a hora certa em que vai morrer;
mas espera por ela pacientemente e com tranqüilidade, sabendo que um dia esse
“casamento” acontecerá.
É tão diferente e especial o modo como Quintana passa para o leitor sua noção de
morte nesse poema, que parecemos sentir como ele: que a morte é nossa companheira e
amiga, que não nos fará mal, só nos acompanhará no decorrer de nossa vida. E que um dia
nos uniremos a ela com alegria, ou pelo menos, tranqüilidade.
Pois para o poeta, a morte, ao final da vida, parece ser um descanso e, até mesmo
ansiada. Ele gosta de pensar, durante as horas dessa vida, que ela existe, que um dia
chegará. Como se fosse um consolo saber que depois de tantas lutas, pesares, angústias,
chegará enfim a serenidade, a sua “Prometida”, a morte. E a morte aqui parece ter
retornado a sua época de familiaridade.
E, depois desse pequeno estudo, pudemos ver que apesar de certos aspectos em
relação à morte ter se alterado ao longo dos séculos; essa não foi uma mudança aleatória,
foi graças ao homem que ela ocorreu. Foi para acompanhar as mudanças ocorridas com o
homem em meio à sociedade, que a visão em relação à morte também mudou. No entanto,
apesar do medo, do interdito da morte; o fascínio, que parece atração do ser humano por
ela, não mudou.
Esse fascínio com relação à morte sempre fez história na literatura. O medo da
morte é sublimado pelos escritores. Vimos isso em dois autores tão diversos, como José de
Alencar e Mário Quintana. A visão de ambos para com a morte explora aspectos bem
diferentes, um a vê pela ótica do medo e o outro, pelo lado da familiaridade.
Mas sabemos que nem tudo foi dito, nem em relação ao tema da morte, nem ao
modo como os autores em questão exploraram a mesma. Porém, o nosso intuito era o de
apenas introduzirmos um pouco os leitores nesse mundo que versa sobre a morte e, em
especial, nesses dois mundos maravilhosos de Alencar e Quintana.
Fica aqui então, um ponto de partida, uma motivação para que outros trabalhos,
mais aprofundados ou sob outra ótica, sejam desenvolvidos a partir deste. Pois o universo
literário tem muitos caminhos e muitas fontes onde poderemos beber e reviver o tema da
morte e continuarmos a nos fascinar por ela.
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Referências
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ARIÈS, Philippe. História d morte no Ocidente. Tradução: Priscila Viana Siqueira. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2003.
FREU, Sigmund. O estranho. In: _______. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro:
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FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
MENESES, Adélia Bezerra de. Eros x Tânatos. In: ALENCAR, José de. Encarnação. São
Paulo: Ática, 1996. p. 3-7.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Tradução: Cleone Augusto Rodrigues. Rio de Janeiro:
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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A GUERRA DAS ROSAS E A INCOMPETÊNCIA POLÍTICA: UM ESTUDO
DAS TRÊS PARTES DE HENRIQUE VI, DE SHAKESPEARE28
(Trilogia)
1 – Henrique VI, de Shakespeare: as ambivalências da guerra
Enéias Farias Tavares29
Professor de Literatura Greco-Latina da UFSM
O espectador contemporâneo, ao reencontrar nas tragédias de
Shakespeare sua própria época, aproxima-se com freqüência, de forma
inesperada, da época shakespeariana. Em todo caso, ele a compreende
bem. Isso vale antes de tudo para as crônicas históricas.
Jan Kott
Resumo: O objetivo deste artigo, dedicado à primeira parte de Henrique VI, de
Shakespeare, foi examinar como o poeta inglês, apesar de representar positivamente a
Inglaterra em oposição à França, retrata as desgraças advindas do conflito bélico para as
duas nações. Tal análise privilegiará as duas personagens protagonistas: o guerreiro Talbot e
a arguciosa Joana D’Arc.
Palavras-Chave: Shakespeare, 1 Henrique VI, Crítica Literária
Abstract: The aim of this paper, in which the first part of Shakespeare’s Henry VI is
analyzed, was examine how the English poet, although represent positively England in
opposition to France, portrays the tragedies stemming from war in the representation of
the two nations. This analysis focuses the main protagonists of the drama: the warrior
Talbot and astute Joan D'Arc.
Palavras-Chave: Shakespeare, 1 Henry VI, Literary Criticism
A obra dramática de Shakespeare é dividida pela crítica em quatro principais grupos: peças históricas,
comédias, tragédias e comedias maduras. Quanto ao primeiro grupo, é inerente a todo leitor iniciante da obra
do dramaturgo ter certa dificuldade ao lê-las, devido ao número imenso de personagens e a relação direta com
a própria história da Inglaterra. Meu objetivo com essa série de artigos é demonstrar que esses dramas
apresentam também um verniz poético, assim como as obras mais populares de Shakespeare. Ao estudar
essas peças, destaco dois críticos que reapresentaram, em minha opinião, os dramas históricos enquanto peças
literárias autônomas e válidas, especialmente numa época em que a democracia se tornou, especialmente em
nosso país, um emaranhado diário de denúncias, escândalos e corrupção. Primeiramente, Jan Kott, que
propôs, no seu Shakespeare – Nosso Contemporâneo, uma leitura das comédias e das tragédias sob o viés do
mecanismo político, partindo exatamente de duas peças históricas: Ricardo II e Ricardo III. Em segundo lugar,
o livro de Barbara Heliodora, A expressão do homem Político em Shakespeare, que refletiu sobre o interesse do
autor não apenas na natureza subjetiva do homem como também em sua particularidade cultural. No que
concerne à metodologia adotada, cabe aqui um adendo sobre a divisão do corpus de análise. Apesar da
divisão em três artigos, prenunciando que cada um tratará de uma das partes de Henrique VI, foi impossível
não fazer alusão a uma das partes que não objetivava o artigo. Por exemplo, ao refletir sobre a figuração de
um rei frágil como Henrique VI no segundo artigo e usando como corpus de análise as citações do (ou sobre
o) rei na segunda peça, vez ou outra faço alusão a cenas da primeira e da terceira parte, visando reforçar meu
argumento. Caroline Spurgeon, em A imagística de Shakespeare, percebeu o mesmo problema ao demonstrar
que determinados aspectos temáticos não se encontravam apenas numa das partes, mas em duas ou até em
toda a tetralogia.
29 Enéias Farias Tavares é crítico literário e tradutor. Professor de Literatura Greco-Latina na Universidade
Federal de Santa Maria e mestre em Letras pela mesma instituição. E-mail: [email protected].
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1. A Guerra das Rosas como tema dos primeiro dramas históricos de Shakespeare
Das dez peças históricas compostas por Shakespeare, oito formam duas tetralogias
nas quais o poeta dramatizará a vida dos antepassados de Elizabeth e seu pai, Henrique
VIII. Na primeira tetralogia30, encenada entre 1592 e 1594, composta pelas três partes de
Henrique VI e por Ricardo III, o principal mote da trama é a famosa Guerra das Rosa.
Ocorrido entre 1455 e 1485, esse conflito civil foi motivado pelo desentendimento das
famílias Lancaster e York – representados pelas rosas vermelha e branca, respectivamente -,
que brigaram pelo direito ao trono inglês. O monarca então vigente, Henrique VI, não foi
capaz de evitar a própria queda nas mãos da família vitoriosa, os York. Nessa primeira
tetralogia, vê-se, mesmo nesse Shakespeare dos primeiros anos, um respeitável
conhecimento histórico, fruto de suas leituras dos historiadores Raphael Holinshed e
Edward Hall31. Sobre o trabalho de composição de Shakespeare, tendo por base esses
historiadores ingleses, Honan afirma:
Ele havia estabelecido para si a mais desafiadora das tarefas, já que agora tinha
de responder com criatividade ao caos da história. Nada do que existe em Hall
ou Holinshed tem um vestígio que seja da atraente ordem dramática de uma
novela italiana ou francesa; e, no entanto, Shakespeare precisava dar à história
de Henrique VI a ordem mais arrebatadora possível. O palco pedia clareza,
intensidade e uma trama hábil, enquanto ele ressuscitava os mortos ingleses. As
crônicas lhe davam a possibilidade de desenvolver detalhes, mas ele estava
trabalhando dentro de limites terrivelmente restritivos e, portanto, forçando
sua imaginação e capacidade analítica a trabalharem dobrado para produzir uma
estrutura convincente, sem nunca perder de vista os fatos que teria de excluir.
(p.181)
Percebe-se essa “estrutura convincente” na trama da primeira parte de Henrique
VI, que encerra um período de mais de trinta anos de história ao relatar as discussões entre
a nobreza da Inglaterra em sua luta por poder e a decadência da imagem inglesa de
heroísmo. A peça inicia com o funeral do popular Henrique V e com notícias sobre a
eminente guerra contra a França, disposta a recuperar os territórios conquistados pelo rei
inglês. Em solo francês, Joana é saudada como salvadora pelo delfim Carlos, enquanto o
principal general inglês, Talbot, é capturado. Na Inglaterra, há desavença entre o protetor
do jovem Henrique VI, o conde de Gloster, e a principal autoridade religiosa, o bispo
Winchester, pelo poder do trono. Talbot é libertado e acusa John Fallstoffe de traição. No
segundo ato, há o embate entre Talbot e Joana, juntos de seus exércitos, pela região de
A segunda tetralogia – formada pelas peças Ricardo II, pelas duas partes de Henrique IV e por Henrique V, é a
que reconta a origem, a educação e o reinado do monarca mais admirado pelos elisabetanos. As outras duas
peças históricas de Shakespeare são Rei João e Henrique VIII.
31 Sobre as Chronicles, de Holinshed, em sua versão ampliada de 1587, que narravam a história política da
Inglaterra desde a Idade Média até o reinado de Henrique VIII, Park Honan escreve “Para Shakespeare, esse
texto extraordinário funcionou como uma vasta biblioteca e um manancial de detalhes; sua imensidão
desordenada, seus múltiplos pontos de vista e férteis incoerências deixavam espaço para que a imaginação do
dramaturgo trabalhasse.” (p.181) Mas Shakespeare buscou ainda um outro autor que pudesse lhe fornecer
uma ordem mais lógica para o discurso histórico sobre os reinados ingleses. Sobre esse autor, Honan
continua: “Atormentado por problemas de forma, ele parece ter achado que a obra de Edward Hall, The
Union of the Two Noble and Illustre Families, pelo menos dava um contorno ao século XV ao retratar uma
curva de acontecimentos ao longo de oito reinados, de Ricardo II (1377-1399) – a partir da época da disputa
Mowbray-Bolingbroke – até a morte de Ricardo III em 1485 e a união da rosa vermelha de Lancaster e da
rosa branca de York sob a lideranca do primeiro rei da dinastia Tudor. Hall moraliza, sem na verdade chagar a
mostrar a mão de Deus moldando os acontecimentos.” (ibiden).
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Orleans. Talbot vence e escapa da cilada planejada por uma nobre francesa, a condessa de
Auvergne. Na Inglaterra, a briga entre as facções Lancaster e York chega ao ápice no
jardim do palácio em que são escolhidas rosas para representar cada uma das casas,
representação cênica da origem da Guerra das Rosas. No ato três, Henrique VI aparece,
pela primeira vez, gentilmente tentando apaziguar a discórdia entre Gloster e Winchester e
designando Ricardo Plantageneta a Duque de York, posição que lhe é de direito sendo ele
filho de Ricardo II. Joana tenta conquistar Ruão, mas é rechaçada por Talbot com a ajuda
do duque da Borgonha. Logo depois, esse é convencido por Joana a abandonar o apoio à
Inglaterra e a voltar seu favor para seus compatriotas franceses. Em Paris, Talbot dedica a
Henrique VI suas vitórias. No quarto ato, Henrique VI é finalmente coroado e o covarde
Fallstoffe é exilado pelo rei em face às acusações de Talbot. Este é enviado para punir o
traidor conde de Borgonha. Enquanto isso, as discórdias entre os ingleses Lancasters e
York continuam. Três cenas são dedicadas a Talbot, que reencontra seu filho para juntos
lutarem por Bórdeus. Após se reencontrarem na batalha, os dois morrem. No último ato, o
jovem rei, influenciado por Gloster, aceita casar-se com a sobrinha do rei francês. Na
França, as duas casas finalmente deixam suas desavenças de lado, motivo de nenhuma delas
ter ajudado Talbot, e atacam os franceses. Joana, abandonada por seus demônios, é
capturada por York. Suffolk prende a nobre francesa Margarida e, apaixonado por ela,
trama casá-la com Henrique VI. Joana, renegada pelo próprio pai após desprezá-lo, é
queimada no acampamento de York sob a chacota de todos como a prostituta que jurava
ser virgem, mesmo estando nitidamente grávida de um de seus amantes. York recebe
notícias da paz entre Inglaterra e França e fica enfurecido pelo acordo estatal, após tantas
mortes. Henrique VI, encantando pelo relato que Suffolk faz de Margarida, decide casar
com a nobre francesa, apesar do desagrado de Gloster que afirma que a dama não tem
realeza para o casamento. A peça termina com Suffolk dizendo que governará o rei, a
rainha e o reino.
Como visto, a própria estrutura cênica de I Henrique VI apresenta uma peça possivelmente uma das primeiras de Shakespeare – em que o principal intento do
dramaturgo é encenar uma interessante discussão sobre os percalços da guerra. E mesmo
sendo Shakespeare acusado de ser patriótico em seus dramas históricos, o que vemos é um
aprofundamento das peripécias da guerra, sejam elas do lado inglês ou francês. Num dos
diálogos que serve para expressar o poder persuasivo que as palavras de Joana D’Arc têm
sob seus ouvintes, a guerreira argumenta com o francês duque de Borgonha, que então
apoiava Talbot e seu exército, sobre a devastação provocada pelo conflito em sua nação:
Look on thy country, look on fertile France,
And see the cities and the towns defaced
By wasting ruin of the cruel foe.
As looks the mother on her lowly babe
When death doth close his tender dying eyes,
See, see the pining malady of France;
Behold the wounds, the most unnatural wounds,
Which thou thyself hast given her woful breast.32 (III.3)
Contempla a fértil França, tua pátria; / as cidades e as vilas vê destruídas / pela devastação de cruel inimigo.
/ Como olha a mãe o filho pequenino, / quando a morte lhe cerra os tenros olhos, / mira a doença da França
moribunda, / contempla estas feridas, as feridas / mais contra a natureza, que tu próprio / lhe fizeste no
peito. (Todas as traduções da peça são de Carlos Alberto Nunes).
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Como veremos, nessa primeira parte da tetralogia, o autor mostra os dois lados do
conflito – o inglês e o francês – e suas ambíguas vitórias, sempre ao custo de muitas
mortes. No caso de Joana, o sofrimento expresso na fala pela visão desolada de seu país
serve também para trazer relativa simpatia a uma personagem que será mostrada, ora como
bruxa, ora como guerreira, ora como adúltera. Mas o importante dessa narrativa é que se
trata do relato de um inimigo francês. Desse modo, o horror apresentado por Shakespeare
em sua primeira tetralogia é o horror provocado pela calamidade da guerra civil, pela
disputa violenta por poder e pelos excessos de homens nobres que, ao se esquecer do bem
comum, almejam unicamente seu próprio bem-estar. Levando essa visão em conta, seria
então a peça uma crítica social ao governo de seu tempo? De forma alguma, pois
Shakespeare escreve sua tetralogia no auge do governo da rainha Elizabeth. Assim,
levando-se em conta que a distância entre a produção desses primeiros dramas históricos e
a vitória inglesa contra os espanhóis ser ínfima33, a pergunta que se faz é: Por que
Shakespeare produziu uma série de peças políticas nem um pouco patrióticas num
momento em que o patriotismo inglês estava no seu auge? Talvez para intensificar as
virtudes de um governo relativamente coeso e politicamente bem sucedido como o de
Elizabeth. Ou talvez para expressar, bem ao gosto do poeta, como fica evidente em futuras
composições como O Mercador de Veneza e Otelo, que todo conflito possui visões e apelos
bem mais complexos do que o preconceito popular apregoa34. Na primeira parte de
Henrique VI, já temos essa possibilidade ambivalente na dramatização da guerra como um
conflito que traz, indiferente da vitória, prejuízos aos dois lados. Visão que é reforçada pela
caracterização de um monarca covarde na companhia de ambiciosos conselheiros. Neste
artigo, dedicado à primeira parte de Henrique VI, estudarei a forma como o poeta inglês,
apesar de representar positivamente a Inglaterra em oposição à França, retrata as desgraças
advindas do conflito bélico para as duas nações. Tal análise privilegiará as duas personagens
protagonistas, o valoroso Talbot e a arguciosa Joana D’Arc.
2. Talbot: a ascensão e queda da imagem da honra na Inglaterra de Henrique VI
Em 1 Henrique VI, o monarca é deixado um tanto de lado – só aparece no terceiro
ato, visto que nos dois primeiros ainda é uma criança – em detrimento da personagem que
representa a glória e a soberania da Inglaterra, Lorde Talbot. Comentando a peça, Caroline
Spurgeon contrasta a honra de Talbot e seus homens com as figuras posteriores de caça,
prisão, sufocamento e destruição que esses encontrarão no ardor da batalha. 35 Tal honra, é
A vitória contra a poderosa armada espanhola aconteceu em 1588 e a primeira parte de Henrique VI foi
composta em 1592.
34 No Mercador de Veneza, Shakespeare problematiza o preconceito e o ódio comum no período contra os
judeus e seus costumes comerciais com uma personagem ambiguamente vilã e cativante em seu sofrimento
na personagem Shylock. Como contraste, ver O Judeu de Malta, de Marlowe em que a figuração do judeu é
meramente vilanesca e estereotipada, bem distante da complexidade da personagem de Shakespeare. Outro
exemplo está em Otelo, no qual os mouros – também retratados de modo distorcido por outros dramaturgos
no período – ganham uma representação que inspira, pelo menos a princípio, admiração e louvor na
caracterização do general de Veneza.
35 Afirma Spurgeon: “Há continuidade também nas imagens das cenas de Talbot, com ênfase no modo por
que Talbot e seus soldados são cercados, enredados, emaranhados, murados, para além da ‘liberdade da fuga’,
‘estaqueados e amarrados quais veados em uma paliçada’, ‘presos por um cinto de ferro, ‘envolvidos com
triste destruição’, ‘em um anel de ousada adversidade’; há continuidade na concepção da morte como um
inimigo a enfrentar lorde Talbot, ‘Morte triunfante, marcada com cativeiro’, ‘mente grotesca, que nos insulta
aqui com teu escárnio’, e no quadro evocado em seu apelo desesperado ao filho morto, pedindo-lhe: ‘Desafia
a morte, falando-lhe queira ela ou não! / Imagina-a um francês e teu inimigo’.” (p. 213-214)
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primeiramente apresentada no terceiro ato quando Talbot, deixando momentaneamente a
batalha para honrar seu monarca, proclama ao jovem rei:
My gracious prince, and honourable peers,
Hearing of your arrival in this realm,
I have awhile given truce unto my wars,
To do my duty to my sovereign:
In sign, whereof, this arm, that hath reclaim'd
To your obedience fifty fortresses,
Twelve cities and seven walled towns of strength,
Beside five hundred prisoners of esteem,
Lets fall his sword before your highness' feet,
And with submissive loyalty of heart
Ascribes the glory of his conquest got
First to my God and next unto your grace.36 (III.4)
As palavras de Talbot revelam uma honra militar e uma nobreza extremada ao
revelar ao rei seu histórico de sacrifícios, lutas e conquistas dedicadas à glória da Inglaterra.
Sua dignidade não está apenas na enumeração das vilas, cidades e terras conquistadas para
o jovem rei. Antes, está na imagem do maior general inglês que abandona o ardor da
batalha para postar-se como humilde súdito aos pés de seu superior. No entanto, tais
palavras de Talbot destoam numa corte em que o desertor Fastolffe está presente. Essa
noção de honradez, dignidade e cavaleirismo medieval são expressas na fala de Talbot, em
que esse acusa o desertor de ser o responsável pela derrota diante dos franceses.
When first this order was ordain'd, my lords,
Knights of the garter were of noble birth,
Valiant and virtuous, full of haughty courage,
Such as were grown to credit by the wars;
Not fearing death, nor shrinking for distress,
But always resolute in most extremes.
He then that is not furnish'd in this sort
Doth but usurp the sacred name of knight,
Profaning this most honourable order,
And should, if I were worthy to be judge,
Be quite degraded, like a hedge-born swain
That doth presume to boast of gentle blood.37 (IV.1)
Relembrando a ordem dos lordes ingleses, dos cavaleiros honrados com um título
que significava dignificar e honrar seu monarca, Talbot usa em sua fala termos como
“valiant”, “virtuous”, “courage” e “credit”, ao mencionar que um verdadeiro “knight” não
teme a morte, nem os desastres, mas mantém-se firme ao seu título sagrado e honrado.
Meu príncipe gracioso, honrados pares, / à nova de que estáveis neste reino, / dei tréguas, por momentos,
aos combates / a fim de vir saudar meu soberanos, / como penhor do que deixa este braço – / que trouxe
para vossa obediência / cinqüenta fortalezas, sete vilas / defendidas por sólidas muralhas, / doze cidades, e
que fez quinhentos / prisioneiros de prol – deixa este braço / cair a espada aos pés de Vossa Alteza, / com a
lealdade de um peito humilde e franco / toda a gloria atribuindo da conquista / primeiro a Deus, depois a
Vossa Graça.
37 Meus senhores, quando a ordem foi criada, / escolhiam-se para cavaleiros / da Jarreteira entre os de berço
nobre, / os virtuosos e bravos, transbordantes / de indômita coragem, de alta fama / conquistada nos
campos de batalha, / os que sabiam desprezar a morte / e trabalhos e riscos não temiam, / mostrando-se
extremados nos perigos. / Quem não seja adornado de tais dotes / usurpa simplesmente o sacrossanto /
nome de cavaleiro, profanando / a ordem de mais nobreza, e bem merece – / a ter valor meu voto nesse caso
– ser degradado como vil labrego / que, em uma sebe achado, se ufanasse / de nascimento sublimado e
nobre.
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Segundo ele, ser covarde ou egoísta seria profanar a sagrada ordem ao qual pertence.
Entretanto, diante da infantilidade do rei38, da ambição dos nobres, e da covardia dos
soldados o que presenciamos, no decorrer de quatro atos, é o grande Talbot, ideal de honra
bélica até o momento na arte shakespeariana, decair a uma morte inglória nos braços do
filho, recém falecido. Antes disso, Shakespeare cria um clima de reencontro familiar
quando Lucy, em 4.3, afirma que Talbot e seu filho não se vêem há sete anos. A partir
dessa cena, o dramaturgo mostrará, em três cenas, como acontece esse reencontro entre o
guerreiro e seu filho. No primeiro diálogo (4.5), vemos Talbot relatar ao filho o conflito
que se anuncia:
O young John Talbot! I did send for thee
To tutor thee in stratagems of war,
That Talbot's name might be in thee revived
When sapless age and weak unable limbs
Should bring thy father to his drooping chair.
But, O malignant and ill-boding stars!
Now thou art come unto a feast of death,
A terrible and unavoided danger:
Therefore, dear boy, mount on my swiftest horse;
And I'll direct thee how thou shalt escape
By sudden flight: come, dally not, be gone. 39 (IV.5)
Se de um lado temos um pai que suplica ao filho que salve sua vida, pois apenas ele,
o jovem Talbot, poderia continuar a dinastia do velho soldado, de outro, temos a resposta
desse filho, resposta tão honrada e digna quanto às palavras de seu pai, ao afirmar sua
determinação de continuar lutando ao lado do patriarca de sua família. Sua visão,
novamente a visão de glória em armas, pertencente a um período anterior à fase em que as
discussões políticas e os desejos de ambição dominam a Inglaterra de Henrique VI, é a
visão de um jovem que teme não a morte, mas covardia. “Here on my knee I beg mortality, /
Rather than life preserved with infamy.”40 Após esse diálogo, ambos marcham para a guerra. Na
cena seguinte (4.6), Shakespeare apresenta os dois defensores da Inglaterra em meio à
batalha contra os franceses. Após salvar a vida do filho, Talbot implora novamente que ele
abandone a luta, pois sua morte significaria, numa primeira instância, a morte de sua
própria linhagem e, numa acepção metafórica mais ampla, a decadência e a morte da
própria honra inglesa. O jovem responde, no mesmo tom de seu pai.
Em IV.1, Exeter, refletindo sobre a decadência do reinado deixado por Henrique V, fala sobre o atual
monarca em IV.1: 'Tis much when sceptres are in children's hands; / But more when envy breeds unkind
division; / There comes the rain, there begins confusion. (É mau que uma criança empunhe o cetro; / pior
que gere a inveja a roaz discórdia: / é o princípio da ruína e da mixórdia). Também aprofunda essa
caracterização de Henrique, Bárbara Heliodora quando escreve: “Desde esta primeira cena fica totalmente
estabelecida a posição fraca, inócua e inepta de Henrique, que só na linha 65 pela primeira vez ousa falar para
tentar interromper uma violenta (e desrespeitosa) discussão entre Goucester e Winchester” (p. 210).
39 Ó jovem João Talbot, mandei buscar-te / a fim de te ensinar a arte da guerra, / para que em ti reviva o
nosso nome, / quando a velhice murcha e os fracos membros / chumbaram teu bom pai numa poltrona. /
Mas – ó maldosos e agourentos astros! – / a uma festa da Morte é que chegaste, perigo inevitável e terrível. /
Monta, caro menino, no cavalo / mais veloz que tivermos, eu teu te mostro / como a vida salvares pela fuga.
/ Vamos, não te demores; parte logo.
40 De joelhos vos suplico: É melhor glória / morrer, do que viver sem ter história.
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JOHN TALBOT
The sword of Orleans hath not made me smart;
These words of yours draw life-blood from my heart:
On that advantage, bought with such a shame,
To save a paltry life and slay bright fame,
Before young Talbot from old Talbot fly,
The coward horse that bears me fail and die!
And like me to the peasant boys of France,
To be shame's scorn and subject of mischance!
Surely, by all the glory you have won,
An if I fly, I am not Talbot's son:
Then talk no more of flight, it is no boot;
If son to Talbot, die at Talbot's foot.
TALBOT
Then follow thou thy desperate sire of Crete,
Thou Icarus; thy life to me is sweet:
If thou wilt fight, fight by thy father's side;
And, commendable proved, let's die in pride.41
Na fala do jovem, percebe-se o mesmo ideal de devoção e zelo por um honra, que
nos parece – pelo menos pelo modo como o poeta a apresenta – já ultrapassada. A
disposição de morrer lealmente por uma causa, por uma noção de valentia cavaleiresca que
não mais existe. A resposta de Talbot, fazendo menção ao mito de Ícaro e Dédalo, revela
não apenas a noção de um pai e de um filho numa terra estrangeira, numa francesa Minos,
mas também a desmedida do filho ao desejar tamanha honra sendo ainda tão jovem.
Finalizando esse crescendo dramático que encena a queda da família Talbot, Shakespeare
encerra, em 4.7, com Talbot ferido mortalmente, recebendo em seus braços o corpo do
filho. A fala do pai, novamente retomando o mito grego ao receber o filho, revela a
expressão poética de Shakespeare ao caracterizar o sofrimento máximo de um pai ao
receber o corpo de seu filho. Também é a caracterização cênica dessa honra extrema da
família Talbot, que morre bravamente defendendo os interesses de sua nação, enquanto
seus generais e monarcas, dialogam sobre política e glória individual - cena retratada em
4.3, na qual York e Somerset, na intenção de prejudicarem um ao outro, recusam-se a
enviar tropas para ajudar Talbot. Por fim, as últimas palavras de Talbot revelam, em seu
lirismo e expressividade dramática, um dos extremos do conflito bélico: o sofrimento
familiar.
João: Mais do que a espada de Orleans, nocivo / me é o que vos ouço. Isto é que sangue vivo / do coração
me tira. A essa vantagem, / de vergonhosa e bárbara roupagem, / que a vida poupa e a fama altiva esmaga, /
ao filho permitindo a fuga, em paga / do trespasse do pai, é preferível / que caia morto, logo, o desprezível /
corcel que me sustenta e que eu me veja / igualado aos vilões da malfazeja / França, objeto de escárnio e
condenado / para sempre a ser títere do fado. / Por toda vossa glória, se eu fugisse, / vosso filho não fora. É
caturrice / falar, pois nesse assunto. Sendo eu filho / de Talbot, saberei morrer com brilho. / Talbot: Nesse
caso, meu Ícaro, acompanha / teu pai de Creta em mais esta façanha / desesperada. Tua vida é quanto / eu
tinha de mais caro. No entanto, se queres combater, fica ao meu lado, e gloriosos morramos, filho amado.
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And in that sea of blood my boy did drench
His over-mounting spirit, and there died,
My Icarus, my blossom, in his pride.
Enter Soldiers, with the body of
JOHN TALBOT
(…)Come, come and lay him in his father's arms:
My spirit can no longer bear these harms.
Soldiers, adieu! I have what I would have,
Now my old arms are young John Talbot's grave.
Dies42
Aqui vale um comentário estilístico sobre estas últimas três cenas. Primeiramente,
percebe-se que o estilo do diálogo entre Talbot e seu filho é diferente do resto do drama
por ser em verso rimado, sendo que em sua maioria a peça apresenta versos brancos. Em
Shakespeare o contraste de entre verso e prosa serve para diferenciar personagens nobres
de personagens comuns. Entre nobres, falas com verso branco e rimado têm dois efeitos:
ou apresentar excessos argumentativos de linguagem43 ou elevar a linguagem para uma
capacidade lingüística pertencente a um período remoto, denotando assim grandeza e
nobreza. Esse é o teor das falas da família Talbot nessas três cenas. O que Shakespeare
apresenta aqui não é meramente um diálogo verborrágico, já ultrapassado, mas uma
representação estilizada de uma arte retórica que já está em declínio no seu tempo,
intensificando ainda mais a honra de Talbot, honra também prestes a desaparecer.
Enquanto as discussões políticas na peça são em verso branco, Shakespeare impressiona
seus espectadores, nessas três cenas, com uma caracterização poética da bravura honrosa e
da dignidade familiar dos Talbot diante de sua destruição. Após a morte do general inglês,
entra em cena Joana D’Arc e seus compatriotas franceses para regozijarem-se diante do
corpo de seu maior inimigo. Tal regozijo parece ressaltar o desprezo pela figura de Joana,
apresentando-a como uma mulher fria e desrespeitosa diante do corpo do honrado inimigo.
No entanto, como se percebe a seguir, destino bem menos glorioso espera a “santa”
guerreira francesa.
3. Joana: a ascensão e a queda da França de Carlos
O historiador Edward M. Burns chama a Guerra das Rosas e o conflito entre a
Inglaterra e a França de “o período mais sombrio” do desenvolvimento das duas nações.
Entretanto, é nessas décadas de desalento e desesperança, que Joana D’Arc surge como
uma figura marcantemente religiosa numa França politicamente acuada. No ano de 1429,
afirma Burns, essa “jovem camponesa, analfabeta, mas extremamente devota, procurou o soberano
francês, não coroado, Carlos VII, para anunciar que havia sido incumbida por Deus para expulsar os
ingleses da França”44. O que de fato ela parcialmente conseguiu, inspirando as tropas e
reavivando um já fracassado espírito nacionalista e de confiança religiosa na França ao fazer
Carlos ser coroado ainda no mesmo ano. No entanto, um ano depois Joana foi capturada
Num mar de sangue, então, meu caro filho / o espírito afogou com grande brilho. / Desta arte pereceu
minha esperança, / meu Ícaro indomável, uma criança. Entram soldados, carregando o corpo do jovem Talbot (...)
Nesses braços / o colocai; disponho só de escassos / momentos; suportar não me é possível / por mais
tempo esta vida incompreensível. / Adeus, meus companheiros; ora alcanço / quanto almejar pudera: no
remanso / destes braços concede-me a ventura / que achar possa meu filho a sepultura. Morre
43 Vide o discurso do mestre-escola em Trabalhos de Amor Perdidos ou a disputa jocosa por meio de provérbios
rimados entre Brabâncio e o Duque de Veneza em Otelo.
44 Burns, p. 327.
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por franceses traidores de Borgonha, distrito que desejava a independência, e entregue aos
ingleses, por quem foi presa, julgada e condenada à morte na fogueira como herege.
Neste trabalho, interessa perceber como o dramaturgo trabalhou a personagem na
primeira parte de Henrique VI. Primeiramente, é correto afirmar que seria impossível para
Shakespeare dar a personagem de Joana uma caracterização que não fosse negativa. Se na
França, ela era vista como mártir sagrada, na Inglaterra, devido às vitórias das tropas
comandadas por ela contra os ingleses, era vista sob uma ótica completamente deturpada.
Shakespeare faz jus a essa visão mostrando-a forte e poderosa num primeiro momento,
tanto no aspecto militar quanto argumentativo, para depois mostrá-la insana sob o julgo da
Inglaterra. Essa visão antitética entre altura e baixeza, é a mais comum na crítica dedicada
ao drama, na qual os comentadores sempre desvalorizam a caracterização que o autor fez
da heroína francesa45. Mas num segundo plano, ela também pode ser vista meramente
como uma contraparte francesa para a representação de patriotismo inglês, representado
por Talbot. Ainda numa terceira interpretação, mais pertinente para minha análise neste
texto, Joana pode ser lida como um prenúncio do interesse do poeta em aprofundar suas
personagens em caracteres humanos e psicológicos. Se o público lamenta a queda de
Talbot, numa certa instância, também é possível que tenham se sensibilizado com a figura
dessa jovem que é abandonada por sua família, por seus compatriotas e até pelos seus
próprios demônios, que antes a haviam ajudado.
Contrasto aqui duas falas que demonstram o desenvolvimento descendente da
personagem, do alto bélico e argumentativo ao decadente em face da morte.
Primeiramente, ainda no primeiro ato, Shakespeare mostra o momento em que o príncipe
Carlos é convencido, pela eloqüência e também pela pujança de Joana ao combater o
futuro monarca, de que a jovem possui a benção divina para liderar as tropas francesas.
Joana, digna, firme e exultante, dirige-se a Carlos, após identificá-lo entre outros homens,
nos seguintes termos:
Como exemplo dessa interpretação apurada demais para ressaltar as qualidades poéticas de Joana, sob a
pena de Shakespeare, contrasto Harold Bloom – incapaz de aprofundar sua leitura da personagem – e Park
Honan – no seu breve comentário sobre a ambigüidade da personagem. “A Joana D’Arc de Shakespeare mais
parede uma das companheiras de Falstaff. Vulgar e desagradável em algumas cenas, corajosa e direta em
outras, essa Joana D’Arc desafia a crítica. Shakespeare não a faz coerente; talvez, construí-la de maneira
coerente estivesse além da capacidade do autor à época. Todavia, é arriscado subestimá-lo, mesmo quando
neófito, e Joana, embora personagem um tanto ou quanto mal definido, estranhamente, torna-se memorável.
Por que não ser, a um só tempo, prostituta diabólica e líder político-militar dotada de uma genialidade
primitiva? Estrilada e geniosa, ela consegue alcançar os seus objetivos - e ser tachada de feiticeira e queimada
viva por brutamontes ingleses não há de levar pessoa alguma a atitudes bem-educadas. A jovem vociferante
tem seu charme, ainda que rançoso, e, com toda certeza, mais apelo do que o protagonista, o bravo – e
entediante – Talbot. Joana é uma virago, guerreira mais astuta do que o valentão Talbot, e, devidamente
encenado, seu personagem causa grande impacto. Quem gostaria que ela fosse impecavelmente virtuosa,
como as amazonas que, hoje em dia, gratificam o sadomasoquismo masculino nos seriados de tevê? Não é
que Shakespeare seja ambivalente com relação a Joana; ele está, na verdade, interessado em explorar o
personagem: ela quer vencer, e se a vitória advirá do campo de batalha ou da cama é secundário. Moralismo,
sempre fora da visão dramática de Shakespeare, na Primeira Parte de Henrique VI, aparece como preconceito
nacionalista. Para os franceses, Joana é a reencarnação de Débora, a profetisa-guerreira da Bíblia; para os
ingleses, está condenada a ser Circe.” (Bloom, p. 76) “A França não é pior do que a Inglaterra em nada. A
inimiga mortal de Talbot, Joana, a Donzela, a princípio parece ser reconhecidamente Joana D’Arc. É descrita
como uma Débora, uma “filha de Astréia” e até como a “santa da França” (I.viii.29). (...) Mesmo assim, Joana
recorre a demônios e ao sexo quando os poderes da luz lhe falham, diz estar grávida para escapar do martírio
e acaba por não parecer mais ameaçadora do que uma bruxa pragmática e engraçada”. (Honan, p. 183)
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Dauphin, I am by birth a shepherd's daughter,
My wit untrain'd in any kind of art.
Heaven and our Lady gracious hath it pleased
To shine on my contemptible estate:
Lo, whilst I waited on my tender lambs,
And to sun's parching heat display'd my cheeks,
God's mother deigned to appear to me
And in a vision full of majesty
Will'd me to leave my base vocation
And free my country from calamity:
Her aid she promised and assured success:
In complete glory she reveal'd herself;
And, whereas I was black and swart before,
With those clear rays which she infused on me
That beauty am I bless'd with which you see.
Ask me what question thou canst possible,
And I will answer unpremeditated:
My courage try by combat, if thou darest,
And thou shalt find that I exceed my sex.
Resolve on this, thou shalt be fortunate,
If thou receive me for thy warlike mate.46 I.ii
Após o discurso de Joana, que apresenta uma série de características bucólicas para
depois reforçar a visão do divino que a abençoou e ungiu, Carlos decide por a capacidade
militar de Joana a prova, enfrentando-a corpo a corpo. A jovem vence e recebe o comando
das forças francesas. No decorrer da peça ao enfrentar Talbot tanto em discursos quanto
no campo de batalha, ao dissuadir o Duque de Borgonha para voltar ao lado francês e ao
levar Carlos a várias vitórias, vemos Shakespeare elevando a personagem até as alturas de
sua representação, culminando com a cena em que a Débora francesa encontra o corpo do
Dédalo inglês, Talbot. Depois disso, a queda que aguarda Joana é representada por
Shakespeare – em toda a sua ambivalência – ao mostrar a jovem dialogando com seus
demônios, que não sabemos se tratam de fato de espíritos ou da consciência doentia da
mártir.
The regent conquers, and the Frenchmen fly.
Now help, ye charming spells and periapts;
And ye choice spirits that admonish me
And give me signs of future accidents.
Thunder
You speedy helpers, that are substitutes
Under the lordly monarch of the north,
Appear and aid me in this enterprise.
Enter Fiends
This speedy and quick appearance argues proof
Of your accustom'd diligence to me
.Now, ye familiar spirits, that are cull'd
Delfim, por nascimento eu sou pastora, / sem instrução alguma em qualquer arte; / mas quis o céu e,
assim, nossa graciosa / Senhora iluminar minha humildade. / Quando eu guardava minhas ovelhinhas, /
expondo o rosto aos raios esbraseantes / do sol, a mãe de Deus dignou-se em vir-me / visitar, em visão cheia
de galas. / Mandou que abandonasse o baixo ofício / e dos males a pátria libertasse; / auxílio prometeu e
êxito pleno. / Revelou-se-me em toda a sua glória; / e porque antes eu era mais trigueira / quase preta,
infudiu-me ela seus raios / ofuscantes, que logo me deixaram / com beleza abençoada que estais vendo /
Dirige-me as perguntas que quiseres; / sem vacilar responderei a todas. / Põe-me à prova em combate, se te
atreves; / verás que me acho acima do meu sexo. / Resolve; serás sempre afortunado / se me levares a teu
lado.
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Out of the powerful regions under earth,
Help me this once, that France may get the field.
They walk, and speak not
O, hold me not with silence over-long!
Where I was wont to feed you with my blood,
I'll lop a member off and give it you
In earnest of further benefit,
So you do condescend to help me now.
They hang their heads
No hope to have redress? My body shall
Pay recompense, if you will grant my suit.
They shake their heads
Cannot my body nor blood-sacrifice
Entreat you to your wonted furtherance?
Then take my soul, my body, soul and all,
Before that England give the French the foil.
They depart
See, they forsake me! Now the time is come
That France must vail her lofty-plumed crest
And let her head fall into England's lap.
My ancient incantations are too weak,
And hell too strong for me to buckle with:
Now, France, thy glory droopeth to the dust.47 V.iii
Nesse momento, Joana perde a sua capacidade de negociação e argumentação.
Aqui, diante do fracasso que a captura representa, a jovem oferece aos demônios seu
corpo, seu sangue e sua alma. Mas em nenhuma dessas ofertas, tem sucesso. A maior crítica
se faz a figuração de Joana, por Shakespeare, diz respeito ao último ato, no qual a guerreira
francesa é queimada. Ali, não mais a investindo de caracteres gloriosos ou de decadência
trágica ao suplicar a demônios mudos, Joana se mostra covardemente indigna ao rejeitar
seu próprio pai, um pastor ali presente, e imoral ao jurar virgindade para depois se mostrar
em dúvida sobre a identidade paterna do filho que diz carregar. Apesar de ainda manter
firme um relativo poder retórico – mais perto da prevaricação pura do que da
argumentação lógica – são as palavras do pastor, pai rejeitado pela filha que diz descender
de reis, que marca a crueza da cena:
Vence o regente; os nossos não resistem. / Ora valei-me, encantos e amuletos! / E vós, também, espíritos
seletos / que me guiais, mostrando-me o futuro! / Troveja / Auxiliares velozes, que debaixo / vos achais do
potente rei do norte, / aparecei-me! / Entram demônios / A pressa com que viestes me dá prova / de vossa
costumeira diligencia / em me servir. Agora, familiares / espíritos, tirados das regiões / subterrâneas
poderosas, auxiliai-me / mais uma vez, para que a França vença. / Os demônios passeiam e nada respondem / Não
fiqueis por mais tempo assim calados. / Fostes alimentados com meu sangue; / ora estou pronta a me privar
de um membro, que vos entregarei, contanto que outro / benefício eu receba, se quiserdes / condescender
em me auxiliar de novo. Abaixam a cabeça / Como! Nem o meu corpo, nem a oferta / do próprio sangue vos
incita agora / a me prestar a ajuda de costume? / Dou-vos a alma; a alma, o corpo; dou-vos tudo, / contanto
que a Inglaterra não nos vença. / Desaparecem / Abandonaram-me! É chegado o tempo / de curvar o penacho
altivo da França / e de pousar a fronte no regaço / da Inglaterra. São fracos meus feitiços, / fracos demais, e
o inferno muito forte / para me obedecer. Agora, a França, / vai tua glória reduzir-se a nada.
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Now cursed be the time
Of thy nativity! I would the milk
Thy mother gave thee when thou suck'dst her breast,
Had been a little ratsbane for thy sake!
Or else, when thou didst keep my lambs a-field,
I wish some ravenous wolf had eaten thee!
Dost thou deny thy father, cursed drab?
O, burn her, burn her! hanging is too good. 48 V.ii
Assim, Shakespeare finaliza a primeira parte de Henrique VI despedaçando a
imagem coesa do estado inglês por meio da ruptura das próprias relações familiares. Se no
quarto ato vemos pai e filho morrerem juntos, abandonados na crueza da guerra, o quinto
ato finaliza com um pai amaldiçoado a filha após esta o ter renegado. Se numa instância,
tem-se uma representação tipificada da jovem inimiga da Inglaterra, em outra, se percebe
no drama de Shakespeare a representação precisa da desgraça geral de dois povos cujos
governantes não estão a altura de seus súditos, aspecto que será ainda mais trabalhado nas
próximas três peças da tetralogia49. No fim da peça, Suffolk facilmente convence Henrique
a casar-se com uma francesa, o que indica o fim da guerra, fazendo com que os esforços
individuais, de Talbot lutando pela Inglaterra e de Joana pela França, foram em vão.
4. Conclusão
Assim, estudando algumas falas de Talbot e Joana, o que se nota é que “Shakespeare
tem pena dos que cometem erros fatais e admiração pelos desperdiçados esplendores de sentimento de seus
barões condenados. Suas cenas de batalha são pouco mais do que breves testemunhos nefastos da ignorância
Maldita, então, seja a hora em que nasceste. / Só quisera que o leite que mamaste / no seio de tua mãe
fosse veneno / de matar rato, ou eu te houvesse um lobo / voraz estraçalhado, quando as cabras / no campo
me guardavas. Não conheces / teu pai, mulher maldita? Então queimai-a, / queimai-a, que enforcá-la é honra
excessiva!
49 É interessante perceber aqui essa decadência militar, social e psicológica na interpretação do principal
ilustrador da obra de Shakespeare, John Gilbert (1817-1897). Sua obra é composta de quase oitocentas
xilogravuras que acompanham muitas das edições do autor. No Brasil, são as ilustrações desse artista que
estão presentes nas edições cujo tradutor é Carlos Alberto Nunes. Abaixo, três ilustrações de Joana D’Arc
que demonstram essa caracterização descendente da personagem.
48
Figura 1. John Gilbert. Ilustração para 1 Henrique VI.2.2. Joana em sua glória militar.
Figura 2. John Gilbert. Ilustração para 1 Henrique VI.4.6. Joana ora em vão aos seus demônios.
Figura 3. John Gilbert. Ilustração para 1 Henrique VI.5.1. Joana diante do pai antes de ser queimada.
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e dos absurdos do homem...”50 e de suas guerras. Segundo as palavras do conde de Exeter, a
guerra civil é semelhante a uma doença degenerativa que vai decompondo, destroçando e
destruindo o corpo do estado:
This late dissension grown betwixt the peers
Burns under feigned ashes of forged love
And will at last break out into a flame:
As fester'd members rot but by degree,
Till bones and flesh and sinews fall away,
So will this base and envious discord breed.51 III.i
Com a primeira menção ao fogo queimando e desintegrando algo, a fala de Exeter
remete a uma clara visão infernal da carne, músculos e ossos que vão de desprendendo do
corpo. Do mesmo modo, Shakespeare aprofunda a desintegração do corpo estatal durante
o reinado de Henrique VI. Após percebermos no decorrer dessa primeira peça que os
interesses pessoais ficaram à frente do interesse primordial coletivo, veremos como, nas
outras duas partes da tetralogia, Shakespeare representa o cancro que destroçará o trono
inglês: a fraqueza política e ambição desmedida.
5. Referências
BLOOM, Harold. Shakespeare: A Invenção do Humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
BURNS, E.M.,LERNER,R.E., MEACHAM, S., História da Civilização Ocidental, Globo, 28a
ed. RJ, 1986.
GREENBLATT, Stephen. Will in the World – How Shakespeare Becomes Shakespeare. New
York: W. Norton & Company, 2004.
HELIODORA, Barbara. A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
HOLDEN, Anthony. Shakespeare. São Paulo: Ediouro, 2003.
HONAN, Park. Shakespeare – Uma Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KERMODE, Frank. A Linguagem de Shakespeare. São Paulo: Record, 2006.
KOTT, Jan. Shakespeare nosso Contemporâneo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
SHAKESPEARE, William. Obras Completas de Shakespeare: a vida do Rei Henrique V;
Henrique VI. Traduzido por Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Sao Paulo: Melhoramentos, sem
data.
__________. The First Part of King Henry the Sixth. Tucker Brooke (ed.) Publisher: New
Haven, CT: Yale University Press, 1918.
WELLS, Stanley. Oxford Dictionary of Shakespeare. New York, Oxford University Press, 1998.
Honan, p. 183.
Essa recente / briga dos pares arde sob as cinzas / fingidas de uma falsa cortesia, / mas vai logo explodir
em chama ardente. / Como os membros aos poucos apodrecem / até caírem nervos, carnes e ossos: assim
vai dar-se com essa vil discórdia.
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2 – Henrique VI, de Shakespeare: a incompatibilidade da fé com o poder político
nas ações do monarca
Enéias Farias Tavares52
Professor de Literatura Greco-Latina da UFSM
Resumo: Neste texto, estudo a relação entre o cenário religioso dividido na Inglaterra e a
caracterização do rei Henrique VI na peça de Shakespeare. Neste contexto, a análise do
objeto artístico apresenta também uma reflexão a respeito do período histórico em que a
peça foi encenada, especialmente em suas implicações cultural-religiosas.
Palavras-Chave: Shakespeare – 2 Henrique VI – Crítica Literária
Abstract: In this text, I study the relationship between the divided religious scene in
England and the characterization of King Henry VI in the play by Shakespeare. In this
context, the analysis of the artistic object also presents a reflection about the historical
period in which the drama was performed, especially in its cultural-religious implications.
Key-Words: Shakespeare – 2 Henry VI – Literary Criticism
1. A inaptidão de um rei e o estado caótico de uma nação
Na trilogia dedicada a Henrique VI, um dos principais pontos dramáticos trabalhados por
Shakespeare é o sofrimento familiar em meio à guerra. Se na primeira parte teremos Talbot
chorando a morte de seu filho e morrendo após isso, na terceira parte teremos a famosa cena em
que o próprio monarca testemunha um pai trazendo o corpo de seu filho e depois um filho
trazendo o corpo de seu pai, ambos lutando em lados opostos da guerra civil e sendo culpados
de derramar o próprio sangue familiar. Entre essas duas representações extremadas de
sofrimento familiar, temos, na segunda parte da tetralogia, a cena em que o jovem Clifford,
citando Virgílio e o relato do príncipe troiano Enéias que levou o pai Anquises nas costas,
depara-se com o patriarca de sua família, que foi assassinado pelos conspiradores. A fala do
jovem serve para marcar o cenário no qual a segunda parte de Henrique VI se passa: o cenário da
desolação causada pela guerra civil.
Enéias Farias Tavares é crítico literário e tradutor. Professor de Literatura Greco-Latina na Universidade
Federal de Santa Maria e mestre em Letras pela mesma instituição. E-mail: [email protected].
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Shame and confusion! all is on the rout;
Fear frames disorder, and disorder wounds
Where it should guard. O war, thou son of hell,
Whom angry heavens do make their minister
Throw in the frozen bosoms of our part
Hot coals of vengeance! (…)
Seeing his dead father
O, let the vile world end,
And the premised flames of the last day
Knit earth and heaven together!
Now let the general trumpet blow his blast,
Particularities and petty sounds
To cease!53 V.ii
Em meio a palavras que reconstroem uma visão apocalíptica, Clifford fala de
“shame”, “confusion” e “desorder”. Essa desordem, que faz o céu e o inferno se
mesclarem confusamente é notada em duas instâncias: o caos governamental, sendo o rei a
principal autoridade e o principal responsável por sua fraqueza e covardia, e o caos social,
no qual magistrados são assassinados, revoluções nascem e morrem em instantes e em que
homens comuns – como Jack Cade – chamam para si a glória da liderança. Se em
Shakespeare, Caos é uma palavra que aparece relacionada à mentalidade problemática de
algumas personagens, ao poder político corrompido e aos desastres naturais54, em 2
Henrique VI a palavra ganha uma conotação maior, sendo associada a todas as cadeias
relações da Inglaterra, da mais alta à mais baixa. Tal ambiente caótico é percebível na
própria trama dessa peça em que o grande número de personagens e suas razões egoístas
ou covardes só aumentar a desorganização geral do estado.55
O primeiro ato inicia com as bodas de Henry e Margarida nas quais são feitas
diversas concessões a França. Gloster é o único que ainda defende a soberania da
Inglaterra, mesmo que sua esposa, Eleonor, o tente convencer do contrário. A duquesa
chama feiticeiros para prever o futuro da Inglaterra, mas é presa por sedição por York. No
ato dois, vê-se as tramóias de York, Winchester e Suffolk para tomar o poder. Gloster
perde seu título de protetor e a duquesa Eleonor é banida. A decadência do reino se mostra
também em sua população desregrada e falsa, exemplificada pelo encontro do rei com o
falso cego Simpcox e a desavença entre o armeiro Horner e o aprendiz Peter. No terceiro
ato, Gloster é preso sob as ordens de Suffolk e Margarida. York é designado a lutar contra
Vergonha e confusão! Debandam todos! / Nasce a desordem do pavor, ferindo / quem amparar devera. Ó
guerra, filha / do inferno, transformada em instrumento / da cólera dos céus, lança nos frios / peitos dos
nossos homens os carvões / ardentes da vingança! (...) Vê o corpo do pai. / Acabe o mundo / desprezível! As
chamas prometidas / do último dia a terra e o céu confundam! / Abafe a universal trombeta os ruídos /
particulares e as mesquinhas vozes. (Todas as traduções são de Carlos Alberto Nunes).
54 Em Otelo, o domínio do ciúme sob a protagonista é o caos vindo novamente. Em Lear ele representa esse
governo que está sendo destrocado pelas duas filhas do rei. Em Macbeth, o caos se fez presente em imagens
naturais apocalípticas que marcam a usurpação do reinado de Duncan.
55 Sobre essa figuração da desintegração real e estatal, Park Honan escreve: “No começo da peça, os nobres
da corte já discutem a sucessão de Henrique, e Shakespeare explora, de forma ampla a panorâmica, as
relações de causa e efeito. Para o dramaturgo, o reinado de Henrique VI foi um vazio que possibilitou
explorar o início do caos e da desordem. Esses temas seriam duradouros, ainda presentes em suas tragédias
mais maduras – assim como a humanidade que ele confere ao infeliz monarca, cada vez mais eloqüente à
medida que seu destino se torna trágico. (...) A obra de Shakespeare está prestes a mostrar prodígios temáticos
ainda maiores – como, por exemplo, o fim da ordem civil refletida nas famílias guerreando entre si, irmão
tramando matar irmão, e a humanidade reduzida à anarquia amoral dos animais e dos quatro elementos
formadores da natureza (terra, água, fogo e ar).” P. 99.
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os irlandeses, mas deixa Jack Cade com a designação de provocar um levante contra
Henrique. Gloster é assassinado antes de ser trazido a julgamento perante Henrique.
Warnick inspeciona o corpo e acusa Suffolk. Pressionado pela popularidade de Gloster
junto ao povo, Henrique envia Suffolk para o exílio, onde é morto por Withmore. O
quarto ato é dedicado a representar o levante civil liderado por Cade. O levante é vencido
por Buckingham. Nesse interin, York volta da Irlanda com seu exército e seus dois filhos,
Eduardo e Ricardo exigindo a prisão do duque de Somerset. No último ato, Henrique e
York discutem. Este é preso mas escapa assassinando lorde Clifford, o único que ainda
protegia o direito real de Henrique devido às conquistas de seu pai, que é retirado de cena
por seu filho. Henrique, Margarida e o jovem Glifford fogem da batalha, indo para
Londres, sendo perseguidos por York e seus dois filhos.
Diante desses inúmeros jogos, complôs, levantes e assassinatos, é que se evidencia a
incapacidade de Henrique de dirigir a nave estatal. Nesse sentido, Shakespeare usa uma
característica de Henrique que, embora fosse vista como qualidade benéfica, torna-se
defeito por representar tanto a reticência do rei de tomar decisões quanto à própria
covardia – disfarçada de fé no divino – do monarca diante de situações críticas. Neste
artigo, pretendo perceber como a religiosidade dividida da Inglaterra elisabetana pode ter
influenciado na caracterização que o dramaturgo faz de Henrique VI, e como se constitui
essa representação da religiosidade como fraqueza.
2. A delicada relação entre política e religião durante o período elisabetano
O pai de Elizabeth, Henrique VIII, desde seu início como rei, em 1509, mostrou-se
devoto e subordinado a Roma. No entanto, os panfletos calvinistas, as idéias luteranas e as
reflexões humanistas já causavam em solo inglês uma relativa insatisfação com o papado.
Somando-se a isso o casamento de dezoito anos com uma princesa espanhola que havia
resultado em diversos filhos mortos e apenas uma princesa, Maria, levando o povo a
desconfiar da legitimidade dessa união, Henrique VIII decidiu separar-se de Catarina. Para
tanto, usou um preceito bíblico56 que afirmava que o homem que se casa com a esposa de
seu irmão não teria a bênção da paternidade. Problema esse que se adequava perfeitamente
ao trono inglês, pois Catarina havia se casado inicialmente com o irmão mais velho de
Henrique, Artur. Nesse interin, sua paixão pela dama de honra Ana Bolena reforçou ainda
mais a vontade do rei, levando o pedido ao papa Clemente VII, em 1527. Como a
autoridade papal estava sob a influência do imperador Carlos V, sobrinho de Catarina, a
única resposta que Henrique teve foi a sucessiva procrastinação do julgamento do caso.
Cansado da espera e sentindo-se prejudicado, Henrique convoca, em 1931, uma assembléia
de prelados e obriga-os a aceitá-lo como autoridade principal no reino da Inglaterra,
chamando para si toda a liderança que pertencia a Roma. Após isso, influenciou o
Parlamento a romper com as responsabilidades tributarias para com Roma, fundando assim
a Igreja Anglicana e rompendo definitivamente com todos os laços com o papa. Em 1534,
Henrique era a principal autoridade política e religiosa da Inglaterra e, estando agora
separado de Catarina, faz de Ana sua rainha. Dois anos depois, Ana seria condenada à
morte por suspeitas de traição e após uma série de outros casamentos também
problemáticos57, Henrique morre em 1547, deixando três filhos: Eduardo, filho da terceira
56
57
De Levítico, capítulo 20, versículo 21.
Catarina de Aragão, Ana Bolena, Jane Seymour, Ana de Cleves, Catarina de Howard e Catarina Parr.
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esposa do monarca, Jane Seymor; Maria, filha de Catarina e Elizabeth, filha de Ana
Bolena.58
O primeiro a substituir Henrique como rei inglês foi o filho Eduardo, coroado
Eduardo VI em 1548. Menos de cinco anos depois, aos dezessete anos, faleceu, deixando
sua irmã Maria como principal pretendente à rainha da Inglaterra. Se Eduardo, sob
influência do sacerdócio, havia reforçado o caráter protestante da religião anglicana, Maria
reata a religião oficial com o catolicismo de sua mãe, condenando à fogueira aqueles que
não se arrependessem de suas crenças e ritos anglicanos. Casada com o príncipe espanhol,
Filipe, Catarina não teve filhos e veio a morrer em 1557, deixando a “filha de uma
meretriz” como principal candidata ao governo inglês. Quando Elizabeth é coroada, em
1558, ela depara-se com um reino religiosamente dividido e politicamente fraco. Além
disso, sua recusa em casar-se, fez com que diversos nobres e súditos atentassem contra sua
vida. Mas Elizabeth manteve-se resoluta em sua determinação de instaurar na Inglaterra a
religião instituída por seu pai, o Anglicanismo.
É nesse cenário dividido, entre uma tradição familiar católica e uma imposição –
mesmo que mais leve do que os assassinatos promovidos por Maria – governamental para
com o Anglicanismo, que Shakespeare nasce. Stephen Gleenblatt, no seu livro Will in the
World, especificamente no capítulo em que trata da composição de Hamlet ao lado da morte
do filho do dramaturgo, Hamnet, traça um interessante perfil da liturgia variada do
catolicismo e da aridez imagética do protestantismo inglês59. Assim, o que vemos por toda a
obra de Shakespeare não é o não interesse de Shakespeare por discussões religiosas - como
veremos, 2 Henrique VI apresenta uma reflexão bem interessante entre a relação
problemática entre política e religião. Antes, há em Shakespeare a marca de um período no
qual assuntos religiosos não poderiam ser tratados ou encenados no palco. Não quando
muitos dos ali presentes haviam perdido parentes, amigos e vizinhos, fossem eles
protestantes ou católicos, nos governos de Henrique VIII, Eduardo VI, Maria ou
Elizabeth.
Assim, Shakespeare não tendo a possibilidade de discutir abertamente sua posição
religiosa – seja ela simpática para com o catolicismo de seu pai ou a religião oficial de sua
rainha – centrará seu interesse em outro tipo de reflexão: indiferente da crença religiosa, até
que ponto um rei poderia manter sua convicção cristã – católica ou anglicana – diante das
duras decisões que um monarca precisa tomar? E até que ponto, na identidade pública de
um governante, a religiosidade poderia aparecer como qualidade ou como defeito? O modo
como Henrique VI é caracterizado pelo dramaturgo – numa clara relação diretamente
proporcional de religiosidade e covardia – revela a profundidade da reflexão do autor.
3. Henrique e sua religiosidade: fé ou covardia?
Em 2 Henrique VI, há duas possibilidades de lermos o posicionamento religioso:
uma associada à ambição desmedida e outra à covardia. Essa primeira possibilidade é
expressa na configuração dos defeitos e caracteres pertencentes a principal figura religiosa
da peça: o cardeal Winchester. A influência que este tem sobre as ações do frágil monarca é
58
59
Burns, p. 392.
Ver e citar.
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um claro exemplo de que Henrique é simplesmente um joguete nas mãos daqueles que
estão ao seu redor. Sobre as intenções do sacerdote, Salisbury fala:
Pride went before, ambition follows him.
While these do labour for their own preferment,
Behoves it us to labour for the realm.
I never saw but Humphrey Duke of Gloucester
Did bear him like a noble gentleman.
Oft have I seen the haughty cardinal,
More like a soldier than a man o' the church,
As stout and proud as he were lord of all,
Swear like a ruffian and demean himself
Unlike the ruler of a commonweal.60 I.I
Aqui, o cardeal é descrito como um ambicioso soldado, no qual a imagem religiosa serve
apenas para amenizar ou esconder seu real intento: obter o próprio beneficio financeiro,
buscando o poder acima de tudo. Mas adiante, vê-se a segunda menção ao sentimento
religioso – a mais preponderante no drama - agora associada à fraqueza, covardia e
indignidade no que concerne a figura do próprio rei. Na citação abaixo, nota-se o
desprezo que a própria rainha Margarida nutre pela religiosidade exacerbada do marido.
Sua fala é sobre a nítida diferença entre a visão ideal que tinha do rei como um político
poderoso e a realidade que se apresenta, visto que o monarca se apresenta como um
religioso fraco e covarde.
I tell thee, Pole, when in the city Tours
Thou ran'st a tilt in honour of my love
And stolest away the ladies' hearts of France,
I thought King Henry had resembled thee
In courage, courtship and proportion:
But all his mind is bent to holiness,
To number Ave-Maries on his beads;
His champions are the prophets and apostles,
His weapons holy saws of sacred writ,
His study is his tilt-yard, and his loves
Are brazen images of canonized saints.61 I.iii
Tal descrição por parte da própria rainha é um reflexo da imagem frágil que
Henrique VI apresenta. Se o seu pai foi um monarca amado e guerreiro, que sabia divisar
muito bem sua imagem de rei e sua obrigações religiosas, Henrique VI passivamente espera
que os crimes apregoados em seu reino sejam resolvidos pela graça divina. Segundo a
história, esse Henrique foi uma “mera sombra de seu heróico e briguento pai”62, sendo um
60
Foi-se o orgulho; a ambição lhe vai no encalço. / Enquanto eles só tratam de si próprios, / a nós cumpre
cuidar do bem da pátria. Nunca vi comportar-se o Duque de Humphrey / a não ser como um nobre gentilhomem; / mas, ao contrário, vi bastantes vezes / este altivo cardeal – que mais parece / soldado do que
padre, sempre cheio / de si mesmo e insolente – sem propósito / jurar como um rifião e fazer coisas / de
todo em todo indignas do alto nome / de um regente do império.
61
Vou dizer-te, / Pole, uma coisa: quando na cidade / de Tours correste lança em homenagem / do meu
amor, e os corações roubaste / às senhoras francesas, fiz idéia / de como era o Rei Henrique, / em
coragem, maneiras e elegância. / Mas ele só aspira à santidade, / rezar ave-marias no rosário; / os
apóstolos e profetas o amparam; / por armas tem sentenças da Escritura; / seu gabinete é a liça de
exercícios; / seus amores, apenas as imagens / dos santos eu já estão canonizados.
62
Honan, p. 97.
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monarca frágil e indeciso quanto a sua atividade política.63 Tal incapacidade do rei de
portar-se como figura de autoridade suprema, revelando em contraste uma piedade cristã
não condizente com a de um monarca, faz notar em todos os aspectos da vida inglesa. O
duque de Gloster, percebendo que sua vida corre perigo por ser o único a pensar no bem
estar coletivo, proclama:
Ah, gracious lord, these days are dangerous:
Virtue is choked with foul ambition
And charity chased hence by rancour's hand;
Foul subornation is predominant
And equity exiled your highness' land.
I know their complot is to have my life.64 III.i
Interessante aqui Gloster opor “virtue” e “ambition”, no segundo verso de sua fala. São
dias perigosos para homens como Gloster, assim como eram para homens como Talbot,
visto que a virtude excessiva do rei abre o caminho para que a ambição de seus súditos
mais próximos se apresente. Antes de ser acusado, preso e assassinado a mando dos
conspiradores, Gloster adverte Henrique de que os homens que estão ao seu redor
possuem a natureza de lobos ferozes e famintos, prestes a devorar o simbólico cordeiro
que é o reticente Henrique.
Ah! thus King Henry throws away his crutch
Before his legs be firm to bear his body.
Thus is the shepherd beaten from thy side,
And wolves are gnarling who shall gnaw thee first.
Ah, that my fear were false! ah, that it were!
For, good King Henry, thy decay I fear.65 III.i
A partir desse momento, quando Henrique despede seu único partidário – o fiel e
temeroso Gloster, o que vemos cada vez mais é o rei sendo tratado como um cordeiro.
Mas não como símbolo de santidade e soberania, como o cordeiro bíblico, e sim como um
animal frágil, passivo, que é levado e conduzido por qualquer caminho, a tomar qualquer
Com o próprio Shakespeare demonstrará mais tarde, na peça que encerra sua segunda tetralogia, Henrique
V foi o maior monarca que a Inglaterra já havia visto até então. Considerado por alguns como o Alexandre
Inglês, devido as suas conquistas e aos relatos de batalhar no meio de seus homens, não apenas no comando
(detalhe que Shakespeare usa brilhantemente no grande discurso da festa de São Crispin, antes da batalha de
Agincourt, em Henrique V.4.3), a figura do monarca destoa enormemente de seu filho, Henrique VI. Nessa
primeira tetralogia, Shakespeare começa mostrando o funeral do antigo e grande rei. Sobre as figurações dessa
imagem de glória e poder régio em contraste com o frágil e infantil Henrique VI, Spurgeon escreve: “Assim,
na primeira cena – o funeral de Henrique V na Abadia de Westminster – somos imediatamente tocados pelo
efeito produzido pelo contraste entre a chama da luz ofuscante – cometas, planetas, sol e estrelas – e um
pano de fundo de negror e luto, caracterizando o brilho e a glória do rei morto e a pesada tristeza de sua
perda. (...) E a última imagem que ele nos dá do grande rei está de acordo com toda a cena: ‘Tua alma formará
uma remota estrela mais esplendorosa / Que a de Julio Cesar ou a brilhante...’ um grito rudemente
interrompido, e os pranteadores trazidos com golpe arrasador do céu para a terra, por uma sucessão de
mensageiros que entram correndo com as más novas da perda, com ‘matança e derrota’, da maior parte das
vitórias brilhantes e duramente conquistadas por Henrique na França.” (p. 212-213)
64 Oh, gracioso senhor, é perigosa / a época em que vivemos. A virtude / pela negra ambição fica abalada, /
sendo expulso pelo ódio o amor ao próximo. / Domina a corrupção; de vossas terras / é banida a equidade.
Não me é estranho / que eles conspiram contra a minha vida.
65 Assim o Rei Henrique / joga fora a muleta, antes que as pernas / o possam sustentar. Assim te privam / do
pastor, quando lobos já disputam, / rosnando, a primazia de comer-te. / Ah! Se fosse infundado o meu
receio! / Temo a tua queda, meu bondoso Henrique.
63
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decisão, na medida em que lhe ordenam isso. Como Henrique está politicamente acuado, é
apresentado estando também impossibilitado de “falar: por duas vezes pede a palavra e por
duas vezes esta lhe é negada. Tal fato, apresentado para uma platéia elisabetana, era o
máximo da heresia contra a aura de divindade que ainda cercava os reis.” 66 Assim, em face
aos cães que consomem os restos da carne simbólica do rei, o próprio reino começa a se
desmantelar, de despedaçar. A revolta de Cade, no qual letrados são assassinados por causa
de seus crimes (entre eles ler e escrever) é apenas um exemplo dos levantes absurdos
durante o reinado de Henrique.67 Como se o povo não suportasse a passividade do
monarca. Nem mesmo Ricardo III, em sua sede de poder e sangue, foi tão odioso aos
olhos do povo quanto o fraco Henrique.
Shakespeare, nesse momento, começa a aprofundar essa religiosidade
sinonimicamente covarde e reticente do monarca. As reações de Henrique em dois
momentos da peça revelam essa visão: Primeiramente, quando o rei fica sabendo que os
territórios franceses, duramente conquistados por seu pai, foram perdidos, sua única reação
– incapaz e preso numa confiança estapafúrdia no divino que o impossibilita até de
lamentar a perda das conquistas do seu pai e do seu reino – é o rápido comentário: “Cold
Park Honan, p. 99.
Refletindo sobre a caracterização do rebelde da plebe, Nunes o relaciona com os revoltosos presentes em
sua última tragédia. “A plebe londrina, representada por John Cade e seus sequazes, é em tudo igual à plebe
de Roma, na tragédia Coriolano, que o poeta viria a escrever na época de sua pujança literária: inconstantes,
venais e, sobretudo, ridículos, os representantes do povo se distinguem sempre, para Shakespeare, pelo cheiro
que exalam, indicio de franco desasseio. ‘Quando eu for rei’, grita Cade para a turba boquiaberta, ‘não haverá
necessidade de dinheiro. Todo o mundo há de comer à minha custa. Farei que todos usem uniforme, para
que se comportem como irmãos e me honrem como o seu senhor.’ Nem falta, nesse quadro fiel de
sublevação das massas, o ódio inato à inteligência, que caracteriza os movimentos dessa natureza. (...) E de
acordo com esses princípios, logo adiante foi agarrado e enforcado o escrivão de Chatham, com a pena e o
tinteiro pendurados ao pescoço, por haver ‘confessado’ que sabia ler e escrever. A partir da chamada
Revolução Francesa a atualidade de Shakespeare se faz sentir principalmente por cenas dessa natureza. Não
nos esqueçamos de que Lavouisier foi guilhotinado porque ‘a Revolução não precisava de sábios’.” (Nunes, p.
154) Ilustrando muito bem o horror dessa revolução da plebe contra os magistrados, Shakespeare coloca, em
4.7 de 2 Henrique VI, a seguinte marcação: “Voltam os rebeldes, com a cabeça de Lorde Say e a de seu
genro”. Após, Cade ordena que as cabeças se beijem, para “morbidamente” mostrarem que ainda se amam
como parentes. Abaixo duas interpretações do absurdo da cena.
66
67
Figura 01. John Gilbert. Ilustração para 2 Henrique VI.4.7.
Figura 02. Cena do filme BBC Television Shakespeare – 2 Henry VI, de 1981I. Dirigido por Jane Howell e
tendo Trevor Peacock como Jack Cadê.
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news, Lord Somerset: but God's will be done!”68 (III.i). Logo depois, quando os primeiros
indícios reais de um complô contra seu reino começam a aparecer com o assassinato do
Duque de Gloster e do Bisbo Beaufort, o monarca – para surpresa de todos – apenas
suplica:
Forbear to judge, for we are sinners all
.Close up his eyes and draw the curtain close;
And let us all to meditation.69 III.iii
Após o assassinato de Gloster, belamente analisado pelo ‘investigador’ Warwick70, a
única ação de Henrique é dedicar-se a meditação e a oração. No que diz respeito a esse
comportamento por demais piedoso e fraco do monarca, é importante ver como John
Gilbert interpretou o drama ao ilustra-lo. Nessa peça em especial, das 14 ilustrações,
Henrique aparece em quatro e em duas delas está rezando.
Figura 3. John Gilbert. Ilustração para 2 Henrique VI.3.2.
Figura 4. John Gilbert. Ilustração para 2 Henrique VI.3.3.
Olhar amedrontado, mãos unidas num gesto de oração e súplica além de uma
postura corporal inclinada revelam a figura mais de um sacerdote em meio à guerra, mas
não a visão de um rei. Nesse sentido, o ápice dessa caracterização de Henrique como um
monarca covarde está na famosa fala em que o pensativo monarca, após ter fugido do
Más notícias, / Milorde Somerset; mas Deus é grande.
Não julgueis; somos todos pecadores. / Fechai-lhe os olhos; deixai bem cerradas / as cortinas e vamos
meditar.
70 Nessa passagem, o tradutor Carlos Alberto Nunes chama a atenção para o modo como o poeta demonstra
poeticamente uma prática que nem mesmo havia nascido: a medicina legal. Nunes escreve: “O exame que faz
Warwick do cadáver do Gloster, para concluir por crime, é uma verdadeira aula de medicina legal, numa
época em que esse ramo da medicina ainda não se constituíra. Depois de mostrar como ficam as pessoas que
falecem de morte natural: cor de cinza, rosto exangue, continua Waswick com segurança magistral: ‘Agora
vede / como o rosto ele tem congesto e negro. / Os olhos se apresentam mais saltados / do que em vida e
nos fixam por maneira / pavorosa, tal como de pessoa / que tivesse morrido estrangulado. / Os cabelos
ficaram levantados / abertas as nariculas com a luta, / distendidas as mãos como no gesto / de quem lutado
houvesse, em desespero, / vindo a ser dominado pela força. / Contemplai o lençol; vede cabelos / neste
ponto. Ele tinha sempre a barba / bem tratada; ora se acha em desalinho, / como trigo no estio, derrubado /
por grande tempestade. Não se pode / concluir de outra maneira: houve violência. / O menor destes dados o
comprova.
68
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palácio e do término da revolta de Cadê orquestrado por York para enfraquecer ainda mais
o poder real, está no jardim de um de seus súditos. As palavras de Henrique revelam o
início de um desenvolvimento reflexivo que culminará com a grande fala no terceiro ato de
3 Henrique VI em que o monarca reflete sobre a vida pastoril. Aqui, há a proclamação de
um homem que já começa a questionar sua vocação para o trono, algo que também
aparecerá em outras peças71.
Was ever king that joy'd an earthly throne,
And could command no more content than I?
No sooner was I crept out of my cradle
But I was made a king, at nine months old.
Was never subject long'd to be a king
As I do long and wish to be a subject.72 IV.ix
Um dos problemas que Henrique apresenta aqui é o de ter sido coroado ainda
bebê. Diferente de seu avô e de seu pai, que a seus modos conquistaram a posição que
ocuparam – seja por usurpação legal no caso de Henrique IV e de designação hereditária
em Henrique V – o atual monarca foi rei desde que tem lembrança. Assim, não estudando
e exigindo seu direito como Bolingbroke ou festejando com os larápios como o príncipe
Hal, Henrique VI cresceu como um soberano que não precisava estudar ou conquistar
absolutamente nada. Diante do poder de tudo ao seu redor, Henrique não chegou a nada.
Ao fim, nunca antes um súdito desejou tanto ser rei, como esse rei que deseja, acima de
tudo, ser súdito.
4. Conclusão
O que se percebe na figuração de Henrique VI nessa segunda parte da trilogia que
leva seu nome, é um monarca não preparado, não forjado para o rigor do trabalho que se
exigia dele. Diante dessa representação de um monarca frágil, a poesia de Shakespeare vai
aos poucos aprofundando, até culminar na terceira parte em que Henrique é finalmente
sacrificado como o cordeiro real. Neste ponto, o jovem dramaturgo já começa a perceber
como conquistará futuramente seu público. Park Honan, refletindo sobre a multiplicidade
temática dessas primeiras peças – já trabalhando o gênero cômico nas comédias Trabalhos de
Amor Perdidos e A Megera Domada e o trágico com a sanguinária e retórica Titus Andronicus –
escreve:
Considerando sua ampla e variada produção, parece adequado que Shakespeare
tenha escolhido iniciar-se no drama com uma ambiciosa tetralogia abrangendo
meio século da história britânica recente – proeza teatral que ninguém jamais
Essa menção se faz presente em Hamlet, na oração de Claudius. Também na atitude de fraqueza de Ricardo
II e de Malcolm em Macbeth. Ao que parece, era um problema sério um rei ser fraco e inábil para governar
como se vê nessa última, em que o filho primogênito de Duncan, julga-se inapto a governar, o que parece
também numa ironia de Shakespeare em relação às atitudes do tirano. Sobre isso em Hamlet, Lawrence
Flores Pereira afirma: “Escrúpulos de consciência agudos surgem na mente de Cláudio somente após este
assistir à representação da peça. Ao longo do discurso, contudo, ficará ciente de que, a despeito de sua
vontade (frágil) de rezar, qualquer resgate lhe está vedado. Seu caso, porém, é problemático. Ele não apenas
cometeu um dos crimes mais graves (o fratricídio) e mais ‘primeiros’ (primal), mas é um regicida. Suas ligeiras
dores de consciência não são suficientes a ponto de levá-lo a renunciar àqueles privilégios que seu crime lhe
garantiu: o trono e ‘sua’ rainha” (nota 70).
72 Já houve soberano que em seu trono / terreno haja reinado com tão poucas / alegrias como eu? Não tinha
o berço / de todo abandonado, aos nove meses / de idade, quando fui coroado rei. / Súdito algum mostrou
tanto desejo / de ser rei como eu tenho de ser súdito.
71
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tentara antes, num estilo que, embora ainda imaturo, era diferente de tudo o
que havia. Shakespeare deu personalidade e razões, pensamentos e sentimentos
a personagens históricos que ainda estavam na memória das pessoas, e fez com
que esses personagens fossem responsáveis por seus atos – e não que tudo
ocorresse por vontade divina. Assim, o bardo e Marlowe libertaram os enredos
dos arquétipos arrastados e unidimensionais de moralidade e mistério das peças
da tradição medieval.73
Assim, o dramaturgo evita a unidimentsionalidade das suas personagens, muito
comum em outras peças do período, e as investe de tessituras humanas, temores
verossímeis e caracterização complexa e humana. O que vemos em 2 Henrique VI é
incapacidade de um monarca tão frágil – cuja fraqueza é falsamente apresentada como zelo
religioso – que suas ações (ou não ações) passam a assolar todo o reino, já despedaçado. Na
próxima parte da trilogia, a temática muda. Agora, o centro da ação não está mais no
covarde rei, e sim na oposição entre a raivosa Margarida e a ambiciosa família York.
5. Referências
BURNS, E.M.,LERNER,R.E., MEACHAM, S., História da Civilização Ocidental, Globo, 28a
ed. RJ, 1986.
HELIODORA, Barbara. A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
NUNES, Carlos Alberto. Introdução a Henrique VI. SHAKESPEARE, William. Obras
Completas de Shakespeare: a vida do Rei Henrique V; Henrique VI. Traduzido por Carlos
Alberto Nunes. 2. ed. Sao Paulo: Melhoramentos, sem data.
PEREIRA, Lawrence Flores. Notas a tradução de Hamlet. In: SHAKESPEARE, William.
Hamlet. São Paulo: Editora 34, no prelo.
SHAKESPEARE, William. Obras Completas de Shakespeare: Henrique VI segunda e terceira
parte. Traduzido por Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, sem data.
SHAKESPEARE, William. The Second Part of King Henry the Sixth. Tucker Brooke (ed.)
Publisher: New Haven, CT: Yale University Press, 1923
SPURGEON, Caroline. A Imagística de Shakespeare. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
STAUNTON, Howard. The Globe Illustrated Shakespeare – The Complete Works Annotated. New
York: Gramercy Books, 1979.
WELLS, Stanley. Oxford Dictionary of Shakespeare. New York, Oxford University Press, 1998.
73
Honan, p. 96.
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3 – Henrique VI, de Shakespeare: entre a fraqueza e a ambição no governo dos
Lancaster e dos York
Enéias Farias Tavares74
Professor de Literatura Greco-Latina da UFSM
Resumo: Este artigo, que estuda a terceira parte de Henrique VI, tem por objertivo
observar no drama de Shakespeare duas representações bem marcadas de erros
monárquicos: primeiramente, a caracterização da casa de Lancaster - baseado na oposição
entre a força de Margarida e a fraqueza de Henrique -, e, em segundo, a representações dos
York como sendo egoístas – na personificação do primeiro rei, Eduardo, e da ambição sem
limites, personificado no disforme Glocester.
Palavras-Chave: Shakespeare – 3 Henrique VI – Crítica Literária
Abstract: This article, which examines the third part of Henry VI, aims to observe in the
Shakespeare’s drama two representations of royal errors: first of all, the characterization of
the house of Lancaster - based on the opposition between the strength of Queen Margaret
and the weakness of King Henry - and, secondly, the representations of York as being
selfish – in the characterization of the first king, Eduardo, and in the boundless ambition,
characterized in the monstrous Gloster.
Key-Words: Shakespeare – 3 Henry VI – Literary Criticism
1. Reino como selva e nobreza como feras
No filme 3 Henry VI, de Jane Howel, realizado em 1982, a primeira cena é
sintomática do próprio espírito que permeia toda a tetralogia. A película abre com um
amontoado de corpos masculinos, jovens, adultos e velhos, todos eles apresentando
múltiplos ferimentos, órgãos decepados e expressões faciais que expressam seus últimos
momentos de sofrimento75. Quando, em nossa leitura, chegamos a terceira parte de
Henrique VI, o que se percebe é que aqui Shakespeare chega ao ápice de sua representação
do reino inglês como cenário para as feras políticas se mutilarem, se devorarem.
74
Enéias Farias Tavares é crítico literário e tradutor. Professor de Literatura Greco-Latina na
Universidade Federal de Santa Maria e mestre em Letras pela mesma instituição. E-mail:
[email protected].
75
Figura 01. Cena do filme BBC Television Shakespeare – 3 Henry VI, de 1983. Dirigido por Jane Howell.
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Concomitante a essa guerra de feras, se assiste ao declínio da dinastia Lancaster diante do
ímpeto da família York, cujo principal representante será o disforme Duque de Glocester,
futuro Ricardo III.
No primeiro ato, o monarca inglês, sob pressão dos York, abdica do direito de sua
família ao trono, para vergonha de seus partidários. York, convencido por seus filhos do
perigo de Henrique permanecer vivo, decide trair o juramento de esperar a morte do rei e
atenta contra sua vida. Antes do ataque, Margarida, comandando vinte mil homens o
captura. Rutland, filho de York, é assassinado e Margarida oferece a York um lenço
manchado com o sangue do menino, oferecendo ao patriarca York uma coroa de papel.
Após, Clifford e Margarida matam o usurpador e colocam sua cabeça no portão de sua
família. No ato dois, os filhos de York reúnem um exército e atacam buscando vingança
pela morte do pai. Henrique demonstra apenas medo, sendo que Clifford suplica ao
monarca que se retire da batalha para não acovardar suas tropas. Henrique, assistindo a
batalha de longe, reflete sobre a vida de um súdito. Chega a ele um pai carregando o filho e
um filho carregando o pai. Parricídio e filicídio são os males da guerra civil que assola a
Inglaterra. No término do conflito, os York vencem e matam Clifford. Sob o conselho de
Warwick, Eduardo é instituído Rei e os irmãos, Condes. No terceiro ato, Henrique é
capturado e Eduardo apresenta, não a fraqueza do monarca anterior, mas o egoísmo que
também não contribuirá para o bem-estar do estado. O primeiro ato do novo rei é ofender
o monarca francês, Luís, casando-se com Lady Grey, ao invés da prometida francesa Lady
Bona. Nessa altura, o irmão do rei, Clocester, já ambiciona o trono. No quarto ato,
Warwick, ofendido com o casamento do rei, prende Eduardo. Henrique é rei novamente
para depois ser deposto mais uma vez por Eduardo, que havia sido liberto por Ricardo. No
último ato, na batalha que decidirá o futuro monárquico da Inglaterra, Eduardo mata
Warwick e faz as pazes com o irmão Clarence. Margarida volta da França liderando trinta
mil homens. A rainha perde a batalha e assiste aos irmãos York assassinarem seu filho.
Ricardo vai a Londres e mata Henrique, que morre orando e com a bíblia nas mãos. A peça
termina com Eduardo e Grey como reis da Inglaterra, na presença de seus apoiadores,
entre eles o irmão ambicioso Glocester, que na parte final da tetralogia, tornar-se-á Ricardo
III.
Neste texto, dedicado à última parte de Henrique VI, analisarei no drama duas
representações bem marcadas de erros monárquicos: de um lado a casa de Lancaster (que
interage entre a força de Margarida e a fraqueza de Henrique), e, do outro, as
representações dos York como sendo egoístas – na caracterização do primeiro rei,
Eduardo, e da ambição sem limites, personificado no disforme Glocester.
2. Coragem e Covardia em descompasso: a monarquia no governo dos Lancaster
Exemplificando a inaptidão de Henrique para as decisões de um monarca, temos o
reticente rei dizendo que foi obrigado pelos York a abdicar do direito do seu filho ao trono.
Diante dessa imagem de fraqueza, a rainha Margarida toma para si a responsabilidade de
manter o direito de sua família à coroa. Na fala abaixo vemos Margarida censurar o próprio
rei, pois entende que não cabe a um monarca ser forçado, comandando ou direcionado,
sendo ele o principal piloto do estado.
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Enforced thee! art thou king, and wilt be forced?
I shame to hear thee speak. Ah, timorous wretch!
Thou hast undone thyself, thy son and me;
And given unto the house of York such head
As thou shalt reign but by their sufferance. (…)
And yet shalt thou be safe? such safety finds
The trembling lamb environed with wolves.
Had I been there, which am a silly woman,
The soldiers should have toss'd me on their pikes
Before I would have granted to that act.
But thou preferr'st thy life before thine honour:
And seeing thou dost, I here divorce myself
Both from thy table, Henry, and thy bed,
Until that act of parliament be repeal'd
Whereby my son is disinherited. (…)
Thus do I leave thee. Come, son, let's away;
Our army is ready; come, we'll after them.76 I.i
Essa imagem decadente do rei como principal responsável77 pelo infortúnio de sua
nação fica evidente em vários momentos no drama. Primeiramente, nas sucessivas
proibições que o monarca tem até mesmo de expressar sua opinião. Tanto a rainha quanto
seus súditos sabem que problemas estatais não se resolvem apenas com diálogos78. Outra
menção a essa impopularidade de Henrique não diz respeito unicamente ao caráter pouco
eloqüente do monarca, mais benéfico no silêncio do que no diálogo, mas também em sua
pouco ostentosa imagem física. Tal caracterização chega ao ponto de Clifford, em 2.2, um
pouco antes da batalha, suplicar ao rei que “I would your highness would depart the field: /
The queen hath best success when you are absent79”. Mais adiante no drama, em 2.5, temos
a caracterização precisa da falta de capacidade política na figura de Henrique, quando, em
Forçaram-te? És rei e te forçaram? / Envergonha-me ouvir-te. Ó desgraçado, / sem coragem! Causaste a
nossa ruína, / a tua, a minha, a de teu filho, e à casa / de York deste tal força, que só podes / doravante
reinar se o consentirem. / (...) e, ainda assim, te julgas firme? / Sim, estás muito firme, como o trêmulo /
cordeirinho entre lobos. Se eu me achasse / presente, embora eu seja mulher fraca, / deixar-me-ia ferir pelos
soldados, / antes de consentir nesse contrato / Mas preferiste a vida com a desonra. / Por isso, Henrique, a
decisão eu tomo / de abandonar teu leito e a tua mesa, / até ver anulado esse ato absurdo / do parlamento,
que privou meu filho / suas esperanças. (...) E assim, te deixo. Vamos, / meu filho; nosso exército está a
postos; / vamos ao seu encontro. (Todas as traduções são de Carlos Alberto Nunes).
77 Clifford diante dos York, reflete sobre o principal responsável pela decadência do reino: “And, Henry,
hadst thou sway'd as kings should do, / Or as thy father and his father did, / Giving no ground unto the
house of York, / They never then had sprung like summer flies; / I and ten thousand in this luckless realm /
Had left no mourning widows for our death; / And thou this day hadst kept thy chair in peace. / For what
doth cherish weeds but gentle air? / And what makes robbers bold but too much lenity?77 II.vi. (E tu,
Henrique, / se houvesse sido rei, como cumpria, / o pai e o avô seguindo neste ponto, / sem terreno ceder à
casa de York, / jamais a gente dela enxamearia / como as moscas do estio; eu e milhares / de outras pessoas
deste infeliz reino / viúvas não deixáramos de luto / por nossa morte, e tu ainda estarias / governando,
pacífico, o teu povo. Que é que faz pupular a erva daninha, / afora o ar generoso? Que é que torna / mais
audaciosos os ladrões de estrada, / senão muita bondade?).
78 Diante da opressão dos York, em II.2, o monarca ainda acredita que a mera diplomacia ainda poderá
resolver o conflito. “KING HENRY VI: Have done with words, my lords, /and hear me speak. / QUEEN
MARGARET: Defy them then, or else hold close thy lips. / KING HENRY VI: I prithee, give no limits to
my tongue: / I am a king, and privileged to speak. / CLIFFORD: My liege, the wound that bred this meeting
here / Cannot be cured by words; therefore be still.” (Rei Henrique: Parai, senhores, e escutai-me agora. /
Rainha Margarida: Desafia-os de vez ou cala a boca. / Rei Henrique: Por favor, não me ponhas freio à língua;
/ sou rei; tenho direito de falar. / Clifford: A ferida, milorde, que deu azo / a essa assembléia não se cura à
custa / de conversas; por isso, ficai quieto.)
79 Desejara / que Vossa Alteza abandonasse o campo; / vós ausente, a rainha tem mais sorte.
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sua mais famosa fala, o monarca, afastado da batalha, reflete sobre as ocupações de um
mero pastor que pode contar as horas, os dias e os meses em seu curso natural, distante das
ocupações estatais80.
Não obstante, de outra qualidade é a caracterização da rainha Margarida. Se de um
lado temos um Henrique “tímido e irresoluto”81, por outro, Margarida se apresenta como
“ambiciosa e autoritária”82, repleta de fúria assassina e argumentação severa, lembrando ora a
rainha goda de Titus Andronicus, ora a pujança feminina aterradora de Lady Macbeth. Após
ofertar a York tanto o lenço manchado com o sangue do filho quanto uma irônica coroa de
papel, o prisioneiro, que está prestes a ser decapitado, chama a rainha de “O tiger's heart
wrapt in a woman's hide!”83 (I.iv), em que fica evidente a comparação metafórica da rainha
Diante da visão medonha da guerra, da imagem do pai trazendo o filho morto por sua própria mão e do
filho trazendo o pai morto, lutando em lado oposto na guerra civil pelo trono inglês, as conjecturas de
Henrique resumem-se não a reflexões políticas ou humanas, e sim, meramente ao desejo egoísta de
tranqüilidade que a vida campestre apregoa. Diz Henrique: “Here on this molehill will I sit me down. / To
whom God will, there be the victory! / For Margaret my queen, and Clifford too, / Have chid me from the
battle; swearing both / They prosper best of all when I am thence. / Would I were dead! if God's good will
were so; / For what is in this world but grief and woe? / O God! methinks it were a happy life, / To be no
better than a homely swain; / To sit upon a hill, as I do now, / To carve out dials quaintly, point by point, /
Thereby to see the minutes how they run, / How many make the hour full complete; / How many hours
bring about the day; / How many days will finish up the year; / How many years a mortal man may live. /
When this is known, then to divide the times: / So many hours must I tend my flock; / So many hours must
I take my rest; / So many hours must I contemplate; / So many hours must I sport myself; / So many days
my ewes have been with young; / So many weeks ere the poor fools will ean: / So many years ere I shall
shear the fleece: / So minutes, hours, days, months, and years, / Pass'd over to the end they were created, /
Would bring white hairs unto a quiet grave. / Ah, what a life were this! how sweet! how lovely!” (Vou sentarme / neste monte de terra de toupeiras. / Seja a vitória de quem Deus quiser. / Do campo de batalha me
tiraram / minha consorte Margarida e Glifford, / jurando ambos que sempre lhes corria / tudo pelo melhor
estando eu longe. / Quem me dera que morto eu já me achasse! / Assim Deus o quisesse. Neste mundo /
tudo é aflição, tudo pesar profundo. / Oh Senhor, quero crer que fora a vida / muito para invejar, se eu mais
não fosse / do que um simples pastor e me sentasse, / em cômoros, tal como o faço agora, / a observar o
relógio atentamente / e ver como os minutos se sucedem, / quanto são necessários para um hora, / quantas
horas se somam num só dia, / quanto dias um ano inteiro fazem, / quantos anos a vida humana alcança. /
Sabido isso, partir desta arte o tempo: / tantos horas dedico ao meu rebanho, / tantas horas ao sono são
votadas, / tantas horas são dadas à oração, / tantas horas ocupo-me em desporto; / tantos dias gravidam-se
as ovelhas, / tantas semanas mais, e darão cria, / tantos anos, até que a lã lhes tose. / Minutos, horas, meses,
dais, anos, / assim, sendo empregados como devem / de ser, conduziriam para quieta sepultura os cabelos
descorados. / Oh, que vida fora essa! Que inefável doçura!). Como Frank Kermode afirma, mesmo nas
formas esquemáticas, Shakespeare consegue inovar ao expressar essa inaptidão real por meio de um lirismo
bucólico surpreendente. Segundo o crítico: “O desespero do rei, em um momento de calma na batalha de
Towton, medita sobre a vida do camponês, que excede em muito a sua própria, em termos de paz e conforto.
É um tema pastoral consagrado, e a fala é um exercício artístico no gênero pastoral” (p. 39). Já Heliodora é
bem mais crítica a essa forte poesia que revela o fraco poeta: “Antes mesmo da apreensão intelectual do
significado deste set speech harmônico e bucólico, tanto a suavidade de seus ritmos, a solidão do rei, o
equilíbrio das imagens e a repetição de palavras simples da mais pura tradição bíblica, quanto sua justaposição
às cenas de batalha constituem impecável enfoque crítico autoral: Henrique demonstra que é o anti-rei, a
negação das virtudes peculiares a essa posição na hierarquia do Estado, bem como na hierarquia do universo”
(p. 229).
81 Heliodora, p. 215.
82 Ibiden.
83 Ó coração de tigre envolto em pele / de mulher! Como foi que tu pudeste, / sem de mulher haver perdido
a forma, / fazer o pai de uma criança os olhos / enxugar com o lenço que tu mesma / embeberas, feroz, no
sangue dela? / As mulheres são brancas, delicadas, / sensíveis e piedosas; tu, insensível, / sem remorsos, de
pedra, sem piedade. / Querias que eu ficasse enfurecido? / Agora estás contente. Que eu chorasse? /
Conseguiste o almejado. (Nunes, p. 172)
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com um animal insensível e violento. York ainda menciona que Margarida, embora
mantenha a forma feminina, expulsou de si a sensibilidade, a delicadeza e a própria
interioridade feminina, restando apenas ódio e monstruosidade pura. Comentando a fala,
Honan afirma:
O ódio é evocado com uma intensidade nova para o teatro – e Greene, um
rival de Shakespeare, citaria essa cena com perceptível inveja. O ódio da rainha
Margarida vem à tona de forma admirável em Henrique VI, muito embora na
peça não haja vilões; o autor se recusa a promover uma doutrina política em detrimento de
outra, e os acontecimentos que cria parecem ritualizados no passado fixo da história. (grifo
meu)84
Aqui, minha interpretação das peças históricas de Shakespeare encontra par nas
palavras que encerram o argumento de Honan. Após mencionar o comentário do
dramaturgo invejoso Greene, que ironicamente servirá como o primeiro registro de
Shakespeare como dramaturgo de sucesso85, Honan insiste na idéia de que o autor nessas
peças não está interessado em partidos, em teses de um determinado grupo ou em
preceitos patrióticos, principal acusação dos críticos para com as históricas. Antes, me
parece que o autor está, nessas peças, mais interessado numa representação muito
particular da realidade política muito conhecida na Inglaterra: a realidade da ambição e da
destruição política que afeta todo o reino.
Aprofundando ainda mais essa caracterização firme e irresoluta de Margarida, o
dramaturgo a faz refletir sobre a própria constituição do estado, que necessita de um
comandante, de um capitão que possa levar a nave política com firmeza e segurança. No
último ato da peça, enquanto Henrique entrega-se passivamente à lâmina de Glocester,
Margarida ainda tenta expressar força e relativa segurança. Para ela, o estado é um navio
despedaçado, cabendo a si própria o dever de concertá-lo.
Great lords, wise men ne'er sit and wail their loss,
But cheerly seek how to redress their harms.
What though the mast be now blown overboard,
The cable broke, the holding-anchor lost,
And half our sailors swallow'd in the flood?
Yet lives our pilot still. Is't meet that he
Should leave the helm and like a fearful lad
With tearful eyes add water to the sea
And give more strength to that which hath too much,
Whiles, in his moan, the ship splits on the rock,
Honan, p. 184.
Sobre o episódio, Cristiane Busato Smith escreve: A primeira informação que temos sobre Shakespeare nos
teatros londrino vem da pena do escritor Robert Greene, em seu amargo panfleto de 1592 Groatsworth of Wit,
Bought with a Million of Repentance (Um tostão de sabedoria comprado com um milhão de arrependimento). Greene era um
escritor relativamente bem-sucedido, membro do grupo de dramaturgos chamado de ‘University Wits’ (grupo
de escritores formados em universidades). Pouco antes de morrer, escreve: ‘(...) porque há uma gralha
emergente, embelezada com nossa plumagem, que, com seu coração de tigre envolto em pele de ator, pressupõe-se
que seja bem capaz de escrever um verso branco de forma bombástica, como o melhor de vocês: e sendo um
absoluto Johannes factotun é, em sua própria opinião, o único Sacode-cenas [Shake-scene] do país.’ As
invejosas palavras do planfleto auxiliam a estabelecer a reputação e o sucesso de Shakespeare como um ator
poeta, que rivaliza com escritores de educação superior a ele. Por meio desse panfleto, Greene registra o
sucesso dos ‘versos bombásticos’ do escritor que ‘sacode’ (shake) o teatro (scene), um claro trocadilho com o
nome de Shakespeare. Greene, de sobra, faz uma menção direta à popular peça Henrique VI, parte 3 na citação
‘Ó coração de tigre, envolto em pele de mulher’.” (p. 28)
84
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Which industry and courage might have saved? (...)
Therefore, no more but this: Henry, your sovereign,
Is prisoner to the foe; his state usurp'd,
His realm a slaughter-house, his subjects slain,
His statutes cancell'd and his treasure spent;
And yonder is the wolf that makes this spoil.
You fight in justice: then, in God's name, lords,
Be valiant and give signal to the fight.86 V.v
Nota-se na citação outra imagem recorrente nessa peça, que é a dos instrumentos
marítimos. Menções a navios, barcos, mares e costas, e também a desastres ilustram essa
nave estatal que se encontra sem timoneiro87. Aos olhos do público de Shakespeare88, a
terceira parte de Henrique VI termina ao apresentar o que resta da casa dos Lancaster, pelo
menos sob a ótica dessa mulher, indevidamente feita rainha, que tenta ainda organizar,
montar, manter um estado já despedaçado, já destroçado. De uma mulher que chama para
si a responsabilidade estatal sendo considerada por muitos como o próprio rei, sendo
Henrique incapaz de apresentar a firmeza de Margarida89. Diante dessa casa devastada, resta
perceber como a família dos York encarará o privilegio do trono.
Grandes lordes, os sábios nunca param / para chorar as perdas, mas procuram / repará-las com ânimo
disposto. / O mastro se quebrou? Partiu-se a amarra? / Perdeu-se a âncora e as ondas já tragaram / metade
dos marujos? Mas inda / vive o piloto. É crível que ele possa soltar o leme e, como um rapazinho / cheio de
medo, com as próprias lágrimas / dos olhos marejados, a água aumente / do mar e de mais força ao que já
mostra força excessiva, ao tempo em que o navio / vai de encontro ao rochedo e se espedaça, / mau grado
seus gemidos, quando fora / fácil, com decisão, salvar o barco? (...) Por tudo isso, / direi somente: o vosso
soberano / se encontra prisioneiro do inimigo; / o trono está ocupado; em matadouro / se encontra
transformado todo o reino; / seu povo, massacrado; os estatutos, / violados; esbanjado todo o erário. / Eis o
lobo fautor de toda a ruína. / Em nome, pois, de Deus sede valentes. / Tocai logo o sinal para o combate.
(Nunes, p. 260)
87 Para mais detalhes, veja Spurgeon, p. 217.
88 Sobre a possível acepção do público diante da imagem da personagem Margarida, Heliodora afirma: “É
preciso não esquecer que, a olhos elisabetanos, a anomalia de um homem – e ainda mais um rei – obedecer a
uma mulher – e, ainda mais, uma mulher sobejamente apresentada como indigna de ser rainha – seria
clamorosa, seria imagem de comunicação imediata, carregada de implicações obvias em relação à quebra da
ordem permanentemente ensinada como único caminho para a felicidade e o bem-estar comum.” (P. 229)
89 Num determinado momento do drama, quando os inimigos Eduardo e Margarida se encontram, o primeiro
afirma: Since when, his oath is broke; for, as I hear, / You, that are king, though he do wear the crown, /
Have caused him, (…) II.ii (Depois disso, (Henrique) quebrou o juramento, / sim, porque me disseram que
(tu, Margarida) o obrigaste – uma vez que és o rei, de fato, embora dele seja a coroa.) Nunes, p. 186. Essa
caracterização da rainha como sendo a própria força autoritária do reino está presente na interpretação que
John Gilbert faz do drama. Nas ilustrações em que a rainha aparece, em 3 Henrique VI, é sempre ela que tem
a posição elevada e o braço em riste como símbolo de autoridade, ao passo que o rei representa o oposto
disso, sempre em posição inclinada e reticente.
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3. Egoísmo e Ambição como fins limitados e destrutivos: a monarquia dos York
Primeiramente, ao refletir sobre a dinastia York, devemos perceber que tanto na
última parte de Henrique VI quanto na peça Ricardo III, a principal imagem relacionada a
essa família é a imagem de animais caçadores. Os integrantes do clã York são citados, nas
partes 2 e 3 de Henrique VI, com as características de animais rasteiros e venenosos como
serpentes, aranhas e escorpiões, como enfatiza Spurgeon. Segunda ela, há também outra
sorte de animais que são rememorados nas peças para ilustrar a situação perigosa em que o
rei e seus súditos se encontram:
Os inimigos de Henrique são também chamados ocasionalmente de feras,
lobos vorazes, que conseguem afastar o pastor (o duque Humphrey) do
cordeiro para que a possam devorar, e em 3 Henrique VI leões, tigres, lobos e
ursos tomam integralmente o lugar das serpentes como símbolos de inimigos e
pretendentes à coroa. A rainha Margarida vê o rei como um “cordeiro trêmulo
cercado de leões”, e, quando é finalmente aprisionado, ela chama Eduardo de
“o lobo que realizou esta matança”. Henrique também, quando Glocester
chega para matá-lo e dispensa os guardas, se vê como um “cordeiro
inofensivo” abandonado pelo pastor quando o lobo aparece, e em outro ponto
vê as guerras civis como “tempos sangrentos”, “Enquanto leões lutam pos suas
tocas, / pobres cordeiros inofensivos pagam por sua inimizade”. O jovem
Rutland, encolhendo-se e fechando os olhos para não ver o golpe assassino de
Clifford, ao ser forcado a encarar os assassinos, grita: “Assim olha o leão
faminto o desgraçado / que treme sob suas garras mortíferas” e Ricardo, ao
perseguir Clifford na batalha, diz a Warwick: “Escolhe alguma outra caça, /
pois eu pessoalmente caçarei este lobo até a morte”. York descreve o duque
Humphrey como “o pastor do rebanho” e seus próprios seguidores como
“cordeiros perseguidos por lobos famintos”, e dirige-se a Margarida como
“loba da França”, apostrofando-a, em famosa passagem, como “coração de
tigre envolvido em pele de mulher!”. (p. 216).
Figura 2. John Gilbert. Ilustração para 3 Henrique VI.1.4.
Figura 3. John Gilbert. Ilustração para 3 Henrique VI.2.2.
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Diante da longa citação, percebemos que o dramaturgo enfatiza, tanto na figura de
Eduardo quanto de Glocester, a destrutividade do reinado York. Quanto Warwick
encontra Eduardo, agora rei, suas palavras revelam que o atual monarca também não será
um bom governante. Se em Henrique os problemas advinham da covardia mascarada de
religiosidade excessiva, em Eduardo o que se percebe é a encenação da desonra, que fica
evidente em suas ações egoístas e impulsivas.
Alas! how should you govern any kingdom,
That know not how to use ambassadors,
Nor how to be contented with one wife,
Nor how to use your brothers brotherly,
Nor how to study for the people's welfare,
Nor how to shroud yourself from enemies? 90 (IV.iii)
Se o governo de Henrique VI foi um governo no qual o caos se instaurou em vista
do fracasso do rei de fazer sua ordem valer, o reinado de Eduardo instaurou uma paz
momentânea, imposta mais pelo medo do que pela real capacidade governamental. Após a
morte de Eduardo, Glocester, depois de ordenar a morte do irmão e dos sobrinhos –
tornar-se-á o rei Ricardo III. Mas ainda em Henrique VI, teremos uma idéia do que será seu
reinado. Ao assassinar Henrique, Ricardo proclama seu evangelho de vilania com as
seguintes palavras:
If any spark of life be yet remaining,
Down, down to hell; and say I sent thee thither:
Stabs him again
I, that have neither pity, love, nor fear.
Indeed, 'tis true that Henry told me of;
For I have often heard my mother say
I came into the world with my legs forward:
Had I not reason, think ye, to make haste,
And seek their ruin that usurp'd our right?
The midwife wonder'd and the women cried
'O, Jesus bless us, he is born with teeth!'
And so I was; which plainly signified
That I should snarl and bite and play the dog.
Then, since the heavens have shaped my body so,
Let hell make crook'd my mind to answer it.
I have no brother, I am like no brother;
And this word 'love,' which graybeards call divine,
Be resident in men like one another
And not in me: I am myself alone.91 V.vi
Como é possível governar um reino / quem não sabe tratar seus emissários, nem contentar-se com uma só
esposa, / nem os irmãos tratar fraternalmente, / nem cuidar do sossego do seu povo, / nem guardar-se dos
próprios inimigos?
91 Se ainda remanesce / qualquer centelha viva, para o inferno, / para o inferno vai logo, e comunica / que eu
sou o que te enviei, / apunhala-o de novo / eu, que não tenho / piedade e desconheço o amor e o medo.
Sim, é verdade tudo quanto Henrique / disse de mim, que muitas vezes, lembra-me, / me contou minha mãe
que eu vim ao mundo / com as pernas para a frente. Não me assiste / razão – que pensais disso? – de
mostrar-me / diligente em causar a ruína a quantos / procurem usurpar nosso direito? / A parteira espantouse; prorromperam / as mulheres em grita: “Deus nos valha! / Nasceu com dentes!” E assim foi, de fato, /
prova segura de que eu rosnaria, / morderia, e seria em tudo um cão. / Já que me fez o céu assim disforme, /
torça-me o inferno o espírito também. / Não tenho irmãos; de irmão sou diferente. / Esta palavra “Amor”,
que os barbas- brancas / chamam divina, pode ter guarida / nas pessoas que em tudo se assemelham, / mas
não em mim, que eu sou sozinho: eu próprio. (Nunes, p. 270)
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Nessa fala, que poderia terminar a trilogia, já como uma prévia dos horrores que
serão encenados em Ricardo III, vemos o fatídico resultado de um governo caótico no qual
a figura do monarca é vista como representação de vilania e terror. No decorrer de toda a
tetralogia, parece-nos que Shakespeare está encenando a degradação total, tanto micro
quanto macroestrutural, do reino inglês. Partindo da morte do vitorioso Henrique V,
passando pelo fraco Henrique VI e pelo egoísta Eduardo IV, chegamos ao disforme e
assustador – e curiosamente também “envolvente e fascinante”92 - Ricardo III. Sobre essa
decadência estatal, Bárbara Heliodora, em Falando de Shakespeare, afirma:
Na primeira tetralogia ele fala mais da sede de poder e, nos três Henrique VI,
junto com Ricardo III, apresenta um impressionante quadro da luta por ele: a
patética figura do próprio Henrique VI, tão fraco quanto bom, torna-se um
símbolo de poder só por usar a coroa; mas sua incompetência leva Shakespeare
a construir sua ação em torno das várias figuras que dominam ou tentam
dominá-lo, para por meio dele ter o poder nas mãos. A última peça da
tetralogia mostra que a incompetência do rei, assim como o egoísmo dos que o
cercam, levam inexoravelmente ao pior dos reis, o ambicioso Ricardo. (p. 62)
Com esta peça, Shakespeare inicia um outro modo de criar personagens vilanescas.
Apesar de Titus Andronicus já apresentar um vilão que por sua argumentação demoníaca e
burlesca granjeou a simpatia do público, a galeria de grandes vilões shakespearianos só
começaria mesmo com Ricardo III. O pérfido corcunda, artífice em traições e assassinatos
seria um precursor das maldades sedutoras de Don João, Iago e Edmund, para citar apenas
os exemplos mais óbvios. Mas aqui, refletindo sobre a construção de uma trama histórica, a
figura de Ricardo III é a caracterização máxima do horror de um reino cujo governante não
corresponde ao desejo de ordem e justiça de qualquer sociedade. Ao assassinar Henrique,
Glocester diz que é capaz de matar sorrindo. Nesse caso, é a ambição suprema e niilista que
destrói a fraqueza covarde do monarca anterior. E renegando pai e irmãos, Glocester,
futuro Ricardo, pode agora defender sua ambição solitária, uma ambição desmedida que só
encontrará paz na destruição de tudo ao seu redor.
4. Conclusão
Ao analisarmos as três partes de Henrique VI, não se deve acreditar que o regime
Tudor foi pacífico e ordeiro, sendo a encenação da Guerra das Rosas apenas uma tentativa
do poeta de fazer lembrar ao seu público um tempo de hostilidade e anarquia civil já
passado93. Antes, parece que Shakespeare procurou nessas peças aprofundar um
Honan, p. 185.
Jean Paris, em Shakespeare, resume de forma incisiva e direta a relativa paz que o regime Tudor desfrutou.
Paz essa conquista e mantida abaixo de prisões e mortes. “A subida ao trono dos Tudor deu fim, em 1485, ao
sangrento embate que punha em confronto, havia trinta anos, as casas de York e Lancaster. Essa paz,
comemorada no final de Ricardo III, marca também o momento crucial em que a Inglaterra passa do
feudalismo à monarquia. Sem dúvida, um Henrique VII permaneceria alvo constante de conspirações
estrangeiras ou de impostores, como Perkin Warbeck ou os falsos condes de Waswick; um Henrique VIII
teria de frustrar com violência as intrigas dos poderosos e dos papistas; uma Maria Tudor só afirmaria seu
governo com prisões e fogueiras; e nenhum reinado tanto quanto o de Elisabeth se veria tão perturbado por
lutas internas ou por iniciativas espanholas. Porém cada provação, reforçando a autoridade real, forja a alma
de um povo que, pouco a pouco, descobre sua posição privilegiada. (...) A história ecoa tal profissão de fé.
Por muito tempo dividida, a Inglaterra compreende finalmente que a sua unidade geográfica deve
corresponder uma unidade política. Em face dos perigos que a ameaçam, ela aprende, com severidade, a
resolver os conflitos internos, bem como a se armar contra toda e qualquer opressão. E assim, lentamente,
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pensamento político lógico e extremamente minucioso. Tal pensamento pode ter
objetivado apresentar a série de batalhas, lutas, viagens, descobertas e sacrifícios que
fizeram daquela nação uma das maiores potências de seu tempo. Mas por mais que a
interpretação desse pensamento político do dramaturgo seja sedutora não devemos
esquecer que falamos, ainda assim, de um dramaturgo, não de um pensador político. E de
um dramaturgo extremamente popular, que em principal instância desejava – e precisava –
apenas divertir o seu público.
O estudo apresentado nesses três artigos demonstrou um modo de ler as peças
históricas de Shakespeare levando-se em conta não apenas os aspectos políticos e sociais de
seu tempo, mas tentando perceber nelas, e por meio delas, o próprio desenvolvimento
poético desse artista em seus primeiros anos de aprendizagem cênica. Essa pesquisa ainda
prevê mais três conjuntos de análise. Futuramente, apresentarei uma leitura das duas peças
históricas que são consideradas pelos críticos como as mais elaboradas do ponto de vista
artístico: Ricardo III (1594) e Ricardo II (1596). Após, pretendo estudar a formação do rei
Henrique V, monarca que era considerado o modelo de rei no período elisabetano,
formação essa apresentada numa outra trilogia histórica de Shakespeare, constituída das
duas partes de Henrique IV e de Henrique V. Concluindo esse trabalho de pesquisa,
pretendo estudar as outras duas peças histórias do autor, sem conexão direta com as duas
tetralogias, que são Rei João e Henrique VIII.
5. Referências
HELIODORA, Barbara. A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
__________. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2004.
HONAN, Park. Shakespeare – Uma Vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PARIS, Jean. Shakespeare. São Paulo: José Olympio Editora, 1992.
SHAKESPEARE, William. Obras Completas de Shakespeare: a vida do Rei Henrique V;
Henrique VI. Traduzido por Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Sao Paulo: Melhoramentos, sem
data.
__________. Obras Completas de Shakespeare: Henrique VI segunda e terceira parte.
Traduzido por Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, sem data.
__________. The First Part of King Henry the Sixth. Tucker Brooke (ed.) Publisher: New
Haven, CT: Yale University Press, 1918.
__________. The Third Part of King Henry the Sixth. Tucker Brooke (ed.) Publisher: New
Haven, CT: Yale University Press, 1923.
SMITH, Cristiane Busato. A Vida de William Shakespeare. In: LEÃO, Liana de Camargo.
SANTOS, Marlene Soares dos (Orgs.). Shakespeare – Sua Época e sua Obra. Curitiba:
Beatrice, 2008.
SPURGEON, Caroline. A Imagística de Shakespeare. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
STAUNTON, Howard. The Globe Illustrated Shakespeare – The Complete Works Annotated. New
York: Gramercy Books, 1979.
WELLS, Stanley. Oxford Dictionary of Shakespeare. New York, Oxford University Press, 1998.
através de guerras, trabalhos, viagens, descobertas, nasce e cresce essa ânsia por poder que irá culminar com a
vitória sobre a Armada de Filipe II.” (p. 4).
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A ANÁLISE DE DISCURSO E O ENSINO DE LÍNGUAS:
ALGUMAS REFLEXÕES
Maria Cristina Giorgi (CEFET-RJ/UFF)
Bruno Deusdará (CEFET-RJ/UERJ)
Resumo: Este texto discute alguns dos pressupostos tradicionais subjacentes ao ensino de
línguas, procurando evidenciar possíveis contribuições de uma perspectiva discursiva. Para
tanto, centra-se na compreensão do texto como materialidade que remete a uma rede
complexa de produção de sentido que se configura sempre provisoriamente. Por fim,
destacamos que uma abordagem discursiva pode-se apresentar como uma ferramenta
potente na valorização de práticas que afirmem os diferentes saberes que emergem no
cotidiano do processo de ensino-aprendizagem de línguas.
Palavras-chave: Análise do Discurso, ensino de línguas, leitura
Resumen: Este texto discute algunos preceptos tradicionales que subyacen a la enseñanza
de lenguas, buscando evidenciar posibles contribuciones bajo una perspectiva discursiva.
Para lograr el objetivo planteado, se centra en la comprensión del texto como materialidad
que remite a una compleja red de la producción del sentido que se configura siempre de
manera provisoria. Finalmente, resaltamos que un abordaje discursivo se puede presentar
como herramienta de gran alcance en la valuación de prácticas que afirmen los diversos
saberes que emergen en el cotidiano del proceso enseñanza / aprendizaje de lenguas.
Palabras-clave: Análisis del Discurso, enseñanza de lenguas, lectura
1
– Considerações iniciais
Neste artigo, temos como objetivo refletir sobre contribuições de uma opção
pelo enfoque teórico da Análise de Discurso, em sua vertente francesa, como base para o
ensino de Língua materna e Língua Estrangeira no Ensino Médio. Essas reflexões dialogam
com pesquisas que vimos realizando no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras,
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro94. Nessas pesquisas, ao tematizar a produção
de sentidos acerca do trabalho docente, percebemos a emergência de imagens, desde as
provas de seleção em concurso público para o magistério aos textos que circulam no
cotidiano escolar, de professor como agenciador de conhecimentos considerados
“naturalmente” relevantes. Assim, o professor tem sido considerado um mero executor de
tarefas, pressupondo-se assim que as práticas de formação se constituiriam apenas de certas
etapas a serem cumpridas como preparação para uma vida profissional e cidadã, fora dos
muros da escola.
Considerando a formação como ato, ou seja, como uma constante produção de
saberes e de sentidos, que, na maior parte das vezes, não se reconhecem como tal,
discutimos de que modo uma perspectiva discursiva pode se tornar uma aliada no sentido
de oferecer possibilidades de formalização de algumas atividades desenvolvidas pelo
professor e que, habitualmente, não ganham visibilidade como conhecimento produzido
cotidianamente.
94
Remetemos o leitor às pesquisas de Giorgi (2005) e Deusdará (2006).
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- Análise do Discurso e suas trajetórias
Iniciando pela questão lingüística, entendemos como discurso um certo modo
de apreensão da linguagem e a Análise de discurso (doravante AD) como aporte que
pretende situar em dadas formações sociais os discursos que circulam e relacioná-los a suas
condições de produção, sempre considerando que os mesmos se mesclam em redes
complexas de sentido e que as condições de produção podem ser difusas
(MAINGUENEAU, 2002).
Dessa forma, essa perspectiva concebe a língua em funcionamento por meio de
discursos que emergem e circulam a partir da ação de sujeitos. Assumindo o ponto de vista
que vê a construção dos sentidos atravessada por diversos processos que não só
lingüísticos, é possível pensar-se o que pode / não pode, deve / não deve ser dito em
conjunturas específicas. Cada grupo se estabelece, então, a partir da regularidade dos
sentidos que nele circulam e na ênfase que a eles é dada. Em contrapartida, é necessário
que outros sentidos circulem em outros grupos, para que cada grupo desenvolva processos
de identificação e de oposição.
Em sendo assim, coincidimos com Mutti, quando afirma que:
A natureza inquieta da Análise de Discurso mantém vivo o debate, de
modo que hoje se constatam tendências diversas de realizar essa
disciplina, de inspirar-se nela deslizando para outras construções
teóricas, de estar nela ou mesmo de sair dela, recusando-a. Mas o
mergulho em suas águas revoltas insinua-se nas novas interpretações
teóricas, em meio aos deslocamentos de posições dos sujeitos que
desejam constituir seus objetos de pesquisa. A Análise de discurso
pretende-se colocar no entremeio das áreas de conhecimento
estabilizadas, estranhando, através de uma incursão na relação entre o
dizer e o dito, os próprios modos como os campos de saber se
estabilizaram, deixando marcas lingüísticas desse processo de
estabilização. (MUTTI, 2005, p. 2)
Dessa forma, diríamos que, ao procurar compreender a trajetória da Análise do
Discurso como emergência de uma disciplina não prevista no campo dos saberes, como
destaca Maingueneau (1997), permite discutir que saberes instituídos são postos em xeque e
que outros passam a ser valorizados.
A esse respeito, diversos manuais em Análise do Discurso apontam que seu
aparecimento se dá, entre outros aspectos, com a explicitação de certas insuficiências da
Análise de Conteúdo (doravante, AC). Em consonância com o propósito definido por este
artigo, caberia ressaltar que a AC, em diversos momentos de seu percurso, reivindica a
longa tradição da hermenêutica. Esse movimento de reivindicação da referida tradição se
evidencia, por exemplo, no ponto de vista assumido no que tange à noção de texto. Para a
AC, o texto seria superfície primeira com a qual o leitor se depara. Essa superfície, segundo
tal perspectiva, seria obscura e instauraria ambigüidades. Por conseguinte, o desafio a ser
enfrentado pela AC residiria exatamente em tentar desenvolver formas de análise e
interpretação dos textos que ultrapassassem essa superfície indesejável e atingissem uma
significação profunda. Se, por um lado, um desafio fundamental da AC se inscreve nos
marcos da proposta hermenêutica, por outro, tal desafio será motivador para o
desenvolvimento de técnicas que garantam a validação científica das leituras realizadas pelo
pesquisador. Ou seja, a “atitude interpretativa”, que motiva o recurso à tradição
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hermenêutica, agora buscará instituir-se a partir dos padrões de cientificidade próprios às
ciências humanas, no século XX (ROCHA; DEUSDARÁ, 20006, p.32).
A referência que fazemos a essa discussão é motivada pela constatação de que,
muitas vezes, quando falamos em leitura na escola, estamos retomando certos aspectos da
concepção conteudista. Ora, caberia questionar então que outra concepção de texto é
possível adotar e, em seguida, quais seriam os desdobramentos dessa outra concepção no
ensino de línguas.
Do ponto de vista discursivo, um texto não teria autonomia frente ao contexto no
qual ele se inscreve. Referimo-nos aqui não só ao contexto em que fora originalmente
produzido, mas também aos contextos de circulação desse texto. Isso porque, a cada nova
leitura, outros sentidos podem-se produzir. A título de exemplo, diríamos que um poema
lido por alguém que se dirigiu a uma livraria e comprou um livro de autoria de um
determinado poeta o fez dando conta de uma determinada expectativa. Outros aspectos
envolveriam a leitura do mesmo texto em uma prova de Língua Portuguesa ou em uma
aula de Espanhol como LE. No contexto escolar, ao ler um poema, o aluno dialoga não só
com uma determinada configuração textual, mas também com um projeto de leitura que ele
atribui ao seu professor e, ainda, com as expectativas que ele julga que seu professor tenha
em relação ao seu trabalho de leitura. Vemos assim que todo texto, a cada momento em
que é lido, citado, retomado, deslocado de seu contexto “original” de circulação, passa a
integrar uma complexa rede de produção de sentidos múltiplos e sempre provisórios.
O texto, segundo uma perspectiva discursiva, passa a ser compreendido como a
dimensão das práticas de linguagem que ganha materialidade. Assim sendo, quando agimos
no mundo, produzimos, entre outras coisas, linguagem. Nos textos, teríamos as pistas que
nos permitiriam propor reconstruções de uma dada configuração sócio-histórica à qual ele
remeteria. Ressaltaríamos, no entanto, que, como não há correspondência direta entre o
lingüístico e seu entorno, esse processo de reconstrução pode ser feito sempre de outra
forma.
É, portanto, a própria constituição da AD – que constrói seu objeto teórico e
procede a análises desde conceitos advindos de outras áreas de saber, na interface com
áreas vizinhas –, que faculta àqueles que optamos por esse olhar percorrer caminhos, que
tangenciam ora a enunciação, ora a psicanálise, ora a história, entre outros permitindo
nossa entrada em territórios diversos e a visibilidade a afinidades e diferenças a partir da
interlocução com outros saberes.
3
- Ensino de Línguas em perspectiva discursiva
Voltando, agora, nosso olhar para o âmbito do Ensino Médio, a opção pela
perspectiva da AD nos permite trabalhar discursivamente com a língua, apresentando ao
aluno uma nova forma de compreendê-la. Dessa forma, quando pensamos língua a partir
de uma ótica discursiva, compreendemos que os enunciados só são produzidos pelos
sujeitos quando os últimos atuam em situações sociais, pois é nessas situações que
assumem essa condição de sujeito. Ou seja, como nos explica Mutti,
por um lado se tem a manifestação concreta de enunciados pelos
sujeitos, por outro lado se tem a identificação desses enunciados a
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sentidos pré-construídos, já postos. Essa forma de os sujeitos
produzirem sentidos, em se filiando a formas discursivas que já estão aí,
faz parte do jogo discursivo que os sujeitos assumem, ao empregarem a
língua na vida social. As enunciações dos sujeitos que, ao enunciarem
estão empenhados em significar os acontecimentos de sua existência
histórica, são sempre novas, sempre outras, mas somente são possíveis
se em conformidade com as regras de uso da língua que configuram
campos, gêneros e tipos discursivos como formulações discursivas
através das quais se representam modos de organização da sociedade.
(MUTTI, 2005, p. 3)
Com efeito, a cada texto selecionado para a discussão em sala, uma atividade de
diálogo com diferentes discursos é posta em funcionamento. Interagimos não apenas com
nossos alunos, com aquilo que julgamos que seria do interesse deles, mas também com o
que julgamos relevante de ser ensinado na escola, com os discursos que nos dizem que são
e quem devem ser as crianças e os jovens de nossa sociedade, com os textos de lei que
prescrevem o que devemos ensinar, com os acúmulos de grupos de professores da escola,
com os discurso midiáticos, políticos, literários, entre muitos outros. Ou seja, a própria
atividade de selecionar textos, compreendida hoje como preparatória, é ela também uma
atividade de pesquisa. Talvez, a explicitação desse ponto de vista possa colaborar não
apenas com a tentativa de ampliar o olhar acerca do trabalho docente, intentando não
restringi-lo às interações ocorridas na sala de aula, mas também parece ser ferramenta
importante no trabalho de leitura do aluno. Dessa forma, ao explicitar para o aluno quais
são as expectativas que presidem à seleção de um determinado texto, podemos colaborar
no sentido de evitar que sua leitura seja pautada por uma tentativa de “descobrir” os
significados que, supostamente, residiriam atrás do texto. Assim sendo, acabamos por
colocar em análise ainda as circunstâncias que motivam o trabalho de leitura com o referido
texto.
Consideramos que a produtividade desse referencial imprime-se ainda na
possibilidade de descentramento do professor como voz mais autorizada a responder, em
última instância, pelos sentidos produzidos por um texto. Esse lugar tradicionalmente
conferido a ele pela instituição escolar pode ir se desmanchando a partir do momento em
que as condições de produção de um texto deixarem de ser compreendidas apenas como
informações exteriores ao próprio texto que permitiriam a restituição do texto ao seu
projeto original. Ao propor discussões acerca das tramas discursivas nas quais nos
encontramos enredados no contexto escolar, estamos tentando produzir formas de
participação coletiva em que os saberes trazidos ao debate pelos alunos não precisariam ser
validados pelo professor, seriam objeto de uma construção coletiva, em que cada um seria
chamado a contribuir.
Assim, é possível identificar diálogos entres discursos que representam
determinados campos do saber, que, como pontos de vista, não são verdades absolutas,
visando à desnaturalização do lugares ocupados nas escolas: o lugar-de-saber atrelado à figura
docente e o lugar-de-não-saber que resta ao aluno. Viabiliza-se, assim, um trabalho conjunto
de produção de sentidos entre professor e aluno, desenvolvendo uma discussão em
conjunto acerca dos papéis que cada um dos envolvidos nessa construção precisa assumir,
podendo favorecê-la ou impedi-la. Queremos dizer que parece ser possível re-significar
espaços instituídos, de acordo com sujeitos e contextos e re-significar interlocuções
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valorizando as construções do aluno que passam a ser parceiros na construção do
conhecimento.
Acreditamos que a adoção da perspectiva aqui enfocada é fundamental para a
formação de nosso aluno, quando entendemos por formação não um acúmulo de
conteúdos, mas sim um investimento na construção de um cidadão com possibilidades
críticas. Tal horizonte se dirige à compreensão de que o professor de LE, ao lado do
professor de LM e dos demais, faz parte do grupo de formadores e que, muitas vezes, deve
colaborar, trabalhar junto com o coletivo de professores da instituição a que pertence.
No contexto específico do ensino de LE propostas que remetam a reflexões por
parte do aluno acerca da língua estrangeira certamente dialogarão com o seu conhecimento
acerca da língua materna. Queremos dizer que sua relação com a aprendizagem da LE
dependerá do que ele conhece sobre sua própria língua; é com base no saber que possui em
LM que vai se inscrever no contexto da LE.
Ao mesmo tempo, verificamos que, na maior parte das vezes, quando
apresentamos a língua estrangeira pelo viés discursivo, o aluno – que num primeiro
momento demonstra estranhamento –, transpõe esse novo modo de apreensão para o
contexto da LM.
E como se pode trabalhar com a AD na prática? Como já dissemos a escolha dessa
vertente denota a opção por um olhar que entende a língua com autonomia relativa que
funciona como base, como lugar material, onde vão se realizar os processos discursivos. A
língua é, pois, modo de acesso para que se compreenda a materialidade do discurso.
Nesse sentido, é possível concretizar nossa proposta de ensino por meio do uso de
conceitos e categorias de análise que permitam ao aluno compreender as relações nesse
mundo discursivo.
Como primeiro exemplo, temos o gênero de discurso, proposto por Bakhtin.
Possibilitar que o aluno perceba que os gêneros discursivos estão submetidos a algumas
coerções, que vão sendo modificadas pelas sociedades ao longo do tempo, de acordo com
suas necessidades, sendo todo dito determinado em grande parte pelo lugar onde é
enunciado, exemplificar de forma concreta, que os discursos que circulam sempre estão
ligados à ação de um sujeito inserido em um dada formação social e ancorado em suas
condições de produção. Compreender que os gêneros são usados em toda e qualquer
atividade humana, balizados por condições especiais de atuação e por objetivos específicos,
associados a uma esfera de atividade, é compreendê-los como tipos relativamente estáveis de
enunciados que garantem a comunicação aos falantes de uma língua, pois permitem uma
economia cognitiva entre os interlocutores por meio do reconhecimento de características
particulares que distinguem um gênero de outro. Reconhecer essas pistas em LM é facilitar
o aprendizado de LE. E vice-versa.
Outros conceitos essenciais dentro de uma abordagem discursiva de ensino de
língua são a intertextualidade e a interdiscursividade. Sabendo da dificuldade em delimitar
as diferenças entre os dois conceitos, optamos pela definição de Fiorin (1999), para quem
“A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto. A
interdiscursividade, ao contrário é inerente à constituição do discurso”. A primeira
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pressupõe um processo de incorporação de um texto em outro, quer para reproduzir o
sentido incorporado, quer para transformá-lo. Por sua vez, a interdiscursividade refere-se
ao processo de incorporação de percursos temáticos e / ou figurativos, temas e / ou
figuras de um discurso em outro. Este último é inerente a qualquer discurso, é constitutivo
do mesmo.
Contribuição relevante para que o aluno caminhe melhor dentro das propostas da
AD é a proposta de Authier-Revuz (1998) para quem a polifonia presente nos discursos se
efetiva em dois planos distintos: o da heterogeneidade mostrada – que ocorre por meio de
formas marcadas ou não marcadas – e o da heterogeneidade constitutiva. A primeira
permite-nos perceber como os discursos constituem suas identidades, como delimitam seus
limites e fronteiras, isto é, a que vozes os discursos recorrem para se constituir, ao mesmo
tempo, em que estabelecem uma relação entre essas vozes (AUTHIER-REVUZ, 1998).
Já a segunda aponta para a polifonia das vozes da história, da cultura e, do
inconsciente, presentes em todo universo discursivo e em relação à qual o enunciador pode
não ter consciência.
Visando a operacionalizar a proposta da autora, no que tange às formas marcadas
de heterogeneidade, introduz-se para o aluno exercícios que dêem relevo ao discurso
relatado, as aspas, e outras marcas do Outro no discurso. Com relação às formas não
marcadas recorremos a exemplos de ironia, metáfora, dos jogos de pastiche. Perceber a
quem se dá a voz na enunciação, ou seja, a quem é permitido falar em determinados
espaços de interação é fundamental para a construção de sentidos por parte do aluno, e
cabe ao professor indicar como o modo de introduzir determinadas vozes que reforçam as
idéias do enunciador relaciona o discurso a suas condições de produção.
4
- Considerações finais
Concluindo nossas reflexões consideramos imprescindível que haja um esforço
coletivo entre os docentes em geral para enfatizar a importância de se tentar
descompartimentalizar os saberes instituídos. Para isso, parece-nos importante tentar ativar
dispositivos de discussão coletiva que não se restrinjam à conferência da leitura do aluno,
mas a uma discussão que coloque a própria expectativa de leitura em análise. Assim, parece
haver condições para experimentar uma ruptura com um ponto de vista tradicional
segundo o qual a proposta de leitura partiria do professor, que teria a última palavra sobe
os sentidos dos textos, e o envolvimento dos alunos se restringiria a “descobrir” a
significação profunda do texto. Quando colocamos em análise os diálogos que o texto
produz, as vozes que ele reafirma e outras, que ele rejeita, as práticas de leitura podem
contribuir no sentido de promover uma participação mais ativa dos alunos.
É evidente que esse referencial não pode ser visto como uma receita a ser aplicada
em diferentes contextos. Não temos dúvida de que ele não funciona, ou até se efetiva, mas
com muitas dificuldades em situações desfavoráveis. Entre elas, a mais freqüente tem sido a
lamentável realidade de salas de aula lotadas. Em contextos como esse, a participação
coletiva é percebida pelo profissional não como um objetivo a ser perseguido por
professores e alunos, em conjunto, mas como um impedimento ao suposto bom
andamento do trabalho.
Cabe ressaltar, por conseguinte, que, se não há um sentido fechado em cada saber,
mas uma multiplicidade de possibilidades que se reformulam, se re-significam a partir da
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atualização de discursos ao serem apropriados por cada sujeito, sempre considerando as
coerções estabelecidas por cada situação real de comunicação, essa perspectiva ou é um
projeto coletivamente assumido por uma equipe de profissionais e diálogo com a
comunidade, ou tende a não passar de iniciativas particulares.
Em suma,
Usar a língua e refletir sobre a língua é trabalho individual e
coletivo, do qual participam tanto professor quanto alunos; ao
professor cabe aprender a ensinar, praticando o ensino e
refletindo sobre a prática numa interlocução com os alunos que
respeita as vivências que eles trazem. (MUTTI, 2007, p.8)
Com efeito, devemos estar atentos para a multiplicidade de possibilidades que
possam dirigir a leitura de forma crítica e consciente, convertendo as aulas em espaços
produtivos onde se expandam não somente os conhecimentos lingüísticos dos alunos, mas
aqueles que transcendam as paredes da sala de aula. Essas discussões podem-se tornar uma
abertura potente para a produção de alianças não só entre professor e aluno, mas entre o
conjunto de professores, alunos e a comunidade escolar como um todo, na constituição de
práticas de formação alternativas.
Referências bibliográficas
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Editora da Unicamp, 1998.
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FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999.
GIORGI, M. C. Seleção para a rede pública estadual de ensino: o que se espera do
professor de Língua Estrangeira. Dissertação (Mestrado em Letras), Instituto de Letras,
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MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.
_____. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Editora da Unicamp;
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MUTTI, Regina. Análise de discurso e ensino de português: o que interessa ao
professor. Disponível em http://www.entrelinhas.unisinos.br/index.php?e=1&s=9&a=5
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ORLANDI, Eni. Interpretação. Petrópolis : Vozes, 1996.
ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B. “Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: o lingüístico
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UMA MULHER É UMA MULHER: QUESTÕES DE GÊNERO SOCIAL E
ASSIMETRIA DE RELAÇÕES DE PODER
Ivandilson Costa
(UERN/UFPE)
Resumo: Tem sido bastante relevante atualmente a pesquisa envolvendo gênero social no
campo da Lingüística, em que são evidenciadas questões femininas, relações
homem/mulher, além de entre mulheres e as várias representações de feminilidade e
masculinidade. Não é raro tradicionalmente basearem-se tais esferas a categorias
dicotômicas, embora gênero e sexo sejam mais propriamente entendidos como socialmente
construídos e descritos como parte de um contínuo. Neste trabalho, procuramos refletir
acerca das relações de gênero, em que intervêm questões de assimetrias lingüísticas e
desigualdade de distribuição de poder social. Utilizamos aportes da Análise Crítica do
Discurso e da Sociolingüística Interacional em uma abordagem que tomou como objeto a
publicidade de público-alvo feminino.
Palavras-chave: Gênero social. Relações de poder. Discurso midiático.
Abstract: It has been very relevant nowadays the search involving gender in the linguistics
area, when women's issues are highlighted, relations man/woman, and women and
between several representations of masculinity and femininity. It isn’t uncommon
traditionally is based on categories such spheres dichotomous, but gender and sex are more
properly understood as socially constructed and described as part of a continuum. In this
paper, we are trying to reflect on gender relations, in which involves issues of asymmetries
and linguistic inequality of distribution of social power. We use applications of Critical
Discourse Analysis and Interactional Sociolinguistics in an approach that has taken a
subject of advertising to target women.
Key-words: Gender. Power. Media discourse.
Aspectos introdutórios: um breve retrospecto dos estudos de linguagem e gênero
Já se encontram bastante consistentes estudos sobre o problema do gênero (gender)
no campo da Lingüística, em que são postas em evidência questões femininas, relações
entre homens e mulheres, bem como entre mulheres e as várias representações de
feminilidade e masculinidade (HEBERLE, 2001).
Já há aproximadamente três décadas vêm se desenvolvendo pesquisas no âmbito da
relação entre linguagem e gênero, sendo a obra de Robin Lakoff, Language and Woman’s
Place, precursora nesse sentido. Inicialmente, como nos aponta MULLANY (2000),
despontam duas grandes correntes. Entre o final da década de 1970 e início da de 1980,
predominaram as pesquisas que ficaram conhecidas como abordagens do tipo
poder/dominação. A partir de meados da década de 1980 e início da de 1990, uma abordagem
baseada em cultura/diferença é predominante. Ambos os pressupostos assumem que a
diferença entre o falar do homem e o da mulher é pré-existente. Como e por que esta
diferença se dá é que é a grande questão a se resolver.
Trabalhos que seguem a abordagem de base poder/dominação defendem que o
considerável poder econômico que os homens têm sobre as mulheres em nossa sociedade
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permeia a linguagem, resultando em uma dominação masculina nas interações
conversacionais: a dominação masculina das estruturas de poder da sociedade implicaria no
fato de que o falar dos homens é mais fortemente valorizado. Esta foi, segundo
MULLANY (2000), o modo de ver de pesquisas como as de Don Zilmmerman & Candace
West, Pamela Fishman e Dale Spender, por exemplo.
Já as abordagens de base cultura/diferença (Tannen, Coates, Matz/Borker) sustentam
que homens e mulheres falam diferentemente devido a diferenças que são implementadas
durante o próprio processo de socialização. Em vez de ver a linguagem feminina como algo
que é imposto à mulher pelas instituições da sociedade patriarcal, começam a celebrar
estilos da fala da feminina. Como conseqüência, pesquisas que seguiram tal abordagem
foram diretamente criticadas por ignorar de certo modo as estruturas de poder que operam
na sociedade, sendo, não raramente acusadas de não-engajadas e apolíticas.
MULLANY (2000), na esteira de Judith Butler, esposa a concepção de gênero
como um construto performativo social. Tal visão, concebendo gênero com algo flexível,
afasta a possibilidade de este ser um conceito rígido e fixo, fato que serviria para perpetuar
estereótipos associados aos modos de expressão feminino ou masculino95. Sob esse ponto
de vista, masculinidade e feminilidade não são traços que possuímos inerentemente, mas
sim efeitos que pomos em voga pelas atividades que partilhamos.
Nessa perspectiva, gênero é identificado com o nível individual, isto é, com
o falante individual que põe em voga a identidade marcada pelo gênero quando engajado
em uma situação interativa. Assim, os indivíduos trabalham juntos para pôr em ação a
identidade de gênero nos contextos específicos de comunidades de práticas, cuja elipse está
inserida em uma outra mais ampla, a do nível ideológico, onde o comportamento
lingüístico dos indivíduos pode ser restringido por forças que operam num nível societário
mais amplo.
No Brasil, os estudos envolvendo a relação linguagem/gênero comungam
com áreas do conhecimento como a antropologia, a sociologia, a educação, a história, a
literatura, em pesquisas que buscam desvendar os mecanismos mais complexos que
organizam as relações de gênero em nossa sociedade.
Até bem recentemente, as principais pesquisas relacionadas ao estudo de linguagem
e gênero eram norteadas por categorias dicotômicas. Sabe-se, a despeito disso, que
categorias como gênero e sexo são hoje mais propriamente entendidas como socialmente
construídas e descritas como partes de um contínuo (HEBERLE, 2001a).
É, portanto, imprescindível ao estudo das relações de gênero um olhar mais
aguçado para o contexto sociocultural. Não é gratuito dizer, nesse contexto, que duas das
áreas da Lingüística mais chamadas para essa tarefa são a da Análise Crítica do Discurso
(ACD) e da Sociolingüística Interacional (SI).
A despeito do fato de o conceito de gênero ter recebido várias
denominações, podemos considerá-lo como uma categoria socialmente construída,
CAMERON (1997:60) defende que mulheres e homens não simplesmente apreendem e reproduzem
modos de fala apropriados a seu próprio sexo. Machos e fêmeas apreendem um conjunto complexo de
sentidos marcados pelo gênero e ambos os sexos são completamente capazes de usarem estratégias associadas
à respectiva masculinidade ou feminilidade.
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diferenciada da oposição biológica macho/fêmea, que interage com outras variáveis sociais
como idade, escolaridade, classe social, orientação sexual, grau de intimidade entre os
participantes de uma dada interlocução, suas emoções, conhecimento prévio entre si. É
também uma categoria que trabalha com a relação de poder entre os participantes
(HEBERLE, 2001a).
CAMERON (1995) acentua que a repetição de modos de vestir, gestos, aparência,
uso da linguagem e de outras características é necessária caracterizar a identidade de gênero,
como identidades sociais desempenhadas pela repetição de determinados atos, que vão
gradualmente se incorporando ao senso comum.
Masculino/feminino e dissimetrias lingüísticas
Ao refletir acerca da imagem da mulher via linguagem, YAGUELLO (1992, p.
91ss) procura oferecer respostas a questões como: o que é o gênero? Qual a função do
gênero? Há uma relação entre gênero e sexo? Até que ponto o gênero é influenciado pelas
representações simbólicas coletivas?
A rigor, o gênero parece exprimir as representações do inconsciente coletivo,
respondendo à profunda necessidade de racionalização que habita a humanidade. Assim, a
partição do universo entre elementos de essência masculina, de um lado, e elementos de
essência feminina, de outro, parece ser uma constante na humanidade. A dicotomia
macho/fêmea, ativo/passivo, razão/coração, ordem/desordem, racional/irracional,
governa, portanto, nossa visão de mundo.
YAGUELLO (1992, p. 92) questionando-se acerca do valor da distinção do gênero
na gramática, chega mesmo a admitir que tal não serve objetivamente para nada. O gênero,
a despeito de tantas incoerências, é uma categoria que resiste ao tempo (cf. flexão de
número). Porém, nas línguas em que há uma distinção entre masculino e feminino, o
feminino é sempre derivado do masculino, jamais a forma principal, o que não deixa de ser
representativo em relação à situação social respectiva do homem e da mulher na época em
que se fixaram tais formações gramaticais.
O gênero tem, portanto, sua origem em um recorte da realidade que varia segundo
as sociedades. A língua reflete as mentalidades: muitos aspectos da morfologia se apóiam
em estereótipos profundamente enraizados nos espíritos: à mulher passiva se opõe o
homem ativo. Examinando-se palavras das línguas indo-européias, nota-se que, quando são
particularmente investidas de um valor simbólico e mítico, constata-se uma paridade
antonímica masculino/feminino que se prende perfeitamente à dicotomia macho/fêmea e,
portanto, a uma interpretação em termos de simbolismo sexual. Assim, tem-se a lua/o sol,
o dia/a noite, o fogo/a água, o céu/a terra. O fato de essas palavras variarem de gênero de
uma língua para outra não diminui em nada o simbolismo, certamente universal, que cada
cultura constrói do próprio sistema de valores simbólicos de que cada uma dispõe.96
É interessante notar, a esse respeito, que, quanto aos nomes de máquinas, constata-se a preeminência do
gênero feminino. Porquanto auxiliar do homem, não podiam deixar de sê-lo. Tal estatuto pode estar ligado
também ao da palavra “mão” em todas as línguas indo-européias. Já a identificação da terra a uma mulher
remonta a todas as culturas e a todas as épocas (mãe-terra). (YAGUELLO, 1992, p.103;108).
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O gênero se revela essencialmente, portanto, como um suporte das representações
coletivas. Não sendo um instrumento perfeito, a língua e suas disfunções podem ser
reveladoras de conflitos psicológicos e sociais.
No campo da gramática, podemos, junto com YAGUELLO (1992, p. 115-139),
levantar algumas características reveladoras de uma assim chamada dissimetria gramatical
quanto aos papéis do homem e da mulher implicados, em que uma posição dominante
masculina pode ser vista como reflexo da posição dominante mesma dos homens na
sociedade: (a) a formação de nomes agentivos por sufixação (tipo ator/atriz) está
desaparecendo; quando existe, há uma tendência das conotações pejorativas para a mulher
(ver presidenta, sargenta); (b) há uma diferenciação insidiosa que se faz no espírito dos
locutores sobre base dos papéis masculinos e femininos na sociedade: “babá” será
percebido sempre como feminino; mestre como masculino; é digno de nota também
prostituta/*prostituto; dona de casa/ *dono de casa;(c) há uma curiosa incidência de
formas femininas para insultar homens: sacana, canalha, pulha, filha da puta; (d) raras são
as palavras femininas que se aplicam indiferentemente aos homens e às mulheres (vítima,
pessoa). Ao contrário, inúmeras são as palavras masculinas que designam igualmente as
mulheres, sobretudo no campo dos agentivos; (e) a forma feminina não raramente assume
sentido
pejorativo
ou
injurioso:
aventureiro/aventureira,
cão/cadela,
vagabundo/vagabunda, pistoleiro/pistoleira, garoto de rua/garota de rua, homem da
vida/mulher da vida, touro/vaca.
A igualdade de direitos entre homem e mulher deve, a despeito desses pontos, se refletir
também na língua. A resistência a essa igualdade de direitos vem por parte de um pernicioso
imobilismo lingüístico, das próprias mulheres e do corpo social com um todo, que põe ainda as
mulheres num lugar à parte.
O que é mais grave, portanto, não é a dissimetria em si, mas a imagem e o status da
mulher, veiculados por essas conotações da linguagem. Nesse sentido, formas ortogramaticais concorrem para a manutenção de verdadeiras conquistas sociais. Uma vez que
ausência de formas representa ausência de direitos, a criação de novas formas propicia tal
ganho: vejam-se os casos de mestra, forma alternativa para designar a portadora de título de
Mestrado e embaixadora, para designar a funcionária diplomata e não a esposa do
embaixador.
Poder da linguagem, linguagem do poder
Van Dijk (1998) define o termo poder como uma relação estabelecida entre grupos,
classes ou outras formações sociais ou entre pessoas como membros sociais, num processo
de interação: dados dois grupos A e B, o primeiro tem poder sobre o segundo, e, em
condições reais, A controla o poder de B, o que vai permitir que sejam controlados os
desejos e planos de B, bem como suas crenças. Tal controle de B por A é necessário para
que o poder seja mantido ou exercido. É preciso, portanto que B conheça de A suas
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preferências e desejos e que o próprio poder siga uma linha ideológica que represente as
cognições pertencentes a um grupo.97
Os detentores do poder, nessa perspectiva, usam estratégias para influenciar seus
dominados (no caso da publicidade, seus potenciais consumidores), tais como caracterizar
suas atitudes como altruístas e valorizar seus próprios interesses, o que tem levado esses
dominantes à prática da autodefesa desses interesses, considerando-os como inevitáveis,
verdadeiros, ponderáveis, quando qualificados como ruins pela maioria da população.
Para Fairclough (1990), é por meio da linguagem que as pessoas dos mais variados
grupos sociais podem exercer o poder sobre outras no conjunto de relações que
estabelecem na sociedade a que pertencem. Tal autor está, portanto, particularmente com o
olhar voltado para o fato de como, para a dominação de algumas pessoas por outras, a
linguagem entra em ação, contribuindo para a produção, manutenção e troca de relações
sociais de poder. Porquanto contribuam para tal processo de dominação nas relações
sociais, ideologia, linguagem e poder figuram como elementos centrais de análise em sua
concepção.
A ideologia, nesse caso, se ancora como parte integrante do discurso – prática
social, todo o processo de interação social –, uma vez que as estruturas sociais que o
determinam estão intimamente relacionadas às representações ideológicas das instituições
marcadas na sociedade, os aparelhos ideológicos.
Nesse sentido, Fairclough (1990) acredita ser o discurso marcado pelas estruturas
sociais que, ao mesmo tempo que a determinam, produzem-na. Fairclough (2001, p. 231)
concebe por prática social uma forma relativamente estabilizada de atividade social (tais
como uma aula um noticiário de televisão, uma consulta médica, um almoço em família).
Cada prática é, nesse sentido, uma articulação de diversos elementos sociais dentro de uma
configuração relativamente estável: atividades, os sujeitos e suas relações sociais, instrumentos, objetos,
tempo/espaço, formas de consciência, valores e o discurso. Trata-se de elementos dialeticamente
relacionados, isto é, eles são diferentes, mas não discretos, completamente separados.As
relações intrínsecas entre o discurso e o poder podem se manifestar de maneiras variadas.
Há, portanto, no dizer de Fairclough (1990), uma interdependência entre linguagem,
ideologia, discurso e poder, sendo aquela tomada como uma prática social, processo por meio
do qual as pessoas interagem dentro de um contexto social e o discurso determinado pelas
estruturas sociais, ideológicas por excelência que o (re)produz.
Cumpre salientar que, acrescido a esses fatores, mais posteriormente, passa a ser
central para FAIRCLOUGH (2001, p. 232) a análise das relações dialéticas entre discurso
(incluindo linguagem mas também outras formas de semiose como a linguagem corporal
ou imagens visuais) e outros elementos de práticas sociais, com um olhar mais acurado para
as profundas mudanças que tomam assento em nossa vida cotidiana e para como o
Ao contrário de trabalhos anteriores em ciências sociais, van Dijk (2000) enfatiza que as ideologias têm uma
importante dimensão cognitiva: elas podem ser estudadas como estruturas representadas na mente dos
membros de um grupo, tais como o conhecimento (knowledge). Para ele, uma vez que as ideologias não são
simplesmente adquiridas e representadas pelos indivíduos, mas, sobretudo socialmente apreendidas e
coletivamente representadas por um grupo de pessoas, devem ser tomadas como sendo, a um só tempo, de
natureza cognitiva e social.
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discurso figura dentro de tais processos de mudança, bem como para as transformações na
relação entre semiose e outros elementos sociais dentro da rede das práticas sociais. Nesse
contexto, há um espaço para o estudo dos diferentes aspectos envolvendo aquilo a que
FAIRCLOUGH (2003a; 2003b) chamou de neocapitalismo, termo referente a toda uma
série de radicais reestruturações históricas por que o capitalismo passou, tendo diante do
quadro da natureza e conseqüências dessas mudanças um considerável contingente de
interesse por parte da pesquisa social, sendo especialmente do interesse da pesquisa na
corrente da Análise do Discurso Crítica.
Yaguello (1992, p. 149ss.), ao remontar a um paralelismo entre todas as formas de
opressão (classe dominante/classe dominada; brancos/negros; povo colonizador/povo
colonizado; homens/mulheres), aponta para o fato de que essas relações se refletem na
língua, não apenas pelo uso diferenciado que se faz desta, mas, sobretudo, por sua estrutura
mesma e, especialmente, pelos elementos do domínio lexical. A língua nos projeta, por
conseguinte, uma certa imagem da sociedade e das relações de força que a regem.
Nessa perspectiva, é na estruturação do domínio lexical que se faz o processo de
qualificação e denegrimento da mulher, e que faz delas e de seus corpos fontes inesgotáveis
de injúria e de ofensa. Tal pejoração da mulher está onipresente na língua em todos os
níveis e sob todos os registros, sendo a linguagem do menosprezo, expressão cara a
YAGUELLO (1992), em larga escala interiorizada pela própria classe oprimida.98
Balanço e perspectivas: a mulher na/pela publicidade
O discurso publicitário, lembra CARVALHO (1998, p. 63), além de procurar
garantir a construção das relações entre o produtor/anunciante e o público e a construção
da imagem do produto, tem como principal tarefa do ponto de vista ideológico a
manutenção do consumidor como membro de uma comunidade. O consumidor potencial
do produto, por conseguinte, tem sua posição definida em termos de aceitar como natural
o esquema ideológico necessário para entender e interpretar a mensagem publicitária. Sob
esse pano de fundo, o receptor ideal pertence a uma comunidade cujos valores,
necessidades e gostos estão contidos em tal esquema.
Uma revisão da literatura sobre a imagem da mulher veiculada na publicidade revela
uma exploração basilar de estereótipos femininos. As mulheres são enquadradas em grupos
e papéis sociais tradicionais que denotam um baixo status social e manifestam traços como
dependência, emotividade, subordinação e vulnerabilidade.
Nesse campo, conforme já enfatiza LEMISH (2002, p.67), a acusação mais
contundente que se faz do papel da publicidade é a da reificação da mulher. Diversas
análises no campo da Semiótica deram cabo, por exemplo, de como são exploradas as
partes anatômicas das mulheres99.
Veja-se a esse propósito o fato de que, enquanto as espécies machos são tidas como valorativas (touro,
garanhão), espécies fêmeas assumem conotações pejorativas, principalmente quando se reportam às mulheres:
galinha, perua, vaca etc. Por outro lado, para o caso de o homem ser sábio, a mulher é pedante; quando ele é
discreto, ela é hipócrita; ele ambicioso, ela gananciosa; ele contestador, ela histérica.
99 ver especialmente o estudo de LANDOWSKI (1997).
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Notam-se, nesse sentido, movimentos corporais provocativos, excitantes
expressões faciais, olhares tentadores, autocarícias, ênfase nos lábios, assim como um uso
extensivo de expressões lingüísticas e para-lingüísticas: a publicidade, com muita
freqüência, reduz a mulher a sua função sexual tão somente.
Freqüentemente, se as mulheres na publicidade são estilizadas e bonitas, são
apresentadas como objetos, ao invés de sujeitos conscientes, com existência autônoma. Ela
é representada como disponível para (ab)uso, exploração e, se se aprouver, abandono. A
publicidade, portanto, atua como realimentadora e legitimizadora da imagem da mulher em
nossa sociedade.
Assim, apesar de em nossa sociedade já serem bastante visíveis as múltiplas facetas
da vida de uma mulher – mãe, dona-de-casa, profissional, esposa, amante –, a publicidade é
sempre redundante quanto a um determinado aspecto: “para ser feliz e bem sucedida a
mulher precisa estar sempre bela” (VESTERGAARD e SCHRØDER, 1988: 88) e ser (ou
parecer) jovem. Os anúncios para a mulher são, assim, centrados no sucesso, na vaidade e
na aparência (cf. CARVALHO, 1996, p. 24).
Paralelamente, uma vez que a diferença de gênero desempenha em geral um papel
muito importante no molde da identidade global de uma pessoa, é um fator fundamental
no desenvolvimento daquilo a que RANDAZZO (1997) chamou de mitologias
publicitárias.
Para esse autor, a identidade de gênero (um sentido de masculinidade/feminilidade)
é um aspecto importante da identidade geral de uma pessoa, sendo também importante ao
se criar uma mensagem publicitária: muitas marcas criam mitologias que servem para
refletir e reafirmar a identidade do consumidor. Neste caso, o que se deseja é que o
consumidor se identifique com a imagem do usuário (o tipo de pessoa apresentada usando
o produto) criada pela publicidade.
Nesse sentido, nas culturas ocidentais, alguns arquétipos estão associados a macho
e fêmea e acabaram determinando o que as pessoas consideram masculino e feminino.
Assim, para RANDAZZO (1997, p.105), “a publicidade que cria mitologias de marca
recorrendo a atraentes personagens míticos ou à imagética dos usuários, muitas vezes usa
(talvez até sem querer) imagens arquetípicas. (...) A resposta humana aos arquétipos é quase
sempre emocional.”
Quanto à mulher especificamente, a par da imagem arquetípica da Grande Mãe –
que mostra a mulher como eterno ventre, eterna provedora –, temos um dos arquétipos
mais recorrentes das mitologias publicitárias, qual seja a da Musa, que se traduz pela noção
da mulher fascinante, sedutora, fatal. Para a construção de tal arquétipo concorrem a
beleza, sempre apontado como aspecto importante de feminilidade, e o ideal de juventude.
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A CABANAGEM EM SANTARÉM
Lauro R. do C. Figueira
Resumo
A vila do Tapajós (Santarém), pertencente à província do Grão-Pará, participou da
revolução civil da Cabanagem (1835-1840). Índios, caboclos, escravos e pequenos
proprietários da Amazônia se rebelam contra o poder político e econômico sob domínio de
portugueses e seus descendentes. Os cabanos invadem Santarém e obrigam a câmara de
vereadores da vila anunciarem (9 de março de 1836) adesão ao governo da província
(Belém), à frente o líder Eduardo Angelim. O suporte da guerra na vila é a fortaleza de
Ecuipiranga, que resiste às milícias imperiais até 1837.
Palavras-chave: Santarém, Cabanagem, Amazônia.
Abstract
Tapajós’ village (Santarém), is located in Grand-Pará’s province, it participated in civil
revolution of Cabanagem (1835 – 1840). Indians, civilized Brazilian Indians, slaves and
small proprietors of the Amazon region rebelled against politic and economical
government on domination of Portuguese men and their descendents. Cabanagem’s men
(cabanos) invaded Santarém city and obliged The House of Councilors from the village to
announce (March 9th, 1836) adhesion to the government of province (Belém city),
commanded by leader Eduardo Angelim. War’s support in village is Ecuipiranga’s fortress,
it resisted imperial militias to 1837.
Introdução
O movimento revolucionário da Cabanagem corre na província do Grão-Pará entre 1835 e
1840. A eclosão da guerra civil paraense é conseqüência do devir histórico da colonização
portuguesa, das Juntas Governativas e da governabilidade dos primeiros presidentes provinciais.
A história da sociedade paraense é marcada por um percurso de opressão social desde o início da
colonização portuguesa (12 de janeiro de 1616), a começar pela destribalização das nações
indígenas conforme o aviamento dos descimentos com finalidade catequética e de escravização,
além da promoção das guerras justas e das tropas de resgate.100 Nas primeiras décadas do século XIX,
as Juntas Governativas e os presidentes da província estabelecem um governo sempre vinculado
a interesses lusos e à elite paraense formada por descendentes portugueses. Á época, a província
do Grão-Pará se comunicava mais intensamente com Lisboa do que com o Império do Rio de
Janeiro, o que determina uma condição socioeconômica a delimitar, de um lado, uma aristocracia
escravocrata de ricos comerciantes e proprietários agrários, e, de outro, um estrato social pobre,
constituído por mestiços e escravos, espoliados de bens e direitos.
A história política e a complexa situação econômica da Amazônia promovem a insurreição
popular. Ideologicamente, a sublevação é preparada na capital da província, Belém. Bem
sucedida, ocorre nesta cidade três governos cabanos101. Da capital, a revolução se irradia para o
Descimentos: os nativos de nações diversas são tangidos para as margens dos rios a conformar um núcleo de
pluralidade de cultura e línguas ajustados às orientações religiosas dos missionários; resgates: colonos e militares
apropriavam-se pela força de índios escravizados por outras tribos; guerras justas: milícias portuguesas e índios
‘civilizados’ em guerra contra as nações subversivas ou em represálias de ataques.
101 1°. governo cabano: Félix Antônio Clemente Malcher (07/01-19/02/1835) – frustrações revolucionárias; o
povo está no poder mas não no governo; 2o. governo: Francisco Pedro Vinagre (21/02-20/06/1835) – ápice
de conscientização e mando revolucionários; os cabanos confiam na legalidade do Marechal Manoel Jorge
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interior, vindo a eclodir nas vilas e nos campos. Na organização ideológica se encontram
estudantes, políticos liberais, nacionalistas, e religiosos102. De Belém ao Alto Amazonas (Manaus),
o movimento abriga diferentes causas, mas, em linhas gerais, é o embate entre ricos e pobres o
elemento motriz da revolta. Portanto, o quadro é de um movimento social de libertação
econômica e política103 – contudo não se trata de uma revolução separatista, embora os cabanos
tenham recebido proposta para autonomizarem-se do poder régio do Rio de Janeiro, segundo
constam relatos de historiadores paraenses. Os cabanos sentiam-se brasileiros e pretendiam
alforria social e econômica, conforme se observa nas palavras de Antônio Vinagre, comandante
das forças rebeldes, em discurso (14 de agosto de 1835) a seus patrícios antes de marchar para
Belém com a finalidade de expulsar o governador nomeado pelo poder régio, o português
Marechal Manoel Jorge Rodrigues104:
Paraenses! Irmãos e companheiros d’armas! Valentes e denotados
defensores das liberdades pátrias! Aproximam-se os momentos e
as horas que temos de medir as nossas forças com os vândalos,
que se intitulam de legais, quando eles não são mais do que vis
escravos do poder a que servem![...]
Só devemos reconhecer por inimigos os que se apresentam em
campo. Recomendar-vos sagrado respeito às famílias e proteção
aos desvalidos, é desnecessário. Compaixão para com os
vencidos. O homem livre e verdadeiro patriota é generoso.
Queremos prisioneiros e não cadáveres... O Deus da América está
convosco e o nosso triunfo não pode ser duvidoso. O Brasil
inteiro tem olhos para nós... Sejamos dignos do nome brasileiro.
Cumpra cada um com o seu dever e a pátria será salva. Viva a
Religião Católica Apostólica Romana! Viva a Nação Brasileira!
Vivam os defensores da Pátria e da Liberdade! Guerra aos
déspotas e tiranos! Viva o rico e majestoso Pará.105
Não há o cabano típico106, nem a Cabanagem é um movimento social isolado. Escravos
aderem à Cabanagem para conquistar a alforria da categoria; pequenos proprietários castigados
Rodrigues e lhe entregam o governo; 3o. governo: Eduardo Nogueira Angelim (23/08/1835-13/05/1836) –
momento de crise e colapso.
102 No início do século XIX, o clero constitui núcleo intelectual da Amazônia. A participação de prelados
contribui para determinação, explosão, condução e extinção do governo cabano.
103 O movimento revolucionário da Cabanagem apresenta três fases: a) caracteriza-se pela luta política –
exige reconhecimento da superioridade e da autonomia cabana, acentuando-se o aspecto autonomista e a
tendência republicana; b) renúncia à idéia separatista e exigência do governo imperial que respeitasse a
cidadania brasileira dos que haviam lutado pela independência do país; c) a derrota em Belém implica luta de
resistência no interior da província contra o despotismo imperial.
104 O governo provincial cabano de Antônio Vinagre (segundo governador cabano a assumir a província,
após a traição de Felix Antônio Malcher, o primeiro governante revolucionário – assassinado por se desligar e
do grupo que o elegeu e rivalizar com este) entrega o poder da província ao Marechal Manoel Jorge
Rodrigues depois de acordo diplomático. A primeira tomada de Belém expulsara o ditador Bernardo Lobo de
Sousa; agora os rebelados se preparam para transmitir o governo a outro governante, português, emitido pelas
cortes do Rio de Janeiro. Pesou uma pastoral do Primaz do Brasil, Dom Romualdo Antônio de Seixas, contra
as lideranças que desejavam resistir com o braço armado. Posteriormente à confirmação de acordos
diplomáticos (24/06/1835), sem que houvesse perseguição aos cabanos, em 26/06/1835 assume o governo
Jorge Rodrigues. Logo ele rompe os acordos e começa o revanchismo português contra os cabanos, motivo
este do reagrupamento revolucionário para a segunda tomada de Belém, formalizada a 23 de agosto de 1835,
após pesada fuzilaria e bombardeio na capital.
105 RAIOL, Domingos Antônio. Motins políticos. Belém: UFPA, 1970. v. 3. p. 832-834.
106
Em tempos de guerra civil, os cabanos ficam conhecidos como malvados, anárquicos, agitadores,
facínoras e cruéis.
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pelas elites também aderem à insurreição, a exemplo do primeiro governante cabano, Félix
Malcher. Nacionalistas, políticos, militares, religiosos e imprensa, abraçam as causas libertárias
ensejadas, sobretudo, pelo povo. A Cabanagem principia como uma agitação popular, com
pretensão de ascender ao poder da província, quando, além de Belém, muitas vilas são tomadas
pelos revolucionários. Entretanto, a sublevação revolucionária não apresenta consistência
ideológica e estratégica para sustentar o governo, depois de tê-lo conquistado. Aos líderes
cabanos falta o estratagema para consolidar uma organização política capaz de viabilizar seus
governos. Entretanto, a despeito da expectativa geral, a revolução da Cabanagem surpreende os
detentores do poder na província. Os desenlaces de episódios circunstanciais favorecem as
demandas dos revolucionários, briosos e organizados para apossarem-se do poder
governamental da província do Grão-Pará.
Antecedentes
Depois da expulsão dos jesuítas do Brasil (1759), da desvinculação de Belém de São
Luís, da abolição do Diretório (1790), o século XIX começa com incerteza política. Há na
capital, Belém, um surto de liberalismo na figura de jovens oficiais e estudantes instruídos
nas universidades lusas, além da penetração de ideais revolucionários franceses. Em 1815,
chega de Caiena o franciscano Luís Zagalo a propagandear a revolução francesa. Luís
Zagalo fomenta idéias libertárias em diferentes camadas sociais, a incluir os escravos,
incomodando os grupos hegemônicos políticos e as cúpulas religiosas. Por este tempo,
ideários de liberdade se fundamentam e evoluem até, anos depois, eclodir em definitivo na
revolta popular da cabanada.
Em janeiro de 1821, Belém é a primeira capital a aderir à conflagração
constitucionalista do Porto, o vintismo (1820). O discurso panfletário de Felipe Patroni às
cortes de Lisboa, em favor de liberdade política na Amazônia, e da insubmissão a governos
monárquicos, exprime a movimentação intelectual contaminada por idéias correspondentes
às demandas populares já existentes.
A adesão à Independência do Brasil (07.09.1822), pela província do Pará, em 15 de agosto
de 1823, é outro sucesso antecedente à Cabanagem e também responsável por deflagrar essa
insurreição política. A proclamação da Independência do Brasil de Portugal (07.09.1822),
agenciada por D. Pedro I, permite no Pará o surgimento de uma facção pertinente ao
conservadorismo e outra em defesa de nova orientação política, tendente ao liberalismo. Esta
díade de interesses é índice da maior rebelião ocorrida na Amazônia. A adesão paraense à
proclamação da Independência foi um ato compulsório (15/09/1823), arrefecendo os ânimos
exaltados dos partidários amazônicos pela Independência, mas, com razão, deixou nestes severas
desconfianças sobre o futuro político da província. Após o desenlace da adesão paraense à
Independência, os grupos conservadores continuam nos núcleos governamentais, aumentando
“os equívocos políticos com conseqüências [...] no plano político e social: do lado português
justificou-se o terrorismo de governo e este provocou, do lado brasileiro, a resposta
revolucionária”.107 Os privilégios aos políticos e negociantes portugueses perduram. A falta de
orientação objetiva do império brasileiro, acerca de definição política e territorial defronte do
império português, permite rebeliões amazônicas antes da adesão à independência imposta pelo
inglês Greenfell (14/04 em Belém, e 28/04/1823 na Ilha do Marajó), e também depois da
107
DI PAOLO, Pasquale. Cabanagem – a revolução popular da Amazônia. Belém: Cejup, 1990. p. 108.
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oficialização dessa conquista (15/10/1823, episódio do brigue Palhaço108). Enfim, “A
incorporação do Pará ao Império do Brasil anunciava, pelo dramático e pelo insólito de suas
imagens, marcadas pela violência dos agentes da ordem contra a sociedade paraense, os quadros
da futura Cabanagem.”109
Causas
A Guerra Civil de 1835 decorre das insatisfações populares no curso da história amazônica
sombreada pela opressão portuguesa em época de colônia sobre o nativo, o mestiço e o escravo
africano.110 Além disso, quanto ao poder regional, as Juntas Governativas e os presidentes
provinciais prosseguem com o sistema colonial, e, quanto ao governo régio, há descaso com o
Norte. O povo paraense, ainda que pesarosamente liderado por alguns intelectuais despreparados
para organizar ideologicamente os cabanos e assumir a administração pública, inscreve na
história brasileira ascensão e queda do único, até então, governo popular.
No dia 2 de dezembro de 1833 chega a Belém o oitavo presidente da província, Bernardo
Lobo de Souza. Com auxílio do presidente das Armas, Joaquim José da Silva Santiago, imprime
um regime de perseguições, prisões arbitrárias e deportações em massa para coibir os distúrbios
sociais na província. Às duas da madrugada do dia 07 de janeiro de 1835, os revolucionários
tomam Belém de assalto. Perseguem Lobo de Souza e Santiago – por fim mortos pela munição
cabana. A última tomada de Belém é sufocada pelas forças legais comandadas pelo General
Francisco José de Souza Soares Andréa. Em 13 de maio de 1836, a cidade de Belém é
definitivamente retomada por tropas imperiais. Andréa bloqueia Belém, estando ela aos cuidados
do último governo cabano, representado na figura do jovem camponês Eduardo Francisco
Nogueira Angelim. A derrota dos cabanos na capital é parcial, pois continuam em atividade até
1840 pelas cidades do interior e pelas pequenas comunidades ribeirinhas. A revolta cabana não
representa um episódio de libertação isolado no tempo. Ainda, em 1835, a 20 de setembro,
ocorre a proclamação da República Rio-grandense, iniciando a revolução Farroupilha; em 1836, a
Espanha reconhece a independência do México; em 1837, arrebenta a Sabinada na Bahia; em
1838 começa a Balaiada, movimento revolucionário maranhense.
Imediatamente à implantação da independência brasileira na província paraense, houve eleição para
constituir uma junta governativa, formada na maioria por conservadores. Houve rebeliões sufocadas com
vigor. Em um dos acontecimentos, 256 rebelados foram aprisionados no brigue São José Diligente
(“Palhaço”) – a água disponível aos presos fora previamente envenenada, provocando a morte de quase todos
os prisioneiros; somente quatro escaparam.
109 COELHO, Geraldo Mártires. O Pará, a Independência e o Império. In: FONTES, Edilza. (Org.) Contando
a história do Pará – da conquista à sociedade da borracha (séc. XVI-XIX). Belém: E. Motion, 2002. v. 1. p. 219.
110 Reis escreve a seguinte interpretação sobre a revolta amazônica: “A Amazônia no decorrer do qüinqüênio
1835/1840, ia experimentar ou padecer uma das mais sangrentas aventuras políticas [...]. A insatisfação das
multidões nativas que se julgavam esbugalhadas nos seus direitos desde o momento da Independência, que não se
sentiam felizes no atendimento da Independência, que não se sentiam felizes no atendimento de suas necessidades
materiais mais imediatas, que continuavam naquela mesma condição de inferioridade social e econômica que vinha
dos dias da colonização, que viam nos antigos dominadores os mesmo poderosos de sempre, mantidos nos postos,
agraciados com as atenções e os favores do governo, a usufruírem todas as venturas decorrentes do poder
econômico e do poder político, tinham chegado ao clímax de suas desesperanças. [...]. [...] todo o processo
revolucionário não passara de um pronunciamento dos que tinham contra os que não tinham. REIS, Arthur Cézar
Ferreira. Santarém: seu desenvolvimento histórico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 111.
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A Cabanagem na Vila do Tapajós (atual Santarém)
Estrutura colonial na hiléia.
As condições socioeconômicas e políticas na região da vila de Santarém, no Oeste
da província paraense, não divergem das dominantes de outras zonas da Amazônia
brasileira, no decurso do século XIX. Em primeiro plano encontra-se uma aristocracia rural
ativa, proprietária de latifúndios e escravos, dona dos sítios de cacau e das fazendas de gado
bovino, principalmente no Lago Grande da Franca. Deste grupo emerge uma elite
administrativa da política e da burocracia. Outra facção do grupo dominante, contudo
inferior, é composta pelos comerciantes, que utilizam o sistema de regatão. Completa este
primeiro setor a Igreja de Santarém, sob a direção do Vigário Cônego Raimundo Antônio
Fernandes, também vigário do Baixo Amazonas. O Cônego Fernandes, além de político,
cumpre relevante função intelectual de liderança da classe dirigente. É, ainda, proprietário
de terras e escravos. Em setor antagônico, situa-se a maioria do povo, formada por índios,
caboclos e os chamados “escravos de ganho”, todos sem nenhuma participação política na
vila. São inelegíveis e não podem votar, além de cumprirem apenas atividades servis à
sociedade dirigente. Uns desenvolvem incipiente agricultura de subsistência; outros são
pescadores e, por fim, outros exercem profissões na construção civil, naval ou são
sapateiros, alfaiates, barbeiros, remeiros, etc.
Antecedentes locais
O quadro socioeconômico e político da região de Santarém se configura semelhante
ao da capital da província. Domina a cena política o grupo dos caramurus (‘reinós’),
incentivado pelo Comandante das Armas, Major João Batista da Silva, e os filantrópicos, com
perfil liberal. A notícia do vintismo português chega à vila tapajoara em 31 de janeiro de
1821, sendo comunicado em solenidade especial pela câmara da vila. Os vereadores
santarenos são solidários aos portugueses em demonstração de subserviência às cortes de
Lisboa. A resistência popular estabelece ‘núcleos’. Vale destacar, como agente dos ideais de
independência, João Pedro de Andrade, mais tarde denunciado e preso sob acusação de
ação subversiva. A vila de Santarém faz sua adesão à independência brasileira do reino luso
no dia 19 de outubro de 1823. Em sinal de protesto pelo acontecido, o vigário português
Pe. Manuel Fernandes Leal renuncia às funções e deixa a vila, sendo substituído pelo
cônego conservador Raimundo Antônio Fernandes. Os liberais continuam descontentes,
pois os ‘reinós’ permanecem no poder. A inquietação política no Baixo Amazonas conduz
a vários episódios de confrontos bélicos, como a expedição que parte de Óbidos, Rio
Negro e Santarém para retirar a vila de Alenquer do controle de revoltosos compostos por
negros, índios e mestiços.
A 17 de abril de 1833, o presidente da Província, Brigadeiro José Machado de Oliveira,
decreta reorganização administrativa. As vilas paraenses recuperam seus antigos nomes. A Vila
de Santarém volta a ser chamada de Vila do Tapajós – até 30 de abril de 1841, quando outro
presidente da Província, Souza Franco, restitui o nome de Santarém à vila, logo após desfecho
da Cabanagem. A reforma eleva o vilarejo à condição de Comarca. Nesta condição, administra
todo o Baixo Amazonas, detendo o Comando Militar e a Vigararia-Geral. A Comarca aglomera
as vilas e povoados do Baixo Amazonas até a fronteira com a Comarca do Alto Amazonas –
Faro, Pauxis (Óbidos), Vila Franca, Monte Alegre, Macapá, Porto de Mós, Gurupá. Por lei, a
Comarca se constitui gerida por um magistrado formado, nomeado pelo Imperador, com o título
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de Juiz de Direito. Assim, o Dr. Joaquim Rodrigues de Souza assume o cargo, além de combinar
esta função com a de Chefe de Polícia do Baixo Amazonas. Por concentrar na vila o poder
temporal e espiritual da região, a Vila do Tapajós, como era então chamada na época da
Cabanagem, é a “‘mais poderosa do sertão’, contando com 5.261 habitantes livres e 1895
escravos”.111 Pela sua relevância geográfica, econômica, política e religiosa, as atenções se
voltavam para seu destino na conjuntura revolucionária paraense.
As mortes do presidente Bernardo Lobo de Sousa e do comandante das Armas,
Coronel Santiago, ao tempo da conquista de Belém pelos revolucionários (07/01/1835),
assustam as Câmaras do Baixo Amazonas. Elas coligam-se para manter a ordem em uma
espécie de liga defensiva, sob comando e apoio de Santarém e Óbidos. As câmaras de
vereadores das Comarcas do Baixo e Alto Amazonas manifestam protesto contra o levante
cabano e declararam ilegal o governo que então se instalara na capital da província.
A importância de Santarém no contexto da revolução popular
A Vila do Tapajós, pela sua condição de sede da Comarca e por sua posição
geográfica, é o centro político mediador do embate entre as legiões revolucionárias e as
forças legalistas. Também é o ponto de intermédio entre Belém e o sertão amazônico. Na
vila tapajônica se reproduz, em menor escala, a mesma complexidade sociopolítica da
capital.
Cenas de uma guerra anunciada
Os cabanos, pertencentes à classe de maior contingente na sociedade amazônica,
deixam fluir seus sentimentos de contrariedade contra o branco detentor dos segmentos
econômico e político na região nortista. Promovem sobressaltos às elites por demonstrar,
anteriormente à revolução, uma humanidade subserviente e tolerante, em quietude de
escravização. Depois de anos de submissão, cobram, com o braço armado, o direito de
exercitar livremente a cidadania. Após a invasão de Belém, as autoridades santarenas
prepararam-se para preservar a legalidade na vila e para uma possível invasão dela pelos
revoltosos. O movimento cabano se irradia por toda a Amazônia, articulado pela estratégia
de posicionar os cabanos em pontos específicos. Por onde passam, os insurgentes deixam
notícias alarmantes.
O Dr. Joaquim Rodrigues de Sousa lidera comandos com a finalidade de manter a ordem e
a legalidade. Constitui uma Junta de Salvação Pública, encarregada de promover a defesa. Para
tanto, convoca a Guarda Nacional e transforma a vila em fortaleza. Instala um quartel no
sobrado do fazendeiro Luiz Vicente de Miranda, o “Quartel do Sol”. As forças legais esperam
uma invasão do exército cabano pela praia. Embarcações com militares ficam de vigília em frente
à vila, mas, em vão, o ataque imaginado não acontece.
Preparação da tropa
Os militantes revolucionários possuem reduzias armas e munições. A despeito deste ponto
desfavorável, arquitetam a tática de guerrilha para compensar a carência do armamento bélico –
emboscadas, assaltos surpresas de pequenos grupos, etc. A arma principal dos cabanos é o facão.
Também não dispõem de fardamento; vestem calças de algodão tingidas com casca de murici112.
SANTOS, João. A cabanagem em Santarém. Santarém: Livraria Ática, 986. p. 15.
Ao tempo da organização das tropas para o segundo ataque a Belém, os cabanos tingem suas camisas e
calças com a casca da árvore frutífera muricizeiro. Di Paolo, op. cit., p. 258. O tom avermelhado, produto da
111
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Possuem hábil serviço de informação, pois, ao investirem contra “determinado local, já sabiam
com quem poderiam contar e a capacidade de resistência do adversário.”113 Antônio Maciel
Branches, mestiço e pequeno sitiante, é um dos líderes cabanos na vila tapajoara. Além da massa
desvalida, a revolução em Santarém recebe apoio de pessoas importantes da vila. Antônio Corrêa
Picanço, de tradicional família, e Manoel de Oliveira da Paz, muito estimado na vila, se
incorporaram à revolução pela substância nacionalista da causa, em face da tirania portuguesa.114
Ecuipiranga: fortaleza dos cabanos
Em Ecuipiranga (atual Cuipiranga), situada à margem direita do Amazonas e acima da foz
do rio Tapajós, as milícias cabanas se concentram para organizar investidas pelo Baixo
Amazonas, sobretudo à Vila do Tapajós. Ali constroem uma “fortaleza” sob comando de Miguel
Apolinário Maparajuba, que acrescenta “Firmeza”115 ao nome para identificar seu ânimo
indomável e convicção na peleja revolucionária. Do mesmo modo, o último presidente cabano,
Eduardo Nogueira, recebe o codinome “Angelim”, metonimizando a retidão e têmpera do seu
caráter. O chefe cabano santareno não corresponde à imagem do rebelde desalmado e
inescrupuloso – segundo os boatos correntes em tempos de cabanagem. Ao contrário, é
reconhecido como homem lúcido e atinado ao bem de todos. De Ecuipiranga, Maparajuba
Firmeza emite proclamações aos cabanos e ao povo para permanecerem unidos e convencidos
de suas convicções.
Em que pese a vigilância da guarda santarena sobre o rio, os cabanos se aproximam a
partir de Ecuipiranga, dirigindo-se pelos flancos, em vez de se aportarem pela praia fronteira.
Contrariamente aos batalhões legais, que dependem de soldados de outras regiões e até do
exterior, o contingente cabano em Santarém forma-se com grupos provenientes das plantações
de cacau, das fazendas e das cabanas margeantes dos rios e lagos da região – vaqueiros,
pescadores, agricultores e escravos fugidos, em grande parte, do Lago Grande da Franca.
fervura do tecido com a casca dessa árvore, seria a cor padrão da indumentária dos caboclos – Veríssimo
registra que a roupa de algodão de “muruxi”, isto é, tingida pela casca desta árvore, foi a roupa do pobre
amazônico. VERÍSSIMO, José. Estudos brasileiros – segunda série (1889-1893). Rio de Janeiro/São Paulo,
Laemmert & C., Editores, 1894. p. 224. Inglês de Sousa transpõe para a literatura esse costume, registrado no
conto “O rebelde”, da seleta Contos amazônicos (1893): “Uma centena de pessoas, homens, mulheres e crianças,
caboclos na maior parte, negros e mulatos muito poucos, desembarcavam desordenada e ruidosamente. Os
homens vestiam calças e camisa de algodão tinto em murixi vermelho, cobriam-se com grande chapéu de
palha [...]. //As mulheres trajavam saias e camisa da mesma fazenda de algodão, sendo somente as saias tintas
em murixi, e sobre os amplos peitos morenos destacava-se a cruz de duas cores que distinguia os cabanos,
inimigos dos maçons e dos portugueses.” SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. Belém: EDUFPA, 2005. p.
148-149.
113 SANTOS, João, op. cit., p. 17.
114 Outros expoentes da Cabanagem na vila foram: Braz Antônio Correa, Bonifácio Numes de Arruda,
Hermenegildo Fernando Valente, Pedro Antônio Correa Viana, Raimundo Elias de carvalho, Bernardo
Antônio de Aragão, João Paes Pedroso, Domingos da Conceição Ferreira, Julião Correa Jutaí, Lourenço
Raimundo Martinho, Martinho Braz e João Ferreira Leal, pessoas destituídas de poder, portanto, também
oprimidas. Ibid. p. 18.
115 Os revolucionários cabanos tomavam para si codinomes que os referenciassem e os definissem por
analogia – O jovem presidente cabano da província toma para si a nomenclatura de Angelim; seu irmão,
Geraldo, Gavião. Em Contos amazônicos, na narrativa “O rebelde”, é acrescido paxiúba (do tupi, a designar uma
forte palmeira) ao nome do personagem Matias. Outros soberanos das águas, segundo este conto, também
recebem epítetos peculiares: Pau Ferro e Jacó Patacho.
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Cerco de Ecuipiranga.
Os militares forjam uma estratégia para demolir a fortificação de Ecuipiranga. Entendem
que o fortim é o lugar estratégico de ataque e resistência cabana. Desse modo, deveriam expulsálos de lá. Com este objetivo, o Tenente-Coronel da Guarda Nacional, José Joaquim Pereira
Macambira, comanda uma ação militar (64 soldados) contra o reduto revolucionário, mas sem
sucesso. Muitos soldados são feridos, e, do peito de um deles, retiram um projétil com marcas
feitas dentro do quartel. À semelhança do que aconteceu em Belém e em outras cidades e vilas,
soldados legalistas recusam a farda oficial e contribuem com a causa revolucionária. O próprio
líder cabano Angelim fora membro da Guarda Municipal Permanente, em Belém. O projétil dos
legalistas no colo de um soldado do reino confirma repasse abstruso de munições aos cabanos. A
zona da Aldeia (sítio margeador do lago Mapirí, desaguante no rio Tapajós) é o lugar onde os
cabanos de Ecuipiranga e os da vila transacionam sem provocar desconfiança. A este lugar, os
cabanos chegam de canoa à remo disfarçados de pescadores ou pessoas insuspeitas.
Contrapartida da revolução.
No dia 27 de fevereiro de 1836, a Câmara tapajônica se reúne extraordinariamente e apela
para que o Juiz de Direito, o Juiz de Paz e as forças navais ancoradas no porto lhes venham ao
auxílio, mas não encontra guarida. Agindo por si mesma, envia uma embaixada aos cabanos. A
resposta é um ultimato, pois entendem que os poderes jurídico, militar e político da vila não
representam embargo insuperável para os sucessos da jornada revolucionária. O conteúdo do
ultimato à Câmara da vila é um imperativo para que ela promova a adesão ao governo provincial
cabano de Eduardo Angelim, instalado na capital, Belém. De outro modo, invadiriam a vila e
puniriam os vereadores.
Forças revoltosas, lideradas por Antônio Maciel Branches, aceleraram os acontecimentos.
O provo oprimido, ávido por ultimar com séculos de despotismo, parte da Aldeia e adentra na
Câmara, com o escopo de exigir urgentemente o cumprimento do ultimato proferido.
Vitória cabana em Santarém. A Câmara de Vereadores da vila do Tapajós, pressionada
pelas contingências, se reúne em sessão no dia 9 de março de 1836 para anunciar a adesão da
vila ao governo Angelim e divulgar que outras câmaras do Baixo Amazonas lhes sigam o
exemplo.116 O livro-ata acusa a assinatura dos seguintes vereadores: Raimundo Dias Leão,
substituindo o presidente João de Deus Ferreira Canuman; João de Deus Leão, secretário da
sessão; Pedro Alexandrino de Lira; Lourenço Antônio da Silva; Bento José Rebelo; Lizardo
A Câmara de vereadores, em poder dos revolucionários, emite a seguinte declaração: “Honrados cidadãos
Tapajoenses: Sucegai vossos Espíritos. A Reunião de Ecuipiranga não vos hade offender, antes pelo contrario
hade fazer garantir os vossos Direitos que quasi se hião devorando, pelo Despota Juiz de Direito desta
Comarca Joaquim Roiz de Sousa, o que já por intermedio desta Comarca se vai conciliar dando as mãos com
aquella Reunião reconhecendo na pessoa do Exmo. Snr. Eduardo Francisco Nogueira Angelim, a Presidência
desta Província para que de todo fique pacato obedecendo todas as suas deliberançoens na defesa dos direitos
individuais dos cidadoens desta Comarca. Viva a Santa Religião Catholica e Apostólica Romana; viva o Jovem
Brasileiro o Senhor Dom Pedro 2o. e a Regência em seu nome e Vivão os nossos Irmãos da Ecuipiranga na
Defesa e Manutenção da Ordem Pública e vivão os honrados Tapajoenses.” (REIS, op. cit., p. 115). Este
proferimento equivale – pelo conteúdo, pelo acontecimento histórico – ao Manifesto político de Vinagre ao
preparar as tropas cabanas para retomar Belém, que havia sido entregue ao Marechal Rodrigues. Então, a 14
de agosto de 1835, no Acampamento do sítio Murucutu, ouve-se a proclamação de Antônio Vinagre:
“Paraenses! Irmãos e companheiros d’armas! Valentes e denotados defensores das liberdades pátrias!
Aproximam-se os momentos [...] que temos que medir as nossas forças com os vândalos, que se intitulam de
legais, quando eles não são mais do que vis escravos do poder a que servem!//[...]// Sejamos dignos do
nome brasileiro. [...]. Viva a Religião católica Apostólica Romana! Viva a Nação brasileira! Vivam os
defensores da Pátria e da Liberdade! Guerra aos déspotas e tiranos! Viva o rico e majestoso Pará”. DI
PAOLO, Pasquale, op. cit. p., 259.
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Antônio Loureiro e João Caetano de Souza Barreto. Segundo o Historiador João Santos, o
governo cabano na Vila de Santarém fica ao comando dos revolucionários Braz Antônio Correa,
nomeado Comandante geral das forças, e Francisco Antônio Batista, alferes comandante117. O
historiador Arthur C. F. Reis informa que o comando militar é entregue a Bonifácio Nunes de
Arruda118. Pasquale Di Paolo registra que, também, Hermenegildo Fernando Valente assume
funções de comando119. O novo governo toma medidas extremadas, ordenando várias mortes,
entre elas a do comerciante português Miguel Pinto Guimarães.
Autoridades fogem de Santarém
As autoridades legais de Santarém decidem abandonar a vila, vergadas ao fracasso perante
o forte cabano, pois, se depusessem as armas, poderiam ser mortos. Os cabanos contabilizam
apoio da maioria da população santarena. Assim, as forças legalistas, representadas pelo juiz da
Comarca, dr. Joaquim Rodrigues de Sousa, e comandadas pelo capitão peruano Ambrosio Aires,
além do vigário da paróquia e de pessoas representativas e comprometidas com a situação
dominante, procuram abrigo fora da vila, sobretudo em Macapá.
Os cabanos, dotados de impulso pela vitória na vila do Tapajós, passam ao Alto Amazonas
e ocupam inúmeras localidades, pois não encontram nenhuma reação contrária, alcançando as
fronteiras com o Peru, no Rio Solimões. Portanto, dominam incomensurável território da
Província paraense.120 Após a recuperação do governo da província em Belém pelas forças do
Império (13/05/1836), Santarém passa a constituir um centro político autônomo.
Volta do poder legal: declínio do governo cabano
Embora de posse do governo na vila do Tapajós, os cabanos se sentem incomodados por
dois problemas. Por um lado, os escravos da freguesia de Bararuá organizam-se em um grupo
armado independente, comandados por Manoel Pedro dos Anjos, com a pretensão de tomar a
vila tapajoara segundo estratégias anti-revolucionárias. Por outro, a formar um triângulo de
reivindicações, estão os ‘legalistas’ ricos, interessados em retomar o poder, capitaneados pelo
padre Antônio Manuel Sanches de Brito. Fica a dúvida se o grupo de Manoel dos Anjos e os
legalistas de Ambrósio Pedro Aires, por não guerrearem entre si, tinham um acordo ao combate
dos cabanos.
A reação à resistência cabana começa pela Comarca paraense do Alto Amazonas, sediada
em Manaus. Destacamentos militares fiéis às forças imperiais se apoderam de Manaus. No Baixo
Amazonas, tropas militares da vila de Pauxis (Óbidos) expulsam os revoltosos desta vila –
episódio referenciado no conto “O donativo do Capitão Silvestre”, de Contos amazônicos (1893),
do escritor Inglês de Sousa, nascido em Óbidos (28/12/1853) e falecido no Rio de Janeiro
(06/09/ 1918).
Depois de cercar Belém e recuperá-la para o Império brasileiro, as esquadras que servem
ao novo Presidente da Província paraense, General Andréia, ficam livres para combater as
resistências cabanas no interior. Deste modo, ao amanhecer do dia 4 de outubro de 1836, aporta
às margens do rio Tapajós uma força naval para restaurar a legalidade imperial. A campanha
militar apresenta três escunas e 105 homens armados. Em terra, os cabanos não dispõem de
armamento adequado para resistir ao ataque dos agentes marinheiros (portugueses). Após breve
SANTOS, João, op. cit., p. 22.
REIS, Arthur C. Ferreira, op. cit., p. 115.
119 DI PAOLO, Pasquale, op. cit., p. 297.
120 Diversas vilas e pequenas regiões oscilam ora em poder dos cabanos, ora em posse do poder imperial
(Acará, Moju, Abaeté, Marajó, Amazonas, Macapá), a permanecer, por fim, sob controle dos “legais”.
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oposição, sucumbem. Reintegrado o poder da vila à corte do Rio de Janeiro, o contra-ataque das
milícias legais não manifesta misericórdia aos cabanos. A ordem é para matar os insurrectos:
“Centenas de corpos cabanos ficaram jogados nas poucas ruas da vila. Estava imposta a “ordem
e a legalidade”.121 É o momento da restauração.
Entretanto, o fortim de Ecuipiranga resiste às investidas da força legal. O capitão
Ambrosio Aires articula a tomada do último reduto cabano com auxílio do padre Antônio
Manuel Sanches de Brito,122 então vigário de Juruti, e responsável por aliciar em seu favor a
nação Munduruku. Por fim, a afamada fortaleza de Ecuipiranga sucumbe a 12 de julho de
1837. O cerco revela a já conhecida valentia dos guerrilheiros paraenses e sua argúcia para
sobrevivência. Os entrincheirados não possuíam canhões. Enganavam a todos com o ardil de
prepararem troncos de palmeiras pintadas de preto de modo a sugerir que fossem canhões, se
avistados de longe.
Os combatentes cabanos na vila do Tapajós foram, sobremaneira, o índio e o caboclo. Em
outros lugares da Província, o negro escravo teve destacada participação, como ilustra o contexto
da guerra na capital Belém. Os escravos se misturaram às tropas cabanas tapajônicas, mas com
um contingente acanhado. De outra maneira, ficaram fiéis aos seus senhores ou formaram
grupos independentes com objetivos particulares, conforme explicitado anteriormente.
Resistência e colapso
O presidente cabano Eduardo Angelim abandona Belém a 13 de maio de 1836. Ele
organiza uma retirada estratégica da capital, bloqueada pela esquadra comandada pelo General
Andréia. Ao final do mesmo dia, Andréia ancora em Belém. Dessa data para diante, os cabanos
iniciam a luta de resistência no interior da província, sabe-se já. A queda do governo cabano em
Santarém também viabiliza esta qualidade popular marcial. A guerra civil até o momento ainda
não apresenta sinais de trégua. Os cabanos possuem em seu favor o conhecimento da região, da
floresta e da rede hídrica da bacia amazônica, além da cooperação dos camponeses. Levam
vantagem sobre as forças legais, ainda, tendo em vista seus procedimentos de guerrilha.
Entrementes, segue vagarosamente a perseguição aos cabanos. Neste sentido, se estabelece em
Santarém a sede de comando da Expedição do Amazonas, tendo como chefe Tenente-Coronel
Joaquim Luís de Sousa. Frotas navais e tropas terrestres, formadas por unidades com
componentes do Nordeste e do Sul do Império, integram armada governamental. Ecuipiranga
resiste ao cerco dos soldados do reino até julho de 1837.
As guerrilhas, incansáveis, não permitem a vitória fácil e rápida das forças imperiais. Mas
com o tempo aparece o desgaste das milícias populares. Os próprios cabanos vislumbram o
aniquilamento próximo das suas resistências bélicas. Aos poucos, os grupos de guerrilheiros
diminuem.
Anistia
O General português Andréia é exonerado da presidência do comando das armas no dia
08 de abril de 1839. Acaba a Lei Marcial na Amazônia e inicia a Ordem Jurídica com o 14 o.
presidente, Bernardo de Sousa Franco. O militar português sai vitorioso das funções,
SANTOS, João, op. cit., p. 24.
A Igreja é aliada indispensável em favor do Estado hegemônico ‘branco’. A tomada de Cametá pelas
tropas legais é de autoria do padre Prudêncio José das Mercês Tavares, também Juiz de Paz. Manifesta ser um
legalista radical. Este padre-coronel ordena que mate os cabanos sem piedade. Em Santarém, o padre Sanches
de Brito foi o responsável pela queda da vila em poder cabano – organiza uma escuna de caça a cabanos.
Deste modo, restabelece a legalidade em Juruti, Cururu, Faro, Alenquer, Silves, Atuma, Pacoval, Andirá,
Luzéia, Arapixi, além de outras localidades.
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mas sua vitória foi alcançada com alto preço, a mancha
histórica do genocídio: os cabanos mortos nos campos de
batalha [...], as numerosas levas de presos – que diariamente
chegava à capital e que em sua maioria ia morrendo nas
prisões e nos hospitais – e as incalculáveis vítimas das
expedições de mortes carregavam de triste lembrança as
medalhas recebidas por uma questionável vitória. (DI
PAOLO, 1990: 346)
Sousa Franco, ao lidar com inúmeros processos advindos da guerra civil e ao reconhecer as
injustiças empreendidas pelas forças legais, embora não solidário à causa cabana, entende que o
procedimento para restabelecer a ordem jurídica e a paz na Amazônia seria por intermédio da
anistia. Assim, discursa na abertura da Assembléia Provincial de 15 de agosto de 1839: “Pedi ao
governo imperial anistia excepcional, com exclusão dos assassinos, chefes, comandantes de
pontos, oficiais a serviço do rebelde Eduardo Angelim [...].”123. A Anistia Excepcional é divulgada
em 4 de novembro de 1839. Vários grupos cabanos depõem as armas, como fazem 980 índios,
em 25 de março de 1840, às autoridades de Luzéia (Maués) e 200 guardas policiais, das vilas do
Tapajós e de Pauxis. O decreto da Anistia Geral data do dia 22 de agosto de 1840. É assinalado o
prazo de sessenta dias para os últimos cabanos se apresentarem às autoridades civis ou militares.
Entretanto, o presidente da província podia condicionar a anistia ao desterro, nomeadamente se
o insurgente integrasse alguma liderança cabana – foi o que aconteceu com os ex-presidentes
cabanos Antônio Vinagre e Eduardo Angelim, desterrados para a ilha de Fernando de Noronha,
onde permaneceram por dez anos.
BIBLIOGRAFIA
DI PAOLO, Pasquale. Cabanagem – a revolução popular da Amazônia. Belém: Cejup, 1990.
FONTES, Edilza. (Org.) Contando a história do Pará – da conquista à sociedade da borracha
(séc. XVI-XIX). Belém: E. Emotion, 2002.
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REIS, Arthur Cezar Ferreira. Santarém: seu desenvolvimento histórico. Rio de Janeiro: Civilização
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123
DI PAOLO, Pasquale, op. cit., p. 353.
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A MULHER EM GENÉRICOS DISCURSIVOS DE REVISTAS FEMININAS
NO BRASIL NA PRIMEIRA METADE DO SÉC. XX
Leda Verdiani Tfouni
Paula Chiaretti
RESUMO: É na primeira metade do século XX, marcada uma tentativa de manutenção de
moldes sociais, que surgem as primeiras revistas femininas. Objetivo deste artigo foi
investigar como essas revistas falavam sobre a mulher no Brasil neste período através dos
genéricos discursivos. Foi utilizado como referencial teórico-metodológico a Análise do
Discurso Pêcheutiana, que visa investigar o processo histórico de produção dos sentidos. A
análise dos recortes mostra que essas revistas construíam sentidos sobre o que era ser uma
mulher, sentidos esses que procuravam criar um modelo de feminilidade ligado à reclusão
ao lar e à fragilidade feminina.
PALAVRAS-CHAVE: revistas femininas, genéricos discursivos, Análise do Discurso
Pêcheutiana.
ABSTRACT: It was in the first half of the XXth century, marked as an attempt to the
maintenance of the social molds that the first Female magazines emerged. This article
aimed to examine how these magazines dealt with women in Brazil through genericdiscourse, discursive formations similar to formulas characterized by the meaning
naturalization. It was used the theoretical-method reference of the Pêcheux Discourse
Analysis, which objectives to investigate the historical process of meaning production. The
analysis shows that these magazines built meanings about being a woman and these
meanings tried to create a femininity model connected to the reclusion to home and to the
feminine fragility.
KEY-WORDS: Female magazines, generic-discourse, Pêcheux Discourse Analysis.
No século XIX, a imprensa era exclusivamente voltada aos interesses da Corte
Portuguesa e dos portugueses, que viam no território brasileiro apenas uma moradia provisória
(MARIANI, 2001). Já no século seguinte, a cultura brasileira era marcada por uma produção
altamente nacionalista, contra o elitismo e o europeísmo. Co-existia, no Brasil desse período,
uma cultura ainda conservadora, advinda de costumes do século XIX, principalmente no que se
refere ao tratamento da questão do feminino, e uma outra modalidade cultural, que procurava
arejar os costumes e trazer algum progresso para a sociedade e a intelectualidade do país, apesar
de estes últimos continuarem ditando regras de comportamento e de moral em muitos setores.
Grossi (2000) postula que os movimentos sociais do inicio do século XX tinham como
função contextualizar ao novo tempo o que havia sido conquistado com o Iluminismo e a
Revolução Francesa; a industrialização, urbanização e o novo modelo político acabaram por
separar claramente os espaços público e privado. Nessa separação, foi concedido à mulher um
papel de gênero circunscrito quase que exclusivamente ao âmbito privado.
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As revistas femininas
As grandes cidades, nesse período, eram as sedes da produção cultural, graças a sua
formação heterogênea e ao convívio de classes e grupos sociais distintos o que possibilitava que
estes grandes centros urbanos fossem lugares de questionamentos. A mídia cumpria um duplo
papel de manutenção e questionamento. Nas três primeiras décadas muito foi discutido pela
imprensa escrita sobre como deveriam ser as mulheres, os maridos, os casamentos, a educação
dos filhos etc. Toda essa discussão “acabou por desumanizá-las (as mulheres) como sujeitos
históricos, ao mesmo tempo em que cristalizava determinados tipos de comportamento
convertendo-os em rígidos papéis sociais” (MALUF; MOTT, 1998, p. 373).
Os diferentes e excludentes papéis atribuídos ao homem e à mulher eram ditos
“complementares. Ainda nesse contexto, a imprensa começa a trazer pistas de uma emancipação
da mulher, ao mesmo tempo em que encerra as funções do homem e da mulher em
determinados padrões normativos.
A Revista Feminina, que foi publicada entre 1914 e 1936, trazia em suas edições
colunas sobre moda, culinária, crônicas, novelas e etc. Nestas edições a temática era a
mulher e não necessariamente traziam textos que tinha mulheres como autoras,
caracterizando-se muito mais como um discurso sobre a mulher. A mulher não fala, ela é
falada. É dito como ela deve se comportar, vestir-se, cozinhar, tratar os familiares amigos
etc., sendo que o fato dos textos serem escritos por jornalistas, especialistas no assunto
produz um efeito de verdade sobre o que é falado, legitimando a idéia de mulher.
Estas revistas surgem no período anterior ao surgimento da segunda onda do
movimento feminista que viria revolucionar a visão de mulher, dando a ela um maior
espaço nas práticas públicas, maior participação política e no mundo do trabalho.
Muitas vezes, essas formações discursiva/enunciados se apresentam de forma
autoritária, contendo a polissemia, já que o jornalista, escritor está muito mais autorizado a
falar sobre o que é certo ou errado e o que ele diz se converte em conhecimento/norma.
Tanto que além das revistas datam da época, manuais e enciclopédias que ensinavam como
ser mulher, trazendo assuntos como: amor, namoro, noivado, casamento, culinária,
cuidados com o bebê, boas maneiras, ioga etc.
Este artigo tem como objetivo, então, investigar como era construído um
imaginário sobre a mulher nas chamadas revistas femininas. Como essas revistas criavam
e/ou modificavam os papéis, desejos, comportamentos etc., da mulher na metade do
século XX, através dos ditos genéricos – uma “fórmula”, caracterizada pela evidência, por
um sentido dominante. Para tal análise qualitativa, será utilizado como referencial teórico a
Análise do Discurso de “linha” francesa (AD).
A Análise do Discurso Pêcheutiana (AD)
Neste trabalho, tomou-se como referência teórico-metodológica a Análise do
Discurso de filiação francesa (AD), cujo objetivo seria mostrar a sua opacidade. Para tanto,
a AD parte de três referencias: o materialismo histórico, como teoria das formações sociais,
com a análise das ideologias; a lingüística, que afirma a não-transparência da linguagem,
como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; e a teoria do
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discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Tudo isso
atravessado por uma teoria psicanalítica, que levaria em conta as formações inconscientes
que interpelam o sujeito (cf. PÊCHEUX, 1988).
A repetição de enunciados faz com que as frases fiquem equivalentes a
mandamentos, produzindo um efeito de evidência de sentido. Esse efeito é causado pela
ideologia, que acaba naturalizando esses sentidos através da identificação do sujeito com a
formação ideológica que o domina. A identificação com uma determinada formação
ideológica produz um efeito de unidade imaginária, de forma que o discurso do sujeito
remete ao interdiscurso, ou seja, ao já-dito, pré-construído, produzindo um efeito de
identificação.
O sujeito para a AD, não é entendido como um sujeito universal (sujeito da língua,
do objetivismo abstrato) e nem individual (do subjetivismo idealista), ele é entendido como
uma posição discursiva; nesse sentido ele se constituiria em um processo dialético na
alteridade. Estes aspectos nos dão pistas como sobre o analista do discurso deve proceder,
pois seu papel é estranhar aqueles sentidos que parecem “naturais” naquela situação, sendo
que para executar esse movimento, o analista precisa remeter o que foi dito às suas
condições de produção históricas.
É preciso considerar também a noção de sujeito do discurso, produto de um
processo levado a efeito pelas formações ideológicas (inconscientes), que atuam sobre as
formações discursivas, e produzem o processo de identificação com um determinado dizer.
Ë através desta interpelação ideológica e inconsciente que o indivíduo é assujeitado, de tal
modo que acredita estar falando a partir de si (de que é a fonte do seu dizer) e que o seu
discurso corresponde exatamente ao que pensa. Essas duas ilusões correspondem
respectivamente às ilusões 1 e 2, sendo que o primeiro é de natureza inconsciente,
enquanto que o segundo é de natureza pré-consciente na medida em que o sujeito pode se
corrigir para se explicar melhor, e reformular o seu discurso. (ORLANDI, 2001).
Ë importante ressaltar, em função da relevância para esta pesquisa, que a AD
produz um deslocamento da importância dada à informação, na medida em que tenta
trabalhar com as condições de produção do discurso, já que as palavras só adquirem um
sentido quando inscritas na história. As condições de produção são entendidas como “as
circunstâncias de sua realização: os seus protagonistas e seu objeto” (ORLANDI, 1978, p. 34).
Assim, procuraremos efetuar recortes nas revistas pesquisadas, de tal modo que
aqueles sentidos sobre a mulher que circulavam nesse tipo de imprensa, na época, possam
ser investigados à luz de sua constituição histórica (ideológica). Deste modo, chegaremos a
uma topologia da representação da mulher em revistas femininas da primeira metade do
século XX no Brasil. Remetendo as formações discursivas detectadas através dos indícios
lingüísticos às formações ideológicas que as determinaram (interdiscurso, história),
poderemos atingir o processo discursivo sobre a mulher nesse período.
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Os genéricos discursivos
É um tipo de discurso levaria a uma naturalização de sentidos. O sujeito se
identificaria com a “fórmula” interpelado pela ideologia. Esta interpelação do indivíduo em
sujeito pela ideologia produz o “efeito de unidade do sujeito”. De acordo com Tfouni
(2004, p. 79), “trata-se de dos provérbios, slogans, máximas, rezas, ‘fórmulas encapsuladas’
(conforme LEMOS, 1984), resumos historicamente constituídos de experiências e
atividades do homem sobre o (no) mundo. (...) codificam valores e crenças.” (TFOUNI,
2004, p. 79).
Segundo Tfouni, o caráter genérico de um enunciado seria uma “tentativa de
apagamento da subjetividade dos valores pessoais, que tende a impedir a reflexão do
sujeito, pela produção de um efeito de transparência de sentido, e colocando forçosamente
o ouvinte em uma posição determinada com relação à ideologia” (TFOUNI, 2004, p. 11).
A formação discursiva, aquilo que pode e deve ser dito, desta forma, é determinada
pelas formações ideológicas dominantes, à qual todas as pessoas de um determinado
contexto sócio-histórico estão submetidas. Esse tipo de discurso logicizante que tende a
incluir um particular em um genérico não deixa um espaço para a reversibilidade entre os
interlocutores. Não seria um discurso que possibilita a transformação, uma
descontinuidade, mas que sim visa a continuidade e a permanência. O sujeito se identifica
com a formação discursiva que o domina e repete, de modo a naturalizar os sentidos.
Análise
Na leitura dessas revistas, nos deparamos com processos discursivos que
simultaneamente institui certos sentidos e silenciam outros. Nos recortes que se seguem,
encontraremos fórmulas de como era ser uma mulher na época. Podemos classificar esses
recortes como genéricos, já que tendem a incluir um particular num geral, onde um sentido
é dominante devido à ideologia à qual está submetido.
1) “A brasileira, pela sua vida de reclusão voluntária, tem, infelizmente, ficado á margem das ondas de
desagregação que tentam submergir o caracter nacional. Apezar de tudo ella se conserva, como nos tempos
felizes de nossa honertidade monarchica – pura, casta, recôndita, guardando no seu sangue toda a energia
da raça – as excepções, duvidosamente brilhantes, que se debruçam, em gallicismo, da amurada dos
transatlânticos, são simples engulhos, com que o vai-vem das ondas atordôa ingenuidades desavisadas. O
typo nosso é outro; é ainda o antigo, o que ama e reza.” (Revista Feminina, ANNO 4, Nº. 32, janeiro de
1917, p. 3).
Observa-se uma naturalização de um tipo de mulher: a brasileira (ou seja, toda
brasileira) e estabilização de seus comportamentos (amar e rezar), silenciando outros
sentidos possíveis sobre a mulher como, por exemplo, o trabalho fora de casa. Agem nesse
genérico, ainda, formações ideológicas a respeito do lugar que a mulher deve ocupar:
reservada ao recôndito do seu lar. Possivelmente, as mudanças que vinham ocorrendo
preocupavam os segmentos mais conservadores da sociedade que viam em mulheres que
trabalhavam exemplos ruins para suas mulheres, além de uma ameaça à ordem social
vigente que sustentava todo o modelo socioeconômico. Vê-se claramente uma condenação
às mulheres que tentavam fugir desse modelo – as mulheres duvidosamente brilhantes.
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Nesse caso, o desejo da mulher acabava se definindo a partir de uma formação
discursiva ligada a uma formação imaginária hegemônica, de que à mulher cabe a reclusão
ao lar, os cuidados com a casa, os filhos e o esposo. E assim que as revistas personificando
essas formações ideológicas ditavam padrões de comportamento para suas leitoras, através
de fórmulas (genéricos) que tendem a ditar padrões a serem seguidos. Sendo naturalizado,
essa reclusão se torna constitutiva do que é chamado de “mulher”, dando a ilusão de um
mundo feminino semanticamente estabilizado. E dentro desse mundo sem divergência é
falado sobre todos os assuntos (não de todos os ângulos, claro): moda, cuidados com casa,
beleza e inclusive trabalho:
2) “A rapariga que aprendeu com perfeição, a dirigir uma cosinha, servir as refeições, estender bellas mesas,
zelar pela baixela e toalhas, exerce uma profissão, cujo valor conhecerá um dia.
Tal mulher possue os predicados de dona de casa, matrona, professora do que os francezes chamam “la
science du menagé” , sciencia do bem cuidar dos serviços domésticos.” (Revista Feminina, ANNO 4, nº
32, janeiro de 1917, p. 24).
À mulher cabia a profissão de cuidar da casa como melhor opção e, a referência à
ciência gera uma autoridade do dizer, contendo a polissemia e produzindo um efeito de
verdade que legitima o que é dito sobre o lugar da mulher, já que a ciência é um lugar de
conhecimento e de verdade. “Experts” eram convidados a falarem sobre assuntos como
maternidade, saúde, línguas, comportamento, educação e emitiam suas opiniões sobre
como deveria ser a atitude da mulher frente aos mais variados tópicos, o que ela deveria
saber sobre cada um deles.
As revistas tinham a função de selecionar os comportamentos adequados e repudiar
os inadequados, construindo uma mulher (possível), configurando-se então como uma
prática social produtora de sentidos, localizando a mulher no lar, no escopo do privado,
através da vinculação estreita com a casa, enquanto cabia ao homem prover
financeiramente a casa. Esse modelo complementar acabava aprisionando tanto o homem
quanto a mulher a papéis determinados e ao casamento.
3) “Evangelho das mães.
As mães não devem esquecer que:
- a educação dos homens deve ser diferente da das mulheres. Aos primeiros agrada e convém a multidão, a
variedade, a rudeza de numerosos companheiros, imagem do mundo em que haverão de viver. Às segundas
convem o retiro, a ordem da casa, imagem de sua vindoura vida.” (Jornal das Môças: revista semanal
ilustrada, nº 1494, fevereiro de 1944, p.16).
Neste recorte, nossa análise pode partir da reflexão sobre as outras famílias
parafrásticas foram deixadas de lado: “a mãe deve se lembrar que”, não deve se esquecer é
muito mais autoritário e tem a função de conter ainda mais a polissemia. A análise a cerca
das relações parafrásticas tem como função a demonstração do esquecimento número 2,
mostrando que outras construções seriam possíveis, porém (talvez) não desejáveis. Além
disso, o genérico remete a uma formação ideológica anterior: de que homens e mulheres
têm lugares pré-definidos e opostos na sociedade, não podendo nunca se misturar. Neste
caso, este discurso se filia a outros discursos anteriores (paráfrase), reiterando processos já
cristalizados, ao contrário de produzir uma ruptura (polissemia), as meninas continuariam
sendo criadas a partir do modelo da educação feminina e os meninos criados para acatarem
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os modelos de um universo masculino também semanticamente estabilizado e sem muitas
possibilidades de saída.
Conclusão
Para essas revistas (e seus editores), neste período, o universo de atuação das
mulheres limitava-se às tarefas domésticas, à educação dos filhos, aos cuidados com a
beleza e à preocupação com “andar na moda”. Deste modo, essas revistas construíam
sentidos sobre o que era ser uma mulher, sentidos esses que procuravam criar um modelo
de feminilidade ligado à reclusão ao lar e à fragilidade feminina, contendo autoritariamente
a polissemia de sentidos, já que as revistas femininas eram lugares privilegiados da verdade,
pois contavam com a participação de “experts”, muito mais autorizados a falar sobre a
mulher que a própria mulher.
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ASPECTOS DA REDUÇÃO DOS DITONGOS: O [POKO] [PESE] DA [KASA]124
Letícia Lemos Gritti
Mestranda em Lingüística – UFSC125
Eric Duarte Ferreira –
Doutorando em Lingüística – UFSC
Morgana Fabiola Cambrussi
Doutoranda em Lingüística – UFSC
Resumo: Este artigo busca explicar o processo de redução de ditongos à luz da fonologia
multilinear. Para isso, são: (i) observados ditongos orais, considerando-se aspectos a eles
relacionados como posição, tonicidade e dimensão da palavra; (ii) relacionadas as tipologias
de ditongos e seus contextos de ocorrência; (iii) utilizadas noções de ditongos verdadeiros,
ditongos ditos “criados foneticamente” e noções de ditongos crescentes e decrescentes.
Palavras-chave: Fonologia, ditongos, redução.
Abstract: This paper claims to explain the reduction diphthong process based on
multilinear phonology. For this: (i) are observed oral diphthongs pondering aspects like
position, tonicity and word dimension; (ii) are connected typologies of diphthongs and
occurrence context; (iii) are used notions of real diphthongs, “made phonetically”
diphthongs and notions of increasing and decreasing diphthongs.
Keywords: Phonology, diphthongs, reduction.
Introdução
Os estudos lingüísticos tratam de seu objeto de análise, a língua, desenvolvendo-se
em diferentes direções. Descrever, comparar, dominar, entender, socializar, vários são os
olhares e as atitudes que se pode assumir frente à língua natural. Embora a história
lingüística seja muito mais remota, foi a partir do século XX que as correntes
estruturalistas, gerativistas e sociointeracionistas contribuíram decisivamente para a
constituição da Ciência Lingüística tal como é conhecida hoje e para a delimitação do que é
a língua em cada uma dessas vertentes.
Cada qual optou por estudar profundamente, sob um aspecto, fenômenos que
ocorrem na língua. O estruturalismo, que tem como principal representante Saussure, vê a
língua como uma realidade sistemática e funcional. Na fonologia estuturalista, o grande
nome no Brasil foi Joaquim Mattoso Câmara Junior, que fez grandes contribuições para a
evolução dos estudos nessa área. Mais adiante serão vistos alguns conceitos desse lingüista.
Logo em seguida, já no Século XX, surge o gerativismo, preocupado com o falanteouvinteideal. Nesta corrente, o principal nome foi Chomsky, cuja análise da língua parte do
pressuposto de que os seres humanos nascem com uma capacidade natural para o
desenvolvimento e uso da linguagem (tese inatista) e cabe ao lingüista explicar os princípios
que subjazem a esse uso e desenvolvimento.
A Fonologia foi tendo espaço dentro dessas diversas teorias até chegar ao
desenvolvimento da Fonologia Multilinear, que traz em seu bojo um novo sistema para o
124
125
Artigo elaborado sob orientação da Profª Drª Teresinha de Moraes Brenner.
Programa de Pós-Graduação em Lingüística (PGL) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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estudo dos aspectos sonoros da língua, a então chamada Geometria dos Traços, que
iniciara na Fonologia Gerativa, tentando compor e organizar os traços fonológicos em
planos. Esse é um modelo de Fonologia Auto-Segmental Multilinear, ou seja, todos os
traços têm uma segmentação própria e eles mesmos mapeiam os segmentos e processos
que são alterações nas formas básicas dos morfemas, assemelhando-se a uma árvore, com
níveis, nós e fileiras.
Assim, Cagliari (1988, p. 11) afirma que “as linhas de associação conectam traços
que podem ser atribuídos a mais de um segmento, como ocorre em casos de harmonia
vocálica, nasalização”, segmentos geminados, longos, africados e ditongos (tema que será
focalizado neste estudo). Esse modelo também passou a ser chamado de Fonologia
Nãolinear e tem como principais estudiosos Clements, Sagey, Steriade, Hume, Morris
Halle, Leo Wetzels e, no Brasil, Leda Bisol, entre outros.
O essencial dessa teoria é que os processos fonológicos são tratados de maneira
auto-segmental e não através de regras, como fazia a fonêmica e a fonologia gerativa. O
segmento aqui é definido através de sua geometria, dos nós e dos traços terminais que o
caracterizam. E é assim que serão tratados a seguir os processos de redução dos ditongos,
assim como o de assimilação ou espraiamento.
2. Descrição dos ditongos
A existência dos ditongos é questionável. Mattoso (1970) já fazia essa reflexão; propunha
que a solução estaria na existência ou não de pares opositivos. Observa-se, nos exemplos
sai e saí, que não se trata de pares opositivos mínimos, mas das diferenças entre vogal
tônica e átona; um exemplo com mesma acentuação é Deus, pronunciado como /dê’us/ e
/dê-os/.
Enfim, para Mattoso Câmara (1970) só existe ditongo quando há pelo menos uma
vogal tônica, pois duas átonas criam variação livre. Dentre os ditongos existentes, ele faz
distinção entre 11 ditongos decrescentes, tais como; /ai/: pai;2 /iu/: riu; /ôu/: vou; entre
outros, e 1 crescente, considerado /kuais/: coais, /kuais/: quais. O ditongo é crescente
quando a vogal assilábica /u/ se encontra depois de plosiva labial e anterior a uma vogal
silábica, como nos exemplos qual e igual.
Ainda a respeito dos ditongos e reportando-se à teoria da Fonologia Multilinear,
Bisol (1994) também faz uma distinção e os classifica em ditongos FALSOS e
VERDADEIROS; e em FONOLÓGICO e FONÉTICO.
2.1 Ditongos verdadeiros e ditongos fonológicos
Os ditongos verdadeiros têm uma semivogal na estrutura profunda, são
decrescentes e interpretados como sílabas PESADAS, que ramificam o núcleo, vindo a
constituir uma sílaba complexa. Esses ditongos são mais internos na estrutura e formam
uma sílaba complexa. Os ditongos fonológicos são invariantes (como reitor, pauta),
representados na estrutura subjacente por duas vogais, como na estrutura126 demonstrada
mais abaixo.
126
Foi mantida a transcrição de Mattoso Câmara (1970).
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2.2 Ditongos falsos e ditongos fonéticos
Os ditongos falsos são os crescentes, associados a uma só posição e que ramificam
a rima. São também vistos como LEVES, organizados hierarquicamente, criados por
processos assimilatórios no “tier” melódico por processos assimilatórios e são perdidos.
Também ocupam apenas uma posição no “tier” da rima. Para Bisol, ditongos crescentes
não são ditongos, mas seqüência de vogais. Já Mattoso (1970) considera pelo menos um
tipo de ditongo crescente, como foi visto anteriormente.
(1) Ditongo verdadeiro
__
33
ARAR
||||
CNCN
2
|VV||
||
pauta
(2) Ditongo Falso
__
33
ARAR
||||
CNCN
|
|V||
1
peySe
Em (2) temos o núcleo ramificado de duas vogais, sendo a vogal alta manifestada
foneticamente como glide na primeira sílaba. Nesta representação, o ditongo ocupa duas
posições no nível CV, chamado esqueleto, às vezes representado por X. Já em (3), o
ditongo ocupa somente uma posição.
Os ditongos fonéticos são variantes, logo, há vezes que se manifestam e vezes que
não se manifestam, como ilustram os exemplos feira, peixe, que possuem na estrutura
subjacente apenas uma vogal, formando-se o glide em nível mais próximo à superfície. Na
língua padrão, peixe representa ditongo fonológico. É partindo desses importantes
conceitos que se iniciará a análise da redução de alguns ditongos no português do Brasil.
3. Processos em ditongos crescentes
Os ditongos considerados crescentes por Mattoso (1970), em palavras como qual,
igual, quarteto, na maioria das vezes não se reduzem, exceto o caso do quatorze/catorze e os
casos arquiteto, arquétipo, quitado para os quais já há estudos específicos. A relação da vogal
alta /u/ está bem mais enfatizada à consoante do que à vogal que a sucede. Isso é
condizente às teorias que afirmam que, enquanto os demais ditongos crescentes só podem
aparecer em posições átonas, os ditongos crescentes formados por /u/ depois de /k-,g-/
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podem aparecer em qualquer posição da pauta acentual. Já estudos estruturalistas
desenvolvidos por Mattoso (1970) e por estudiosos adeptos das teorias não-lineares
derivacionais, como Zucarelli (2002) e Biagioni (2002), consideram esses casos de
seqüências kw e gw como consoantes complexas diante de vogal, representado por /kw/ e
/gw/. A problematização posta por Cagliari (2003) é de que se isso realmente se constituir
como verdadeiro, estes casos de kw e gw + uma vogal não seriam ditongos crescentes e sim
sílabas com núcleos simples, com ataques preenchidos por consoantes complexas. Bisol
(1989) é adepta dessa mesma teoria, a de formar uma consoante complexa ou, conforme
nomeado pela autora, uma unidade monofonemática, como mostra a representação
seguinte:
(3) _
3
OR
2
|NC
||
kw a l
Esse seria um caso particular na língua, pois nenhum outro segmento é complexo e
isso é um problema apontado por Cagliari (1998), que, para explicar o caso, propõe uma
diferente representação:
(4) _
3
OR
8
|HNC
|||
Kual
O “H” (chamado head, cabeça), seria o acréscimo de um elemento na rima.
4. Fatores que interferem no processo de ditongação
4.1. Tonicidade
Dentre os fatores que podem interferir no processo de ditongação, há a hipótese de
que a tonicidade esteja entre eles. Mas o acento lexical ou tônico tem relação com a
ditongação? De acordo com um estudo específico Callou, Leite e Moraes (2003), a
tonicidade propicia a ditongação, ou seja, as sílabas tônicas tendem a fazer a ditongação,
embora o processo não esteja restrito a esse contexto. Porém, é freqüente a redução de
ditongos em que o acento recai sobre a sílaba em que eles se encontram, como se pode
observar em ceroula, mamadeira, curandeiro, posseiro, dinheiro, rasteira, sangradouro.
São palavras paroxítonas em que o ditongo está presente exatamente na sílaba
tônica. Além disso, todos são ditongos decrescentes, segundo a classificação do Mattoso
(1970), e, segundo Bisol (1994), são considerados ditongos verdadeiros ou ditongos
pesados. Em todos esses casos o ditongo se reduz.
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4.2
Ditongo diante de palatal
Em uma análise multilinear, pode-se observar que, nas palavras queixo, queijo e paixão,
há, aparentemente, um ditongo que ora se realiza, ora não; estes ditongos ey e ay se
alternam com a vogal simples. Por que isso acontece? Uma possível explicação seria a de
que “o glide que ora se manifesta para constituir certos ditongos ora não, é o resultado de
uma operação que ocorre variavelmente em nível próximo à superfície, por expansão de
traços secundários da consoante” (BISOL, 1994, p. 138). Essa variação que ocorre diante
de palatais não existe na estrutura subjacente, mas é uma conseqüência de um processo de
assimilação da consoante vizinha, ou seja, um segmento derivado de outrem. “A ausência
do glide é quase categórica quando a consoante seguinte é uma palatal ou uma vibrante
simples” (BISOL, 1994, p. 124). Em se tratando especificamente da palavra paixão, o
ditongo ay, geralmente, acontece com mais freqüência que nos demais exemplos. Nesse
ditongo, não há interferência do quesito acentuação, pois não depende de onde o acento
esteja.
Usando os modelos consonantais de Clements (1991 apud Bisol 1994), Bisol
propõe uma possível explicação arbórea para a formação do glide [y].
(5) Consoante Complexa (6) Consoante Plena
/S/ /s/
|\
rr
|⁄
co co
|2
PC [+ continuo] PC
2|
coronal vocálico [coronal]
2|
PV abertura [ + anterior ]
|
coronal
r - raiz / co – cavidade oral / PC – pontos de articulação consoantes/ PV- pontos de
articulação vogais.
A consoante simples é também chamada consoante plena. Basicamente, as
diferenças entre elas estão nos traços, enquanto (7) apresenta traços secundários, (8)
somente primários. Isso pode ser visto no nó (PC) que em (7) se ramifica em dois ramos e,
em (8), somente em um ramo. Por ser um ditongo criado ou derivado, é mais fácil de
reduzir-se ou apagar-se.
Observando as estruturas, pode-se notar que somente (7), a consoante complexa,
pode oferecer condições para o espraiamento em pauta, pois ela possui o traço vocálico
coronal, que por expansão pode formar o glide [y]. Ou seja, o glide se forma pelo
espraiamento ou assimilação dos traços vocálicos da palatal, por possuírem o mesmo modo
de articulação. Espraiar significa estender, alastrar, nesse caso, a consoante alastra-se,
expande-se.
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Há ainda exemplos de palavras como vexame, faxina e fechar, nas quais a vogal
localiza-se antes de uma palatal, na mesma posição supracitada, mas que já foram
consagradas na escrita sem ditongo. Entretanto, na fala, esses ditongos ainda são
pronunciados. A explicação poderia vir do ponto de vista diacrônico, buscando-se
encontrar a origem dessas palavras, pois se a verificação for desse aspecto, constatar-se-á
que o ditongo surgirá no processo derivacional.
4.3 Posição final de palavra
A sílaba em posição final de palavra também favorece a ditongação, como se pode
observar nos exemplos salário, velório, reservatório, jibóia, centopéia, jóia. Nesses casos, os
ditongos não se reduzem. É claro que todas essas palavras têm características comuns, pois
são palavras paroxítonas, ou seja, o acento tônico recai sobre a sílaba anterior ao ditongo e
são todos ditongos crescentes, porém, não considerados crescentes por Mattoso (1970).
No português quase não se encontram palavras terminadas em [ey]. A maioria das
encontradas é de origem estrangeira como jérsei, vôlei, jóquei. Estes são ditongos decrescentes
que alternam a realização do ditongo, pois jérsei é ora pronunciado como [ZErsey], ora
como [ZErsi], da mesma forma acontece com jóquei; ora [Zçki] e ora [Zçkey]; e pônei, ora
[poni] e ora [poney] – geralmente, quando a redução acontece, ela é estigmatizada.
Entretanto, em palavras como vôlei, a monotongação não acontece e tem as mesmas
características dos vocábulos anteriores, é tanto paroxítona, em posição final de palavra,
quanto um ditongo decrescente. Bisol (1989) apresenta uma possível explicação para a
redução ocorrida em jérsei, jóquei, pônei. A autora avalia que “as palavras que contém o
ditongo ‘ey’ tendem a ajustar-se ao padrão de acento da língua /s w/, como se a última
vogal fosse invisível à regra de acento primário. Nesse caso a rima só tem uma posição para
o ditongo” (p.209). A autora afirma, ainda, que nesses casos a rima contém uma só vogal,
pois elementos desassociados são apagados por convenção.
4.4 Dimensão da palavra
O tamanho da palavra também está relacionado com a ditongação. Quanto menor a
dimensão da palavra, maior a possibilidade de haver ditongação. Isso pode ser comprovado
em palavras como raio, meio, pátio, míope, peito. É claro que, nas três primeiras palavras, o
ditongo está em posição final de palavra, fator que também pode influenciar na não
redução; porém, nas duas últimas, o ditongo ocorre em início de palavra. Entretanto,
encontramos touca e touro, que são palavras pequenas, mas que, no entanto, apresentam
redução de ditongos. Nesses casos, a explicação poderia vir através da tonicidade, em que o
acento recai sob a sílaba em que o ditongo localiza-se, mas percebe-se que em peito o acento
também ocorre no ditongo. Por conseguinte, a explicação viria por outra vertente, a de que
o ditongo [ow] é composto por duas vogais dorsais.
Nas duas últimas seqüências de palavras de exemplo, os ditongos são dos mais
variados, tanto crescentes quanto decrescentes. Portanto, esse é um fator que não
influencia nesse contexto. Há ainda casos de palavras maiores em que ocorre a redução de
ditongos, como nos exemplos agourento, ouvido e sangradouro. Pode-se notar que os ditongos
são formados por [ow] e que ambas são vogais posteriores dorsais que se realizam no
mesmo ponto de articulação de vogal, por isso há a redução, conhecida como dissimilação.
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5. Considerações finais
Em se tratando de ditongos, é preciso observar continuamente o contexto em que
se inserem. Vários fatores podem influenciar a sua ocorrência ou a sua redução. Com este
estudo, observou-se que ditongos presentes nas sílabas finais de palavras em que a sílaba
anterior é a tônica não se reduzem, ou seja, a posição final de palavra favorece a
ditongação. Com relação à tonicidade, pode-se dizer que é bem mais comum a redução dos
ditongos quando o acento tônico recai sobre a própria sílaba em que se realizam. O
tamanho dos vocábulos também está relacionado com a ditongação; quanto menor for,
maior a probabilidade de não se reduzirem. O local também interfere no processo da
ditongação ou perda dela. Quando há vogais que se realizam no mesmo ponto de
articulação e que se unem para fazer o ditongo, há tendência à redução de uma delas. E por
fim, a questão do ditongo diante de palatal, nesse caso, a redução viria pela presença da
palatal. O glide se forma pelo espraiamento ou assimilação dos traços vocálicos da palatal,
por possuírem o mesmo modo de articulação.
6. Referências
BIAGIONI, B. A. (2002). A sílaba em português arcaico. Dissertação (Mestrado em
Lingüística e Língua Portuguesa) – FCL/UNESP, Araraquara.
BISOL, L. (1994). Ditongos Derivados. Delta, São Paulo, nº 10, p. 123-140.
_________ (1989). O ditongo na perspectiva da fonologia atual. Delta, São Paulo. v.5, nº 2.
p. 185-224.
CAGLIARI, L. C. (1998). Fonologia do Português: Análise pela geometria de traços. 2 ed.
Campinas: Edição do Autor.
CAGLIARI, G. (2003). Ditongos e hiatos em Português Arcaico: uma abordagem
otimalista. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 38, n. 4, p. 319-338.
CALLOU, D.; LEITE, Y.; MORAES, J. (2003). Processos em curso no português do
Brasil: A ditongação. Fonologia e outros temas. João Pessoa: Editora Universitária UFPB.
CAMARA JR, J. M. (1970). Estrutura da Língua Portuguesa. 35 ed. Rio de Janeiro:
Vozes.
ZUCARELLI, E. F. (2002). Ditongos e hiatos nas cantigas medievais galego-portuguesas.
Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – FCL/UNESP, Araraquara.
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ANÁLISE DOS ELEMENTOS DE SEMIOLOGIA: UMA INVESTIGAÇÃO
SOBRE A METÁFORA
Luciana Moraes Barcelos Marques
Mestre em Estudos Lingüísticos
Universidade Federal do Espírito Santo
Resumo: Esta pesquisa tem por objetivo investigar a concepção basthesiana de metáfora na
obra Elementos de Semiologia (1979). Para tanto, fez-se necessário lançar mão das noções de
língua, linguagem e signo lingüístico; seguindo-se de uma análise dos dois eixos da
linguagem – sintagmático e paradigmático – com suporte em Saussure (1973). À luz dessas
abordagens, esse trabalho focaliza a metáfora dentro do eixo paradigmático e como
processo constituinte dos sistemas conotativos, propostos por Barthes, demonstrando que
a metáfora não pode ser vista com desvio, mas como padrão natural da língua, no seu
processo de produção de sentido.
Palavras-chave: Barthes, metáfora, conotação.
Resumen: Esta investigación tiene por objetivo investigar la concepción basthesiana de
metáfora en la obra Elementos de Semiologia (1979). Para tanto, se hizo necesario lanzar
mano de las nociones de lengua, lenguaje y signo lingüístico; siguiéndose de un análisis de
los dos ejes del lenguaje – sintagmático y paradigmático – con soporte en Saussure (1973).
A la luz de esas abordagens, ese trabajo focaliza la metáfora dentro del eje paradigmático y
como proceso constituinte de los sistemas conotativos, propuestos por Barthes,
demostrando que la metáfora no puede ser vista como desvío, pero como padrão natural
de la lengua, en su proceso de producción de sentido
Palabras-clave: Barthes, metáfora, connotación.
1.
Introdução
Barthes é considerado um dos precursores na síntese de uma ciência dos signos (a
Semiologia), e sua obra Elementos de semiologia é paradigma na expansão dessa ciência que
começara a ser desenvolvida. Ao trabalhar os conceitos de denotação e conotação, destacase sua atenção a esta última:
Os fenômenos da conotação ainda não foram estudados
sistematicamente (encontrar-se-ão algumas indicações nos Prolegomena de
Hjelmslev). Todavia, o futuro sem dúvida pertence a uma Lingüística da
conotação, pois a sociedade desenvolve incessantemente, a partir do
sistema primeiro que lhe fornece a linguagem humana, sistemas de
segundos sentidos e essa elaboração, ora ostentada, ora mascarada,
racionalizada, toca muito de perto uma verdadeira Antropologia
Histórica. (BARTHES 1979, 96, grifo nosso).
Ao evidenciar que a sociedade é detentora do sistema de conotação, prima-se pela
condição natural dos sentidos conotativos, tendo, portanto, a metáfora como o processo
natural da língua, apontando e construindo a realidade dentro da própria linguagem.
Entender que o “futuro pertence à Lingüística da conotação” implica reconhecer as
variações de sentido como próprias da língua.
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Por conseguinte, esta pesquisa objetiva investigar a concepção barthesiana de
metáfora de modo a desmistificar o sentido conotativo enquanto alegoria, considerando-o
como mecanismo natural e presente na língua.
2.
Investigação Conceitual
Embora Barthes considere os diversos sistemas de signos e significação, ele ressalta
que a linguagem sobrepuja a todos, pois, de acordo com o autor,
[...] parece cada vez mais difícil conceber um sistema de imagens ou
objetos, cujos significados possam existir fora da linguagem: perceber o
que significa uma substância é, fatalmente, recorrer ao recorte da língua:
sentido só existe quando denominado, e o mundo dos significados não é
outro senão o da linguagem (BARTHES, 1979, 12).
Inicialmente, Barthes assimila as concepções saussurianas de língua, fala e
linguagem, entretanto, ele as modifica de modo a, no todo de sua obra, não separar língua e
linguagem, antes as trata de forma conjunta caracterizando a linguagem como instituição
social. Embora o autor utilize os termos língua e linguagem separadamente, essas
concepções estão imbricadas. Nas palavras do autor,
A Língua é então, praticamente, a linguagem menos a Fala: é ao mesmo
tempo, uma instituição social e um sistema de valôres. Como instituição
social, ela não é absolutamente um ato, escapa a qualquer premeditação;
é a parte social da linguagem; o indivíduo não pode, sozinho, nem criá-la nem
modificá-la (BARTHES, 1979,18, grifo nosso).
O indivíduo em si, segundo o autor, não tem poderes sobre a linguagem, contudo,
enquanto sujeito imerso na sociedade, serve-se de meios para burlar o sistema da língua,
utilizando os mecanismos da própria língua. As relações de significação, embora firmadas
numa base comum – o sentido institucionalizado – sofrem continuamente mudanças de
acordo com seu uso, ou seja, os signos não possuem uma relação de apontamento (apontar
com o dedo), antes possuem valores de troca, que se adaptam a cada discurso. Barthes
afirma que,
[...] era uma abstração bastante arbitrária (mas inevitável) tratar do signo
“em si”, como somente a união do significante e o significado. Impõe-se,
para terminar, considerar o signo não mais por sua “composição” mas
por seus “contornos”: é o problema do valor. [...] o valor tornou-se para
êle [Saussure] conceito essencial, mais importante afinal do que o de
significação (que êle não recobre). O valor tem uma estreita relação com
a noção de língua (oposta à fala); leva a despsicologizar a Lingüística e a
aproximá-la da Economia; êle é, pois, central em Lingüística Estrutural
(BARTHES, 1979, 56).
Compreender a significação do signo ligada à noção de valor proposta por Saussure
implica conceber que os referentes dos signos não apontam para um eixo fixo, antes são
direcionados para uma realidade dentro da própria linguagem, que se atualiza a cada
discurso e seu entorno, entendendo discurso como a materialidade da língua.
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Dessa forma, enquanto a significação está centrada no signo, como um recorte – “o
signo é uma fatia (bifacial) de sonoridade, visualidade etc. a significação pode ser concebida
como um processo; é o ato que une o significante e o significado, ato cujo produto é o
signo” (BARTHES, 1979, 51) – o valor é definido não só pelo signo, mas por suas relações
com seu entorno, ou seja, a noção de valor depende dos mecanismos de troca, e não
apenas de uma unidade de significação.
“Para Saussure, as relações que unem os têrmos lingüísticos podem desenvolver-se
em dois planos, cada um dos quais engendram seus próprios valôres; estes dois planos
correspondem a duas formas de atividade mental” (BARTHES, 1979, 63), também chamados
de dois eixos da linguagem: o eixo sintagmático e o eixo paradigmático.
Nesse aspecto, vale retomar Saussure na divisão da lingüística nesses dois eixos,
dessa forma, a lingüística sincrônica preocupa-se com as contemporaneidades, pela qual é
possível estudar diversos aspectos da linguagem num recorte de tempo; enquanto a
lingüística diacrônica ocupa-se das sucessividades, em que se estuda “uma coisa por vez”
(SAUSSURE, 1973, 95) e seus aspectos no decorrer do tempo. Temos, então,
Figura 1 – Eixos Sintagmático e Paradigmático
Fonte: SAUSSURE 1973,95 / 2002,287.
Analisando a figura 1, podemos observar que, para Saussure, a lingüística insere-se
num plano de dois eixos, sendo o eixo (AB) sincrônico, pelo qual o fator tempo extinguese e a língua é considerada como um sistema completo e analisável; e o eixo (CD)
diacrônico, que descreve/estuda a língua no decurso do tempo, considerando as ações que
o tempo exerceu sobre ela. Percebe-se, pois, que a relação temporal atravessa os eixos
sincrônico e diacrônico sob perspectivas diferenciadas.
Entretanto, Barthes enfoca as relações sintagmáticas e paradigmáticas no estudo
dos signos e suas relações, e não apenas nas formas de análises lingüísticas, Dessa forma o
eixo sintagmático ocupa-se do sintagma, que é
[...] uma combinação de signos, que tem por suporte a extensão; na
linguagem articulada, essa extensão é linear e irreversível (é a cadeia
falada): dois elementos não podem ser pronunciados ao mesmo tempo
[...]: cada têrmo tira aqui seu valor da oposição ao que precede e ao que
segue; na cadeia de palavras, os têrmos estão realmente unidos in
praesentia; a atividade analítica que se aplica ao sintagma é o corte
(BARTHES, 1979, 63).
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O eixo paradigmático, por sua vez, ocupa-se da substituição das relações
ausência/presença que, para Barthes, são termos que possuem semelhança e
dessemelhança, e por isso fazem parte de um mesmo paradigma.
Como uma síntese desses dois eixos da linguagem, Barthes demonstra uma Prova
de Comutação, que se refere a trocas tanto do eixo paradigmático, quanto do eixo
sintagmático:
sintagma
sistema
a
a’
a’’
b
b’
b’’
c
c’
c’’
etc
Figura 2 – Prova de Comutação.
Fonte: BARTHES, 1979, 71.
Vejamos a aplicabilidade dessa prova de comutação com a permuta de uma unidade
no nível paradigmático, apenas a título de demonstração, na figura 3:
sintagma
sistema
Lugar
a
a
de
b
b
Ensino
Educação (c’)
Admoestação (c’’)
Figura 3 – Uma aplicação da Prova de Comutação.
Neste caso, a unidade de substituição foi a (c), que fora substituída por termos de
um mesmo campo de significação, com aspectos semelhantes e dessemelhantes, que em
parte repetiam e em parte diferenciavam do termo anterior. Dessa forma, de acordo com o
autor, a permuta sempre proporá uma diferenciação de significado, por mais tênue que seja.
Conforme assegura Barthes,
[...] os têrmos do campo (ou paradigma) devem ser ao mesmo tempo
semelhantes e dessemelhantes, comportar um elemento comum e um
elemento variante: é o caso, no plano do significante, de ensinamento e
armamento, e, no plano do significado, de ensinamento e educação (BARTHES,
1979, 76).
Essa afirmação concerne diretamente à concepção de metáfora, que firma-se no
eixo paradigmático cujas relações de substituição se dão pelo semelhante e pelo
dessemelhante, de maneira que a metáfora utilizada é dissímil dos outros termos (possíveis)
de maneira evidente, mas ainda possui aspectos análogos a eles. Barthes ainda afirma que
[...] a extensão da pesquisa semiológica nos levará provavelmente a
estudar – sem poder talvez reduzi-las – relações paradigmáticas seriais e
não somente opositivas, pois não é certo que diante de objetos
complexos, muito envolvidos numa matéria e em usos, possamos
conduzir o jôgo do sentido à alternativa de dois elementos polares ou à
oposição entre uma marca e um grau zero. Isto faz lembrar que o mais
debatido problema paradigmático é o do binarismo (BARTHES, 1979, 84).
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De acordo com a citação acima, o binarismo é um problema dentro do eixo
paradigmático, uma vez que as possibilidades significativas ultrapassam as relações binárias,
já que, embora persistam as relações de ausência/presença, estas não se resumem à relação
bipolar distintiva, “[...] pois estamos aqui no plano das unidades significativas (e não mais
distintivas) e o transbordamento dos eixos da linguagem acarreta aí uma subversão
aparente do sentido” (BARTHES, 1979, 90).
Observamos que quando se ultrapassa os limites da distinção, a significação passa a
ser fulcral para as relações paradigmáticas, e para Barthes, a metáfora – como processo de
seleção – torna-se contigüidade. Nas palavras do autor
[...] se lembrarmos a distinção de Jakobson, compreenderemos que
qualquer série metafórica é um paradigma sintagmatizado e qualquer
metonímia um sintagma cristalizado e absorvido num sistema; na
metáfora, a seleção torna-se contigüidade e, na metonímia, a
contigüidade torna-se campo de seleção. Parece pois, que é sempre na
fronteira dos dois planos que se ensaia a criação (BARTHES, 1979, 91, grifo
nosso).
Ao afirmar que a criação é ensaiada na fronteira entre os planos sintagmático e
paradigmático, o autor explicita a interdependências dos dois eixos nos processos de
significação, uma vez que uma seleção (significativa) no eixo paradigmático só se firma se
esta coadunar com o todo sintagmático, e vice-versa.
Outrossim, a escolha significativa de uma metáfora, embora predominantemente
paradigmática, insere-se em uma contigüidade, provocando novos efeitos de sentido. Para
estabelecer seu posicionamento teórico, Barthes propõe o que chamaremos de teorema da
significação, por ele assim definido: “qualquer sistema de significação comporta um plano de
expressão (E) e um plano de conteúdo (C) e que a significação coincide com a relação (R)
entre os dois planos: E R C” (BARTHES, 1979, 95).
Por meio desse teorema proposto, o autor busca explicitar as relações significativas,
tanto de conotação quanto de metalinguagem, de maneira que um primeiro sistema de
significação torna-se um elemento se um segundo sistema; no caso conotativo, esse
primeiro sistema substitui o elemento E (ste) do segundo sistema e no caso metalingüístico,
substitui o elemento C (sdo). Barthes afirma, então
[...] que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é, êle próprio, constituído por um sistema de significação [...]
[e] uma metalinguagem é um sistema cujo plano de conteúdo é, êle próprio, constituído por um sistema de significação
(BARTHES, 1979, 95-96).
Objetivando sistematizar sua proposição, Barthes apresenta as duas vias de
amplificação dos sistemas duplos da seguinte maneira:
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Se
Se
So
So
Se
So
Se
Conotação
So
Metalinguagem
Figura 4 – Vias de Amplificação dos Sistemas Duplos.
Fonte: BARTHES, 1979, 96.
A figura 4 representa claramente que, em um processo conotativo, há um sistema
anterior formado por um significante e um significado (normalmente difuso) que, juntos,
formam o significante de um novo sistema (este, conotado); assim como em uma
metalinguagem, o significado é composto por um primeiro sistema de significante e
significado.
A forma como Barthes apresenta sua proposição manifesta o que está oculto,
emergindo a composição significativa do que compõe o signo lingüístico num sistema
complexo. Cabendo ressaltar que a conotação merece lugar de destaque nas teorias da
significação, pois, segundo o autor,
[...] o futuro sem dúvida pertence a uma Lingüística da conotação, pois a
sociedade desenvolve incessantemente, a partir do sistema primeiro que
lhe fornece a linguagem humana, sistemas de segundos sentidos e a essa
elaboração, ora ostentada, ora mascarada, racionalizada, toca muito de
perto uma verdadeira Antropologia Histórica (BARTHES, 1979, 96).
A metáfora, então, encontra-se dentro desse campo conotativo, cabendo salientar
que “seja qual fôr o modo pelo qual a conotação ‘vista’ a mensagem denotada, ela não se
esgota: sempre sobra ‘denotado’ (sem o quê o discurso não seria possível)” (BARTHES,
1979, 97). Ou seja, por mais inusitada e inovadora que seja a significação expressa por uma
conotação (metafórica ou não), sempre haverá um suporte na linguagem que irá garantir
(em partes) o sentido. Desse modo, a conotação só afeta parte do conteúdo, tendo-se a
denotação como sentido dado e a conotação como sentido novo. O processo conotativo é
assim expresso pelo autor
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3. Conotação
Se : Retórica
2. Denotação:
Metalinguagem
So : Ideologia
Se
1. Sistema real
.So
Se
So
Figura 5 – Processo de Conotação.
Fonte: BARTHES, 1979, 98.
A figura 5 representa o processo de conotação concebido por Barthes, que nas
palavras do autor, ele assim designa:
Quanto ao significado de conotação, tem um caráter ao mesmo tempo
geral, global e difuso: é, se se quiser, um fragmento de ideologia [...] a
ideologia seria, em suma, a forma (no sentido hjelmsleviano) dos
significados de conotação, enquanto a retórica seria a forma dos
conotadores (BARTHES, 1979, 97).
Assim, quando Barthes enumera 3 níveis de elaboração lingüística, o autor os
apresenta como quase simultâneos: um nível de realidade (referencial); um nível de
denotação ou de metalinguagem (consensual) e um nível conotativo (que propõe os
movimentos constantes à linguagem).
Destarte, o que é novo, daqui a um segundo não é mais. Portanto, a ideologia ou a
metáfora, não aparecem como o diferente, mas como o movimento mesmo da língua. O
processo é dialético. A metáfora não pode ser vista, portanto, com desvio, mas como o
padrão mesmo da língua, no seu processo de produção de sentido, isso porque ela entra no
jogo de trocas, que depende do “valor”. Cabe destacar que o valor lingüístico tem relação
direta com esse jogo de sentidos, proporcionando as regras (extensão e limites) de
comunicabilidade.
3.
Considerações finais
Como se pode observar, na obra Elementos de Semiologia, Barthes articulou a
dicotomia de sentido – denotativo e conotativo –, destacando que o plano de denotação é
intrinsecamente ligado à metalinguagem, tendo-se o signo pelo signo – nas palavras do
autor, “uma Semiótica que trata de uma Semiótica” –, dessa forma, o sentido denotativo
configura-se sem interferências dos sujeitos. Já o plano da conotação,
[...] compreende significantes, significados e o processo que une uns aos
outros (significação), e é o inventário dêstes três elementos que se
deveria primeiro empreender para cada sistema. Os significantes de
conotação, que chamaremos conotadores, são constituídos por signos
(significantes e significados reunidos) do sistema denotado (BARTHES,
1979: 96).
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Considerando que o sistema conotativo abrange não só significantes e significados,
mas também o processo da significação, verificou-se que a metáfora se consubstancia
dentro do plano conotativo, de maneira que seu significante é um signo pré-existente no
plano denotativo e seu significado é conotado no discurso. O autor ainda afirma que
[...] o conjunto de uma análise semiológica mobiliza ordinàriamente, ao
mesmo tempo, além do sistema estudado e da língua (denotada) que dêle
se encarrega mais freqüentemente, um sistema de conotação e a
metalinguagem de análise que se lhe é aplicada; poderíamos dizer que a
sociedade, detentora do plano de conotação, fala os significantes do sistema
considerado, enquanto o semiólogo fala-lhe os significados; êle parece
possuir, pois, uma função objetiva do deciframento (sua linguagem é
uma operação) diante do mundo que naturaliza ou mascara os signos do
primeiro sistema sob os significantes do segundo; sua objetividade,
porém, torna-se provisória pela própria história que renova as
metalinguagens (BARTHES, 1979: 99, grifo nosso).
Portanto, os processos conotativos são naturais à língua e à sociedade – uma vez
que a história renova as metalinguagens – formando um movimento contínuo de
estabilização de significado, cabendo à metáfora papel de destaque nas variações de sentido.
Conseqüentemente, a idéia de que a significação conotativa é eventual nunca foi formada
em Barthes, mas na interpretação errônea de suas proposições.
4.
Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. Trad. Izidoro Blikstein. 6. ed. SP: Cultrix, 1979.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 5ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1973.
______. Escritos de Lingüística Geral. Trad. Carlos A. L. Salum e Ana Lúcia Franco. São
Paulo: Cultrix, 2002.
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ISSN 1809-3264
SUMÉRIA E CUNEIFORMES: UM ESTUDO SOBRE A GÊNESE DA ESCRITA
Maranúbia Pereira Barbosa
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Estudos da Linguagem, do Departamento
de Letras Vernáculas e Clássicas
Universidade Estadual de Londrina
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar um panorama da história da escrita, da origem
dos cuneiformes e dos sumérios, povo que habitou a Mesopotâmia, região do Oriente
Médio localizada entre os rios Tigre e Eufrates, no Iraque. O estudo também expõe a
situação atual dos sítios arqueológicos.
Palavras-chave: Escrita. Sumérios. Cuneiformes.
ASTRACT
This paper has as the objectif to present the history of the writing, the origin of the
cuneiforms and the sumerians, people who inhabited the Mesopotamia, region of the
Middle East situated between the rivers Tigris and Euphrates, in the Iraq. This study
displays also the present situation of the archaelogicals sites.
Key-words: Writing. Sumerians. Cuneiforms.
1 – Da gênese
No princípio, eram dois rios. O Tigre1 e o Eufrates2 serpenteavam suas caudalosas
correntes, transbordavam e alagavam suas margens durante os quentes e abafados verões,
irrigando e fertilizando uma vasta planície, argilosa, conhecida como Mesopotâmia, um
“país entre dois rios”.
No princípio, ali chegaram hordas de homens vindos de onde até hoje não se sabe.
E, vendo que a terra era próspera, que podiam desenvolver nela a agricultura, que dos
charcos brotavam caniços e farto pasto para os rebanhos, ali se instalaram. E, vendo que a
terra era boa, cresceram e se multiplicaram, tiraram barro dos rios e modelaram tijolos,
construíram casas, ergueram cidades, poderosas como estados, arquitetaram palácios,
levantaram portas, paredes, e pintaram nelas leões e gazelas, inventaram eficiente rede de
canais para irrigar campos e jardins, abriram estradas, renderam graças aos deuses, erigiram
zigurates em louvor a eles, conceberam túmulos para seus mortos, expandiram o comércio,
criaram e difundiram um sistema complexo e rígido de leis, envolveram-se em guerras,
submeteram os vencidos, estabeleceram hierarquias. E, tal era o estágio de evolução a que
chegaram, que sentiram necessidade de registrar sua presença naquele país entre dois rios.
E criaram a escrita.
Em árabe Didjla. Com 1.950 km de extensão, o rio Tigre nasce na Turquia, nos montes Tauros, percorre
alguns quilômetros pela Turquia, atravessa a Síria e entra em seguida no Iraque, onde tem a maior parte de
seu curso, limitando a Mesopotâmia pelo Leste. Passa por Mossul, depois por Bagdá, antes de juntar-se ao
Eufrates para formar o Chatt al-Arab, embocadura que desagua no golfo Pérsico.
2 Em árabe al-Furat, em turco Firat. O Eufrates, com 2.780 km de extensão, nasce no leste da Turquia, corre
para o sul, atravessa o nordeste da Síria e chega no Iraque, encontrando aí o Tigre no Chatt al-Arab.
1
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Nas placas de argila que contavam feitos de bravos governantes, nos tijolos que
sustentavam templos, palácios e túmulos, ficaram os escritos de um povo que habitou o sul
da Mesopotâmia. Chamam-lhes sumérios. A escrita desenvolvida por eles, a mais antiga de
que se tem notícia, chamam-na cuneiforme.
Isso se deu há muito tempo, mas quando exatamente foi isso? Não há ainda um
consenso entre os historiadores, arqueólogos, paleógrafos. Fala-se em 5 mil, 3 mil anos
antes da era cristã, conjectura-se datas as mais diversas, mas a incógnita permanece. O
ponto pacífico de toda a problemática é, contudo, um só: tal é a importância da civilização
dos sumérios que a invenção deles passou a representar um marco na trajetória do homem.
A escrita criada por esse povo é um divisor de águas, separa a proto-história da história.
Neste artigo empreendemos, pois, um resgate dos aspectos históricos ligados ao
advento da escrita, apresentamos suas características gerais, situamos o quadro geopolítico
da região, para, finalmente, expor um pouco do panorama que encontramos no local,
quando de um trabalho de campo que lá realizamos, no ano de 1997. Na ocasião, tivemos a
oportunidade de percorrer os sítios arqueológicos da antiga Mesopotâmia, que se situa em
sua quase totalidade em território iraquiano. Quando de nossa visita, os sítios eram
guardados, ainda que precariamente, pelo governo do então presidente Saddam Hussein. A
partir de 2003, com a ocupação do Iraque pelas forças de coalizão lideradas pelos EUA, as
baixas foram mais pesadas, tendo mesmo sido pilhado o Museu de Bagdá, onde estava
grande parte do acervo mesopotâmico.
Diríamos que parte das dificuldades de um trabalho como este não incide apenas
sobre a simples presença do pesquisador nos sítios arqueológicos, mesmo que se considere
a belicosidade causada pela instabilidade política daquela zona geográfica, a questão da
religiosidade, fator que, para as mulheres, é um empecilho a mais a se ter em conta.
Apontamos, sobretudo, a dificuldade de acesso a bons materiais bibliográficos editados em
português, e também a anais e periódicos que possam trazer as pesquisas mais recentes na
área. Observamos que os conflitos dos últimos anos, por seu alto poder de destruição,
afugentaram os pesquisadores daquele pedaço de mundo, restando lá meia dúzia de
abnegados arqueólogos que, à custa de suas próprias vidas, continuam trabalhando nos
locais.
2 – Da busca
Esse artigo começou a ser escrito, por assim dizer, em agosto de 1997, no verão
abafado de Bagdá. A bem da verdade, o esboço foi traçado mesmo antes, já em 1996,
quando cursávamos o segundo ano de comunicação social na Universidade Estadual de
Londrina. Refletindo acerca do olhar da imprensa ocidental sobre os problemas da região
do Golfo Pérsico, verificamos o quão escassos eram os trabalhos científicos na área. A
complexidade dos arranjos políticos e sócio-históricos passava ao largo dos noticiários,
deixando a desejar em matéria de conteúdo e crítica.
Indagávamo-nos acerca da pertinência de um estudo que pudesse mostrar a
população árabe fora dos filtros da grande imprensa. Pensávamos que talvez um estudante
universitário, ainda sem vínculos com a mídia, pudesse fazer uma leitura um pouco mais
isenta dos problemas da região. A embaixada iraquiana acenou positivamente à nossa
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proposição, de modo que embarcamos para o Oriente Médio em agosto de 1997, sendo
recebidos na Universidade de Bagdá.
Podemos dizer que todo o território iraquiano abriga um museu a céu aberto, com
ruínas de antigas civilizações, muitas delas incrivelmente preservadas. São palácios, tumbas
reais e as famosas placas de argila com a escrita cuneiforme expostas às intempéries.
Verificamos que a aridez do clima e os baixos índices pluviométricos e de poluição
industrial facilitam a conservação dos sítios, parecendo imunes à ação do tempo. Todavia,
os conflitos armados que se seguem em território iraquiano, especialmente os bombardeios
aéreos, provocam rachaduras nos conjuntos arquitetônicos e põem em risco todo o
patrimônio histórico milenar. Depois de nosso retorno, especialmente de três anos para cá,
tentamos, sem sucesso, obter informações acerca do atual estado dos sítios.
3 – Das cidades renascidas das areias
Foram os gregos que primeiro atribuíram o nome Mesopotâmia à zona dividida
entre o Irã e o Iraque, situada entre os cursos inferiores do Tigre e do Eufrates, ao sul dos
maciços do Tauros e do Zagros, a oeste do deserto sírio. Conforme André-Leickman e
Zigler (1982), na Baixa Mesopotâmia, no vale do Eufrates, sul do Iraque, encontram-se os
traços mais antigos de aldeias datadas em torno de 8 mil anos. Na verdade, não há provas
conclusivas acerca da idade das ruínas, até porque os arqueólogos acreditam que muito
ainda está por vir, e que aos achados atuais podem se juntar outros muitos mais
importantes.
As primeiras descobertas na região da Suméria trouxeram à tona a cidade de Ur.
Segundo relatos bíblicos, em Ur teria vivido Abraão, patriarca dos judeus, que de lá saiu em
busca de Canaã, a Terra Prometida. Conforme Hamdani (1978, p.11), “as narrativas dos
antigos hebreus, (...) de repente tomaram o aspecto de reportagens ao vivo”. O nome
Suméria, continua o autor, foi decifrado pela primeira vez apenas em meados do século
XIX, fato de geou de imediato uma polêmica: os sumérios seriam ou não semitas3? Antes
mesmo de se chegar ao século XX os estudiosos concluíram que os sumérios não têm
qualquer parentesco com os indo-arianos, conforme chegou a se cogitar, e muito menos
com os semitas, e que a língua falada por eles não se assemelha a nenhuma conhecida nos
dias atuais. Quando muito, encontraram alguma coisa parecida com a antiga língua
dravídica do Ceilão (atual Sri-Lanka), mas nada de substancial.
Língua enigmática, origem étnica desconhecida: essas não são as únicas
interrogações que permeiam o assunto Suméria. Os pesquisadores se vêem às voltas com as
possíveis causas do súbito desenvolvimento de sua civilização. Ainda segundo Hamdani
(1978, p.13, 14), é certo que os sumérios, vindo de onde viessem, não encontraram a Baixa
Mesopotâmia desocupada. Logicamente, por ser a região fértil, desde a cadeia de montes
Tauros até o Golfo Pérsico, do Mediterrâneo até as montanhas do Zagros, certamente já
havia ali muitos povos, alguns deles semitas, como atestam os sinais de civilizações
avançadas nas cercanias. Não há documentos que atestem a data exata da eclosão da
Nome dado a um grupo de povos do Oriente Próximo, que fala atualmente ou falava línguas semíticas na
Antiguidade. Os mais importantes dos povos semíticos foram os acadianos (assírio-babilônicos), os amorreus,
os arameus, os fenícios, os árabes, os judeus e os etíopes. Segundo textos bíblicos, os semitas descendem de
Sem, patriarca bíblico, filho primogênito de Noé.
3
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civilização sumeriana, no entanto, os estudiosos admitem que do fim do IV milênio até o
começo do II (antes de Cristo), assistiu-se na região mesopotâmica um abrupto
povoamento de povos semitas e sumérios, que se alternavam no domínio político do lugar.
Isso quer dizer, argumenta Hamdani, que é errôneo afirmar que o desenvolvimento da
Baixa Mesopotâmia deva-se apenas aos sumérios. Outros povos, sobre os quais não
constam registros em tabuletas cuneiformes, tiveram participação, sim, no crescimento das
cidades sumerianas.
Segundo Doblhofer (1962), desde o início do século XIX, influenciada pela
ascensão da egiptologia e pela queda que os europeus sempre tiveram pelo Oriente Médio
(o dito orientalismo), a disputa pelas descobertas nos sítios da Mesopotâmia promoveu
uma verdadeira corrida do ouro entre a Grã-Bretanha (com forte tradição no Iraque, por
conta do protetorado que exerceu lá) e a França, sendo que mais tardiamente a Alemanha
também voltaria seus olhos para a região. De acordo com Hamdani (1978, p.17,18,19),
diplomatas desses países tomaram para si a tarefa da caça ao tesouro no Iraque. As
escavações começaram no norte do país, e pouco a pouco foram se dirigindo ao sul, na
embocadura do Tigre e Eufrates. Assim, logo no início do século XIX, o cônsul inglês em
Bagdá, C. J. Rich, descobriu o Cilindro de Nabucodonosor II, com inscrições sobre esse rei
babilônico (605-562 a.C.), o construtor dos famosos jardins suspensos. A França reagiu de
pronto, abrindo um consulado em Mossul, cidade curda em território iraquiano,
entregando o posto a Paul-Emile Botta, um aficionado pelo Oriente Médio, um velho
conhecedor do Egito e Iêmen. A desforra sobre a Inglaterra coube a Botta, que tirou
debaixo das areias o palácio de Sargão II (721-705 a.C.), rei assírio de Khorsabad (extremo
norte do Iraque), personagem citado no Antigo Testamento. Botta, que investiu sua
fortuna pessoal nas escavações, inaugurou o que passou a ser chamado de assiriologia,
estudo da Assíria127, região situada no norte do Iraque. Os achados franceses, notadamente
os touros androcéfalos (criaturas aladas com cabeça de homem e cauda de leão), foram
despachados para o museu do Louvre, em Paris, em fevereiro de 1847.
Os ingleses, comenta Hamdani (1978), não deixaram por menos. O diplomata
britânico, Sir Austen Henry Layard, foi mais além e conseguiu feitos arqueológicos
memoráveis. De 1845 a 1847 ele trabalhou sobre os sítios de Assur, Nínive e Nimroud,
descobrindo, além de 70 aposentos do palácio do rei assírio Senaqueribe, mais de 2 mil
relevos decorativos com cenas da vida cotidiana da realeza, 10 touros alados, centenas de
tabuinhas da preciosa biblioteca do rei assírio Assurbanipal. Todo o acervo foi enviado
para o Museu Britânico, que hoje conta com coleções mesopotâmicas talvez maiores do
que as do Louvre.
4- Da escrita em forma de cunha
Como já dissemos, os sumérios encontraram um desenvolvimento sem precedentes
na história da Mesopotâmia, alcançando notável perícia arquitetônica, técnica e artística,
dominando o emprego de metais, como o cobre, o ouro, a prata e o bronze, praticando
A Mesopotâmia compreende três grandes regiões: a Assíria, ao norte, cujas cidades principais são Assur,
Nínive, Nimroud, Khorsabad, entre outras; a Acádia, terras situadas no centro, onde estão as cidades da
Babilônia, Ctesifonte, Kish, além de Bagdá (mas ela não existia nessa época; foi fundada apenas no ano 700
da era cristã); e, por fim, a Suméria, ou Terra de Sumer, no sul, onde deságuam os dois rios. É aí que estão as
cidades mesopotâmicas mais antigas, a saber: Uruk, Larsa, Eridu, Nippur, Lagash e Ur, talvez a mais célebre
delas.
127
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comércio com povos de localidades distantes. De acordo com Cardoso (1994), na Suméria
nasceu a idéia de cidade-estado, que mais tardiamente se estabeleceu na Grécia (Esparta,
Atenas), no norte da África (Cartago), chegando a Roma.
Dado o grau de crescimento das cidades-estados sumérias, as relações humanas se
tornaram complexas, as estratificações sociais começaram a se estender para além do meio
familiar. A escrita nasce, então, nesse cenário evolutivo, em cerca de 3.200 a.C, data dos
sinais pictóricos mais antigos encontrados em Uruk. Diringer (1968) explica que,
inicialmente, sinais ideográficos considerados simples não tardaram a ser combinados e
acoplados. Assim, por exemplo, da união dos sinais de “boi” e “montanha” surgiu a idéia
de “boi selvagem”; de “boca” e “pão”, “comer”; de “mulher” e “roupa”, “senhora”.
Hamdani (1978, p.213-215) explica que em meados do III milênio a.C. o sistema
gráfico foi suprimindo progressivamente as curvas para substituí-las por linhas mais retas e
uniformes. A inovação propiciou a gravação de sinais não mais sobre a argila mole, mas em
metais e pedras, materiais que dificultavam sinais gráficos muito elaborados. O sistema
geográfico linear tomou o aspecto de cunha. Os caracteres, grafados da esquerda para a
direita, evoluíram depois para uma esquematização e posterior abstração, tendo sido
encontrados cerca de 700 em sua forma clássica, tanto a representar conceitos quanto
sílabas.
O estilete, talhado em cana, também mudou de forma e passou a ser confeccionado
também em metal. O instrumento conheceu pelo menos três variações: um estilete de
ponta de bisel ou em prisma (para a escrita de sílabas); outro de ponta semi-esférica para
algarismos redondos, e mais um de ponta igualmente semi-esférica, um pouco mais grossa,
para gravar números múltiplos, como centenas. As plaquinhas também sofreram
transformações. As primeiras eram pequenas de formato retangular com as bordas
ligeiramente curvas. Com o tempo, os cuneiformes passaram a ser grafados em placas de
pedra de grande dimensão, trazendo textos variados num grau de sofisticação sem
precedentes.
5 - De escolas, de professores, de chicotes
As milhares de plaquinhas e tabuletas cuneiformes em poder dos pesquisadores
revelam caligrafias bastante distintas, algumas muito bem traçadas, outras mais desajeitadas
e hesitantes, e contam um pouco da história daqueles que seguravam os estiletes. Os
escribas, chamados em sumério de dubsar, eram considerados artistas, tidos como uma casta
privilegiada. Hamdani (1978) diz que o sistema escolar, generalizado já no III milênio a.C.,
não era obrigatório, inferindo-se daí que os estudos eram reservados às camadas mais altas
da sociedade. O ensino era destinado ao sexo masculino, sendo raríssimos os casos de
mulheres escribas.
Como o ensino não era função do Estado, as escolas privadas se
institucionalizaram, sendo na maior parte das vezes ligadas aos templos. Mantidos às
expensas de fortunas pessoais de suas famílias, os alunos, quando adquiriam um grau de
instrução mais elevado se punham a escrever textos sob encomenda. Fechados no recinto
das escolas, imersos em um estilo de vida quase monacal, os alunos escribas faziam cálculos
aritméticos, produziam de textos literários a livros de gramática, recriavam feitos dos reis e,
principalmente, se tornaram notórios contadores de lendas. Uma delas, encontrada em 12
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tabuletas em língua acadiana descobertas na biblioteca do rei assírio Assurbanipal, em
Nínive, trata da epopéia de Gilgamesh, rei semi-lendário de Uruk, que teria vivido no III
milênio a.C. As tabuletas falam numa grande inundação que teria devastado toda a vida na
terra, num deus piedoso, Enki, que chamou um homem, Utnapistin, e fez com que ele
construísse uma arca para que nela se salvasse um casal de cada ser vivente. A semelhança
com Noé e o episódio da arca não pára por aí. Foram encontrados também textoscantilenas, uma espécie de lamentação que em muito lembram os textos bíblicos.
Segundo estudos do professor norte-americano Samuel N. Kramer (1977), aos
professores (ummia) cabia o ensino da caligrafia e conteúdo escolar, enquanto que a
disciplina ficava a cargo do encarregado do chicote, tradução literal da figura do bedel, ou
qualquer coisa que o valha. Os castigos físicos e humilhações aos alunos mais negligentes
eram comuns, conforme atesta Kramer. Tanto os vigilantes quanto os professores não
eram bem pagos, havendo relatos de alguns que viviam na miséria.
A profusão de textos cuneiformes idênticos é uma mostra de que os alunos, para
praticar a escrita, eram obrigados a fazer cópias indiscriminadamente e à exaustão. Muitos
escribas atingiam um nível de erudição surpreendente, mas seus nomes quase nunca eram
creditados aos textos que escreveram. Kramer (1977) cita o caso de precursores de Esopo e
La Fontaine. Os cuneiformes trazem fábulas de animais e fenômenos com virtudes e
fraquezas humanas: o verão e o inverno, o bronze e a prata, o machado e a chama, o grão e
o gado, entre outros. Provérbios e adágios também eram transcritos pelos escribas,
traduzindo o pensamento e moral da época.
6 – Mesopotâmia, 1997 d.C.
É certo que a presença dos rios Tigre e Eufrates foi crucial para o estabelecimento
dos sumérios, dos semitas, que com eles dividiram o terreno e dos povos que os
sucederam. As cheias brutais e periódicas do Tigre e do Eufrates possibilitaram, por volta
do VIII milênio a.C., ainda no Neolítico, a instalação de grupos humanos e a formação de
grandes aldeias, confirmadas pelos inúmeros vestígios encontrados no sítio de Mureybat,
no curso médio do Eufrates, na Síria. Lá, bem como em outros pontos da Ásia, Europa,
África e Américas, foram igualmente achadas inovações tecnológicas, como o tear, o
polimento de rochas, a roda, fornos e peças de metalurgia, além das primeiras fortificações,
sinais evidentes da existência de guerras.
Com vista a controlar as enchentes e melhor aproveitá-las em sistemas de irrigação,
não há dúvidas de que os agrupamentos humanos ao longo do Tigre e do Eufrates se
uniram para construir barragens e escavar canais. No final do IV milênio a.C., no sul da
Mesopotâmia, já se concentravam grandes populações. Há indícios de que conheciam a
charrua e utilizavam-na para cultivar trigo, cevada, vinhas, palmeiras e legumes os mais
diversos. Grandes rebanhos de ovinos, caprinos e bovinos (em menor quantidade) eram
criados para o consumo de carne, leite e peles. Conheciam também a carroça de quatro
rodas puxada por animais, a rede, sem contar que se tornaram exímios na construção de
barcos.
Dos rios vinha a argila, de boa qualidade e em abundância, aproveitada para quase
tudo. Desde o Neolítico usavam-na para construir as primeiras habitações. As cabanas,
inicialmente de formas circulares, eram construídas a partir do entrelaçamento da argila
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com os juncos que cresciam às margens dos rios. Com o tempo, na segunda metade do IV
milênio a.C., as moradias aumentaram de dimensão e tomaram o formato quadrado,
ficando mais sólidas e resistentes. Para que a laje, também de barro, não desabasse sobre o
próprio peso, os mesopotâmicos erguiam paredes bastante espessas e suprimiam janelas ou
as abriam minúsculas, deixando o ar e a luz entrar apenas pelas portas. A argila era ainda
utilizada na confecção de cerâmicas de uso doméstico, de estátuas e dos primeiros tijolos,
secos ao sol.
Mas, foi percebendo que a argila retinha as marcas nela traçadas que os sumérios se
sobressaíram a outros povos. As plaquinhas (também chamadas de tabuinhas), sobre as
quais os cuneiformes alcançaram a perfeição em mãos de mestres escribas, representando a
língua dos sumérios e de cerca de uma dezena de povos, passaram praticamente incólumes
pelo tempo. A datação de rádio carbono, apesar de não ser tão precisa quando se trata de
determinar a idade de objetos arqueológicos confeccionados pelo homem, em função da
margem de erro (trezentos ou quatrocentos anos na história sócio-cultural do homem
fazem muita diferença; o carbono 14 se sai melhor na datação geológica, pois aí se fala em
milhares, milhões de anos), demonstra que as plaquinhas mais antigas são de 3.400 anos
a.C., aproximadamente. Se somarmos a isso os 2007 anos contados a partir da era cristã,
temos algo em torno de 5.407 anos.
O petróleo, matéria-prima que teve seu apogeu no século XX, di a conjuntura
mundial e se encontra na base dos principais conflitos na região do golfo Pérsico, já era
utilizado, desde Ur até a Babilônia e Nínive, no norte, para pavimentar as estradas, e
também como argamassa na construção dos zigurates. O betume aflora naturalmente nos
charcos como se fosse água, numa clara indicação da presença do petróleo que jaz à flor da
terra. Vimos a charrua sendo empregada por camponeses às margens do Tigre e Eufrates,
tal qual faziam os semitas no Neolítico.
Excetuando algumas etnias aborígines, como grupos indígenas da Amazônia, de
tradição oral, quase todos os povos registram de alguma forma as línguas que falam. Para
os povos sem escrita, a história decorria em outro ritmo, mais lentamente, e os avanços se
faziam sentir de forma menos acentuada. Para os povos que não escreviam, muito do que
se fez acabou perdido. Mesmo sendo cronologicamente muito mais recente que a
linguagem oral articulada, a escrita se firmou especialmente por permitir aos povos que a
detinham sua conservação espaço-temporal. Dessa maneira, puderam esses povos se impor
a outros que não a possuíam. Por essa razão, a escrita sempre esteve associada ao poder, e é
assim que esse conceito chegou até a contemporaneidade. E, justamente na era
contemporânea, que não prescinde da escrita, a memória corre o risco de se perder. De
todo modo, sempre haverá dois rios lamacentos para lembrar da terra onde tudo começou.
7- Bibliografia
ANDRE-LEICKMAN, B.; ZIEGLER, C. Naissance de l'écriture, cunéiformes et hiéroglyphes. Paris:
Éditions de la Réunion des Musées Nationaux, 1982 .
CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete Olhares sobre a Antigüidade. Brasília: 1994, Editora UnB, 1994.
DIRINGER, David. A escrita. Lisboa: Editorial Verbo, 1968.
DOBLHOFER, Ernst. A maravilhosa história das línguas: decifração dos símbolos e das línguas
extintas. São Paulo: Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1962.
HAMDANI, Amar. Sumérios: a primeira grande civilização. Rio de Janeiro: Ed. O. Pierre, 1978.
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RECURSOS LÚDICOS EM ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Maria Cecilia Mollica
UFRJ - Faculdade de Letras - FAPERJ/CNPq
Marisa Leal
UFRJ - Instituto de Matemática
Resumo: Este trabalho pretende demonstrar o efeito de atividades lúdicas de recursos
pedagógicos lúdicos em classes de alfabetização de jovens e adultos. Os experimentos vêm
sendo aplicados em alfabetizandos vinculados ao Programa de Alfabetização da UFRJ para
Jovens e Adultos em Espaços Populares, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao Projeto COPPE - Alfabetização de
Jovens e Adultos, com articulação com a Pró-Reitoria de Pessoal da Universidade, focando
tanto as habilidades de leitura e escrita quanto às habilidades de escrita matemática (cf.
Mollica&Leal, 2006a). As práticas lúdicas referem-se a questões de competência inata da
linguagem e do cálculo mental e do caráter oral da linguagem e sua relação com a
apropriação da leitura e escrita.
Palavras-Chave: Propostas pedagógicas- atividades lúdicas – interação
Resumen: El presente documento tiene por objeto demostrar el efecto de actividades
recreativas para los recursos de aprendizaje desempeñan en las clases de alfabetización para
adultos y jóvenes. Los experimentos se están llevando a cabo en alfabetizandos ligada a la
del Programa de Alfabetización de la UFRJ para Jóvenes Adultos en el espacio y Popular,
vinculado con Pro-Rector de Extensión de la Universidad Federal de Río de Janeiro
(UFRJ) y el Proyecto COPPE - Alfabetización para Jóvenes y Adultos, en relación con el
Pro-Rector de la Universidad de personal, centrándose tanto las habilidades de lectura y
escritura sobre la escritura de las matemáticas (ver Mollica & Leal, 2006a). Las prácticas
recreativas se refieren a cuestiones de poder innato del lenguaje y del cálculo mental y el
carácter oral de la lengua y su relación con la propiedad de la lectura y la escritura.
Palabras clave: Las propuestas educativas de las actividades recreativas - interacción
Introdução
As inovações pedagógicas a serem mostradas enfatizam a capacidade dos falantes
de distinguir sentenças gramaticais de sentenças agramaticais, nos termos de Chomsky
(1964), assim como a aprendizagem de sistemas de escrita e a noção de erro construtivo
proposto por Piaget. Seja na leitura e na escrita da língua, ou na escrita matemática, a
aprendizagem do registro de linguagens supõe conhecimentos específicos de códigos.
Assim, as experiências analisadas se prestam também para a verificação do grau de
sensibilidade dos falantes quanto às diferenças entre o emprego de variantes padrão e
popular, de modo a oferecer modos pedagógicos mais adequados a cada variedade do
idioma, como afirma Mollica (2000:15):
“As marcas lingüísticas sujeitas à variação dependem da ação das
variáveis estruturais, sociais e outras que tais, empregadas com maior ou
menor probabilidade: uma taxa alta de um dado conjunto de marcas
configura então um padrão lingüístico. Admite-se que exista pelo menos
uma variedade (norma ou padrão) popular e uma variedade (norma ou
padrão) standard. Entende-se por padrão culto um certo conjunto de
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marcas lingüísticas em acordo ou desacordo com os cânones da tradição
gramatical: a variedade não-standard é própria da modalidade oral,
utilizada em contexto informal, em discurso espontâneo, não planejado.
Ela se diferencia da denominada variedade culta ou norma culta, que se
compõe de empregos típicos de discurso planejado, utilizada
predominantemente na escrita e comprometida com a tradição literária.”
O material permite trabalhar a noção de linguagem estruturada e as funções dos
números (quantificação, ordenação e codificação), dando margem a que o alfabetizando
tome consciência da variabilidade da língua, de maneira a incluir o aprendiz na cultura
letrada, sensibilizando-o quanto aos objetivos do letramento escolar e social. Destacam-se
os livros jogos da série Brinca-Palavras intitulados Jogo da Fazenda do Seu Ramiro (Mollica,
2006) e Dominó Dois em Um (Mollica e Leal, 2006 c). A proposta consiste em verificar os
conhecimentos adquiridos pelos alfabetizandos quanto aos códigos ortográfico e numérico
vigentes e sua relação com a oralidade. Ao induzir à escolha da variante padrão, o primeiro
livro jogo, estimula o aprendiz a concluir que existem formas diferentes com o mesmo
significado e sua utilização depende do contexto. Como afirmam Mollica & Leal (2006b:4)
no Primeiro Caderno de Propostas Pedagógicas, elaborado no âmbito do Programa de
Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos:
“Numa visão antiga, acreditava-se que a escrita era a transposição
da fala e que o ensino da matemática deveria ser marcado pela
formalização de conceitos e mecanização de processos,
distanciando a linguagem matemática das questões cotidianas dos
alunos. Atualmente, tornou-se importante saber reconhecer
algumas características da língua falada e das estratégias de cálculo
mental de que os indivíduos lançam mão, freqüentemente
representadas na produção escrita (...)”
A título de exemplo, O Dominó Dois em Um tem como principal objetivo verificar a
concepção que o alfabetizando tem sobre quantidade numérica, além, é claro, de estimar
sua competência em reconhecer os algarismos. Testam-se também nesse jogo o princípio
da conservação (cf. Kamii,2005) e a habilidade em contagem, já que as bolinhas (que
representam as quantidades) são dispostas de maneira diferente daquela apresentada no
dominó clássico. O reconhecimento das funções dos números juntamente com o domínio
da contagem são um dos principais pontos de apoio para a aplicação dos vários
procedimentos e tipos de cálculo utilizados dentro e fora da escola.
“O esforço de um projeto como o EJA reside no investimento de
inserção do indivíduo na cultura letrada integralmente, expandindo
o máximo possível suas potencialidades de falante e ouvinte, bem
como suas habilidades matemáticas, através das práticas sociais de
letramento. O desafio situa-se em promover a transferência entre o
letramento social e o letramento escolar e, nesta medida,
‘institucionalizar’ o indivíduo, normalmente à margem da
sociedade organizada”. (Mollica e Leal (2006a:53))
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Jogo da Fazenda do Seu Ramiro
Este jogo, dentre outros aspectos, propõe testar conhecimentos de concordância
verbal e nominal, especialmente as categorias de gênero, número e pessoa. Utilizando a
dicotomia saussuriana sintagma/paradigma, verificam-se os modos como os aprendizes
operam as relações de seleção e associação lingüísticas. Com a finalidade de constituir-se
em atividade lúdica, preferencialmente em grupo, o jogo busca estimar a consciência de
alfabetizandos quanto ao universo variacional da língua e, conseqüentemente, quanto às
diferenças estilísticas dos empregos de distintas variedades.
O livro-jogo “Jogo da Fazenda do Seu Ramiro” contém um tabuleiro que permite aos
jogadores combinar palavras até formar uma frase, de modo que o alfabetizador tem a
possibilidade de lidar com a consciência natural da competência e do desempenho dos
alunos, com especial atenção às variantes escolhidas pelo jogador. O tabuleiro do livro
possui cinco colunas e cada uma possui seis palavras na vertical. No tabuleiro do jogo, no
eixo horizontal, temos os elementos que se sucedem um após o outro linearmente,
reportando ao eixo das simultaneidades concebido por Saussure. Assim, o jogo prevê o
estabelecimento de relações sintagmáticas possíveis, de acordo com a variante de prestígio,
de sorte que os jogadores ficam “impedidos” de processar sentenças em desacordo com a
norma gramatical.
A história do livro baseia-se em dois personagens, Seu Ramiro e Seu Ernesto, que
são amigos. Para que Seu Ramiro chegue à casa do Seu Ernesto, faz-se necessário
atravessar a ponte do “Mais”; se ela não estiver aberta, Seu Ramiro deverá atravessar a
ponte do “Mas”. A partir dessas pontes, o alfabetizador trabalha conceitos de distinção
entre linguagem coloquial e escrita padrão, na escrita, já que tem que demonstrar
conhecimento do valor gramatical de “mais” e “mas”, pronunciados da mesma maneira no
dialeto carioca.
Outro aspecto a ser analisado é a distinção entre competência e desempenho, nos termos
de Chomsky. Na teoria gerativista, competência consiste no conhecimento internalizado
que o falante tem de sua língua e desempenho, no uso que o falante faz da língua. Mioto
(2004:21) traduz competência como o julgamento do falante quanto à gramaticalidade das
sentenças de sua língua e o desempenho como o uso da competência para produzir tais
sentenças.
Para jogar, é necessário ter um dado e piões em cores distintas, que correspondem a
quatro jogadores. Os piões são utilizados de maneira bem simples: o jogador lança o dado
e, aparecendo o número 3, por exemplo, colocará seu pião na palavra da primeira coluna
que corresponda ao número três (contando de cima para baixo, na vertical). O mesmo
lance é feito pelos demais jogadores. Na passagem para a segunda coluna, o jogador deverá
fazer a concordância entre a palavra da segunda coluna com a da primeira coluna, de
maneira que possibilite, até o final do jogo, a formação de uma sentença gramatical e de
acordo com a norma de prestígio. Se a combinação é agramatical ou corresponde à
variedade coloquial da língua, o jogador não pode prosseguir.
Com esta dinâmica, o livro-jogo permite ao alfabetizador trabalhar com as noções
de gramaticalidade e aceitabilidade. Estruturas agramaticais correspondem às sentenças que
não pertencem a uma dada língua por serem intuitivamente rejeitadas pelos falantes, como
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em (1): Cinema no ela vi eu. A gramaticalidade se instaura quando as sentenças são
compreensíveis aos seus falantes, ainda que nem todas estejam em consonância com a
norma culta, como em: (2) Eu vi ela no cinema. A sentença (2) é gramatical, porém
característica de linguagem coloquial, em comparação a: 3) Eu a vi no cinema. A sentença (3)
é gramatical é prestigiada e utilizada em contexto formal (cf. Labov, 1972; Braga & Mollica,
2004).
Experimentos em campo
O experimento se deu com 13 alunos de turmas, localizadas no campus da
Universidade e em comunidades no seu entorno, conhecido como Bairro Maré. A faixa
etária dos alunos varia entre 28 e 70 anos e o nível de letramento escolar é bem variado:
alguns não sabiam ler quando entraram no Programa, outros liam com muita dificuldade e
boa parte ingressou no Programa com grau razoável de proficiência em leitura e escrita.
Os procedimentos adotados em campo obedeceram a duas fases: 1) à filmagem da
utilização dos livros-jogos no momento de sua utilização pelos alunos; 2) a tomadas de
cena dos aspectos ressaltados pelos alfabetizandos, com base nas sentenças processadas
durante o jogo. Depois de formadas as frases, o alfabetizador caracterizou as sentenças
quanto ao grau de formalidade: assim, o professor explicava se a frase formada era padrão
ou não padrão. Os critérios normalmente importantes basearam-se em categorias referentes
à concordância nominal e verbal, como no exemplo: (4) Os menino saíram ontem. A partir
dessa frase, o professor pôde explicar que menino deve concordar em número com a palavra
que a antecede. As frases não padrão foram reescritas, conjuntamente com a turma, de
maneira a conscientizar quanto à variação entre formas prestigiadas e não prestigiadas.
Análise dos dados
Os alunos testados foram distribuídos duas turmas A e B. Eis alguns comentários
sobre a atividade desenvolvida em ambos os grupos.
O aluno 1, pertencente à turma A, formou a seguinte frase: (6) Estes garotos fugiram
mais triste hoje. De acordo com a classificação proposta, essa frase se adequa ao grupo
gramatical não padrão, pois o adjetivo (adjunto adnominal) deve concordar em gênero e
número com o nome (sujeito) a ele relacionado (cf. Lima, 2005:98). Entretanto, é de se
destacar que o mesmo aluno 1 percebeu que o nome concorda com o pronome em estes
garotos.
O aluno 2, por sua vez, formou uma sentença gramatical e de acordo com o
padrão, assim como o aluno 3, como mostram os exemplos (7) e (8), respectivamente: (7)
Andamos a cavalo mas só agora; (8) Esta menina está mais bonita hoje. A turma B dividida em dois
grupos. A escolha da divisão foi norteada pelo nível de letramento social e escolar dos
alunos, de modo a reunir grupos heterogêneos, propositalmente, para que os melhores
ajudassem os colegas. Observe-se a sentença (9) Minha galinha estavam mais sem amanhã. O
aluno apresenta formas com e sem concordância, ora processando “estavam”, ora “minha
galinha”, como em (10) Estes garotos parece mais gordo voltaram.
Houve casos como (11)) Esta menina fugiram mas sem... em que o aluno não conseguiu
completar a frase, o que seria necessário para o término do jogo. Entretanto, houve
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processamentos de acordo com o padrão como (12) Minhas galinhas fugiram mas não voltaram.
Essas diferenças evidenciam claramente um aspecto importante da prática pedagógica, a
heterogeneidade que se encontra em turmas de EJA.
Dominó Dois em Um
O Dominó Dois em Um propõe aferir a competência dos alfabetizandos jovens e
adultos e a capacidade de reconhecer os algarismos, de identificar estratégias de contagem e
de testar conhecimentos sobre as funções dos números. O livro-jogo contém cem peças
com dupla face que permitem variados tipos de jogos. Nas duas opções, o aluno deve
combinar os números de 0 a 9 com a quantidade de bolinhas, dispostas de variadas
maneiras e digitadas com várias fontes. No verso das peças, encontram-se os mesmos
números que devem ser combinados com seus nomes correspondentes. Intencionalmente,
vários tipos de impressão de números e letras são usados para que se possa aferir se o
alfabetizando lê independentemente do formato tipográfico utilizado, permitindo que o
alfabetizador trabalhe simultaneamente os códigos ortográficos e numéricos.
Ao trabalhar com eles, o alfabetizador pode perceber, por exemplo, se eles
associam os números representados pelos 10 algarismos utilizados pelo nosso sistema
numérico à quantidade que eles representam, através das combinações estabelecidas pelos
alfabetizandos (quantificação), e como os alunos utilizam estratégias próprias de contagem.
Os jogos também podem servir de entretenimento no meio familiar. Por isso, as
ilustrações dos livros foram pensadas de forma a atrair variados tipos de públicos.
O experimento
Foram testados 14 indivíduos distribuídos em dois grupos: o Grupo 1 era formado
por 8 alunos do Programa de Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos da UFRJ e o
Grupo 2, por 6 alunos do Projeto COPPE - Alfabetização de Jovens e Adultos. Os alunos
do Grupo 2 são funcionários efetivos ou terceirizados lotados na COPPE/UFRJ e em
outras Unidades da Universidade. A faixa etária nos grupos variou de 25 anos a 55 anos, e
o nível de letramento escolar assim como o dos alfabetizandos do PAJA/ UFRJ se mostrou
bem variado. Importante salientar que, diferentemente dos alunos de EJA do Programa da
Pró-Reitoria de Extensão, formado em sua maioria por mulheres que não trabalham fora
de casa, todos os alfabetizandos do grupo de alunos do Projeto COPPE estão inseridos no
mercado de trabalho e por isso são obrigados a administrar seus proventos, a utilizar caixas
eletrônicas de bancos. Essa informação é relevante, uma vez que esses indivíduos
reconhecem de alguma forma os algarismos e utilizam, mesmo que de forma inconsciente
os números como códigos. Os experimentos foram realizados separadamente com cada um
dos grupos em com três encontros. Após a análise dos resultados, propostas didáticas
foram elaboradas.
No primeiro encontro, os alunos de ambos os grupos foram apresentados ao livrojogo, recortaram as cartelas e manusearam o material até que se sentissem seguros para
escolher um tipo de jogo. Como as cartelas do Dominó contêm peças com frente e verso
em cores distintas, a maioria dos alunos dos dois grupos optou por trabalhar com as peças
de mesma cor. O branco sugere a combinação dos números com seus nomes e foi a cor
escolhida pela maioria nos alunos de ambos os grupos. Nos próximos encontros, os alunos
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forma convidados a jogar com as peças de cor preta, que registram a combinação dos
números com a quantidade que representam. Na seqüência, foi proposto aos grupos que
escolhessem um jogo que envolvesse peças de cor branca e preta.
Análise dos Resultados
Os alunos dos dois grupos apresentaram muitas dificuldades na leitura do nome
dos números. Para que eles não perdessem a motivação com o jogo, foi posto no quadro
de giz uma tabela contendo, em colunas, a representação numérica e a escrita
correspondente aos nomes dos números em letras maiúsculas tipo imprensa. O Grupo 2
consultou o quadro apenas nas rodadas iniciais e, na maioria das vezes, contou com a
participação dos outros jogadores, que se utilizou de estratégias de andaimagem (cf.
Bortoni-Ricardo, no prelo) para auxiliar o colega quanto à escrita do nome do número, e
quanto ao fato de a quantidade de letras ser menor que a quantidade de letras do nome dos
demais números. O comportamento dos alunos nos conduz a inferir que havia uma
preocupação com a memorização das palavras. O Grupo 1 consultou sistematicamente a
tabela posta no quadro.
Numa segunda etapa, foi proposto aos alunos de ambos os grupos que repetissem
o jogo, ainda com a tabela no quadro, realizando a leitura em voz alta dos nomes dos
números. A maioria dos alunos do Grupo 2 realizou a tarefa com maiores taxas de acerto
do que os alunos do Grupo 1. As dificuldades de ambos os grupos se devem às
dificuldades inerentes dos alunos com relação à leitura do número quatro, quando da
tentativa de se utilizar procedimentos de identificação das sílabas e dos números 2 e 8, cuja
leitura alternou nas pronúncias “dos ou doi” e “oto”.
No segundo encontro, os alunos do Grupo 2 realizaram a contagem mentalmente,
acertando quando o número de bolinhas era pequeno. Após alguns “erros”, eles
começaram a perceber que as bolinhas não estavam sempre dispostas da mesma maneira e
decidiram então contar em “voz alta”. Cada vez que um aluno confundia a ordem da
seqüência numérica, os colegas mais sensíveis recontavam as bolinhas junto com o jogador
da vez.
Alguns alunos realizavam a contagem das bolinhas em voz alta sem necessitar de
indicar a ordem escolhida na pecinha; a grande maioria, porém, indicou com o dedo a
ordenação. Houve alfabetizados contando de duas em duas bolinhas, sempre que elas
apareciam dispostas de forma emparelhada nas peças. Já no Grupo 1, a dificuldade
encontrada pelos alunos foi muito grande. Foram necessárias várias intervenções para que
o grupo compreendesse a dinâmica do jogo. Entre as mulheres desse grupo, uma tentou
adivinhar a quantidade de bolinhas considerando a maior ou a menor quantidade de
bolinhas conforme estivessem distribuídas de modo mais ou menos espalhado na cartela,
apesar da interferência dos colegas: parecem-nos claro, nesse caso, as dificuldades com a
conservação de igualdades. Quatro alunos, desse grupo, constantemente se perdiam
durante a contagem e apenas 2 demonstraram perceber que as bolinhas não estavam
dispostas sempre da mesma maneira. Descoberto o “truque”, alguns jogadores contaram
em voz alta, numa tentativa de sistematizar estratégias de contagem. O jogo foi repetido
uma segunda vez e obteve-se um desempenho melhor por parte dos alunos.
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Numa primeira tentativa de jogo emparelhando peças de cores distintas, os alunos
do Grupo 1 não conseguiram bom desempenho, à exceção de um aluno na faixa etária
entre 25 anos a 34 que trabalha. Este aluno propôs emparelhar a representação numérica da
peça de cor branca com a mesma representação numérica da peça de cor preta. Somente
após várias tentativas esses alunos perceberam, finalmente, que não era possível emparelhar
mais que duas peças. Os alunos do Grupo 2 escolheram também esta forma de
emparelhamento e perceberam logo que só, no máximo, duas peças podiam ser
combinadas. Após a interferência da entrevistadora, apenas os alunos do segundo grupo
propuseram uma nova regra: dividiram as peças entre si e estabeleceram que cada aluno
deveria combinar a representação numérica de uma peça branca com uma peça preta se
esta representação estivesse presente no número de determinada conta bancária colocada
no quadro de giz. Embora a proposta tenha partido do próprio grupo, a realização da tarefa
não foi nada fácil, já que eles repetiam em voz alta o número das três contas escolhidas
dezena por dezena, acrescentando o último número quando a quantidade de números da
conta era ímpar. Pela quantidade de algarismos contidos no número das contas, o jogo
ficou difícil para grande parte da classe e a escolha de uma nova regra foi solicitada. Desta
vez foi pedida a sugestão de um jogo que permitisse o emparelhamento de quaisquer peças
de cores diferentes. Após uma calorosa discussão, os alunos decidiram emparelhar a
representação numérica das peças pretas e brancas e a escrita dos números das peças
brancas com a quantidade de bolinhas das peças pretas. A escolha dessa forma de jogar não
foi uma tarefa simples e, por várias vezes, foi necessária a ajuda da entrevistadora. Vale
ressaltar que esta última solicitação também foi feita aos alunos do Grupo 1 e que apenas
um aluno desse grupo propôs o jogo anterior.
Considerações finais
Os livros-jogos permitem ao alfabetizador lidar, de modo mais dinâmico, com
conceitos importantes de prática pedagógica. Os experimentos relatados neste texto
possibilitaram constatar a enorme dificuldade que os alunos apresentam em marcar a
concordância de acordo com a norma padrão, dado que a oralidade se faz presente
fortemente no processo de alfabetização e em associar o número com a quantidade que ele
representa. Em ambos os experimentos, ficou clara a influência do letramento social sobre
o letramento escolar (Cf. Soares, 2003; 2004).
A proposta desses jogos e dos demais da série Brinca-Palavra favorece o reforço da
aprendizagem em tópicos específicos. O professor pode explorar a questão da variação
lingüística e seus usos adequados, considerando os empregos de variantes prestigiadas e
não prestigiadas. Essa é também uma oportunidade pedagógica de abordar o preconceito
lingüístico, aceitando a variante utilizada pelo aluno (normalmente a não padrão) e
ensinando-lhe adequar seu discurso de acordo com a situação de fala e o grau de
formalidade discursiva. Toda a série de livros-jogos e de material lúdico está sendo
elaborada para que o alfabetizador possa trabalhar os conteúdos de modo mais
interessante, principalmente se o aluno já apresenta proficiência em leitura e escrita de
sentenças simples e dominem conceitos iniciais de matemática. Além de ensinar ao
alfabetizando fenômenos dinâmicos da fala e da escrita, os jogos buscam sensibilizar o
aluno quanto ao uso da variante coloquial e dos conhecimentos inatos como ponto de
partida da prática pedagógica, que se diferenciam em muito das exigências do ensino
formal. Um trabalho dessa natureza se orienta, portanto, no sentido de preparar o
alfabetizando para as práticas exigidas nos níveis mais altos de letramento, dado que
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pressupõem grau alto de formalidade dos diferentes gêneros discursivos e a apropriação
plena da escrita matemática. Vale salientar, por fim, que o material lúdico pode ser utilizado
também por crianças em processo de alfabetização.
Referências Bibliográficas
KAMII,C. A Criança e o Número; tradução Regina A. de Assis, Campinas, Papirus, 2005.11ª
edição
LIMA, Rocha. Gramática Normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
MIOTO, Carlos. Novo Manual de Sintaxe. Florianópolis: Insular, 2004.
MOLLICA, Maria Cecília. Influência da fala na Alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2000.
________. Brinca-Palavra- Jogo da fazenda do seu Ramiro . Rio de Janeiro: Faculdade de Letras,
2006. 2ª edição.
MOLLICA, M, C.; LEAL, M. Português e Matemática: parceria indispensável em política educacional.
IN: DA HORA, Dermeval et alii (orgs). Lingüística: práticas pedagógicas. Editora Pallotti,
Santa Maira, 2006a, pp. 33-54.
_______. Letramento e Alfabetização: Primeiro Caderno de Propostas Pedagógicas. Rio de Janeiro.
Faculdade de Letras/UFRJ, 2006b.
_______. Brinca-Palavra-. Dominó Dois em Um, Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão,
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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AMIGUINHOS DO DIÁRIO: UM ESTUDO SOBRE O DIMINUTIVO
NOS ENCARTES INFANTIS DE JORNAIS
Maria Cristina Pires Pereira
Mestranda em Lingüística Aplicada
Universidade do Vale do Rio do Sinos
RESUMO: Neste breve estudo sobre a linguagem dirigida à criança, pretendeu-se
compreender um pouco mais sobre como os jornais, em suas seções infantis, utilizam o
diminutivo dirigido especialmente às crianças. Para tanto, foi feito um acompanhamento
longitudinal de um jornal, coletando sua seção infantil e fazendo um levantamento do uso
do diminutivo sintético utilizado em seu encarte infantil. Existe o pressuposto que a
linguagem dirigida à criança deve ser permeada por diminutivos, porém, segundo essa
pesquisa, nem sempre é estabelecida uma relação entre o uso do diminutivo e qual a sua
função.
PALAVRAS-CHAVE: diminutivo, linguagem dirigida à criança, linguagem jornalística.
ABSTRACT: In this article, about child directed language, we try to understand a little
more about how newspapers, in their children section, use the diminutive directed,
specially, to children. For that, a longitudinal study was done collecting sintetic diminutive
words from the child section. There is a pressumtion that child directed language must be
full of diminutive words, but the relation between use and its function is not always
stablished.
KEY WORDS: diminutive, childre directed language, journalistic language.
O uso do diminutivo é, geralmente, estudado de uma forma limitada a sua ligação
com dimensões pequenas ou menores do que outro ser ou objeto. Este presente trabalho
trata do tema do uso do diminutivo na linguagem dirigida à criança e qual a visão que
permeia a redação dos encartes infantis de jornais de grande circulação no tocante a este
elemento lingüístico. Minha escolha recaiu sobre uma análise do emprego do diminutivo,
no encarte infantil do jornal de maior circulação, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul:
Diário Gaúcho e foi considerado, para fins desta pesquisa, o grau diminutivo sintético dos
substantivos, advérbios e adjetivos.
O Diário Gaúcho é um jornal direcionado ao público popular da Grande Porto
Alegre e, atualmente, é o jornal no mais lido nesta região, com mais de um milhão de
leitores128. Como este jornal atinge também as classes mais desfavorecidas
economicamente, seus textos são lidos por um número considerável de crianças que não
têm acesso a maioria da mídia escrita e isto, por si só, já é uma fonte de pesquisa que pode
contribuir para um aperfeiçoamento deste veículo da imprensa.
128
Fonte: Site da RBS, Rede Brasil Sul de Comunicação, Jornal Diário Gaúcho, disponível em
http://www.rbs.com.br/rbscom/jsp/default.jsp?contexto=jornal&paginamenu=../library/menu_jornal_diari
ogaucho.lbi&paginaconteudo=../library/rbsjornal_dg.lbi , acesso em: 05 de jun. 2006.
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O diminutivo é um aspecto da linguagem que têm intrigado os lingüistas por sua
complexidade sintática, semântica e pragmática (MELTZI & KING, 2003) e a sua
aquisição por crianças é uma tarefa complexa que parece depender de vários fatores, sendo
um deles a imitação.
Compreender como são utilizados os diminutivos direcionados ao público infantil
nesta seção do jornal e estabelecer uma relação entre o uso do diminutivo e qual sua função
nesta parte voltada especificamente para crianças são os principais objetivos deste estudo.
Os diminutivos sob diversas perspectivas
O uso do diminutivo pode ser encarado de diferentes formas. Muitas vezes o que as
gramáticas normativas prescrevem não é utilizado da mesma forma pelas pessoas em atos
diários de fala e escrita. Neste item será feito um apanhado geral de diversas acepções que o
diminutivo pode ter.
O que dizem as gramáticas normativas
Em geral, as gramáticas normativas são bem detalhadas sobre a formação do
diminutivo sintético, sendo que as duas formas mais comuns são,
a sufixação -inho(a) e a sufixação -zinho(a). O primeiro sufixo é
acrescido aos radicais com vogais temáticas (-a, -o, -e, que representam,
nas palavras não-verbais, classes morfológicas, como número e gênero),
enquanto o segundo sufixo é acrescido aos radicais sem vogais temáticas
(LEE, 1999, p. 113).
Além dos sufixos mais comuns, existem outros que também podem ser associados
ao diminutivo, entre eles (CEGALLA, 2005; CUNHA E CINTRA, 2001; HOLLANDA,
1986):
-acho/a: fogacho, riacho;
-ebre: casebre;
-eco/a: livreco, jornaleco, padreco;
-ejo: vilarejo, lugarejo;
-ela: ruela, viela;
-elho/a: grupelho, rapazelho;
-eto/a: poemeto, saleta, maleta, banqueta, coreto;
-ete: filete, diabrete, joguete, cavalete;
-icha/o: barbicha, rabicho;
-ico/a: burrico, namorico, veranico;
-im: flautim, selim, camarim;
-isco/a: chuvisco;
-ito/a: mosquito, cabrito;
-oca: engenhoca, pernoca, beijoca;
-ola: sacola, bandeirola, portinhola, rapazola;
-ote: serrote, caixote, malote, frangote, saiote;
-ucho/a: papelucho, pequerrucho, gorducha;
-(c)ulo/a: glóbulo, radícula, nódulo, óvulo, gotícula, corpúsculo, nucléolo, película,
versículo.
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No aspecto que é o foco deste trabalho, o uso do diminutivo, a concepção da
maioria das gramáticas consultadas pode ser resumida nas afirmação em que o diminutivo é
definido como “a propriedade que essas palavras têm de exprimir as variações de tamanho dos
seres” e “um ser com seu tamanho normal diminuído” [grifo meu] (CEGALLA, 2005, p.1523).
Estas definições nem de longe abrangem toda a gama de possíveis funções que o
diminutivo exerce na linguagem. Pode-se dizer, no entanto, que a forma primitiva do
diminutivo, que expressava somente a dimensão pequena ou menor de um objeto ou
pessoa, foi estendida para concepções mais abstratas e, finalmente, chega-se ao ponto em
que,
(...) a descrição da interpretação semântica das palavras que estes
sufixos integram é complexa, não se esgotando na expressão de
dimensões (que os termos diminutivo e aumentativo consagram), e
admitindo que, qualquer que seja o efeito concreto da adjunção de um
destes afixos, todos eles exprimem um juízo de valor do locutor (...)
(Mateus, 2003, p 958).
Em muitos casos, pelo uso, o diminutivo também pode assumir outras significações
que, se originalmente foram ligadas à pequenez, atualmente se desvincularam deste sentido
primário, tornando-se termos com acepção própria, especializando-se: salgadinho,
passarinho, folhinha (calendário), carrocinha, etc.
Outras palavras foram absorvidas, já na forma de diminutivo, há tanto tempo que
este nem mais é reconhecido, a não ser que saibamos a etimologia da palavra. Poucas
pessoas sabem, por exemplo, que a palavra músculo vem de mus, palavra latina para rato,
pois o músculo do braço, quando dissecado, lembra um ratinho. Existem indícios que o
sufixo -(c)ulo/a, por ser arcaico, provindo do Latim, quando se incorporou à língua
portuguesa não nos remete de uma forma tão transparente à idéia de diminutivo.
Merece destaque que, nas obras consultadas, o grau diminutivo sintético é
associado, normalmente, aos substantivos. Quando se trata dos advérbios, existe a ressalva
de que o diminutivo sintético expressa formas populares e familiares, pois é considerado
como forma invariável. (TUFANO, 1985). E, surpreendentemente, quase nenhuma
referência é feita quanto à utilização desta forma com os adjetivos, a não ser como
gradação afetiva (LUFT, 1989), embora em nosso dia-a-dia sejam comuns expressões
como: ele é bonitinho; estou um pouco magrinha, que apartamento grandinho, hein?.
O que dizem os lingüistas
De acordo com os vários pesquisadores estudados (CARENO, 1997;
HLIBOWICKA-WEGLARZ, 1998, JURAFSKY, 1996; NOVERÓN, 2005), a função do
diminutivo extrapola a mera caracterização de algo ou alguém de dimensões pequenas e
pode ter sentidos até contraditórios, sendo alguns deles:


Como uma parte de algo (partitivo): “deixa eu limpar estes pedacinhos de
bolo de cima da mesma”.
Para um objeto pequeno que lembre outro de tamanho maior: “a gente
precisa comprar canetinhas para o material escolar”.
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
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Uma marca de aproximação: “as bochechas dela estavam vermelhinhas”.
Para marcar discriminação e desprezo: “aquela mulherzinha pensa que é
gente!”.
Aproximação do gênero feminino: “ai, que gracinha!”.
Intensificador: “na praia de Domingas Dias a areia é branquinha”.
Atenuador: “ela está gordinha, não achas?”.
Afeição: “vem cá, meu amorzinho”.
Brincadeira (galhofa): “ele é o queridinho da mamãe”.
Contextos pragmáticos envolvendo crianças e animais de estimação: “fez
dodói no dedinho, pobrezinha!”, “dá a patinha, vai pega a bolinha!”.

Jurafsky (1996) destaca algumas regularidades encontradas nos sentidos atribuídos
aos diminutivos, em uma proposta de temas universais associados a este grau: tamanho
pequeno; criança, descendência; gênero feminino; menor por comparação; imitação;
intensidade/exatidão; aproximação; individualização/partitivo.
Careno (1998), por sua vez, considera o diminutivo como uma complexa categoria
semântica que pode abranger dimensão pequena, afeição, gênero feminino, aproximação e
intimidade.
Um ponto interessante, a ser mencionado, é a possível capacidade da idéia do
diminutivo ser aplicada também aos verbos, pois os sufixos -icar, -ilhar, -inhar, -iscar e –
itar,
são também portadores de significado diminutivo associado à idéia de
freqüência ou repetição. Bebericar implica, pois, por exemplo, repetidos
pequenos goles; saltitar repetidos pequenos saltos; petiscar significa
comer um pouco, várias coisas; chuvinhar129 – chover pouco e a miúdo
(HLIBOWICKA-WĘGLARZ, 1998, p. 151).
Assim, pode-se perceber que o diminutivo é um assunto que não esgotou todo o
seu potencial de pesquisas e muito ainda resta para se descobrir sobre este item. No
entanto, a idéia comum que o diminutivo é automaticamente relacionado a pequenas
dimensões é colocada a prova nos estudos anteriormente revistos.
O que dizem as publicações jornalísticas
Percebe-se uma tendência atual, dos jornais e de seus encartes e seções infantis, de
questionar o uso do diminutivo, em um início de reflexão sobre este aspecto da linguagem.
No entanto, a impressão que transparece é que os textos jornalísticos não têm revisores que
se preocupem com outros aspectos lingüísticos que não sejam unicamente a adequação à
norma padrão de prestígio. Em uma reportagem sobre publicações voltadas para o público
infantil, veiculada na Internet, uma editora comenta que a linguagem utilizada não pode
subestimar a capacidade da criança leitora e que “Às vezes usamos o diminutivo, mas tentamos
evitar.” Já outra editora faz uma afirmação contraditória “Muita gente acha que escrever para
crianças é escrever tudo no diminutivo. Na Princesas, a gente até se permite porque é uma coisa pra
menina”, demonstrando claramente sua mentalidade que atribui ao gênero feminino o uso
129
O artigo é em português europeu. No Brasil se diz, mais comumente, chuviscar.
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do diminutivo. Das publicações citadas na reportagem, apenas uma revista tem a
supervisão de duas pedagogas, no entanto nas outras publicações não há nenhum cuidado
lingüístico, pois segundo uma jornalista “A linguagem é totalmente jornalística” (ORSOLINI,
2006).
O que dizem os pais das crianças
O primeiro contato, que uma criança tem com a linguagem, é com seus pais,
considerando aqui também como pais seus cuidadores e responsáveis, e este fato mostra a
importância das interações entre criança e pais. De fato, a maioria dos pais não está atenta
para a qualidade e, em alguns casos, quantidade de interações lingüísticas que estabelece
com seus filhos. É tido como senso comum que a linguagem está carregada de diminutivos
quando é dirigida a crianças pequenas, mas esta afirmação não parece ser de fácil
verificação, já que muitos pais não estão conscientes da maneira com que dirigem sua fala
às crianças pequenas. Em uma entrevista com pais de crianças pequenas, até três anos de
idade, uma das mães disse que utilizava pouco o diminutivo, porém, logo adiante,
exemplificando em que situações o utiliza diz: “Brincando (- Vamos fazer uma comidinha, pra dar
pro paizinho, quando ele chegar da escola!), corrigindo (-Por favor, não faça isso pra mãezinha, ou –
Porque está fazendo isso pra mãezinha? Vamos comer todo o papazinho agora, nada de tv!)”. Brincar e
corrigir são duas atividades corriqueiras e muito comuns no dia-a-dia das crianças, se o
diminutivo é usado nestas ocasiões ele não é pouco utilizado. Em outro trecho, a mesma
mãe, diz que nunca usa o diminutivo em situações muito sérias, porém, logo a seguir,
explicando o porquê de usar palavras no diminutivo com sua filha, relata que é para “tornar
a situação menos traumática, mais delicada, mas sem deixar de dar a devida atenção para o momento. O
diminutivo me dá idéia de delicadeza”, deixando, assim, transparecer uma certa confusão entre
tornar uma situação menos traumática e esta mesma situação não ser séria.
Metodologia
Foi investigada a seção Jardim do Diário, de uma página, do jornal Diário
Gaúcho, que circula com a freqüência de edição única de sábado e domingo. Não há
referência de responsável ou redator da seção. Foram coletadas sete edições e as frases
que continham os diminutivos foram numeradas, por ordem cronológica. As palavras
foram analisadas de acordo com sua veiculação da idéia de pequenez ou não e, se não
for o tamanho diminuto o determinante, em que outro sentido pode ter sido empregado.
Partindo dos autores estudados foi feita uma análise individual de cada palavra, levando
em consideração o contexto no qual está inserida.
Análise dos resultados
A palavra, no diminutivo sintético, mais utilizada foi Amiguinhos (do Diário, sete
vezes) e introduz a subdivisão inferior da página e que constou em todas as edições
coletadas. Nesta subdivisão do jornal, são publicadas fotos de crianças com seus nomes e
cidades de origem. Provavelmente este amiguinhos refere-se, especificamente, a crianças e a
sua pequenez.
Na parte superior esquerda, em cinco edições, uma história em quadrinhos foi
publicada. Baseada em Ronaldinho (cinco vezes) Gaúcho, o jogador de futebol bem
conhecido, e desenhada e escrita por Maurício de Souza.
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Ensinando o jogo da forca, Bonequinho (três vezes) surge várias vezes no texto. Pode
indicar o tamanho, mas se fosse substituído por boneco não alteraria o sentido das
instruções. Conclui-se, então, que foi usado por se considerar mais adequando às crianças.
Amiguinho (duas vezes) parece ser utilizado como afetivo, pois poderia ser um
adulto que iria jogar com a criança o que o jornal propõe.
Para demonstrar o tamanho pequeno, pode-se citar Tracinhos (uma vez), Tirinhas
(duas vezes) e Bolinhas (quatro vezes).
Como demonstrativo, não só de uma suposta linguagem atribuída às crianças, mas
também de aproximação com animais de estimação tem-se Cachorrinho (uma vez) e Gatinhos
(uma vez). No mesmo contexto, Passarinho (uma vez) é uma forma especializada, que
nomeia qualquer ave bem pequena.
Cestinha (uma vez), Bichinho (uma vez), Bolinhas [de gude] (uma vez) e saquinhos (uma
vez) poderiam ser substituídos por suas formas não-diminutivas sem ocasionar nenhuma
perda do sentido das frases. Seu uso parece justificar uma linguagem que se considera mais
apropriada a ser dirigida a uma criança, na visão dos redatores.
Ser engraçado é ser divertido, hilário, que faz rir ou estranho, inesperado, porém ser
Engraçadinhos (uma vez) muda totalmente a significação, tomando um sentido carinhoso, de
algo querido, bonito, agradável. A mudança semântica é notável nesta palavra.
Revistinhas (uma vez) é como normalmente nos referimos às revistas infantis,
principalmente às revistas em quadrinhos, trata-se, portanto, de uma assimilação.
Observar um Tempinho (uma vez) é observar por pouco tempo, em vez de
diminuição, aqui, a duração é marcada pelo diminutivo.
Foram constatadas trinta e sete palavras no diminutivo sintético, no período de
coleta de dados, distribuídas em dezessete termos diferentes. Esta quantidade perfaz mais
de cinco termos, no diminutivo, por edição. Uma ocorrência bastante alta, se
considerarmos que cada edição tem uma página somente.
Considerações finais
Foi detectada na análise do encarte infantil uma variedade de possibilidades do
emprego do diminutivo, além da tradicional relação com a característica de pequenez,
corroborando as pesquisas dos lingüistas. Não é possível afirmar que a maioria dos
diminutivos foi utilizada de uma só forma, pois estudos sobre este elemento semântico não
são abundantes. Várias podem ter sido as motivações para que o diminutivo tenha sido
utilizado na seção infantil, uma conclusão mais detalhada seria mais precisa com um
período de pesquisa maior, porém existem evidências de que há uma relação de diminutivopequenez-criança (ser pequeno e delicado). A própria seção infantil deste jornal, inteira, é
um intrigante objeto para pesquisa sobre o material lingüístico que está sendo oferecido às
crianças de classes menos favorecidas economicamente. Uma visão mais crítica poderia
detectar alguns pontos a serem melhorados em um direcionamento a crianças, por
exemplo, na parte inferior da página, existe sempre o ‘Amiguinhos do Diário’ que são fotos de
crianças com seus nomes e cidades de origem.. Será que isto vai acrescentar algo para as
próprias crianças leitoras ou serve, somente, como ponto de exibicionismo para os pais?
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Como as próprias crianças recebem este tipo de linguagem dirigida a elas? Várias
possibilidades de investigação surgiram deste estudo inicial.
A preocupação com a linguagem veiculada em jornais é recente e os cadernos
infantis são uma fonte de investigação sobre a linguagem pública dirigida á criança. Outras
possibilidades apontam para os programas infantis recreativos e educacionais, exibidos na
televisão. A assessoria da área lingüística é ainda desconhecida nos jornais de ampla
circulação, mas esta idéia deveria ser considerada visando o aperfeiçoamento não só dos
cadernos infantis, mas também de toda linguagem pública dirigida às crianças.
REFERÊNCIAS
CARENO, Mary Francisca do. A Questão do Diminutivo no Português Vernáculo do
Brasil. In: III EELA, 1997, Assis/SP. Anais III Encontro de Estudos Lingüísticos de Assis
(EELA). São Paulo: Arte& Ciência, 1998. v. 1. p. 35-40.
CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2005.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
HLIBOWICKA-WĘGLARZ, Bárbara. Recursos Morfológicos de Integração Aspectual na
Língua Portuguesa. Romanica Olomucensia VII. Philologica 71. Acta Universitatis Palackianae
Olomucensis.1998.
HOLLANDA, A. B., 1986. Dicionário da Língua Portuguesa. 2º ed., São Paulo: Nova
Fronteira.
JURAFSKY, Daniel. Universal Tendencies in the Semantics of the Diminutive. Language,
Volume 72, Issue 3 (Sep., 1996), 533-578.
KING, K.A.; MELZI, G. (2004). Intimacy, imitation and language learning: Spanish
diminutives in mother-child conversation. First Language, 24(2), 241-261.
LEE, Seung-Hwa. Sobre a Formação de Diminutivo do Português Brasileiro. Revista de
Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 8, n. 1, p. 113-123, 1999.
LUFT, Celso. Gramática resumida. São Paulo: Globo, 1989.
MATEUS, Maria Helena Mia et al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial
Caminho, 2003.
MELZI, G.; KING, Kendall. (2003) Spanish diminutives in mother-child conversations.
Journal of Child Language, 30: 281-304.
NOVERÓN, Jeanett Reynoso. 2005. Procesos de gramaticalización por subjetivización: El
uso del diminutivo en el español. In Selected Proceedings of the 7th Hispanic Linguistics
Symposium, ed. David Eddington, 79-86. Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project.
ORSOLINI, Márcio. Mora na pedagogia. Faculdade Cásper Líbero. Disponível em:
<http://www.facasper.com.br/jo/reportagens.php?tb_jo=&id_noticias=356>.
Acesso
em: 08 jun. 2006.
TUFANO, Douglas. Estudos de língua portuguesa: gramática. São Paulo: Moderna, 1985.
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O TEXTO PUBLICITÁRIO NA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO
Maurini de Souza Alves Pereira
Jornalista e professora universitária
Doutoranda em Estudos Lingüísticos
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
Este artigo aponta o anúncio publicitário como pertinente à análise proposta pela Teoria da
Enunciação para o estudo do sentido do texto. Baseando-se em Eduardo Guimarães, para
quem a enunciação é acontecimento, o trabalho apresenta o enunciado como
interdiscursivo, polifônico, responsável pela produção de temporalidade e definidor do
sentido argumentativo do discurso.
PALAVRAS-CHAVES: texto publicitário, Teoria da Enunciação, lingüística textual
ABSTRACT
This article shows the advertising text as pertinent to the proposed analysis for the
Enunciation Theory with respect to the study of the meaning of the text. It was based on
Eduardo Guimarães, for whom the articulation is event. The work presents the enunciation
as interspeech and polifonic. It is responsible for the defining production of temporality
and of the argumentativ direction of the text.
KEYWORDS: advertising, enunciation theory, textual linguistic.
Apresentando texto “como um lugar de dispersão de discursos que procuramos
poder apreender pela noção de recorte”130, Eduardo Guimarães demonstra como a relação
da língua com os interdiscursos que perpassam o “acontecimento de linguagem131”, ou
enunciação, é fundamental para o estudo da significação. Este artigo procura ratificar essa
posição através da análise do título da propaganda132 do Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento veiculado pela revista Veja de 6 de dezembro de 2006.
A objetividade é uma característica do texto publicitário; ele deve ter “clareza,
concisão, precisão e vigor133”. Dizer o máximo no mínimo espaço ou tempo é um dos
desafios de quem trabalha com tal gênero. Essa incompletude programada só é possível
pelo que a Teoria da Enunciação chama de “passado” ou “memória do dizer” 134, referindose à memória acumulada responsável pelo entendimento e funcionamento dos recortes que
constituem os textos considerados, ilusoriamente pelos que fazem uso dele, completos. No
momento em que é formulada a enunciação, ela produz uma temporalidade: esse “passado”
GUIMARÃES, E. Texto e argumentação: um estudo das conjunções do português. Campinas: Pontes, 2001. p14.
“A língua funciona no acontecimento, pelo acontecimento” (p. 22) .Um estudo sobre o acontecimento na
linguagem pode ser encontrado em GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento em estudo enunciativo da
designação. Campinas: Pontes, 2002.
132Apesar de possuírem pontos diversos (vide BIGAL, Solange. Afinal, o que é criação publicitária? Ou (O estético
na publicidade). São Paulo: Razão Social, 1993. p. 21-23), tanto o termo publicidade quanto propaganda são
utilizados para designar o anúncio comercial. Portanto, os dois aparecerão como sinônimos neste artigo.
133 SIEVERT, Marilene. Texto publicitário. Dicas não são receitas. Blumenau: Edifurb, 2001.
134 GUIMARÁES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 2002.
P.67
130
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de vivências lingüísticas, e um “futuro” de possibilidades, também criados lingüisticamente,
que complementarão o discurso e permitirão a comunicação.
A funcionalidade do anúncio nesse universo de mínimas palavras depende, portanto, dos
discursos que o antecederam na memória do consumidor, assim como dos discursos que se
formam a partir dele. Segundo Sievert, é a linguagem que possui a função de convencer o
receptor a aceitar o produto e tornar a propaganda eficiente, interagindo “com o universo
lingüístico de um público definido”135. A complexidade dessa interação é o foco deste
trabalho.
Os diferentes discursos de um título
O anúncio escolhido para esta análise ocupa uma página ímpar136 da revista Veja; ela
é dividida em duas partes, sendo a primeira, uma folha de livro, com aspecto antigo,
contendo título e texto. Ao lado direito, três fotos – um rapaz e uma moça tomando café
em suas respectivas carteiras escolares (pode ser uma biblioteca ou sala de estudos), e sobre
a do homem, um livro aberto, parecido com o que contém a página sobre a qual está o
anúncio; um ramo de café com as sementes vermelhas, cuja cor quebra os tons pastéis de
bege, caramelo e amarelo de toda a composição; e, por último, uma xícara com café, em
que o vapor expelido é responsável pelo efeito sinestésico da propaganda. O texto é longo
para os padrões publicitários – vinte e quatro linhas, valorizando as características positivas
do café e informando quanto a seus benefícios.
A atenção do consumidor é atraída pelo título, destacado, antecedendo o texto.
Título é considerado, por nomes respeitados no universo publicitário, o ponto mais
importante do anúncio; para David Ogilvy, que escrevia cerca de dezesseis títulos para cada
anúncio, ele representa oitenta por cento do trabalho de um publicitário para a divulgação
de uma marca ou produto137 e é lido cinco vezes mais que o texto. Deve ser atraente, curto
e explorar ao máximo a objetividade apontada acima, ao que Menna Barreto chama de
economia138. Portanto, ideal para um estudo da “língua em funcionamento139”, a
enunciação.
Santos Dumont tomava. Monteiro Lobato tomava. Carmem Miranda tomava.
JK também.
É, o café estimula mesmo o cérebro.
SIEVERT, Marilene. Texto publicitário. Dicas não são receitas... p.24. Esse livro é resultado da pesquisa, nível
de Doutorado, da autora.
135
A informação quanto a um anúncio ocupar uma página par ou ímpar num impresso é relevante porque,
normalmente, existe diferença de preços entre as páginas, e as ímpares são mais caras e melhor exploradas
pelas grandes agências. No caso da revista Veja, uma página de anúncio, determinada (em que a agência
determina a página), tem um custo de R$ 243.200,00, enquanto a indeterminada é de R$ 187.000,00. (Fonte:
http://veja.abril.com.br/idade/publiabril/midiakit/anunciar/precos2007.shtml). O fato do anúncio ter sido veiculado
em página ímpar sugere que ele é determinado ou que a agência é extremamente conceituada (o que é
ratificado pelo fato de prestar serviços ao governo federal).
136
OGILVY, David. Confissões de um publicitário. Trad. J.B.Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1976. P. 101. Essa
obra, da primeira metade do século XX, é considerada até hoje um dos grandes livros sobre o assunto. Ogilvy
é citado por Washington Olivetto como o “Rolls Royce da Publicidade”(OLIVETTO, W . Os piores textos de
Washington Olivetto. São Paulo: Planeta do Brasil, 2004).
137
138
BARRETO, Roberto Mena. Criatividade em Propaganda. São Paulo: Summus, 1982. p. 201.
139
GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas: Pontes, 2002. p.22
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O texto acima apresenta quatro nomes destacados no cenário brasileiro. Um grande
inventor, um escritor conhecido nacionalmente, uma cantora que se tornou sinônimo do
país no exterior e um dos presidentes brasileiros de maior popularidade em todos os
tempos. São quatro símbolos da história do Brasil, conhecidos e admirados por grande
parte da população e, conseqüentemente, pelos leitores da revista. Os três primeiros nomes
formam frase com o verbo “tomava”, e o quarto, com “também”, recurso referencial que
substitui a quarta repetição de “tomava”.
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o verbo tomar é transitivo direto,
isto é, requer um complemento. Guimarães afirma que ”na língua estão formas que,
quando utilizadas, marcam a própria enunciação do enunciado”140 . Quando se lê, portanto,
“Santos Dumont tomava”, essa forma verbal cria um “depois”, que é a pergunta “tomava o
quê?”. No contexto publicitário, essa questão é responsável por levar o receptor a
continuar na página – é o que Sandmann141 coloca como “desvio de uso generalizado”, de
que a publicidade se utiliza para “chocar” e chamar a atenção do consumidor. Nas três
orações subseqüentes, em vez de uma solução – o complemento verbal – encontram-se
mais três estruturas semelhantes.
Associando essa primeira parte do anúncio à análise proposta por Guimarães, para
quem a enunciação é o “acontecimento da linguagem”, Santos Dumont tomar produz, dentre
os elementos desse acontecimento, temporalidade – um passado e um futuro dos
enunciados. O antes (passado) é a rememoração de enunciações como, por exemplo,
Santos Dumont é o pai da aviação.
Estudado nos livros de história das escolas e repetido nas salas de aulas. Por esse
motivo, pode-se afirmar que, para essa enunciação, entra em cena um locutor para o qual
Eduardo Guimarães estabelece o lugar social de enunciador-universal por portar um
discurso científico142. Da mesma maneira, o acontecimento acima pode produzir a
rememoração de
Santos Dumont foi um grande homem. Ou
Santos Dumont é um exemplo de brasileiro. Ou
Quem tomava, tomava alguma coisa.
Nesse caso, o locutor é definido, segundo a posição social que ocupa, como
enunciador-genérico, apropriando-se da “caracterização de Berrendoner (1981) (...) cuja
perspectiva é a de um conjunto razoavelmente indefinido de pessoas, que têm em comum
uma certa ‘crença’ a propósito de um fato”143, ou, como Guimarães explicou em estudos
posteriores, “o que se diz é dito como aquilo que todos dizem”144
Essas diferentes vozes deflagradas pelo acontecimento garantem a
interdiscursividade no enunciado e demonstram que o sentido se constrói historicamente.
140
GUIMARÃES, E. Os Limites .... p. 50
141
SANDMANN, A. A linguagem da propaganda. São Paulo: Contexto, 1999.
142..Id.
p.25-26.
143
GUIMARÃES, E. Texto e argumentação:... p. 153.
144
GUIMARÃES, E. A semântica do acontecimento: ....p. 25.
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Isto é, ele é fruto dos discursos condicionados socialmente que vão se sedimentando na
memória dos envolvidos nessa significação.
Nesta mesma linha, acontecimento Santos Dumont tomava também abre um depois
ou futuro.dos sentidos, que podem ser enunciações do tipo:
Se Santos Dumont tomava, deve ser bom. Ou
Será que eu vou tomar? Ou
Se ele tomava, eu não vou tomar.
O acontecimento não está nesse futuro, mas ele produz essa temporalidade (“o que
temporaliza é o acontecimento”145). O depois é gerado a partir do enunciado, e por sua vez,
é gerador (passado) de outras enunciações (presentes), nessa “dispersão de discursos”
apontada no inicio deste trabalho como texto.
Nesse mesmo contexto se encontram as três enunciações seguintes do anúncio, com
Monteiro Lobato, Carmem Miranda e JK.
A argumentação está na língua. (Ducrot)
O título termina com: É, o café estimula mesmo o cérebro.
Esse acontecimento (enunciação) poderia ser analisado tal qual os anteriores, pois
também produz temporalidade, característica comum a qualquer enunciado. Outro ponto,
porém, não menos importante, será enfocado nesta seção.
Esse texto é útil para explicar por que, no Brasil, a semântica da enunciação possui uma
vertente que Guimarães chama de “semântica argumentativa146”, derivada de Benveniste e
Austin. Nela, o autor brasileiro dá um tratamento lingüístico à argumentação, defendendo
que a língua é munida de formas capazes de direcionar o argumento que “não é uma prova
para algo, mas uma razão que é dada ao interlocutor para aceitar uma conclusão”, seguindo
a linha de Ducrot e suas escalas argumentativas, inclusive no que tange ao desprezo às
condições de verdade ou de lógica dos enunciados – é na ampliação do conceito de sistema
apresentado por Saussure, mas ainda dentro dele, que esses autores fixam seus olhares e
estudos.
Orientar argumentativamente com um enunciado X é apresentar seu conteúdo
A como devendo conduzir o interlocutor a concluir C (também um conteúdo).
Ou seja, orientar argumentativamente é dar A como uma razão para se crer em
C.(Ascombre e Ducrot, 1976, p.13)). Neste sentido, orientar
argumentativamente é apresentar A como sendo o que se considera como
devendo fazer o interlocutor concluir C. (...) a argumentatividade é vista como
conseqüência do que se diz. 147
145
GUIMARÃES, E. A semântica do acontecimento: ... p.12.
146
GUIMARÃES, E. Os limites do sentido:... p. 49.
147
GUIMARAES, E. Texto e argumentação... p. 25.
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Em É, o café estimula mesmo o cérebro., estão os argumentos:
(A) O café estimula o cérebro.
(B) Café faz bem.
Apresentando, em (A), o discurso científico sobre o assunto e, em (B), a voz do
senso comum. Essas diferentes vozes – é um discurso polifônico – evidenciam a afirmação
de que “o sentido em um acontecimento são efeitos da presença do interdiscurso” 148, que
também gera a unidade na significação, pois o senso comum concorda com o discurso
científico quando se trata da utilização do café como estímulo do cérebro, e é nessa direção
que o argumento se constrói.
Considerando que o texto argumenta a favor do consumo do café, a conclusão a
que o locutor (publicitário) quer levar o leitor é Tome café ( É, o café estimula mesmo o cérebro,
portanto, tome café), que pode ser observada como a enunciação de mais um enunciador,
evidenciando que a dispersão de discursos que formam o texto é responsável pela dispersão
do sujeito da enunciação.
Ainda em É, o café estimula mesmo o cérebro., duas palavras são de extrema importância
para a orientação argumentativa do enunciado: o verbo É e o advérbio mesmo. “A
orientação argumentativa está marcada, como uma regularidade enunciativa, no
enunciado”149. Tanto o verbo quanto o advérbio têm a função de explicitar a posição dos
locutores e reforçar a argumentação. Voltando às escalas argumentativas de Ducrot, os
enunciados abaixo formam uma classe argumentativa (levam à mesma conclusão):
a’ É, o café estimula mesmo o cérebro.
a” O café estimula o cérebro.
C (conclusão): Tome café.
O argumento a’, através de E e de mesmo, apresenta a coesão com as enunciações
que o antecederam (neste caso, Santos Dumond tomava. Monteiro Lobato..., mas mesmo
em outro contexto, esses termos trabalham como reforço a argumentos pré-apresentados)
e remete com mais força ao “passado” que o acontecimento produz no momento do
enunciado, ao passo que a”, apesar de também agir como argumento em direção à
conclusão, atua de forma mais fraca.
Utilizando, em nível de representação, uma escala, conforme as escalas
argumentativas formuladas por Ducrot, a’ e a” seriam posicionados da seguinte maneira:
c

a’
a”
“E, para Ducrot, (...) os enunciados são de uma escala argumentativa quando trazem uma
marca na língua, em outras palavras, quando a relação de argumentação está na língua” 150
148
149
150
GUIMARÃES, E. Os limites do sentido:... p. 67.
GUIMARAES, E. Texto e argumentação... p. 28.
GUIMARÃES, E. Os limites... p. 51.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
ISSN 1809-3264
Guimarães utiliza essa posição de Ducrot para reafirmar que o argumento não é
dependente de circunstâncias ou da intenção da fala, mas sim das marcas lingüísticas no
próprio enunciado.
Conclusão
A análise proposta por Eduardo Guimarães na teoria da Enunciação se mostra
pertinente para o texto publicitário. O anúncio é formulado minuciosamente, visando a
objetividade e a possibilidade de fácil entendimento ou associação. Cada palavra é estudada
e avaliada pela sua eficiência na persuasão. Essas características levam em conta os
diferentes discursos que atravessam o texto e contam com a formação de temporalidade
(abertura do passado e do futuro) produzida pelo acontecimento para serem competentes.
Ainda pelo cuidado na seleção dos termos que comporão o texto, a publicidade
exemplifica a importância das marcas lingüísticas na determinação do sentido
argumentativo de um enunciado.
Referências bibliográficas
BARRETO, Roberto Mena. Criatividade em Propaganda. São Paulo: Summus, 1982.
GUIMARÃES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas:
Pontes, 2002. P.67
GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas:
Pontes, 2002.
GUIMARÃES, E. Texto e argumentação: um estudo das conjunções do português. Campinas: Pontes,
2001.
OGILVY, David. Confissões de um publicitário. Trad. J.B.Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1976.
OLIVETTO, W . Os piores textos de Washington Olivetto. São Paulo: Planeta do Brasil, 2004.
SANDMANN, A. A linguagem da propaganda. São Paulo: Contexto, 1999.
SIEVERT, Marilene. Texto publicitário. Dicas não são receitas. Blumenau: Edifurb, 2001.
Referência eletrônica.
http://veja.abril.com.br/idade/publiabril/midiakit/anunciar/precos2007.shtml
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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UMA SOMBRA FEMININA NO ENCONTRO DA IMAGINAÇÃO:
CAEIRO EM FOCO
Miralva Ribeiro da Silva
Especialização em Teoria e História Literária, na UESB
Fani Miranda Tabak
Professora adjunta de Teoria da Literatura da UESB
Resumo: Este trabalho discute a presença da imaginação, vista a partir da construção de
uma sombra feminina, em Alberto Caeiro. Examina-se, ainda, a relação dessa presença com
a poética pessoana e com uma possível estrutura comum para a despersonalização.
Palavras-Chave: Alberto Caeiro; imaginação, imagem feminina.
Abstract: This article discusses the presence of imagination, seen from the feminine
shadow, in the poetic of Alberto Caeiro. We examine the relation between this shadow and
the poetic project constructed by Fernando Pessoa and with its own notion of
depersonalization.
Key-words: Alberto Caeiro; imagination; feminine image.
A poética de Fernando Pessoa tem sido alvo de inúmeras reflexões e constitui,
historicamente, um dos processos inventivos mais curiosos em literatura de língua
portuguesa. Sua prática atesta o caráter esfacelado, cindido, multiplicador de
personalidades, que de alguma forma encontrou estrutura através das vozes individuais que
foram, aos poucos, instituindo seu próprio lócus poético. Conseqüentemente, a práxis
pessoana desdobrou o conceito de ego na construção poética, tornando possível a
existência das “ficções do interlúdio”, representadas por dissonantes presenças humanas
elaboradas em sua natureza e forma características.
Como a despersonalização é que determina a sua poética, constituiu Pessoa uma
espécie de teoria que apresenta a poesia lírica com uma variação em graus, definindo o
nível de emoção de acordo com o estilo de cada poeta. O primeiro grau é apontado como
aquele em que o poeta, de temperamento intenso e emotivo, se expressa de forma
espontânea ou refletida. O segundo grau da poesia lírica diz respeito àquele em que o
poeta, quanto mais imaginativo e intelectual, apresenta-se mais culto e não possui
simplicidade de emoções. O terceiro grau é aquele em que o poeta, mais intelectual ainda,
começa a despersonalizar-se e a fingir o que sente, porque consegue ter um alto nível de
compreensão dos seus sentimentos. O quarto grau, bastante raro e muito mais intelectual e
imaginativo, representa aquele em que o poeta despersonaliza-se por completo. Desse jogo
entre o emotivo e o racional resulta um lirismo com bases na inteligência, mas preocupado
em preservar a emoção.
Para abordar o fenômeno de uma possível construção de imagens femininas, é
preciso que se lembre que a visão acerca dos heterônimos, geralmente, apresenta-se como
uma manifestação do processo ligado à criação de personagens. A essa peculiaridade,
associa-se, ao mesmo tempo, o fenômeno da despersonalização e o envolvimento do
mesmo com a compreensão poética do autor.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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O fato de multiplicar-se em “várias vidas”, com vozes, filosofias e mundos
diversificados, tendo o ato de fingir como sinônimo de criação, revela a inegável
manifestação de sua busca pela perfeição, seja na produção poética, seja na teoria e, até
mesmo, na prosa, corroborando, portanto, a constante tensão entre a inteligência e a
emoção.
Em um de seus poemas mais conhecidos, Autopsicografia, espécie de “profissão de
fé”, vislumbra-se a revelação de um projeto criado pelo autor para instituir a tensão entre a
presença da imaginação e o espírito racional do construto artístico. Tal processo ocorre
através da revelação de uma imaginação, produto da genialidade alcançada sob o exercício
contínuo, e do fingimento como expressão da gênese criadora. O fingimento poético,
conseqüentemente, não se limita à mera simulação de sentimentos, mas reitera a
manifestação do próprio ato de criação.
Autopsicografia desenvolve, dessa forma, três ações fundamentais para a
compreensão do fazer poético. Na primeira parte, ou primeira estrofe, tudo se direciona a
uma dor fingida, imaginária, que, entretanto, provém de uma dor real, “A dor que deveras
sente”, mas que jamais poderia ser considerada válida no plano literário, pois é apenas
através da imaginação que o poeta atinge o plano estético, ou seja, a verdadeira poesia. O
rastreamento da dor real, no entanto, contribui para o aspecto confessional presente nas
múltiplas construções das ficções, não como projeção autobiográfica, como já esteve em
discussão, mas, acima de tudo, como expressividade de um poeta dramático, que sempre
afirmou ser.
Na segunda parte (segunda estrofe), o poeta faz menção a uma dor que é
interpretada de acordo com o ponto de vista do leitor, que pode ou não se identificar com
a dor imaginada pelo poeta. Finalmente, há uma síntese do pensamento pessoano reiterado
pela antítese da razão, enquanto instituição criadora do drama fingido, e do coração,
correspondendo à imaginação vivida pelo eu na busca da dramatização da dor real em uma
dor imaginária, ou simulada.
Se o processo de criação em Pessoa está diretamente ligado ao ato de fingir,
convém pensar-se na forma com que uma imagem feminina pode constituir uma ex-tensão
desse processo. De acordo com Alexei Bueno, na apresentação da coletânea dos Poemas de
Amor, de Fernando Pessoa (2001), a temática amorosa constitui escassa presença na vasta
obra do autor. A leitura dos poemas, ainda, revela-nos o fato de que a imagem da mulher
faz-se notoriamente rara, como um vago relance, sem muita ênfase existencial.
Ainda que escassas, as referências às imagens femininas aparecem tanto em Pessoa
ele mesmo quanto em sua criação heteronímica.
A sombra feminina: o poder da imaginação
Ao avaliar-se a presença de uma possível imagem feminina na obra de Caeiro, por
exemplo, tem-se de reportar diretamente ao Pastor Amoroso. Contrariando, aparentemente, a
busca contida no Guardador de Rebanhos pela objetividade absoluta, pela ação sensível dos
olhos diante da natureza, O pastor Amoroso constitui um momento raro em que o livre
devaneio pela idealização feminina constrói os símiles com os aspectos sensoriais da
natureza. Longe de uma busca pela clareza do olhar, o poema desdobra a presença do amor
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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como elemento fundamental para a contemplação da natureza, uma vez que a projeção
idealizada da mulher, no papel de pastora, detentora de índole pura, constrói os
paralelismos poéticos.
O PASTOR AMOROSO
QUANDO EU não te tinha
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza
Como um monge calmo à Virgem Maria,
Religiosamente, a meu modo, como dantes,
Mas de outra maneira mais comovida e próxima...
Vejo melhor os rios quando vou contigo
Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado ao teu lado reparando nas nuvens
Reparo nelas melhor –
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,
Por tu me escolheres para te ter e te amar,
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente
Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora
Porque ainda o sou.151
[...]
Os versos descrevem uma mudança de olhar acerca da natureza por parte do eu
poético, a qual assume uma conotação religiosa. A religiosidade se amplia e se purifica,
consideravelmente, a partir do momento em que ele percebe a existência do ser amado,
uma figura feminina, capaz de proporcionar-lhe um olhar mais dinâmico e vivo,
sensacionismo induzido. Essa indução revela o contraste entre o que foi e o que ainda é,
conforme atesta-se nos versos acima. O poema descortina, ainda, um outro momento da
poesia ortônima (Isto), em que o fingimento é equiparado à construção da imaginação. A
estruturação imaginária do feminino, entretanto, não deve deixar escapar a possibilidade de
que o paralelismo estabelecido entre o feminino e a natureza possa levar diretamente a um
exercício metalingüístico. Nessa perspectiva, O Pastor Amoroso organizaria o momento em
que o reconhecimento da despersonalização (Pessoa-Caeiro- eu lírico- pastor), enquanto
atividade necessária para a dramatização, esbarra na consciência da imaginação.
[...]
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na
[ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
151
PESSOA, 1980, p. 95-96.
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Toda a realidade olha para mim como um girassol com a
[cara dela no meio.152
[...]
O contraste incessante valida o surgimento da imaginação poética que, na visão de
Caeiro, é o mesmo que pensar. Em outros poemas, Caeiro considera a arte de pensar ou
imaginar como o estar doente dos olhos; aqui, paradoxalmente, a imagem da mulher só
se concretiza no plano imaginário, pois o próprio eu poético parece aprovar essa idéia,
devido ao abalo sentido perante a sua presença. Nesse jogo entre a emoção e o
pensamento instaura-se o desdobramento das sensações do eu poético, que parece não
saber ou não querer mais senti-las. A imagem feminina torna-se, portanto, análoga ao
ato de pensar, transformando-se em imaginação capaz de construir um sensacionismo
metafísico. A imagem da pastora idealizada concorre com a própria compreensão da
imaginação enquanto fenômeno de criação possível. A visível dissonância deste poema
no conjunto de Caeiro, apontada ironicamente por Reis como um defeito resultante da
doença, parece criar esteticamente uma função motivadora para a noção do fingimento
poético. A proximidade do eu lírico com o objeto (no caso a sombra feminina)
corrobora uma impressão de verdadeiro testemunho da alma acometida pelo amor,
ainda que essa sensação seja ofuscada pela própria compreensão de uma necessária
objetividade para inventariar a natureza.
[...]
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão
[nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.Quero
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
TODOS OS DIAS agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei de ser comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de
152
PESSOA, 1980, p. 97
153
PESSOA, 1980, p. 98-100.
[só
[novo.153
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Conseqüentemente, Caeiro vê-se indeciso ao optar pelo sonho ou pela realidade.
Como a imaginação triunfa, aqui, o sonho de conquistar o mundo das sensações vê-se
esvaziado de seu sentido original. A existência do outro, um eu feminino, o qual é visto
como um ser idealizado, modelo de perfeição, problematiza o sensacionismo puro, o olhar
sereno e calmo das coisas como são. Através do fingimento poético, a presença feminina
torna-se imagem de pensamento, permitindo a criação.
O pensamento, base existencial do amor, pode ser compreendido como ato de
fingir, pois esse sentimento só se dá através de uma emoção pensada, ou seja, uma emoção
fingida.
Convém lembrar, ainda, que ao poema em discussão segue-se o pastor amoroso perdeu
o cajado, em que claramente tem-se uma dissolução da metáfora do pastor, iniciada no
Guardador de Rebanhos. A alusão à perda do cajado e ao fato de que nunca mais o encontrara,
parece denunciar o início de uma corrosão da escrita de Caeiro. A imagem final, dando-lhe
extrema liberdade e um olhar limpo e claro, como sempre o almejara, denuncia,
possivelmente, uma volta à vida (E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos
pulmões).
Acompanhando esse pensamento, Jacinto Prado Coelho observa em Caeiro a
existência de duas personalidades: um poeta e, ao mesmo tempo, um pensador. O primeiro
pode ser desdobrado no segundo. As razões para isso dizem respeito à Natureza, em seus
estados de quase consciência, de glória e sensualidade, quando abarca o desejo prazeroso de
aceitar o mundo tal como ele se apresenta. (COELHO, 1969, p. 19). Dessa forma, Caeiro
consegue, ainda que titubeante, administrar as inúmeras possibilidades que o mundo
natural lhe submete.
Como poeta sensacionista que é, Caeiro tem em suas emoções, agora, o despertar
para novas emoções ou, quem sabe, uma nova criação. A sombra feminina atua como um
porta-voz da consciência, tão inspiradora quanto a natureza, para trazer de volta as coisas
como são. Ela é responsável pelo controle e descontrole dos sentimentos, os quais seriam,
porém, sempre norteados pela razão, tendo em vista que o processo de escrita é sempre um
processo inventivo.
O projeto de desaprender tudo, voltar à natureza sem nenhuma consciência, missão
impossível, esbarra finalmente na imaginação, na apreensão triste e inevitável do homem
que pensa. A sensação do real, enquanto realidade física, torna-se um sonho do estar no
mundo livre do pensamento, mas ao perder o “cajado”, o poeta volta a ser simplesmente
um homem, para quem a natureza representa uma manifestação de algo alheio a si mesmo.
Considerações finais
Pelo que foi brevemente exposto, pode-se notar que uma imagem ou sombra feminina,
que aparece no Pastor amoroso, estrutura uma compreensão não somente da idealização do eu,
enquanto metáfora, como a própria idéia da inacessibilidade feminina em relação à visão
masculina. Possivelmente, como se vê, essa inacessibilidade corrobore na criação de um
ambiente propício à imaginação poética e, conseqüentemente, à criação.
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A associação da mulher com a natureza, em Caeiro, intensifica, ainda, a idéia de um amor
sem consciência, sem a necessidade de definição do sentimento, possibilitando a sua não
compreensão, mas, apenas, sensação.
O sombreamento da imagem, possibilitado pela sua ausência enquanto fenômeno real,
estabelece, ainda, uma imagem da mulher associada ao fenômeno da androginia, uma espécie de
receptáculo em que se manifestam os anseios e desejos do eu lírico masculino. A androginia154,
intensificada pela distância real da imagem, propicia à imaginação a pluralidade do espetáculo
humano encontrado na obra de Pessoa. Nesse sentido, convém mencionarmos as palavras de
Virginia Woolf, que sempre se posicionou a favor da idéia de que todas as grandes mentes são
andróginas (WOOLF, 1985, p.128-129).
O fenômeno da androginia, possivelmente, seja um dos motivos pelos quais ocorra esse
sombreamento da imagem feminina, tanto em Caeiro quanto na perspectiva ortônima,
constituindo, assim, apenas um disfarce em meio às manifestações características do masculino e
feminino, apresentados em um mesmo “patamar de valoração”, ao longo do processo inventivo,
mas que tem se instalado de forma imperceptível, escamoteado pela genialidade criadora.
O projeto da aprendizagem sugerido por Caeiro, desde O Guardador de Rebanhos,
transforma-se, agora, em projeto de reconhecimento da heteronímia, desvendando, em última
instância, o caráter fictício e dramático da constituição dos egos emergentes. Conseqüentemente,
podemos vislumbrar em sua trajetória uma linha ascendente que levará do mais puro fingimento
da poesia, de simplesmente ver as coisas, a uma linha que decai na medida em que reconhece que
esse fingimento só é alcançável através da imaginação.
Nessa perspectiva, Alberto Caeiro pode ser compreendido como mestre, não somente no
seu exercício autobiográfico e diálogo induzido, mas, sobretudo, na estrutura que rege a sua
poesia, flagrando através da tensão entre o ser e o estar no mundo uma verdadeira compreensão
da gênese heteronímica.
REFERÊNCIAS
BUENO, Alexei. Organização e apresentação, In: Poemas de Amor, PESSOA, Fernando.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
COELHO, Jacinto Prado. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Editorial
Verbo, 1969.
PESSOA, Fernando. 1888 – 1935. Ficções do Interlúdio I: poemas completos de Alberto
Caeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
-----------, Fernando Pessoa- Obras em Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
No fenômeno da androginia, ocorre uma “fusão em que a mente é integralmente fertilizada e usa todas
as suas faculdades”. [...]. E Virginia Woolf reforça: “[...] Devemos retornar a Shakespeare, portanto, pois
Shakespeare era andrógino; e também o eram Keats e Steme e Cowper e Lamb e Coleridge. “ (WOOLF,
1985,p. 135).
154
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PLANEJAMENTO DE LÍNGUA PORTUGUESA: CONCEPÇÕES
SUBJACENTES
Mônica Cristina Metz155
(Graduanda em Letras/ UNICENTRO)
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo
(Docente do Dep. de Letras/ UNICENTRO)
Resumo: O planejamento anual expressa, por meio dos conteúdos, objetivos, metodologia
e sistema de avaliação, as concepções de linguagem e de ensino-aprendizagem que
fundamentam as atividades da disciplina de Língua Portuguesa em sala de aula. Nesse
sentido, o presente trabalho investiga, a partir de entrevistas com cinco professores e
análise de um planejamento, como ocorre a elaboração do planejamento anual de Língua
Portuguesa da 5ª série do ensino fundamental em escolas públicas de Guarapuava-PR, bem
como verifica que concepções de linguagem e de ensino-aprendizagem estão subjacentes a
esse documento.
Palavras-chave: planejamento, Língua Portuguesa, ensino fundamental.
Abstract: Through its contents the annual planning points out the aims, the methodology,
the methods of evaluation and the conceptions of language and of teaching-learning that
substantiate the activities of the Portuguese Language in the classrooms. Therefore, by
means of interviews with five teachers and by examining a plan, the present work aims to
research how the yearly planning of Portuguese Language is worked out in the fifth grade
of elementary education at public schools in Guarapuava-PR. It also checks the underlying
conceptions of language and of teaching-learning of this document.
Keywords: planning, Portuguese Language, elementary school
1. Introdução
De acordo com Antunes (2003, p.39), “toda atividade pedagógica de ensino do
português tem subjacente, de forma explícita ou apenas intuitiva, uma determinada concepção de
língua”. Desse modo, cada concepção define os caminhos de ser professor de língua
portuguesa, revelando uma postura educacional diferenciada.
A partir dessa proposição, o presente artigo busca investigar como ocorre a
elaboração do planejamento anual da disciplina de Língua Portuguesa da 5ª série de ensino
fundamental de escolas públicas de Guarapuava-PR, a fim de se verificar que concepções
de linguagem e de ensino-aprendizagem estão subjacentes a esse documento e se essas
harmonizam-se com a concepção defendida pelas Diretrizes Curriculares de Língua
Portuguesa para a Educação Básica do Estado do Paraná (doravante DCE’s, PARANÁ,
2006).
155
Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica da Fundação Araucária.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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Para tanto, iniciaremos expondo algumas questões acerca do planejamento anual
das disciplinas no contexto das DCE’s, seguindo com uma discussão sobre o processo de
construção dos planejamentos, a partir de entrevistas realizadas com professores de Língua
Portuguesa, e, por fim, procedemos à análise de um planejamento elaborado para o
trabalho com uma 5ª série do ensino fundamental.
2. O planejamento no contexto das DCE’s
No início do ano letivo, os professores das escolas públicas de nível fundamental e
médio do Paraná reúnem-se em semanas pedagógicas e de estudo para elaborar, dentre
outros documentos, o planejamento anual das disciplinas156 - documento no qual são
estabelecidas as linhas-mestras que norteiam todo o trabalho pedagógico, tendo como base
as DCE’s e o Projeto Político Pedagógico da escola.
As DCE’s “expressam o conjunto de esforços de professores, pedagogos, equipes
pedagógicas dos Núcleos Regionais de Educação e de técnicos-pedagógicos da SEED, na
construção de um documento orientador do currículo para toda a rede pública estadual”
(PARANÁ, 2006, p. 11). O documento foi construído ao longo de três anos, a partir de
debates realizados com o objetivo de favorecer a participação dos educadores do Estado
do Paraná nas discussões, e constitui-se de orientações teóricas para a ação pedagógica,
portanto, também para a construção dos planejamentos. Foi publicado e distribuído às
escolas da Rede Pública de Educação Básica do Paraná no ano de 2006 e, atualmente,
encontra-se em revisão, suscitada por novos e constantes debates.
No âmbito da disciplina de Língua Portuguesa, o planejamento anual revela, por
meio dos conteúdos, objetivos, metodologia e sistema de avaliação, as concepções de
linguagem e de ensino-aprendizagem que fundamentam o trabalho com a oralidade, a
leitura, a produção textual e a análise lingüística em sala de aula. A linha de pensamento
determinada pelas DCE’s para o ensino de Língua Portuguesa é a concepção
sociointeracionista, como se pode constatar no trecho seguinte: “As Diretrizes ora
propostas seguem por outro caminho porque consideram o processo dinâmico e histórico
dos agentes na interação verbal, tanto na constituição social da linguagem quanto dos
sujeitos que por meio dela interagem” (PARANÁ, 2006, p. 20).
Sob essa perspectiva, a linguagem é vista como interação, constituída
historicamente a partir das relações sociais, a qual requer um ensino-aprendizagem que leva
em consideração as experiências reais de uso da língua. Mas será que os planejamentos
refletem a concepção sociointeracionista de linguagem? Será que os professores têm pleno
conhecimento dessa concepção? Indagações que procuramos responder com essa pesquisa.
156
Por determinação da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, o planejamento agora passa a se
denominar plano de trabalho docente e pode ser organizado de forma anual, semestral, bimestral ou
mensal, conforme a preferência de cada professor. No momento da nossa investigação, a mudança da
organização do planejamento anual para plano de trabalho docente já estava sendo implantada nas escolas
utilizadas para a pesquisa, no entanto os documentos coletados encontram-se ainda na forma de
planejamento anual. Por esse motivo, o documento será referido como planejamento anual ao longo deste
trabalho.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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3. Entrevistas com os professores
As entrevistas foram realizadas com cinco professoras, sendo uma da escola W,
uma da escola X, uma da escola Y e duas da escola Z . Objetivou-se, com esse instrumento,
investigar o processo de construção do planejamento, assim como o envolvimento das
docentes com o processo. Para tanto, elaboramos um questionário que conduziu toda a
entrevista, realizada individualmente com cada professora, nas próprias escolas, em
horários de hora-atividade das professoras. O questionário consistiu das seguintes
perguntas:
1.
Qual é o ponto de partida para a elaboração do planejamento?
Que discussões são realizadas para a elaboração?
2.
O planejamento é modificado a cada ano? Por quê?
3.
Na elaboração do planejamento reflete-se acerca das dificuldades
dos alunos em séries anteriores?
4.
Em que medida o planejamento interfere no andamento das aulas?
5.
Em que os professores se embasam para a escolha dos temas e
conteúdos a serem trabalhados?
6.
Qual a perspectiva teórica que orientou a elaboração do
planejamento?
7.
Quanto tempo foi necessário para a elaboração do planejamento?
8.
Na sua concepção, é importante fazer o planejamento?
As professoras, em sua maioria, citam nas entrevistas as DCE’s como o documento
teórico orientador para a elaboração do planejamento, no entanto não fazem referência, em
nenhum momento, à concepção sociointeracionista de linguagem – perspectiva teórica
determinada pelas DCE’s para o trabalho em sala de aula, portanto também para a
elaboração do planejamento. Vejamos as respostas dadas pelas professoras157 para a questão
de número 6:




“o que está estabelecido nas DCEs” (prof.A);
“DCE e a partir da documentação do núcleo” (prof.B);
“A lei de Diretrizes e Bases e outros materiais, como artigos, referentes à educação” (prof. C);
“DCEs, PPP, Parâmetros Curriculares orientam. Além disso, os professores costumam reunir-se
e estudar aos sábados em formação continuada” (prof. D);
A prof. E disse que todos os professores da escola se reuniram no início do ano
durante três dias para a elaboração do planejamento, mas não soube responder à pergunta,
aconselhando a nos dirigir à pedagoga da escola para que esta nos explicitasse a questão.
Isso nos mostra uma falta de conhecimento das professoras em relação às
discussões teóricas vigentes para o ensino de Língua Portuguesa, visto que as DCE’s
são/formam um documento que se utiliza de teorias a fim de propor um norte a ser
seguido pelos professores, e não são por si só uma teoria.
157
Para melhor explicitação , denominaremos as professoras entrevistadas como prof. A (escola W), prof.
B (escola X), prof. C e prof. D (escola Z) e prof. E (escola Y).
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Antunes (2003) ao apresentar um conjunto de princípios que podem apoiar o
trabalho pedagógico sob uma perspectiva interacionista, defende que
um professor de português é, além de educador, lingüista e pesquisador
(como propõe Marcos Bagno em toda a sua obra), alguém que, com
base em princípios teóricos, científicos e consistentes, observa os fatos
da língua, pensa, reflete, levanta problemas e hipóteses sobre eles e
reinventa sua forma de abordá-los, de explicá-los ou explicitá-los. (p.
44).
Percebemos, no entanto, nas respostas, a existência de uma lacuna nas perspectivas
teóricas das docentes, pois a preocupação em citar documentos está acima da preocupação
com as bases teóricas que fundamentam tais documentos. A impressão que se dá é de que
há uma falta de conhecimento do conteúdo dos próprios documentos citados e, ainda, uma
idéia confusa em relação à fundamentação teórica e à documentação. Essa falta de
embasamento incide sobre a prática em sala de aula, pois “não pode haver uma prática
eficiente sem fundamentação num corpo de princípios teóricos sólidos e objetivos”
(ANTUNES, 2003, p. 40), fato que verificamos com as respostas das professoras dadas
também à questão de número 5, referente aos conteúdos:





“Temos conteúdos definidos como produção e interpretação de textos, leitura e estudo da gramática
que são trabalhados com o apoio de livros didáticos” (prof. A);
“Livros didáticos, textos variados, vídeos” (prof. B);
“Cada série/ano tem seus conteúdos praticamente determinados, até mesmo no livro didático”
(prof.C);
“Temas podem partir das conversas com os alunos ou de situações percebidas. Os conteúdos são
previamente escolhidos para elaborar e organizar os planejamentos” (prof. D);
“Primeiro o livro didático – embasamento, e conteúdos dados pelo núcleo” (prof. E).
Primeiramente, percebemos um equívoco na resposta da prof. A ao considerar
produção e interpretação de textos, leitura e estudo da gramática como conteúdos, ao passo que, de
acordo com as DCE’s, leitura, escrita e oralidade são práticas discursivas, pelas quais
perpassa a atuação da análise lingüística, e que devem ser trabalhadas em sala de aula pelos
professores de Língua Portuguesa e Literatura, para que realizem com os educandos o
objetivo primordial da disciplina de lhes “aprimorar as possibilidades do domínio
discursivo na oralidade, na leitura e na escrita, para que compreendam e interfiram nas
relações de poder, em relação ao pensamento e às práticas de linguagem imprescindíveis ao
convívio social” (PARANÁ, 2006, p. 29).
Outra questão observada é que apenas uma das professoras entrevistadas (prof. D)
faz referência a uma consideração da opinião dos alunos, revelando a existência de certa
interação entre aluno e professor, ao colocar que os temas podem partir das conversas com os
alunos ou de situações percebidas.
É possível constatar ainda o nítido apego das docentes ao livro didático (prof.A, B,
C e E). As DCE’s ao comentar acerca da dimensão histórica da disciplina de Língua
Portuguesa e Literatura, apontam:
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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A necessidade de suprir a demanda de vagas lançou para um segundo
plano a formação pedagógica, transferindo a responsabilidade do
planejamento das aulas para o livro didático, produzido industrialmente,
como orientador das atividades. A força e a preponderância do livro
didático retiraram do professor a autonomia e a responsabilidade quanto
à sua prática, de modo que foi desconsiderado seu conhecimento,
experiência e senso crítico em função de um ensino reprodutivista e de
uma pedagogia da transmissão (PARANÁ, 2006, p. 17).
E mais adiante, nos fundamentos teórico-metodológicos, destacam a postura em
relação ao livro didático:
Assumida ou ditada pelos livros didáticos, a prática de ensino seguiu – e
ainda segue – uma concepção de linguagem que não privilegia, no
processo de aquisição e aprimoramento da língua materna, a história, o
sujeito e o contexto, pautando-se, sobretudo, no repasse de regras e na
mera nomenclatura da gramática tradicional (PARANÁ, 2006, p. 20).
É nítida, portanto, a crítica do documento ao livro didático e ao demasiado apego a
este instrumento. Segundo as DCE’s, os professores não devem tê-lo como único
orientador nas aulas de Língua Portuguesa, pois contemplam, dessa forma, uma concepção
de linguagem não condizente com a concepção sociointeracionista, ao privilegiarem
aspectos gramaticais em detrimento de situações de uso.
Pudemos perceber, enfim, com as entrevistas, que as professoras têm certo
conhecimento acerca do documento em questão, mas não se pode perceber, ainda, a
existência de um domínio das bases teóricas que fundamentam o trabalho em sala de aula,
visto que estas não são referidas em nenhum momento. Isso se deve ao fato de não
ocorrerem leituras, estudos e discussões acerca de correntes teóricas que apontam para uma
forma de pensar a língua e a linguagem.
4. Análise do planejamento anual de Língua Portuguesa158
Tendo como base os princípios teóricos defendidos pelas DCE’s, analisaremos
partes de um planejamento coletado, tentando verificar se as concepções que subjazem aos
conteúdos, objetivos, metodologia e sistema de avaliação seguem por uma perspectiva
sociointeracionista da linguagem. Exporemos sobre algumas questões do planejamento,
conforme a sua estrutura, que se apresenta dividida, respectivamente, em objetivos,
conteúdos, metodologia, avaliação e bibliografia:
158
A proposta inicial do projeto de Iniciação Científica, do qual este artigo faz parte, era de realizar a
pesquisa em três escolas públicas de Guarapuava, para assim analisar três planejamentos diferentes e
obter uma visão mais abrangente do processo, porém, duas das escolas escolhidas possuíam o mesmo
planejamento, diferenciando-se apenas os nomes das professoras e das escolas. Por esse motivo,
realizamos a pesquisa em uma quarta escola, obtendo assim três planejamentos distintos. Por razões de
espaço, será analisado neste artigo apenas um planejamento: o da escola W e da escola X, que é o mesmo.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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4.1. Os objetivos e os conteúdos
Objetivos:
 Objetivo Geral: “Desenvolver a competência comunicativa dos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte,
leitor), isto é, a capacidade dos educandos em empregar adequadamente a língua nas diversas situações de
comunicação”.
 Objetivos Específicos: “Produzir textos narrativos, descritivos e poéticos, utilizando corretamente os
elementos estruturais para preservar as diferentes manifestações da linguagem; Identificar as idéias básicas dos textos
lidos para melhor compreensão do contexto social”.
Conteúdos:

“Fonética; Leitura; Interpretação de texto; Acentuação gráfica; Produção de texto descritivo e narrativo”.
O planejamento começa expondo um objetivo geral significativo que vai ao
encontro dos objetivos defendidos pelas DCE’s. Verifica-se, porém, que o primeiro
conteúdo de cada bimestre é de cunho gramatical, revelando que os conteúdos gramaticais
não são trabalhados em função da leitura e da produção escrita, mas como blocos isolados,
o que não favorece a realização do objetivo proposto.
Um dos pressupostos defendidos pelas DCE’s é o conceito de gênero discursivo,
retomado dos estudos bakhtinianos: “O gênero, antes de constituir um conceito, é uma
prática social e deve orientar a ação pedagógica com a língua, privilegiando o contato real
do estudante com a multiplicidade de textos produzidos e que circulam socialmente”
(PARANÁ, 2006, p 21). Percebe-se, no entanto, nos tópicos citados, a desconsideração
com os gêneros discursivos, afinal, como aponta Bonini (1998), descrição e narração são
“modos de organização do discurso, tipos textuais ou modos enunciativos de organização
do discurso no texto” e não são considerados “como elementos de comunicação, mas
como fórmulas abstratas” (apud LOPES-ROSSI, p.22, 2002). É claro que essas fórmulas
são estruturas que devem ser conhecidas pelos alunos, pois todo gênero discursivo é
organizado, também, conforme determinadas formas composicionais. O que não se pode é,
justamente, confundi-las com manifestações da linguagem, ao passo que são abstratas. Os
tópicos poderiam, portanto, indicar quais gêneros discursivos serão lidos/produzidos, pelos
quais seriam trabalhados os modos de organização do discurso em cada gênero.
Conforme as DCE’s, a leitura é um processo de produção de sentidos, uma prática
discursiva engajada à interpretação textual, não podendo, desse modo, ser confundida pura
e simplesmente com um conteúdo, ao passo que ela é um dos eixos centrais para o ensino
de Língua Portuguesa. E ainda, sob essa perspectiva, se nos propomos a apenas identificar
idéias básicas de textos lidos, não estamos pensando a produção de sentidos, ao passo que
identificar significa reconhecer o próprio, ou seja, o único, o verdadeiro. Na identificação,
portanto, não há produção de sentidos.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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4.2. A metodologia
A metodologia se apresenta no planejamento de forma descritiva e bastante
confusa. Tomemos como base os trechos seguintes:
“A Língua Portuguesa deve ser estudada de acordo com o cotidiano dos alunos, (...)
dando garantia de participação ativa na vida social e da cidadania desejada. O
vocabulário e a gramática são tomados, como ponto de ligação das palavras e
trabalhados de acordo com as regras. Propõem-se os conteúdos conforme a necessidade
da turma e professor, pois este já seleciona textos que venham a complementar os
estudos conforme a seqüência que se deseja para valorizar e qualificar o trabalho. Este
aluno será levado a elaborar seus pensamentos de forma escrita, acompanhando a
estrutura textual designada, (...)”.
A proposta inicia valorizando o contexto social dos alunos, evidenciando a
finalidade ativa da disciplina na vida social dos mesmos. Refletem-se, assim, pressupostos
defendidos pelas DCE’s. Entretanto, no que diz respeito à gramática, percebe-se uma
postura tradicionalista, visto que o objetivo é o repasse de regras, utilizando-se de textos
para complementar o seu estudo. A análise lingüística, prática a partir da qual “o texto
deixa de ser pretexto para se estudar a nomenclatura gramatical e a sua construção passa a
ser o objeto do ensino” (PARANÁ, 2006, p.28), não é referida em nenhum momento.
Para a prática de produção de textos, fica claro que a preocupação é com a
estrutura textual, onde mais uma vez os gêneros discursivos são ignorados. Além do mais,
não são mencionadas as condições de produção do texto: “em relação à escrita, ressalte-se
que as condições em que a produção acontece determinam o texto: quem escreve, o que, para
quem, para que, por que, quando, onde e como se escreve (PARANÁ, 2006, p.26).
A metodologia, portanto, apresenta-se contraditória ao propor uma finalidade ativa da
língua portuguesa e, ao mesmo tempo, sugerir atividades estruturais, isoladas de sua finalidade
social.
4.3. A avaliação
O tópico avaliação também é organizado de forma descritiva, dividido em dois
parágrafos. O primeiro apresenta-se em forma de citação, entre aspas, porém não há
referência ao autor do parágrafo. O segundo descreve as ações a serem seguidas no ato
avaliativo, das quais destacamos o seguinte trecho:
“As atividades avaliativas dar-se-ão através de observações variadas, interpretações de
erros, de formas variadas como formais, jogos, apresentações, representações,
seminários, (...). Devendo-se retomar todas as dificuldades observadas quando a
maioria da turma apresentar dúvida...”.
As DCE’s propõem ao professor que este não se restrinja a provas formais, mas
que seja feito o ato avaliativo por meio de observações e “instrumentos variados,
selecionados de acordo com cada conteúdo e/ou objetivo” (p.42), o que podemos observar
no planejamento em questão. No entanto, no que diz respeito à retomada de conteúdos,
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esta só será realizada quando a maioria da turma apresentar dúvidas, ou seja, se um terço dos
alunos, por exemplo, apresentarem dificuldades não haverá nenhuma retomada.
4.4. A bibliografia



“Linguagem – Criação e Interação. Cássia Garcia de Souza e Márcia Paganini Cavéquia.”;
“Gramática Essencial Ilustrada. Luiz Antonio Sacconi.”;
“DCE (Diretrizes Curriculares da Rede Pública da educação Básica do Estado do Paraná)”.
Apontamos três das referências presentes no planejamento, sendo que, com
exceção das DCE’s, todas são livros didáticos e gramáticas normativas. Isso mostra, mais
uma vez, que o trabalho é pautado no livro didático, o que vai ao encontro das respostas
das professoras nas entrevistas. As DCE’s são citadas nas referências, mas na prática
aparecem, ainda, muito superficiais. Destaque-se, também, que a maioria das referências
apresenta-se sem identificação da editora, local e data da publicação.
5. Considerações finais
Pudemos perceber, no decorrer das entrevistas e do planejamento analisado,
resquícios da concepção sociointeracionista da linguagem, mas há, ainda, uma falta de
conhecimento das discussões teóricas vigentes para o ensino de Língua Portuguesa por
parte das professoras, falta essa que reflete nos planejamentos anuais, pois se percebe
contradições entre o que dizem os professores, entre o que está exposto nos planejamentos
e entre os pressupostos defendidos pelas DCE’s. Constatamos, assim, que os
planejamentos são recheados de tópicos demasiadamente abrangentes e desconexos, sem
vinculação com as situações reais de uso da língua. No processo de elaboração, não
ocorrem leituras prévias e discussões, não se consideram as características e necessidades
dos alunos. Desse modo, o planejamento, que deveria ser um documento orientador das
propostas de ensino, torna-se um material pouco representativo para o trabalho com a
linguagem em sala de aula.
6. Referências bibliográficas
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial,
2003.
LOPES-ROSSI, Maria Aparecida Garcia. O desenvolvimento de habilidades de leitura e de
produção de textos a partir de gêneros discursivos. In:___Gêneros discursivos no ensino de leitura
e produção de textos. Taubaté-SP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2002.
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação – SEED. Diretrizes curriculares da rede
pública de educação básica do estado do Paraná. Curitiba, 2006.
Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, 170
Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
ISSN 1809-3264
A IMPORTÂNCIA DA PROFICIÊNCIA EM LIBRAS POR PARTE DOS
PROFESSORES DE SURDOS: RELATO DE PESQUISA-AÇÃO EM SALA DE
AULA DE SURDOS.
159
Patrícia Araújo Vieira
Mestranda em Lingüística Aplicada ao Ensino de L2
UECE – Universidade estadual do Ceará
Resumo: O trabalho com pesquisa-ação revela ao professor-pesquisador o que realmente
acontece numa determinada atividade em sala de aula, conforme Souza (2007). Neste artigo
relato minha experiência como professora de surdos. Nesse caso, estou diante de sujeitos
que não podem contar com a audição para o desenvolvimento da aprendizagem, além de
possuírem uma língua que não é oral-auditiva e sim visual-espacial. Portanto, o
conhecimento por parte do professor das necessidades desses sujeitos faz-se indispensável.
Palavras-chaves: pesquisa-ação; professor-pesquisador; surdez.
Abstract: Working with action research reveals to teacher-researcher what real happen
during an activity inside the classroom, according to Souza (2007). In this paper I relate my
own experience as a deaf teacher. In this case, I am in front of the subjects that cannot
count with listening ability to develop learning; beside the fact they own a non-audible
language but a spatial-visual one. Therefore teachers’ knowledge about these subjectstudents deficiency is very important.
Key words: Action Research; teacher researcher; deafness.
1
– Introdução
Os surdos brasileiros vivem em um país que tem como língua oficial o português
onde a maioria de sua população é ouvinte e falante desse idioma. Por terem a LIBRAS
(Língua Brasileira de Sinais) sua língua natural, os surdos brasileiros têm o português como
uma segunda língua (L2). Ao reconhecer a LIBRAS como a língua da comunidade surda
brasileira (2002), o país parece ter optado por uma perspectiva bilíngüe na educação dos
surdos.
A LIBRAS é classificada como uma língua, porque ao contrário do que se tem
falado sobre as línguas de sinais, elas não são resultado de uma patologia de linguagem,
conforme nos relatou Stokoe (1960 apud VIEIRA, 2004). Ela atende a todos os critérios
lingüísticos de uma língua genuína: no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma
quantidade infinita de enunciados. Essa língua utiliza o canal gestual-visual ou visualespacial. Esse aspecto privilegia o surdo de uma habilidade leitora visual muito mais rápida
do que a dos ouvintes. Pela visão também são capazes de aprender uma língua de sinais de
outro país com muito mais rapidez do que um ouvinte aprendendo uma outra língua oral.
Segundo Brito (2002)160 isso se deve a capacidade que os surdos têm em observar com
muito mais detalhes os gestos utilizados para a comunicação, além das expressões faciais e
corporais de outros usuários de língua de sinais.
159
Especialista no ensino de língua portuguesa pela UECE (Universidade Estadual do Ceará) e aluna do
mestrado em Lingüística Aplicada na mesma instituição. E-mail: [email protected]
160
Informação fornecida pelo site do INES (Instituto Nacional de Educação dos Surdos). Acessado em:
17/08/2002.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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A educação dos surdos já passou por duas propostas pedagógicas (oralismo e
comunicação total161). Hoje, as instituições educacionais brasileiras procuram divulgar e
estabelecer aos surdos uma educação bilíngüe (a língua de sinais e a língua oral do país).
Os professores de surdos vivem uma experiência bem diferente de professores de
uma língua estrangeira para ouvintes. Eles estão diante de sujeitos que não podem contar
com a audição para o desenvolvimento da aprendizagem, além de possuírem uma língua
que não é oral-auditiva e sim visual-espacial. Mediante essa problemática, tanto pedagogos,
como fonoaudiólogos e também lingüistas têm se inclinado ao desafio de ajudar essa
comunidade na proficiência leitora e no desempenho da escrita em L2.
Neste artigo, procuro relatar uma experiência de pesquisa-ação com meus alunos do
BIOS (Bíblico Instituto de Obreiros Surdo) em Maracanaú-CE, tendo como foco o ensino
da língua portuguesa como L2 a esses sujeitos.
2 - Pesquisa-ação como caminho para a auto-avaliação
A sala de aula é uma oficina, onde mestres e aprendizes aprendem um com
o outro, criam, renovam, modificam, sugerem novos caminhos; portanto, ela jamais pode
ser algo estático, sem desafios e sem autocrítica.
Até antes de a escola brasileira conhecer o trabalho com pesquisa-ação,
pesquisas em prol de melhorias para a sala de aula, geralmente, não eram realizadas pelos
próprios educadores, aliás, estes se tornavam intimidados pelos dados estatísticos que a
pesquisa quantitativa solicitava. Dessa forma, não era dada aos professores a oportunidade
de refletirem suas práticas pedagógicas.
Souza (2007) define a pesquisa-ação como um método de pesquisa, cujo principal
objetivo é investigar o que realmente acontece numa determinada atividade em sala de aula.
Thiollent (1998 apud SOUZA, 2007) diz que os dados deste tipo de pesquisa podem ser
coletados na própria sala de aula do professor, analisados e interpretados pelo mesmo.
O projeto Palínguas foi criado pelo professor e doutor José Pinheiro de Souza em
1999 no CMLA (Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada) da UECE (Universidade
Estadual do Ceará). O próprio autor o define como “um projeto de auto-observação
sistemática em sala de aula de línguas”. Nesse projeto, o professor-pesquisador não utiliza
“grades de categorias de análise preestabelecidas, nem questões específicas
antecipadamente escolhidas, nem mesmo hipóteses aprioristicamente formuladas. No
projeto Palínguas não há diferença entre o professor-pesquisador e o professor-pesquisado,
uma vez que se trata de um processo de auto-observação sistemática em sala de aula de
línguas” – Souza (2007, p. 57).
Oralismo – essa abordagem foi introduzida no Brasil em 1911, trazida pelo INES (Instituto Nacional de
Educação dos Surdos) com o objetivo de integrar o surdo à comunidade ouvinte; ignora a língua de sinais e
impõe a língua oral de seu país aos surdos. Comunicação Total – considera os aspectos cognitivos,
emocionais e sociais dos surdos, mas ainda leva em conta a língua oral. Para essa abordagem, qualquer
recurso estilístico visando facilitar a comunicação com as pessoas surdas é válido. O aprendizado de uma
língua não é o foco dessa proposta.
161
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O ciclo da pesquisa-ação utilizado no projeto Palínguas constitui-se de treze passos
metodológicos, que são: 1- Embasamento teórico I; 2- Investigação I; 3- Banco de dados I;
4 – Diagnóstico; 5 – Embasamento teórico II; 6 – Hipóteses; 7 – Plano de ação; 8 –
Intervenção; 9- Investigação II; 10 – Banco de dados II; 11 – Avaliação; 12 – Divulgação;
13 – Continuidade.
1. Descrição da sala de aula
No segundo semestre de 2007, iniciei o curso de leitura em língua portuguesa com
quatro surdos evangélicos do BIOS. O instituto tem o objetivo de fornecer ensinamentos
teológicos aos surdos dessa comunidade. Esses alunos já concluíram o ensino médio em
escola pública regular. Embora o instituto não tenha ainda um projeto pedagógico definido
e escrito, tenho adotado uma postura bilíngüe nas aulas de português visando a abordagem
comunicativa de ensino.
As aulas são ministradas em língua de sinais com textos na língua portuguesa. Os
gêneros textuais que já trabalhei com eles foram: biografia, autobiografia, quadrinhos e
tirinhas. Procuro usar mais textos com imagens, pois, conforme já foi dito, esses indivíduos
apresentam uma habilidade leitora visual muito mais rápida do que a verbal.
Mesmo eles já tendo concluído o ensino médio ainda são leitores iniciantes, uma
vez que o contato desses alunos com textos em língua portuguesa é muito restrito. Em uma
entrevista, feita por mim, eles responderam que não lêem jornais, revistas, livros. Algumas
vezes lêem pequenos parágrafos da Bíblia, mas argumentam que é muito difícil entender os
textos bíblicos.
O curso funciona aos sábados com uma duração de duas horas e trinta minutos.
Durante os encontros a leitura de textos em língua portuguesa tem sido o principal foco
das aulas. A primeira aula observada não foi a primeira aula do curso. Procurei, antes de
começar a filmar as aulas e analisá-las, conhecer a turma e penetrar no contexto da surdez.
Foram 3 aulas observadas e em todas contei com a participação de um pesquisadorobservador que pudesse me ajudar a analisar criticamente o meu desempenho pedagógico.
4. Metodologia da pesquisa
A primeira aula da pesquisa não foi gravada, pois como as aulas com os surdos
precisam ser filmadas, eu não tinha uma câmera a minha disposição naquele momento.
Pedi a ajuda do intérprete e coordenador do curso, que fez anotações sobre a aula,
observou detalhadamente cada momento em que os alunos não entendiam a minha
explicação sobre os textos e, ao final, apresentou em seu relatório sugestões que
contribuíram para o progresso das minhas aulas com os surdos. Durante essa aula, fiz um
diário com registros sobre a motivação dos alunos, as perguntas freqüentes, às vezes em
que não se manifestaram mediante perguntas formuladas por mim sobre o texto. Nesta
aula, trabalhei duas tirinhas e um quadrinho da turma da Mônica.
A segunda foi filmada, mas também solicitei a um colega do CMLA e pesquisador
da surdez para tornar-se o meu segundo pesquisador-observador. O mesmo também fez
registros de suas observações sobre minha aula. Essa aula foi posteriormente transcrita e os
dados confrontados com o relatório do pesquisador-observador. Observei os dados da
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primeira e da segunda aula e, após a análise, verifiquei um problema: as faltas de
conhecimento e de envolvimento da minha parte com a cultura surda e a língua de sinais
prejudicavam em alguns momentos o entendimento dos alunos nos textos em língua
portuguesa. Observei que ao me comunicar com os surdos muitas vezes eu
“aportuguesava” a LIBRAS. Uma vez detectado o problema, elaborei um plano de ação
com o objetivo de tentar alterar esses resultados.
Após um período de intervenção, modifiquei a estratégia utilizada na primeira e na
segunda aula: utilizei um intérprete que conhece bem a cultura surda e é proficiente em
LIBRAS.
Devido a problemas técnicos, a terceira aula não foi filmada, então, com o apoio do
intérprete, fiz anotações sobre as respostas dos alunos durante a leitura de tirinhas e
quadrinhos em L2.
5. Investigação I
Aula 1
Essa aula foi observada pelo intérprete que fez anotações tanto sobre o meu
desempenho usando a LIBRAS para interagir com esses alunos, como também registrou o
momento em que os alunos não entendiam as minhas perguntas sobre o texto. Ele me
relatou que muitas vezes a minha explicação não era tão clara para esses alunos e, em
outros momentos, eu demonstrava não entender os questionamentos que os alunos me
faziam usando a LIBRAS.
Por conviver há mais de 10 anos com surdos, o intérprete conseguia ver melhor do
que eu as expressões facias deles quando não entendiam minha fala, conseguia também
detectar em que momento eu “aportuguesava” a LIBRAS causando falhas na comunicação.
Texto 1 – tirinha da Mônica
No texto 1 – tirinha da turma da Mônica, os alunos demonstraram motivação para
a leitura do texto. Até o segundo quadrinho participaram, responderam satisfatoriamente às
perguntas. Houve uma boa interação entre professora e alunos. No terceiro quadrinho,
quando perguntei “Por que Mônica fala “quem cala consente!” tão feliz?”162 Eles pararam,
não tentaram responder e depois disseram que a Mônica era muito vaidosa. Nesse
momento, percebi que eles tentaram pegar as pistas contextuais e finalizar a interpretação
da tirinha, mas não analisaram o ditado popular usado por Mônica.
A expressão “Quem cala consente!” é naturalmente usada pelos falantes da língua
portuguesa, mas não pelos surdos. Aliás, não há ligação dessa expressão com o contexto
deles. Quando tentei interpretar a frase “Quem cala consente!”, usei no lugar do sinal
CALADO163 o sinal SURPRESA por não conhecer, naquele momento, um sinal para a
palavra “cala”. Na verdade, procurei “gestualizar” a palavra desconhecida para mim em
LIBRAS. Tentei várias vezes explicar o significado da frase em questão, mas os alunos
continuavam demonstrando que não estavam entendendo. A falta do conhecimento de que
os ouvintes diante de uma situação polêmica, de atrito, de negociação, quando se calam é
162
SOUSA, Maurício de. Mônica. Quadrinhos e tirinhas. Disponível em <www.monica.com.br>.
Acessado em 01/09/2007
163
Utilizei caixa-alta para as palavras que indicam um sinal na LIBRAS.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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porque concordam com uma das partes da negociação fez com que a interpretação final da
tirinha não atingisse o seu objetivo – o riso.
Aula 2
Essa aula foi filmada. A análise e a transcrição foram confrontadas com o registro
do pesquisador-observador. O texto estudado juntamente com eles foi uma biografia da
Mônica, personagem do Maurício de Souza.
Primeiramente, ouvi as informações que eles tinham da personagem, depois, pedi
que eles fizessem uma leitura silenciosa tentando buscar a confirmação das respostas dantes
fornecidas por eles. Após a leitura, entreguei um questionário escrito com perguntas sobre
o texto em estudo. Eles demonstraram dificuldades em entender as minhas perguntas.
Procurei sinalizar tais perguntas usando a língua de sinais e registrei como eles
interpretavam as perguntas. Esta seqüência mostra a minha pergunta inicial e a forma que
os alunos entenderam, depois de várias tentativas de aproximar a minha pergunta da
estrutura da LIBRAS para ser compreendida:
P- Em quem o autor se baseou quando criou a personagem Mônica?
As (alunos) – Maurício pensou em quem?
P- Onde a personagem Mônica aparecia antes de ter a sua própria revista?
As – Mônica no passado tinha revista ou Cebolinha tinha?
P- A Mônica de hoje é a mesma do tempo em que ela foi criada? Explique.
As – Mônica igual antes ou diferente? Por quê?
6. Identificação do problema
Após a análise dos dados da auto-observação, verifiquei que o fato de eu não ter
um contato intenso com os surdos, além de não usar a língua de sinais no meu dia-a-dia,
dificultava o entendimento desses alunos quando eu procurava explicar metáforas,
polissemias, ditados populares.
Embora as atividades de leitura desenvolvidas em sala de aula motivassem bastante
os alunos, eu necessito conhecer bem mais a LIBRAS ou, no caso de uma escola regular,
solicitar a presença de um intérprete para fazer a intermediação.
7. Embasamento teórico II: a importância da proficiência em LIBRAS por parte
dos professores de surdos.
William e Burden (1997 apud PORTELA, 2006) diz que o aprendizado de uma
língua é diferente de qualquer outro aprendizado, pois ela envolve questões sociais e
comunicativas. Para entender melhor o uso comunicativo de uma língua, faz-se necessário
compreender as questões que envolvem a competência comunicativa do aprendiz de L2.
Para ensinar leitura aos surdos é preciso, antes de qualquer passo, compreender as
necessidades dessa comunidade, suas limitações, sua língua, seus anseios. Quando
apresentamos um texto em língua portuguesa a um surdo sem, no entanto, permitir que ele
desenvolva competências comunicativas que o auxiliarão no entendimento desse texto,
provavelmente estaremos contribuindo para a desmotivação desse indivíduo, iniciante na
aquisição de uma L2, a progredir na leitura de textos em outra língua.
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O professor de língua portuguesa para surdos é o intermediário entre os textos em
L2 e surdos. Para um melhor desempenho dessa atividade, ele precisa conhecer bem a
estrutura da língua de sinais e a da própria língua portuguesa. Deve também ter
conhecimento das especificidades da comunidade surda e um bom relacionamento com os
indivíduos dessa comunidade.
8. Hipótese
Acredito que o desenvolvimento da proficiência leitora dos surdos não se resume
apenas a textos que apresentam imagens, nem gêneros que os motivem a ler, mas, e
principalmente, ao conhecimento do professor de L2 da cultura desses alunos e de sua
língua. Acredito que mesmo que haja conhecimento da língua de sinais por parte do
professor, a figura do intérprete é indispensável, principalmente no que se refere à inclusão
de surdos.
9. Plano de ação
Em face dessa hipótese, pedi a contribuição do intérprete de LIBRAS, que também
é o coordenador do curso BIOS, para interpretar a minha última aula da observação.
Posteriormente, seria verificado se com a presença de um profissional, que conhece e
convive há muito tempo com esses alunos, as dificuldades no entendimento dos
questionamentos sobre a leitura seriam superadas.
10. Avaliação e conclusão
Na última aula observada, continuei trabalhando com os gêneros: tirinhas e
quadrinhos. Pedi, como já foi dito, a presença do intérprete para fazer a mediação entre
mim e os alunos. Todos os alunos estavam presentes e com a mesma motivação
apresentada no início da pesquisa. Expliquei que nessa aula eu iria contar com o apoio do
intérprete, mas não ressaltei o motivo para que não houvesse nenhuma mudança no
comportamento dos alunos. À medida que eu ia fazendo perguntas sobre o texto, também
ia fazendo anotações sobre as respostas fornecidas. Observei que em algumas perguntas
que eu fazia, o intérprete fazia modificações no estilo da pergunta para que os alunos
entendessem melhor. Depois, ele me confirmou as mudanças. Essas mudanças,
provavelmente, não seriam feitas por mim com a mesma rapidez que ele, como conhecedor
do contexto desses alunos, o fez.
O texto lido pelos alunos era uma história em quadrinhos da turma da
Mônica. O título da história é: “Mônica e Marina em tantas expressões”164. Não há na
LIBRAS um sinal equivalente a “tantas expressões” e na língua portuguesa ela pode
apresentar mais de um significado. Meu objetivo é que eles descobrissem o significado
desse título pelo próprio texto.
Perguntei se eles poderiam levantar hipóteses do que o texto iria falar, mas eles
falaram que não sabiam o que significava o título. Após a leitura do texto feita por eles, um
aluno sorriu e disse que o título se referia as expressões faciais de Marina. E se levanta
contando toda a história na língua de sinais. O intérprete confirma dizendo que ele
entendeu a história. Dos quatro alunos presentes na sala, três responderam
164
SOUSA, Maurício de. Mônica. Quadrinhos e tirinhas. Disponível em <www.monica.com.br>.
Acessado em 01/09/2007
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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satisfatoriamente as perguntas textuais. Apenas um aluno demonstrou não estar
compreendendo bem o texto. Às vezes eu notava que ele só respondia depois que os
outros três respondiam, sempre concordando. Quando eu começava as perguntas por ele,
balançava a cabeça dizendo que não estava entendendo. Encerradas as perguntas e
percebendo que os outros três alunos tinham respondido bem aos questionamentos sobre
o texto, procurei explicá-lo ao aluno que não estava entendendo.
Percebi que com a presença do intérprete os alunos participavam mais, não ficavam
parados, nem distraídos. E não fingiam que não estavam entendendo. Procuravam sempre
dar um feedback às perguntas, assegurando-nos de suas certezas quanto às respostas. O
trabalho com pesquisa-ação me mostrou a importância do professor conhecer bem o
contexto comunicativo de seus alunos. Não basta fazer somente leituras sobre atividades e
estratégias que desenvolvam o desempenho leitor desses sujeitos, é necessário que o
professor de surdos esteja sempre estudando a língua de sinais e que também esteja
infiltrado na cultura surda.
Referências bibliográficas
BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma Gramática de Línguas de Sinais. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro: UFRJ, Departamento de Lingüística e Filologia, 1995.
____________________. In INES, A língua brasileira de sinais. Vol 3. Fascículo 7.
Disponível em <http//www.ines.org.br/inês_livros>. Acessado em: 17/08/2002.
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PORTELA, Keyla Christina Almeida. Abordagem comunicativa na aquisição de
língua estrangeira. Revista expectativa. Vol 5. n. 5. Disponível em <//erevista.unioeste.br/index.php/expectativa/article/view/84/254>.
Acessado
em
23/03/2008.
SOUZA, José Pinheiro de; HODGSON, Elaine C. Chaves; PINHEIRO, Jocely de Deus
(orgs.). Projeto PALÍNGUAS. Fortaleza: UFC, 2007
VIEIRA, Patrícia Araújo. O português como segunda língua: análise da proficiência
leitora de surdos cearenses. Fortaleza: UECE, monografia de especialização não-publicada,
2004.
Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, 177
Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
ISSN 1809-3264
A FORMAÇÃO DOS DIMINUTIVOS INHO E ZINHO NO PORTUGUÊS ORAL
DE SÃO BORJA
Patrícia Graciela da Rocha
Mestranda em Lingüística – UFSC
Resumo: Este trabalho pretende descrever o fenômeno de variação –inho e zinho,
tomando como base um corpus de língua falada, da cidade de São Borja – RS, com base
no banco de dados do VARSUL. Essa pesquisa se justifica pelo fato de que, embora os
morfemas diminutivos atuarem de maneira praticamente sistemática, eles operam com
morfes distintos. Sendo assim, este trabalho pretende analisar o que determina o
emprego de um morfe em vez de outro ou, pelo menos, identificar o grau de
produtividade de cada um deles e comparar com outros estudos já realizados sob o
mesmo escopo teórico.
Palavras-chave: variação, diminutivos, língua falada.
Abstract: This work aims at describing the phenomenon of variation –inho and –zinho
based on a corpus of spoken language from São Borja – RS of Varsul bank data.
Although the diminutive morphemes are realized in a systematic way, they operate with
distinct morphemes. Upon this perspective, this article objectives to analyses what
determines the use of a specific morpheme instead of another by identifying the degree
of productivity of each one and compare with other studies that have already realized
throughout the same theoretical approach.
Key Words: variation, diminutive, spoken language.
1. Introdução
Nosso idioma usa basicamente as terminações -inho ou -zinho para formar seus
diminutivos, enquanto no latim usava-se o sufixo -ulus, que chegou até nós em muitos
vocábulos de uso científico. Falamos em pelezinha e película, em globinho e glóbulo,
em rodinha e rótula, em corpinho e corpúsculo. Em cada par, qual é a diferença?
Ambos os vocábulos são diminutivos, mas o primeiro é de emprego corrente, enquanto
o segundo é mais erudito. O coelho da Páscoa traz ovinhos; no entanto, quando falamos
da reprodução humana, só aceitamos a forma óvulo. Nossa garganta tem uma úvula,
mas não uma uvinha, e os frutos não têm pezinhos, mas pedúnculos. Tudo isso faz parte
da maleabilidade da nossa língua, tanto que chegamos a fazer diminutivos de
diminutivos para enfatizar nossa intenção, sendo assim produzimos folheto – folhetinho,
pequenino – pequenininho, casebre – casebrezinho, riacho – riachinho/riachozinho,
entre outros. Além disso, em alguns lugares do país costuma-se diminuir o sufixo em
dinherin, bocadin, instantin, padin, poquin etc.
Este trabalho não pretende estudar todas as formas de se fazer diminutivos no
português falado no Brasil, mas descrever esse fenômeno de variação de –inho e zinho,
tomando como base um corpus de língua falada, da cidade de São Borja – RS, do banco
de dados do VARSUL. Isso porque, embora os morfemas diminutivos atuem de maneira
praticamente sistemática, eles operam com morfes distintos. Sendo assim, este trabalho
pretende analisar o que determina o emprego de um morfe em vez de outro ou, pelo
menos, identificar o grau de produtividade de cada um deles e comparar com os estudos
de Monteiro (1997), Emílio (2003), entre outros.
Os dados serão tratados pela metodologia da análise da variação lingüística, em
virtude da pressuposição de que a escolha dos morfes depende de fatores que não atuam
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de forma categórica. Sob essa perspectiva, o artigo objetiva: a) apresentar as formas de
sufixos diminutivos disponíveis na literatura; b) revisar estudos realizados sob o mesmo
escopo teórico; c) apresentar as variantes selecionadas para esta pesquisa; d) apresentar
e discutir os resultados da mesma; e) apontar algumas considerações acerca do tema
proposto bem como contribuições para discussões futuras.
2. As formas de sufixos diminutivos
A formação de diminutivo é muito produtiva no Português Brasileiro, que exibe
duas maneiras de derivar as formas de diminutivo das palavras não verbais (nomes e
adjetivos/advérbios): a sufixação -inho(a) e a sufixação -zinho(a). O primeiro sufixo é
acrescido aos radicais com vogais temáticas (-a, -o, -e, que representam, nas palavras
não-verbais, classes morfológicas, como número e gênero), enquanto o segundo sufixo é
acrescido aos radicais sem vogais temáticas. Na literatura, há divergências quanto à
explicação para os sufixos de diminutivo, que são tratados como: i) sufixos
derivacionais; ii) palavras fonológicas; iii) derivação por sufixação -inho(a) e
composição fonológica por sufixação -zinho(a); etc. (cf. Câmara, 1970; Leite, 1974;
Moreno, 1977; Brakel, 1981; Lee, 1992; Menuzzi, 1993, in Lee, 2000).
Os trabalhos mostram que, de modo geral, na formação de diminutivo, o
morfema -inho é afixado a uma forma não-verbal contendo marcador de palavra, como
ocorre em casa > casinha, bonita > bonitinha, e o morfema -zinho é afixado a uma
forma não-verbal sem o marcador de palavra, como se verifica em café > cafezinho, flor
> florzinha. Nas palavras proparoxítonas e nas palavras que terminam em sílaba
pesada165 o diminutivo é formado, predominantemente, através da afixação do morfema
-zinho, como em lâmpada > lâmpadazinha, número > numerozinho.
3. Revisão de literatura
Monteiro (1997) analisou a produção de –inho e –zinho em 60 inquéritos do
PORCUFORT – Português Oral Culto de Fortaleza, com 73 informantes distribuídos
em função de sexo, faixa etária e a modalidade de elocução ou registro. Para tal
pesquisa o autor selecionou fatores como: 1) a acentuação da base; 2) o número de
sílabas; 3) a classe gramatical; 4) a finalização da base; 5) o sexo do informante; 6)
registro e 7) faixa etária.
Os resultados da pesquisa indicam que o emprego de uma ou outra variante
nada tem a ver com o sexo do falante e que é difícil perceber algum indício ou
conotação de maior ou menor informalidade de uma forma sufixal face a outra. O autor
ressalta que, talvez, a freqüência dos diminutivos varia em função dos estilos de fala,
desde que os diálogos espontâneos podem ser mais carregados de afetividade do que a
fala cuidada ou monitorada.
O registro não foi considerado relevante na pesquisa de Monteiro (op cit),
embora houvesse certa elevação na probabilidade de uso da variante –inho nas
“Os ditongos podem ser analisados como núcleos de duas diferentes sílabas na estrutura
fonológica, isto é, no nível subjacente todas as semivogais, sendo que as vogais altas i e u
tornam-se glides durante o processo da silabificação. Mesmo não apresentando sílabas
travadas na estrutura subjacente, há razões para supor que pelo menos os ditongos finais
sejam derivados a partir da ramificação do núcleo silábico vindo a constituir sílaba pesada.”
(FAGGION, 2006)
165
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elocuções formais. A faixa etária também não atuou na escolha das variantes, o que, de
acordo com o autor, mostra que não há qualquer indício de um processo de mudança
lingüística, em Fortaleza, em que uma das variantes possa vir a substituir a outra.
Quanto à acentuação da base, os cálculos evidenciaram que, enquanto a forma –inho se
aplica de modo preferencial a vocábulos paroxítonos, é quase categórica a adjunção de –
zinho a palavras oxítonas. Já a influência do contexto fonológico se confirmou, desde
que, se a palavra terminar em ditongo, a probabilidade de receber a variante –inho é
quase nula. Por fim, o número de sílabas da base também distinguiu o comportamento
das variantes, ou seja, é mais provável que, nos monossílabos, a escolha recaia sobre –
zinho do que sobre –inho.
Emílio (2003) estudou os diminutivos como um fenômeno estilístico pertencente
ao sistema lingüístico – o uso do diminutivo x grau normal – sob a análise variacionista
a fim de identificar matizes expressivos. Para isso ela considera –inho e –zinho como
dimensão pura, dimensão + expressividade e expressividade pura, seu corpus são 12
entrevistas do banco de dados do Projeto VARSUL (6 de Curitiba – PR e 6 de
Florianópolis – SC). Os fatores selecionados pela autora foram: 1) morfossintáticos –
função sintática, classe gramatical, tipo de determinante; 2) semântico-pragmático e
estilístico – contexto temático (infância, trabalho, família, cidade/bairro, política, lazer e
outros), avaliação do matiz (positivo, negativo, neutro), remissão temporal (presente,
passado), componentes do diminutivo (expressivo, dimensivo + expressivo, dimensivo),
menção no contexto temático (primeira, retomada), referência contextual (ligada ao
falante ou a outro participante ligado a ele; a participante não ligado ao falante) e 3)
sociais – sexo, escolaridade e região.
Com isso a autora conclui que –inho é de uso muito mais freqüente que –zinho
como a maioria dos gramáticos e pesquisadores já afirmaram. Além disso, ela confirma
a hipótese de que o sufixo aparece mais com o sentido expressivo, sendo que 92% dos
casos são de matiz positivo, indicando tonalidade apreciativa, carinhosa, de cortesia etc.
o que vale dizer que a escolha de –inho ou –zinho é realizada, na maioria das vezes,
para expressar apreciação positiva em relação a algo, quando palpita no falante a
expressão do mundo por meio do sensível. Dito de outra forma, a função do diminutivo
na linguagem parece ter um caráter muito mais expressivo estilístico do que semântico
referencial, morfológico ou sintático.
A autora acrescenta ainda que o uso de –inho não é de caráter somente
expressivo, nem somente dimensivo, mas significativamente mais expressivo. Ou seja, o
falante ao fazer sua escolha, na maioria das vezes optaria por –inho matizado por ser um
recurso que permitiria elevar sentidos sobre o significado base.
Outro dado interessante do trabalho da autora é que, nos indivíduos investigados
em sua pesquisa, quanto mais escolarizado o indivíduo mais ele usa o recurso
diminutivo.
Alves (2006) fez uma pesquisa examinando o diminutivo do português em –
inho, sob o escopo da Gramática Funcional do Discurso (GFD), a fim de explicar seus
diversos usos. A autora conclui que se trata de três diferentes morfemas da categoria de
intensificação, sendo que esses se distinguem entre si por valores semânticos,
pragmáticos e ilocucionários. Comprovou-se que, no português, fatores conceituais e
estratégias comunicativas também podem ser codificados na unidade lingüística
‘palavra’, por meio de recursos morfológicos.
Os resultados da autora confirmam observações e fatos já constatados por
pesquisadores como Câmara Jr, o qual aponta no diminutivo –inho valores como
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‘afetividade, ‘avaliação’ etc. Sendo assim, a autora conclui que este fenômeno
lingüístico é, portanto, lexical e/ou gramatical e, além do mais, se beneficia da
consideração de fatores extra-lingüísticos, tais como a influência dos interlocutores e da
situação comunicativa.
4. As variantes
A amostra selecionada para este trabalho foram 16 entrevistas do banco de dados
do VARSUL, referentes a cidade de São Borja no Rio Grande do Sul. Dessas 16
entrevistas, 8 são de pessoas do sexo feminino e 8 do sexo masculino. Além disso,
foram selecionadas, em cada sexo, 2 pessoas do primário (que cursaram somente até a
quarta série do ensino fundamental), 2 pessoas do colegial (que cursaram o Ensino
Médio), 2 pessoas da faixa etária A (25 a 50 anos) e 2 da faixa etária B (+ de 50 anos).
São Borja foi uma das 5 cidades do Rio Grande do Sul escolhidas para fazer
parte do banco de dados do VARSUL por representar a situação de fronteira do Estado,
conhecido também por sua população de origem alemã e italiana.
A hipótese inicial era de que, na cidade de São Borja – RS, por fazer limite com
a Argentina, pudesse haver alguma transferência lingüística do espanhol para o
português, mais precisamente na formação dos diminutivos, ou seja, esperava-se que
além das variantes –inho e -zinho também pudesse ocorrer –ito (forma diminutiva muito
produtiva no espanhol), no entanto, esta forma não apareceu em nenhum momento na
fala dos entrevistados, sendo assim, esta foi excluída da análise.
Os grupos de fatores com os quais trabalhamos foram os seguintes:
1)
Acentuação da base (paroxítona, paroxítona, proparoxítona);
2)
Classe gramatical (substantivo, adjetivo, pronome, advérbio)
3)
Finalização da base (hiato, ditongo, outros);
4)
Número de sílabas da base (monossílabo, dissílabo, trissílabo,
polissílabo);
5)
Sexo (ou gênero) (feminino, masculino);
6)
Faixa etária (mais jovens, mais velhos);
7)
Escolaridade (primário, colegial).
Depois de coletados a partir das transcrições fonéticas e ortográficas disponíveis
no VARSUL, os dados foram categorizados e por fim submetidos ao programa
estatístico VARBRUL.
5. Apresentação e discussão dos resultados
Através dos dados analisados foram encontrados 371 ocorrências de
diminutivos, sendo 291 formações com –inho e 80 formações com –zinho.
Os grupos selecionados pelo programa estatístico VARBRUL como relevantes
para a formação de diminutivos foram, respectivamente: 1) a acentuação da base, 2) a
classe gramatical e 3) a finalização da base.
O primeiro grupo selecionado foi a Acentuação da base, vejamos os resultados
estatísticos na tabela abaixo.
Tabela 1: Freqüência e mobilidade da forma –zinho, segundo a variável acentuação da
base
Acentuação da base Apl/total %
PR
Oxítona
47/53
89% .97
Paroxítona
32/311
10% .36
Proparoxítona
1/7
14% .40
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Total
80/371
22%
Os resultados da tabela 1, que leva em consideração a acentuação da base,
indicam que a forma –inho se aplica de modo preferencial a vocábulos paroxítonos
(Peso Relativo de .36), ex: churrasquinho, velhinho, coitadinho e etc, enquanto é quase
categórica a adjunção de –zinho a palavras oxítonas (Peso Relativo de .97), ex:
cafezinho, nenezinho, limõezinhos, cartãozinho etc. As proparoxítonas que formaram
diminutivos com –zinho foram, por ex: praticazinha, medicozinho etc.
Este resultado também vai ao encontro do que já havia sido descrito no estudo
realizado por Monteiro (1997). Sobre esse fator o autor comenta que
A influência do contexto fonológico se confirma desde que, se a
palavra termina em ditongo, a probabilidade de receber a
variante -inho é quase nula. Por seu turno, o número de sílabas
da base também distingue o comportamento das variantes: é
mais provável que, nos monossílabos e nos polissílabos, a
escolha recaia sobre - zinho do que sobre –inho, infere-se, pois,
que a variável em foco sofre decisiva influência de fatores
rítmico-prosódicos, sem dúvida no sentido de ajustar a forma
fonológica dos diminutivos aos padrões melódicos da língua.
(MONTEIRO, 1997:124)
O segundo grupo selecionado foi a classe gramatical da base, vejamos a tabela
abaixo.
Tabela 2: Freqüência e
gramatical
Classe gramatical da base
Substantivo
Adjetivo
Total
mobilidade da forma –zinho, segundo a variável classe
Apl/total
70/224
10/99
80/323
%
PR
31% .58
10% .34
25%
Como podemos visualizar na tabela acima, as classes gramaticais selecionadas
foram apenas as de substantivos e adjetivos, isso porque embora esse grupo de fatores
incluísse os verbos, advérbios e os pronomes, os dois primeiros não apresentaram
variações, ou seja, todas as formações de diminutivos com verbos e advérbios foram em
–inho, o que provocou um knockout no programa estatístico VARBRUL. Já os
pronomes não apresentaram nenhuma ocorrência na forma diminutiva, portanto, essas
três classes gramaticais foram excluídas da tabela acima. Esse resultado coincide com
os de Monteiro (1997), ou seja, de acordo com o autor, tudo leva a crer que os pronomes
aceitam somente a variante –inho, por exemplo, tudinho, pouquinho, nadinha etc.
Quanto aos substantivos, podemos afirmar que, na maioria das vezes, preferem
formar diminutivos com o morfema –zinho (e não com –inho) como, por ex. nos
vocábulos: cidadezinha, homenzinho, sitiozinho, meninozinho etc, isso confirma os
resultados de Monteiro:
É o caso então de suspeitar da existência de uma possível
interferência de outras variáveis sobre a classe gramatical da
base. Podemos interpretar que, por exemplo, embora os
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adjetivos selecionem preferencialmente a variante –inho, isso
não se deve de nenhum modo ao fato de serem categorizados
como distintos dos substantivos em termos funcionais ou
semânticos. Deve-se sim, ao fato de que a maioria dos adjetivos
se enquadra em determinado padrão fonológico, em geral não
sendo oxítonos nem terminando em ditongo. Dito de outro
modo, quando um adjetivo aceita a sufixação com –zinho [...],
um substantivo com um similar padrão silábico e prosódico
também forma o diminutivo do mesmo jeito [...] ou seja, há
uma relação entre classe gramatical da base e a escolha do
morfe diminutivo, mas tal relação não é casual. (MONTEIRO,
1991:125)
O terceiro grupo selecionado foi a finalização da base, vejamos a tabela abaixo.
Tabela 3: Freqüência e mobilidade da forma –zinho, segundo a variável finalização da
base
Finalização da base Apl/total %
PR
Outros
57/342
17% .46
Ditongo
16/19
84% .79
Hiato
7/10
70% .93
Total
80/371
22%
De acordo com Monteiro (1997:124) “a rejeição de –inho em bases que
terminam por ditongo se justifica pela tendência a evitar o hiato, que pode ser
facilmente observada em outras alterações morfofonêmica, ex: reuniãozinha,
cartõezinhos, aviãozinho, chimarrãozinho, guriazinha etc. O mesmo se diga em relação
às bases terminadas por vogal tônica”, ex: chazinho, cafezinho etc. Dito de outra forma,
parece haver sempre uma motivação estrutural determinada pela própria configuração
do sistema lingüístico como um todo.
Sendo assim, como explicar as formas painho e mainha de algumas variedades
do PB? De acordo com o mesmo autor, os grupos de fatores determinantes para a
aplicação de –inho ou –zinho atuam em razão da necessidade de harmonizar e acomodar
as formações diminutivas aos padrões ou tendências rítmico-prosódicas da língua. Neste
sentido, parece lógico que as variedades que realizam as formas painho e mainha
diferem-se, quanto ao ritmo e prosódia, das demais variedades do PB que realizam
paizinho e mãezinha.
6. Considerações finais
Como vimos nos dados apresentados acima, apenas as variáveis lingüísticas: 1)
Acentuação da base, 2) Classe gramatical e 3) Finalização da base foram significativos
para a aplicação do diminutivo –zinho.
Os contextos que condicionam o uso de –zinho são, de acordo com os dados
analisados nesta pesquisa, preferencialmente as oxítonas, os substantivos, os ditongos e
os hiatos, enquanto os contextos que condicionam o uso de –inho são as paroxítonas e
proparoxítonas, os adjetivos (além dos verbos, advérbios e pronomes) e as palavras
terminadas sem o conjunto vocálico.
As demais variáveis: 4) Número de sílabas da base, 5) Sexo (ou gênero), 6)
Faixa etária e 7) escolaridade não se mostraram relevantes para essa regra. Esses
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resultados nos fazem concluir que não há indícios de mudança na formação dos
diminutivos em São Borja - RS, o que coincide com os resultados demonstrados pela
pesquisa de Monteiro (1997) em Fortaleza.
As rodadas estatísticas mostraram que a variável extralingüística “sexo” não foi
relevante para a aplicação de –inho ou –zinho (19% para mulheres e 26% para homens)
assim como mostrou o estudo de Monteiro (1997), no entanto, podemos verificar que,
no contexto analisado, as mulheres usam mais diminutivos do que os homens: 237
ocorrências em mulheres e 134 nos homens. Isso aponta, de certa forma, para um estilo
de fala feminino mais carregado de afetividade conforme o estudo de Emílio (2003).
Vejamos abaixo alguns exemplos de usos de diminutivos usados pelas mulheres de São
Borja que apontam para valores de afetividade:
“[...] é, o sangue a gente faz um guisadinho [com]-com farinha de mandioca,
nossa! Fica uma loucura com bastante pimenta, as patas, né?” (SBO.09.FACOL –
L.184-186)
“[...] eu tinha um casal de amigos [...] e eles tinham um casalzinho de filhos,
bem espertos os guris” (SBO.23.FACOL – L.0077)
“[...] então a gente morava nesse apartamento lá: eu, o Perxy e a minha filha,
essa. Nenezinho que era né?” (SBO.13.FBCOL – L.0167-0169)
Estudos como os de Emílio (2003) indicam que o emprego de diminutivos é
consideravelmente mais associado a traços expressivos do que somente ao valor
dimensivo. Sendo assim, poderíamos afirmar que a sua função na linguagem tem um
caráter muito mais expressivo estilístico do que semântico referencial, morfológico ou
sintático, o que não consta na maioria gramáticas normativas do Português Brasileiro,
mas a confirmação ou negação dessas funções é objeto para trabalhos futuros.
7. Referências bibliográficas
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ISSN 1809-3264
EDUCAÇÃO E ARTE X BARBARIDADES
Rejane de Souza Ferreira*
Mestranda em Letras – Estudos Lingüísticos
UFG – Universidade Federal de Goiás
Resumo: O presente ensaio tem o objetivo de provocar reflexões sobre o papel da
educação e da arte diante de calamidades como as provocadas por guerras. Seriam ambas
capazes de evitar genocídios ou seriam elas pretextos para novas barbaridades? Essa
discussão baseia-se em filmes, livros e revista produzidos por cineastas, historiadores,
críticos literários e outros que se interessaram ou mesmo viveram a situação da Segunda
Guerra ou pós Segunda Guerra Mundial.
Palavras-chave: educação, arte e guerra.
Abstract: This text aims to provoke reflections about the education and the art roles in the
face of calamities such as the ones caused for wars. Would be they able to avoid genocides
or would be them pretext for new merciless? This discussion is based on movies, books
and magazines produced for film makers, historians, literary critics and others who is
interested or even lived the Second War situation or after Second War situation.
Key words: education, art and war.
Mais de meio século após o término da Segunda Guerra, ainda é recorrente a
temática da mesma. Fundações pela paz; fundações tendo como base os sobreviventes do
holocausto, como a Survivors of the Shoa166; produções cinematográficas, como A Lista de
Schindler, A vida é bela, O pianista, dentre outros; além dos meios de divulgações impressos,
como livros, jornais e revistas, e exibições de imagens, como as das bombas em Hiroshima
e Nagasaki, atuam como arquivos e materiais educacionais na esperança de se evitar tão
grandiosos massacres e destruições futuros. Por enquanto tem dado certo, mas não se pode
prever até quando esse tipo de trabalho será capaz de sensibilizar as pessoas. A insatisfação
popular com a Primeira Guerra não pôde evitar a Segunda.
De acordo com o crítico literário George Steiner (1988, p.26), “[o] tempo, tanto
historicamente como na escala da vida pessoal, altera a visão que temos de uma obra ou um
conjunto de obras de arte”. Podemos estender isso da obra de arte para a realidade e, assim,
perguntar como conservar o mesmo ponto de vista negativo em relação à guerra depois de
um longo período, se cada vez mais estudiosos sobre o imaginário da memória concordam
que o tempo atua na confusão da memória com a imaginação? Como separar as lembranças
do imaginário dos sobreviventes do pós-guerra? Como os jovens dos séculos futuros
acreditarão na crueldade dessa guerra, quando tais sobreviventes não mais existirem, se
muitos dos que a viveram não a percebiam tão sanguinária assim? A própria secretária
pessoal do Hitler, Traudl Junge, só foi ter noção da monstruosidade de seu führer167 no
decorrer do processo de Nuremberg:
Mestranda em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás. [email protected]
Trata-se de uma fundação de história visual que arquiva depoimentos de judeus sobreviventes da Segunda
Guerra para fins educativos e didáticos. Foi criada pelo cineasta Steven Spieblberg em 1994, quando se
iniciou a coleta de dados.
167 Significa em alemão o “condutor”, “guia” ou “líder”. O título foi adotado por Hitler para designar o chefe
máximo do Reich e do partido nazista.
*
166
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Claro que as coisas horríveis que ouvi sobre Nuremberg, sobre os 6
milhões de judeus e as pessoas de outras raças que tinham sido mortas
me chocaram profundamente. Mas eu não conseguia enxergar uma
conexão com o meu passado. Eu estava satisfeita por não ser culpada
pessoalmente por isso e por não ter tido conhecimento dessas coisas. [...] Mesmo
assim, é muito difícil me perdoar por ter feito aquilo [aceitar trabalhar
para o Hitler] (A queda! As últimas horas de Hitler, 2004 – grifo nosso).
Não se pode desconsiderar que o anti-semitismo ainda existe e que a guerra
pode trazer junto aos prejuízos grandes manifestações artísticas e econômicas, ainda que
para uma pequena minoria. A violência como um todo causa horrores e aversões à mesma
em muitos homens, mas também causa em outros tantos incentivos de brutalidade e
superioridade. Após a ocupação russa da Alemanha, as pessoas não ficaram salvas nem
totalmente libertas como se parece, ou pelo menos como muitos pensam. Jaques Robichon
(200?, p. 45), por exemplo, fala dos atos de horror praticado pelos russos contra as
mulheres alemãs tão logo se deu a ocupação:
Maio de 1945: na mira das armas dos soldados soviéticos, os alemães
saem dos escombros, e os russos ficam sozinhos com as mulheres. A
soldadesca se reveza para abusar delas, de mães e filhas, de meninas mal
chegadas à puberdade e também das idosas e das doentes.
Depois que o tempo passa muita coisa importante perde o significado, e outras
versões de um mesmo fato vão surgindo, principalmente quando a ambição é a motivação
mais forte daquilo que se faz. Prova disso é que Hitler, grande admirador de Napoleão,
comete o mesmo erro do imperador francês: invade a Rússia em pleno inverno sem antes
preparar sua tropa para a diferença climática. De acordo com o documentário intitulado
Arquitetura da destruição (1992), produzido por Peter Cohen, o ditador nazista, influenciado
pela literatura de Karl May168, não achava necessário conhecer o local de combate para se
vencer uma guerra. Por isso, Hitler desconsiderou dados históricos importantes como a
derrota de Napoleão na Rússia, devido ao frio, e a insurreição de Canudos, no Brasil, que
sobreviveu aos três primeiros ataques militares, justamente por dominar a região do ponto
de vista geográfico.
Durante a guerra ele [Hitler] citaria Karl May como prova de que não era
preciso conhecer o deserto para comandar tropas na África. Hitler sabia
da falta de experiência de May [...] Ele via em Karl May uma espécie de
teórico visionário com a clarividência de realidades distantes. [...mas
sustentava] que a imaginação gera a base do conhecimento (Arquitetura
da destruição, 1992).
Nesse contexto, Steiner (1988, p.23) questiona a capacidade da literatura aguçar o
espírito humano, tal como Matthew Arnold afirmava e indaga o que o Dr. Leavis
considerou como “a humanidade essencial”. No filme de Peter Cohen nos é revelado que a
maioria dos alemães queriam ser artistas antes da Segunda Guerra e que o III Reich estava
repleto de artistas fracassados, dentre eles, Hitler, o führer, e Rosenberg, o ideologista do
Best-seller alemão de literatura infanto-juvenil do final do século XIX. Escrevia histórias de aventuras e
viagens que lidavam com desertos árabes ou índios americanos no Velho Oeste sem ao menos ter conhecido
esses lugares. A verossimilhança de suas histórias se dava pela narrativa em primeira pessoa.
168
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partido nazista. Diante disso, podemos estender mais uma vez o pensamento do crítico
literário e questionarmos se a arte e a educação seriam capazes de evitar guerras, quando
muitas vezes essas são provocadas pelos próprios artistas e usadas para o mesmo fim. Peter
Cohen mostra Hitler justificando o nazismo através do músico Richard Wagner: “Só
entende o nazismo quem entende Wagner”.
A lista de Schindler, produção cinematográfica de Steven Spilberg (1993), leva-nos a
perguntar de que valeram as formações educacionais e culturais dos judeus, bem como
todo o dinheiro que eles acumularam durante a vida diante da escravidão a que os mesmos
foram submetidos. É marcante para os literatos e historiadores a cena de um professor na
fila de trabalho para operários essenciais:
-
-
Não sou essencial? Acho que não entendeu bem o significado da
palavra.
Não tem Blauschein169, senhor, fique ali. De pressa, o próximo!
Não essencial, como? Ensino História e Literatura. Desde quando
não é essencial?
Outra cena do mesmo filme que também se adequa a esse contexto é a da
engenheira, que além de fazer seu trabalho gratuitamente é morta simplesmente por dar
satisfação deste a Goeth, comandante do gueto de Cracóvia:
Judia: - Herr Kommandant, a fundação toda tem de ser demolida e
refeita. Senão, haverá no mínimo um rebaixamento ao sul do
barracão. Rebaixamento, depois desabamento.
Goeth: - É engenheira?
Judia: - Sim. Sou Diana Reiter. Estudei na Universidade de Milão.
Goeth: - Uma judia educada como Karl Marx. Mate-a!
Steiner (1988, p.23), oportunamente chama-nos a atenção para o fato de que
[a] barbárie predominou no próprio berço do humanismo cristão, da
cultura renascentista e do racionalismo clássico. Sabemos que alguns dos
homens que conceberam e administraram Auschwitz foram educados
lendo Shakespeare ou Goethe, e continuavam a lê-los.
O contínuo contato dos nazistas com a arte não os tornaram mais sensíveis nem
humanos. A produção de Spilberg (1993) exibe soldados alemães no momento do massacre
do gueto de Cracóvia se perguntando se a música tocada naquele momento era Bach ou
Mozart. Peter Cohen, por sua vez, mostra como Hitler manipulava as exposições de artes
plásticas de sua época, bem como ordenava ao seu exército a leitura dos livros de Karl May
sobre como lutar com os índios. Steiner (1988, p.23) percebe a relação da literatura com a
realidade desse contexto como
...evidência de que uma disciplinada e persistente dedicação à vida da
palavra impressa, uma capacidade de identificação profunda e crítica
com personagens ou sentimentos imaginários, diminui a proximidade, as
169
Certificado de trabalho que prova seu portador ser um operário essencial.
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ásperas arestas das circunstâncias objetivas. Acabamos reagindo com
mais intensidade à tristeza literária do que à miséria perto de nós.
No mais, se a arte e a educação já não mais davam conta de edificar os nazistas quem
mais elas edificariam, se os antinazistas estavam ocupados com sua possível sobrevivência
no dia seguinte, se a fome e as condições de vida afligia a população cada vez mais? Sem
falar que as artes geralmente não favorecem as massas. Os acadêmicos de Frankfurt,
inclusive, não aceitam como arte o que é acessível a todos. Hobsbawm (2005, p.181) ao
apresentar as artes no período da “Guerra dos 31 anos”170faz a seguinte observação:
E, no entanto, jamais devemos esquecer que, durante todo esse período,
[a vanguarda, manifestação artística da época] continuou isolada dos
gostos e preocupações das massas do próprio público ocidental, embora
agora o invadisse mais do que esse público em geral admitia. A não ser
por uma minoria um tanto maior que antes de 1914, não era do que a
maioria das pessoas real e conscientemente gostavam.
Se a arte não era acessível às massas, se os diplomas universitários não eram capazes
de livrar os judeus do holocausto e se o Hitler “filtrava” toda manifestação artística, quem
mais poderia estar interessado em arte e em educação senão os próprios artistas e
intelectuais, que em sua grande maioria escaparam da morte porque conseguiram se exilar
fora da guerra? É um pouco complicado generalizar dessa forma, mas nessas circunstâncias
é impossível, não rever a função e a utilidade da arte e da educação quando a maioria das
coisas do mundo, inclusive as pessoas se tornaram descartáveis. Na Alemanha e nos demais
territórios ocupados por Hitler, deficientes físicos e mentais, soldados mutilados na guerra,
homossexuais, ciganos e judeus eram exterminados, simplesmente por não se enquadrarem
no padrão de uma raça, no caso a ariana (raça “pura”). É como se todas as pessoas gordas,
flácidas e aleijadas tivessem que morrer por se distinguirem das top models. É uma situação
tão absurda, que muitos ainda duvidam que realmente existiu.
Durante a guerra o que importa é “vencer ou vencer”, não existem preocupações
humanitárias, existe apenas o “eu” e o inimigo que deve ser eliminado. Só que no caso
particular da Alemanha, durante a Segunda Grande Guerra, os inimigos não eram apenas
os combatentes de guerras, eram também todos “os inferiores à raça ariana” e os
“traidores” do partido nazista. De forma que se a Alemanha tivesse investido mais na
guerra e poupado, pelo menos os judeus, provavelmente ela teria saído vencedora desse
combate. Não que Hitler não quisesse investir na guerra, mas porque ele confiava demais
no seu exército e tinha a vitória como certa. Ele acreditava que derrotaria a Rússia em no
máximo quatro meses.
As duas guerras mundiais tiveram o caráter do “tudo ou nada”. Na realidade a
Segunda só existiu porque a Primeira não ficou bem resolvida, daí porque alguns
historiadores as consideram uma única guerra. A intenção das potências rivais combatentes
era dominar o mundo sozinhas e não mais dividir mercados entre si. É por isso que a
Alemanha, ao desocupar a França, destruiu tudo quanto pôde em sua retirada e da mesma
forma, em sua rendição, destruiu cidades alemãs para não deixar sob domínio russo o que
os alemães construíram:
170
Termo utilizado por Eric Hobsbawm para referir-se a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais (1914-1945).
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Na retirada, as tropas do Reich explodiram as últimas pontes; os portos
foram dinamitados; as redes de comunicação rodoviária e ferroviária,
esmagadas pelos bombardeios; os estoques de víveres, saqueados ou
incendiados. Menos de um quarto dos 180 mil imóveis de Frankfurt
continuava de pé; em Nuremberg, menos de 10%; em Berlim e em
Hamburgo, mais da metade das habitações tinham sido destruídas. Em
Dresden, não restara uma só casa intacta (ROBICHON, 2005 p.42 e 44).
O terror e a morte estavam espalhados por toda a Europa, o futuro era incerto para a
grande maioria. Pessoas matavam e morriam sem motivo aparente. Nos campos de
concentração muitos dos judeus que sobreviviam às condições subumanas terminavam
morrendo aleatoriamente na mira dos oficiais. De acordo com Hobsbawm (2005 p. 57),
outro fator que tornou as guerras do século XX tão brutais foi à tecnologia, pois
...tornava o matar e estropiar uma conseqüência remota de apertar um
botão ou virar uma alavanca. A tecnologia tornava suas vítimas
invisíveis, como não podiam fazer as pessoas evisceradas por baionetas
ou vistas pelas miras de armas de fogo. [...] Lá embaixo dos bombardeios
aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas
somente alvos (grifo nosso).
Se, naquele momento, matar havia se tornado uma mera questão de “atingir alvos”,
ou mesmo de cumprir ordens, há de se pensar que não se tratava, assim, de uma tarefa tão
cruel e difícil, afinal, nem se sabia o que é que se estava acertando, nem era preciso mirar...
Muitos alemães em outras circunstâncias, em outro contexto, talvez fossem até piedosos.
Schindler comenta com Itzhak Stern que Goeth não era um sujeito mau, que não matava
por prazer, que se não fosse pela guerra ele seria um bom “salafrário”:
Goeth está sob uma pressão terrível. Ponha-se no lugar dele. Ele tem que
dirigir o campo! É responsável por tudo que ocorre aqui. É muita
preocupação. É a guerra que traz à tona o pior das pessoas. Nunca o
bom, sempre o ruim. [...] Em circunstâncias normais, não seria assim.
Seria agradável. Só veríamos seu lado bom. É um salafrário maravilhoso
(A lista de Schindler, 1993).
Julgar os alemães pelas atrocidades cometidas durante a guerra é algo muito
delicado, senão impossível. Não dá para generalizar todos os alemães, nem todos os judeus
ou russos e assim por diante. Cada pessoa representa um caso particular dentro dessa
história. Há de se compreender que o povo alemão vivia sob o regime ditatorial de Hitler
que fazia uso das artes e da propaganda para deformar a opinião das pessoas. Há de se
lembrar que os civis eram educados desde crianças para se alistarem e os médicos para
criarem laboratórios assassinos. Há de se considerar a luta pela sobrevivência não só de
judeus, mas também de poloneses, franceses derrotados e até mesmo de alemães revoltosos
com o nazi-fascismo ou mesmo ignorantes das atrocidades e mentiras que se faziam com e
se diziam a respeito dos judeus. Não se pode ignorar quem fez o quê com quem, quando,
onde e por quê.
O pianista, recriação fílmica de Roman Polanski, mostra o capitão alemão Wilm
Hosenfeld ajudando o judeu refugiado Wladyslaw Szpilman. No momento em que esses
dois homens se encontram a situação do judeu é tão degradante que este chega parecer um
bicho. Contudo, mesmo que a situação de Szpilman fosse ainda mais deplorável,
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certamente o capitão não teria poupado sua vida se estivesse na presença de mais um
alemão. Na hora desse encontro, as tropas alemãs já tinham recebido ordens de destruir
tudo para a chegada dos russos que já estavam quase adentrando Varsóvia e há muito
Hitler já tinha deixado claro que não queria nenhum judeu sobrevivente. Logo, o capitão
não poderia poupar a vida do pianista sem ser denunciado e morto por descumprir uma
ordem do führer. Matar nesse caso era uma questão de auto-sobrevivência. Não se poderia
entender, assim, a atitude do capitão Hosenfeld para com Szpilman, neste caso, mais uma
ação de piedade e caridade que de educação e arte? Afinal, ele não foi só educado, mas foi
treinado para fuzilar judeus, não para salvá-los.
Nas circunstâncias da Alemanha durante a “Guerra dos 31 anos” não se era possível
ter muito controle das próprias idéias e atitudes. Thomas Mann, célebre escritor alemão, a
princípio era republicano, partidário ao governo alemão – inclusive entrou em atrito com
seu irmão, Heinrich Mann, por isso - e só depois, com o assassinato do ministro dos
negócios estrangeiros, o judeu Walter Rathenau (1922), que Mann tornou-se democrata a
ponto de ser expatriado e naturalizado americano durante o regime nazista171. O crítico
literário austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux também não entendeu o escritor alemão
em primeira instância e só depois veio reparar seu ponto de vista.
As divergências entre ideologias e intelectuais, bem como entre matadores e vítimas
não justificam em nada as atrocidades acontecidas, mas permitem a explicação delas ainda
que isso seja impossível de aceitar, ou como disse Hobsbawm (2005, p.15), “[c]ompreender
a era nazista na história alemã e enquadrá-la em seu contexto histórico não é perdoar o
genocídio. De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século
extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender”.
“As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a
distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis
necessidades operacionais” (HOBSBAWM, 2005 p.57). Quem sabe se não é por isso
mesmo que em determinadas situações da realidade nos sensibilizamos menos com o real
do que com o artístico? Quem sabe se não é por isso também que a educação e a arte não
podem evitar determinados acontecimentos políticos e históricos ainda que eles sejam
meros caprichos de guerra?
Por outro lado, o que mais poderia ter acontecido e poderá acontecer se essas duas
instituições desistirem de sensibilizar e humanizar as pessoas? A história mostra que a
Europa e o Japão se reconstruíram e que a Alemanha foi reunificada após a queda do muro
de Berlim, em 1989. Todavia, o orgulho ferido dos derrotados ainda não se extinguiu,
prova disso foi a queda das torres gêmeas em Nova York e os atuais conflitos em
conseqüência disso. Guerras sempre existiram, ainda existe e provavelmente sempre terá
enquanto o homem não aprender a respeitar seu semelhante. O que mudam são apenas as
armas de combate e não as lutas em si e sabemos que hoje existem armas bem mais
poderosas que os cogumelos que atingiram o Japão.
171
Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mann
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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REFERÊNCIAS
A LISTA DE SCHINDLER. Produção de Steven Spielberg, Gerald R. Molen e Branko
Lusting. Baseado na obra de Thomas Keneally. EUA: Universal, 1993.2 DVD video (134
min/61 min) DVD, son., preto e branco/color.
A QUEDA! AS ÚLTIMAS HORAS DE HITLER. Produção de Bernd Eichinger. Baseado
na obra Inside Hitler’s Bunker de Joachim Fest e Until the Final Hour de Traudl Junge e
Melissa Müller. Alemanha/Itália: Constantin Film, 2004.1 DVD video (155min) DVD,
son., color.
ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO. Produção de Peter Cohen. Suécia: Cult
Films.1992.1 videocassete (121 min) VHS, son., color.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 19914-1991. Tradução de Marcos
Santarrita. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,2005.
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mann>. Acesso em 18 jan.2006.
O PIANISTA. Produção de Roman Polanski, Robert Benmussa e Alain Sarde. Baseando
na obra de Wladyslaw Szpilman. França: Europa Filmes, 2002.1 DVD vídeo (148 min)
DVD, son., color.
ROBICHON, Jacques.Alemanha partida em quatro. Tradução de Luiz A. de Araújo.
História viva grandes temas edição especial, São Paulo, n.7, p.42-47, [200?].
STEINER, George. Alfabetização humanista. In: Linguagem e Silêncio: ensaios sobre a crise
da palavra. Tradução de Gilda Suart e Felipe Rajabally. São Paulo: Cia das Letras,1988.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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O ENSINO DA GRAMÁTICA: O PROGRAMA DE CHOMSKY NA ESCOLA
Ronald Taveira da Cruz (UFPI/UFSC)
Resumo: Este texto mostra que é possível trabalhar o programa de Chomsky na escola.
Para isso, nós precisamos de um professor ideal de línguas que trabalha a competência
lingüística dos alunos.
Palavras-chave: Chomsky, escola, competência lingüística.
Abstract: This paper shows
that it is possible to conciliate the Chomsky’s program and classroom. For the success of
this proposal, we need ideal languages teachers that work the linguistic competence of
students.
Key-words: Chomsky, school, linguistic competence.
0-Introdução
O título deste trabalho é um tanto quanto curioso. Baseia-se numa expectativa
provocadora ao programa gerativo de Chomsky: Como podemos aplicar a teoria gerativa
no ensino escolar? Quais as conseqüências do programa chomskiano para o ensino da
gramática? A descrença em sua relevância e aplicabilidade no ensino é quase total. Em uma
de suas visitas ao Brasil, em 1996, Chomsky é finalmente questionado:
“Nós, professores, estamos muito angustiados de perceber que,
apesar dos avanços na gramática gerativa, o ensino de gramática
nas escolas de primeiro e segundo graus continua sendo nos
moldes da gramática tradicional. O professor acha que é necessário
“ensinar” gramática nas escolas? Caso afirmativo, como abordá-la
de forma que se aproxime do modelo gerativo?” (1996: 73-4).
Na própria pergunta que se coloca, percebe-se uma confusão de idéias. A indagação
em si tenta reunir dois conceitos bastante diferentes: a evolução da gramática gerativa e a
evolução do ensino de gramática na escola. A primeira tem a ver com pesquisas
desenvolvidas, é de base teórica e fundamentalmente epistêmica. A segunda simplesmente
retrata uma determinada sociedade e seus valores, seus objetivos no ensino. Trata-se de
uma questão complexa quando comparada a uma teoria, pois é parte da prática docente
educacional, do sistema educacional como um todo. Chomsky também assim o vê:
“Como se deve ensinar depende de todo tipo de questão. Essas
questões não têm nada a ver como a língua funciona. Têm a ver
com os objetivos do sistema educacional, com problemas sociais e
políticos” (1996: 74)
Neste trecho, fica claro que o ensino de línguas, especificamente o ensino da
gramática envolve vários fatores, como as relações entre Política e Lingüística, Poder e
Linguagem, o Social na linguagem, que estão além dos objetivos deste texto.
A questão que se coloca para a teoria gerativa sobre sua aplicabilidade no ensino,
nada tem a ver com o gerativismo em si. É uma questão de cunho pedagógico, e deve ser
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respondida juntamente com a lingüística. Está relacionada também à pedagogia, às políticas
públicas, sociais e educacionais. Se a proposta é ensinar a gramática tradicional para a
exclusão de pessoas, então, o ensino da língua portuguesa a partir da gramática tradicional
vem funcionando bem. Por outro lado, se queremos formar críticos, pesquisadores, então,
a lingüística tem muito a contribuir. Pesquisas nas universidades brasileiras dentro da
própria área da Lingüística têm se preocupado com tais questões. Vertentes da lingüística
relacionadas ao ensino e à pratica pedagógica tem como eixo condutor a questão do
preconceito lingüístico, do letramento e oralidade, da educação em língua materna e
aquisição da língua oral e escrita. Não se pode pensar em educação em língua materna sem
que a lingüística e a educação trabalhem juntas.
Chomsky segue sua resposta afirmando que as pessoas têm de estar motivadas para
aprender, porque, caso contrário, não há modelo de ensino que resolva os problemas. A
motivação no ensino de gramática é um processo de conscientização que parte do que é
desinteresse para o interessante; do que é desprezível para o relevante, visando tornar o
aluno competente em um aluno habilidoso. É um processo de apropriação do
conhecimento.
Portanto, o que motiva este texto é o que esperamos motivar no aluno: a
capacidade de fazer-ciência, e mais, a habilidade de fazer ciência. É tornar o aluno
competente em um aluno habilidoso. Este trabalho, então, tem duas finalidades
congruentes: a primeira é mais geral e é uma questão da lingüística como um todo, pois
trabalha com a hipótese de que a lingüística tem de estar na escola ou pelo menos, refletirse na escola; a segunda abrange aqueles que ainda acreditam que a gramática na escola é
fundamental e que a teoria gerativa pode ser um auxílio importante para o professor(a) de
gramática. Essas duas finalidades podem ser parafraseadas em duas perguntas:
(1) Por que lingüística na escola?
(2) Por que o programa de Chomsky na escola?
Com o propósito de trabalhar essas duas perguntas, desenvolvemos na primeira
parte uma breve abordagem da lingüística na escola, de sua importância para promover a
capacidade de fazer-ciência no aluno; em seguida, motivamos a introdução mais direta do
programa de Chomsky na escola e, por fim, um modelo de aula é exemplificado.
1. Por que lingüística na escola?
O ensino da gramática tradicional está estritamente ligado ao ensino de uma
terminologia complicada e problemática, limitando a prática aos exercícios escritos,
ignorando as variedades lingüísticas, fortificando os preconceitos e abusos de poder. O que
a lingüística faz é semear uma nova forma de atuação: “a primazia da expressão falada
sobre a expressão escrita” (Ilari 1997: 99). Assim, o professor, ao conhecer como a língua
funciona, não pode esquecer que a oralidade também é constitutiva da língua e é ela a
língua materna em constante mudança. O que falamos, o que está em uso é a própria língua
em questão. Ensinar apenas o que está escrito é ensinar uma língua morta e “a língua nunca
pode ser estudada ou ensinada como um produto acabado, fechado em si mesmo”
(Geraldi, 1996: 28)
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O entendimento da lingüística como um todo, como uma disciplina capaz de
agregar na formação do aluno, deve ser pensado como essencial na formação do professor
que irá atuar com este aluno. De acordo com Ilari (1997) existe uma necessidade de unir
aquele que ensina e aquele que pesquisa a língua. É o que também afirma Chomsky (1996:
74), “é útil para os professores entender como a língua funciona, exatamente como um
professor de natação deve saber algo sobre fisiologia. Mas se se deve usar essa informação
no ensino é outra questão”. Uma questão que deve ser respondida afirmativamente.
Nota-se que o “perfil ideal” do professor de gramática pode ser facilmente traçado.
Encontrá-lo, porém, não é algo simples, ou melhor, formar um profissional ideal não é tão
simples assim. A lingüística vê no profissional de ensino um grande conhecedor da língua e
de suas variedades, que incentiva a pesquisa e a pluralização do idioma, sem jamais
estigmatizar nenhuma dessas variedades, mas sim explicando ao aluno os contextos de
interação social em que a língua pode variar. Dessa maneira estaremos transformando o
aluno em um ser consciente de sua própria língua, contribuindo também para a ciência, que
a partir daí será vista de maneira mais abrangente e completa.
O reflexo dos estudos lingüísticos na escola é claro. Há tempos, suas influências são
vistas desde as mudanças dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) até o dia-a-dia do
professor(a). As preocupações com as noções de preconceito lingüístico, variedades da
língua, dialetos, norma culta/oculta, entre outras, advém da lingüística e devem ser
(re)tomadas didaticamente por professores. Com isso espera-se que eles possam atuar de
maneira mais crítica e questionadora, revisando as definições da gramática, salientando as
interações discursivas e as intenções de cada uma das variedades e variações de uso da
língua materna. Espera-se também que a produção de textos seja feita de maneira mais
pertinente, cuidando para que não se perca o uso da oralidade; enfim, de trabalhar com as
contribuições da lingüística no ensino de Língua Portuguesa: todos nós sabemos que são
inúmeras essas contribuições.
2 - Por que o programa de Chomsky na escola?
Primeiro, porque há consensualmente por parte dos lingüistas:
“O reconhecimento de que a gramática tradicional é inadequada e não
oferece uma descrição coerente do português, nem em sua modalidade
culta, seja pelo normativismo abusivo, seja pelas incoerências teóricas e
descritivas, seja ainda por sua desatualização, seja, finalmente pela
ausência de progressão de sua apresentação na prática pedagógica.
(Britto 1997: 150-1)
Segundo, porque
“Aprender uma língua não é apenas conhecer o conjunto de normas
lingüísticas referentes a ela, mas é também tornar-se sensível às
percepções culturais diferentes... e ser capaz de desvendá-la a partir das
marcas lingüísticas formais” (Castro 1990:66).
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De acordo com Chomsky (1986), a gramática gerativa nada mais é do que uma
gramática explícita que se preocupa com a forma e o significado das expressões dessa língua
e ainda mais: com a mente/cérebro do indivíduo. Parte da base psicológica (e porque não
dizer também biológica) do indivíduo e de uma concepção modular da mente, na qual
postula-se a existência de um módulo responsável pela linguagem e, dentro desse módulo, a
faculdade da linguagem – aparato genético do ser humano relacionado especificamente
com a linguagem. “Neste caso, fica muito atenuado o preconceito lingüístico, já que todos
os homens teriam a mesma “forma” lingüística inata” (Brito, 1992: 41).
A base para os estudos científicos da linguagem é um conceito associado de
gramática – por este termo entende-se a gramática interna do falante:
“A gramática internalizada nasce de uma concepção gerativista da linguagem e
não prescinde de uma visão interacionista do processo de aquisição e
amadurecimento da linguagem. Isso significa que essa gramática tem como
pressuposto um conceito de língua que se produz nas relações sociais vividas
pelo falante, produzida também pelo falante que opera sobre a linguagem
construindo hipóteses a respeito de seu funcionamento.” (Mendonça 2000: 238)
Com o surgimento da gramática internalizada, não há mais noção de erro. O
verdadeiro objeto da lingüística passa a ser um componente do mundo natural (Costa,
1994: 83). O objetivo da educação lingüística escolar passa a ser o desenvolvimento das
habilidades de ler, escrever, falar e escutar que tem como base a concepção heterogênea da
língua inserida em um processo ininterrupto e contínuo que se inicia na infância e
institucionaliza na escola, quando o aluno entra em contato com as várias situações de uso
da língua.
Sem essa noção de erro, o que entra em jogo é a dicotomia gramatical/agramatical.
Este é mais um argumento para que o programa de Chomsky seja trabalhado na escola:
todos os alunos falam sua língua (a oralidade novamente), e eles são capazes de distinguir
intuitivamente sentenças gramaticais como (a) quem comprou o jornal ontem? de sentenças
agramaticais *o jornal ontem comprou quem?. É o que se chama de ciência intuitiva. Esse
meio de investigar é também interessante porque todos os alunos sabem sua língua e não é
preciso de laboratórios, grandes experimentos como em química, física ou biologia.
Outro argumento importante para a introdução do programa de Chomsky na escola
parte da forma de investigação do modelo. A investigação é feita pela dedução que parte de
grandes generalizações, princípios, do raciocínio dedutivo para ir depois aos dados, para
corroborar ou não a teoria. A conseqüência mais valiosa para o ensino, e para o aluno
propriamente, é que os alunos começam a se interessar pela construção e destruição de
teorias, fomentando o pensamento cientifico. Mais uma vez, há o incentivo no
desenvolvimento da capacidade de fazer-ciência no aluno.
O pensamento científico está enraizado em um comprometimento com a ciência: a
clareza, previsão, explicação... Para que tenha sucesso, a teoria cientifica, então, é
desenvolvida em um modelo, assim, como se entende na matemática. Sendo assim, o
programa de Chomsky na escola tem um caráter interdisciplinar, se relacionando também
com a matemática. É a partir desta interdisciplinaridade que passamos agora a nossa aula
expositiva.
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3 - Aula
Há inúmeras formas de trabalhar a intuição dos alunos, como falantes de língua.
Westphal (1994: 71-3) destaca algumas evidências sobre a competência lingüística dos falantes.
Essa competência tem que ser explorada em sala de aula:
“(1) reconhecimento de ambigüidades lexicais e estruturais (O banco está
cheio de gente); (2) o reconhecimento de sinonímias lexicais e estruturais
(o inimigo destruiu/aniquilou a cidade); (3) o reconhecimento de
aparentes exceções a regras gerais (Nenhum amigo de João (*não) veio);
(4) a distinção entre seqüências gramaticais e não-gramaticais ou
impossíveis (* seqüências distinguir gramaticais seqüências entre não e ou
impossíveis gramaticais); (5) produção e o entendimento de orações
nunca encontradas anteriormente: (o quadrado redondo não existe); (6) A
distinção entre palavras impossíveis e possíveis ainda que estas estejam
inexistentes na língua (os estrelos desanoiteceram pretamente X Só
trelssoe sedntcmearoiae tprteaemne.)”
A matemática como um modelo para a teoria é importante na representação semântica.
Por exemplo, considere as seguintes sentenças:
(1) O homem é casado.
(2) Os homens são casados.
(3) Algum homem é casado.
(4) Três homens são casados.
Nessas quatro sentenças, o conhecimento pressuposto em matemática para montar
um modelo é o da teoria dos conjuntos. Na sentença (1), a intersecção entre o conjunto dos
homens e o conjunto dos casados tem de ser igual a um. Na sentença (2), essa mesma
intersecção deve ser maior ou igual a dois. Em (3), a intersecção entre os conjuntos dos
homens e o dos casados tem de ser maior que um. Finalmente, na sentença (4), essa
intersecção é igual a três. Honda e O´Neil ((1993: 238) afirma que as “relações complexas
entre estrutura sintática e seu significado expressos em termos matemáticos básicos pode
ser um foco da investigação lingüística e pode também formar um modo de acessar o
“tamanho” do conhecimento do aluno de um determinado aspecto”.
Há uma outra forma de incentivar os alunos, a partir da noção de constituinte. Observe
a próxima sentença:
(5) O professor viu a teoria gerativa na sala de aula.
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Na sentença (5), o núcleo das relações sintáticas é o verbo ver. Ele controla três
constituintes: o professor, a teoria gerativa e na sala de aula. Essa sentença é ambígua: em uma
interpretação temos que Foi na sala de aula que o professor viu a teoria gerativa; a outra
interpretação é que Foi a teoria gerativa na sala de aula que o professor viu. Na primeira
interpretação, na sala de aula é o lugar onde a teoria gerativa foi vista pelo professor; na
segunda, a teoria gerativa na sala de aula foi vista pelo professor, sem mencionar onde ela
foi vista (ela pode ter sido vista neste seminário!!). Na primeira interpretação, o constituinte
na sala de aula não faz parte do constituinte a teoria gerativa. Como podemos observar, o
constituinte é um unidade sintática (Mioto et alli 2002: 40). Quantos aos nomes de cada
constituinte e sua função ficam para a próxima aula.
4- Considerações finais
No campo atual da lingüística, não cabe mais falar de tradição no ensino de
gramática, pois é fato concreto que o mesmo já não é, há alguns anos, eficaz. Na verdade
existem mais críticas à maneira irracional e estanque do ensino, do que propostas que visem
melhorá-lo. Este também foi um dos objetivos do presente artigo.
O que se percebe é que a língua portuguesa merece e efetivamente precisa que se
produzam gramáticas que estejam de acordo com os campos aqui explorados pedagógicos, normativos, descritivos; mas que também seja visível nessa gramática o objeto
sob análise e o tipo de manifestação que se mira: língua falada, escrita, que tipo de registro,
enfim da língua como manifestação particular de uma gramática universal. Gramática
universal esta que faz parte do mundo natural, pertence à biologia.
A investigação na escola, o incentivo à ciência e a aplicação do programa de
Chomsky na escola, a partir de formação de hipóteses, da interdisciplinaridade, da dedução
e construção de teorias fazem com que os alunos compreendam melhor o funcionamento
da língua, se interessando com a própria lógica do raciocínio. Uma conseqüência
interessante é que os alunos se interessam tanto pela ciência e que acabam evitando idéias
ruins ou do senso-comum, por exemplo, Eu não gosto de português, português é chato... (é fazer
cidadania?). Segundo Franchi (1987: 41), “Trata-se de levar os alunos desde cedo a
diversificar os recursos expressivos com que fala e escreve e a operar sobre sua própria
linguagem, praticando a diversidade dos fatos gramaticais de sua língua”.
Pretendemos também focar na idéia de mover o aluno de competente para
habilidoso. Habilidade é uma espécie de “inteligência capitalizada” que decorre da
competência já adquirida. Navegar, por exemplo, é uma competência. Saber navegar em
mar revolto é uma habilidade. Falar é uma competência. Saber falar bem em voz alta diante
de um grande público é uma habilidade. O que se espera é que o aluno não apenas saiba
“gramática”, no sentido tradicional do texto, mas que ele seja habilidoso com sua própria
língua, tornando-se um verdadeiro poliglota em sua própria língua.
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5- Referências Bibliográficas
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BRITTO, L. P. L. A sombra do caos: ensino de língua X tradição gramatical. Campinas: Mercado
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Carlos Franchi (1932-2001), número especial, São Paulo: Contexto, 2002.
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WESTPHAL, G. Aspectos do conhecimento lingüístico. Anais do Seminário Lingüística e
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“O QUARTO DO BARBA-AZUL”, DE ANGELA CARTER, E A
REPRESENTAÇÃO DA MULHER
Carlos Augusto de Melo (co-autor)
Doutorando em Teoria e História Literária – UNICAMP
Professor de literatura da Universidade Paulista – UNIP
Clarice Custódio da Silva
Licenciada em Letras – Línguas portuguesa e inglesa – UNIP - Universidade Paulista Acadêmica de
Pedagogia – ULBRA – Universidade Luterana do Brasil
Professora de Língua Portuguesa – E.E. Doutor Francisco de Araújo Mascarenhas
Sarah dos Santos
Licenciada em Letras - Línguas Portuguesa e Inglesa – UNIP – Universidade Paulista
Acadêmica do curso de extensão em Fundamentos Metodológicos da Tradução
(técnica e literária) USP – Universidade de São Paulo
Professora da rede pública estadual – SP
Resumo: Pretendemos analisar e interpretar a obra literária da escritora inglesa Angela
Carter, a partir do conto “The bloody chamber” (“O quarto do Barba-Azul”) que é uma
(re)escritura do clássico conto de fadas de Charles Perrault, intitulado “Bluebeard” (“BarbaAzul”), tendo em vista perceber o modo como a escritora reconstrói o papel da mulher da
sociedade contemporânea. A intenção é fazer um aprofundamento do universo de Carter
que ousou explorar, de maneira inovadora, contos de fadas clássicos, trazendo traços de
feminilidade e erotismo, como suas características literárias próprias, para o
desenvolvimento de sua obra, visando retratar criticamente a sociedade em geral.
Palavras-Chave: Representação da mulher; Angela Carter (1940-1992); O quarto do BarbaAzul.
Abstract: We intend to analyse and to interpret literary work of the English Writer Angela
Carter based on the tale “Bloody chamber”, which is a (re)writing of the classic fairy tale of
Charles Perrault, entitled “Bluebeard”, aiming mainly to capture the way the writer
(re)constructs the role of women in contemporary society. The goal is to deepen universe
of Carter who dared to explore, in an innovative way, classical fairy tales, bringing about
traces of feminility and erotism, as her own literary characteristics for developing her
criticism against the society in general.
Key-Words: The role of women; Angela Carter (1940-1992); The bloody chamber.
Introdução
Nosso interesse em desenvolver esse artigo se deveu ao nosso interesse pela obra
de Angela Carter. Identificamos-nos pela sua produção literária, bem como pela sua
maneira engenhosa de perceber a mulher dentro de nossa sociedade. A escritora visualiza o
homem de maneira cruel, e até mesmo animalesca, tanto no que se refere às características
físicas quanto às atitudes e, por outro lado, a mulher como um ser ingênuo, reprimido,
infeliz que, passo a passo, vai alcançando sua superioridade em relação à figura masculina.
Essa espécie de feminismo de Carter que mais nos despertou interesse.
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Nesse sentido, escolhemos explorar o conto “The Bloody Chamber”, que em
português recebe a tradução de “O quarto do Barba-Azul”. Nesse conto, a escritora ousou
fazer uma releitura de um dos tradicionais contos de fadas de Charles Perrault, o conhecido
“Barba-Azul” (“Bluebeard”), símbolo de transmissão de conceitos morais, preocupando-se,
então, em reverter o quadro tradicionalista, a partir do rompimento com a estereotipada
construção machista das personagens femininas.
Segundo Wyler (1999), Angela Carter sempre causou polêmica por querer
denunciar a maneira como a sociedade opressora era vista como superior em relação ao
universo feminino. Um dos meios foi tratar de assuntos eróticos através de releituras de
textos clássicos da literatura universal. Carter tencionava revelar o conteúdo moralista
existente em singelos contos de fadas e não simplesmente fazer uma versão diferenciada
dos mesmos. E é assim que a autora tenta quebrar esse estigma entre contos de fadas e cria
histórias com um toque erótico de forma ora sutil, ora explícita.
“O quarto do Barba-Azul” conta a história de uma jovem de 17 anos que
abandona os carinhos e a proteção da mãe, com quem vivia, para se entregar a um mundo
novo, o do matrimônio, com um homem aristocrático, muito mais velho do que ela. A
narradora relata suas sensações, seus desejos sexuais na noite de núpcias e a sensação da
perda da virgindade de forma extremamente feminina. Além de outros momentos de
erotismo existentes no conto, é a partir deste que a mulher se identifica, pois há sensações
que realmente só as mulheres sentem. Em alguns momentos, a personagem atinge ápices
de diferentes emoções, noções de como realmente a mulher se sente. Carter sabe colocar
isso muito bem em “O quarto do Barba-Azul”. São traços de realidade sensual. Muitas
vezes, a própria mulher não sabe expressar o que está sentindo ou sequer sabe entender o
que se passa dentro dela, por medo, vergonha e até por não se preocupar em satisfazer a si
mesma, mas ao seu parceiro. Esse conto é uma abertura que permite esse tipo de reflexão e
dá oportunidade para o próprio leitor se identificar com todas as intensas sensações pela
qual a personagem passa.
Em “O quarto do Barba-Azul”, a mulher tem o domínio da narração que, ao
decorrer dos fatos, dará um novo olhar em relação a sua vida e ao casamento. Como afirma
Rapucci (1998), a mulher é agente de seu próprio destino.
Em nosso estudo tratamos de esclarecer, brevemente, o período literário em que a
escritora inglesa, Angela Carter, compôs sua obra, ou seja, o pós-modernismo. Sendo
assim, baseamo-nos em Proença, Rocha e Ergas para esclarecer este momento histórico.
Segundo Proença (1995), o estilo pós-modernista proporciona liberdade seja na
forma ou no conteúdo, faz uso da intertextualidade, sem limitações. A prática da
metalinguagem ganha um grande destaque, característica trazida pelo modernismo.
Segundo o autor, tem-se na literatura dessa época o uso da fragmentação textual, ou seja,
pedaços de um texto e outro que nem sempre se correspondem, mas o leitor passa a
compreendê-los ao uni-los pelos traços semânticos. No que diz respeito à narrativa,
predominam-se elementos voltados à autoconsciência e reflexão. Esses aspectos são
encontrados nas personagens carterianas. O narrador pós-moderno não se apega à matéria,
mas se distancia dela passando a dedicar-se em observá-la.
A partir dessas primeiras observações, gostaríamos de deixar claro que o objetivo
de nosso trabalho foi analisar a fundo as características do conto “O quarto do Barba-
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Azul”, de Angela Carter, e, através do resgate da feminilidade na literatura, mostrar de que
maneira essa escritora tentou vencer desafios e obstáculos em relação à preconceituosa
submissão feminina em nossa sociedade, bem como enfatizar como é rico o seu conteúdo
em relação à descrição da mulher, juntamente com o turbilhão de emoções, sentimentos e
força que a feminilidade provoca, contribuindo para a riqueza na literatura.
O Quarto do Barba-Azul: O Despertar da Mulher
Nossa análise se inicia a partir do título que Carter deu para seu conto, já bem mais
sugestivo do que o nome que Perrault atribuiu ao conto original. De imediato, podemos
notar que não se trata de um mero conto de fadas. Uma das possíveis traduções se fosse
feita em seu sentido literal poderia ser A câmara ensangüentada, com referência ao quarto em
que a personagem Barba-Azul escondia as suas mulheres assassinadas. A menção do sangue
indiretamente adverte o leitor de que o conto não terá somente situações de alegria, paz,
felicidade, enfim, de forma sutil há a advertência de que algo anormal, ou seja, brutal ou
violento acontecerá em determinado momento, o que corresponderá ao clímax do conto.
A esposa de Barba-Azul, a protagonista, é uma jovem de apenas 17 anos que deixa
o mundo da inocência, da pureza, do colo da mãe e passa ao mundo do matrimônio com
um homem muito rico e misterioso.
Com relação ao posicionamento da narradora, Rapucci faz uma interessante
colocação quando diz que o narrador, nos contos de Carter, tem uma posição crítica, e
dificilmente será ingênuo: “o leitor – ou talvez fosse melhor, a leitora – encontrará algum
consolo na força e determinação das heroínas, a quem coube virar o jogo”. (RAPUCCI,
1998, p. 62).
Pensando no seu passado, ainda solteira, ela se lembrara de quando ele lhe fazia a
corte. O homem tinha um cheiro forte de couro. Ela tocava piano em casa, e quando ele
chegava, pedia que não fosse anunciado. Ele ficava, então, apreciando a música em silêncio.
Mas estava, nesses momentos, subestimando a forte noção de percepção olfativa de sua
noiva. Ela, percebendo a situação, fingia não notá-lo para não causar-lhe
descontentamento. Quando se deparava com ele, fingia uma certa surpresa. Podemos
observar no seguinte trecho:
Ele gostava de surpreender-me no meu solipsismo, ao piano. Pedia, então, que
não o anunciassem; em seguida abria silenciosamente a porta e esgueirava-se por
trás de mim com um ramo de flores de estufa ou uma caixa de bombons, punha a
prenda em cima das teclas e tapava-me os olhos com as mãos enquanto eu me
perdia num prelúdio de Debussy. Aquele perfume de couro e especiarias, porém,
traía-o sempre; após o primeiro choque, via-me sempre forçada a fingir surpresa,
para que ele não ficasse desapontado. (CARTER, 1999, p. 06).
Esse é um momento em que podemos perceber como o homem se imagina
supremo em relação à mulher. Acredita estar invisível, observando tudo sorrateiramente,
nitidamente subestima a inteligência e a percepção feminina. Por outro lado, a mulher, sem
se expor, prova que ela, sim, é superior em relação ao homem, pois finge não o estar
vendo, mas a dona da situação é ela, pois ele nem sequer imagina o que se passa por sua
cabeça. A situação é inversa. Ela o domina sem que ele saiba.
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Podemos exemplificar esse tipo de situação por um outro prisma, aproveitando a
deixa de Carter com relação ao seu erotismo na literatura: a própria relação sexual é
dominada pela mulher, se ela tiver consciência disso. Ela é dona de seu prazer, e pode fazer
com que seu parceiro pense que domina, enquanto a dominante é ela. A situação é parecida
com a que foi estabelecida acima.
A adolescente, a jovem, principalmente virgem, é dotada de grande imaginação e
encantamentos, principalmente no que se relaciona ao sexo.
A riqueza e a opulência em que o marido vivia mostram as preocupações com
materialismo em que vive nossa sociedade. Certamente o fato de o homem ser muito rico
teve peso na decisão da mãe da jovem ao dar a mão de sua filha em casamento a um
homem de índole desconhecida e também um homem mais velho que já havia se casado
três vezes anteriormente. Isso deixa claro que o dinheiro e a riqueza manipulam ambições
nas pessoas, o que mostra que a mulher também não é tão sublime assim. Para Rapucci,
“ali estão as leis do patriarcado e, principalmente, as leis econômicas” (RAPUCCI, 1998, p. 66).
A menina pressentia que a vida que se iniciava agora não seria de total e absoluto
encantamento: deixava de ser menina e começava a se deparar com a realidade da vida
adulta.
Enfim, ela descreve o quarto matrimonial. Havia numerosos espelhos no quarto. O
símbolo do espelho se relaciona com “a revelação da verdade e não menos com a pureza”.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003, p. 394). Poderemos perceber isso mais adiante,
quando a cena do ato nupcial é narrada, com fortes traços de realismo. A pureza tem
ligação com a virgindade da moça, que logo a perderia. Além dos muitos espelhos, o
luxuoso quarto havia sido decorado com incontáveis lírios, que de acordo com Chevalier e
Gheerbrant (2003), são sinônimos de brancura, ou seja, da pureza, inocência, virgindade. A
autora soube colocar de forma ímpar esses dois símbolos no momento em que ela perderia
a virgindade, representada, fisicamente, no quarto, pelos espelhos e pelos lírios.
Causa obscuridade a maneira com que fala do esposo, pois em alguns momentos
demonstra-se apaixonada e em outros sente repulsa do mesmo. Mais obscuro ainda é como
o compara a um animal, especificamente a um leão:
Era mais velho que eu. Era muito mais velho que eu: tinha veios de pura prata na
juba escura. Mas seu rosto, estranho, pesado, quase de cera, não estava marcado
pela experiência. Ou antes, parecia que a experiência o tornara de todo liso, como
pedra na praia cujas rugosidades sofrem a erosão de sucessivas marés. (CARTER,
1999, p. 06).
Apesar de, nesse conto, o homem ser de fato um homem, não um animal, houve
essa descrição animalesca. É típico de Carter relacionar pessoas com animais em seus
contos. Rapucci (1998), enxerga essa relação entre o humano e o animal um símbolo de
cura do rompimento nocivo, de distanciamento que existe entre eles.Talvez seja porque o
sexo animal é instintivo, puro, normal, natural. E, segundo Bettelheim (2004), a raça
humana taxa o sexo de tabu.
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Deveríamos dizer que a repressão do sexo ocorreu tão cedo que não podemos
nos lembrar dela. Nenhum de nós se lembra em que momento da vida o sexo
pareceu inicialmente algo animal, algo a temer, evitar, e de que nos ocultarmos; é
um tabu que ocorre geralmente muito cedo. Podemos lembrar que até
recentemente muitos pais de classe média diziam aos filhos que quando se
casassem então entenderiam o que é o sexo. (BETTELHEIM, 2004, p. 323).
Então, a imagem que a personagem via daquele homem naquele momento, recémcasada, enquanto estava esperando pelo momento em que ia ter sua primeira relação sexual,
teria relação com esse tabu, e ela se desvencilharia, ali, daquele mistério, e passaria a
conhecer o sexo, que, pelo fato de ser solteira, era tão “proibido”. Não era mais só ao
animal permitido fazer sexo. Ela, enquanto um ser humano, também tinha essa
possibilidade, agora, casada, e o momento chegaria em breve.
Vale ressaltar ainda, o simbolismo que o leão tem:
Poderoso, soberano, símbolo solar e luminoso ao extremo, o leão, rei dos animais,
está imbuído das qualidades e defeitos inerentes à sua categoria. Se ele é a própria
encarnação do Poder, da Sabedoria, da Justiça, por outro lado, o excesso de
orgulho e confiança em si mesmo faz dele o símbolo do Pai, Mestre, Soberano
que, ofuscado pelo próprio poder, cego pela própria luz, se torna um tirano,
crendo-se protetor. Pode ser portanto admirável, bem como insuportável: entre
esses dois pólos oscilam suas numerosas acepções simbólicas. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2003, p. 538).
Com essa afirmação, podemos enxergar com facilidade o Barba-Azul com todas
essas qualidades: seu poder e soberania estão marcados pelo seu alto poder aquisitivo, bem
como pela possibilidade de ostentar uma mulher, exibindo-a em público. O fato de ser um
símbolo solar e luminoso aumenta ainda mais essa concepção: ele e a esposa chamam a
atenção por terem um “brilho”.
Carter desmistifica, através da literatura, o fato de que a mulher não sabe separar
sexo de amor. Se sua personagem conseguia, é porque as mulheres também têm a
capacidade de fazer essa diferenciação. Carter coloca ainda em evidência a tão esperada e,
ao mesmo tempo, temida noite de núpcias do casal.
No momento em que o ato nupcial se inicia, o leitor tem contato com seus
sentimentos mais íntimos e profundos e a autora, por meio da narração em primeira
pessoa, consegue colocar de maneira como se fosse a própria personagem que estivesse ali
explicando para o leitor de forma pura o que se passava pelo mais íntimo de sua alma. Há
menção ao toque de seu marido em seu corpo, ao cheiro de lírios que o quarto tinha, havia
ali uma conexão prazerosa por que passava o casal, e isso foi claramente separado do
sentimento amor. A união dos dois, o momento em que ela sente a força da masculinidade
de seu marido quanto perde a virgindade, a excitação que sentia... O turbilhão físico e
psicológico pelo qual passava a protagonista foi inigualavelmente definido por uma autora
disposta a expor a feminilidade e os desejos que uma mulher sente num momento tão
íntimo. Ela conseguiu inserir tudo isso de forma literária, ou seja, com todas as facetas com
que a arte permite que a literatura seja produzida.
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Um toque ao telefone anunciava um negócio que envolvia milhões em dinheiro, e o
marido teria que se ausentar devido a isso. Ele comentara com ela que seria breve, mas que
logo voltaria para ela.
Carter entra com o que seria o florescer do clímax em seu conto: o Barba-Azul
confia à esposa um molho de chaves, dentre as quais a chave do quarto secreto. Ela poderia
gastar todo o seu tempo, enquanto o marido estava ausente, em abrir e fechar portas para
conhecer melhor o local onde morava. A única condição imposta era a de não utilizar a
chave para abrir um determinado quarto do castelo. Ela, curiosa, perguntou-lhe o porquê
da proibição, e ele explica: “Não é a chave do meu coração. É antes a chave do meu
inferno (...) Os homens guardam de suas mulheres pelo menos um segredo”. (CARTER,
1999, p. 27). Fê-la prometer não entrar no quarto se ela realmente o amava. E explicou,
ainda, que aquele quartinho
É apenas um estúdio privado, um esconderijo, uma “caverna”, como dizem os
ingleses, para onde posso ir às vezes, nas ocasiões pouco freqüentes, mas
inevitáveis, em que o jugo do casamento parece pesar demasiado sobre os
ombros. Posso ir para lá, entende? E saborear o raro prazer de imaginar-me sem
esposa. (CARTER, 1999, p. 27).
Antes de se ausentar, o marido avisou a ela que em breve chegaria um afinador de
pianos para trabalhar no castelo. Segundo a jovem, a maresia prejudicava o piano, e um
afinador de pianos seria providencial.
Veio à jovem a notícia de que o afinador de pianos já havia chegado e consertado o
piano. Ela ficou feliz, e foi tocar e agradeceu a ele o serviço. A jovem sentia saudades da
mãe, e lhe fez uma ligação telefônica. Contou-lhe da riqueza em que vivia. A ligação não
estava em boas condições, mas, mesmo assim, ela se sentiu menos solitária depois de ter
entrado em contato com a mãe.
Ela, então, começou a utilizar as chaves do molho que o marido a tinha confiado, e
entrava de cômodo em cômodo para inspecioná-los. Encontrou riqueza digna de um
tesouro faraônico.
A curiosidade falou mais alto, e ela foi até a porta do quarto com a chave proibida.
Quando ela abriu a porta do quarto, iluminado à luz de uma vela que ela trazia, se deparou
com instrumentos de tortura; em contrapartida, estava impecavelmente ornado. Havia, lá
dentro, lírios idênticos aos de seu quarto. Sentiu medo, mas resolveu seguir adiante. Essa
decisão foi um momento em que a personagem prova ser forte e segura, a ponto de arcar
com as conseqüências, que certamente viriam. E ela sentia que, a cada momento, sua
inocência se desprendia dela, quando se deparou com a seguinte cena:
A cantora da ópera jazia, completamente nua [...]. Toquei-lhe, muito levemente, o
peito branco; estava fria, ele embalsamara-a. Na garganta vi a marca azul dos
dedos do estrangulador. A chama triste e fria das velas flamejava-lhe nas pálpebras
brancas e fechadas. E o pior era que os lábios mortos sorriam.
Atrás do catafalco, no meio das sombras, um brilho branco e nacarado; como
meus olhos se acostumaram à escuridão, acabei – oh! que horror! – por descobrir
um crânio; sim, um crânio, tão completamente desnudado de carne, que quase
parecia impossível esses rígidos ossos terem estado outrora acolchoados de vida.
E o crânio estava atado por um invisível sistema de cordas, de modo que parecia
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pairar, sem corpo, no ar pesado e imóvel, e tinha sido coberto por uma coroa de
rosas brancas e um véu de renda, a imagem final da sua noiva [...]
E onde estava ela, a que morreu por último, a condessa romena, que podia ter
pensado que seu sangue sobreviveria a suas depredações? [...]
Com os dedos trêmulos, abri a frente do caixão vertical, que tinha a face esculpida
num ricto de dor. Depois, subjugada, deixei cair a chave que ainda retinha na
outra mão. Caiu no charco que seu sangue formava.
Ela estava perfurada, não por uma, mas por varias lanças, essa filha da terra dos
vampiros que parecia ter acabado de morrer, tão cheia de sangue... (CARTER,
1999, p. 39-40).
Pegou a chave que havia caído no chão e fugiu do quarto. Pronto! Ela descobrira o
segredo que existia na vida de seu esposo e que a tanto a corroía mesmo antes da
descoberta, pois suspeitava que havia algum segredo que os mantinham distantes.
Tudo agora estava desmoronado, e o pior de tudo seria pensar que havia se casado
com um homem tão monstruoso como aquele, que um homem cruel como jamais vira
antes havia tocado seu corpo e tirado sua pureza. Após a descoberta, ela sabia que ela era a
próxima vítima.
Encontrara consolo ao piano. Enquanto tocava, o afinador, Jean-Yves, a
interrompe. O rapaz entrou no cômodo e disse a ela que notou sua inquietude. Ela, então,
embalsamada por seu calor humano, notou em seus olhos, mesmo cegos, muita doçura.
Então contou-lhe a história, pois algo em seu íntimo dizia que poderia confiar nele. O
afinador, por sua vez, afirmou já ter ouvido contos do povo em relação às maldades do
homem, mas nunca acreditou. Achava que eram histórias contadas a crianças para obrigálas a se comportar. Em um determinado momento, quando ele a abraçou, ela sentiu “uma
grande força fluir dele e entrar em mim”. (CARTER, 1999, p. 46). Era um instante em que
a personagem sentia que suas forças seriam recobradas, e que a partir dali poderia seguir em
frente com mais segurança.
O marido voltava de viagem naquele momento. Lembraram-se da chave, e o
afinador sugeriu-lhe que a voltasse ao molho. Nesse momento a jovem se espanta
novamente, pois ela lavava a chave, mas a mancha não saía de maneira alguma.
Ela se conscientizou de que deveria enfrentar o problema e levá-lo às últimas
conseqüências. Teria que enfrentar um monstro, ou melhor, o próprio marido, o homem
pouco antes sensual e excitante a quem tinha se entregado, e que agora via nele a figura da
mais abominável das criaturas. Sentiu um arrepio por ter a consciência de que o fim de sua
vida estava próximo, mas nem por isso deixou que suas forças sucumbissem. Decidiu-se a
enfrentar o marido que chegava naquele momento.
O homem, quando voltou, descobriu a traição de sua esposa e preparou a ela um
ritual de sacrifício.
Logo após esse momento vem o desfecho, um momento que mostra a independência
da mulher, nesse caso, a mãe, que vinha com os cabelos ao vento, guiando um cavalo,
esbanjando coragem, para salvar a filha, intuída de que ela corria perigo. O cavalo sugere
força e vigor, o que exige que seu guia também o tenha, para que este não seja dominado.
Carter evoca novamente a segurança de uma mulher, movida ao amor, disposta a enfrentar
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qualquer situação para salvar sua filha. A mãe deu um tiro certeiro na testa do abominável
homem, e com isso salva a vida da filha.
No final do conto, Carter realçou que o afinador de pianos, que era cego, foi um
dos responsáveis pelo salvamento da vida da jovem, bem como foi seu companheiro, que
se torna agora seu marido. O castelo foi transformado em uma casa de cultura para
beneficiar cegos, e também valorizava a cultura através da música tocada pelos pianos.
Passamos a ter uma vida pacífica. Herdei, claro, uma enorme fortuna, mas demos
grande parte dela a várias obras de caridade. O castelo é agora uma escola para
cegos, embora eu reze para que as crianças que aí vivem não sejam importunadas
por nenhum dos tristes fantasmas que procuram, que clamam pelo marido que
não voltará a entrar no quarto dos horrores, cujo conteúdo foi queimado e
enterrado. A porta foi lacrada. (CARTER, 1999, p. 58-59).
A marca vermelha nunca saíra da testa. Não havia meio de fazê-la desaparecer. Mas
ela tinha a alegria de saber que seu agora marido, cego, jamais veria isso, pois causaria a ela
grande vergonha. Nesse trecho podemos notar, ainda, a preocupação com as aparências
que a mulher tinha, afinal, já dissemos anteriormente que ela não era sublime. Era um ser
humano. Porém, a mulher tinha a nobreza de saber que o marido a enxergava e a amava
com o coração, que era o que de fato importava. Ela ganhou um amor verdadeiro, presente
digno de uma personagem tão forte e marcante.
Referências
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2003.
CARTER, Angela. O quarto do Barba-Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. 4.ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994.
PROENÇA, Filho de. Pós-modernismo e literatura. 2.ed. São Paulo: Ática, 1995.
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AS FIGURAÇÕES DO FEMININO NA TRAGÉDIA AGAMEMNON172
Neli Fabiane Mombelli
Sofia Uberti Yamin173
Acadêmicas dos cursos de História e Letras
UFSM – RS
Resumo: Estudando a obra Agamemnon de Ésquilo, escrita no século V a.C., é possível
observar alterações na representação das personagens, onde não é somente o homem que
se caracteriza como herói. A presença feminina passa a ter importância nas tragédias gregas
e os deuses já não interferem nas ações das personagens com a mesma regularidade. Assim,
o presente artigo visa analisar as figurações de Clitemnestra e Cassandra na obra
Agamemnon. A abordagem dá-se a partir do ponto de vista comportamental das
personagens, em que ambas, no início da peça, agiam de maneira submissa e frágil, mas, ao
final, agem de forma convicta.
Palavras-Chave: Clitemnestra, Cassandra, figuração do feminino.
Abstract
By studying the work Agamemnon, by Ésquilo, written in century V b.C., it is possible to
see some alteration in characters’ representation, in which the man is not the only person
who is characterized as hero. The feminine presence begins to have more importance in
Greek tragedies and gods even do not interfere in human life with the same vigor. In this
way, the present article aims to analyze Clitemnestra and Cassandra’s figuration in the book
Agamemnon. The approach is from the behavioral point of view of these personas, in
which in the beginning of the play the both characters acted in a submissive and fragile
manner, but in the end, they act in a convict way.
Key-words: Clitemnestra, Cassandra, feminine’s transfiguration.
1. Introdução
Após dez anos de intensas guerras, tendo conquistado Tróia, Agamemnon retorna
para sua cidade natal, Argos, com Cassandra, que é tida como prisioneira de guerra.
Cassandra é filha do rei de Tróia e profetisa, atormentada pelo deus Apolo174. Em Argos, se
encontra Clitemnestra à espera de seu esposo Agamemnon. No entanto, tal espera possui
segundas intenções, ao passo que ela e seu amante Egisto planejam matá-lo. Ao final da
tragédia, o rei de Argos, Agamemnon, e a profetisa Cassandra são mortos por
Clitemnestra175.
Artigo escrito como trabalho final para a disciplina Literatura Greco-Latina do curso de Letras da UFSM,
tendo por orientador o Prof. Ms. Enéias Tavares.
173 Neli Fabiane Mombelli é acadêmica do curso de História - Bacharelado/Licenciatura pela Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) e acadêmica do Curso de Comunicação Social - Jornalismo pelo Centro
Universitário Franciscano (UNIFRA). Sofia Uberti Yamin é acadêmica do curso de Letras Inglês Licenciatura também pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
174 Cassandra, filha de Príamo e de Hécuba, recebeu de Apolo o dom de vaticinar o futuro: tendo, porém,
faltado a uma promessa ao deus, este, para vingar-se, fê-la passar por doida, de modo que ninguém acreditava
nas suas predições. (VICTORIA, 2000, p.27)
175 Clitemnestra defende-se dizendo que vingou a morte de sua filha Ifigênia, outrora sacrificada pelo pai.
Ifigênia foi sacrificada por Agamemnon a pedido da deusa Ártemis. Em troca ele obteve a proteção dos
deuses, uma vez que os ventos contrários retinham a armada helênica no porto de Áulis. Clitemnestra mata,
172
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Esse artigo visa analisar a transfiguração do feminino na tragédia Agamemnon, de
Ésquilo176. Para isso, será considerado o comportamento das personagens Cassandra e
Clitemnestra. Em Cassandra serão estudadas suas atitudes, num primeiro momento,
enquanto cativa de guerra, amedrontada. Num segundo momento, serão observadas suas
ações enquanto profetisa que prevê a própria morte e a de Agamemnon, e passa a encarar a
situação corajosamente. Em Clitemnestra, serão analisadas suas figurações diante da
chegada de seu esposo, em que ela mostra-se entusiasmada, em contraste com sua
transformação ao fim da peça, onde ela revela-se assassina.
2. A representação de Cassandra
A personagem Cassandra retrata a fragilidade feminina através de seus atos. A
maldição que a acompanha torna-a ainda mais débil, ao passo que ninguém acredita em
suas previsões. Ela aparece como um ser atormentado e quando possuída por Apolo em
frente ao coro177, espanta-o com suas visões desacreditadas, fazendo-os acreditar que ela
está louca.
“Ai de mim! Ai de mim! Piedade, Apolo!
Ai de mim! Para onde fugirei?
A morte que mandas é cruel!
Ela é uma leoa em forma humana,
Que ausente do senhor, tramou com um lobo
E vai pôr fim a minha vida triste.” (p. 61)
Ela prevê seu futuro – será assassinada pala rainha de Argos, e ao professar tal fato
ela é tida como desgraçada. Seus lamentos parecem torná-la uma criatura insana, que não
sabe o que diz devido ao medo que a aflige. Mas, com o passar das cenas, sua personalidade
mostra traços significativos de mudança. A fragilidade, que até então a dominava, vai
cedendo lugar a relativa lucidez e coragem.
”Eu não sou como
Uma ave assustada em bosquezinho
Amedrontada à toa. Ireis me ver
Conciliada com a morte, de mulher
Para mulher, quando em lugar daquele
Que profanou o matrimônio, um outro
Homem há de tombar assassinado.
Testemunhai, então, por mim, que todas
As minhas profecias se cumpriram.
Só isso antes de morrer vos peço.” (p. 64)
As palavras que Cassandra profere mostram seu medo do futuro iminente. Ela
ressalta que não se trata de um temor sem motivo – “amedrontada à toa”. Não é apenas o
fato de estar em terra estrangeira e inimiga – metáfora da ave assustada num bosque
estranho, que a faz tremer. Cassandra está andando de braços dados com a sua morte e
também, a profetisa Cassandra, princesa de Tróia, que foi trazida por Agamemnon como escrava de guerra, e
a quem Clitemnestra acusou de ser sua amante.
176
Ésquilo é o primeiro grande autor trágico. Em 458 a.C, ele escreve a trilogia Oresteia, composta pelas
peças Agamemnon, As Coéforas e As Eumênides.
177
Ao coro competia criticar valores de ordem social e moral. Tinha ainda o papel de espectador ideal ou
voz da opinião pública, reagindo aos acontecimentos e ao comportamento das personagens como o
dramaturgo julgava que a audiência reagiria.
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revela para o povo de Argos que seu rei irá morrer. Em suas palavras ela deixa implícito até
mesmo a traição de Clitemnestra com Egisto, que é quem realmente deveria perder a vida –
“ quando em lugar daquele/ Que profanou o matrimônio, um outro/ Homem há de
tombar assassinado”. Tudo vem à tona em pouco tempo e é uma verdade aterradora.
Contudo, tais fatos não a intimidam. Ela vai ao encontro do seu destino com valentia e
determinação, transformando toda a sua figuração. Embora seu comportamento mude
durante a peça, suas ações sempre foram passivas. O que distingue tal mudança é o fato de
ela primeiramente queixar-se de sua sina e, após, passar a conformar-se com ela,
enfrentando-a, mas sem buscar alternativas que não seja a de enfrentar o seu destino - a
morte.
2. Figuração de Clitemnestra
Clitemnestra, em suas primeiras entradas, diante do Coro, enquanto esses
aguardavam ansiosos a chegada do Rei, possui a postura de mulher amável, preocupada
com seu esposo e ansiosa por revê-lo. Seu comportamento é típico das mulheres gregas,
que ficavam tomando conta do lar e aguardando que seu companheiro regressasse vivo e
vitorioso das intermináveis batalhas travadas na Grécia antiga (LORAUX, 2003).
“(...) – Eis que para uma esposa não há nada
De mais grato jamais que receber
O seu senhor que volta para o lar,
Salvo da guerra, por mercê dos deuses –
Para ele transmite esta mensagem:
Que venha sem demora; a nossa Argos
Ansiosa o espera; e no seu lar
Esposa tão fiel quanto a deixou,
Um cão de guarda atento à sua porta;
Reconhecida à lealdade, e sempre
Para com inimigos implacável;
Em suma: sem mudar, de modo algum.
Não violei a fé nestes dez anos.
Do prazer que se tem com outros homens
Nada sei, e nem sei de outros escândalos.” (P. 34-35)
Nessa fala, ela demonstra a expectativa da chegada de seu rei e utiliza-se de
infindáveis adjetivos, como “fiel, lealdade, implacável com inimigos, sem mudar”, e a
metáfora “cão de guarda” para comprovar sua fidelidade para com Agamemnon perante o
coro. Contudo, sua exaltação é tanta que, sem motivo algum, refere-se à traição ao dizer
que nada sabe do prazer que se tem com outros homens. É nesse momento, que há uma
explicação sem exigências por parte de Clitemnestra no que se refere às suas verdadeiras
ações, podendo demonstrar, assim, um sentimento de culpa que circula seu íntimo. Mas
nada tão intenso que abale sua convicta retórica.
Com a chegada de Agamemnon à Argos, o discurso de Clitemnestra permanece na
mesma linha, mas glorificando o esposo. Mais uma vez, ela utiliza a persuasão e a bajulação
para conseguir o que almeja. As marcas de linguagem que demonstram isso é o intenso uso
do imperativo (desce, não ponhas, obedeçamos) na sua fala. Esse aspecto faz com que a
submissão feminina em relação ao homem, típica do século V a.C., não esteja tão presente
nas atitudes de Clitemnestra.
“Querido esposo, vem, e desce agora
Do teu carro de guerra, mas não ponhas
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Na suja terra estes dois pés que Tróia
Esmagaram e pisaram. Avante, escravas,
Como já vos foi dito, estendei
Em seu caminho a seda purpurina.
Que a própria Justiça o conduza
Até o lar, que não contava ver
De novo. Quanto ao mais obedeçamos
O decreto dos deuses imortais.” (p.45)
“Tu és o vencedor: dá-me a vitória.” (p. 48)
Como esposa prestativa, ela busca agradá-lo colocando uma seda em seu caminho.
Porém, isso não passa de artimanhas para conquistar a confiança do rei e conduzi-lo a uma
armadilha. Essa intenção fica evidente quando Clitemnestra se refere ao decreto dos deuses
imortais, uma vez que leva seu marido a pecar contra eles fazendo-o andar sobre o tapete.
De forma astuciosa, em seu argumento final – “dá-me a vitória”, ela consegue tirá-lo do
carro e está a um passo da concretização de seus planos.
Na última entrada em cena de Clitemnestra, há a transformação total de sua
representação. De mulher submissa, doce, que espera o esposo, devota, ela transfigura-se
numa assassina fria, numa mulher funesta que planeja meticulosamente o assassínio do
próprio companheiro de leito conjugal.
“Há pouco tempo atrás eu disse coisas
Oportunas então, agora venho
Desmenti-las, sem que isso me envergonhe
(...)
Por longo tempo planejei, paciente,
Essa prova de força, e finalmente,
A batalha travei. Veio a vitória.
E agora, onde venci, eu me apresento.
É esta minha obra, e eu a proclamo.
Para impedir a fuga ou resistência,
Sobre ele lancei, como se lança
Sobre um peixe, uma rede: esse roupão,
Que o prendeu com suas dobras e seus laços.
Duas vezes feri. Por duas vezes
Ele pediu socorro, ele gritou
E, gemendo, afinal tombou inerme.
Feri-o, então, pela terceira vez,
E minhas preces elevei a Zeus,
A graça concedida agradecendo.” (p. 67)
Toda a sua frieza e seus pensamentos calculistas estão expressos nos quatro
primeiros versos, ao qual ela compara o assassinato a um combate, a uma guerra, utilizando
estratégias – “coisas oportunas”, realizando planejamento, referindo-se a prova de força,
batalha e à vitória. Suas ações tornam-se ainda mais nefastas quando ela revela
detalhadamente como foi a morte de Agamemnom.
3. Conclusão
Ao analisar a intensa atuação das mulheres na peça de Ésquilo, se sobressai a
transformação da figuração do feminino que deixa de ser coadjuvante e passa a tomar o
papel principal. Também, a tragédia apresenta uma possível análise de valores comuns aos
gregos do período, ao deparar-se com o questionamento do quanto seria justa ou injusta a
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morte do rei. A resposta pode surtir ambígua: enquanto vista pelo foco de Agamemnon,
Clitemnestra cometeu um crime terrível, apunhalando o próprio marido tendo como
cúmplice seu amante. Já no ponto de vista de Clitemnestra, o rei cometeu um crime
imperdoável, matou a filha do casal, obtendo em troca a vitória sobre Tróia, além das
centenas de pessoas que lá matou. Sendo assim, “seus crimes são resultado inevitável de
um certo arranjo do mundo. Nesse sentido, eles poderiam ter sido nossos. E eles inspiram,
além da compaixão por suas vítimas, a compaixão por eles mesmos e pelo próprio
homem”178. De certa forma, isso justifica as mutações de comportamento que ocorrem
com as personagens na obra.
5. Bibliografia
DE SAINT –VICTOR, P. As duas máscaras: a cultura da Grécia em seu teatro. São Paulo: Ed.
Germape, 2003.
JÚNIOR, D.J. A trilogia de Orestes. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro, 1988.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher: Imaginário da Grécia Antiga. Rio de
Janeiro: Ed. Jorge Zahar Editor, 2003.
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VICTORIA, L.A.P. Dicionário Básico de mitologia: Grécia-Roma-Egito. Rio de Janeiro: Ed.
Ediouro, 2ª ed., 2000.
178
Romilly, p. 147-148.
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AS VARIAÇÕES DA DETERMINAÇÃO DA PROTAGONISTA
EM ELECTRA, DE SÓFOCLES179
Thiago Santos da Silva180
Aluno do curso de Letras - UFSM
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as variações do determinismo da
personagem Electra na peça de Sófocles. Para isso, a tragédia foi dividida em três
momentos: o primeiro apresentando uma Electra em crescente determinação; um segundo
com a protagonista absolutamente resoluta; e um terceiro que mostra a jovem um pouco
mais passiva, subjugada à vontade do irmão.
Palavras-chave: Electra – determinação – variação
Resumen: El presente trabajo tiene por finalidad analizar las variaciones del determinismo
del personaje Electra en la pieza de Sófocles. Para eso, la tragedia fue dividida en tres
momentos: el primer presenta una Electra en una determinación creciente, el segundo con
la protagonista totalmente decidida, y el tercero en que la joven se vuelve un poco más
pasiva, subyugada al deseo de su hermano.
Palabras-llave: Electra – determinación – variación
1. A mulher na Grécia Clássica
A sociedade grega no Período Clássico era preponderantemente masculina, pois
não era permitido o acesso da mulher ao saber, não possuía direitos políticos nem jurídicos
e se encontrava inteiramente submetida socialmente. Elas eram vistas apenas como
receptoras da semente masculina. Segundo Aristóteles, cabia aos homens produzir o
esperma, a causa eficiente da geração. Essa mesma inferioridade do feminino diante da
posição masculina era percebido na ocasião da morte do patriarca.181
A inferioridade da mulher pode ser atestada pela Política de Aristóteles, que a
justificava em virtude da não plenitude da parte racional da alma na mulher, o logos. Isso
fica claro na seguinte passagem, em que o autor discorre sobre a natureza da alma
Trabalho apresentado como avaliação final para a disciplina Núcleos de Estudos Clássicos do Curso de
Letras da Universidade Federal de Santa Maria, sob orientação do Prof. Ms. Enéias Farias Tavares.
180 Acadêmico do 5° semestre do Curso de Letras Licenciatura – Habilitação Português e Literaturas de
Língua Portuguesa da UFSM.
181 Para mais detalhes, ver o estudo de Nicole Loraux, Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher – Imaginário da
Grécia Antiga. A autora afirma que na Grécia contemporânea dos dramas trágicos clássicos, o costume exigia a
honra dos homens de combater e se preciso, morrer pela pólis, ao passo que o que se esperava das esposas é
que elas se suicidassem para expressar seu lamento diante da viúves que se apresentava. Assim, os homens
morreriam por si próprios na idealização do estado, longe do lar. Às mulheres restava morrer por seus
esposos, dentro da solidão do lar. Na tragédia, Clitemenestra e Medéia são as mulheres que quebram com
essa expectativa, por isso o horror que representam dentro do imaginário grego. Quanto à morte feminina,
essa deveria ocorrer por sufocamento. Jocasta se enforca ao passo que os homens suicidas morrem
perfurados por lâminas, a exemplo temos Ájax. O horror nas tragédias de Ésquilo e Sófocles, As Coéforas e
Electra, respectivamente, é que Clitemnestra morre perfurada pela lâmina do filho vingador, Orestes. Na
tragédia analisada neste texto, Electra encontra-se entre duas posições antitéticas: a da jovem passiva que
aceita as punições da mãe assassina e da responsável pela vingança, enquanto seu irmão Orestes é dado como
morto.
179
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Isto nos leva imediatamente de volta à natureza da alma: nesta, há por
natureza uma parte que comanda e uma parte que é comandada, às
quais atribuímos qualidades diferentes, ou seja, a qualidade do racional e
a do irracional. É claro, então, que o mesmo princípio se aplica aos
outros casos de comandante e comandado. Logo, há por natureza várias
classes de comandantes e de comandados, pois de maneiras diferentes o
homem livre comanda o escravo, o macho a fêmea e o homem
comanda a criança. Todos possuem as várias partes da alma, mas
possuem-nas diferentemente, pois o escravo não possui de forma
alguma a faculdade de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas sem
autoridade plena, e a criança a tem posto que ainda em formação. 182
Segundo Moisés Romanazzi Tôrres, “Ainda que Aristóteles afirme, sublinha Schalcher, em
coerência com o fato de a mulher pertencer ao gênero humano, que todas as partes da alma estão nela
presentes, ele considera essa presença de forma distinta em relação ao homem, pois apesar de a mulher
possuir a capacidade de deliberar, falta a ela a capacidade de decidir.” (Tôrres, 2001, apud Schalcher,
1998: 338). Tôrres ressalta ainda que a mulher casada, em Atenas, vivia a maior parte do
tempo confinada às paredes de sua casa, detendo no máximo o papel de organizadora das
funções domésticas, estando sujeita a um regime de quase reclusão. Mesmo antes do
casamento, vivia fechada nos gineceus, quartos destinados às mulheres. Em contrapartida, a
mulher casada espartana possuía uma relativa liberdade, podiam manter relações sociais
fora do espaço residencial, mas isso não significava que ela tivesse mais consideração
socialmente, pelo contrário, sua utilidade era ainda mais diminuída na pólis. Isso tem uma
explicação lógica e natural, deve-se a organização social espartana que pretendia
enfraquecer a família, “retirando toda a força dos vínculos conjugais, fazendo com que os filhos fossem
criados pelo Estado e os maridos só visitassem as esposas de vez enquando”. Em suma, prezava-se
fortalecer a comunidade de guerreiros em detrimento da esfera privada.
A condição, então, da mulher na Grécia Clássica a classifica como um elemento
inferior, mas integrado à cidade-Estado, pois a mulher, estando diretamente ligada à
imagem de reprodução, apesar de não ser efetivamente uma cidadã, transmitia a cidadania
aos filhos.
2. Sinopse de Electra
A peça se passa na Micenas da Grécia heróica e o cenário é o palácio real. Embora
não se saiba a data exata, é possível que a tenha sido representada pela primeira vez por
volta de 413 a. C, em Atenas. A tragédia inicia com a personagem Orestes, filho de
Agamêmnon com Clitemnestra e irmão de Electra, relatando a Preceptor, antigo criado do
rei assassinado, como vingará a morte de seu pai, Agamêmnon, antigo rei de Micenas que
fora morto pela esposa Clitemnestra. Em seguida, entram Electra e uma comitiva de
mulheres clamando aos deuses a volta de Orestes, para que este ponha fim às suas mazelas.
Entra Crisôtemis, irmã de Electra e Orestes, trazendo consigo oferendas em honra a
Agamêmnon, enviadas por Clitemnestra; a jovem aconselha, em vão, Electra a adotar uma
posição mais submissa em relação aos novos reis. Clitemnestra tenta convencer a
protagonista de que agiu, no assassinato de Agamêmnon, por justiça, Electra, apresentando
dois argumentos: um de cunho religioso e outro de caráter lógico-racional, rebate
afirmando que a mãe não agiu por justiça. Clitemnestra vai ao templo de Apolo e pede que
182
ARISTÓTELES. 1997, p. 32
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o sonho – Agamêmnon ressuscitando e recuperando o poder – nunca se concretize.
Preceptor narra a Clitemnestra a morte de Orestes, Electra se desespera ao receber a
notícia. Crisôtemis retorna do túmulo do pai e conta à irmã que Orestes está por perto,
pois encontrou uma mecha de cabelo dele no sepulcro de Agamêmnon, Electra garante a
irmã de que isso não é verdade e a tenta convencer de que, agora que são somente as duas,
devem vingar o assassinato do pai, Crisôtemis se nega a ajudar. Orestes entrega a Electra a
urna funerária contendo as supostas cinzas do morto Orestes, ela se desespera, o jovem,
não agüentando ver as lamentações da irmã, revela-se como Orestes vivo. Electra, o irmão
e Preceptor decidem concluir a vingança; Orestes entra no palácio e mata Clitemnestra.
Egisto, atual real micênico e esposo de Clitemnestra, chega ao paço e pede para ver o
cadáver de Orestes, entram em cena Orestes e Pílades com o corpo de Clitemnestra
coberto por um lençol, ao ver que o corpo é na realidade da esposa, o rei percebe a
vingança, é levado para dentro da mansão por Orestes e morto no mesmo local em que
Agamêmnon fora assassinado.
4. A angústia da protagonista diante da morte do pai
No início da peça, Electra se encontra em um estágio intermediário, pois deixa
evidente que pretende se vingar de Clitemnestra e Egisto; é, no entanto, consciente de que
o único que pode praticar a ação é seu irmão Orestes, que foi salvo por ela no passado.
Nota-se uma Electra determinada, mas extremamente consciente de suas limitações por ser
mulher.
Igual ao pássaro que perde os filhos,
Jamais eu pararei de soluçar
E de gritar alucinadamente
Diante do palácio de meu pai!
Domínios de Perséfone e de Hades!
Hermes do inferno e Maldição divina,
E vós, augustas, implacáveis Fúrias,
Filhas dos deuses todo-poderosos,
Vós que vedes os crimes sem castigo
E os vivos neste mundo espoliados
Até do próprio leite, socorrei-me
Para vingar a morte de meu pai!
Mandai de volta meu irmão Orestes!
Já não consigo suportar sozinha
O peso desta mágoa esmagadora!
110
115
120
Na citação acima, nota-se uma Electra oscilante, inicialmente apresentando pouca
determinação, explícito por expressões como “Jamais pararei de soluçar”, “gritar
alucinadamente”, que mostram o quanto a personagem está angustiada com a situação em
que se encontra. Em contrapartida, nos versos finais do excerto, pode-se evidenciar uma
Electra bem mais resoluta, clamando pela volta do irmão, para que a vingança seja feita.
Então, a partir desse trecho final da fala, pode-se perceber que não se trata de uma
personagem passiva, mas sim de uma determinada que espera, ansiosamente, a volta do
irmão.
É nesse primeiro momento que se percebe uma Electra mais humana, característica
apontada por Freire como um dos diferenciais de Sófocles sobre Ésquilo, trágico que
apresentou anteriormente a mesma fábula de Electra na peça As Coéforas, sobre o
humanismo o estudioso afirma que
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Sófocles é profundamente humano. Diz-se que ele fez descer a tragédia
do céu para a terra. a dramaturgia de Ésquilo alcandora-se demasiado à
sublimidade inacessível do maravilhoso; as suas personagens ou são
deuses, ou semideuses, ou homens movidos por forças, aparentemente,
misteriosas. Em Sófocles, os actores agem por si mesmos, dotados de
inteira liberdade e compelidos somente pela sua vigorosa força de
vontade.183
A determinação da virgem, no entanto, não é constante, isto é, ao longo do
primeiro momento, ela é crescente. Isso fica evidente no diálogo entre Electra e Crisôtemis,
em que as personagens são postas frente a frente, mostrando o quanto Electra é obstinada
e Crisôtemis submissa. Essa técnica, a de contrapor duas personagens opostas, serve para
elevar ainda mais a imagem de determinação de Electra, pois a partir do diálogo entre as
duas irmãs, Electra cresce perante a assistência e Crisôtemis diminui. Sobre a relação entre
as duas Saint-Victor discorre que “Em contraste com a inflexível Electra, como a mesclar carne ao
mármore duro e puro de que ela foi modelada, o poeta [Sófocles] coloca sua irmã Crisôtemis.” 184
Essa determinação por parte de Electra pode ser evidenciada no seguinte excerto,
em que a protagonista se dirige à irmã deixando claro o quão obstinada se encontra.
Teu ódio, esse vive apenas em palavras;
de fato, segues os algozes de teu pai;
eu, entretanto, não me curvarei a eles [Clitemnestra e Egisto] 350
embora me prometam todos os presentes
que agora ostentas com muita vaidade;
mostre-se tua mesa cada vez mais farta
e sejam os teus dias superabundantes;
a mim, porém, me satisfaz só o bastante
355
para viver em paz com minha consciência.
Em oposição, tem-se Crisôtemis expressando sua submissão a partir de falas como:
Por que vieste novamente, irmã, gritar
e lamentar-te assim às portas do palácio?
Não aprendeste, decorrido tanto tempo,
que o ódio apenas nutre inúteis esperanças?
Sabes que também sofro com nossa desdita;
mostrar-lhes-ia, se pudesse, meu repúdio,
mas nas desgraça é preferível ser prudente
e não premeditar quiméricas vinganças.
Ah! Se pensasses de maneira semelhante!
Sei que a justiça não está comigo, irmã;
está contigo, mas se quero viver bem
devo curvar-me aos detentores do poder.
320
325
Nas falas de Crisôtemis, quando comparadas às falas de Electra, percebe-se o
quanto esta é subjugada ao poder dos novos reis em comparação com aquela. O
crescimento no determinismo se dá a partir de expressões como “não me curvarei a eles” em
oposição a “devo curvar-me aos detentores do poder”. O embate chega ao ápice quando são
postos em oposição o verso 394 “Pois cairei, mas exaltando nosso pai!” dito por pela
protagonista versus o verso 393 “mas prefiro não cair por teimosia”, dito por Crisôtemis.
183
184
FREIRE. 1985, p. 180.
SAINT-VICTOR. 2003, p. 390.
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Um outro momento que serve para elevar a imagem de Electra, é o confronto entre
ela e a mãe, Clitemnestra, no diálogo entre as duas, a protagonista, a partir de um discurso
extremamente bem elaborado, rebate a justificativa da mãe – de que teria assassinado
Agamêmnon por justiça – apresentando dois eixos argumentativos: um de cunho religioso
e outro, o mais interessante para essa análise, de cunho lógico, que mostra o quão racional
e lúcida está Electra. Essa logicidade do discurso da personagem serve também para que
essa determinação pareça maior. Sobre o argumento de caráter religioso, Electra explica à
mãe que o ato cometido pelo pai, o sacrifício de Ifigênia, não foi escolhido por ele, mas sim
uma imposição de Ártemis. Quanto ao de cunho racional, a protagonista garante a
Clitemnestra que a lógica estabelecida pela mãe, se volta contra ela mesma, pois se foi o
feito de Agamêmnon que deu o direito a ela de o matar, Clitemnestra também devia
morrer. Em determinado momento dessa fala, Electra revela o seguinte “Se cada morte fosse
castigada sempre/ com outra morte, morrerias por vingança.” que resume o ponto de vista dela.
5. O ápice da determinação de Electra
Nesse momento da peça, Electra chega ao auge de sua determinação, após saber
que, supostamente, seu irmão está morto, ela acaba assumindo para si o dever de vingar a
morte do pai. Nota-se essa elevação, a partir do segundo confronto entre as irmãs, no qual
Electra tenta convencer a Crisôtemis de que, agora que são somente as duas, devem vingar
o assassinato do pai. Após a segunda negativa da irmã, a protagonista profere a seguinte
alocução
Não me causam espanto estas ponderações;
Já esperava pela tua negativa.
Pois seja! Assumirei então os riscos todos,
e só! Minha resolução é inabalável!
1015
Essa citação deixa claro o quanto Electra está determinada, principalmente com
expressões “Assumirei [..] os riscos” e “Minha resolução inabalável.” Pode-se, inclusive, fazer uso
da analogia proposta por Freire de que Electra está para Antígona, assim como, Crisôtemis
está para Ismene, da tragédia do mesmo autor, Antígona. No entanto, Electra “é mais lírica,
mais terna, mais emotiva, do que Antígoa. Destoam, no entanto, os seus sentimentos finais de matricídio,
apenas desculpáveis na mantalidade pagã e na situação aflitiva em que se encontrava a pobre rapariga, por
parte da mãe e do iníquo padrasto.”
É também nesse trecho da peça que é notável outra inovação proposta por
Sófocles: a intriga dramática. Sobre essa característica, Freire afirma que
As tragédias de Ésquilo desenvolviam uma acção extremamente simples, por
vezes muito rudimentar; o coro, nalgumas vezes, como nas Suplicantes,
desempenhava papel primacial. Sófocles, pelo contrário, abreviou os coros,
multiplicou as peripécias, criou imprevistos e soube congraçar
maravilhosamente a variedade dos episódios com a mais perfeita concatenação
e lógica dos mesmos.
Um exemplo que serve para ilustrar essa inovação é a entrada de Orestes com a urna
contendo suas próprias cinzas, estratégia cênica inédita no Teatro Clássico. Um outro
exemplo que leva ao extremo essa renovação nas peripécias, é o momento em que Orestes
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entra em cena trazendo o corpo de Clitemnestra sob um lençol, mostrando o quanto
Sófocles apostava no aspecto cênico de suas tragédias.
5. A decréscimo do discurso de Electra diante da presença de Orestes
A partir de momento da peça, percebe-se uma inversão de atitude em Electra, após
saber que na realidade seu irmão está vivo, e que este pretende realmente vingar a morte do
pai, a protagonista se apresenta extremamente submissa em relação a Orestes. Isso fica
claro na seguinte fala de Electra:
Tudo se passará como mandaste, irmão;
o meu contetamento é teu, não me pertence;
nem o maior dos bens seria desejável
à custa do menor transtorno para ti;
não fosse assim, eu estaria sendo ingrata
aos deuses poderosos, nossos protetores.
[...]
Dispõe de mim; ordena e obedecerei.
1300
1317
Electra agora está mais passiva, não há mais qualquer referência àquela mulher
determinada dos dois primeiros momentos. Vê-se uma personagem que usa termos como
“mandaste”, “o meu contentamento é teu” e “ordena e obedecerei”, expressões que se opõem às
citadas anteriormente. Passa a ser quase um alguém sem opinião, subjugada ao querer do
irmão.
Nesse terceiro momento, que coincide com o final da tragédia, pode-se salientar
alguns aspectos, apontados por Saint-Victor, que diferem a Electra de Sófocles da de
Ésquilo, por exemplo, a deste desaparece no momento em que Oreste se prepara para
assassinar a mãe, a moça consente, mas não quer ver; a de Sófocles, no entanto, “permanece
sob o pórtico e atiça o irmão com gritos de Eumênide: ‘Fere! Fere de novo!’ [...] Sua existência termina com
a de Clitemnestra e Egisto. Vingadora, não convém que sobreviva à vingança consumada; a abelha
selvagem deve morrer depois de picar.” Não se deve pensar, todavia, a partir desse parecer do
estudioso, que a protagonista morre no final da peça, mas sim que, após o assassinato de
ambos, Electra não possui mais função, pois nesse momento final, o centramento da
tragédia se dá na ação de Orestes, ela se torna apenas uma incentivadora do irmão.
6. Conclusão
Na conclusão de seu artigo sobre Electra, Saint-Victor faz a seguinte analogia “O
verdadeiro fim de Electra teria de ser o de Níobe, cuja sorte Sófocles a põe a invejar: um mármore em
lágrimas, um rochedo que chora, eis como figuramos a Electra imortal.” e é assim, que se pretende
concluir esse artigo, exaltando a importância dos estudos sobre as tragédias Clássicas, em
especial os acerca das peças de Sófocles, pelas inovações por ele apresentadas que foram de
vital importância para a dramaturgia da época.
É nesse ínterim que está a validade desse estudo, pois é a partir desse dramaturgo,
que se constata oscilações do tipo a de Electra. Então, a finalidade do estudo é provar que
ainda é possível se analisar as tragédias. Visto que, esses textos são tão ricos e podem, e
ainda devem, ser explorados e estudados.
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7. Referências
ARISTÓTELES. Política. Brasília, UnB, 1997.
ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES. Os persas, Electra e Hécuba. 4.ed. Trad. Mário da
Gama Kury. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2000.
FREIRE, Antônio. O Teatro Grego. Alemanha, Publicações da Faculdade de Filosofia de
Braga, 1985.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher. RJ: Jorge Zahar Editor, 2003.
SAINT-VICTOR, Paul de. As Duas Máscaras. A cultura da Grécia em seu teatro. São Paulo:
Editora Gemape, 2003.
TORRES, M. R. . Considerações sobre a Condição da Mulher na Grécia Clássica (Séculos V e IV
aC). Revista Mirabilia, S.J.del-Rei Vitória S.Luís, v. 1, n. 1, 2001. Disponível em:
http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num1/mulher.html.
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A FUNÇÃO DA LINGUAGEM NO PROCESSO
CONSTITUTIVO DA ESTRELA
Waldivia Maria de Jesus
Doutoranda em Letras – Língua Portuguesa – PUC – SP
RESUMO: A reflexão sobre o romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, se
realiza em torno da constituição subjetiva de sua heroína, com foco na função da
linguagem no seu processo constitutivo. Refletimos sobre o poder da palavra na construção
de sua imagem e de sua auto-imagem, e o que isto implica nas suas ações sociais.
Analisamos fragmentos do romance para explorar a riqueza simbólica que circunda a
heroína. Conduzimos esses estudos com o apoio teórico da Psicanálise e do
Existencialismo. Freud (1996) e Sartre (1964) são os principais representantes.
Palavras-chave: função da linguagem, constituição subjetiva, ações sociais
ABSTRACT: The reflection about Clarice Lispector’s “The Hour of the Star” romance is
built on the subjective constituition of heroine’s romance, focalizing the language function
in her constitutive process. We reflect on the word power in the constituition of her image
and herself-image, and what this implies on her social action. We analyze romance
fragments to explore the simbolic wealth that surrounds the heroine’s romance. We lead
these studies with the theoretical support of the Psychoanalysis an Existencialism. Freud
(1996) and Sartre (1964) as main representatives.
Key-words: language function, subjective constituition, social action
Introdução
O romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, contém no seu bojo, uma
gama inesgotável de sentidos, o que favorece, aos interessados, inúmeras possibilidades
interpretativas. A autora utiliza o recurso da polifonia e, assim, insere múltiplas vozes nessa
narrativa. Tais vozes vão delineando o perfil da protagonista por meio de rótulos verbais
pejorativos, revelando-na, à primeira vista, como uma personagem plana, sem graça e sem
surpresa, mas no percurso da narrativa essa imagem estereotipada é desconstruída por meio
da introdução de uma nova voz que revela a face enigmática e surpreendente da heroína.
Assim sendo, para apreender a riqueza simbólica que a circunda torna-se necessário
fazer uma reflexão mais aprofundada a fim de desvelar os sentidos que subjazem a sua
aparência. Com esse propósito, decidimos focalizá-la sob a ótica da Psicanálise e do
Existencialismo. Com isso, não temos a pretensão de questionar quaisquer teorias,
tampouco compará-las, mostrando a supremacia de uma sobre a outra. Nosso intuito é
utilizar seus pontos convergentes e divergentes para apresentar uma visão mais ampliada da
estrela desse romance.
O foco na estrela sob duas concepções
A concepção existencialista focaliza o ser humano de maneira objetiva, conforme
observa Almeida (1991, p. 31), para quem a palavra “existir” origina-se da palavra ex-sistere,
cujo significado é “estar de pé”, “fora de”. Isso quer dizer que o ser humano e apenas ele é
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capaz de desenvolver habilidades perceptivo-criativas e crítico-analíticas, o ponto de
observar seu próprio ser como se estivesse fora dele, como se fosse seu alter ego.
Esse distanciamento de si leva o ser humano a refletir sobre suas ações e a
formalizar juízos sobre elas. Isto significa que se analisarmos a constitutividade da heroína,
do romance “A Hora da Estrela”, apenas sob o ponto de vista existencialista, corremos o
risco de enfocar somente os aspectos de sua aparência, e deixarmos escapar os aspectos de
sua essência, relativos ao universo interior.
Nesse universo estão imersos os sonhos secretos e os desejos que podem ser
compreendidos, de maneira mais profunda, sob a ótica da Psicanálise, que discorre sobre a
teoria do desejo. Nessa concepção, o homem é visto como o sujeito da falta, lugar teórico
onde se instala o desejo, ou a tentativa de reencontrar algo supostamente perdido. Não se
trata de algo materializado, mas de uma energia que impulsiona o sujeito para as conquistas.
Nessa perspectiva, Masotta (1987, p. 84) reitera que o desejo é como uma lançadeira, que continua
tecendo, quando à primeira vista, parece que o trabalho está terminado.
Sob esse ponto de vista, o sujeito é construído por um Outro que é responsável
pela sua inscrição no campo da linguagem, entendido como um conceito abstrato,
denominado por Lanjonquière (1992, p. 169), como sendo um lugar teórico (lógico), ou espaço
virtual que resulta da remissão infinita de uns significantes a outros: uma palavra/olhar da mãe que remete
a outros infinitamente. É a partir dessa “rede” de significados que se formam laços entre
mãe/filho, condição essencial para que a criança seja constituída como sujeito de uma
existência simbolicamente rica.
Essas funções estruturantes, que permitem ao sujeito se constituir como tal, na
visão existencialista, têm pouca relevância, posto que o sujeito, sob esta ótica, constrói a si
próprio, por isso, é condenado a ser livre e, sendo livre, não tem a quem responsabilizar
senão a si próprio, pelos seus atos. Nesse sentido, Sartre (1964, p. 84) reconhece que a
doutrina existencialista causa horror a um certo número de pessoas, porque, muitas vezes,
essa nega a tais pessoas a possibilidade de elas se apoiarem em elementos do contexto
sócio-econômico e político para justificar que as circunstâncias foram contra elas. E, não
tendo a quem culpar, não encontram meios de suportar sua miséria.
Acreditamos que essa base teórica possa subsidiar as reflexões sobre a
constitutividade de Macabéa, heroína do romance “A Hora da Estrela”. A concepção
existencialista, por focalizar os aspectos relativos à sua aparência e a concepção
psicanalítica, por focalizar os aspectos de sua essência de sujeito extrinsecamente
ambivalente constituído e definido integralmente no interior do campo da linguagem.
O nascimento da estrela
A autora Clarice Lispector assume um “EU” masculino para mergulhar no universo
do romance “A Hora da Estrela”, que ela o declara uma história de pouca arte, pois o
escreve com o dever de revelar sua protagonista à vida como forma de grito, de denúncia
social. Os trechos da obra submetidos à análise se apresentam em itálico, indicados por um
número na ordem crescente, conforme se inicia. [1] Ela nascera com maus antecedentes parece
filha de não-sei-quê, com o ar de se desculpar por ocupar o espaço. Nascera inteiramente raquítica, herança
do sertão.
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A estrela nascera doente e sobrevivera por causa de uma promessa que sua mãe
fizera a “Nossa Senhora da Boa Morte” para que ela “vingasse”. Caso isso acontecesse, e
ela atingisse um ano de vida, receberia o nome de Macabéa, uma alusão aos macabeus:
povo heróico e guerreiro, na história dos hebreus. Isto significa que se ela sobrevivesse
seria também uma heroína. Nessas circunstâncias de incerteza e insegurança, a “rede”
simbólica que envolve o encontro mãe/filha é tecida com significados negativos, os quais
situam a heroína no mundo, como sendo uma criança doente, raquítica, fraca e anônima.
Neste caso, a linguagem desempenha a função de rotulá-la negativamente,
influenciando, da mesma maneira, a formação de seu psiquismo, uma vez que o sujeito, sob
a ótica da psicanalítica, se constitui no interior do campo da linguagem ou campo do Outro
(mãe/pai), conforme já dissemos. É desse lugar que emergem as respostas às questões
inconscientes da criança, que deseja saber quem ela é, se ela é amada, e qual o seu lugar no
seio familiar.
A possibilidade de a mãe atender esses desejos filiais, de forma valorativa,
dependeria de sua condição psíquico-emocional, o que poderia favorecer ou não a
promoção da passagem da heroína, de um ser possível para um ser de existência real e
simbolicamente rica. Essa trama contraditória de desejos inconscientes, na visão
existencialista, tem pouca relevância para a constitutividade do ser, conforme afirma Sartre
(1964, p. 253).O homem é responsável pela construção de seu próprio existir, portanto só depende dele a
responsabilidade de construir uma existência significativa, já que a essência não lhe é dada gratuitamente.
A heroína vence a doença, é promovida da situação de um ser possível para a
situação de um ser de existência real e, conforme a promessa, recebe o nome de Macabéa.
No entanto, ela cresce encapsulada pelos rótulos verbais pejorativos, que a situaram no
mundo como um ser doente, frágil, raquítico e anônimo. Neste caso, a linguagem desempenha a
função de aprisionar a heroína, tornando-a uma jovem com pouca atitude, muita
introversão e dificuldade de lidar com os fatos sociais, conforme mostra o trecho. [2]
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da ausência que tinha em si mesma.
O desamparo da estrela
A infância da estrela é marcada por uma seqüência de perdas: fica órfã de pai e mãe,
é acolhida por uma única tia, que a castiga fisicamente e, se ainda não bastasse, a tia
também morre. Macabéa migra de Alagoas para o Rio de Janeiro, onde conhece o senhor
Raimundo, que passa a desempenhar a função da figura paterna em sua vida, integrando-a
socialmente ao conceder-lhe uma vaga de datilógrafa, no escritório onde é chefe, mesmo
notando que a moça tem pouca habilidade com as letras e com o teclado da máquina de
escrever. Essas mudanças fazem com que a vida da heroína evolua dentro de suas limitadas
possibilidades, mas, ainda assim, ela continua voltada para dentro de si, fala pouco e,
quando é solicitada a falar sobre gente, ela fica reticente e responde. [3] Desculpe mas acho que
não sou muito gente.
Ao conceber a si mesma como um mero objeto, Macabéa parece incorporar os
pressupostos existencialistas, que definem o ser humano pelo conjunto de suas ações. A
heroína não se encaixa nesse molde, pois, além de agir pouco, fracassa em quase todas as
suas ações. No entanto, por mais pobre que pareça sua existência, Macabéa não se reduz a
um ser-objeto, uma vez que ela abriga, no âmago de seu ser, a essência de sujeito
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intrinsecamente ambivalente, que tem sonhos, desejos, vícios e virtudes. Essa essência, que
se encontra ainda em estado latente, tende a se manifestar mais cedo ou mais tarde, já que o
sonho de liberdade é a força que impulsiona o ser humano para a reinvenção de realidades
e para a criação de mundos possíveis, onde ele possa se situar e manifestar sua
subjetividade.
Macabéa cria essa nova realidade quando toma a decisão de mentir. Ela mentiu para
seu chefe sem se preocupar com as conseqüências que este ato lhe podia trazer. [4] Então de
uma mentira que convence mais que a verdade disse ao chefe que no dia seguinte não ia trabalhar porque ia
arrancar um dente. E a mentira pegou. Ela não foi ao dentista. Ficou no quarto da pensão, onde
morava, rodopiando envolta em um lençol como se estivesse vestida de noiva.
No ato de mentir, a heroína demonstra uma certa criatividade, qualidade inerente ao
sujeito do desejo, que está em constante busca de algo que possa preencher sua falta. Assim
sendo, a mentira da heroína, na concepção psicanalítica, não denuncia a fraqueza de seu
caráter, pois, dentro de sua ingenuidade quase infantil, a mentira consiste em um meio de
ela se posicionar no mundo e marcar a diferença entre o ser humano e o animal, uma vez
que os animais não criam, não superam marcas. E Macabéa, por meio do poder da palavra,
cria uma nova realidade, supera o estigma de ser-objeto e passa à condição de ser do
desejo.
No entanto, o ato de mentir, na ótica existencialista, constitui uma falte grave, que
reduziria seu enunciador (Macabéa) a um não-ser, posto que o ser humano, nessa visão, é
concebido pelo conjunto de suas ações. Isto quer dizer que se o homem mentir, ele resulta
no conjunto de suas mentiras, isto é, numa não-existência, conforme a visão de Sartre
(1964, p .268). O homem embrenha-se na sua vida, desenha seu retrato, e para lá desse retrato não há
nada.
O despertar da consciência
Ao obter sucesso com o ato de mentir, Macabéa começa a se posicionar no mundo
e a manifestar sua subjetividade. [5] Sou datilógrafa, sou virgem e gosto de coca-cola. Aqui, a
heroína já se reconhece como um sujeito que tem uma identidade social, pois, a profissão, a
virgindade e o gosto por coca-cola a identificam com certos grupos sociais e lhe garantem
um lugar na sociedade.
Assim, Macabéa desperta para a consciência: “penso, logo existo”, idéia central da
concepção existencialista. Porém, ao tomar consciência de si, a heroína começa a sentir
dores e, em função disso, ingere muitas aspirinas. No entanto, o remédio não alivia suas
dores, e ela mesma não sabe explicar onde dói. Talvez não saiba, pelo fato de suas dores
abrangerem a dimensão do indizível inerente à sua condição de existir: a dor de ser mulher,
a dor de estar longe de sua terra natal, a dor de ser pobre, a dor da indiferença e da solidão.
A heroína revela suas dores no diálogo que ela estabelece com sua amiga Glória.
[6] –Por que é que você pede tanta aspirina?
-É para eu não me doer
-E como é? Hein? Você se dói?
-Eu me dôo o tempo todo.
-Aonde?
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-Dentro, não sei explicar.
O fato de o sujeito existir implica em ele agir. Esta condição faz com que Macabéa
persista na busca de algo que possa preencher seu vazio. Nessa busca, ela encontra José
Olímpico, seu provável pretendente. No entanto, o prazer de sua conquista é efêmero, já
que seu objeto de amor é fisgado por sua amiga Glória. Na visão existencialista, Macabéa
seria reduzida ao nada da existência humana, uma vez que soma mais fracassos do que
sucessos. Neste sentido, Sartre (1964, p. 269) reitera: o homem nada mais é do que a série de
empreendimentos da qual ele é a soma. Isto significa que, se o ser humano não empreende, a
soma de seus empreendimentos é equivalente ao nada, o que equivale á sua existência.
No entanto, na visão psicanalítica, a concepção de perdas e ganhos assume outra
dimensão, uma vez que coloca em relevo a “rede” simbólica que envolve o evento: o
encontro de Macabéa/José Olímpico, e não a conseqüência desse evento: Macabéa perder
o namorado para sua amiga Glória, posto que anterior a esse fato, o rapaz significara a
existência da heroína no mundo, ao tratá-la, pela primeira vez, como “senhorinha”. [7] E se
me desculpe senhorinha posso convidar a passear? Tal tratamento era dado às pessoas que tinham
poder de decisão, como os senhores feudais e os imperadores, na Idade Média. Ao receber
esse tratamento, Macabéa é investida de um poder simbólico que lhe poderia abrir
perspectivas para assenhorar-se do seu destino.
Linguagem: libertação x aprisionamento da estrela
Esse poder simbólico poderia descortinar um novo mundo para Macabéa se, a
partir desse momento, as pessoas de seu convívio fizessem uso de palavras valorativas para
significar e enriquecer sua existência, uma vez que é na linguagem e pela linguagem que o homem
se constitui como sujeito, porque só a linguagem fundamentada na realidade de seu ser, dá origem ao conceito
de “ego”, Benveniste (1995 p. 286). Entretanto, José Olímpico, que antes tratara Macabéa
como “senhorinha”, agora deprecia sua imagem. Mas, apesar disso, ela insiste em
compartilhar, com ele, seu sonho de ser artista de cinema, assim como Marylin. E ele a
responde com a expressão pouco polida. [8] Você tem cor suja. Nem tem rosto nem corpo para ser
artista de cinema.
Os rótulos cor suja, feia de corpo, feia de rosto ofuscam o brilho da estrela, mas não o
apagam. Ela continua abrigando, no seu âmago, uma dimensão humana que a identifica
com as coisas belas. Ela admira as flores, as palavras que considera difíceis, como
“efemeridade” e “mimetismo”. Encanta-se com a melodia da música “Una Furtiva
Lacrima”, mas questiona a grafia da palavra “lacrima” e diz não entender o porquê não a
grafaram “lágrima”. Enfim, a heroína manifesta desejo de conhecer a dimensão significativa
das palavras e, por esse meio, significar seu mundo e suas emoções.
No entanto, essa possibilidade parece remota, pois, até mesmo nos momentos de
aparente intimidade, com seu namorado, ele se dirige a ela com expressões pejorativas. [9]
Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Nesse enunciado, estão
subentendidas as idéias de que Macabéa é um ser repugnante e que causa náusea, portanto
não desperta o apetite sexual de seu namorado.
A heroína incorpora esses discursos e, como conseqüência, ela constrói uma
imagem negativa de si mesma, posto que ela se vê por meio do olhar do Outro, que é a sua
interlocução. Nesse sentido, Amossy (2005, p. 11) defende que nas duas pontas do discurso os
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interlocutores fazem a imagem um do outro. O emissor faz uma imagem de si mesmo e de seu interlocutor e,
reciprocamente, o receptor faz uma imagem do emissor e de si mesmo.
Assim, Macabéa vai se tornando um ser cada vez mais aprisionado pela palavra.
Mas, sua condição de sujeito constituído na linguagem e pela linguagem, a impulsiona a
reinventar a realidade, ainda que seja por meio de sonhos. Macabéa sonha em parecer-se
com Marylin, grande estrela de cinema. E, apesar de não encontrar eqüidade no jogo
intersubjetivo, ela ainda se arrisca a compartilhar seu sonho com a amiga Glória, que a
repreende. [10] Logo ela Maca? Vê se te manca! Oh mulher, não tens cara!
A heroína, momentaneamente, sente-se derrotada nesse jogo intersubjetivo e passa
a preferir a solidão e o silêncio, que é interrompido, apenas, com as músicas tocadas na
Rádio Relógio. Tais músicas preenchem o ser de Macabéa de presença humana e
contribuem para afastar sua solidão, uma vez que as músicas resultam em um meio de
comunicação que prescinde da palavra.
A nova fase da estrela
O destino da estrela muda quando ela encontra a cartomante que, ao recebê-la em
sua casa, usa palavras acolhedoras para inseri-la no campo dos significados positivos,
conforme o trecho. [11] O meu guia já tinha me avisado que você viria me ver, minha queridinha.
Como é mesmo seu nome? Ah é? É muito lindo, Entre meu benzinho. Nesse encontro, Macabéa
conhece a face da palavra que a acolhe e a afaga, mas as maiores emoções ainda estão por
vir, após a cartomante consultar as cartas e escutar a voz de seu guia, sobre o destino da
estrela. Macabéa conheceria um gringo que teria muito dinheiro e daria muito amor para
ela. Após a preleção, a cartomante a orienta. [12] E agora você vá embora para encontrar seu
maravilhoso destino.
Assim, a palavra que antes servira ao aprisionamento da estrela, agora serve à sua
libertação. Mas ocorre que ela teme as palavras, por acreditar que exista a palavra fatal,
aquela que poderia ameaçar sua frágil existência. Será que chegou a hora de seu encontro
com a palavra fatal? [13] Macabéa saiu da casa da cartomante aos tropeços. Ficou aturdida sem saber
se atravessava a rua, pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras – desde Moisés já se sabe
que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro.
A palavra aturdida remete ao campo semântico de: maravilhada, pasmada, atônita, boquiaberta,
perturbada, assombrada, assustada, atordoada etc. Isto significa que a razão da heroína cedera
lugar à sua emoção, tornando-a ainda mais vulnerável.
A transcendência da estrela
Macabéa sai da casa da cartomante com a visão ofuscada pela emoção e, ao dar o
primeiro passo de descida para atravessar a rua, acontece-lhe o inesperado. [13]...o Mercedes
amarelo pegou-a – nesse mesmo instante, em algum lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se
em gargalhadas. E assim a estrela transcende o real e ganha um lugar privilegiado junto às
constelações, de onde pode brilhar e iluminar o mundo. Ao refletir sobre essa passagem,
Safra (1999, p. 154) conclui que o paradigma da morte está no próprio processo de nascer, em que os
movimentos que levam ao nascimento, criam também a possibilidade de abandono de um estado anterior.
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A posição como Macabéa ficou caída simbolizou um bebê no útero materno. [14]
Ela abraçou a si mesma, se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal. Esse fenômeno, que
pode ser interpretado como morte por alguns, e como renascimento para outros, nós o
interpretamos como transcendência da realidade e Freud (1999) o interpreta como uma não
extinção, mas como o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo
mais elevado. Nesse fenômeno, subjaz a idéia de que a estrela fora conduzida à perfeição que
deixara de atingir em sua curta existência de dezenove anos.
Considerações finais
A reflexão sobre o romance “A Hora da Estrela”, centrada na relevância do papel
da linguagem no processo constitutivo de Macabéa, foi orientada sob a visão do
Existencialismo e da Psicanálise. A teoria psicanalítica concebe a linguagem como fator
preponderante no processo constitutivo do sujeito, uma vez que ela tem o poder de
aprisionar e libertar; construir existências nobres e pobres, bem como possibilitar ao sujeito
à criação de mundos possíveis onde ele possa expressar os diferentes aspectos de seu EU.
Sob a visão do Existencialismo, focalizamos os aspectos da aparência de Macabéa,
que revelaram-na como uma personagem plana, desprovida de encanto e surpresa, dada a
sua apatia e sua imobilidade social, qualidades que a reduziriam a um ser-objeto ou apenas
um número no meio da multidão, conforme a visão de Sartre (1964 242). O homem só será
alguma coisa conforme si próprio se fizer, uma vez que não há esperança para ele senão na sua ação.
Em síntese, salientamos que na análise dos diálogos que rotularam e aprisionaram a
estrela, bem como na análise daqueles que desvelaram seu brilho e libertaram-na, não
consideramos o valor de verdade ou falsidade subjacente a eles, por se tratar de uma obra
literária, que se pauta pelo valor da verossimilhança. Salientamos, da mesma maneira, que
esta análise não esgotou a gama de sentidos contida no romance “A Hora da Estrela”.
Assim sendo, este ainda constitui um corpus significativo para futuras análises.
Referências Bibliográficas
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AMOSSY, R. Imagens de si no discurso-a constituição do ethos. São Paulo: Contexto,
2005.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. São Paulo: Pontes, 1995.
FREUD, S. O futuro de uma ilusão, o mal-estar da civilização e outros trabalhos. São
Paulo: Imago, 1996.
LAJONQUÉRE, L. De Piaget a Freud. Petrópolis: Vozes, 1992.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
MASOTTA, O. O comprovante da falta. Lições introdutórias à psicanálise. São Paulo:
Papiros, 1987.
SAFRA, G. A face estética do self. São Paulo: Unimarco, 1999.
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. Lisboa: Presença, 1964.
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CARVALHO, Cristina dos Santos. Processos sintáticos de articulação de orações:
algumas abordagens funcionalistas. Veredas – Revista de Estudos Lingüísticos,
Juiz de Fora, v.8, n.1 e n.2, p. 9-27, jan./dez. 2004
Daniel Pereira Alves
Em seu artigo sobre articulação de orações, Cristina Carvalho ressalta,
primeiramente, a inconsistência teórica dos conceitos de coordenação e subordinação
apresentados pela tradição gramatical, o que tem servido de estímulo para que se
desenvolva, nos estudos lingüísticos, outros posicionamentos quanto ao tratamento das
sentenças complexas. Elas passam a ser abordadas com ênfase em aspectos como (i) a
“interpenetração dos processos sintáticos de coordenação e subordinação”, (ii) o
questionamento dos critérios e nomenclaturas adotados tradicionalmente e (iii) a
proposição de critérios mais coerentes para a análise dessas sentenças.
Para desenvolver seu trabalho, dividido em três partes e conclusão, a autora se
baseia em uma avaliação crítica de algumas obras pertinentes ao assunto. Na primeira parte,
é apresentada a abordagem tradicional das sentenças complexas, que é feita levando-se em
consideração os processos de coordenação e subordinação. Para isso, são destacadas
algumas definições desses dois processos fornecidas por gramáticas de cunho normativo,
tais como Cunha (1986), Bechara (1992), Rocha Lima (1999) e Cegalla (1994). Consideramse, ainda, os critérios utilizados por representantes desse modelo de análise gramatical para
diferenciarem tais processos.
Pela análise das definições dadas pelos gramáticos tradicionais, a autora conclui que
os processos sintáticos de coordenação e subordinação são descritos, tendo-se em vista um
mesmo parâmetro: a noção de (in)dependência, que tanto em termos formais como em
termos semânticos, é associada aos processos sintáticos em questão, estabelecendo a
diferença entre um e outro. De um lado, as orações coordenadas se associam à
“independência”, em relação ao seu significado e à sua estruturação sintática. De outro, as
subordinadas se associam à “dependência”, pois além de desempenharem uma função
sintática em uma outra oração, dita principal, necessitam dela para que seu sentido seja
completo.
Um outro ponto salientado pela autora diz respeito ao caráter dos exemplos
fornecidos pelas gramáticas tradicionais (GTs) que são, na maioria das vezes, ou criados ou
elencados a partir de textos literários, não havendo referências a frases complexas da
modalidade falada da língua. Na verdade, os conceitos da GT nem sempre dão conta dessas
frases da língua falada, o que corrobora a afirmação de Perini (1996) de que “teoria e
prática tradicionais estão em conflito”.
Já na segunda parte, a autora mostra como o estudo das sentenças complexas tem
se realizado na abordagem funcionalista e como representantes dessa orientação teórica
tem investigado esses processos sintáticos e proposto novos critérios de classificação. Para
tanto, ela se baseia em teóricos como Halliday (1985), Matthiessen e Thompson (1988),
Givón (1990), König e Auwera (1988), Gryner (1995), Castilho (1998), Neves (1999) e
Decat (1999), apresentando alguns pontos de seus estudos.
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Muitos desses autores compartilham da mesma opinião em algumas questões,
sobretudo no que concerne à taxonomia e aos critérios de análise adotados pela tradição
gramatical. Segundo a autora, na concepção de König e Auwera (1988), a dicotomia
coordenação (ou parataxe) versus subordinação (ou hipotaxe) é estabelecida a partir de
critérios inconsistentes, não sendo suficientes, portanto, para descrever todos os tipos de
sentenças complexas das línguas. Esse ponto de vista também é defendido por Gryner
(1995), que considera imprecisas as definições dadas pela tradição gramatical.
Outro parâmetro considerado insuficiente pela perspectiva funcionalista é a noção
de (in)dependência como base para se diferenciar sentenças coordenadas de subordinadas.
Givón (1990) afirma ser insatisfatória essa noção, uma vez que nenhuma oração, em um
discurso conexo e coerente, pode ser considerada totalmente independente de seu contexto
oracional. Uma tipologia rígida, baseada em dicotomias absolutas, só é aplicável em
contextos pré-selecionados, não abrangendo, desse modo, todos os fatos lingüísticos,
principalmente os da modalidade falada, como enfatiza Decat (1999). Essa autora propõe
uma redefinição dessa noção de independência, com base em critérios discursivos e
pragmáticos, redefinição também considerada por Castilho (1998).
Halliday (1985), por sua vez, analisa as sentenças complexas a partir de um eixo
tático e um eixo lógico-semântico. O primeiro diz respeito à relação de interdependência
entre palavras, sintagmas ou cláusulas e abrange a parataxe e a hipotaxe. O segundo se
refere às relações semântico-funcionais verificadas entre as cláusulas presentes nas frases
complexas, compreendendo as relações de expansão e projeção. Matthiessen e Thompson
(1988) mantêm-se na mesma linha de abordagem de Halliday (1985), mas diferem desse
último no tratamento de cláusulas de fala reportada, consideradas pelos primeiros como
instanciações de estruturas encaixadas e, por Halliday (1985), como construções
hipotáticas. Neves (1999), também se baseia na proposta de Halliday (1985), ressaltando a
importãncia de “uma abordagem sistêmica dos processos possíveis de vinculação de
sentenças”.
Na terceira parte, apresentam-se as propostas de Lehmann (1988) e de Hopper e
Traugott (1993) para a identificação e tipologização de sentenças complexas. Embora
também sejam de cunho funcionalista, tais propostas são enfocadas à parte, porque a
autora procura aplicá-las a alguns dados. Ao rejeitarem as dicotomias
coordenação/subordinação e hipotaxe/parataxe, esses autores propõem que a
tipologização das sentenças complexas se dê a partir de “continua”, que considerem os
diferentes níveis de vinculação entre as cláusulas.
A autora apresenta, primeiramente, os parâmetros semântico-sintáticos postulados
por Lehmann (1988) para o estudo da articulação de cláusulas e os aplica em dados de
sentenças complexas com verbos causativos e perceptivos. Com a análise desses dados,
percebe-se a atuação de um dos parâmetros propostos por Lehmann (1988): a
gramaticalização do verbo principal. Em seguida, é apresentada a proposta de Hopper e
Traugott
(1993),
que
redefine
as
terminologias
parataxe/hipotaxe
e
coordenação/subordinação, ao sobrepor esses dois pares e criar uma “tricotomia” –
parataxe/hipotaxe/subordinação. O processo de junção de orações é considerado,
portanto, em três diferentes graus de dependência:(i) parataxe ou relativa independência, (ii)
hipotaxe ou interdependência e (iii) subordinação ou completa dependência.
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Por fim, a autora conclui haver, dentro do funcionalismo lingüístico, uma
convergência entre as diversas proposições teóricas que tratam da descrição dos processos
sintáticos de junção de orações. Devido à relevância de tais proposições para o
desenvolvimento de pesquisas sobre as sentenças complexas, a leitura do artigo de
Carvalho (2006) é recomendável a quem queira adentrar na análise dessas construções
sintáticas, pois introduz, de forma clara e objetiva, pontos importantes sobre esse assunto.
Além disso, por sintetizar algumas das principais propostas de investigação das sentenças
complexas no quadro teórico funcionalista, seu texto é um bom caminho para aqueles que
desejam ter um primeiro contato com essa perspectiva de análise.
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POR UM CONTÍNUO DA ORALIDADE PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA E A
RELAÇÃO DE PODER ENTRE A ESCRITA E A ORALIDADE: resenha crítica de
ONG, Walter. A palavra proferida como poder e ação. in. _______. Oralidade e
cultura escrita. São Paulo: Papirus, 1998
Francisco Edmar Cialdine Arruda
São vários os temas abordados por Ong em sua obra. Difícil é delimitar apenas um
dentre vários, mesmo porque, direta ou indiretamente todos estão intercalados. O livro
acaba, assim,se tornando um referencial para os estudos da Oralidade e Escrita, seja para
assumir uma posição a favor, contradizê-lo ou reformulá-lo. Assim escolhemos dois temas
que achamos de grande importância para os estudos atuais: sua classificação da cultura oral
em primária e secundária e ainda a tensão existente na relação da oralidade e escrita. Ambos
os temas desenvolvidos principalmente no capítulo 03.
O autor inicia a seção “A palavra proferida como poder e ação” do terceiro capítulo
intitulado “Sobre a psicodinâmica da Oralidade” anunciando que fará algumas generalizações
sobre a psicodinâmica das culturas orais primárias. As culturas orais primárias (COP) são
aquelas comunidades lingüísticas que nunca tiveram contato com qualquer forma de
manifestação escrita. Este termo se opõe à cultura oral secundária (COS) que são
comunidades com um alto desenvolvimento tecnológico viabilizado pela escrita.
Se retornarmos aos capítulos anteriores, observaremos que o autor defende a quase
total inexistência de uma COP strictu sensu hoje. Por outro lado, ele justifica o termo cultura
oral secundária porque, mesmo com todo o desenvolvimento, tais culturas orais
secundárias preservam, em diferentes níveis, estruturas mentais da Oralidade. De fato, se
existem diferentes níveis de COS, como podemos delimitar onde esta termina e uma
primária se inicia? Na verdade, poderíamos encaixar as inúmeras comunidades lingüísticas
dentro de um contínuo que iria da oralidade típica e totalmente primária à plenamente
secundária. Poderíamos exemplificar tal idéia a partir de três comunidades diferentes: a
tribo amazônica dos Pirahãs, a comunidade surda e grupos de analfabetos que vivem em
grandes metrópoles. Esses grupos, dentre outros que também existem, que não se
enquadrariam dentro da cultura oral primária nem da secundária, tais como foram
concebidas por Ong.
No que se refere aos Pirahãs, é importante saber que eles são uma tribo com
características lingüísticas peculiares: sua língua desafia o conceito de Gramática Universal,
não possuem abstração aritmética, isto é, não usam números nem sabem contar e todos os
enunciados são feitos no presente, não há tempo verbal para se referir ao passado. Isso
poderia justificar eles não possuírem nem escrita nem tradição oral. Tal fato vai ao
encontro do que Ong afirma, uma Oralidade totalmente isenta de uma escrita é apenas som
sem qualquer representação visual. Mais ainda, por não possuir enunciados no passado, os
pirahãs estão lingüisticamente presos ao presente. Todo e qualquer enunciado de uma
cultura tipicamente oral é, nas palavras do autor, um modo de ação e não simplesmente
uma confirmação do pensamento
Já a comunidade surda, apesar de não possuírem uma língua oral materna, sua
língua de sinais é revestida de uma estrutura lingüística equivalente à estrutura dos fonemas.
Isso oferece um caráter “oral” às essas línguas. No entanto, no caso dos surdos brasileiros,
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eles não possuem uma escrita que represente sua “oralidade”.185 O uso do português
escrito, apesar de ser uma alternativa se mostra como um recurso de difícil domínio devido
às diferenças estruturais entre o português e a LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais. Desse
modo poderíamos questionar em que tipo de cultura estaria a comunidade surda no que se
refere ao modelo proposto por Ong. É fato que os surdos brasileiros não podem ignorar a
cultura escrita que há ao seu redor – mesmo não sendo a manifestação escrita de sua
própria língua. De qualquer modo, será o português escrito a principal forma de acesso ao
conhecimento fora de uma interação face-a-face.
Por fim, no caso dos analfabetos, o baixo nível de escolaridade ou a falta do uso
escolar da escrita não influenciarão no domínio dos diversos usos da língua – isto falando
em termos de Letramento. Sabemos que um indivíduo, mesmo analfabeto, pode ter e
provavelmente terá um certo nível de Letramento adquirido a partir das práticas sociais do
uso da língua.
Diante dos exemplos destas comunidades, uma visão continua entre ambos os tipos
de Oralidade se mostraria muito mais próxima da realidade. Não há limites plenamente
definidos quando se trata da relação fala-escrita.
Outro ponto que nos chamou a atenção nesta seção é a relação de poder entre a
Oralidade e a Escrita. Ong, ao citar Malinowski (1923), afirma que para os povos orais (na
verdade ele cita povos “primitivos”) a linguagem é mais que uma forma de confirmação do
pensamento, é também um modo de ação. Isto pode nos remeter à Teoria dos Atos de Fala
de J. L. Austin. De acordo com essa teoria, ao proferirmos uma sentença, mais do que
falando, estamos agindo sobre nosso interlocutor e sobre a própria realidade. O exemplo
clássico é quando é dito “eu aceito esta mulher como minha esposa” dentro de um
contexto de casamento. O locutor não apenas afirma que aceita, mas aceita de fato e tornaa sua esposa, ou seja, a língua passa a configurar como uma atitude independente do nível
de oralidade na cultura.
Apesar de tudo que foi colocado, com o desenvolvimento humano, a escrita vai
tomando um papel essencial que hoje possui. Vários autores são enfáticos ao concluir que
o desenvolvimento do conhecimento se deu em parte por conta da escrita e de seu
prestígio social e no modo de pensamento humano. Ong exemplifica com a seguinte
situação: imagine que você tem um problema complexo a ser resolvido e, percorrendo um
longo raciocínio, você o resolve. Como seria possível retomar todo o percurso
posteriormente passo a passo sem uso de um artifício escrito? A transmissão em situações
como essa são facilitadas pela interação entre interlocutores, mesmo que um dele seja
“virtual”. Isso significa que na ausência de uma cultura escrita a resposta do problema se
perderia facilmente por conto do pensamento está apoiado no processo comunicativo.
Tais afirmações podem parecer contraditórias dado o passado oral da língua em
detrimento à cultura escrita. Somos essencialmente seres que interagem oralmente com
mais freqüência e há mais tempo, se compararmos com o uso da escrita. O próprio Ong no
Não faz parte desse trabalho discutir a questão da Escrita de Sinais que vem sendo pesquisada no Sul.
Basta-nos, por hora, dizer que, por mais que haja todo um trabalho lingüístico sobre esta escrita ela ainda não
é, ao nosso ver, uma manifestação escrita natural dos surdos – poucos surdos conhecem sua existência e
menos ainda a dominam.
185
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primeiro do mesmo livro ressalta categoricamente que a expressão oral pode existir
independente da escrita, mas não o contrário (Ong, 1982, 16) – isto apesar da cultura oral
secundária guardar resquícios de uma mentalidade oral como abordamos acima.
Mary Kato, em seu clássico No mundo da escrita (1986), diz que a escrita foi vista por
muito tempo com desconfiança devido sua vulnerabilidade a adulterações e sua
impessoalidade. Apenas no século II foi que ela começou a receber alguma legitimação.
Isso se deu pelo contexto histórico existente que eclodiu com a reforma de Lutero. Ele
contestou a autoridade oral e postulou a Bíblia como fonte verdadeira. Ler – e
conseqüentemente o texto escrito - passou a ser o mesmo que ter acesso à fonte primária,
original.
A partir de então a Oralidade foi relegada cada vez mais a um segundo plano, o que
justifica a supervalorização da escrita. Uma forma de vermos os reflexos desta
supervalorização é ao julgarmos os valores das variantes orais usando medidas típicas da
escrita – o que gera o preconceito lingüístico. Outra grande conseqüência que percebemos,
dentro do ambiente escolar, é a quase total inexistência de atividades que busquem
desenvolver a expressividade oral dos alunos de língua materna. Pesquisas recentes
ressaltam a importância que desenvolver a competência comunicativa dos estudantes
através de atividades propostas com base em gêneros orais.
Para concluir, acreditamos que os tópicos expostos a partir da seção da obra de
Ong (1982), merecem uma discussão mais aprofundada. Nosso objetivo aqui foi apenas
lançar a temática e tecer alguns comentários e comparações preliminares. Vemos que ainda
hoje,muito do que se discute em termos de oralidade e escrita teve sua origem em estudos
como os aqui desenvolvidos por Ong. Esses estudos têm sido cada vez mais
desenvolvidos, inclusive, por conta da Lingüística do hipertexto e dos gêneros eletrônicos,
cujos objetos de estudos rompem os paradigmas clássicos da relação Oralidade e Escrita.
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ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras – coesão e coerência. São Paulo. Parábola
Editorial; 2005.
Michaell Victor Grillo186
Acadêmico do curso Comunicação Social - UFRJ
Pode-se afirmar que o livro Lutar com palavras-coesão e coerência, de Irandé Antunes, tem
por objetivo esclarecer os mistérios que ainda envolvem a construção de um texto coeso e
coerente, sem utilizar teorias complexas e pouco inteligíveis.
A autora tem a preocupação de permear toda a sua obra com um assunto de extrema
relevância para os estudos lingüísticos atuais: a elaboração de textos. Numa crítica às
escolas, Antunes se mostra indignada com as instituições de ensino que insistem em
abordar apenas gramática durante as aulas de Português.
Nota-se que Irandé Antunes é perpiscaz em seus comentários. Mesmo sabendo que
nenhuma pessoa sai às ruas dizendo absurdos e frases sem sentido, as escolas têm por
obrigação ampliar as competências lingüísticas de cada um. Mas não é isso que pode ser
observado na atualidade. Há uma preocupação única e exclusiva em ensinar o que é certo e
o que é errado dentro da Língua tida como padrão pela sociedade. Porém, a Língua é muito
mais do que um simples “tirar ou pôr” de unidades gramaticais e lexicais. É saber escolher
qual recurso gramatical ou lexical deve ser utilizado no decorrer da produção de um texto; é
entender que nunca há elaboração de um texto fora de uma situação cultural.
Percebe-se que, ao obrigar os alunos a exercitarem a gramática, mediante a elaboração
de frases soltas, as escolas em nada estão contribuindo para formar cidadãos aptos a
escrever qualquer tipo de texto. Devido à falta de prática, as pessoas sentem muita
dificuldade em produzir textos coesos, com propósitos claros. Um texto vai muito além do
aspecto superficial, ou seja, do gramatical. Ele deve ser entendido, acima de tudo, pelo
contexto em que está inserido e pelos efeitos que seus produtores desejam obter.
Segundo Antunes, entende-se por um texto coeso aquele que apresenta continuidade
semântica obtida pelo encadeamento de suas subpartes, ou seja, aquele que não apresenta
partes soltas e sim, unidas. Esse “laço” é conseguido pela retomada de elementos que
aparecem em algum momento anterior do texto (reiteração), pela escolha do vocabulário a
ser utilizado (associação), ou então pelo emprego de conectores (conexão).
Observa-se que, no campo da reiteração, incluem-se os procedimentos da repetição e da
substituição. A repetição engloba os seguintes recursos: paráfrase, paralelismo e repetição
propriamente dita de uma palavra ou de uma expressão, enquanto a substituição pode ser
da ordem gramatical ou lexical, ou ainda, ser estabelecida pela utilização da elipse.
É importante ressaltar que a autora, ao abordar a repetição, principalmente a repetição
propriamente dita, tem a preocupação de esclarecer que não se trata de um recurso
exclusivo da oralidade, muitas vezes marcada pela “despreocupação” e pela informalidade.
É um recurso muito significativo na escrita, exercendo inúmeras funções distintas.
Aluno do curso de Comunicação Social da UFRJ, habilitação Jornalismo. Trabalha com a área esportiva e
cultural. Email: [email protected]
186
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Observa-se ainda que, se a repetição for mal empregada, fará com que o enunciado caia na
mesmice, que não progrida no desenrolar dos fatos. Antes de mencionar que a repetição é
utilizada sem nenhum propósito claro, deve-se analisar o contexto em que ela está inserida.
Nota-se que Antunes, ao citar a substituição como uma das maneiras de se obter o nexo
coesivo, tem a preocupação de alertar para os perigos que correm as pessoas ao
substituírem um termo por um pronome em frases soltas; de elucidar o que fazer quando
se está em dúvida, por exemplo, entre usar um pronome ou um sinônimo e de mostrar a
importância do contexto na hora dessa escolha.
É preciso ter consciência de que, ao substituir uma palavra mencionada anteriormente
por um pronome, deve ser levado em conta o contexto em que ocorre tal substituição (o
contexto tem muita importância nas retomadas por elipse, pois é ele o responsável por
identificar os termos omitidos, a fim de que não se perca o “fio” que amarra o texto). Se tal
procedimento for realizado em frases soltas, a substituição estará correta, mas quando
levadas para o texto, pode gerar uma ambigüidade, acabando por acarretar um problema de
interpretação. Percebe-se, então, que o melhor a ser feito, não é substituir a palavra por um
pronome, mas, por um sinônimo, hiperônimo, caracterizador situacional ou simplesmente
repetir a palavra.
Observa-se, ainda, que a substituição leva uma vantagem sobre a repetição, já que pode
acrescentar informações ou dados a uma referência já introduzida, ou seja, pode deixar o
texto mais informativo. Dependendo do tipo de substituição, possuir apenas o
conhecimento da Língua é insuficiente, sendo necessário levar o conhecimento de mundo
do leitor para a interpretação, o que acaba por confirmar ser a substituição muito mais da
ordem sociocognitiva do que da ordem lingüística.
Observa-se que, no campo da associação, se faz presente o procedimento da seleção
lexical, ou seja, da seleção de palavras semanticamente próximas com o intuito de provocar
a unidade temática do texto e conseqüentemente, sua progressão. É importante ressaltar
que o responsável por essa seleção é o próprio tema, o tópico do texto e a intenção
pretendida na interação. Porém, pouca gente parece perceber que a escolha de palavras
pertencentes a um mesmo campo semântico, além de ocasionar a ligação de diferentes
segmentos, torna o texto relevante, interessante, e não algo monótono, comum. Em
contrapartida, pode-se observar que o simples fato de aparecer um grupo de palavras
associadas não garante que o texto seja coeso, que tenha unidade e que progrida
tematicamente.
Quando Irandé Antunes fala da conexão, destaca as funções dos conectores: ligar as
subpartes de um texto (não só orações, mas também períodos, parágrafos ou blocos
maiores do texto) e indicar as relações de sentido e de orientações argumentativas. A autora
não demonstra preocupação em fornecer nomenclaturas a essas relações de sentido
proporcionadas pelos diversos tipos de conectores. O que realmente importa é orientar o
interlocutor a cerca da direção pretendida, até porque muitos desses conectores assumem
mais de um valor semântico.
Nota-se que a coerência só começa a ser abordada por Antunes no penúltimo capítulo
do livro. Na verdade, essa distribuição não causa nenhum espanto, até porque é impossível
realizar um estudo textual, separando artificialmente os conceitos de coesão e coerência.
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Por isso, limita-se a fazer pequenas considerações sobre incoerências pontuais e globais e a
respeito das Meta-Regras formuladas por Charolles, que simplesmente retomam aspectos
abordados por autores que trabalham com coesão. O que fica da sua análise sobre a
coerência é que ela depende, e muito, de aspectos extralingüísticos.
Portanto, assim como insistiu Irandé Antunes em toda sua obra, é de extrema
importância continuar lutando para que as instituições de ensino do nosso país despertem a
tempo, a fim de entender o que é ensinar a verdadeira Língua Portuguesa. Muito mais do
que trabalhar com os conceitos de certo e errado, é preciso que se faça compreender a
Língua como uma representação da realidade, constituída a partir de relações sócioculturais e não só de aspectos lingüísticos. De uma vez por todas, é preciso que muitos
“formadores de intelecto” entendam que um texto não se faz apenas com gramática.
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ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Lingüística aplicada: ensino de línguas e
comunicação. 2ª ed. Campinas, SP: Pontes Editores e Arte Língua, 2007. 112 p.
Silvia Perobelli
Mestranda em Lingüística Aplicada – UPF – Passo Fundo – RS
Docente do Curso de Letras da URCAMP – São Borja – RS
O livro Lingüística aplicada: ensino de línguas e comunicação, de José Carlos Paes de
Almeida Filho é uma obra que representa um trabalho de pesquisa, análise e reflexão do
autor, apresentando noções de vários assuntos referentes à Lingüística Aplicada (LA),
ciência irmã da Lingüística e da Estética da Linguagem. O livro proporciona ao leitor uma
noção do que é lingüística, lingüística aplicada e ensino de línguas.
Lingüista brasileiro, Almeida Filho possui um currículo admirável. Graduou-se em
Letras pela Universidade Católica de São Paulo (1971), especializou-se em Lingüística
Aplicada pela Universidade de Edimburgo, na Escócia (1975), obteve o grau de mestre em
Educação em Língua Estrangeira, na Inglaterra (1976), e o grau de doutor nos Estados
Unidos (1984). Atualmente é professor adjunto do Instituto de Letras da Universidade de
Brasília. Possui experiência na área de Pesquisa Aplicada no que se refere à linguagem, com
ênfase em Teoria do Ensino e Aprendizagem de Línguas.
No livro, o autor aborda o assunto de forma clara e precisa de tal maneira que torna
o texto in totum acessível a acadêmicos iniciantes na área e até mesmo a leigos, situados fora
do mundo acadêmico. Com maestria e experiência no assunto, Almeida Filho conseguiu
escrever sobre o interessante e complexo processo de aprender e ensinar línguas, regando
com observações feitas ao longo de seu trabalho como pesquisador.
O livro está equibradamente dividido em oito capítulos e cada um, por sua vez,
apresenta subdivisões. No primeiro, Língüística aplicada, aplicação de lingüística e ensino de línguas,
Almeida Filho expõe sobre o desenvolvimento da Lingüística Aplicada como área de
conhecimento objetivo e sistemático e como esta ciência foi, durante décadas, sinônimo de
ensino de línguas, principalmente de língua estrangeira. Neste capítulo, é proporcionado
um panorama do percurso da LA durante o século XX e do cenário de aprendizagem de
línguas. Além disso, discute sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas e
apresenta os fatores externos e internos influentes deste processo.
No segundo capítulo, Maneiras de compreender lingüística aplicada, o autor discorre sobre
a Língüística Aplicada como ciência ligada à pesquisa científica, cujo objeto de estudo é o
problema ou o uso real da linguagem na prática social. Ainda, sustenta que há maneiras de
entender a LA e mostra o percurso de cada uma delas e situa esta ciência como
descendente das Ciências Humanas e Ciências da Linguagem.
O terceiro capítulo, A questão das línguas estrangeiras no currículo das escolas fundamental e
média, trata das repercursões do modelo de oferta da disciplina língua estrangeira no
currículo escolar público, depois da reforma introduzida pela Lei 5692, em 1971. Também,
trada da questão de quais línguas estrangeiras devem ser ensinadas nas escolas e da questão
de não haver no país uma política de ensino de línguas nas escolas públicas. Além disso, é
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exposto sobre o papel da disciplina língua estrangeira na rede de ensino que, segundo o
autor, é basicamente educacional-cultural-comunicacional.
No quarto capítulo, Pela diversidade de oferta de línguas estrangeiras na escola, é exposto
sobre a inclusão das línguas estrangeiras como disciplina nas escolas e são apresentados
critérios que fazem com que determinada língua estrangeira seja introduzida como
disciplina no currículo escolar. A seguir, é discultido sobre o termo “plurilingüismo”,
mostrando que dentro da área educacional esta palavra adquiriu concepção diferente da que
considrea a lingüística e a lingüística aplicada.
No quinto capítulo, A formação do professor de LE em nível de pós-graduação: o ensino e a
pesquisa, o autor trata da formação do professor de língua estrangeira em nível lato sensu e
stricto sensu. Comenta sobre os cursos de pós-graduação específicos de ensino de LE no
Brasil e sobre os perigos do processo de formação pós-graduada. O lingüista aborda
algumas possíveis opções para a implementação de uma política de formação de
pesquisadores e especialistas na área de ensino e aprendizagem de língua estrangeira no
país.
No sexto capítulo, A trajetória de mudanças no ensino e aprendizagem de línguas: ênfase ou
natureza?, Almeida Filho proporciona uma visão dos métodos utilizados no ensino de
línguas, nas décadas de 70, 80 e 90. Define o que é metodologia de ensino de línguas em
contextos específicos de L1, L2 e LE. Faz um diagnóstico do que ocorre dentro e fora da
sala de aula e do ensino de línguas na atualidade, expondo as condições para uma
aprendizagem bem sucedida. A seguir, discute sobre a formação continuada do professor
de línguas, propondo uma auto-análise da prática profissional.
O sétimo capítulo, A abordagem comunicativa do ensino de línguas: promessa ou renovação na
década de 1980?, trata mais especificamente da abordagem comunicativa, apresentando
alguns significados sobre ela, e trata da competência comunicativa, cujo conceito tem
estreita relação com a abordagem. Também, comenta sobre a prática comunicativa, citando
e analisando exemplos de amostras de linguagem que são ofereceidas aos aprendizes em
sala de aula.
No oitavo capítulo, O ensino de línguas no Brasil desde 1978. E agora?, Almeida Filho
discorre sobre fatos passados, ocorridos desde 1978 até 2006, fazendo um percurso do
ensino de línguas no Brasil, e comenta as conseqüências dos modelos aplicados durante
este período. A seguir, fala sobre a abordagem comunicativa do ensino de línguas, tanto
como paradigma para a formação de professores quanto para a pesquisa aplicada, e
apresenta traços que distinguem os sentidos errôneos dos sentidos centrais no que se refere
a constituição desta abordagem. Ademais, o autor expõe sobre os motivos pelos quais o
ensino comunicativo não se tornou ainda uma prática renovadora no país. Conclui o seu
trabalho, dizendo que o corpo profissional de ensino de línguas está com ações limitadas e
endêmicas, e possuído por uma confusão teórica, porém está preocupado com a sua
reconstrução.
Após a leitura e estudo desta obra, pode-se afirmar que se trata de um livro
fundamental para qualquer indivíduo que se interessa por questões lingüísticas, mais
especificamente para aqueles envolvidos com estudos sobre o ensino e aprendizagem de
línguas. Além dessa área de interesse, este livro é também indicado para aqueles envolvidos
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com a pesquisa aplicada. Entretanto, o seu conteúdo não se restringe a apenas a estudos e
pesquisa, ele vai além, ou seja, serve para uma reflexão do que é o ensino de línguas e como
ele é realizado nas escolas atualmente. Enfim, é uma obra que serve de base para
acadêmicos, professores e pesquisadores que desejam percorrer os caminhos do ensino de
línguas e da pesquisa aplicada.
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A UTOPIA DA SIMPLICIDADE: UM ESTUDO SOBRE A INFLUÊNCIA
LUCRECIANA NA POESIA DE ALBERTO CAEIRO
Ana Patrícia Silva de Sousa187
Mestre em Estudos Clássicos – Universidade de Aveiro – Portugal
Resumo: Este trabalho apresenta algumas reflexões sobre a simplicidade poética, usada
pelos poetas-filósofos Lucrécio, discípulo epicurista, e Alberto Caeiro, heterónimo
pessoano, demonstrando a influência do primeiro no segundo.
Palavras-chave: simplicidade, poesia, filosofia.
Abstract: This paper shows some reflections about the poetic simplicity, used by both
poets-philosophers Lucretius, Epicure’s disciple, and Alberto Caeiro, Pessoa’s heteronym,
demonstrating the influence of the first in the second.
Keywords: simplicity, poetry, philosophy.
“Há poesia em tudo  na terra e no mar, nos lagos e nas margens do rio” 188.
“Le sage [...] ne compose pas de poèmes, il les vit” 189.
Se tudo é poesia — determina Pessoa; logo não escrevas poemas, vive-os — ensina
Epicuro. O gracejo silogístico, com as palavras dos autores, tenta preludiar o tema da
utopia da simplicidade que se estende pela comparação de dois poetas, Lucrécio, discípulo
de Epicuro, e Alberto Caeiro, heterónimo pessoano: neles, a poesia parece natural às coisas
e aos seres. Nada se estranha na asserção de Fernando Pessoa, conhecido poeta das letras
portuguesas, porém Epicuro sempre escreveu a prosa da filosofia.
Na Grécia do século IV a.C., Epicuro estabelece os fundamentos de um sistema
filosófico — o epicurismo —, secundado nos conhecimentos dos antigos pensadores
gregos, Leucipo e Demócrito, que defendiam uma visão atomista do mundo. Funda, então,
a escola do Jardim, cujo nome reflecte a forte ligação com a Natureza, e, nesse local,
professa a Verdade e o caminho epicuristas. Partindo do princípio de que o mundo é
formado por átomos, micro-partículas inúmeras e indivisíveis, desmistifica os fenómenos
da Natureza e cientifica o conhecimento humano sobre as coisas. É, portanto, uma
filosofia materialista, naturalista e, ao basear o conhecimento na informação obtida pelos
órgãos de sentido, sensualista. Contra o peso da tradição religiosa, Epicuro revela que o
mundo é material, retirando a intervenção divina, quer na criação do mundo, quer nos
afazeres humanos, e, assim, vence o medo da morte. Sem o temor aos deuses, com a
simplicidade dos sentidos, os homens compreendem o que os rodeia e acercam-se de um
modo de vida mais natural, como que regressando à pureza primitiva de outrora. A vida
humana torna-se mais certa, — aquém das incertezas da providência divina, longe da
ignorância sobre a mecânica do mundo. Lamentavelmente, da sua obra, resistem apenas, no
presente, poucas cartas e algumas máximas: Carta a Heródoto, Carta a Pítocles, Carta a Meneceu,
Máximas Capitais e alguns fragmentos; sendo, sobretudo, através do seu discípulo latino,
Mestre em Estudos Clássicos, pela Universidade de Aveiro, Portugal.
PESSOA (1950, p. 14).
189 Epicuro apud GUYAU (1927, p. 122).
187
188
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Lucrécio, e da sua obra, De Rerum Natura, que os pensamentos de Epicuro foram
aprofundados e esclarecidos para os seus procedentes.
Lucrécio: poeta ou filósofo?
Na Itália do século I a.C., Tito Lucrécio Caro viveu dias de loucura, escrevendo,
nos intervalos de sanidade que lhe eram cedidos, a obra da sua vida —o De Rerum Natura190.
Trata-se de um poema longo, dividido em seis livros e escrito em verso hexâmetro, cujo
tema consiste na exposição da filosofia epicurista. Ao que consta faleceu antes de proceder
à sua revisão, tendo sido executada pelo famoso advogado e homem das letras, Cícero, que
elogiou191 o engenho do poema lucreciano.
Desconhece-se como contactou com o epicurismo. Mas, a obscuridade sobre a sua
vida opõe-se à clareza da sua obra. Assume-se, em versos panegíricos, como um fiel
discípulo de Epicuro e tal submissão marca a sua poesia. É tocante o modo apaixonado
com que Lucrécio escreve sobre o seu Mestre e sobre as suas áureas palavras: Epicuro é o
“Graius homo” que trouxe a Verdade aos homens, o “rerum inuentor”192 que subjugou os
terrores da religião. Já, Lucrécio é o apóstolo fervoroso, o poeta que canta a Natureza.
Porém, ao mesmo tempo que Lucrécio se inferioriza, se reverencia humildemente
perante o seu Mestre, como um apóstolo perante o seu Deus, há, nele, algo de superior que
o eleva sobre os demais. É que o discípulo se orgulha dos seus versos. A opção pela poesia
revela uma certa rebeldia, uma vez que o Mestre não a apreciava por estar ligada às fábulas
mitológicas e, dessa forma, à religião, preferindo a prosa. Aliás, e segundo o Grego, a
prosa— mais clara e objectiva do que a poesia — ajusta-se ao objectivo de comunicar a
mensagem epicurista por todos, desde do mais rico ao mais pobre, do mais culto ao mais
iletrado.
Só que Lucrécio escreve “candida carmina”193 que procuram elucidar a
complexidade da matéria filosófica:
“Nec me animi fallit Graiorum obscura reperta
difficile inlustrare Latinis uersibus esse,
multa nouis uerbis praesertim cum sit agendum
propter egestatem linguae et rerum nouitatem;”194
Explique-se que, segundo S. Jerónimo, a loucura de Lucrécio foi induzida por a ingestão de um filtro de
amor: “Titus Lucretius poeta nascitur: qui postea amatoria poculo in furorem uersus, cum aliquot libros per
interualla insaniae conscripsisset, quos postea Cicero emendauit, propria se manu interfecit anno aetatis
XLIV.” apud CONTE ( 1999, p. 155). No entanto, estudiosos desacreditam esta informação jeronimiana que
consideram se tratar de uma evasiva romanesca para uma doença mental. Há, todavia, quem defenda que
Lucrécio se teria suicidado, num surto de loucura, ainda que os dados biográficos não certifiquem a
insanidade do poeta.
191 CÍCERO (Ad Quintum Fratem, 2, 9, 3): “Lucreti poemata, ut scribis, ita sunt: multis luminibus ingenii,
multae tamen artis; sed, cum ueneris, uirum te putabo, si Sallusti Empedoclea legeris, hominem non putabo.”
Note-se, ainda, que não está, seguramente, comprovado que Cícero tenha assumido o cargo de corrector, ou
de editor, da obra lucreciana.
192 Referencie-se que as antonomásias de Epicuro surgem no De Rerum Natura, respectivamente nos versos: 1,
67 e 3, 9.
193 LUCRECIO (1993, p. 320), (4, 8-9).
194 op. cit., (p. 86), (1, 136-139).
190
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Eis a dificuldade da empresa a que Lucrécio aspira: as descobertas gregas são
obscuras e torna-se árduo clarificá-las nos seus versos, devido à pobreza da língua latina e à
novidade do tema, tendo de inventar novos vocábulos. Ora, a vaidade do discípulo
subordina-se ao propósito de universalidade epicurista: a educação para todos 195. Esta
função comunicativa da sua poesia leva-o a preocupar-se com a precisão vocabular e a
clareza das suas palavras. Contudo, “we expect from poetry that its language should be
rich, ambiguous, and evocative; Lucretius on the contrary seems to have believe that poetry
could achieve the clarity and precision which we normally associate with prose.”196 Em
Lucrécio, não há a poesia de expressão de sentimentos, há, sim, a poesia sobre a Natureza.
É poesia do exterior, não do interior. Contornando as expectativas, a prosa do Grego é
considerada ambígua, enquanto a poesia do Latino é esclarecedora. Invertidas as
características do modo prosaico e poético, Lucrécio cumpre a ambição didáctica epicurista
— “magnis doceo de rebus”197 — e escreve o De Rerum Natura numa linguagem clara,
rigorosa, coerente e coesa, procurando facilitar a compreensão da mensagem. Com uma
voz autoritária e dogmática, própria da poesia didáctica, explica a Verdade suprema e
inculca a moral epicurista, sem hesitações, nem refutações, nem dúvidas. Compõe versos
sobre a simplicidade do ser e do estar, com a simplicidade das palavras.
Não esconde que se envaidece dos seus versos, primum por se submeter,
sinceramente, à filosofia do Mestre, deinde por simplificar a matéria complexa de Epicuro.
Desta forma, humildade e orgulho fundem-se, não se contrariam: “as ideias são de
Epicuro, mas as palavras são de Lucrécio”. Assim sendo, o Latino é um “estudante de
filosofia”, um “comunicador de uma doutrina”198. Tal dá-lhe a liberdade necessária para
escolher e se centrar no modo de expressão, e não na criação dos argumentos da
mensagem — o De Rerum Natura não é um tratado filosófico original, mas uma visão
poética original sobre o epicurismo. Lucrécio: poeta ou filósofo? Poeta199, simplesmente.
Alberto Caeiro: a poesia natural.
Alberto Caeiro é o poeta da Natureza, o Mestre de todos. Também ele se insere na
tradição de poetas-filósofos que cantam a Natureza. Difere de Lucrécio, por ser o Mestre
de uma filosofia — o sensacionismo —, e não um discípulo. Embora ignore,
intencionalmente, toda a tradição — que contempla Lucrécio como um grande poeta da
Natureza e Epicuro como o “rerum inuentor” —, auto-intitula-se de “descobridor da
Natureza” que traz “o Universo ao Universo”200, antonomásia que decalca201 do epíteto
panegírico lucreciano ao Mestre. Aliás, “não posso deixar de assinalar que o seu ateísmo, o
BOYANCÉ (1963, p. 58): “D’abord, d’une façon générale dans un sentiment de fraternité humaine, il
voulait s’adresser à tous et même à l’homme sans culture. Il s’opposa à Aristote qui avait soutenu l’utilité des
études libérales, de ce que les Grecs appelaient la paidéia”.
196 DALZELL (1996, p. 36).
197 LUCRECIO (1993, p. 320), (4, 6-9): “primum quod magnis doceo de rebus et artis / religionum animum
nodis exsoluere pergo, / deinde quod obscura de re tam lucida pango/ carmina, musaeo contingens cuncta
lepore.”
198 SOUSA (2005, p. 36-37).
199 Refira-se que, contrariamente aos estudos já realizados e aceites pela comunidade científica da área das
letras, Fernando Pessoa define Lucrécio como um filósofo, não como um poeta, posição esta que
abordaremos supra.
200 CAEIRO (2001, p. 83).
201 Referencie-se que a tradução de “rerum inuentor” por “descobridor das coisas [Natureza]” é apresentada
em AZEVEDO (2001, p. 95).
195
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materialismo sensualista que também marca sua formulação do problema do
conhecimento, o papel que os sentidos nele desempenham, sua alienação relativamente aos
problemas sociais e políticos, seu fatalismo e até mesmo sua linguagem clara e despida,
inserem-se na tradição fundada pelo poeta latino”202. Por mais que esconda, Caeiro não se
encontra no grau zero, nem do conhecimento, nem da poesia, nem da linguagem.
Simplicidade é, ilusoriamente, a palavra que melhor o define. Confirma o seu
discípulo, Ricardo Reis, que “como todos os poetas universais Caeiro é de uma
simplicidade absoluta”. É que, e segundo o mesmo, se as palavras do Mestre são de
complicada compreensão — aliás, como é a sua índole203 —, deve-se ao facto dessa
simplicidade se fundamentar em “princípios novos”, numa “noção nova das coisas, e essa,
por nova, que não por confusa, salta fora dos hábitos mentais que condicionam a
compreensão”204. Caeiro é, pois, o poeta de uma nova simplicidade — uma simplicidade
absoluta. Já, Álvaro de Campos, outro dos seus discípulos, adscreve, numa carta ao Mestre:
“O que eu adoro nos seus [de Caeiro] versos não é o sistema filosófico que me
dizem que se pode tirar de lá: é o sistema filosófico que não se pode tirar de lá.
É a frescura, a limpidez, a primitividade de sensações. É a falta de sistema,
precisamente”205.
“A falta de sistema” da filosofia caeiriana é transmitida pela “frescura, limpidez e
primitividade de sensações”, que caracterizam a sua poesia. Ora, desde logo, estas
afirmações confundem o pensamento e adivinham uma poesia bem mais complexa do que
aparenta. Estamos, pois, perante uma metafísica anti-metafísica, uma poesia anti-poesia.
Ao lê-lo, acompanhamos o Mestre na contemplação da Natureza, que a sente com
a simplicidade dos sentidos, sem pensamento, nem memória, nem cultura, e escreve versos
como quem vê. Transmite a impressão a quem lê de que assiste, instantaneamente, à
percepção sensorial, como que, com ele, descobrisse a realidade, sempre pela primeira vez
— afinal, nem “há duas árvores iguais”, nem há duas sensações iguais. Objectivismo este
que transparece no modo de se expressar:
“Não me importo com as rimas. Raras as vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior.
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado
E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento…” 206
GARCEZ (1985, p. 43).
Recorde-se as palavras epifânias de Pessoa, quando descreve o aparecimento do Mestre nele: “lembrei-me
um dia de fazer uma partida a Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e
apresentar-lhe, já não me lembro bem como, em qualquer espécie de realidade. […] Foi o dia triunfal da
minha vida, e nunca poderei ter outro assim.” apud SENA (2000, p. 374).
204 apud PESSOA (1994, p. 29).
205 op. cit. (p. 231)
206 CAEIRO (2001, p. 47).
202
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Uma poesia sobre a Natureza, do exterior, tal como a de Lucrécio, mas radicalizada
em Caeiro. Ser e escrever apenas com o exterior dos sentidos, das palavras, como se o
processo de escrita fosse tão natural como a cor das flores, ou o soprar do vento. Aliás,
opta pelo texto poético por ser o modo de expressão mais natural, tão natural quanto falar.
Segundo o próprio, a prosa é “artificial” e o verso é “natural” — quando o ser humano
fala, fá-lo “em verso sem rima nem ritmo, com as pausas do nosso fôlego e sentimento”207.
Mais uma vez, e à semelhança do Latino, intervertem-se os conceitos tradicionais de poesia
e de prosa, não se esperando que um texto — ambíguo, pensado e, fortemente,
retórico-estilístico — como o poético, expresse a simplicidade da fala. O Português sabe
que desconcerta a maneira de pensar e, num dos seus paradoxos, chega mesmo a afirmar:
“por mim, escrevo a prosa dos meus versos/e fico contente”208. Ele conhece os
significados tradicionais de prosa e poesia — aliás, para um iletrado e isolado, o Mestre
parece saber tudo — e, como que parodiando o conteúdo e forma de conhecer humanos,
consubstancia os dois modos de expressão e consegue um outro, original, no vazio das
preconcepções: a prosa em verso.
E, quando diz: “não há duas árvores iguais”, sintoniza-se com a visão atomizada de
Epicuro, que transporta não só para a maneira de ver, mas também para a maneira de
poetizar. Encontra-se, em Caeiro, uma obra fragmentária e desconexa, que pretende
sugerir que escreve conforme calha, conforme vai sentindo a realidade. Perto do Grego,
mas longe do Latino, que prefere um texto delineado e coeso para divulgar a todos a
doutrina de Epicuro, Caeiro, no seu papel de Mestre, não profere, apenas, palavras sobre a
realidade, mas, sim, traz (ou pretende trazer) a realidade às suas palavras.
Porém, Caeiro tem consciência — um absurdo tendo em conta a sua filosofia dos
sentidos em que “pensar é estar doente dos olhos”209 — de que nem sempre escreve com
perfeição por lhe faltar a simplicidade, própria e restrita ao Divino. E, num outro poema,
justifica a falha do seu discurso: ele tem a função desprezível de ser o “intérprete da
Natureza” e, para isso, usa a linguagem humana — idiossincraticamente, simbólica e
abstracta — “porque há homens que não percebem a sua linguagem,/ por ela não ser
linguagem nenhuma…”210. Há, nele, a utopia de uma simplicidade linguística absoluta, que
(im)possivelmente se tornaria real — tão real quanto a realidade — pela criação de um
idioma sem significado, nem simbolismo, nem interior, que se consubstanciasse com as
coisas que define e abdicasse da abstracção, do nominalismo — talvez o tal idioma divino,
o idioma do exterior, o idioma do não-idioma. Só que esta empresa caeiriana se revela tão
dificultosa quanto a lucreciana:
“Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar de um corredor
Do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
op.cit. (p. 201).
op.cit. (p. 63).
209 op.cit. (p. 24).
210 op.cit. (p. 66).
207
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Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram.
E raspar a tinta com que pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E, assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como
um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.”211
Na sua função de tradutor das (não)palavras da Natureza, como se fosse discípulo
directo dela, procura escrever, ou melhor, perpassar as sensações para a sua poesia, sem
recorrer ao pensamento. Pretende, pois, “encostar as palavras às ideias”, sobrepor
significante ao significado e, assim, anular a ligação íntima entre linguagem e raciocínio.
Em Caeiro, não há a poesia do exterior, mas a poesia é exterior.
Conquanto, nem sempre sente, ou escreve — uma vez que a sua poesia são (ou
pretendem ser) as suas sensações —, conforme deve sentir: o peso do que lhe ensinaram
pesa-lhe os sentidos. Tal Epicuro, Caeiro é o herói que luta contra toda uma tradição
religiosa e racionalista que contagiou e adoeceu a humanidade ao longo dos séculos; tal
Epicuro, Caeiro é o “desatador de vínculos”212 que revoluciona a maneira de conhecer o
mundo. É, pois, preciso rasgar as vestes da sociedade e reencontrar-se com o seu ser
primitivo. Esvaziar-se de ser humano e ser um animal, ser uma coisa, ou, simplesmente,
ser. Desta forma, o homem torna-se natural, funde-se com a Natureza e obtém a realidade
das coisas. Caeiro é, pois, o Mestre que ensina o nada —“bendito seja eu por tudo quanto
não sei” — a ninguém — “quem sabe quem os [versos] lerá?/ quem sabe a que mãos
irão?”213, aplicando, dogmaticamente, a pedagogia do aprender a desaprender.
E, então, com o decorrer dos seus versos, Caeiro evidencia uma obcecação
nominalista que o leva a compor a poesia da anti-estética, diferenciando-se de Lucrécio: “a
beleza é um nome de qualquer coisa que não existe/ que eu dou às cousas em troca do
agrado que me dão./ Não significa nada.”214 A poesia, como trabalho artístico, é,
duramente, satirizada por o Mestre pessoano. Ora, e ao contrário do Latino, que compõe
versos com cadência certa e com vocábulos precisos, embelezando-os para os tornar mais
atractivos para o leitor, o Português vive, exclusivamente, na espontaneidade dos sentidos
e os seus versos traduzem as suas sensações, sem o “corredor do pensamento”. Usa, então,
um vocabulário simples, preferencialmente substantivos, desnudado de significado,
comunicando numa linguagem denotativa e referencial, que, aliás, é própria da prosa. Mas,
constrói, propositadamente, essa linguagem da simplicidade e essa intenção prévia torna-o
aquele artista que lima a poesia, só que lhe dá uma forma natural, ao invés de mística e
figurativa. Ler Caeiro é olhar a Natureza, simplesmente.
op.cit. (p. 82-83).
Referencie-se que a atribuição desta antonomásia surge em GARCEZ (1985, p. 33).
213 CAEIRO (2001, p. 61;85).
214 op. cit. (p. 60).
211
212
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Considerações finais:
Cantar a Natureza, com a simplicidade da poesia, acontece em Lucrécio e em
Caeiro. É, então, ao subverter os conceitos de prosa e poesia, que escrevem versos de
trabalhosa naturalidade. Só assim o Latino consegue manter um texto longo sempre num
nível superior e o Português ensina o nada, ou melhor, o Indefinido, o Absoluto, o Todo.
Caeiro sublima Lucrécio, porque funde o poeta e o filósofo e realiza, assim, o
“milagre da poesia” 215. Daí, e para Pessoa, Caeiro ser o poeta e Lucrécio, o filósofo. É, de
facto, o Mestre pessoano que aplica a máxima de Epicuro: a poesia de Caeiro é a sua vida.
Só que, embrulhada em conceitos, a poesia caeiriana não escapa ao pensamento e
cada verso, que escreve, substancia uma ideia sobre a sensação, e não a sensação. Lucrécio
é o simples que Caeiro não é.
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Culturas, Aveiro, Portugal.
215
GARCEZ (1985, p. 42).
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GOZO FABULOSO NÃO É O SONETO DE HOJE
Mauro Marcelo Berté
Mestrando em Letras – Estudos Literários
Universidade Federal do Paraná
Membro do Comitê de Publicações da Embrapa Florestas
Editoração e Revisão Gramatical
Resumo
Este artigo expõe considerações preliminares a cerca das narrativas de Gozo fabuloso, de
Paulo Leminski. Como foco de apreciação, leva-se em conta parcela da obra e da produção
crítica do autor, em paralelo a alguns teóricos da pós-modernidade, procurando-se
evidenciar, nas temáticas e no tratamento estético empregado nos contos e crônicas do
livro, uma preocupação pós-moderna por excelência.
Palavras-chave: Conto; Paulo Leminski; Pós-modernidade
Abstract
This paper presents preliminary considerations about the narratives of Gozo fabuloso, by
Paulo Leminski. As focus of assessment, it takes into account share of the work and
production criticism of the author, along with some of the theoretical post-modernity,
looking up evidence, in the thematic and aesthetic employed in the treatment short stories
in the book, a concern post-modern par excellence.
Key-words: Tale; Paulo Leminski; post-modernity
Por convenção, o Pós-modernismo representa as mudanças ocorridas nas artes em
geral, nas ciências e na sociedade desde os anos 50. Da arquitetura, o pós-moderno
“contaminou” as artes plásticas e na seqüência a literatura, com tom algo satírico, niilista,
desesperançoso e de pastiche, ao mesmo tempo querendo levianamente achar graça de
tudo.
Essa tendência tem expressividade na obra de Paulo Leminski. O autor se encaixa
nessa condição pós-moderna216 e dá provas, evidenciando essa influência em prosas
experimentais como a do Catatau e Agora é que são elas, romances cujos processos
questionam princípios, regras e valores do fazer literário, alteram práticas e fundam
realidades em sua prosa ficcional.
Subversões como as descritas também são verificadas nas narrativas de Gozo
fabuloso, reunião de textos que foram sendo desenvolvidos paralelamente a outros,
destinados ao próprio consumo, exercício, ou para uma eventual coluna de jornal ou
revista.
216
Em Cultura pós-moderna: Introdução às teorias do contemporâneo, Steven Connor analisa a
condição pós-moderna em vários campos e gêneros. No campo da literatura, Connor
debate algumas dessas condições, as questões de desestruturação e ironia, espacialismo,
ontologia e meta-ficção.
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Gozo fabuloso é publicação relativamente recente. É o último livro que Leminski
deixou para publicação. Os originais ficaram mais de uma década a espera de uma revisão e
edição. Ficaram esquecidos em meio aos conturbados processos de sucessão editorial. É
também o único volume de narrativas curtas. Provavelmente, mais um daqueles casos em
que o conto é considerado um tipo de texto incapaz de garantir ao escritor imediata
atenção das editoras.
A relevância desse artigo repousa na inexistência de trabalhos científicos sobre esta
obra específica de Paulo Leminski. Em levantamento preliminar, não se achou trabalho
acadêmico, dissertação ou tese sobre os textos de Gozo fabuloso. Crê-se que a primeira
inserção do título na bibliografia de Paulo Leminski seja em A linha que nunca termina:
pensando Paulo Leminski (p. 402), reunião de ensaios dos mais variados gêneros e autores,
lançada em comemoração aos 60 anos de nascimento do poeta, mesma ocasião da primeira
edição de Gozo fabuloso. Nesse mesmo livro, os contos “Wanka, o dia em que as pedras
pensaram”, “El dia em que me quieras”, “Isso não é meu”, “Céu em baixo” e “Osíris”
estão referenciados em suas publicações originais (Bibliografia de Paulo
Leminski/Ficção/p. 406), assim como “Solange e seus eletrodomésticos”, versão da
Revista Playboy de abril de 1985 de “Solange tudo bem e seus eletrodmésticos”.
Portanto, pretende-se dar o primeiro passo nos estudos do conto leminskiano. Para
tal, será demonstrado como Leminski, também chamado poeta multimídia e conhecido por
hostilizar a academia, se não teórico, também estava em consonância com a chamada
condição pós-moderna, teoria que, segundo Terry Eagleton:
(...) é parte do mercado pós-moderno, e não apenas uma reflexão sobre o
mesmo. Entre outras coisas, representa uma maneira de acumular um “capital
cultural” valioso sob condições intelectuais cada vez mais competitivas. Em
parte devido a sua grande vitalidade, seu esoterismo, sua sintonia com os
modismos, sua singularidade e sua relativa novidade, a teoria vem obtendo um
alto prestígio no mercado acadêmico, mesmo que ainda provoque a virulenta
hostilidade de um humanismo liberal que teme ser por ela desalojado. (p. 325326)
Nesse contexto, torna-se plausível relacionar as narrativas breves de Leminski com
a teoria pós-moderna, e indispensável cobrir essa lacuna nos estudos de sua obra, ainda
mais quando se pretende debruçar-se sobre um gênero inicialmente renegado pelo autor.
Sim, o poeta repudiava o conto, considerava-o um texto menor, “O conto é o
soneto de hoje”, de excessiva valorização, “Essa nossa emergente prosa de ficção apresenta
nível de redundância e banalidade estrutural só comparável ao soneto do passado” – sinal
dos tempos em que havia grandes concursos literários, de contos, na capital paranaense e
no restante do País. Logo, essa política anticonto eram idéias pertencentes ao final dos anos
60 e início dos 70, como consta no Prefácio de Gozo fabuloso, assinado por Alice Ruiz:
Mas isso foi ontem. Com o tempo, o Paulo foi desenvolvendo crônicas,
pequenas ficções, para uma coluna assinada em jornal, para revistas ou
para seu próprio prazer. E foi pegando gosto pelo conto. Surgiam como
surgem os poemas, pululando entre uma obra e outra, como as traduções
ou prosas de maior fôlego, como as biografias ou romances.
(LEMINSKI, 1994)
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Os tempos são outros, e em 2004 veio a público uma faceta pouco conhecida e
estudada de Paulo Leminski, o contista, contrariando antigas afirmações e ideologias e
provando que seu Gozo Fabuloso não é o soneto de hoje.
Trabalhar os contos sob o viés pós-moderno sustenta-se quando se recupera os
narradores de Catatau e Agora é que são Elas. Ficções que se encaixam nos conceitos do
autor quando pensa a pós-modernidade, nos anos 80.
Em Anseios Crípticos217, considera que:
(...) ninguém pode prever o novo homem que está nascendo (...) no pósmoderno, passado e futuro se confundem num círculo irreversível,
dançou todo um conceito romântico de “originalidade”. Tudo já foi
feito, tudo já foi dito. Entramos na era da citação, da tradução. (...). No
“pós-moderno” a humanidade começa a girar em círculos, em torno de
sua própria história (...). O homem está vivendo num mundo totalmente
humano. Quando precisa de alguma coisa nova, saqueia o passado (...) O
projeto pós-moderno é transformar a vida em arte (...) (LEMINSKI,
1986)
Em Os cinco paradoxos da modernidade218, Antoine Compagnon cita Vattimo, este
afirma que a pós-modernidade “propõe simplesmente uma maneira diferente de pensar as
relações entre a tradição e a inovação, a imitação e a originalidade, não privilegiando, em
princípio, o segundo termo.”(p. 124).
Os contos de Leminski são expressões da vida, promovendo uma desmistificação
do nosso cotidiano repleto de processos de estruturação do caos e de atribuição de sentido
a esse caos. Em Gozo fabuloso, encontra-se um narrador com reflexões sobre o processo de
construção de seus textos. A arte de Leminski está nas narrativas impregnadas de erotismo,
violência, ao mesmo tempo repletas de sensibilidade e metafísica, uma transgressão do
tempo e do espaço como no conto “O segundo futuro” – um Atlas do século 19 aponta a
localidade de Kurytyba, uma aldeia, algo entre Lwow e Praga. O narrador a procura, a
encontra, caminha por suas ruas e, inusitadamente, passeia pela Comendador Araújo, na
Curitiba brasileira, e uma mulher o chama para comer.
Fenômenos como esse são explicados, por exemplo, por David Harvey. Em
Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, o autor documenta
mudanças em vários campos distintos, entre eles a ficção pós-moderna, em que caracteriza
uma passagem do “epistemológico” ao “ontológico”, ou seja, no pós-modernismo,
realidades diferentes podem coexistir, colidir e se interpenetrar, em conseqüência, ficção e
Reunião de material publicado em jornais e revistas de Curitiba e do Brasil que tratam de cultura diversa e
de literatura. Artigos como “Punk, Dark, Minimal, o Homem de Chernobyl”, “Arte = Reflexo”, “Culturitiba”
e “Os perigos da literatura” falam da Curitiba que o autor presencia e da pós-modernidade cultural que se
instala, o que ela é e para que veio.
218 Tratando das contradições da contemporaneidade e se o pós-moderno é o auge ou a recusa do moderno,
Compagnon afirma que uma série de oposições modernas como o novo/antigo, presente/passado,
esquerda/direita, progresso/reação, abstração/figuração, modernismo/realismo e vanguarda/kitch perdem
seu caráter categórico.
217
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ficção científica se dissolvem e personagens encontram-se confusos acerca do mundo em
que estão e de como agir em relação a ele.
Dentre as temáticas consideradas pós-modernas, tem-se a tecnologia, como em
“MKWD (Diálogo entre dois computadores de gerações diferentes)”, a cultura oriental –
quando pensamos uma identidade cultural múltipla – como em “O imperador no aquário”
e “Daruma arigatô”, em que o narrador deseja uma boa história a uma cabeça de Daruma
comprada na Feira da Liberdade. Também no encalço de uma história, mas voltado à
problematização do fazer literário, encontra-se em “O resto imortal” o narrador que
almejava poder lidar com o seu processo de pensamento, transformá-lo em máquina, um
livro: “Tinha que ser um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto pensado.
Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens,
raciocinasse” (pg 136). Em “Já era uma vez” tem-se a história de uma história que
mendigava um enredo, e em “Sintomas”, o paciente reclama: “- Doutor, estou sentindo
uma rima terrível.” e o médico, ao término da consulta: “- Toma duas estrofes e me
telefone amanhã cedo, sem falta.” Esse último conto remete a Catatau:
Cultivei meu ser, fiz-me pouco a pouco: constituí-me. Letras me
nutriram desde a infância, mamei nos compêndios (...) Compulsei
índices, e consultei episódios (...) tropecei nas vírgulas, caí no abismo das
reticências, jazi no cárcere dos parênteses, rolei a mó das maiúsculas,
emagreci o nó górdio das interrogações, o florete das exclamações me
transpassou, enchi de calos a mão fidalga torcendo páginas. (p. 28)
Há ainda a morte e o efêmero: em “Céu em baixo”, 17 parágrafos, 17 andares de
queda livre, um suicida conjeturando sobre os andares e seus respectivos números, o
passado, a vida. Dentre as práticas pós-modernas há a intertextualidade literária e o jogo
lúdico da paródia histórica, as mesmas realizadas nas antinarrativas Agora é que são elas219,
com Propp, e em Catatau, com Descarte: o passado é recuperado em “Gente do
conselheiro”, um jagunço ameaça Euclides da Cunha, fazendo com que o jornalista jure
que vai contar a história daquele povo “direitinho”, do contrário, o mataria.
Outros textos trabalham o suspense e a metafísica e lembram os contos de Julio
Cortázar220, classificados por um de seus estudiosos como neofantásticos, conceito em que
o espaço e o agente do perigo e do medo transgridem o paradigma dos contos de terror e
suspense – a rua e o assassino, a casa mal-assombrada, o cemitério e o fantasma –
promovendo uma proximidade com a casa do indivíduo, seu próprio ambiente e o mundo
cotidiano.
Nos contos, Leminski desafia a forma de narrativa tradicional por meio de
experimentações com a linguagem, do mesmo modo que praticava na poesia e no romance,
já que a maneira, muitas vezes irônica, às vezes hermética, com que constrói o discurso cria
MELLO, C. J. de A. A intertextualidade pós-moderna de Agora é que são elas. Dissertação apresentada à
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP, 2001.
219
Em Valise de cronópio, parte da obra crítica do autor, extrai-se a visão cortazariana do conto. Em “Vida de
Edgar Allan Poe” e “Alguns aspectos do conto”, o escritor argentino promove analogias quanto à forma,
tensão e densidade desse gênero, fazendo comparações do conto com a fotografia, trazendo uma abertura,
um recorte de uma realidade, mas que, no entanto, age como explosivo para novas realidades.
220
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um relato de ausências, incertezas e de trechos inconclusivos e indeterminados. Nesse
sentido, investigam-se como esses textos apresentam elementos abordados em teorias do
pós-modernismo, apontando, desse modo, para um outro tipo de produção literária do
escritor: a narrativa curta pós-moderna.
Ainda em Anseios Crípticos, Leminski define mais sobre a pós-modernidade:
Os gestos “pós-modernos” correspondem a um mundo: a) totalmente
urbano; b) onde prevalece o setor terciário (serviços); c) onde a empresa
adquiriu um caráter abstrato, impessoal, “sociedade anônima”, e d) “last
but not the least”, onde a indústria e a tecnologia eletrônica adquirem
uma importância tão grande na vida das pessoas que se pode dizer, com
McLuhan, que o próprio sistema nervoso do homem começa, por fim, a
ser exteriorizado, sob forma de tecnologia. Como todas as revoluções e
inovações, a era “hightec” eletrocomputadorizada apanhou todas as
pessoas desprevenidas. Hábitos tradicionais e objetivos de vida
“clássicos” entram, bruscamente, em cheque, substituídos por gestos
cujo destinos desconhecemos. (LEMINSKI, 1986)
Dentro desses “gestos”, Joca Reiners Terron, em posfácio de Gozo fabuloso,
intitulado “A prosa é uma prosa é uma prosa”, afirma que “Em algumas dessas histórias, o
zapping veloz é determinante e a mudança de chave e tom de texto é tão rápida como a de
um controle remoto”. Completa ainda: “O amor à cultura oriental, aliado às experiências
poliglotas e polissêmicas típicas do Catatau, também comparecem em diversos textos (...)”.
Faria então sentido abordar contos pós-modernos em Leminski? Tudo leva a crer
que sim, se avaliado seu histórico de ficções longas como Catatau e Agora é que são Elas,
romances que não se encaixam simplesmente na categoria “narrativas modernas”, pois
sustentam uma pluralidade de perspectivas, interpretações e intertextualidades que
“balançam” o chão do significado junto ao leitor.
Vale resgatar um gênero ainda pouco difundido do autor, narrativas curtas e
intensas que preservam um “eu” do verso e da prosa longa leminskiana. Textos que
instigam, da variação temática até o modo praticamente unânime de narrar, em primeira
pessoa, o que envolve um grau de subjetividade grande, mas que, enquanto narrativa, pode
provar-se “inconfiável”, pois parte de um eu que escreve ou fala e dirige-se a alguém,
conforme a condição do discurso, no qual a possibilidade de dizer a verdade cria a
possibilidade de se entender ou perceber algo de modo equivocado.
A dúvida gera o desconforto que, por sua vez, tira o público da posição passiva e
não-questionadora. São conflitos com o leitor que as obras literárias da chamada pósmodernidade procuram tematizar. Linda Hutcheon, em Poética da pós-modernidade221, afirma
que o objetivo é liberar o leitor das convenções, como é próprio da ficção pós-moderna,
histórica e meta-ficcional, auto-reflexiva e contextual.
Em Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção, Linda Hutcheon teoriza e contextualiza o pós-moderno,
enfocando os aspectos mais relevantes entre a teoria e a prática estética, processo a que chamaria de “poética”
do pós-modernismo. A ênfase dos estudos de Hutcheon recai sobre o romance pós-modernista, que ela vai
considerar não a única prática estética real, mas um fórum privilegiado para a discussão do pós-moderno.
221
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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A “NOVA HISTÓRIA” NA ESCOLA: O CASO DA ESCOLA CORONEL FELIPE
DE BRUM NA CIDADE DE AMAMBAI/MS
Diogo da Silva Roiz
Docente do Departamento de História da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS) Unidade Universitária de Amambai.
André Dioney Fonseca
Graduando em História pela Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS) Unidade Universitária de Amambai. Bolsista PIBIC/CNPq.
Marcilene Nascimento de Farias
Graduanda em História pela Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS) Unidade Universitária de Amambai. Bolsista PIBIC/CNPq.
Resumo: São muitas as transformações teóricas e metodológicas nos domínios da
disciplina de História no século XX. Da chamada “escola metódica” aos nossos dias,
sucederam-se enormes transformações na forma de se efetuar as pesquisas históricas.
Novas abordagens, abertura de novas perspectivas teóricas e temáticas ligadas ao campo da
História Social e da Nova História Cultural (com ênfase na antropologia histórica e nas
mentalidades, além dos estudos de micro-história, da historiografia inglesa, da
Antropologia e da Sociologia). Assim, este artigo, busca analisar como tem sido a recepção
e utilização dessas renovações e dos trabalhos frutos dessas discussões, na dinamização das
aulas de História, tomando o caso da Escola Estadual Cel. Felipe de Brum, localizada na
cidade de Amambai/MS.
Palavras-chave: História, “Nova História”, Ensino de História.
Abstract: There are many theoretical and methodological changes in the areas of the
discipline of history in the twentieth century. Of the call "school methodical" to our days,
occurred huge changes in the way of thinking this discipline. New approaches, opening up
new theoretical perspectives and topics related to the field of Social History and New
Cultural History (with emphasis on anthropology and the historical attitudes, in addition to
the studies of micro-history, historiography English, Anthropology and Sociology). So this
article address the receipt and use of such renewals and work fruits of those discussions,
the dynamic of the lessons of history, taking the case of School State Cel. Felipe de Brum,
located in Amambai/MS.
Keywords: History, "New History", Teaching History.

Versão desse trabalho foi apresentada no VIII Encontro de História de Mato Grosso do Sul História e
Historiografia no século XXI: ações e representações. Dourados (ANPUH/MS), 2006, no XVIII Encontro
Regional de História de São Paulo: O historiador e seu tempo, Assis (ANPUH/SP), 2006 e na VII Jornada do
grupo de estudo e pesquisa história, sociedade e educação no Brasil (HISTEDBR) O trabalho didático na
história da educação em 2007. Agradecemos a colaboração e paciência do professor Agenor Morelato aos
alunos da Escola Cel. Felipe de Brum que gentilmente colaboraram nesse estudo.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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Longo trajeto foi percorrido desde a História positivista, estritamente política – dita
objetiva – da “Escola Metódica” no século XIX, passando pelos estudos econômicos e
sociais dos primeiros historiadores do movimento dos Annales, já no século XX, até a
chamada Nova História da década de 1960, desenvolvida pela terceira geração dos Annales
– que se centrou em pesquisas norteadas pela Antropologia Histórica e pela História das
Mentalidades (ROIZ; FONSECA& FARIAS, 2006). Foram enormes inovações teóricometodológicas que diretamente influenciaram importantes escolas historiográficas de todo
o mundo como a micro-história italiana – representada por autores da monta de Giovanni
Levi e Carlo Ginzburg – historiadores norte-americanos preocupados com estudos
culturais como Natalie Z. Davis e Robert Darnton, além de historiadores ingleses, também
chamados de “neo-marxistas” como o historiador Edward P. Thompson (BURKE, 1992).
Além disso, as inovações que se estenderam por todo o século XX permitiram
que, nos anos de 1980, fosse possível a construção de novos conceitos (representação, prática
e imaginário) frente à fragilidade de outros (mentalidades, por exemplo) pela Nova História
Cultural. Destaca-se aí o historiador Roger Chartier com seus estudos sobre a história da
leitura e teoria da História e Michel De Certeau em suas pesquisas sobre o cotidiano – que
abriu debates sobre as noções de “construção cultural” e de “apropriação cultural” a partir
das próprias representações que interferem na realidade. Na esteira destas discussões veio o
debate sobre a “construção cultural” de conceitos como classe, gênero, comunidade, identidade, e
práticas como “(re)invenção” de tradições.
Em suma, foram muitos os caminhos abertos no século XX na pesquisa em
História e, no Brasil, o reflexo dessas aberturas foi grande, todavia, não são poucos os
trabalhos filiados teoricamente ao campo da História Social e da Nova História Cultural em
nosso país.
Frente a essa realidade algumas indagações se colocam como urgentes: nas escolas,
qual o reflexo destas inovações metodológicas e tantas revisões em temas antes
considerados clássicos na disciplina de História? Quais as contribuições e percalços deste
modelo de História no ensino em sala de aula? Para trazer algumas observações sobre este
assunto analisaremos o resultado de vinte e cinco horas de observação em sala na Escola
Estadual Coronel Felipe de Brum que tem como professor titular da disciplina de História,
no período vespertino, o senhor Agenor Morelato, formado em Filosofia com habilitação
em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).222
Para o professor, as contribuições da Nova História são muitas, principalmente por
permitir que temas monótonos possam ser trabalhados de “forma menos cansativa”. Diz o
docente: “quando eu trabalho a chegada dos portugueses ao Brasil, gosto de trabalhar com
algumas contribuições do Vainfas223, discutindo como a questão religiosa estava fortemente
presente naquele período”.224
A utilização dos aportes teóricos e pesquisas ancoradas na Nova História nas aulas desta disciplina foram
estudadas a partir das seguintes tarefas: Entrevista com o professor da disciplina, questionário aplicado aos
alunos do 7° ano do ensino fundamental, e observação e gravação em fita cassete das aulas, principalmente,
as explanações do professor.
223 Referia-se o professor à obra do Historiador Ronaldo Vainfas A heresia dos índios. (VAINFAS, 1995) Tratase de um trabalho na perspectiva das mentalidades.
224 MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 06 de junho de 2007.
222
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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Mas, é válido ressaltar que o professor alertou para os cuidados que ele toma ao
tentar transportar da “academia para a escola” os densos pressupostos teóricos que
envolvem os temas da História: “eu não posso falar em mentalidades no 6°ano, não de
maneira acadêmica, entende? Tenho que buscar formas de não ver eles com aquelas
carinhas de assustados”.225 Complementou o professor:
No primeiro trimestre eu estava discutindo Egito Antigo e as demais
civilizações. Conforme recomenda o PCN eu busquei enfatizar a
História das relações sociais, da cultura e do trabalho. Tentei pôr
Thompson na aula, meu Deus! Foi muito complicado. Busquei deixar
mais didática a aula, expliquei, propus seminário. Não deu certo, muitos
dos conceitos, por mais que a gente tente o negócio não anda. Busquei
então trabalhar o mundo do trabalho no presente, no município. Os
alunos fizeram a pesquisa em vários locais de trabalho, aí para a
apresentação da pesquisa pedi que eles tentassem lembrar do texto que
levei a eles, um texto que eu confeccionei para explicar alguns aspectos
do Thompson. O sucesso foi tremendo. Tenho percebido que partir da
história do presente para depois irmos às Civilizações Antigas permite
que eles acompanhem melhor a discussão.226
Pode-se notar, através da observação em sala, que esta prática de ligação do
conteúdo estudado com o presente e a realidade social dos alunos é comum nas aulas deste
professor. Por outro lado, é importante ressaltar, que o Projeto Político Pedagógico desta
Escola tem cuidado especial para com a disciplina de História. Para o professor, o PPP
aumenta ainda mais a responsabilidade do docente. Em suas palavras:
Se você viu o nosso PPP tem por primária concepção Homem-MundoSociedade227. Com isso a Escola entende ser sua responsabilidade
preparar o aluno para ser o agente de transformação da sociedade
enquanto cidadão, para enfrentar desafios do cotidiano, tomada de
decisões, realizando ações futuras”. Tudo isso tem um forte peso sobre
a disciplina de História, não que as demais disciplinas não permitam
contemplar esses pressupostos, mas parece que pelo fato de ser o
Diretor da área de História quando da formulação deste PPP, alguns
aspectos se ligam diretamente à História.228
Para o professor, o processo ensino-aprendizagem vem sendo comprometido, já
que mesmo com os esforços dispensados para a melhoria do ensino, muito ainda há a se
fazer. A escola tem sérios problemas de estrutura física (refere-se o docente às péssimas
condições da sala de aula, das salas de vídeo e dos próprios materiais). Para o docente,
trabalhar com suportes mais avançados como os da Nova História exige um apoio material
muito forte, como filmes, mapas, disponibilidade de xérox, uma boa biblioteca, etc. Disse o
professor:
Eu quero que você entenda que não estou afirmando pra você que estas
deficiências inviabilizem um trabalho mais acurado de minha parte,
MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 06 de junho de 2007
MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 06 de junho de 2007
227 Concepções da Escola Estadual Coronel Felipe de Brum. In Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual
Coronel Felipe de Brum. 2004. p 11.
228 MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 06 de junho de 2007.
225
226
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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quero que fique bem claro que uma maior disponibilidade de materiais
poderia aprimorar as aulas e permitir uma maior compreensão por parte
dos alunos. Temos que levar em conta, antes de tudo, que a História é
algo muito distante da realidade e do dia-a-dia de nossos alunos. Aí
temos um ponto central. Os conceitos e pesquisas em História Cultural
são uma espada de dois gumes, pois uma aula calcada nestes conceitos
pode melhorar a relação do aluno com a disciplina, mas pode também
afastar ainda mais o aluno de uma matéria que já não é bem vista por
eles. 229
Segundo o professor, os alunos vêm das séries iniciais com uma visão de História
bastante tradicional. Por isso esperam ouvir os nomes dos heróis, as datas, os
acontecimentos marcantes. Quando busca o professor um outro olhar eles não
compreendem e muitos repelem. Pudemos observar um caso deste choque em observação
feita no 8° ano.
Ao trabalhar a Revolução Francesa o professor discorreu sobre o assunto numa
visão bem tradicional. Apontou os heróis, a importância e os ideais advindos deste
movimento. No segundo momento perguntou o que os alunos achavam da Revolução.
Todos consideraram um acontecimento muito importante. O professor voltou a questionar
se todos os ideais não cumpridos compensaram os milhares de pessoas mortas nessa
Revolução. Utilizando algumas idéias de François Furet (historiador da 3° geração dos
Annales) o professor abriu um debate sobre a relevância deste acontecido. Muitos alunos
não gostaram e disseram não concordar com o autor afirmando, ainda, que o professor não
se decidia sobre os temas. Afirmaram alguns: “a gente não entende o senhor, tudo o senhor
critica”230 Foi preciso que o professor explicasse que a Revolução Francesa teve sim muita
importância, mas que era preciso considerar também que em seu desenvolvimento nem
tudo foi “mil maravilhas”.231
Fato semelhante ocorreu em aula observada no 7° ano C, no dia 20 de Junho de
2007. Ao se reportar à Escravidão no Brasil, muito alvoroço causou nos alunos a idéia de
que os escravos não deveriam ser vistos como meras vítimas da História, e que a relação
não era tão-somente dominador/dominado. Disse o professor:
É preciso que vocês entendam que os escravos eram agentes, sujeitos
históricos. Eu sempre falo e vou repetir, quando eu digo sujeito
histórico quero dizer que eles agiam, resistiam.
Hoje vários
historiadores têm demonstrado que esses escravos mesmo sofrendo a
exploração de seus senhores, resistiam. Havia resistência e havia muitos
escravos que se juntavam em parceria em muitas ações do dia-a-dia aos
seus senhores. É lógico que havia muita barbaridade, mas a figura do
escravo não pode ser somente aquela que vocês vêem na televisão,
principalmente nas novelas ou mini-séries que tratam do período da
escravidão no Brasil.232
MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 06 de junho de 2007.
Aula de História do dia 19 de junho de 2007. Professor Agenor Morelato.
231 Aula de História do dia 19 de junho de 2007. Professor Agenor Morelato.
232 Aula de História do dia 20 de junho de 2007. Professor Agenor Morelato.
229
230
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As refutações foram imediatas. Alguns alunos não concordaram dizendo que o
professor estava sendo racista com tal afirmação. O professor se defendeu e deu o exemplo
dos quilombos como forma de resistência dos escravos. Outro aluno disse que o escravo
não podia fazer muita coisa, pois por qualquer motivo sofria castigos físicos. O professor
explicou que não era bem assim e deu o exemplo do medo que os brancos tinham das
revoltas dos escravos. Uma aluna falou que, se assim fosse, ela era ainda mais contra o
regime de cotas nas universidades para os negros. O professor se apressou em explicar e
ressaltar que não estava dizendo que os escravos não foram massacrados com a prática da
escravidão, apenas queria deixar claro que não se podia ver o negro como mera vítima.
“Ele agiu, traçou seus objetivos e resistiu” insistiu o professor.233
Após a aula conversamos com o professor sobre as polêmicas suscitas nesta aula.
Relatou o professor Agenor Morelato:
É assim mesmo que ocorre quando você entra por esse caminho de
uma história mais crítica, mais voltada a uma análise cultural, deixando
os maniqueísmos de lado. O impacto é certo, conforme você atestou.
Mas o que mais importa e esse me parece o grande lance da Nova
História, é que com ela é possível levantar debates com os alunos. Só
que eu já tive problemas com esta forma de dar aula (risos) se você
pensa que o espanto vem só por parte dos alunos, engano seu, aqui na
escola muitos professores já me chamaram de louco, e de vez em
quando aparece um pai meio bravo dizendo que eu ando fugindo do
assunto que deveria ensinar a História, sei lá, parece que aquele modelão
metódico de História ainda impera na cabeça das pessoas e quebrar com
isso não é fácil.234
Ao trabalhar com o tema escravidão em sala o professor dinamizou. Deixou, ao
final da aula, um exercício e a proposta de um seminário e um debate sobre a questão da(s)
identidade(s) no Brasil. O professor preparou um pequeno texto, disponibilizado aos
alunos que, de forma bastante didática, explicava como a “mestiçagem” foi pensada pelos
autores no Brasil. Indo de Adolf Varnhagen a Fernando Henrique, passando por ícones
como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. O professor valeu-se do texto do
historiador José Carlos Reis235 e escreveu uma resenha do livro de maneira extremamente
didática. Quando da apresentação dos seminários o resultado foi acima do esperado,
principalmente em alguns grupos com maior dinâmica de apresentação que conseguiram
prender a atenção dos colegas. Autores que, em geral, são somente trabalhados nas
universidades, foram estudados de forma descontraída pelos alunos. Muitos alunos se
posicionaram contra alguns dos autores e se espantaram com as idéias do historiador do
século XIX, Adolf Varnhagen, por seu posicionamento racista. O professor aproveitou a
oportunidade e demonstrou que o texto diz muito de sua época, do período em que foi
escrito e que se deve entender o escrito na época em que foi redigido. Para os alunos do 7°
ano, perguntamos em questionário: Para você, qual a importância do estudo da disciplina
de História na escola? Unanimemente responderam os alunos que acham importante a
Aula de História do dia 20 de junho de 2007.
Agenor. Entrevista do dia 20 de junho de 2007.
235 O texto redigido pelo professor foi retirado do livro de José Carlos Reis. As Identidades do Brasil: de
Varnhagen a FHC. (REIS, 2006).
233
234MORELATO,
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disciplina, mesmo que ainda impere entre eles a visão da História como disciplina que se
resume ao estudo do passado.
No correr das aulas, principalmente a partir do sétimo ano, alguns temas sempre
rondavam a aula de História e levantavam proveitosos debates: a questão indígena,
movimentos sociais (com ênfase no MST), as desigualdades sociais e a corrupção no país.
A região favorece estes debates, no tocante aos indígenas (por ter o município presença de
aldeias o que conseqüentemente gera conflitos de terra). A região também é marcada pelos
grandes latifúndios sendo palco de luta por terra entre fazendeiros e organizações como o
MST e FETAGRI. Sobre as desigualdades sociais e a corrupção geralmente são os alunos
instigados pela mídia. Para o professor da disciplina, um excelente palco para discutir temas
ligados à História Cultural. Em suas palavras:
Todas essas questões levantadas pelos próprios alunos são muito
interessantes principalmente por partirem deles próprios. São dúvidas
vindas de casa do dia-a-dia, dúvidas presentes no cotidiano de cada um
desses meninos e meninas. O que passa pela cabeça desses jovens
quando lêem no jornal ou escutam no rádio que uma indígena foi
cruelmente assassinada em um conflito de terras como ocorreu pouco
tempo atrás? O que pensam eles quando se deparam com milhares de
críticas aos movimentos sociais veiculados não só pela mídia, mas
também pelas próprias pessoas da nossa cidade? O que pensam eles
frente às toneladas de notícias sobre corrupção o desemprego a
pobreza? Aí está, meu caro, o papel de nossa disciplina, não que creio
que a História deva estudar o passado para melhor compreender o
presente como numa visão tradicional, mas ela deve, através do estudo
das sociedades no tempo ajudar a ordenar estas questões de nosso
presente. Outras sociedades enfrentaram crises, problemas em outros
tempos, o que há de continuidade ou de descontinuidade. Sem deixar os
alunos apavorados com uma tonelada de autores que eles não
conseguem nem falar o nome ou acham motivo de piada, eu busco usar
muitos autores para discutir assuntos com eles sem citar.236
Para o docente quando se chega a estes assuntos e problemas de nossa sociedade
que saltam aos olhos dos próprios alunos, autores como Paul Thompson, Pierre Bourdieu,
Michel Foucault, Michel de Certeau, Roger Chartier, trazem grandes contribuições. Mas
alerta (e pode-se observar em suas aulas este cuidado) que se tratam de autores
extremamente acurados e de extremo grau de dificuldade até mesmo para quem já passou
pelo curso de História: “seria uma extrema imbecilidade eu querer falar nestes autores que
eu mesmo tenho dificuldade em entender, para alunos do fundamental”. E complementou:
Sempre tenho muito claro em minha cabeça quando estou
planejando minhas aulas de que devo utilizar estes autores para
melhorar minhas aulas sem prejudicar em nada o bom
encaminhamento dos alunos para a reflexão histórica, além do mais
me cuido muito com os autores pós-modernos, acho que o
desconstrutivismo, mesmo reconhecendo suas contribuições, é
bastante complexo, primeiramente por aquela questão do sujeito
histórico, que eu acho muito importante.237
236
237
MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 23 de junho de 2007.
MORELATO, Agenor. Entrevista no dia 23 de junho de 2007.
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Não são poucos os problemas enfrentados pelos professores no Brasil. Baixa
remuneração, carga-horária excessiva, precárias instalações, entre outros. No caso dos
professores de história a situação se agrava ainda mais, pois frente às muitas reviravoltas
econômicas e políticas ocorridas principalmente nas últimas décadas do século XX, onde
uma gama de ideais por um mundo mais igualitário, parece ter acompanhado o muro de
Berlim em sua queda. Por outro lado o (neo)liberalismo agravou as desigualdades não
alcançando os resultados previstos – pelo menos no que tange a uma sociedade com maior
eqüidade. Tudo isso levou a disciplina de história e seu ideal transformador a uma
reavaliação frente às ondas de ceticismos, num momento em que se cogitou, até mesmo, o
“fim da História” (FUKUIAMA, 1992).
Todos esses problemas fazem parte do cotidiano de muitos docentes da disciplina
de História espalhados por todo o país (RIBEIRO, 2006). Sendo também o caso do
professor observado neste trabalho. Todavia, fica um bom exemplo de comprometimento
com o ensino da disciplina de História, disciplina esta, que cada vez mais, se mostra como
uma área estratégica à formação do estudante como cidadão ativo social e politicamente
(FONSECA, 1993; HOBSBAWM, 1998).
BIBLIOGRAFIA
BURKE, Peter. (org.) A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992.
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas: Papirus, 1993.
RIBEIRO, Renilson Rosa. Escolas sem história(s): Ensino de História, Instituição Escolar
e Políticas Públicas de Educação. História e-História, Campinas, SP, v. 1, p. 01-04, 2006.
FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história: ensaios. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
REIS José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2006.
ROIZ, Diogo da Silva; FONSECA, André Dioney; FARIAS, Marcilene Nascimento de. A
escola metódica e o movimento dos Annales: contribuições teórico-metodológicas à
História. Revista Akrópolis (UNIPAR), v. 14, p. 121-126, 2006.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios - catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial, São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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A AULA COMO ACONTECIMENTO OU O ACONTECIMENTO
ENQUANTO AULA?
Susana dos Santos Nogueira238
Graduanda - Letras Habilitação Português
Universidade Federal de Goiás – Campus Jataí.
O texto “A aula como acontecimento” foi escrito pelo professor doutor João Wanderley
Geraldi , apresentado sob forma de palestra na Semana Pedagógica na Universidade de
Aveiro em 2003, Campus Universitário de Santiago 3810-193, em Portugal e
posteriormente publicado em Maio de 2004, pela mesma universidade.
239
A aula em contexto de ensino tem sido materializada em um momento
predeterminado de difusão de informações. Neste texto o professor Geraldi defende a idéia
de que a aula deve ser um momento planejado (mas flexível) de acontecimento interativo
da comunicação entre professor, aluno e conhecimento; a fim de que o primeiro ofereça
condições para que o segundo desenvolva sua competência lingüística. “Tomar a aula como
acontecimento é eleger o fluxo do movimento como inspiração, rejeitando a permanência do mesmo e a
fixidez mórbida no passado.” (Geraldi 2004,21)
Para Geraldi o professor deve “ser hábil para ensinar mesmo não sendo muito dotado”; sua
função é comunicar, onde tem nas mãos o que e a forma de ensinar como em uma
partitura, necessitar-se a de conhecimento (do professor) para executá-la (aula). No
processo de ensino, quando o aluno é passivo, não participante das aulas, o trabalho do
professor se reduz a uma mera execução de tarefas, cujo objetivo seria o preenchimento de
um receptáculo vazio (o aluno) em que o educador se posiciona como dono do saber e do
discurso que profere.
Segundo o autor, a identidade do professor se constrói ao longo da História, com a
obtenção de conhecimentos, que o formam, mas que muitas vezes não o torna de fato
professor; necessitando por isso de outros fatores como: o momento de realização da aula
e as experiências vivenciadas por ele, para o se constituir educador. Do século XVII até o
inicio do século XX, temos o sujeito (professor) que sabe o saber produzido por outros, e é
por ele que exerce o poder. Em contrapartida no início do século XX temos uma nova
identidade do professor que se define como aplicador do conjunto de técnicas em sala de
aula.
A relação da manifestação dos saberes na escola de hoje se apresenta de maneira
triádica: o professor, o aluno e o conhecimento. Quando ocorre um deslocamento nessa
relação triádica, acontece na atuação do professor que transmite a função de mediador do
conhecimento (hipóteses da ciência que na escola assumem caráter de verdade) ao livro
Graduanda do 7º período do Curso de Letras Habilitação Português pela Universidade Federal de Goiás –
Campus Jataí.
239 Possui graduação em LETRAS pela Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras de Ijui (1980), graduação em
CIENCIAS JURIDICAS E SOCIAIS pela Universidade Federal de Santa Maria (1970), mestrado em
LINGUISTICA pela Universidade Estadual de Campinas (1978) e DOUTORADO EM LINGUISTICA pela
Universidade Estadual de Campinas (1990). Atualmente é professor Colaborador Voluntário da Universidade
Estadual de Campinas, Membro de corpo editorial dos Cadernos Camilliani e Membro de corpo editorial do
Ideação (Cascavel). (Texto gerado automaticamente pelo currículo Lattes)
238
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didático. Ao professor cabe a tarefa de distribuir o tempo e verificar a fixação de
conteúdos, pelos seus alunos, através de respostas oferecidas no suporte pedagógico.
Não conseguindo acompanhar o livro didático o aluno se torna culpado pelo
próprio fracasso escolar (ideologia da incompetência): “É que ensinar não é mais um modo de
constituir uma civilização, mas um modo de controlar e restringir sentidos”(p.14). O problema social
desse fracasso restringe-se a um problema individual. A escola é vista por Geraldi como
uma instituição que ensina verdades, um lugar de ascensão social, que prega a construção
de igualdade entre sujeitos desiguais.
Nas duas últimas décadas do século XX, o modelo de professor que controla o
processo da aprendizagem entra em crise, surgindo cursos rápidos de treinamento,
reformas curriculares e políticas educacionais, que definiram parâmetros e conteúdos a
serem ensinados, objetivando um ensino de qualidade.
A nova identidade de professor a ser construída consiste na figura de um mediador
que faça uma ponte entre o aluno e o conhecimento considerando suas experiências de
vida e as de seus alunos, a fim de traçar questionamentos em torno delas, ponderando
ainda a herança cultura (cujos educadores se definem como sujeitos especialistas em uma
das disciplinas, não como produtores de cultura). Herança, essa que deve ser entendida
como um conjunto de conhecimentos e saberes (o saber como produto das práticas sociais,
sendo o conhecimento a organização desse produto), mais o conjunto das disciplinas
científicas (métodos de pesquisa e resultados).
Na página vinte e um ao fim do texto, Geraldi apresenta considerações finais que
contribuem para que pensemos a aula como um acontecimento. Nesse processo cabe ao
professor a tarefa de pensar o ensino como projeto, que se realiza a partir do momento que
professor e aluno se tornam autores, escrevendo seus textos e estabelecendo relações com
o já dito. A aula não se restringe a fixidez de conteúdos em um universo estritamente
planejado e formal, mas se caracteriza pela interação e possibilidade de diálogo, em que os
sujeitos produzem seus próprios conhecimentos.
“Ensinar não é mais transmitir e informar, ensinar é ensinar o sujeito aprendente a
construir respostas, portanto só se pode partir de perguntas.”(p.21)
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UM ESTUDO DAS CRENÇAS DE ALUNAS-PROFESSORAS QUANTO A SUA
FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA NO CURSO DE LETRAS-INGLÊS
Janete de Fátima Ribeiro da Silva
Graduada em Letras-Inglês e suas Literaturas (UNICENTRO/Guarapuava)
Marcia Regina Pawlas Carazzai
Mestre em Letras-Inglês e suas Literaturas – UFSC
Docente do Departamento de Letras
Universidade Estadual do Centro-Oeste UNICENTRO/Guarapuava
Resumo: Este estudo investigou as crenças de nove alunas-professoras sobre sua
formação em um curso de Letras-Inglês em uma universidade do Paraná. Os dados são
compostos de um questionário aberto e uma entrevista. Os resultados sugerem que as
alunas-professoras acreditavam que não deveriam depender apenas da universidade para
adquirir conhecimentos.
Palavras-chave: formação de professores, crenças, língua inglesa.
Abstract: This study investigated nine student-teachers’ beliefs about their education in the
Letras-Inglês undergraduate course at a university in Paraná. Data consisted of an open
questionnaire and an interview. The results suggest that the student-teachers believe that
they should not rely only on the university to acquire knowledge.
Key words: teacher education, beliefs, English language
Introdução
Segundo Almeida Filho (2000), com relação aos cursos de Letras, as instituições de
ensino superior deveriam priorizar a formação de professores de uma maneira estratégica
visando à educação nacional. O autor argumenta que atualmente os programas de
licenciatura não têm recebido atenção nem com relação ao ensino, nem com relação à
pesquisa. Ao referir-se especificamente as pesquisas sobre crenças, Barcelos (2006) sugere
que são necessárias investigações sobre crenças em diferentes contextos, dentre eles em
cursos de Letras.
Assim, desenvolveu-se uma pesquisa de caráter qualitativo com nove alunasprofessoras (doravante APs) de um 4º ano de Letras-Inglês de uma universidade pública do
Paraná, tendo como objetivo investigar as crenças dessas APs em formação. Nessa
investigação, buscou-se verificar se na visão das APs elas receberam um embasamento
suficiente ou se houve falhas no processo de formação acadêmica, suas crenças sobre os
conteúdos do curso e sobre a maneira que foram ministrados. Também se verificou se, na
visão dessas APs, esses conteúdos terão utilidade na sua vida profissional após sua
graduação.
Este artigo está composto por cinco partes. Na segunda parte, são abordados os
pressupostos teóricos, com uma definição do termo crenças. Na terceira parte, são
detalhados os pressupostos metodológicos, os instrumentos utilizados para obter os dados
da pesquisa junto as APs. Na quarta parte, é feita a análise dos dados através de uma
comparação dos dados junto às APs, utilizando algumas citações para ilustrar as crenças
das participantes. A quinta parte traz as considerações finais sobre as crenças das APs
quanto a sua formação na universidade.
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Pressupostos Teóricos
Conforme Pajares (1992), a palavra crenças tem várias definições, ficando a cargo
de cada autor usar o termo que melhor lhe convier. Neste trabalho optou-se por Barcelos
(2001, 2006) como modelo para referir-se a crenças, uma vez que sua definição é a que
mais se aproxima das crenças que foram investigadas nesta pesquisa.
Barcelos (2001, p. 72) diz que as crenças podem ser definidas de maneira geral
como sendo as “opiniões ou idéias que alunos (e professores) têm sobre o processo de
ensino aprendizagem de línguas”. Em um trabalho mais recente, a autora amplia sua
definição de crenças, afirmando que essas são:
uma forma de pensamento, [...] construções da realidade, maneiras de
ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em nossas
experiências e resultantes de um processo interativo de interpretação e
(re)significação. Como tal, crenças são sociais (mas também individuais),
dinâmicas, contextuais e paradoxais (BARCELOS, 2006, p.18).
Nessa citação, a autora mostra que as crenças são inerentes a todos, que todos
trazem consigo conhecimentos, percepções de mundo e experiências vivenciadas.
Trazendo esses aspectos para a formação do aluno-professor de línguas, seria possível
sugerir que as crenças desses podem exercer um papel importante no que diz respeito à
avaliação que fazem de sua formação.
Pressupostos Metodológicos
Os dados desta pesquisa foram coletados junto a nove alunas-professoras de um 4º
ano de Letras-Inglês, de uma universidade pública do Paraná. Das nove alunas-professoras
pesquisadas somente duas atuavam na área, sendo essas a AP9240, com mais de 15 anos de
experiência em uma escola de idiomas e em escolas particulares, e AP2 com dois anos de
experiência em escolas públicas.
Para a coleta dos dados, primeiramente foi aplicado um questionário aberto com
doze questões. Esse questionário foi aplicado no primeiro semestre de 2007, e continha
perguntas a respeito da formação acadêmica das participantes da pesquisa e sobre sua
opção pelo curso universitário de Letras-Inglês.
Outro recurso utilizado foi uma entrevista, feita também no primeiro semestre de
2007, para que as APs pudessem esclarecer as suas respostas que ficaram incompletas no
questionário e para que as participantes da pesquisa pudessem deixar suas considerações
finais.
A análise dos dados foi feita de maneira qualitativa. Inicialmente foi feita uma
análise dos dados do questionário e da entrevista individualmente. Posteriormente, foi
efetuada uma confrontação dos dados obtidos em ambos instrumentos. Assim, foram
identificadas e analisadas quais as crenças sobre a formação acadêmica das APs.
Para proteger a identidade das participantes desta pesquisa, neste artigo foram utilizados números. Assim,
‘AP9’ indica ‘Aluna-professora 9’, por exemplo.
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Análise dos Dados
Como afirmam alguns teóricos, dentre eles Vieira Abrahão (2002), Pajares (1992) e
Barcelos (1999), APs vem com algumas crenças pré-formadas para a universidade e essas
crenças podem influenciar seu aprendizado, seu julgamento e muitas vezes até a maneira
que irão ensinar seus alunos, mesmo que inconscientemente.
As APs participantes deste estudo apontaram que houve falhas no seu processo de
formação na universidade, pois ao serem questionadas quanto a sua formação, elas
responderam da seguinte maneira:
AP 1: eu acredito que essas falhas começam na universidade porque cabe a
universidade dar uma base pra professor + incentivar o professor + tentar formálo da melhor maneira possível + se a universidade não cumprir bem seu papel de
formar o professor é claro que ele vai repassar isso lá na escola e vai ser um aquela
coisa de um circulo vicioso + né + forma MAL e ele vai ensinar mal seus alunos
também. (Turno 8 da entrevista AP 1).
AP 8: é como eu tinha dito anteriormente os imprevistos seriam essas + essa essas
+ mudanças de professores professores despreparados pra dar algumas matérias
também que + que ficou faltando + que ficou um VAGO no meu aprendizado e
HOJE TA ME FAZENDO MUITA FALTA + é como pessoa e como formanda
+ eu achei que eu fiquei eu fui prejudicada nesse sistema ai. (No turno 115 da
entrevista AP 8).
AP 7: acho que eu + foi uma coisa assim comentada o inglês a disciplina de inglês
né + teria que ser BEM MAIS bem mais enfatizada até no momento nós estamos
sem professores né + este ano foi uma coisa que a gente ta sentindo e em todos os
anos foi uma coisa assim que sempre foi é + DEXADO de lado assim né + então e
este ano a gente ta sem professor e é uma coisa que faz muita falta porque daí você
para com a disciplina para de exercer tua língua de é+ de FALA de trabalha com ela
você vai se distanciando + então tem que ser enfatizado o inglês + é + e o estagio
também é muito bom apesar que este ano ta ta bom né + pra nos ta bem puxado
assim mas teria que ser desde o segundo ano ai já começa leva os alunos pra sala de
aula pra encarar uma sala de aula e quanto ao trabalho de conclusão de curso eu
acho que teria que ser dado um embasamento desde o primeiro ano + já começa
trabalha com + com essa questão porque senão você chega lá no quarto ano e você
fica APAVORADO + daí não sabe pra que lado e então desde o primeiro ano se
direcionado já que rumo que você vai caminhar. (turno 108 da entrevista AP 7).
Percebe-se ao analisar as respostas aos questionários e as entrevistas das APs, que
todas foram para a universidade com a crença que ali não encontrariam a fórmula perfeita
para “dar” aulas, ou para se tornarem “o professor perfeito”, porém encontrariam
subsídios suficientes para atuar no mercado de trabalho com segurança e para se tornarem
bons professores de inglês. Pode–se perceber isso nas citações que elas fizeram do que
seria um bom professor de inglês, com base em suas crenças:
AP 6 - É difícil definir o bom professor de inglês, pois não há uma RECEITA
PRONTA a seguir. Mas, acredito que (seja) o professor que ensina a língua inglesa
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dentro de um contexto que tenha sentido para o aluno, o motive, desperte seu
interesse p/ o aprendizado e o torne um cidadão critico e consciente, pode ser
considerado um bom professor de L.I. [língua inglesa] (Questão 3 do questionário
AP 6).
AP 7- Um bom professor é aquele que vai além dos currículos que a disciplina
impõe: é aquele que procura sempre inovação, sem perder o foco sobre o que esta
trabalhando, busca o melhor. Logicamente um bom professor busca envolver e
ensinar aos seus alunos todas as capacidades (ler, escrever, ouvir, falar) num
conjunto como um todo. (Questão 3 do questionário AP 7).
Segundo as APs, além de não encontrarem todos os subsídios que elas acreditavam
que fosse necessário para sua formação, dentre esses um laboratório de línguas, algumas
matérias consideradas importantes para formação das alunas-professoras, não foram vistas
e outras foram mal ministradas, prejudicando-as de certa maneira. Quando questionadas a
respeito da falta de alguma matéria no curso, houve um consenso quanto as seguintes:
Fonética, Fonologia e Gramática. Pode–se verificar isso nas seguintes respostas a
determinadas questões da entrevista:
AP 1: alem de fonética e gramática é + eu acredito que a questão da + da bastante
conversação é necessário porque se conversa muito pouco então é preciso uma ala
aula assim mais INSTRUMENTAL a aula de listening é muito importante. (No
turno 6 da entrevista AP 1).
AP 6: eu acho que faltou prática ((ela ri)) assim a eu acho que a gente deveria um
laboratório de línguas alguma coisa assim que a gente pudesse pratica eu acho que
quando eu coloquei é embasamento teórico nesse sentido assim a gente não tem
aula de fonética nós não temos aula de fonologia não temos a como passar pros
alunos um algumas estratégias de leitura de escrita eu acho que isso faz falta sim
(No turno 91 da entrevista AP 6).
Também houve consenso nas matérias que foram consideradas como dispensáveis
na visão das alunas-professoras, por não trazer acréscimos quanto à prática docente, sendo
algumas delas: Literatura Inglesa e Norte Americana. Isso pode ter sido consenso entre as
participantes porque ao lecionar língua inglesa nos Ensinos Fundamental e Médio, a
literatura não faz parte do currículo e dos programas trabalhados pelos professores,
diferentemente do que acontece nas aulas de língua portuguesa. Assim, nas crenças das
APs, as disciplinas de literaturas, tanto inglesa quanto norte americana, não dão
embasamento para elas atuarem em sala de aula, como se pode observar nas seguintes
respostas obtidas na entrevista:
AP 2: eu acho assim que na no curso de letras inglês é as matérias que são
dispensáveis são é literatura é inglesa ou americana porque em pratica em sala de
aula + a gente não usa não eu acho que não tem uma não tem utilidade essas duas
matérias. (No turno 27 da entrevista AP 2).
AP 5: eu acredito que aa de todas as matérias a LITERATURA é uma matéria que
não que não da muito embasamento se bem ela tem a sua importância porque
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através dela você conhece autores e estilos né de autores estrangeiros né. (No turno
78 da entrevista AP 5).
Apesar de citado várias vezes pelas APs que houve falhas na sua formação, todas
pareciam estar conscientes de que o aprendizado delas e de qualquer profissional na área de
educação não deve parar na universidade, e sim continuar com cursos de aperfeiçoamento
e reciclagem constantes para que seja possível manter-se atualizado e se tornar um
profissional capaz e confiante. Isso pode ser verificado nas seguintes respostas obtidas no
questionário:
AP. 4 Não, pois o bom professor não é aquele que não procura crescer! Vai além
até na própria formação, para o aluno alcançar a graduação é necessário buscar
mais, quanto mais é necessário que para atuar o professor deve sempre se
especializar. (Questão 7 do questionário AP 4).
AP.7- Um bom professor é aquele que vai além dos currículos que a disciplina
impõe: é aquele que procura sempre inovação, sem perder o foco sobre o que esta
trabalhando, busca o melhor. (Questão 3 do questionário AP 7).
Algumas APs que julgavam ter dificuldades na língua inglesa, acreditavam que
devem procurar um curso de idiomas, além do inglês aprendido na universidade. As alunasprofessoras pesquisadas têm consciência de que a universidade não tem função de escola
de idioma e nem somente ensina inglês, mas ensina como ministrar aulas de inglês, como
pode ser observado através das respostas que as alunas–professoras escreveram nos
questionários:
AP. 3 Sim, pois como dizem os professores do curso, na Universidade você não vai
aprender inglês, mas sim aprender a ser um professor. Isto faz com que o
acadêmico que sente-se com dificuldades busque recursos fora, neste caso cursos
de inglês. (Questão 9 do questionário AP 3).
AP. 2 Sim. Creio que sim, pois o curso não oferece para o aluno um inglês rápido e
comunicativo deveria de ser, mas não é. O método que é usado é bom mas poderia
ser mais direcionado para a aprendizagem da língua como uma função mais
comunicativa. (Questão 9 do questionário AP 2).
AP 8: NÃO eu acho que como o nosso curso não é um curso + é eu acho assim
que quer aprender conversação que vá prum curso particular + aqui eu acho que
nós estamos aprendendo a ser professores de inglês e não professores de
conversação então nós temos que aprender simplesmente pra ensinar um aluno a
ser crítico + a saber + a ele saber que + a valorizar a nossa matéria de inglês + né +
nós estamos aqui então o nosso desenvolvimento hoje tem que ser em torno de
aprender pra ensina o nosso aluno + a ser um cidadão crítico não pra uma
conversação + quem quiser conversação que vá prum curso particular. (No turno
117 entrevista AP 8).
Ao solicitar sugestões de mudanças para a grade curricular, uma das que fica mais
evidente, além das disciplinas que foram sugeridas pelas APs, é a criação de um Laboratório
de Línguas e também um enfoque maior na Língua Inglesa, bem como a necessidade de
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aprender questões mais relacionadas a estratégias, de leitura e de escrita, por exemplo,
como pode ser verificado nas falas das APs:
...eu acho que a gente deveria ter um laboratório de línguas + alguma coisa assim
que a gente pudesse praticar ...” (Turno 91 da entrevista AP6 ).
AP 6: eu acredito que a grade poderia ser alterada e nesse sentido de acrescentar um
pouquinho mais assim + pra língua inglesa essa questão de + de + de porque assim
eu acho que é fundamental Janete pra gente que é + que vai ser professor + ter
uma pronuncia LEGAL + você poder chegar na sala de aula e passar isso pros teus
alunos + algumas técnicas de leitura que ajudem eles + que não precisem ficar
decodificando palavra por palavra + a questão de escrita + alguns passos assim que
ajude ele como montar uma redação em inglês + e são coisas que a gente não vê
aqui no curso e se a gente não tem essa base você não pode repassar pros alunos.
(Turno 93 da entrevista AP6.).
Considerações finais
Através dos dados obtidos foram verificadas as crenças das participantes da
pesquisa sobre a sua formação no curso de Letras-Inglês. Após a verificação das crenças
das alunas-professoras também foram analisadas as sugestões feitas pelas mesmas para a
eventual construção de uma nova grade curricular do curso de Letras-Inglês.
Pôde-se observar que as APs tinham a crença de que a universidade proveria um
ensino de qualidade focado nas dificuldades que elas teriam quanto à sua formação e
quanto aos problemas que enfrentariam ao adentrar o mercado de trabalho. Mas isso não
ocorreu de maneira satisfatória, de acordo com o que as participantes relataram.
Primeiro, ocorreram algumas falhas da universidade quanto ao quadro de
professores, como a falta de professores nos quatros anos do curso. Isso
conseqüentemente gerou muitas vezes a falta de conteúdos considerados essenciais para a
boa formação das alunas–professoras, principalmente em algumas matérias consideradas
básicas por elas, sendo as mais citadas: didática, psicologia e inglês. Houve também a falta
de disciplinas que na visão das alunas-professoras eram consideradas importantes para a
sua formação, sendo elas: fonética, fonologia e gramática.
Algumas sugestões feitas pelas alunas-professoras foram a criação de um
laboratório de línguas para prática de conversas em inglês, e um maior enfoque na língua
inglesa e na aprendizagem de questões relacionadas a estratégias de leitura e escrita, como
também o enfoque na maneira de se portar em sala de aula e de agir diante de dificuldades
e de imprevistos. A maioria das alunas-professoras pesquisadas reclamou que outras
matérias têm maior enfoque do que o inglês e, na visão delas, uma vez que estão fazendo
um curso de Letras-Inglês, a língua inglesa deveria ser melhor trabalhada, deveria haver
uma carga horária maior e com melhores recursos, tanto audiovisuais quanto profissionais.
Essas sugestões poderiam ser levadas em conta pelos administradores da
universidade e pelo chefe e docentes de departamento para uma melhoria no curso de
Letras-Inglês, e com isso passar a formar professores cada vez mais preparados e mais
capazes de enfrentar o mercado de trabalho. Isso também poderia fazer o aluno-professor
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levar o nome da instituição para todos os locais aonde venha a exercer a profissão e
mantendo este nome em evidência, de uma maneira positiva.
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ALMEIDA FILHO, J.C.P. (org.). O Professor de Língua Estrangeira em Formação.
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QUEM FOI CAROLINA MARIA DE JESUS?
Elizabeth Barboza Pereira
Graduada – Letras - Universidade Paulista – UNIP
RESUMO: O objetivo deste artigo é reapresentar a autora Carolina Maria de Jesus e suas
obras, bem como destacar a importância do diário enquanto gênero literário. Seu primeiro
livro, Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, transformou-se em best-seller em 1960,
causando grande impacto na opinião pública e sendo traduzido para pelo menos treze
idiomas. A autora superou todos os escritores brasileiros da época em reconhecimento
internacional e, ainda hoje, sua obra é conhecida em mais de quarenta países. Entretanto,
em seu próprio país permanece esquecida.
Palavras-Chave: Carolina Maria de Jesus, obra, diário.
ABSTRACT: This article aims to re-introduce the author Carolina Maria de Jesus and her
work, as well as highlight the importance of the diary as a literary genre. Her first book,
Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada, became a best-seller, had a great impact on public
opinion and was translated into at least thirteen languages. The writer was then more
successful and internationally acknowledged than any other Brazilian author, and to this
day her work is known in over forty countries. However, in her own country it remains
forgotten.
Key-words: Carolina Maria de Jesus, work, diary.
A descoberta
Foi em abril de 1958, segundo os historiadores José Carlos Sebe Bom Meihy e
Robert Martin Levine (1994), quando o país passava por uma rica experiência democrática,
que o então jovem fotógrafo e repórter Audálio Dantas foi enviado à Favela do Canindé
para cobrir a inauguração de um playground para o jornal Diário de São Paulo. Ali começava a
emergir do anonimato a história de Carolina Maria de Jesus.
Em meio a um tumulto, ele ouviu e viu uma negra alta e imponente gritando com
alguns bêbados que estragavam os brinquedos públicos: “Se vocês continuarem a fazer
isso, vou colocar o nome de vocês em meu livro!”. Interessado em saber sobre o livro,
Dantas foi conduzido pela própria Carolina ao interior de seu barraco, onde ela lhe
mostrou uma coleção de cadernos velhos que recolhera do lixo, e nos quais registrava o
dia-a-dia da favela, sua vida, a de seus filhos e a dos moradores. O repórter ficou
impressionado, pois até aquele momento não havia visto nada, ou quase nada, que falasse
da vida e intimidade dos miseráveis que assolavam o Brasil. Até então, tudo que fora
descrito era ficcional. Dantas, a partir daquele momento, viu-se diante de um material
impressionante: “Bastou eu ler uma página para entender que era algo muito importante”.
(DANTAS apud MEIHY; LEVINE, 1994, p. 102).
Na visão do jornalista, o material era relevante por basicamente dois motivos.
Primeiro, como depoimento da luta de uma mulher negra, semi-analfabeta, sozinha, com
filhos dependentes, vivendo de catar papel, e sem apoio de nenhuma instituição, ou seja,
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vivendo uma vida marginal. Segundo, porque as anotações possuíam uma inegável
expressão literária desse mundo marginalizado dos favelados.
Dantas convenceu à Editora e Livraria Francisco Alves a publicar os diários e
procurou manter a estrutura coloquial e as inadequações gramaticais de Carolina. O
lançamento aconteceu em 1960 e o sucesso foi estrondoso, tendo sua primeira edição, com
tiragem de dez mil exemplares, indo na contramão da tradição brasileira em edições, que
era de dois ou três mil exemplares. Audálio Dantas sugeriu Quarto de Despejo como título do
livro, devido ao olhar crítico da autora, que dizia que a favela era o quarto de despejo do
país, enquanto que a sala de visitas era Brasília, a então nova capital. O esforço de Dantas
despertou atenção internacional, em função do sucesso do lançamento do livro no Brasil.
Revistas de grande prestígio e circulação, como Life, Time, Le Monde, tanto quanto jornais e
revistas especializadas em literatura na França, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, também
se interessaram pela publicação, por seu ineditismo.
O resultado foi uma série de traduções, em 13 edições internacionais. Primeiro em
inglês, e, posteriormente, em alemão, espanhol, holandês e outras, em conseqüência do
grande sucesso.
Referência biográfica
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, no dia 14 de março
de 1914. Filha de pais descendentes de escravos, negros “retintos”, viveu sua infância e
adolescência no pacato vilarejo do Triângulo Mineiro. Cursou até o segundo ano primário.
Entrou no colégio aos sete anos de idade, quando ainda mamava. Foi o avô, no entanto, a
quem chamava entusiasticamente de “Sócrates africano”, sua grande inspiração. Sua
educação formal na escrita e leitura ocorreu nesse pouco tempo de estudos. Aos 33 anos,
em 1947, chega à grande metrópole que não pára de crescer, São Paulo, em busca da
sonhada melhoria de vida. Nesta fase de sua vida, tanto a mãe quanto o avô já tinham
morrido, após muito sofrimento.
Meihy e Levine (1994) destacam que sobre outros parentes próximos de Carolina
pouco se sabe. Sozinha na cidade e no mundo passou fome e dormiu em estradas, sob
pontes e em lugares desprotegidos. Nas peregrinações em busca de sustento, assumiu
profissões variadas. Foi na casa do Dr. Eurícledes Zerbini que Carolina teve acesso aos
livros de sua biblioteca particular, onde, apesar dos horários pré-estabelecidos e regras
impostadas pelos patrões, periodicamente buscava ampliar seus parcos conhecimentos. Foi
mãe solteira quatro vezes, embora apenas três filhos tenham sobrevivido. Os pais de seus
filhos eram brancos e estrangeiros. João José de Jesus foi seu primogênito, fruto de um
relacionamento com um marinheiro português. Após dois anos teve José Carlos de Jesus,
filho de um espanhol. E, por último, Vera Eunice de Jesus Lima, cujo pai nunca tivera sua
identidade revelada por ela. Sabe-se que este tinha posses; no entanto, por muito tempo,
nunca soube da existência da filha.
A luta de Carolina pela sobrevivência e a preocupação com os filhos foi uma
constante em sua vida. Moradora por um longo período da primeira grande favela de São
Paulo, no bairro do Canindé, destruída na década de 1960 para que fosse construída a
Marginal Tietê, Carolina construiu seu barraco sozinha, com as próprias mãos, com tábuas
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e materiais retirados de uma igreja em construção. Para a cobertura, utilizou folhas de
zinco, retiradas ao acaso de outros locais.
A favela do Canindé situava-se próxima a um depósito de lixo, que passou a ser,
então, o sustento de Carolina e dos filhos. Mesmo vivendo em um ambiente impróprio,
com telhas furadas, fedor ao redor, conseguiu criar seus filhos, e ainda encontrar forças
para escrever nos cadernos retirados do lixo. O barraco localizava-se à rua A, número 9.
Seu diário sistematicamente começou no ano de 1955 e a primeira anotação aconteceu no
dia 15 de julho. Descreveu sua vida e a miséria que a assolava na favela:
15 de julho de 1955
Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par
de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a
realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de
vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela
calçar. (JESUS, 1983, p. 7).
Os livros e, conseqüentemente, a leitura eram muito importantes para Carolina,
como se percebe nesse trecho:
Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho.
Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de
manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem. (JESUS,
1983, p. 21).
Sendo semi-analfabeta, é provável que sua habilidade na escrita estivesse
diretamente relacionada com a prática da leitura. Embora muitos pesquisadores associem o
ato de ler à escolarização, Carolina se mostrou na contramão dessa afirmação, pois, embora
tenha estudado apenas até a segunda série, lia e escrevia muito.
As obras
A trilogia formada por Carolina inclui Quarto de Despejo (1960); Casa de Alvenaria:
Diário de uma ex-favelada (1961) e Diário de Bitita (1986), publicação póstuma. Para Meihy e o
também historiador Robert Martin Levine (1994), esta última talvez tenha sido sua melhor
obra: “[...] cheia de passagens interessantes sobre a vida rural, sobre a brutalidade dos
policiais e sobre as expectativas afloradas desde o surgimento de Vargas na cena política de
1930”. (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 45).
Também escreveu Provérbios e o romance Pedaços da Fome (1963), que foram
publicados por ela mesma. A publicação de Casa de Alvenaria, em 1961, também teve a
ajuda de Audálio Dantas, mas, segundo a autora Marília Machado (2007) 241, não vendeu
muito, apenas uma única edição de três mil exemplares, número insignificante diante dos
noventa mil que ela havia conseguido com Quarto de Despejo. Esclarece, entretanto, que é
um livro de muita importância, pois traz o testemunho, que talvez seja o único, do
cotidiano de uma ascensão social. Carolina relata a assinatura do contrato com a editora
para a publicação de Quarto de Despejo, sua saída da favela, a chegada num bairro de classe
241
Ausência de página por se tratar de artigo retirado de fonte eletrônica.
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média e a nova casa, além de se posicionar crítica e psicologicamente com relação àquele
novo universo em que estava se infiltrando.
O livro Diário de Bitita (1986) primeiramente foi traduzido para o francês com o
título de Jornal de Bitita. A publicação ocorreu em função da entrevista concedida por
Carolina a duas jornalistas vindas da França, em 1975, exclusivamente para entrevistá-la.
Carolina concedeu a entrevista e também exibiu seus manuscritos com revelações de sua
infância e adolescência.
Mesmo após tanto sucesso, Carolina morreu pobre e esquecida na madrugada do
dia 13 de fevereiro de 1977, num sítio em Parelheiros, ao sul de São Paulo, “única
propriedade que lhe ficou de sua meteórica escalada no mundo das letras” (MEIHY, 1996,
p.38). Estava com 63 anos, mas aparentava 80. Provavelmente a causa de sua morte tenha
sido problemas respiratórios. Carolina foi sepultada no Cemitério da Vila Cipó, a cerca de
40 km do centro de São Paulo. Sua morte, entretanto, não foi o ponto final de sua história,
segundo Marília Machado (2007) 242. Após o lançamento na França em 1982 do Diário de
Bitita e, junto com ele, sua repercussão, a Rede Globo de Televisão realizou o “Caso
Verdade: de catadora de papel a escritora famosa”. A livraria Francisco Alves no ano seguinte
lançou a 10ª edição de Quarto de Despejo e outros países também reeditaram o livro, além de
autores que publicaram excelentes textos sobre a escritora.
Nos anos 90 os professores e historiadores José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert
Martin Levine trabalharam em parceria e ajudaram a redescobrir a escritora. Os autores
lançaram The Life and Death of Carolina Maria de Jesus (1995), Cinderela Negra: A saga de
Carolina Maria de Jesus (1996), Meu Estranho Diário (1996) e Antologia Pessoal (1996), estes dois
últimos já organizados pela autora.
Teses de Doutorado no Brasil também a tomaram como tema e nos Estados
Unidos muitos estudos sobre sua obra foram publicados. Quarto de Despejo já foi
selecionado para o vestibular da UFMG em 2001 e em 2004 na UnB, gerando resenhas e
críticas. Muitas ruas, creches, associações, abrigos, bibliotecas e clubes receberam o nome
de Carolina. Algumas das homenagens foram a atribuição de seu nome à rua em que ela
faleceu, a uma creche em São Paulo, capital, em 1990, e a um clube no Guarujá, no estado
de São Paulo. Em 2001, a Câmara Municipal de Sacramento, cidade onde nasceu,
outorgou-lhe o título de cidadã honorária.
Segundo o professor Carlos Alberto Cerchi (fonte eletrônica) 243, Quarto de Despejo
inspirou letras de samba com o mesmo nome, de autoria de B. Lobo, e também inspirou
expressões literárias, em debate no livro “Eu te arrespondo Carolina”, de Herculano Neves,
com adaptação teatral de Edy Lima.
Meihy e Levine (1996) ressaltam que, quando ainda estava viva, a Televisão Alemã
realizou um filme chamado “Despertar de um Sonho”, dirigido por Gerson Tavares (ainda
inédito no Brasil), com a participação da própria Carolina. Esse documentário, editado na
antiga Alemanha Oriental, foi censurado e proibido de ser televisionado no Brasil. Muitos
projetos foram engavetados e outros, que conseguiram sair da gaveta, são pouco
242
243
Ausência de página por se tratar de fonte eletrônica.
Ausência de ano e página por se tratar de fonte eletrônica.
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conhecidos. A atriz Zezé Motta participou do documentário de curta-metragem feita pela
Trama Filmes, realizado em 2003, e dirigido pelo cineasta Jéferson De.
Após o sucesso meteórico com Quarto de Despejo, Carolina correu o Brasil e, quatro
meses após o lançamento do livro, a Academia de Letras de São Paulo convidou-a para
fazer parte de seu grupo seleto. Além disso, recebeu, juntamente com a chave da cidade, o
título de cidadã honorária.
Carolina Maria de Jesus era mais considerada pela imprensa internacional do que
pela imprensa brasileira, como enfatizaram Meihy e Levine (1994). Foi tratada por aquela
de uma maneira mais humana, sem cobranças de virtudes literárias, e elogiada pela coragem
de colocar a público a miséria social. Alguns jornais assim a retrataram:
The Herald Tribune qualificou seu diário como “uma assombrosa crônica
da fome(...) um dramático documento sobre os despossuídos que ao
mesmo tempo choca e comove os leitores”. A revista Horizon, em uma
resenha, dizia que “o livro contém revelações raras e verdadeiras que
inspiram em alguns compaixão, em outros revolta e até revolução”. A
revista Life dedicou uma página inteira a ela, enquanto a Paris Match
reportava longamente a sua história (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 30).
A saga da escritora negra, pobre, semi-analfabeta, embora tenha provocado tanta
polêmica, sacudindo a elite e desmistificando a favela, ainda hoje, após 48 anos da
publicação de seu diário e após 31 anos de sua morte, continua praticamente desconhecida
no Brasil. A nova geração é privada de conhecê-la, bem como seus “romances, peças
teatrais e 39 cadernos ainda inéditos contidos na Universidade Federal do Rio de Janeiro”.
(Informação verbal) 244.
Neste contexto, cabe perfeitamente a frase da estudante Elissa Jastal, da
Universidade de Miami, quando lhe pediram para escrever algo sobre o legado de Carolina,
e como esta via a reação da sociedade brasileira. Elissa escreveu em formato de carta, que
foi endereçada posteriormente à filha de Carolina, Vera Eunice: “Your mother was unable
to find a physical space for herself in Brazil, however, she did find a spiritual place for her
mind in her diary”.245 (JASTAL apud LEVINE; MEIHY, 1995).
O gênero diário
“[...] o diário é uma forma narrativa dotada de estatuto próprio e com uma
história de publicação consolidada. Trata-se de uma forma literária que tem
nos diários de guerra e nos relatos de viagem sua forma ancestral, mas que
começa a se fortalecer como gênero a partir do estabelecimento da sociedade
burguesa e da difusão da noção de indivíduo, ou seja, quando, no Ocidente, o
homem adquire a convicção histórica de sua existência.” (2005).
Eduardo Luís Figueiredo de Lima
Informação fornecida na entrevista realizada com o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy na USP no
dia (12.09.07).
244
Sua mãe foi incapaz de encontrar para ela mesma um espaço físico no Brasil, no entanto, ela encontrou
um lugar espiritual para sua mente em seu diário.
245
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Sheila Dias Maciel
A autora Sheila Dias Maciel (2002), em um artigo sobre este assunto, levanta uma
perspectiva instigante: segundo ela, o diário enquanto gênero literário apresenta como
sustentação de seu pilar o papel do narrador e, acima de tudo, traz a forma confessional
como sendo ainda uma tentativa de relato autobiográfico. O diário é utilizado há vários
séculos por diversos motivos: históricos, como uma narrativa confessional e autobiográfica,
capaz de revelar as singularidades do ser humano e, também, como uma forma de praticar
a escrita e a leitura.
Informa também que a aparente facilidade desta composição permite tantas pessoas
comuns a “se aventurarem pelo universo da escrita”. (MACIEL, 2002, p.58).
A prática de escrever diários torna-se um exercício que gera novos textos. Pode-se
dizer que é um elo para as pessoas ligadas à literatura.
Já para uma pessoa leiga, o gênero diário seria uma opção fácil para se ter o hábito
da escrita. Também seria uma forma de confissão, como os relatos de fatos corriqueiros,
assim como os grandes problemas existenciais humanos, como uma maneira de
fortalecimento histórico para o indivíduo.
Atualmente, em função do desenvolvimento tecnológico, muitas pessoas se sentem
sós, não mantendo o diálogo em casa ou em sociedade. Por esse motivo, houve um
crescimento significativo de pessoas escrevendo diários, para tentar esquecer a solidão, se
confidenciando neles como que para um amigo. Muitas pessoas vêem o diário como um
amparo, uma proteção contra o tempo.
Características do gênero diário estão descritas na obra de Carolina, como salientou
Maciel (2002). A primeira está relacionada ao fato de Carolina escrever sempre em primeira
pessoa, sobre si e sua realidade, como se percebe nessa passagem: “Percebi que estava
resfriada. À noite o peito doía-me” (JESUS, 1983, p. 7). Este trecho foi retirado
aleatoriamente, porque em todos eles a autora realmente escreve em primeira pessoa.
Qualquer outro excerto retirado caberia nesse contexto e seria relevante. Fica explícito, o
tempo todo, o fato de Carolina falar de si e de sua realidade, pois esta prática é uma
constante em seus diários.
A segunda característica refere-se à narrativa pessoal, outro elemento do gênero
diário. Sua realidade cotidiana é presença marcante através da narração:
30 de outubro de 1958
Diário
Deixei o leito as 5 horas e fui carregar água. Que suplicio a minha lata
estava furada, e eu não sei quando poderei comprar outra. Acendi o
fogo e puis água esquentar para os filhos lavar o rosto. (JESUS, 1996, p,
33).
Quando ela começa o trecho descrito acima, mencionando o dia e em seguida
introduzindo “diário”, é como se ela estivesse conversando com o diário em forma de
desabafo. Para “ele”, ela relatava todos os seus medos, anseios, frustrações, alegrias e
esperanças no futuro. Fez do diário seu melhor amigo e confidente.
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Outra prática presente no gênero diário – e a qual Carolina se remete todo o tempo
– é a da leitura e da escrita:
Fui trocar-me e parei de escrever dizendo-lhe...se pudesse eu escrevia dia e
noite. A única coisa que eu gosto e de livros. Mostrei-lhe os meus livros.”
[...] “Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre
quem deve ler. Porque o livro, é a bússola que há de orientar o homem no
porvir passei a parte matinal escrevendo”.
[...] Resolvi escrever um pouco, e ler uns trechos do romance que estou
escrevendo. Já estou finalisando-o. parece que escedi nas cenas amorosas”
[...] “Fiquei alegre quando um jornalista mostrou me o meu livro. Dei uma
risada peguei o livro e exclamei Que beleza para mim todo livro e belo.
Devo adorar o livro porque o livro é o elo que abre a inteligência
libertando-a. O meu sonho era viver cem anos para ler todos os livros que
há no mundo. – A capa do livro é bonita”.
[...] Respondo-lhe: não há nada de exepcional na minha vida fui lendo que
adiquiri conhecimentos. Se houve transformação na minha vida, devo
agradecer aos livros. (JESUS, 1996, p. 123,167,172,178,185).
Outro fator relevante que estipula o gênero diário, segundo Maciel (2002), é sua
ordem cronológica, porém variável, embora sempre se atendo ao presente.
Os diários de Carolina seguem essa ordem cronológica, ainda que haja variação em
seus períodos. Em Quarto de Despejo, ela inicia seu relato em 15 de julho de 1955 e dentro
desse mês não escreve todos os dias. Depois passa para 1958, mais precisamente no dia 02
de maio, e, assim, sucessivamente. O diário termina no dia 1 de janeiro de 1960.
Os trechos citados abaixo foram escritos no dia 02 de setembro, 03 de setembro e
08 de setembro, mostrando essa periodicidade variável:
2 de setembro
[...] Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num
espetáculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para
minha’alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meus
agradecimentos.
3 de setembro
Ontem comemos mal. E hoje pior.
8 de setembro
...Hoje eu estou alegre. Estou rindo sem motivo. Estou cantando.
Quando eu canto, eu componho uns versos. Eu canto até aborrecer da
canção. (JESUS, 1983, p. 133-134)
Outro aspecto relevante é a percepção de mundo que tinha Carolina; sem jamais ter
deixado seu país, conseguiu narrar os fatos alheios e os seus próprios, mesclando visão
ingênua e saberes, como ao dar conselhos, outra característica essencial do narrador,
conforme citou o autor Walter Benjamim (1985).
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Nessa passagem, Carolina verbaliza sua teoria a respeito das atitudes dos homens
com seus semelhantes: “Na minha opinião, o homem é tolo se a própria natureza destrói o
homem porque é que o homem deve destruir-se...” (JESUS, 1996, p. 124).
Em outro trecho, a consciência de sua condição e de seu papel social é enfatizada:
Quando eu era da favela era despresada pelo povo. Porque ninguém quer
amisade com favelado. Dizem que são ladrões. Mas o que falta para o
pobre é comida e carinho. Agora, tem tanta gente que bajula-me e
aborrece-me. (JESUS, 1996, p. 131).
Ainda se percebe nas narrativas de Carolina a amplitude das idéias presentes nos
fatos narrados, diferenciando-os dos informativos. Mesmo após tantos anos, a leitura de
seus diários causa impacto, emociona e, principalmente, leva o leitor a assumir uma postura
reflexiva diante de uma narrativa incorporada através do senso prático, por uma mulher do
povo. Talvez pelo fato de ser simples e ter sabido narrar essa simplicidade, como enfatizou
Benjamin (1985), sua força narrativa permanece até hoje. A passagem abaixo mostra
claramente esta reflexão ainda tão atual:
Despertei as duas horas para escrever. Eu estou atrasada no Diário.
Hoje é o dia dos mortos. Fico observando a ipocresia dos vivos levando
flores aos mortos. Quando uma pessoa esta viva, é maltratada, e
despresada. A tal sociedade, que em vez de chamar sociedade, devia
chamar podridão moral exclui, e seleciona as pessoas ferindo
sensibilidades nobres. Depois que morrem choram e enaltecem.
Quantas pessoas morrem por falta de recursos. (JESUS, 1996,
p.135).
Analisando o gênero diário e, principalmente, os diários de Carolina, percebe-se que
o hábito de se expressar diariamente de maneira confessional, através de cadernos, perdeu
força, e, com isso, a prática da leitura e escrita também ficou prejudicada na sociedade
atual. A rapidez de informações e os estímulos visuais a que os jovens estão submetidos é
um dos fatores que contribuem para essa realidade. A compreensão de textos, para muitos
deles, se torna uma problemática quando precisam trabalhar em textos fornecidos por
professores, ou mesmo interpretá-los em outras ocasiões. Há grande dificuldade nessa
prática e na escrita, principalmente em relação à coesão e coerência de textos.
Ao perceber todos esses pontos nos diários, pode-se indagar se não seria relevante
um estudo mais aprofundado do gênero, e cabível o incentivo e aplicação dessa prática nas
escolas, a fim de tentar amenizar a ansiedade dos jovens através da prática da escrita e
leitura de textos, voltada para o “eu” de cada um, propiciando assim, uma forma de
desabafo particular e visão de mundo, inserindo-os também no âmbito gramatical. Quem
sabe dessa forma mudar-se-á a realidade da frase dita pelo professor Meihy em entrevista
realizada na USP no dia 12 de setembro de 2007:
“O diário é uma coisa muito mais estudada fora do Brasil do que
aqui”.
José Carlos Sebe Bom Meihy.
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QUANTO MAIS CEDO MELHOR? O FATOR IDADE NA APRENDIZAGEM
DE UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA
Paulo Roberto Boa Sorte Silva246
Mestrando em Educação – Universidade Federal de Sergipe (UFS)
Professor substituto da UFS
Professor da Faculdade José Augusto Vieira (FJAV)
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de analisar o papel da idade na aquisição de uma
segunda língua (L2) e se insere nos estudos dos fatores que afetam o seu aprendizado.
Acredita-se que, quanto mais cedo se começa a estudar uma LE, melhor. Uma das
hipóteses é a do Período Crítico, segundo o qual há um tempo biológico específico em que
as pessoas estão mais pré-dispostas a adquirir um excelente grau de desempenho. Uma
revisão da literatura, bem como uma breve análise das pesquisas acerca da Hipótese do
Período Crítico revela que a diferença de idade em si não é a principal razão para a
proficiência lingüística e faz-nos levar em conta outros fatores que afetam a aprendizagem
de línguas. Percebe-se, portanto, que atribuir apenas ao fator idade a responsabilidade pelo
sucesso ou falha na aquisição de uma segunda língua não é suficiente e aconselhável.
Palavras-chave: aprendizagem; língua estrangeira; idade.
Abstract: This article aims at analyzing the role of age in Second Language Acquisition
(L2) and it part of the factors that affect its learning. There has been a belief that the earlier
one starts studying a second language the better. One of the hypotheses is The Critical
Period, which claims the existence of a biological period of time when people are likely to
acquire an excellent performance. A review of the literature, as well as a brief analysis of
the researches about the Critical Period Hypotheses shows that the age difference itself is
not the main reason for language proficiency e leads us to take into account other factors
that affect language learning. We can notice, though, that attributing just to the age factor
the responsibility for success or failure while learning a second language is not enough and
advisable.
Key words: learning; foreign language; age
Introdução
Um dos pré-requisitos necessários para se conseguir emprego no Brasil é a fluência
em uma Língua Estrangeira (doravante LE), mais especificamente o inglês. Isso já deixou
de ser uma novidade; com o impulso da globalização e o advento da Internet, falar essa
língua não representa mais um diferencial no currículo, e sim, um item que deve integrar o
perfil do profissional ou futuro profissional.
A forma como aprendemos uma LE varia bastante: cursos de idiomas, escolas
regulares, professores particulares ou até mesmo como autodidatas. Junto com a aquisição i
das formas lingüísticas vem o contato com a cultura; filmes, músicas e materiais autênticos
Graduado em Letras – Português/Inglês (UNEB); Especialista em Ensino de Inglês (UFMG); Mestrando
em Educação (UFS); professor de Estágio Supervisionado em Inglês da Faculdade José Augusto Vieira
(FJAV); professor substituto de Língua Inglesa da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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como jornais, revistas, livros e blogs encontrados na Internet podem ajudar o aluno a
desenvolver de forma mais eficaz suas habilidades na nova língua.
Com esse processo, que leva tempo e dedicação, não se pode negar que algumas
pessoas têm performances mais satisfatórias que outras ao se expressar (seja de forma oral
ou escrita) em uma LE. Há fatores que afetam o nosso aprendizado: a motivação, a
aptidão, o ambiente em que a língua foi aprendida ou o fato de o aluno ser uma pessoa
mais ou menos extrovertida. Dentre esses fatores, há uma característica do aprendiz que
tem sido assunto de uma longa discussão na área de ensino e aprendizagem de LEs: a
idade. Sempre houve a crença de que as crianças se desenvolvem melhor do que os adultos
quando aprendem uma LE. Entretanto, essa discussão é mais complexa do que parece.
Pesquisadores buscam explicar se há uma idade específica em que as pessoas devam
começar a aprendê-la. A Hipótese do Período Crítico - Critical Period Hypothesis – doravante
(CPH) prova, com bases neurológicas, que a puberdade é a fase “ideal para o sucesso”. Por
outro lado, pesquisadores afirmam que fatores sociais, psicológicos e educacionais afetam a
proficiência na língua-alvo muito mais do que o relógio biológico.
O propósito deste artigo é analisar o papel da idade na aquisição de uma LE por
meio da leitura e análise das referências bibliográficas que discutem o assunto. Os
resultados apresentados aqui são parte de pesquisas no âmbito das teorias de aquisição de
LE, desenvolvidas durante a nossa passagem pelo programa de pós-graduação em Estudos
Lingüísticos da Universidade Federal de Minas Gerais. Primeiro discutiremos a CPH para,
então, tratarmos dos estudos que questionam a existência desse período, bem como a sua
importância na aquisição de uma LE.
1. A Hipótese do Período Crítico (CPH)
A CPH afirma que há um período de tempo biológico em que as pessoas estão prédispostas a ter um alto nível de proficiência na aprendizagem de uma LE. Spada e
Lightbown (2000) apontaram um fato bastante relevante nesse sentido: “crianças de
famílias imigrantes aprenderam a falar a língua da sua nova comunidade com fluência
próxima a dos nativos, mas seus pais raramente alcançam um domínio tão alto ao se
expressarem oralmente”ii (p.60).
Primeiramente apresentada por Penfield & Roberts, em 1959, a idéia de um período
crítico defendia uma aquisição mais eficiente antes dos nove anos de idade: “o cérebro
humano se torna progressivamente rígido após os nove anos (...) quando as línguas
começam a ser estudadas pela primeira vez na segunda década de vida, é difícil (...)
alcançar-se um bom resultado”iii(p.255).
Pesquisadores como Lenneberg (1967) declararam que durante a puberdade há uma
firme localização das habilidades de processamento da linguagem no hemisfério esquerdo
do cérebro. Desse modo, aprender uma LE em períodos pós-adolescentes seria uma tarefa
não muito fácil de ser cumprida.
Collier (1999) resumiu os debates da lateralização do cérebro nas últimas décadas:
“Kinsbourne (1975) propõe o término já no nascimento; Krashen
(1973) sugere aos cinco anos idade; Lenneberg (1867) propõe a
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lateralização na puberdade. Long (1998) sugere que a perda da
plasticidade do cérebro acontece também em razão de outros aspectos
de maturidade do cérebro não relacionados à lateralização.” iv (p. 2)
Os pesquisadores sempre apontam Lenneberg como o “pai” da CPH. Ele propôs
tanto o início quanto o fim desse período. O início seria por volta dos dois anos de idade; o
fim ao longo da puberdade. A fim de reforçar essa tese, ele observou a transferência de
funções neurológicas por crianças que ficaram surdas por volta dos dois anos de idade.
Para ele, as crianças que ficaram surdas antes de completar os dois anos não tinham
nenhum progresso no desenvolvimento das habilidades orais em comparação às crianças
surdas de nascença.
Para Brown (2000) o fato de que só durante a puberdade existe um ponto crítico
para a aquisição de uma LE, tornou-se um argumento “clássico e incorreto”: “isso leva-nos
a acreditar, equivocadamente, que aos doze ou treze anos você está ‘no topo’ no que se
refere à possibilidade de ter sucesso na aprendizagem de uma LE”v. (p.54).
Para os pesquisadores da CPH a comprovação está em pesquisas neurológicas. À
medida que o cérebro humano amadurece certas funções são designadas ou lateralizadas
para o hemisfério esquerdo; outras, para o direito (BROWN, p.54). O hemisfério esquerdo
controlaria as funções lingüísticas e a lateralização tornaria difícil para que os aprendizes
fossem capazes de ter facilmente o controle fluente de uma LE.
Outros pesquisadores determinam a CPH apenas para a pronúncia. Thomas Scovel
(1998) argumenta que as pessoas que aprendem uma LE após a puberdade manteriam o
sotaque da sua língua materna. Para ele, aprender vocabulário, por exemplo, é
completamente diferente de adquirir sintaxe, pois lidar com esse último não requer o que
ele chama de realidade física. Dessa forma, aqueles que decidem aprender uma LE após os
doze anos de idade nunca poderiam se passar por falantes nativos em virtude da sua
pronúncia. Para Brown (2000) essa possibilidade existe, mas lembra que a pronúncia não é
o único requisito para a aprendizagem, nem mesmo o mais importante. Em um dos
estudos que utiliza para comprovar seu argumento, por exemplo, falantes nativos da língua
inglesa foram julgados como não-nativos. E ainda, falantes nativos do inglês com mais de
14 anos, estudantes de chinês e japonês gravaram dez frases na língua que estavam
aprendendo e eles foram julgados como nativos. Portanto, “nós conhecemos pessoas que
tem uma pronúncia não muito perfeita, mas têm um controle magnífico da segunda língua,
controle até maior do que muitos falantes nativos”vi. (p.60) Há ainda estudos em que
adultos não foram envolvidos. Jovens aprendizes de diferentes idades foram analisados.
Crianças mais velhas adquiriram as habilidades orais mais rapidamente do que os mais
novos. (ERVIN-TRIPP; 1974)
Como podemos perceber, os pesquisadores que estudaram a CPH defendem a
existência de diferentes faixas etárias em que estaríamos pré-dispostos a adquirir um bom
desempenho na aprendizagem de uma LE. Longe de ser apenas um relato das pesquisas já
realizadas, passemos agora à segunda parte da nossa análise, que leva em consideração os
questionamentos feitos às teorias da CPH.
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2. Além da idade
A pronúncia não é o único instrumento para que haja uma comunicação clara em
LE. Muitas pessoas podem falar inglês, por exemplo, com um sotaque característico da sua
língua materna, mas pode se fazer entender até melhor do que um falante nativo.
Entretanto, é difícil discordar de alguém que se arrependa por não ter começado a estudar
inglês mais cedo porque agora tudo fica mais complicado: o trabalho, problemas em casa,
cursos de especialização, estudos para concursos, acompanhar o crescimento dos filhos ou
contas para pagar.
Os estudos de Snow et al (2000) que relataremos agora mostram que esses
argumentos não são suficientes para concluirmos que a CPH para a aprendizagem de uma
LE realmente exista e que vale a pena tentar conciliar as tantas obrigações a que somos
atribuídos na contemporaneidade. Sua pesquisa propõe uma reavaliação cuidadosa dos
estudos que acabamos de mencionar. De acordo com eles, as pesquisas sobre a CPH são
objeto de três falácias: equívocos de interpretação, atribuição e ênfase.
Já foram realizados vários estudos para investigar se os adultos podem ou não ser
melhores aprendizes de LEs do que as crianças. O primeiro deles (SNOW, 1978 apud
ELLIS, 1997) acompanhou a aquisição de holandês por crianças falantes de inglês de oito a
dez anos de idade, adolescentes de doze a quinze anos e adultos a partir de dezoito anos
por um período de dez meses. A proficiência dos estudantes foi medida em por
habilidades; com relação à morfologia e sintaxe os adolescentes eram melhores, seguidos
dos adultos, as crianças vinham por último. As diferenças em pronúncia eram menores e as
de gramática diminuíam com o tempo. Os adultos, nesse caso, aprendem mais rápido.
Todavia, ainda não é possível garantir quem é o melhor aprendiz. Seria um equívoco na
interpretação?
Marinova-Todd, Marshall & Snow (2000) afirmam que muitas pessoas interpretam
de forma equivocada o fato de que as crianças aprendem mais rápido e mais facilmente.
Voltando a sua atenção para a neurociência a fim de encontrar evidências para novas
teorias de aquisição de LEs, pesquisadores mostraram que aprendizes mais velhos
processam a LE de forma diferente de aprendizes mais jovens, Weber-Fox & Neville
(1992, 1996, 1999 apud SNOW, 2000) fizeram uma série de experiências utilizando técnicas
com imagens do cérebro e os resultados mostraram consistentemente diferenças nos
padrões de ativação e localização do processamento da língua entre aprendizes jovens e
adultos.
Dessa maneira, cientistas cometeriam freqüentemente um erro de atribuição porque
“supunham que as diferenças na localização das duas línguas no cérebro explicam as
diferenças nos níveis de proficiência e explicam o desempenho mais pobre dos aprendizes
adultos” vii(p.12).
Para concluir essa proposta de reavaliação das teorias, os pesquisadores apontaram
o erro na ênfase. Uma ênfase exagerada foi dada aos adultos que não tinham bom
desempenho e aqueles que alcançavam uma proficiência próxima ao nativo eram
ignorados, “cientistas e não-especialistas da mesma forma supunham que isso [o fato de os
adultos terem problemas em aprender outra língua] implica que TODOS os adultos são
incapazes de dominar uma LE” grifo do autor (SNOW et al, p.15).
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Muitas pesquisas ainda devem ser feitas a fim de contribuir com esse debate.
Percebemos que a idade não é o fator mais importante que afeta a aprendizagem de uma
LE. Uma visão mais abrangente deve ser levada em consideração.
Considerações Finais
Este artigo objetivou revisar os relevantes estudos acerca do fator idade na
aquisição de uma LE. Vale a pena considerar outros fatores relacionados à aprendizagem
de uma segunda língua, já que a crença de que quanto mais cedo melhor tem sido
questionada pelos pesquisadores. O fato de que a idade em si não é a principal razão para a
proficiência lingüística leva-nos a voltar a atenção para outras questões, como a motivação.
As razões pelas quais o indivíduo se interessa em aprender uma LE estão intrinsecamente
relacionadas à maneira como ele a aprende. Não podemos tratar fatores como a
identificação do aluno com a língua, identidade sócio-cultural e as condições de
aprendizagem. Se o estudante está motivado a aprender e o ambiente é favorável para tal, já
está sendo dado um passo para se alcançar a proficiência. O que pode motivar alguém a
aprender uma língua varia de objetivos como arranjar um emprego, estudar no exterior,
identificação com outra cultura, curiosidade, compreender as inúmeras expressões que se
encontram diariamente em outdoors, marcas, camisetas, nomes de lojas, filmes, novelas,
Internet, músicas etc. Se tomarmos um adulto com alguns desses objetivos em mente e
uma criança que estuda a língua só porque os pais o querem, não há quem não diga que o
adulto tem maiores chances de alcançar a proficiência na língua-alvo.
A sala de aula, como o lugar mais comum onde se aprende uma LE no Brasil, tem
um papel importante nesse contexto; livros, abordagens, métodos e técnicas não podem
deixar de serem levados em conta. Pelo contrário, um desempenho favorável à
comunicação em LE ocorre se o aluno é exposto a técnicas inovadoras, materiais
autênticos e aulas dinâmicas e contextualizadas adaptadas aos objetivos e interesses do
aprendiz.
A aprendizagem favorável de uma LE, portanto, não é determinada apenas pela
idade, como também pelas oportunidades de aprender dentro e fora da sala de aula, bem
como a vontade do aluno em aprender. Atribuir à idade a responsabilidade pelo sucesso
ou fracasso na aquisição de uma segunda língua não é o suficiente, tampouco
aconselhável.
Krashen (1981) faz a distinção entre aquisição e aprendizagem. Outros pesquisadores não acham essa
distinção válida. Preferimos usar aqui os dois termos de forma intercambiável.
“children from immigrant families eventually speak the language of their new community with native-like
fluency, but their parents rarely achieve such high levels of mastery of the spoken language” A tradução é de
responsabilidade do autor.
the human brain becomes progressively stiff and rigid after the age of nine (…) when languages are taken up
for the first time in the second decade of life, it is difficult (…) to achieve a good result A tradução é de
responsabilidade do autor.
“Kinsbourne (1975) proposes completion by birth; Krashen (1973) suggests it may be complete by age 5;
Lenneberg (1967) proposes lateralization by puberty. Long (1998) suggests that the brain's loss of plasticity is
also due to other aspects of cerebral maturation unrelated to lateralization” (p.2). A tradução é de
responsabilidade do autor
“this has led some to assume, incorrectly, that by the age of twelve or thirteen you are ‘over the hill’ when it
comes to the possibility of successful second language learning”. A tradução é de responsabilidade do autor
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we all know people who have less than perfect pronunciation but who also have magnificent and fluent
control of a second language, control that can even exceed that of many native speakers. A tradução é de
responsabilidade do autor
“assuming that differences in the location of two languages within the brain (…) account for differences in
proficiency levels and explain the poorer performance of older learners” A tradução é de responsabilidade do
autor
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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 06 – 2008
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