Correa

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A gramaticalização do conectivo “e” em textos de
formandos em Letras
Ana Regina Curuchi Correa1
1
Programa de pós-graduação em Letras - Universidade de São Paulo
[email protected]
Abstract: the goal of this work is to show the analyze results of the connective
e use, in a functionalist perspective, especially in a grammaticalization
process and through a synchronic bias, in dissertactive texts elaborated by
linguistics graduates as an answer to a 2001 ENC (National Course Exam)
test question. The research corpus is composed by 76 selected texts from the
ABC Paulista area, and 142 occurrences of the connective e are analyzed.
Keywords: frequency; function; grammaticalization.
Resumo: o objetivo deste trabalho é apresentar os resultados de uma análise
do uso do conectivo e, numa perspectiva funcionalista, em especial num
processo de gramaticalização e por um viés sincrônico, em textos dissertativos
elaborados por formandos em Letras como resposta a uma questão da prova
do ENC (Exame Nacional de Cursos) de 20011. O corpus da pesquisa é
composto por 76 textos selecionados da região do ABC Paulista, e são
analisadas 142 ocorrências do conectivo e.
Palavras-chave: freqüência; função; gramaticalização.
1. Introdução
Considerando que uma determinada expressão lingüística pode adquirir funções
diversas dependendo do contexto em que está inserida, ocorre na língua uma variação e
conseqüente mudança semântica. Este fenômeno denominado gramaticalização,
constitui um processo pelo qual um item lexical passa a assumir funções diferentes da
original, passando de um item menos lexical para um mais gramatical. Conforme
Lehman (1982), a gramaticalização é um processo que transforma lexemas dentro de
formações gramaticais ainda mais gramaticais; pode mudar não só um item lexical para
gramatical, mas um item menos gramatical para mais gramatical, (apud Campbell &
Janda, 2001, p.96-97).
O processo de gramaticalização pode ser encontrado em todas as línguas e pode
envolver qualquer tipo de função gramatical. É um processo através do qual elementos,
em determinados contextos, assumem funções gramaticais, e uma vez gramaticalizados,
continuam a desenvolver outras funções gramaticais. Uma característica básica desse
processo é a unidirecionalidade.
Meillet, o primeiro a introduzir o termo gramaticalização, definiu esse processo
como “a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra anteriormente autônoma"
(apud Moura Neves, 1997, p.113) que passa a servir para organizar a fala do indivíduo e
não necessariamente para construir sentido(s) isoladamente.
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Hopper & Traugott (1993) definem a gramaticalização como processo pelo qual
itens e construções gramaticais passam, em determinados contextos lingüísticos, a servir
a funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas
funções gramaticais. Para esses autores, a perspectiva mais sincrônica estuda o
fenômeno do ponto de vista de padrões fluidos de uso lingüístico. Assim, a gramática da
língua é sempre emergente, nunca presente, ou seja, está sempre se fazendo, nunca está
pronta. Há sempre novas funções para formas já existentes que podem ser verificadas
através de padrões fluidos da linguagem.
Hopper estabeleceu princípios para gramaticalização, entre eles está o da
divergência, em que formas etimologicamente iguais são funcionalmente diferentes,
poderia ser o caso do emprego do conectivo e nos textos analisados de formandos em
Letras durante o ENC (Exame Nacional de Cursos) de 2001.
Bechara (1999, p.320) classifica o conectivo e como conjunção coordenativa
aditiva e esclarece:
A aditiva apenas indica que as unidades que une (palavras, grupos de
palavras e orações) estão marcadas por uma relação de adição. Temos
dois conectores aditivos: e (para adição das unidades positivas) e nem
(para as unidades negativas). [...] Muitas vezes, graças ao significado
dos lexemas envolvidos na adição, o grupo das orações coordenadas
permite-nos extrair um conteúdo suplementar de “causa”,
“conseqüência”, “oposição”, etc. Estes sentidos contextuais,
importantes na mensagem global, não interessam nem modificam a
relação aditiva das unidades envolvidas.
No entanto, observa-se que a freqüência de uso do conectivo e, nos textos dos
universitários, assume ainda outras funções do que as já estabelecidas nas gramáticas.
2. A diversidade funcional do conectivo “e”
Numa tentativa de evidenciar o processo de gramaticalização do conectivo e,
foram observados os seguintes critérios:
a) tipo de elementos ligados pelo termo: nomes, predicadores, orações ou frases;
b) quantidade de elementos ligados pelo termo;
c) presença de outros operadores pospostos ao termo;
d) admissão de inversão potencial de termos ligados;
e) gênero utilizado: narrativo ou dissertativo;
f) paráfrase do conectivo: adição, causalidade, contraste, temporalidade e ilimitação;
g) possibilidade de paralelismo sintático;
h) compartilhamento do termo referente na segunda posição;
i) categorias cognitivas utilizadas: espaço, objeto, processo, tempo, qualidade, avaliação
de idéias e pessoa.
De acordo com Bybee (2003 p.603) não é suficiente definir gramaticalização
como um processo pelo qual um item lexical torna-se um morfema gramatical, mas ao
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invés disso importa dizer que esse processo ocorre em um contexto de construção
particular. Para isso, a autora enfoca a importância da repetição na gramaticalização e
caracteriza-a como o processo no qual uma seqüência de palavras ou morfemas
frequentemente usados tornam-se autônomos como uma só unidade.
A autora adota dois métodos de contagem de freqüência como relevantes para os
estudos lingüísticos: a frequência token e a freqüência type. A freqüência token diz
respeito à freqüência de ocorrência de uma unidade no texto, geralmente uma palavra ou
morfema e a freqüência type refere-se a um modelo particular de uso desta unidade.
Aplicando esses conceitos ao objeto de análise em questão, encontramos 142
freqüências token, ou seja, 142 ocorrências do conectivo e.
Dividimos a diversidade de termos encontrados em quatro grupos, aos quais
chamamos de E1, E2, E3 e E4, e que consideramos como a frequência type,
especificando-os a seguir:
2.1. E 1
Liga nomes, numa seqüência de 2, 3 ou 7 elementos, implica valor de adição
entre os elementos e tende a apagar o termo referente em segunda posição, admitindo ou
não paralelismo sintático, mas não admitindo operadores argumentativos justapostos a
ele. Os termos ligados, prototipicamente objetos, admitem, em sua maioria, inversão
potencial de ordem. Num contexto de avaliação formal, espera-se que este tipo de uso
apareça numa seqüência dissertativa, o que se comprovou neste primeiro item.
Exemplo 1:
Com relação ao texto da menina pediria para ela redigi-lo novamente,
fazendo apenas algumas alterações como por exemplo a presença dos
“eles” e algumas idéias repetitivas. (T4)
Exemplo 2:
[...] Erro de pontuação e falta de coesão e coerência. (T12)
2.2. E 2
Liga predicadores, numa seqüência de 2 ou 3 elementos, implica valor de adição,
apaga o termo referente em segunda posição, admitindo ou não paralelismo sintático e
sem quaisquer operadores argumentativos a ele justapostos. Diferenciando-se de E 1, os
termos ligados são qualidades, mas também admite inversão potencial de ordem, numa
seqüência dissertativa.
Exemplo 3:
[...] Há necessidade de se trabalhar coesão por substituição e referencial
com esta criança. (T18)
Exemplo 4:
[...] O autor utiliza palavras vagas e sem concordância. [...] (T50)
2.3. E 3
Liga orações, numa seqüência de 2 ou 3 elementos, implicando valores de
adição, causalidade, contraste, ilimitação ou temporalidade, nesta ordem decrescente,
não licencia compartilhamento em segunda posição de termo referente ao primeiro
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elemento, em sua maioria não admitindo operadores argumentativos justapostos nem
paralelismo sintático. Os termos ligados dividem-se em epistêmicos (avaliação de
idéias) e processos (verbos), com menos possibilidade de inversão potencial de ordem,
com maior incidência num contexto narrativo.
Exemplo 5:
[...] Débora chorou e quis voltar para casa. Quando amanheceu, eles
foram de barco tentar atravessar o outro lado da ilha e depararam com
mais caranguejos no penhasco, o que fez com que o marido de Débora
desmaiasse e seu irmão, não sabendo o que fazer, foi pedir ajuda do
outro lado da ilha. (T13)
2.4. E 4
Liga frases, numa seqüência de 2 elementos apenas. Implica valores de adição,
ilimitação ou causalidade, em ordem decrescente; não licencia compartilhamento em
segunda posição do termo referente ao primeiro elemento, não apresenta operadores
argumentativos justapostos, exceto em apenas um caso constatado, conforme exemplo 8
(T26), e não admite paralelismo sintático. Os termos ligados, prototipicamente
epistêmicos, admitem ou não inversão potencial de ordem, numa seqüência, na maior
parte, dissertativa, mas também, em menor escala, em contexto narrativo.
Exemplo 6:
[...] para que todos se acalmassem pediram ajuda a Deus rezando. E
conseguiram... (T34)
Exemplo 7:
A menina tem idéias, # 2 não soube estruturá-las. Pois repete-se muito o
pronome “eles”, não respeita vírgulas. E seu texto deixou-me confusa,
pois ora parecia ser em uma ilha, ora parecia ser um sítio. [...] (T40)
Exemplo 8:
[...] Viram que os bezerros estavam sendo atacados por um caranguejo
gigante. E justamente estavam correndo para fugir do ataque inimigo.
[...] (T26)
A partir da análise feita, depreendemos algumas considerações. Primeiramente,
verificamos que quanto maior a estrutura, menor é o encadeamento, isto é, ao ligar
nomes e predicadores, o conectivo e encadeia mais termos do que ao ligar orações ou
frases, conforme tabela 1, a seguir:
Tabela 1. Quantidade de elementos ligados
Elementos ligados
2
3
7
Nomes Predicadores Orações Frases
82%
91%
95%
100%
15%
8%
5%
0%
2%
0%
0%
0%
De outra perspectiva, são maiores as possibilidades de paráfrase quando o
conectivo e liga orações, ou seja, ao ligar nomes e predicadores, mantém sua
propriedade de adição, no entanto, ao ligar orações, além de adição, encontramos o
conectivo e com funções de causalidade (por isso), contraste (mas), temporalidade
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(quando) e ilimitação (além disso), embora essas ocorrências sejam em escalas menores,
de acordo com a tabela 2:
Tabela 2. Ocorrência de paráfrase
Paráfrase
Adição
Causalidade
Contraste
Temporalidade
Ilimitação
Nomes Predicadores Orações Frases
96%
100%
45%
50%
2%
0%
32%
17%
0%
0%
13%
0%
0%
0%
2%
0%
2%
0%
7%
33%
Outro dado relevante diz respeito ao compartilhamento do termo referente em
segunda posição. Em todos os casos em que o conectivo e liga predicadores, licencia
compartilhamento, ou seja, há o apagamento do termo referente na segunda posição; ao
ligar nomes o compartilhamento ocorre na maioria das vezes, no entanto, ao ligar
orações ou frases esta ocorrência torna-se mais difícil.
Observamos que ocorre paralelismo sintático em 50% dos casos em que o
conectivo liga nomes ou predicadores, todavia é quase insignificante ao ligar orações e
o mesmo não ocorre ao ligar frases.
Encontramos raras possibilidades do uso de operadores argumentativos
pospostos ao conectivo e, mas essa ocorrência verifica-se ao ligar orações, e nestes
casos com uma diversidade de operadores.
Quanto aos gêneros, há maior incidência do dissertativo ao ligar nomes,
predicadores e frases, mas do narrativo ao ligar orações.
Percebemos, também, que a inversão potencial dos termos é admitida apenas em
nomes e predicadores e em menor escala nas frases. Ao ligar orações, não há caso de
inversão potencial de termos.
Quanto às categorias cognitivas, observamos que ao ligar nomes predominam
objetos e em menor índice pessoas; ao ligar predicadores, a categoria cognitiva é
essencialmente qualidade. Quando o conectivo e liga orações emprega igualmente
categorias epistêmicas (avaliação de idéias) e processos (verbos) e finalmente ao ligar
frases emprega em maior parte categorias epistêmicas.
Ainda de acordo com Bybee, a gramaticalização é sempre acompanhada de um
aumento acentuado na freqüência de uso da construção ou item em mudança. A alta
freqüência de tokens pode desencadear mudanças importantes, e tanto a freqüência
tokens quanto a freqüência type contribuem para o “desbotamento” do sentido de um
elemento, ou seja, contribuem para a dessemantização do elemento, para sua
abstratização. Assim, sentidos gramaticais são mais abstratos, mais generalizados, mais
subjetivos e orientados para o discurso mais do que os sentidos lexicais. É nessa
perspectiva que entendemos o emprego do conectivo e nos textos analisados, isto é,
ocorre o chamado “desbotamento” do sentido original - adição - por vezes adquirindo
outros padrões funcionais de uso como nos exemplos abaixo:
Exemplo 9 – causalidade (por isso):
[...] Ficaram assustados e resolveram ir embora pela manhã. (T19)
Exemplo 10 – contraste (mas)
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Iniciei o período com o conectivo ‘como’, introduzindo uma oração
subordinada adverbial e sem que perdesse as informações passadas pela
menina introduzi ao texto orações explicativas, dando ao texto maior
clareza e preocupando-se com o sentido semântico também. [...] (T11)
Exemplo 11 – temporalidade (quando)
[...] Ela teria que falar que estavam indo dormir, e perceberam que os
bezerros estavam correndo. [...] (T17)
Exemplo 12 – ilimitação (além disso)
Mudança no uso excessivo do ‘quando’ e do ‘eles’, pois são de uso
desnecessário e torna o texto repetitivo. (T62)
3. Considerações finais
Pelos resultados obtidos da análise do emprego do conectivo e em textos dos
formandos em Letras durante o Exame Nacional de Cursos de 2001, constatamos o já
expresso anteriormente, que a gramática da língua está sempre se fazendo, nunca está
pronta; novas funções para formas já existentes podem ser verificadas através do uso de
padrão fluido da linguagem. A freqüência do uso do e nos textos dos formandos passa
a servir para organizar a escrita do candidato e não necessariamente para construir
sentido isoladamente. Desta forma, poderíamos considerar a abstratização do conectivo
e nesse contexto e o seu processo de gramaticalização numa perspectiva sincrônica.
Notas
1
Transcrição da questão do Prova do ENC: “Questão 1. O texto abaixo foi produzido
por uma menina de 10 anos.
O outro lado da ilha
Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias.
Quando eles chegam eles vão logo explorando a ilha e explodem uma barreira que os
impediam de passar para o outro lado da ilha.
Quando eles foram dormir eles perceberam que os bezerros começaram a correr e que
quando eles foram ver o que estava assustando os bezerros. Quando eles de repente,
com uma patada só um caranguejo gigante os atacou. Débora que era sua esposa
começou a chorar dizendo que queria ir embora.
Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e
perceberam que o barco não estava lá. Os homens saíram para explorar a ilha, e no
meio do caminho encontraram um caranguejo que estava no penhasco. Eles não
quiseram saber e atiraram no caranguejo que caiu ribanceira abaixo. Mas o marido de
Débora, desmaiou e seu irmão não tinha como ajuda-lo, por isso foi chamar ajuda. [...]
(In: Marcuschi, L.A. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras, inédito, fragmento adaptado)”
“Uma característica desse texto é a forma como a menina faz as ligações coesivas.
Elabore um texto no qual você proponha alterações para o segundo parágrafo,
apresentando três soluções para o problema dos elos coesivos. Justifique as alterações
sugeridas com o apoio de noções lingüísticas.”
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2
# indica ilegibilidade da escrita do aluno no texto original.
Referências
BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999, 37 ed.,
p.320-321.
BYBEE, J. Mechanisms of change in grammaticization: The role of frequency. In: B. D.
Joseph and J.Janda (eds) The Handbook of Historical Linguistics. Oxford: Blackwell,
2003.
CAMPBELL, L. & JANDA, R. Introduction: conceptions of grammaticalization and
their problems. In: Language Sciences 23, 2001, p.93-112.
HOPPER, P.J. & TRAUGOTT, E.C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993.
_____. On some principles of grammaticalization. In: E. TRAUGOTT & B. HEINE
(eds.). Approaches to Grammaticalization, v. 1, Amsterdam/Filadélfia: John
Benjamins Publishing Company, 1991, p.17-35.
NEVES, M. H. M. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
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