o jusnaturalismo e a filosofia moderna dos direitos

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Panóptica
Ed. 13 (2008)
O JUSNATURALISMO E A FILOSOFIA MODERNA DOS DIREITOS:
REFLEXÃO SOBRE O CENÁRIO FILOSÓFICO DA FORMAÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS
Eduardo C. B. Bittar
Professor Associado de Filosofia do Direito, Universidade de São Paulo, Brasil
Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Brasil
Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos, Brasil
1. Da proposta de investigação
Existe uma grande contribuição das doutrinas jusnaturalistas modernas na
construção das concepções fundantes de Estado de Direito, de Direito Moderno, e,
em especial, de Direitos Humanos, na medida em que a própria noção de natureza
assumida (natureza significando natureza racional individual humana) retrata um
acervo de concepções filosóficas nascentes no período, profundamente marcadas
pela identidade do nascente gesellschaft, assim como da própria noção de Direitos
Humanos que predomina atualmente no Ocidente.1 De certa forma, não se trata de
reavivar com sabor de dejà vue preocupações antigas da jusfilosofia, mas de
intensificar a pesquisa sobre a fundamentação dos human rights, especialmente em
contextos de profunda tensão internacional e aflição histórica,2 num cenário que, na
linguagem de Agnes Heller, significa uma revisão profunda do que se entende por
modernidade (post modernity condition), na medida em que novas tensões
recondicionam o sentido deste discurso. Se trata, portanto, de re-visitar a
modernidade para verificar se seus paradigmas podem ser considerados realmente
obsoletos, ou constatar se seus dogmas racionais acabaram por se curvar à
identificação da lógicas dos winers do mercado capitalista.
De fato, trata-se de investigar, por meio deste estudo, o quanto esta noção precisa
de Direitos Humanos (Naturais, Ocidentais, Universais, Abstratos, Fundamentais,
Positivados), à época surgida como força ex parte populi, mas prevalecente ainda
hoje, possui de influência das doutrinas que, no bojo do surgimento da Modernidade,
alardearam a necessidade de conhecer o Direito sem recorrer a fundamentos
tipicamente medievais, ligados às dimensões espiritual e metafísica (lex divina), mas
1
Sigo a lição de Paulo Ferreira da Cunha: “Um exemplo muito concreto da ligação directa entre
natureza humana e Direito Natural pode ver-se na construção dos direitos humanos em Francisco
Puy (que considera os direitos humanos explicitações hodiernas ou mesmo a linguagem moderna do
Direito Natural)” (Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de Arquimedes, 2001, p. 30).
2
De fato: “O mundo de hoje é, por esse motivo, um ´globo dividido´, com tensões particulares, com
colapsos na comunicação e ressentimentos latentes ou explícitos, tudo isso ameaçando provocar
novos tipos de conflitos” (Heller, Féher, O pêndulo da modernidade, Tempo Social, Ver. Sociologia da
USP, São Paulo, 6 (1-2), 1994, p. 77).
1
com simples apelo à própria idéia de natureza (natureza humana individual e
racional), domínio de estudos filosóficos.
2. A afirmação histórico-filosófica do jusnaturalismo moderno
Apesar de sua significação histórica e de sua importância para a formação dos
modernos direitos humanos, o jusnaturalismo setecentista e oitocentista não constrói
uma discussão inovadora nos meandros teóricos da fundamentação do Direito a
partir da natureza (phýsis, natura).3 Pode-se mesmo dizer que a sede destas
discussões já se encontra entre os pensadores gregos, sobretudo a partir período
socrático da filosofia grega (séc. V a.C.), que haviam detectado a origem da
discussão na oposição entre nómos e phýsis, oposição que somente tomou
proporções cada vez mais significativas na literatura filosófica após o advento de
Platão e Aristóteles (séc. IV a.C.).4 Por sua vez, os romanos sediavam a discussão
na oposição entre ius gentium e ius civile (sécs. II a.C. a II d.C.), sendo que os
medievais (Santo Agostinho, Abelardo, São Tomás de Aquino) somente trouxeram
diferenciais religiosos para estes conhecidos conceitos através da idéia da existência
da lex divina (séc. V a XII d.C.).
Já no início da Idade Moderna, com Grotius (séc. XVII d.C.), com seus
contemporâneos e com a tradição posterior (Maquiavel, Jean Bodin, Thomas
Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, Spinoza, Puffendorf), o racionalismo
moderno universaliza a razão humana5, e encontra os fundamentos para a
discussão do tema, secularizando a noção de direitos fundamentais eternos,
naturais e imutáveis, cuja consagração se deu com as Declarações do século XVIII,
em especial com a Declaração de Direitos de Virgínia (1787) e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a perceber-se pelos seguintes excertos:
“Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e
independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no
estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou
despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade,
com os meios de adquiri e possuir a propriedade de bens, bem como de
o
procurar e obter a felicidade e a segurança” (Art. 1 . Declaração de Direitos
da Virgínia, 1787).
“Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos. As
distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum” (Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789).
3
“Toda a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre direito positivo e
direito natural, distinção que, quanto ao conteúdo conceitual, já se encontra no pensamento grego e
latino; o uso da expressão direito positivo é, entretanto, relativamente recente, de vez que se
encontra apenas nos textos latinos medievais” (Bobbio, O positivismo jurídico, 1995, p. 15).
4
Sobre os conceitos de justiça em Platão e Aristóteles, consulte-se Bittar, A justiça em Aristóteles,
Forense Universitária, 1999.
5
“A doutrina da Escola consubstanciou-se em quatro pontos fundamentais: 1. O reconhecimento de
que a natureza humana seria fonte do Direito Natural; 2. A admissão da existência, em épocas
remotas, do estado de natureza; 3. O contrato social como origem da sociedade; 4. A existência de
direitos naturais inatos” (Nader, Filosofia do direito, 1997, p.132).
2
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Assim é que, com a fusão de concepções da tradição grega e latina, e a emergência
da discussão jusnaturalista na modernidade, em especial com a positivação destes
direitos em Declarações e documentos jurídico-políticos escritos, forma-se uma
cultura dos direitos naturais marcada pelas seguintes características, enunciadas por
Bobbio:
“Podemos destacar seis critérios de distinção:
a) o primeiro se baseia na antítese universalidade/particularidade e
contrapõe o direito natural, que vale em toda parte, ao positivo, que vale
a
apenas em alguns lugares (Aristóteles – Inst. – 1 . definição);
b) o segundo se baseia na antítese imutabilidade/mutabilidade: o direito
a
natural é imutável no tempo, o direito positivo muda (Inst. – 2 . definição Paulo); esta característica nem sempre foi reconhecida: Aristóteles, por
exemplo, sublinha a universalidade no espaço, mas não acolhe
imutabilidade no tempo, sustentando que também o direito natural pode
mudar no tempo;
c) o terceiro critério de distinção, um dos mais importantes, refere-se à fonte
a
do direito e funda-se na antítese natura-potestas populus (Inst. – 1 .
definição - Grócio);
d) o quarto critério se refere ao modo pelo qual o direito é conhecido, o
modo pelo qual chega a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na
antítese ratio-voluntas (Glück): o direito natural é aquele que conhecemos
através de nossa razão (...).
e) o quinto critério concerne ao objeto dos dois direitos, isto é, aos
comportamentos regulados por estes: os comportamentos regulados pelo
direito natural são bons ou maus por si mesmos, enquanto aqueles
regulados pelo direito positivo são por si mesmos indiferentes e assumem
uma certa qualificação apenas porque (e depois que) foram disciplinados de
um certo modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é ordenado, injusto o
que é vetado) (Aristóteles, Grócio);
f) a última distinção refere-se ao critério de valoração das ações e é
enunciado por Paulo: o direito natural estabelece aquilo que é bom, o direito
positivo estabelece aquilo que é útil” (Bobbio, O positivismo jurídico: lições
de filosofia do direito, 1995, p. 22/23).
Assim considerado o encaminhamento histórico da questão, especialmente na
modernidade, é que passa a se tornar ingrediente indispensável de toda a busca
jusfilosófica, não deixando mais de se encontrar nos manuais de Filosofia do Direito
como página indispensável de reflexão,6 revelando-se como uma espécie de último
sopro de atuação da própria idéia de justiça.7 De fato, entender simplesmente que a
natureza define o conceito de direito natural é reduzir as potencialidades humanas
(psíquicas, intelectivas, sociáveis, interativas, produtivas, artísticas, éticas...) ao dado
6
Cf. Bobbio, O positivismo jurídico, 1995, ps. 15/ 23.
“Nos dias de hoje, em que a aplicação directa do direito natural é coisa raríssima (embora não de
todo proscrita, mesmo em tribunais civis e em países de arraigada tradição jacobina ou napoleónica),
em que se aboliram as últimas cátedras de Direito Natural, em que se procura asfixiar (ou dissolver
noutros estudos) a própria Filosofia do Direito, subordinando-a a outras áreas, desertificando os
curricula do seu sopro inspirado e fecundador, é inegável que a grande mão actuante do direito
natural são os direitos humanos” (Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de Arquimedes, 2001, p. 180).
7
3
natural. Ora, a preocupação de Miguel Reale se dá no sentido de afirmar que o ser
humano está mais afeto ao construído (artifício) que ao dado (natureza). A palavra
direito significa algo da ordem da cultura - o que importa em luta, transformação de
valores, história, dialética com o poder, etc. -, e não um simples dado da ordem
natural. 8
O que se pretende neste momento é detectar as raízes da formação desta
consciência intelectual, especialmente filosófica, que viria a dar sustentação e
formaria os pilares de estruturação da arquitetura moderna.9 Isto significa, entre
outras coisas, demonstrar histórico-filosoficamente o processo de construção dos
direitos humanos, que, na verdade, não são dedutíveis de esferas ônticas quaisquer,
mas que são fruto de importante luta social e intelectual para a sua possibilitação em
sociedade, sobretudo quando se trata de afrontar privilégios e desigualdades
sociais. É o que nos afirma Ferreira da Cunha:
“Não há, em suma, um direito justo no céu dos conceitos platónico, e um
direito imperfeito e injusto no nosso pobre e imperfeito mundo sublunar. O
problema do Direito Natural não é descobrir esse celestial livro de mármore
onde, gravadas a caracteres de puro oiro, as verdadeiras leis estariam
escritas, e que, ao longo dos séculos, sábios legisladores terrenos não
conseguiram senão vislumbrar” (Cunha, O Ponto de Arquimedes, 2001, p.
94).
3. A construção da mentalidade moderna
Cronologicamente, a modernidade implica um longo processo histórico, a iniciar-se
em meados do século XIII e a desdobrar-se em sua consolidação até o século XVIII,
de desenraizamento e de laicização, de autonomia e liberdade, de racionalização e
de mecanização, bem como de instrumentalização e de industrialização.10
É impossível pensar o modus vivendi moderno, centrado na idéia de sujeito-doconhecimento, na idéia de cidadania constitucional, de democracia representativa,
de direitos humanos, de organização estatal-repressivo-burocrática das dimensões
social e econômica, e de progresso técnico-científico, sem a recorribilidade
necessária aos arcanos do ideário moderno. Trata-se de um ideário que vê na
história um processo linear em direção à racionalização, à capitalização, à
estruturação do Estado, ao progresso, à centralização do poder. É o que se faz
8
Cf. reflexão de Reale, Filosofia do direito, 1999.
Quem se dedica a este tipo de análise crítica do surgimento da modernidade é Max Horkheimer,
quando afirma: “Nos termos modernos, a razão tem revelado uma tendência para dissolver o seu
próprio conteúdo objetivo. É verdade que na França do século XVI o conceito de uma vida dominada
pela razão como suprema força obteve novos avanços. Montaigne adaptou-se à vida individual, Bodin
à vida das nações, e de l’Hôpital praticou-o na política. A despeito de certas declarações céticas da
parte desses homens, suas obras promoveram a abdicação da religião em favor da razão como
suprema autoridade intelectual” (Horkheimer, Eclipse da razão, 2003, p. 22).
10
A citação necessária recorre a Horkheimer: “A reificação é um processo cuja origem deve ser
buscada nos começos da sociedade organizada e do uso de instrumentos. Contudo, a transformação
de todos os produtos da atividade humana em mercadorias só se concretizou com a emergência da
sociedade industrial. As funções outrora preenchidas pela razão objetiva, pela religião autoritária, ou
pela metafísica, tem sido ocupadas pelos mecanismos reificantes do anônimo sistema econômico”
(Horkheimer, Eclipse da razão, 2003, p.48).
9
4
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quando se pretende entrelaçar a faticidade do que é feito à idealidade do que é
pensado.
Com o pensamento cartesiano, segundo alguns é que se teria iniciado a consciência
da subjetividade cognitiva. Este seria o start da modernidade como forma de
dominação e colonização do mundo (res extensa) pela razão (res cogitans). Isto, no
entanto, não é consenso entre os autores, e os referenciais teóricos mudam.
A modernidade, para Habermas, por exemplo, teria nascido com Hegel, e seu
racionalismo onipresente seria a máxima manifestação da vontade colonizadora
moderna do mundo.
A modernidade, para Foucault, teria nascido com Kant, na medida em que ninguém
melhor que Kant teria se pronunciado sobre a dimensão do indivíduo e sobre a
consciência ética do dever que este filósofo de Köenigsberg, e a era crítica seria a
Aufklärung.11
Prefere-se identificar, com Castoriadis, que a modernidade possuiria três fases: a da
formação do Ocidente (XII ao XVII), com as primeiras manifestações da acumulação
e da revolução que se preparava no bojo da Idade Média; a da crítica da
modernidade, com sua afirmação (XVIII até II Guerra Mundial), quando se solidificam
os grandes pilares da mudança social, econômica e política das sociedades; a da
retirada para o conformismo (II Guerra Mundial em diante), com a queda das
hegemonias ideológicas e a retirada para a crítica dos arquétipos da modernidade.12
Há que se dizer, de qualquer forma, que a modernidade se estrutura, de fato, a partir
de três grandes movimentos: “As principais lógicas da modernidade são as da
divisão funcional do trabalho, da arte de governar e da tecnologia” (Heller, Féher, O
pêndulo da modernidade, Tempo Social, Ver. Sociologia da USP, São Paulo, 6 (1-2),
1994, p. 65).
Independente de como estas classificações se dêem, quando se parte nesta
aventura de detectar como o pensamento se relaciona com o seu tempo,
especialmente no contexto aqui estudado, se pode presentificar o conjunto de idéias
11
“Sei que se fala freqüentemente da modernidade como uma época ou, em todo caso, como um
conjunto de traços característicos de uma época; ela é situada em um calendário, no qual seria
precedida de uma pré-modernidade, mais ou menos ingênua ou arcaica, e seguida de uma
enigmática e inquietante “pós-modernidade”. E nos interrogamos então para saber se a modernidade
constitui a conseqüência da Aufklärung e seu desenvolvimento, ou se é preciso ver nela uma ruptura
ou um desvio em relação aos princípios fundamentais do século XVIII.
Referindo-me ao texto de Kant, pergunto-me se não podemos encarar a modernidade mais como
uma atitude do que como um período da História. Por atitude, quero dizer um modo de relação que
concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar
e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma
pertinência e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos
chamavam de êthos. Conseqüentemente, mais do que querer distinguir o “período moderno” das
épocas “pré” ou “pós-modernas”, creio que seria melhor procurar entender como a atitude de
modernidade, desde que se formou, pôs-se em luta com as atitudes de “contramodernidade”.” (Michel
Foucault, Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento, 2000, p. 341-342).
12
Cf. Castoriadis, O mundo fragmentado, 2000, ps. 16 a 18.
5
que favoreçam o aparecimento e a justificação das mudanças ocorridas que se
consolidaram na arquitetura do Estado Moderno. Se for tomado, por exemplo, o
pensamento de Jean Bodin (séc. XVI), detectar-se-á que traz consigo uma reflexão
inteiramente voltada para a compreensão da importância da idéia de soberania, em
pleno momento de nascimento do Estado Moderno, cuja sedimentação primeira se
dá, segundo alguns autores, no plano da geopolítica, em pleno século XVII. Ora, em
parte, a idéia de legalidade está implicada na capacidade de ser soberano, de modo
que a soberania aparece como um conceito fundamental na construção do Estado
Moderno. “A primeira marca do príncipe soberano é o poder de dar lei a todos em
geral e a cada um em particular” (República I, 10, p. 306).13 Ainda que justificando a
limitação no exercício da soberania pelo seu detentor em leis divinas e naturais,
Bodin acaba por incentivar e incrementar conceitualmente a formação do imperativo
filosófico da modernidade, segundo o qual, sem uma ordem central, torna-se
impossível qualquer projeto para a construção de uma sociedade moderna. Há um
certo reforço dos poderes centrais, em detrimento até mesmo dos poderes de
resistência que tornam a ideologia da supremacia estatal (que haverá de vigorar na
modernidade) uma espécie de consenso intelectual, se se for considerar o conjunto
dos estudos a respeito do tema.
Outra importante referência do período é encontrada em Nicolau Maquiavel (sécs.
XV-XVI), que evoca no pensamento filosófico-político de seu tempo uma reflexão
que exala uma preocupação que corre muito próxima do próprio diário de vida do
príncipe, sendo que seu mais reconhecido escrito (O príncipe, 1513-14) orientando-o
para a ação, dando-lhe conselhos de como governar e manter o governo. A
convergência das preocupações com a estabilidade do poder leva Maquiavel a
dissociar qualquer espécie de sentimento ético-subjetivo do príncipe das próprias
finalidades de exercente da soberania de dizer as regras do jogo político. A
separação e o afastamento entre ética e política começam a se dar num momento
em que a própria dissociação da aliança entre Igreja e Estado passava a se tornar
possível, na medida da própria falência das instituições religiosas e de seu poderio
espiritual-temporal sobre os espíritos. Exatamente por construir uma nova
moralidade para a política, Maquiavel se destacou como um pioneiro das
preocupações políticas mais práticas, introduzidas como questão de reflexão na
medida em que o poder carece de sustentar-se, inclusive, filosoficamente; neste
sentido, os fins podem justificar os meios.
Mas, a modernidade não pode ser pensada sem Thomas Hobbes (1588/1679), que
se destaca por colocar o seu pensamento a serviço da unidade do poder estatal. O
Leviatã torna-se esta espécie de monstro-ficção que está acima de todos (e até de
tudo), na medida em que se coloca a serviço das causas de unificação de laços
extremamente frágeis, e, portanto, débeis até então, entre cidadãos. Em nome da
conservação do espírito de todo, pode-se justificar, na concepção hobbesiana, antes
que homens em estado de natureza se eliminem uns aos outros, a pena de morte e
outros recursos extremos para a manutenção da ordem. O pensamento hobbesiano
é marcantemente voltado para uma clara definição do imperativo conjunto de
poderes e tarefas assumidos pelo Estado Moderno, que deve se distinguir das
partes-componentes (cidadãos) até mesmo por suas forças plenipotenciárias.
13
Apud Barros, A teoria da soberania de Jean Bodin, 2001, p. 240.
6
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A idéia de liberdade de mercado, da mão invisível, constróem os fundamentos para
o liberalismo moderno, que remontam a John Locke,14 especialmente trazidos pela
obra de Adam Smith (século XVIII), tornando-se grande via de escape para os
intentos capitalistas, na medida em que a posse de direitos, a estabilização das
fronteiras, as garantias de Estado, a proteção do direito de propriedade, bem como
outros fatores de acumulação bem-estruturados, permitiram o fortalecimento e o
crescimento de uma burguesia ascendente, cada vez mais interessada na
solidificação da idéia de Estado. O pensamento econômico liberal, como o de Smith,
está empenhado em promover o comércio, e, nesta visão, as regras de mercado
funcionam mais eficazmente que as regras de Estado.15 Aliás:
“Essa é a chave econômica de sua obra. Quanto mais amplo for o circuito
comercial, mais especialização e mais progresso haverá. Se cada um se
dedica a uma tarefa especial, cada um vai desenvolver o que faz melhor.
Logo, terá todo o tempo para dedicar-se exclusivamente a isso” (Grondona,
Os pensadores da liberdade, 2000, p. 59).
Há nisto uma clara preocupação com o crescimento, com o progresso, com a
ampliação do mercado, com a lei do esforço pessoal, este que é o axioma moral do
individualismo burguês.16
“O liberalismo descobriu a chave do progresso. Em Riqueza das nações
(1790), Smith pergunta-se: que está sucedendo, por que as nações estão
enriquecendo? É um fenômeno absolutamente novo na história. No
liberalismo há a compreensão de por que está ocorrendo essa revolução
que é o progresso econômico-social. A fórmula é uma mistura de segurança
jurídica, livre comércio e competição. O progresso é uma regra do jogo
estável que instaura e regula a competição. Logo, os indivíduos começam a
‘florescer’, a ser cada um a flor especial e única que deveria ser no mundo.
Nesse quadro, só a pessoa pode dar o melhor de si. Essa é a fórmula do
progresso. Sobre esse sistema pode haver correções marginais e
secundárias, mas pretender substituí-lo é ilusório: o subdesenvolvimento
não é uma situação, mas um erro. E idéia de que o subdesenvolvimento
seja uma ‘fase’, como a adolescência, é falsa. A Índia é velhíssima e
subdesenvolvida. A Austrália é jovem e tem um alto grau de
14
Grondona nos faz esta afirmação: “John Locke inicia esta linha de pensadores. Poderíamos remeter
a Calvino ou a Francis Bacon, mas é preciso limitar o tempo. John Locke é o ponto de partida do
liberalismo político; se tivéssemos que dizer quem é o fundador do liberalismo, diríamos ‘Locke’. Na
realidade, na época em que John Locke escreve, no final do século XVII, há outros escritores políticos
similares. Até se diz que Locke sistematizou e vulgarizou um pensamento que já estava no ambiente.
Todo grande pensador, como os grandes músicos, é o cume de uma cordilheira. No século XVIII
houve muitos como Mozart, mas só um Mozart” (Grondona, Os pensadores da liberdade, 2000, p.
18).
15
“Esse dogma do liberalismo afirma que, trabalhando cada um para o próprio bem, resulta disso um
bem ‘geral’ graças a uma ‘mão invisível’, a uma espécie de harmonia preestabelecida que opera com
mais eficácia que o Estado” (Grondona, Os pensadores da liberdade, 2000, p. 39).
16
“Na era da livre empresa, a chamada era do individualismo, a individualidade estava totalmente
subordinada à razão autopreservadora. Nessa era, a idéia de individualidade pareceu ter-se
desembaraçado das armadilhas metafísicas e ter-se tornado simplesmente uma síntese dos
interesses materiais do indivíduo. Que por esse meio não se livrou de ser usada como um joguete
pelo ideólogo, não há necessidade de provar. O individualismo é o próprio coração da teoria e prática
do liberalismo burguês, que vê a sociedade como um todo que progride através da interação
automática de interesses divergentes num mercado livre” (Horkheimer, Eclipse da razão, 2003,
ps.140/ 141).
7
desenvolvimento. Velhos ou novos, os países subdesenvolvidos são os que
não aceitam a fórmula do progresso. Velhos ou novos, os países
desenvolvidos a aceitaram” (Grondona, Os pensadores da liberdade, 2000,
p. 58).
Smith, além de observar a dimensão econômica, em seu texto Teoria dos
sentimentos morais (1759) discorre sobre a justiça, dela afirmando que se trata do
cimento das relações sociais.17 O direito aí figura como um instrumento para garantir
a fixação da dominação econômica pelas classes burguesas, impedindo que o
Estado se intrometa na dimensão econômica, âmbito onde deveria reinar a mais
ampla liberdade dos agentes econômicos.
Um importante passo no sentido da compreensão da dinâmica do poder e da
necessidade de sua distribuição por leis a órgãos competentes para legiferar, julgar
e executar vem dada por Montesquieu (séc. XVIII), que enfatiza sua reflexão sobre a
questão da participação da lei na formação da arquitetura do Estado. Mais que isto,
seus estudos o conduzem, especialmente em O espírito das leis (1748), a partir da
evidência da necessidade de tripartição de poderes, constituída a partir do
paradigma da legalidade e da objetividade de uma Constituição que representa as
forças sociais e os interesses gerais da sociedade. Sem a divisão das tarefasatividade do Estado, parece se diluir a organicidade e comprometer-se a capacidade
de produzir e distribuir justiça em condições severas de avaliação políticoinstitucional. É isto que o leva a afirmar que
“Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder
executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo
das que dependem do direito civil (...) Chamaremos este último o poder de
julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado” (Montesquieu,
Do espírito das leis, Livro XI, capítulo VI, trad., ps. 148/ 149).
É certo que o Estado Moderno depende visceralmente da obra de Jean-Jacques
Rousseau (séc. XVIII) para a sua construção, uma vez que haverá de, com sua
teoria contratualista e suas inspirações jusnaturalistas, ensinar a liberalização das
concepções limitativas do poder de Estado, na medida em que nem a soberania e
nem o hobbesianismo eram satisfatoriamente suficientes para equilibrar as tensões
e diferenças entre classes sociais. O brado rousseauniano é no sentido da
democratização do poder, o que significa que a vontade geral e a soberania são
populares, sendo os exercentes do poder apenas representantes (limitados em suas
ações) dos poderes a eles delegados. Suas idéias são inspiradoras da Revolução
Francesa na medida em que a luta popular francesa se torna uma causa de direito
natural libertário face às opressões das cortes e do clero, sabendo que o terceiro
estado encontrava-se completamente alijado das deliberações de Estado. O
pensamento rousseauniano haverá de determinar a imprescindível postura de
afirmação das democracias modernas e dos limites ao exercício do poder pelo
soberano, que, ao contrário de Hobbes, não está acima da lei, mas que se encontra
na condição de seu fiel cumpridor.
17
“Sem justiça não pode haver sociedade; sem beneficência poderia haver, ainda que fosse
lamentável. Enquanto a justiça é o ‘cimento’ da sociedade política, a beneficência é o ‘ornamento’, o
que a faz mais bela, nobre, digna de imitar” (Grondona, Os pensadores da liberdade, 2000, p. 36).
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Como legatário e entusiasta crítico da Revolução Francesa,18 Immanuel Kant (séc.
XVIII) tece um conjunto teórico refinado, de marca racionalista, inaugurando o
criticismo, bem como declarando a inabilidade da razão em penetrar os arcanos da
metafísica e os segredos divinos, trazendo consigo, ao mesmo tempo, o idealismo
moral, a liberdade como premissa ética do dever (ética deontológica, subjetivista e
racional-dedutiva), bem como a concepção do direito como instância capaz de
regular o contraste entre as liberdades individuais atritantes, representando a força
do impositivo categórico na dimensão prática da vida social. A presença do
pensamento kantiano no século XVIII é marcante, sendo até mesmo determinante
para o nascimento do pensamento hegeliano, no século XIX. Sua doutrina do Estado
e do poder circunscrevem-se nos limites do próprio anseio de liberdade alardeado
pelos seus escritos, onde se encontram idéias que propugnam a máxima liberdade
individual, assim como também a máxima responsabilidade individual, bem como a
máxima capacidade para realizar esta responsabilidade individual. Os reflexos e as
crenças da Revolução Francesa ainda eram muito recentes para serem esquecidos,
de modo que foram encampados e absorvidos sutilmente pela doutrina filosófica
kantiana, que vislumbrava novos ares de autonomia e racionalismo para a
modernidade.19 A Aufklärung não pode ser melhor compreendida senão por sua
presença em Kant, pois o novo é entendido como capaz de engendrar desejáveis
mudanças para a vida individual.20 Os ecos da Revolução são, de modo otimista,
lidos e interpretados pelo subjetivismo idealista kantiano, que dá formação e
fundamentação aos grandes pilares para a construção da idéia de Direito Moderno
(minha liberdade vai até onde esbarra na do outro) e para a autonomia crítica da
razão na condução e realização do dever. É isto que faz com que a função do
filósofo conforme afirma Kant na Crítica da razão pura, “não é meramente um artista,
que se ocupa de concepções, mas um doador de lei, que legisla para a razão
humana” (Bauman, Modernidade e ambivalência, 1999, p. 29).
Em G. W. F. Hegel (séc. XIX), razão e Estado se consolidam através de seu
idealismo, ao mesmo tempo em que o fim da história parece declarar-se numa visão
capaz de perceber no Estado a máxima realização da razão nos tempos. Com sua
clássica sentença segundo a qual “o que é racional é real e o que é real é racional”
(Hegel, Princípios da filosofia do direito, 1990, p. 13), o entrelaçamento do real com
o racional é visto apenas como uma declaração da plenipotenciária onipotência da
18
A respeito do entusiasmo de Kant com a Revolução de 1789, leia-se Terra, É possível defender a
legalidade e ter entusiasmo pela revolução? Notas sobre Kant e a Revolução Francesa, in
Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant, 2003, UFRJ, p. 101-130.
19
A liberdade está inscrita na bandeira da Revolução Francesa. E é exatamente ela o elemento
primordial da filosofia kantiana, sobretudo no que tange à liberdade moral: “Ele esmiuçou a
“sociabilidade” básica do homem e enumerou como seus elementos a comunicabilidade – a
necessidade de os homens comunicarem-se – e a publicidade, a liberdade pública não apenas para
pensar, mas também para publicar – ‘a liberdade de escrita’; mas ele desconhece tanto uma
faculdade quanto uma necessidade para a ação” (Arendt, Lições sobre a Filosofia Política de Kant,
1993, p. 28).
20
“Em Kant, a importância da história [story] ou do evento jaz precisamente não no final, mas no fato
de que ele abre novos horizontes para o futuro. Foi a esperança para as gerações futuras contida na
Revolução Francesa que a fez um evento tão importante. Esse sentimento era disseminado. Hegel,
para quem a Revolução Francesa também fora o mais importante ponto de mutação, sempre a
descreve por metáforas como ‘um esplêndido nascer do Sol’, a ‘aurora’ etc. É um evento da ‘história
do mundo’, porque contém as sementes do futuro” (Arendt, Lições sobre a Filosofia Política de Kant,
1993, p. 73).
9
razão na construção e re-construção da própria natureza. Em seu pensamento,
deleita-se aquele que pretende ver no Direito o momento em que o espírito
determina a liberdade, na medida em que é através do Direito que serão regulados
os comportamentos de múltiplos sujeitos, na projeção da liberdade em sua
exterioridade, ainda mais considerando-se a tarefa de fixar-se limites entre o justo e
o injusto, entre o lícito e o ilícito. O império da razão encontra sua máxima
manifestação em Hegel, o que, sem dúvida nenhuma, consolida a perspectiva de
tecnização e racionalização modernos.
No entanto, as desigualdades, a exploração, a apropriação de bens pela classe
burguesa são temas que estão flagrantes para Karl Marx (séc. XIX), que inaugura,
por sua vez, uma análise crítica da economia e da política, especialmente em O
capital, na medida em que a dominação de classes, a revolução industrial e a
exploração do homem pelo homem se tornam evidências e resultantes do próprio
processo de acumulação primitiva, desde o final da Idade Média. Na passagem do
Medievo à Modernidade, o crescimento econômico era um fato escancarado para os
olhos dos teóricos, e Marx enfrenta a questão detectando que a riqueza das nações
estaria sendo dirigida a uma só classe, dela excluída a classe proletária.21 Sua
crítica ao capitalismo, bem como seu idealismo revolucionário pelas classes
exploradas (proletariado) em direção ao comunismo, conduzem a um acirramento
das necessidades de revolução social e econômica que insculpem na mentalidade
do século XIX (pense-se em 1848) e do século XX a idéia de oposição de classes e
a dicotômica oposição capitalismo/comunismo. A crítica marxista, unida aos escritos
de seus contemporâneos e intérpretes, forma um grande caudal de fundamentos
filosóficos para a reivindicação social e para a luta trabalhista que inauguraria
décadas de lutas sociais e econômicas ao longo do século XX. O ideal comunista é
exatamente a manifestação direta de uma reação opositiva ao imaginário geral da
modernidade, a um só tempo realizando a modernidade homogeneizadora com um
viés não-razoável que recai no totalitarismo do Partido (igualitarista, opressor e
hierarquizado), como afirma a filósofa húngara Agnes Heller, acabando inclusive por
reagir modernamente à indesejada modernidade (capitalista, individualista e
burguesa), como afirma Bauman: “O comunismo moderno foi um discípulo superreceptivo e fiel da Idade da Razão e do Iluminismo e, provavelmente, o mais
consistente dos seus herdeiros do ponto de vista intelectual” (Bauman, Modernidade
e ambivalência, 1999, p. 45).
4. A razão e o espírito jusnaturalista dos direitos humanos
A doutrina jusnaturalista dos direitos, que pode se identificar com diversos nomes,
pensadores e tendências diversas, como Locke (individualismo – propriedade
21
“O homem vivera estagnado por milênios. Anos de vacas gordas e anos de vacas magras, sim,
mas nunca um ‘processo’ de crescimento. É justamente a surpresa ante o crescimento que o obriga a
escrever nos séculos XVIII e XIX. Smith o interpreta como algo positivo, Marx negativamente. Smith
se surpreende do fato ‘escandaloso’ de que as nações estejam começando a crescer, a enriquecer”
(Grondona, Os pensadores da liberdade, 2000, p. 31).
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privada – sociedade civil como salvaguarda da paz), Rousseau (contratualismo –
direitos naturais – desigualdade entre homens – direitos civis como extensão dos
direitos naturais), Hobbes (Estado – soberano – sociedade civil como prevenção ao
extermínio de todos contra todos),22 parece se configurar como uma oposição clara
às forças explicativas que atribuíam direitos a partir de deduções da vontade
revelada de Deus.
Aliás, todos os esforços da Modernidade são, como se viu anteriormente, no sentido
de apresentar raciocínios plausíveis e laicos, para a fundamentação do convívio e do
estar em sociedade. O que se vê consagrar com a Revolução Francesa é
exatamente esta visão de mundo, expressa no art. 2 da Declaração Universal dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A finalidade de toda associação política
é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Tais direitos são a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.
Deste emaranhado de idéias, deste contexto de contraposição às forças medievais,
surge uma concepção de mundo que haverá de fundamentar os chamados direitos
humanos, pois, em verdade, a discussão sobre os direitos naturais fazia com que
estes navegassem apenas no plano dos direitos pensados filosoficamente, mas não
pudessem ser invocados como direitos efetivos socialmente. O que se percebe, a
partir do marco da Revolução Francesa, 1789, é a transformação dos direitos
pensados em direitos efetivados, de modo a que boa parte do ideário e do projeto
dos filósofos modernos se tornasse cartilha de cidadania a partir da eclosão do
movimento popular francês. A este respeito, leia-se:
“Dentre as obras de todos os philosophes do século, as de Montesquieu e
Rousseau foram as que mais influíram sobre o espírito dos revolucionários
de 1789: aquele, pela idéia da necessidade de uma limitação institucional
de poderes dos governantes, e este, pelo princípio de que a vontade geral
do povo é a única fonte de legitimidade dos governos” (Comparato, A
afirmação histórica dos direitos humanos, 1999, p. 131).
A legalidade, assim, está representando a um só tempo um freio para as ações do
Estado (liberdade dos modernos), requisito indispensável para o laissez faire, e
também um importante instrumento de consagração dos direitos que decorrem da
natureza, e que devem ser reconhecidos e respeitados pelo Estado. Esta
concepção, que afirma a ligação liberdade-legalidade, é a tradução mais exata da
própria concepção, desenvolvida no pensamento kantiano, da liberdade de um que
se projeta sobre a dimensão da liberdade do outro, cujo único controle deve ser
dado pelo Estado, através da lei. O artigo 4a. da Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 é de leitura obrigatória neste momento:
“A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem:
em conseqüência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem
por limites os que assegurem aos demais membros da sociedade a fruição
desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei”.
22
“O “estado de natureza” tal como concebido por Hobbes ou até Locke é o contrário das idéias de
um direito natural. Mas também as concepções de Rousseau o contrariam. Nem o Lobo do homem
hobbesiano, nem o bom selvagem rousseauista, nem o homem que pratica o excesso de legítima
defesa lockeano” (Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de Arquimedes, 2001, ps. 38/39).
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Com a positivação dos direitos reclamados dentro do ideário intelectual moderno, os
assim chamados direitos naturais acabam por se exaurir no estatuto dos recémchamados direitos do homem e do cidadão. Isto também representou uma conquista
dos próprios pensadores jusnaturalistas, como afirma Luhmann,23 na medida em que
não se pode conceber o direito natural sem que este direito seja socialmente
garantido em sua vigência, sobretudo em face dos abusos de Estado e dos
privilégios das classes dominantes. Em especial, considerando-se a consagração
deste ideário de contenção da arbitrariedade pela legalidade, o art. 6o. da
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:
“A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de
recorrer pessoalmente, ou por meio de representantes, à sua formação. Ela
deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna. Todos os cidadãos,
sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as
dignidades, cargos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem
outra distinção a não ser a de suas virtudes e seus talentos”.
Isto foi exatamente o que permitiu a formação de uma cultura da positivação dos
direitos humanos, que passou a se dar através das legislações nacionais em
formação, das Constituições e de Declarações Internacionais, a exemplo do que
ocorreu na Declaração de Direitos da Constituição de 1791 na França:
o
“A Constituição garante, como direitos naturais e civis: 1 . Que todos os
cidadãos sejam admissíveis aos cargos e empregos, sem qualquer outra
o
distinção, a não ser a de suas virtudes e talentos; 2 . Que todos os tributos
sejam repartidos entre todos os cidadãos e de modo igual, na proporção de
o
seus recursos; 3 . Que os mesmos crimes sejam punidos com as mesmas
penas, sem distinção alguma de pessoas”.
5. O passo seguinte: a positivação e a trivialização dos direitos naturais
É certo que se a positivação do ideário jusnaturalista representa um importante
passo adiante na construção de um acervo de normas estatais reconhecedoras de
direitos naturais e imanentes à pessoa humana, após esta conquista, percebe-se
que o processo de positivação dos direitos naturais em direitos humanos acaba por
trivializá-los. Esta percepção está enquadrada dentro de um conjunto de outras
transformações que se dão na concepção de mundo após os séculos XVIII e XIX, e
que não deixam de se processar ao longo do século XX,24 e é exatamente isto que
levará ao desgaste as concepções de direitos humanos oriundas e praticadas a
partir daí.
23
“Ainda sob a proteção formal do direito natural realizou-se no século XVIII a transformação do
pensamento no sentido da total positivação da vigência do direito” (Luhmann, Sociologia do direito,
1984, p. 230).
24
“O traço mais característico do direito contemporâneo é, nestes termos, o fenômeno da positivação
(Luhmann, 1969:141). Embora a positivação seja um processo que já chamasse a atenção dos
juristas no início do século XIX e ali ganhasse os seus primeiros delineamentos teóricos, é no século
XX que ele se torna propriamente um patamar irrecusável de todas as construções jurídicas, sejam a
seu favor, sejam criticamente contra” (Ferraz Junior, A trivialização dos direitos humanos, Novos
Estudos CEBRAP, out.1990, p. 110).
12
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No contexto de positivação dos direitos, inclusive dos direitos naturais, surgem as
escolas positivistas, que haverão de criar uma ferrenha oposição aos jusnaturalistas,
na medida em que defendem uma certa oposição do direito positivo em face dos
direitos naturais.
De fato, as discussões passam a julgar as concepções do jusnaturalismo iluminista e
racionalista de místicas,25 na medida em que acreditam na tradução da natureza em
lei. O espírito do positivismo é antagônico à fetichização de direitos chamados de
naturais.26 Num período marcado pela ascensão da cultura cientificista – aliás,
contexto no qual as Grundlinien de Hegel vão dar alento específico à consolidação
da Filosofia do Direito, no lugar do Direito Natural - as questões da filosofia se
resumem a ser as questões postas e impostas pelo dogmatismo científico-positivo, e
isto inclusive, haveria de influenciar o espectro de atuação e o âmbito de reflexão da
própria Filosofia do Direito, que, com Kelsen (século XX), tornar-se-á apenas a
manifestação de uma Teoria Geral do Direito, de uma Ciência Geral das Ciências
Jurídicas; nesta perspectiva, a questão da justiça, para a Filosofia do Direito, é
julgada como uma espécie de absurdum, um objeto incognoscível, e, portanto, nãocientífico para suas perspectivas teóricas.27
Em tempos em que a vontade do legislador impera, vale mais pensar e acreditar
naquilo que se vê, do que naquilo que se pode imaginar como sendo a natureza
humana. O Direito, na era positivista, passa a representar apenas o fruto do arbítrio
do legislador, algo que é produto único e exclusivo de uma penada do legislador,
que é mero ato de imposição unilateral de ordem e poder, que é pura manifestação
cerebrina do legislador (justa ou injusta, certa ou errada, totalitária ou democrática,
viciada ou virtuosa, corrupta ou proba...). Como afirma Bobbio, o positivismo
jusfilosófico inventa a indisposição entre o direito positivo e o direito natural:
“Voltando ao assunto de nosso curso, o positivismo jurídico é uma
concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’
não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo
passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do
positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o
direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o
direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo
‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se
quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela
doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (Bobbio,
O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, 1995, p. 26).
25
“Com efeito, boa parte das críticas positivistas ao jusnaturalismo são críticas não a este, mas ao
jusracionalismo, sobretudo na sua versão iluminista. No limite, o jusnaturalismo criticado é uma
invenção do juspositivismo” (Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de Arquimedes, 2001, p. 154).
26
“Ainda por aqui o “direito natural” estava destinado a ser superado pela perspectiva do positivismo
jurídico – pela ciência positivístico-legalista, com a sua conseqüência ou a sua realização dogmática
no “positivismo científico”.” (Neves, Castanheira A., A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto
da Crise Global da Filosofia, 2003, p. 33).
27
“Para uns, os positivistas legalistas, o Direito não é mais que um conjunto, de regras e/ou normas
(cremos que as expressões são sinônimas) estaduais, coercivas e visando a organização social.”
(Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de Arquimedes, 2001, p. 137).
13
Esta visão, profundamente influenciada pelas categorias do pensamento positivista e
cientificista, ainda carregada por um conjunto de outras transformações sociais e
técnicas que criam as figuras modernas do homo faber e hodierna do animal
laborans,28 permite a construção de direitos superfluídos, na medida em que sua
presença em sociedade é reconhecida e obrigatória, filosoficamente pertinente e
politicamente correta, mas sempre tão abstrata e tão carente de sedimentação
prático-operacional que nunca, ou quase nunca, podem ser cobrados ou tornados
medidas de transformação da sociedade.
A banalização dos direitos naturais em estatutos de direitos humanos positivados
torna-os, além de direito positivo (com valor de qualquer outro conteúdo de direito
positivo, na medida em que podem ser revogados e substituídos a qualquer tempo),
uma experiência trivializada de direitos, para utilizar-me de uma linguagem
empregada por Tercio Sampaio Ferraz Junior.29 A fungibilidade do que se põe como
conteúdo de um “direito humano” torna-o tão frágil e tão substituível quanto qualquer
outro direito, na medida em que sua difusão não garantiu a salvaguarda real das
pessoas contra o arbítrio.30 De fato: “A constitucionalização dos direitos do homem,
no mundo contemporâneo, na forma de declarações conjugadas a garantias, tornaos, pois, direitos triviais na proporção em que eles proliferam, se difundem e se
alteram” (Ferraz Junior, A trivialização dos direitos humanos, Novos Estudos
CEBRAP, out.1990, p. 111).
Conclusões
O que se pode reter como síntese destas reflexões é a preocupação aqui
estabelecida de buscar os fundamentos e as origens do que se chama
hodiernamente de “direitos humanos”, sabendo dos problemas de eficácia que
testam a própria existência jurídica desta categoria especial de direitos.
28
“A filosofia do animal laborans deste modo assegura ao direito, enquanto objeto de consumo, uma
enorme disponibilidade de conteúdos” (Ferraz Junior, A trivialização dos direitos humanos, Novos
Estudos CEBRAP, out.1990, p. 110).
29
“E esta é, provavelmente, a conseqüência mais perversa da trivialização dos direitos do homem em
nossos tempos, em que todos somos funcionalmente responsáveis pelos atos da coletividade, mas a
ninguém em particular – como pessoa – se pode imputar esta responsabilidade. Isto é, somos
responsáveis como cidadãos, como funcionários administrativos, como membros de uma sociedade
recreativa, como maiores de 18 ou 21 anos, em um palavra, como uma variável que se preenche
quando assumimos uma função” (Ferraz Junior, A trivialização dos direitos humanos, Novos Estudos
CEBRAP, out.1990, p. 115).
30
“A maior prova da imperiosidade hodierna dos Direitos Humanos é a conversão hipócrita de todas
as ditaduras do mundo ao seu discurso, à sua vã invocação. Mas, apesar de assistirmos a tão
grotesco coro de falsos defensores dos direitos, a verdade é que, embora com conversões mais ou
menos sinceras aqui e ali pelo mundo, eles continuam a ser um paradigma ocidental. Tal como aliás,
sucedeu antes com o paradigma de Constituição, criação tipicamente e especificamente ocidental,
também banalizado pela difusão imitativa e pro domo” (Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de
Arquimedes, 2001, p. 172).
14
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Neste percurso, de índole histórico-filosófica, buscou-se demonstrar o quanto o
projeto da modernidade albergava, dentro de si, uma busca de garantias reais e
positivas de direitos que haveriam de salvaguardar a pessoa humana (o indivíduo ou
o cidadão), diante dos abusos e deslimites do poder.
A concepção, portanto, de direitos humanos nasce de uma reflexão, tornada objeto
positivo de direito, em princípio, por conta de uma oposição à fundamentação
metafísica dos direitos, e, em segundo plano, como uma perspectiva de projeção
futura de um ideário anti-absolutista e opressor. Neste plano é que se encontra a
necessidade de afirmação de uma ligação direta entre a força econômica, a força
política e a força ideológica do movimento que culmina com a afirmação positiva dos
direitos humanos, que se proclamam por gerações e mais gerações desde então.
Não se pode dizer que a pós-modernidade abole a modernidade, e nem mesmo que
as distorções no uso dos direitos humanos redundam numa negação desta categoria
de direitos. Pelo contrário, seus fundamentos mudaram, não se trata mais de
verifica-los como revelações da Razão, como instâncias Universais, como valores
Atemporais, mas como construtos histórico-culturais de profunda significação para a
garantia e preservação da dignidade da pessoa humana.
Independente dos fundamentos, bem como das discussões que opõem positivistas a
naturalistas, o fato é que, para concluir, se pode concordar com Paulo Ferreira da
Cunha quando afirma:
a) “Os Direitos Humanos renovaram a face do Direito, embora ainda esteja
por fazer a sua completa harmonização, designadamente quanto a uma
teoria compreensiva quer dos direitos, liberdades e granatias, quer dos
direitos sociais, econômicos e culturais. O sopro de ar fresco epistemológico
permite hoje pensar conscientemente três épocas (três paradigmas) no
Direito, depois da sua afirmação epistemológica, no ius redigere in artem: o
direito objectivo clássico, o direito subjectivo moderno, e hoje, o direito
social, que todavia ainda aguarda a sua revolução coperniciana... ou
einsteiniana..., e de que os direitos humanos são uma espécie de profeta
anunciador.
b) “Os direitos humanos persistem como instância crítica, política e antipositivista do Direito, apesar de todos quantos se converteram a um
direitohumanismo positivista, de ritual elaboração e exegese se textos
pseudo-protectores, mas recuperados e cristalizadores quantas vezes.
c) “Os direitos humanos, religião nova que une o Homem à sua Natureza e
o Direito à justiça, encontram-se ameaçados por heresias que podem fazêlos sucumbir, por metamorfose em coisa muito diversa: especialmente a
heresia pseudo-anti-discriminatória, que clamado por igualdade só sabe
cavar fossos e levantar barreiras de novas desigualdades, e a heresia
totalitária, que pretensamente zelosa pela pureza dos direitos pode
transformar-se numa polícia difusa do pensamento, nomeadamente pondo
em perigo, para já, as liberdades religiosa, de expressão, de ensino, etc...
(Cunha, Paulo Ferreira da, O Ponto de Arquimedes, 2001, ps.189/190).
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