Apresentação 26ª RBA – GT 29 – Antropologia do Mal MAÍRA – NARRATIVA SOBRE O MAL ENTRE OS MAIRUNS1 Sandra Martins Farias Programa de Pós-graduação em Antropologia - Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO A presente proposta foca um dos escritos de Darcy Ribeiro, o livro Maíra – primeira edição publicada em 1976 – cuja narrativa, em termos gerais, relata a história de um índio que, adotado por um padre e convencido a seguir o sacerdócio, questiona sua verdadeira fé e entra em conflito por ter abandonado seu povo. Trata-se de um romance, o primeiro publicado por Darcy Ribeiro, que quer retratar a violência e o mal causado pelo processo civilizatório – foco principal de sua teorização antropológica. Na visão do autor, o mal é revelado pela apresentação da deterioração física e cultural da tribo, como uma forma de descrever / mostrar o "fim dos tempos" nas florestas iniciado a partir da ação pastoral nas tribos. O livro narra a vida de um índio que fora retirado de sua cultura e tradições para viver como um branco e expressa a dor de ser índio, forçado a assimilar a cultura ocidental e que vê sua cultura ser solapada pelos costumes brancos. Maíra não é uma etnografia, mas uma reconstituição literária, ficcionalmente construída a partir das memórias que Ribeiro tem do seu período de trabalho de campo com as diversas tribos que estudou entre as décadas de 1940 e 1960. Esta publicação se mostra como uma interessante narrativa, tanto para se pensar o fazer antropológico quanto para se repensar as questões referentes às etnias indígenas na atualidade. Muitos foram os discursos e imagens produzidos e Maíra é uma das expressões discursivas que revela o lado perverso, segundo a visão de Darcy Ribeiro, da complexa relação e interação entre índios e sociedade nacional, tão visitada pela antropologia brasileira. Neste sentido, este artigo pretende refletir sobre o lado perverso do encontro entre culturas retratado no romance Maíra. Palavras Chave: Maíra, mal, Darcy Ribeiro. 1 Trabalho apresentado no GT Antropologia do Mal, durante a 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil. 1 ABSTRACT To present proposal have their focus in one of Darcy Ribeiro writings, the book Maíra - first edition published in 1976 - whose narrative, in general terms, tells the history of an Indian that, adopted by a priest and convinced to follow the priesthood, and initiate to look for his true faith and to clash for having abandoned his people. It is a romance, the first published by Darcy Ribeiro, that wants to portray the violence and the evil caused by the civilization process – the central subject of his anthropological theorization. In the author's vision, the evil is revealed by the presentation of the deterioration physics and cultural of the tribe, as a form of describing or show that the "end of the times" in the forests begun when the pastoral action in the tribes has start. The book narrates the life of an Indian that had been private of his culture and traditions to live as a white and expressed the pain of being Indian, forced to assimilate the western culture and that sees his culture to be damaged by the white habits. Maíra is not an ethnography, but a literary rebuilding, fictionally built from the memoirs that Ribeiro has of his period of fieldwork with the several tribes that he studied among the decades of 1940 and 1960. This publication is shown as an interesting narrative, to think the anthropological work as to rethink the subjects at the present time regarding the indigenous ethnicity. Many were the speeches and images produced from the Indians and Maíra is one of the discursive expressions that reveals the perverse side, according the Darcy Ribeiro vision, of the complex relationship and interaction between Indians and national society, so visited by the Brazilian anthropology. In this sense, this article intends to contemplate on the perverse side of the encounter among cultures portrayed in the romance Maíra. Key words: Maíra, evil, Darcy Ribeiro. INTRODUÇÃO Pelo fato de ter se formado e iniciado suas pesquisas etnográficas durante o principio dos anos de 1940, quando de sua contratação pelo Serviço de Proteção aos Índios-SPI para trabalhar na Seção de Estudos-SE deste Serviço, Darcy Ribeiro pode ser considerado um dos pioneiros da antropologia brasileira. Trata-se de um antropólogo que é figura singular na ciência antropológica brasileira, não apenas por seus estudos relacionados aos grupos indígenas ou a sua atuação junto ao Serviço de Proteção aos Índios – Seção de Estudos e Museu do Índio, 2 mas também por ser uma pessoa polêmica dentro da antropologia e pelo caráter multifacetário que assumiu ao longo de sua vida: político, etnólogo/antropólogo, educador, romancista, etc. Em termos gerais, Darcy Ribeiro, na sua “pele” de antropólogo, passou anos convivendo com índios e escrevendo ensaios, monografias e etnografias sobre eles, hoje considerados clássicos da antropologia. Fundou o museu do índio, como forma de combater preconceitos e estereótipos relativos aos grupos indígenas, recuperar a história indígena que estava perdida e apresentar aos outros brasileiros esses brasileiros desconhecidos, esquecidos e oprimidos. Darcy Ribeiro está, então, entre aqueles que deram forma ao que posteriormente resultaria na constituição acadêmica da antropologia no Brasil. Ele também se inclui dentre os que privilegiavam o estudo dos grupos indígenas, que possuíam um compromisso político com esses e que versavam suas análises sobre o contato entre índios e brancos, tendo como temas chave de estudo conceitos ou categorias como aculturação e mudança cultural. O autor conseguiu durante sua vida integrar vários enfoques e múltiplas vertentes de atuação, resultado das diversas articulações teóricas, metodológicas e políticas estabelecidas durante sua vida. Escreveu sobre coisas que o afetavam como profissional e cidadão: os índios, o povo brasileiro, a educação. Durante o período entre os anos de 1940 até 1970 os índios, alvo prioritário dos estudos antropológicos, foram retratados no intuito de reverter as concepções que a sociedade nacional tinha até então. Ou seja, a antropologia colocou especial atenção em modificar as concepções e imagens que perpassavam o imaginário nacional, numa tentativa de solucionar, em termos analíticos e práticos, os principais problemas relacionados ao contato entre índios e sociedade nacional. O pressente artigo objetiva refletir sobre uma dos escritos de Darcy Ribeiro, o livro Maíra – primeira edição publicada em 1976. Sua narrativa, em termos gerais, retrata a história de um índio que, retirado de sua tribo, adotado por um padre e convencido a seguir o sacerdócio, mas que, após longos anos no seminário, passa a questionar-se sobre sua fé cristã entrando em conflito por ter abandonado seu povo. Muitos foram os discursos e imagens produzidos e Maíra é uma das expressões discursivas que revela o lado perverso, segundo a visão de Darcy Ribeiro, das complexas relações e interações que ocorreram entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional, e que foi alvo de diversos estudos feitos pela antropologia brasileira. Esta publicação é uma reconstituição literária e não uma etnografia, que foi ficcionalmente construída a partir das memórias que Ribeiro teve do período em que realizou diversos de trabalhos de campo junto a várias tribos, entre os anos de 1940 e 1960. O livro é uma narrativa sobre um índio que fora privado de sua cultura e tradições, ao ser levado para viver como um branco, perde sua identidade étnica e 3 cultural. Ou seja, é uma narrativa que tem como objetivo expressar a dor de ser índio, que se vê forçado a assimilar a cultura ocidental e a assistir à destruição de sua cultura, solapada pelos costumes brancos. Trata-se de um romance, o primeiro publicado por Darcy Ribeiro, que quer retratar a violência e o mal causado pelo processo civilizatório – foco principal de sua teorização antropológica. Na visão do autor, o mal é revelado pela apresentação da deterioração física e cultural da tribo, como uma forma de descrever / mostrar o “fim dos tempos” nas florestas iniciado a partir da ação pastoral nas tribos. O livro Maíra segue esta linha de pensamento e foi construída a partir dos dados coletados por Ribeiro durante seus trabalhos de campo entre os Urubu-Kaapor e Kadiweu Kaiowá, Terena, Ofaié, Tanurú. Trata-se de um livro, o primeiro publicado por Darcy Ribeiro, que procura descrever como o contato com os brancos traz para os povos indígenas um processo inexorável de destruição. Este artigo pretende refletir sobre o lado perverso do encontro entre culturas retratado no romance Maíra. Para tanto será apresentado um pequeno resumo da narrativa contida no livro, o contexto em que ele foi escrito e, por fim, o cotejamento de algumas das idéias como base reflexiva, que possibilita abordar o que vem a ser o Mal entre os mairuns na visão de seu autor, Darcy Ribeiro. O TEXTO O romance Maíra, cuja primeira edição foi publicada em 1976, é uma obra dialógica e densa – no sentido criado e descrito por Clifford Geertz (1989: 13-41)2, tem uma estrutura narrativa complexa, composta por diversos planos que se entrecruzam em diferentes tempos e quer revelar o mundo, ao mesmo tempo, encantado, humano, singular e plural dos índios. Maíra tem como tema central a cultura da tribo mairum, grupo étnico criado por Darcy Ribeiro, que vive às margens do rio Iparanã na região amazônica. Ele narra a história de um índio – Isaías / Avá – que retirado de sua tribo quando criança é encaminhado para o seminário com o objetivo de seguir o sacerdócio. Contudo, a vida fora de sua tribo acarretou grande conflito e dilema pessoal, perda das referências sócio-culturais e, consequentemente, 2 "Descrição densa" refere-se ao papel que a etnografia deve ter segundo Clifford Geertz. Este tipo de descrição, que em termos resumidos, implica em uma interpretação do fato etnográfico descrito, procurando seus significados. Não é apenas uma descrição minuciosa, mas uma leitura, uma interpretação. Para maiores detalhes e uma melhor compreensão sobre a concepção “geertziana” do que vem a ser uma “descrição densa” consulte o artigo "Uma Descrição Densa: Por Uma Teoria Interpretativa da Cultura", publicado no livro A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1989. 4 de sua identidade cultural. Estas conseqüências fizeram com que Isaías / Avá, iniciasse uma viagem em busca de suas referencias e de sua identidade. Ao se sentir deslocado junto aos padres, ele partiu para reencontrar sua tribo – os mairuns – numa tentativa de que estando junto ao seu povo pudesse se (re)encontrar. Nesta viagem de volta conhece Alma (outra personagem central do romance), moça branca, carioca, que também está à procura de si mesma e que pretende prestar serviço junto às freiras da missão católica que atua com a tribo de Isaías – Avá, os mairuns. Avá saiu ainda criança de sua aldeia com o propósito de se tornar um sacerdote católico e “aprender com os padres a sabedoria dos caraíbas” (Ribeiro, 1989:67). Entretanto depois de viver em seminários nos estados de Mato Grosso e São Paulo e na cidade de Roma, de onde retorna para os mairuns, sua tribo, como se tivesse “perdido a alma, roubada pelos curupiras e vivido por anos a fio como bicho entre os bichos” (Ribeiro, 1989:67), tendo como única posse: “duas mãos inábeis e cabeça cheia de ladainhas. E este coração aflito que me sai pela boca” (Ribeiro, 1989:67). Isaías / Avá no período em que esteve com a civilização branca, perdeu sua identidade e sua fé na vida, e tais perdas se consubstanciam no próprio corpo, precocemente envelhecido, ou seja, a perda da alma equivale ou revela-se na perda do corpo. Conforme pode ser percebido na passagem onde Maíra, deus-sol dos mairuns, decide entrar no corpo de Isaías – Avá: Hoje quero entrar em alguém para sentir o mundo outra vez, com o corpo e o espírito de gente-vivente. Quero ver com os olhos que lhes dei. Quero pensar com a mente deles. Quero cheirar e degustar e escutar e tatear. Antigamente me dava mais gosto. Ainda me diverte, mas é pouco e cada vez menos. Alguma coisa falta a essas criaturas de meu Pai que tanto fiz para melhorar. Alguma coisa lhes falta, que será? Aí está este Avá que muito quis ser Isaías. Nele mergulho: — Eta merda de corpo este, desgastado de tão mal gastado. É um tubo: numa ponta, a boca, que bota a comida para dentro sem sentir o cheiro e o gosto. Na outra, o eu, por onde caga, também sem gozo. Se fosse para ser assim, eu podia ter deixado as gentes como as fez meu Pai. Fale, desgraçado. Fale, Avá. (Ribeiro, 1989: 318) O livro também é tangenciado por personagens da sociedade branca que vive no entorno da aldeia: um casal de pastores protestantes, o seminário onde vive o padre Vecchio, os moradores da Vila de Corrutela, bem como capítulos onde são narradas as atividades do povo mairum, retratando toda a cultura deste povo - cosmologia, mitologia, rituais de vida (caça, 5 iniciação) e de morte (sepultamento do chefe da tribo). Nestes capítulos sobre os costumes dos mairuns Darcy Ribeiro explora todo seu conhecimento dos costumes e mitos indígenas, obtidos durante os trabalhos de campo que realizou e os coloca dentro da narrativa, tornandoa um texto denso (conforme Geertz, 1989: 13-41). Com esse recurso o autor possibilita aos leitores penetrarem dentro da aldeia, assistir aos cerimoniais, presenciarem o cuidado com que os índios se enfeitam para as festas e danças; assim como permite que os leitores se encantem com a exuberância da mata durante as florações e se admirem com a festa das aves e pássaros na diversidade de nomes e tipos apresentados pelo narrador. O CONTEXTO A elaboração do romance Maíra passou por três processos de escritura. Uma primeira versão fora escrita no Uruguai, durante o período em que Darcy Ribeiro encontrava-se em seu primeiro exílio, ocorrido devido às suas ligações com o Governo João Goulart – Chefe da Casa Civil, que fora deposto pela Revolução de 1964. A segunda versão foi escrita quando de seu retorno ao Brasil, em 1969, cuja elaboração textual ocorreu dentro de uma prisão, enquanto Ribeiro aguardava seu julgamento e absolvição. A terceira e última versão foi redigida durante seu segundo exílio (Peru, Venezuela, Chile), e em 1976 foi publicada a primeira edição. Em 1996 o romance ganhou uma edição comemorativa com um prefácio do autor, no qual confessa que durante o período que escrevia não se sentia exilado, mas sim livre e em casa, pois estava com seus índios, na Amazônia. Segundo Ribeiro, ao escrever Maíra se sentia como se estivesse participando dos episódios que recordava. Em termos de contextualização sócio-política, a escritura e publicação do livro ocorreram num período de efervescência antropológica, de reconfiguração da política indigenista, e caracterizado por forte repressão política e cerceamento das liberdades individuais estabelecido pelo Governo Militar. O Governo Militar – implantando após a Revolução de 1964 e que perdurou até fins dos anos de 1980 – por sua forte repressão acarretou em uma massiva saída de intelectuais brasileiros para o exílio devido às ditas “ligações perigosas” que estes profissionais teriam com o comunismo. Com isso, muitos profissionais tiveram que deixar seus lares, trabalho e pesquisas, ocasionando um déficit na intelligentsia brasileira3. 3 Luciano Martins em seu texto: A Gênese de Uma Intelligentsia - Os Intelectuais e a Política no Brasil 1920 a 1940, apresenta a definição de Alexander Gella como sendo a mais interessante para definir as 6 Para a antropologia, apesar das perdas, a década de 1960 até meados dos anos de 1970, foi um período que propiciou sua consolidação formal, devido à criação de cursos de pós-graduação, como o do Museu Nacional, que serviram de base para a multiplicação de profissionais na área e para sua posterior configuração acadêmica e produção teórica. No que tange a uma reconfiguração da política indigenista o que ocorreu foi uma ausência de atuação do setor responsável por esta política (SPI/FUNAI), a partir do final dos anos de 1950, que mobilizou diversos antropólogos que atuavam junto aos índios. Neste momento surge uma antropologia mais engajada no estudo das relações entre povos indígenas e o Estado-nação, que se expressa por meio de um viés mais crítico que se envolvia politicamente na procura pela melhoria dessas relações. É um período em que Darcy Ribeiro, já desligado do Serviço de Proteção aos Índios, aparece como um dos que promotores desta feição da ciência antropológica. No final dos anos de 1950, ao se afastar do SPI, Ribeiro propõe que esse Serviço deveria reformular suas diretrizes, criando nova orientação para a política indigenista, que se fundamentaria em uma reflexão crítica sobre a atuação deste órgão governamental de proteção aos índios nos últimos 50 anos. Tal proposta baseava-se em sua visão, advinda da experiência de trabalho, sobre a política indigenista do SPI. Segundo ele havia pontos que se mostraram adequados, e por isso deveriam ser mantidos, e outros desastrosos, e por isso era necessário serem revistos e/ou substituídos. Darcy Ribeiro argumentava que a política indigenista no Brasil deveria ter como pontos principais: a percepção dos índios, não como selvagem ou bárbaro, mas como parte integrante da sociedade nacional; garantia das condições necessárias à sobrevivência dos povos indígenas; respeito aos grupos indígenas em sua forma de viver, incluindo representação religiosa, parentesco, economia; garantia, em termos legais, da posse pelos grupos indígenas de seu território. Uma das conseqüências deste movimento dos antropólogos foi a concepção do projeto, em 1954, de criação do Parque Indígena do Xingu, cuja criação decorreu do argumento da características de uma intelligentsia. Segundo Martins Gella menciona sete possibilidades de aplicação do termo intelligentsia, são eles: (1) a intelligentsia "clássica" russa e polonesa do século XIX; (2) os grupos designados por esse termo na Tchecoslováquia e na Hungria entre as duas guerras; (3) os "intelectuais profissionais" e uma parte da classe média de "orientação humanística" dos países ocidentais; (4) o agregado heterogêneo dos grupos designados por "intelligentsia trabalhadora" nos países socialistas; (5) as camadas cultas dos países africanos e asiáticos que disputam a liderança nacional com as "burguesias" locais; (6) os grupos contestatários ou revolucionários surgidos nos anos 60 nas "sociedades afluentes"; (7) os dissidentes dos países socialistas. (Gella, 1976: 23 apud Martins, 1987: 65-67). Neste texto o termo intelligentsia é utilizado pela junção de duas das possibilidades descritas por Gella, a terceira e a sexta. 7 imemorialidade da ocupação das terras brasileiras pelos povos indígenas “em virtude de seus usos e costumes.” (COUTO, 2005:98). A criação deste Parque, o movimento de luta por parte dos antropólogos e de sua organização – a ABA – podem ser considerados como elementos estruturantes da política indigenista brasileira. Isto porque, serviram como divisor de águas entre uma política de assimilação e integração para uma outra de proteção e preservação. Esse movimento também tornou viável uma redefinição sobre o que deveria ser um território indígena, em termos administrativos, que implicou, posteriormente, no “conceito de imemorialidade” adotado como justificativa para a demarcação de terras indígenas, e que consta na Constituição de 1988, ainda que não se tenha realizado a contento. REFLEXÕES SOBRE O MAL ENTRE OS MAIRUNS Em primeiro lugar, é necessário destacar a sagacidade e o gênio criativo de Darcy Ribeiro ao elaborar o texto, retomando e compaginando a cosmovisão de diversos e diferentes povos indígenas, apresentando-a como uma única visão de mundo e contrastando-a com a cosmovisão ocidental. E, é pela forma com a qual Maíra é concebido e elaborado, que seu autor reconstitui literariamente a etnologia de um povo indígena, os mairuns, possibilitando ao leitor um aprendizado sobre as formas de ser, viver e se organizar dos índios. Com essa descrição, Darcy Ribeiro objetiva mostrar para a sociedade ocidental a sociedade tribal, transmitindo uma idéia de que todo homem pode se reconhecer na história do outro, que também pode ser sua própria história. Sua pretensão, desde quando se iniciou como antropólogo, foi, sempre, por meio do trabalho de campo, investigar e compreender a situação dos indígenas e posteriormente aplicar o conhecimento adquirido na busca por soluções possíveis, que viabilizassem melhorias tanto para índios quanto para brancos, como co-participantes de uma mesma sociedade. Darcy Ribeiro, como outros intelectuais que estavam se formando na mesma época (Florestan Fernandes, Oracy Nogueira), era movido por um compromisso pessoal e profissional de compreender e explicar o Brasil. Ele tinha como ideal científico “estudar a natureza humana lendo a natureza humana nas populações indígenas” (Grupioni & Grupioni, 1997: 01). Tratava-se de revelar as leis que regiam a sociedade brasileira e os diferentes grupos que a formavam, bem como de registrar as culturas indígenas, que se encontravam em processo de desaparecimento, devido à intensificação das relações de contato, como afirma Darcy Ribeiro no livro “Confissões”: 8 Eu, que só estava armado para ver os índios como objeto de estudos antropológicos, cuja mitologia, religião e arte tentaria compreender e reconstituir criteriosamente, no mesmo esforço observava e registrava etnograficamente seus costumes, seus artesanatos, todo seu modo de ser, de encarar o mundo e de viver. Como ao contato com a civilização suas culturas se deterioram inapelavelmente, se impunham duas tarefas. Documentar suas culturas originais antes que desaparecessem e entender o processo de aculturação a que eles eram submetidos. Um dos objetivos da minha vida foi entender e integrar essa última temática e a sensibilidade social correspondente no campo de interesses teóricos da antropologia. Ela era e ainda é objeto tão legítimo de estudos como a religião, a mitologia ou qualquer outro. (RIBEIRO, 1998: 152-153). Maíra é o retrato de uma antropologia, praticada, principalmente, entre os anos de 1940 e 1960, cuja intenção era reverter as imagens já consagradas dos índios no imaginário nacional, ou seja, a ciência antropológica, nesse período, via nos estudos sobre as populações indígenas grande potencial que permitiria o deslocamento do olhar da sociedade nacional. Tal deslocamento traria uma nova forma de representação dos índios e possíveis soluções, tanto no plano prático quanto analítico, para os principais problemas referentes ao contato entre índios e a sociedade nacional. Esta concepção estava relacionada com o pensamento da época empenhado em criar formas de integrar o indígena à sociedade nacional, e, também, é fruto de uma busca histórica, que objetivava descobrir o que seria genuinamente brasileiro e que possibilitaria, ao mesmo tempo, expressar e interpretar uma "brasilidade" ou, como preferia Darcy Ribeiro, produzir um espelho onde a sociedade possa se ver. Isso significa que o conhecimento antropológico produzido deveria ser utilizado para mostrar que os índios são parte integrante da nação e devem ser preservados, uma vez que, paulatinamente, seu numero é cada vez menor devido aos fenômenos de aculturação, assimilação e desterritorialização. Esta concepção de estudo antropológico encontra-se retratada em toda a narrativa, que é perpassada por um lamento, por parte do autor, pela perda das tradições culturais que os índios vêm sofrendo, devido ao contato com os brancos. Seu objetivo principal é verbalizar a dor de ser índio, retratar como os brancos são brutos e obtusos na sua interação com os indígenas e estabelecer um contraponto entre índios e brancos em termos de relações intracultural e entre culturas. Para o autor as provas do abuso e ferocidade contra os índios são evidentes e ele as apresenta e analisa de forma profunda e apaixonada: a ação pastoral, a inatividade e inércia da FUNAI, o desinteresse e os abusos das autoridades policiais, etc.. 9 É preciso destacar também que, o mal entre os mairuns, como Darcy Ribeiro apresenta além de ser fruto de suas teorizações e concepções, resulta do tipo de colonização implementada no Brasil, que tem como objetivo somente retirar os grupos indígenas do caminho do desenvolvimento da nação. Esse mal, propiciado pela subversão colonizadora se revela principalmente no corpo, um dos elementos básicos dos grupos indígenas. A deterioração física dos mairuns, apresentada durante toda a narrativa quando focaliza o personagem IsaíasAvá, é, na visão de Darcy Ribeiro, o sinal evidente que, para os índios é chegado o “fim dos tempos”. Este sinal dos tempos, para o autor, coincidiria com o fim da ação pastoral católica entre os mairuns. Pois, a tribo mairum, totalmente dominada e quase dizimada4, deixou de ser o foco central de atuação da missão religiosa. Isto porque, por decisão de um senador, disposto a distribuir as terras dos índios entre empresários de gado, a convoca para que os religiosos passem a evangelizar outra tribo da região, os Xaepĕs, visando sua assimilação futura como trabalhadores das grandes fazendas de gado que se instalariam na região. A missão está ressurgindo. Deus nos tirou os obreiros mais velhinhos. Deus os tenha: padre Vecchio, padre Aquino, irmã Canuta, irmã Ignez, frei Ciano. Mas Deus nos dá alegria de ver que estamos mais jovens agora. A idade-média baixou muito. E era preciso porque o senador Andorinha me deu muitas esperanças. Ah! Padre Ludgero, a notícia já correu por todos os corredores da Casa. O senhor precisava ver a alegria nas expressões das freiras e dos padres jovens. Há um contentamento que ninguém pode nem quer esconder. Pois é, irmã Petrina. Pois é, ele me deu a certeza de que nos será entregue a pacificação dos xaepĕs. Além de terras para a Missão Nova, teremos o privilégio de sermos encarregados, oficialmente pelo governo, da pacificação dos xaepĕs. Nós e só nós teremos o honroso encargo e a dura tarefa de chamá-los ao convívio dos brasileiros e de conduzi-los ao coração da cristandade. (Ribeiro, 1989:400-401) Esta finalização do texto indica que este é um processo inexorável, onde o branco (sociedade nacional) no seu caminho de interiorização para ocupação do território brasileiro deixa para traz um rastro de destruição das culturas indígenas. Apesar da constatação de que o encontro entre índios e brancos leva, fatalmente, à morte, Darcy Ribeiro não se limita a apresentar um texto de exaltação dos mortos. Em sua narrativa está implícito que o importante é que esse 4 Esta dizimação dos mairuns é apresentada pelo personagem Isaías-Avá quando diz: “Nós, os mairuns, estamos acabando.” (Ribeiro, 1989: 270). 10 mal, revelado no texto, também indica ações que permitiriam atenuar seus efeitos e mudar a situação dos índios: rever os (pré)conceitos em relação aos indígenas, a resistência étnica por parte dos grupos indígena e a total proteção aos índios de qualquer tipo de contato com brancos. Nesse sentido, ao se fazer um cotejamento entre as concepções teóricas do autor com o romance, vimos que Maíra, além de relatar o que vem a ser o mal entre os mairuns, também aponta para o que ele chamou de processo de transfiguração étnica. Esta teoria diz que os grupos indígenas, para continuar a viver, se transformam tanto ou quanto for necessário para garantir sua sobrevivência, conforme Darcy Ribeiro relata em entrevista no ano de 1997: Nenhum índio vira civilizado, o que há é que um povo indígena, mantendo sua indianidade, vai morrendo e, ao lado dele, surge um núcleo humano que cresce à custa dele e que cresce contra ele, que é o núcleo civilizado. Então, assim como não há conversão, não há assimilação. O que há é uma integração inevitável. Se o índio é cada vez mais cercado de um contexto civilizado ou comercializado, se ele próprio se converte em mão de obra, se ele próprio tem que produzir mercadoria, é claro que ele tem uma integração cada vez maior com a sociedade nacional. Mas esta integração não quebra nele a identidade, que é como a do judeu, como a do cigano. Ele mantém a sua identidade como indígena. Apesar de transformados os costumes, apesar de mudar o modo de se vestir. Apesar de todas essas mudanças, ele permanece indígena. (Grupioni & Grupioni, 1997: 5-6) Finalizando, para Darcy Ribeiro, os povos indígenas, desde o primeiro contato com o branco, estão em uma conjuntura contrária à sua forma de ser e viver, e, para sobreviver e continuar mantendo sua própria feição étnica, passam por diversas transformações, em um processo de mudança que torne viável sua existência dentro de um contexto que lhes é hostil. Ainda que o contato com a sociedade ocidental seja fonte do mal entre os mairuns, Maíra aponta para a capacidade de reinvenção presente nos povos indígenas, pois a transfiguração étnica, consolidada por Darcy Ribeiro no livro “Diário Índios”, é um processo em que os povos vão, de tempos em tempos, se reinventando. 11 BIBLIOGRAFIA BOMENY, Helena M. Darcy Ribeiro e a Escola de Pioneiros. XXIV Encontro Anual da ANPOCS - GT: Pensamento Social no Brasil. Petrópolis. 2000. BOMENY, Helena M. Darcy Ribeiro: Sociologia de Um Indisciplinado. 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