edição 8 - Janeiro 2003 Alimentos e evolução humana Mudança alimentar foi a força básica para sofisticação física e social por William R. Leonard Humanos, estranhos primatas. Andamos sobre duas pernas, possuímos cérebros enormes e colonizamos cada canto da Terra. Antropólogos e biólogos procuraram sempre entender como a nossa raça diferenciou-se tão profundamente do modelo primata. Foram desenvolvidos, ao longo dos anos, todos os tipos de hipóteses, visando explicar cada uma dessas particularidades. Um conjunto de evidências, porém, indica que essas idiossincrasias mistas de humanidade têm, na realidade, uma linha em comum: elas são, basicamente, o resultado da seleção natural, atuando para maximizar a qualidade dietética e a eficiência na obtenção de alimentos. Mudanças na oferta de alimentos parecem ter influenciado fortemente nossos ancestrais hominídeos. Assim, em um sentido evolutivo, somos o que comemos. Conseqüentemente, o que comemos é ainda uma outra forma pela qual nos diferenciamos de nosso parente primata. Populações de humanos contemporâneos pelo mundo afora, adotam dietas mais calóricas e nutritivas que aquelas de nossos primos, os grandes macacos. Então, quando e como os hábitos alimentares de nossos ancestrais divergiram dos hábitos de outros primatas? Além disso, quanto os humanos modernos se distanciaram do padrão alimentar ancestral? O interesse científico na evolução das necessidades nutricionais humanas tem uma longa história. Investigações relevantes começaram a ganhar espaço a partir de 1985, quando S. Boyd Eaton e Melvin J. Konner, da Emory University, publicaram um artigo no New England Journal of Medicine intitulado "Nutrição Paleolítica". Eles argumentam que a prevalência de muitas doenças crônicas nas sociedades modernas - entre elas obesidade, hipertensão, doenças coronarianas e diabetes - seriam o resultado de uma incompatibilidade entre padrões dietéticos modernos e o tipo de dieta que nossa espécie desenvolveu para se alimentar como caçadorescoletores pré-históricos. Desde então, a compreensão da evolução das necessidades nutricionais humanas tem avançado consideravelmente - graças, em parte, às análises comparativas entre populações de humanos vivendo tradicionalmente e outros primatas -, emergindo daí um retrato com mais nuances. Sabemos, agora, que os humanos evoluíram não para subsistirem com uma dieta paleolítica única, mas para desfrutarem de um padrão alimentar diversificado. Fósseis indicam que nossos antepassados mais antigos, os australopitecos, eram, há cerca de quatro milhões de anos, bípedes. No caso do A. afarensis (à direita), um dos mais antigos hominídeos, as características incluem o arco dos pés, o polegar não-opositivo e certas características dos joelhos e da pelve. Esses hominídeos, porém, mantiveram algumas características dos macacos como pernas curtas, braços mais longos e dedos dos pés e das mãos curvados, entre outros aspectos Para se compreender o papel da alimentação na evolução humana, devemos nos lembrar de que a procura pelo alimento, seu consumo e, finalmente, como ele é usado para processos biológicos são, todos, aspectos críticos da ecologia de um organismo. A energia dinâmica entre organismos e seus ambientes, ou seja, a energia despendida comparada à energia adquirida, tem conseqüências adaptativas importantes para a sobrevivência e reprodução. Esses dois componentes da aptidão darwiniana refletem-se na forma como estimamos o estoque de energia de um animal. A energia de manutenção é o que mantém um animal vivo. A energia produtiva está associada à concepção e manutenção da prole para a próxima geração. Para mamíferos, isso deve cobrir as demandas das mães durante a gravidez e lactação. O tipo de ambiente que uma criatura ocupa irá influenciar a distribuição de energia entre esses componentes, em que condições mais duras representam, obviamente, maiores dificuldades. No entanto, o objetivo de todos os organismos é o mesmo: assegurar a reprodução, visando garantir, a longo prazo, o sucesso das espécies. Portanto, ao observarmos a forma como os animais se deslocam para obter a energia alimentar, podemos compreender melhor como a seleção natural produz a mudança evolutiva. Os cérebros ficaram maiores e cada vez mais, ao longo do tempo, energeticamente exigentes. O cérebro humano moderno responde por 10 a 12% da demanda de energia de um corpo em repouso, comparada ao cérebro do australopiteco. Tornando-se bípedes Sem excessão, os primatas não-humanos deslocam-se habitualmente sobre os quatro membros quando estão no chão. Os cientistas geralmente assumem que o último ancestral comum dos humanos e dos chimpanzés (nosso parente vivo mais próximo) também era um quadrúpede. Desconhecemos quando, exatamente, o último ancestral comum viveu. Mas indicações claras de bipedalismo - a característica que distinguiu os antigos humanos dos outros macacos - são evidentes nas espécies mais antigas conhecidas do australopitecus, que viveu na África por volta de 4 milhões de anos atrás. Idéias sobre a evolução do bipedalismo são comuns na literatura paleoantropológica. C. Owen Lovejoy, da Kent State University, propôs, em 1981, que a locomoção sobre as duas pernas liberou os braços para carregar crianças e objetos. Recentemente, Kevin D. Hunt, da Indiana University, sugeriu que o bipedalismo emergiu como uma postura de alimentação, por ter permitido o acesso a alimentos que antes estavam fora de alcance. Peter Wheeler, da John Moores University, Liver- pool, acrescentou que, ao se erguerem, os antigos humanos puderam regular melhor a temperatura corporal, expondo menos o corpo ao calor abrasador africano. A lista continua. Uma série de fatores provavelmente influenciou esse tipo de locomoção. Minha própria pesquisa, conduzida em colaboração com minha esposa, Márcia L. Robertson, sugere que o bipedalismo desenvolveu-se em nossos ancestrais, pelo menos em parte, por ser menos dispendioso energeticamente que o deslocamento sobre quatro membros. Nossas análises dos custos de energia do movimento em animais demonstraram que, no geral, a maior demanda depende do peso do animal e da velocidade com que ele se desloca. O mais surpreendente no movimento bipedal humano é que ele é notadamente mais econômico que o deslocamento quadrupedal em velocidade de marcha. A evolução maior dos primeiros hominídeos ocorreu em pastos e espaços de terra mais abertos, onde a sustentação é mais difícil. Sem dúvida, os caçadores-coletores humanos modernos que vivem nesses ambientes, e que nos oferecem o melhor modelo disponível dos padrões de subsistência dos humanos primitivos, freqüentemente se deslocam 12 km por dia em busca de alimentos. Quanto aos hominídeos que viveram entre 5 milhões e 1,8 milhão de anos atrás, durante o Plioceno, a mudança climática estimulou essa revolução morfológica. À medida que o continente africano foi se tornando mais árido, florestas deram lugar a pastos, deixando os recursos alimentares distribuídos mais irregularmente. O bipedalismo, nesse contexto, pode ser visto como uma das primeiras estratégias na evolução nutricional humana, um padrão de movimento que teria reduzido substancialmente o número de calorias despendidas na coleta de alimentos. O que é extraordinário em nosso cérebro grande, sob uma perspectiva nutricional, é o quanto de energia ele consome- aproximadamente 16 vezes mais que um tecido muscular por unidade de peso. Porém, apesar de os humanos apresentarem, quanto ao peso corporal, cérebros maiores que os dos outros primatas (três vezes maior que o esperado), as necessidades totais de energia em repouso do corpo humano não são maiores que a de qualquer outro mamífero do mesmo porte. Usamos uma grande parte de nossa quota diária de energia para alimentar nossos cérebros vorazes. Na verdade, o metabolismo de um cérebro em repouso ultrapassa de, 20 a 25%, as necessidades de energia de um humano adulto - bem mais que os 8 a 10% observados em primatas não humanos, e que os 3 a 5% em outros mamíferos. Baseando-nos nas estimativas de tamanho corporal de hominídeos compiladas por Henry M. McHenry, da University of California, em Davis, Robertson e eu estimamos a proporção das necessidades de energia em repouso que poderiam ser necessárias para alimentar os cérebros de nossos antigos ancestrais. Um australopiteco típico, pesando entre 35 e 40 kg, com um cérebro de 450 cm3, teria reservado cerca de 11% de sua energia em repouso para o cérebro. Enquanto um H. erectus, pesando entre 55 e 60 kg e com um cérebro de cerca de 850 cm3, teria reservado cerca de 16% de sua energia em repouso - ou seja, cerca de 250 das 1.500 kcal diárias - para este órgão. Como teria evoluído esse cérebro tão energeticamente dispendioso? Uma teoria, desenvolvida por Dean Falk, da State University of New York, Albany, sustenta que o bipedalismo permitiu aos hominídeos resfriar o sangue cranial e, conseqüentemente, liberar o cérebro sensível do calor de temperaturas agressivas que haviam colocado em cheque o seu tamanho. Suspeito que vários fatores estiveram em jogo, mas a expansão do cérebro quase que certamente não teria ocorrido se os hominídeos não tivessem adotado uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes, para suportar os custos associados. Estudos comparativos em animais vivos sustentam essa afirmação. Além de todos os primatas, espécies com cérebros maiores ingerem alimentos mais ricos; os humanos são um exemplo extremo dessa correlação, ostentando o maior tamanho relativo de cérebro e a dieta mais variada. Conforme as análises recentes de Loren Cordain, da Colorado State University, os caçadores-coletores contemporâneos obtêm, em média, 40 a 60% de energia da carne, do leite e de outros produtos de origem animal. Chimpanzés modernos, em comparação, obtêm somente entre 5 e 7% de suas calorias provenientes dessas fontes. Alimentos de origem animal contêm bem mais calorias e nutrientes que a maioria dos alimentos vegetais. Por exemplo, 100 g de carne geram acima de 200 kcal. A mesma quantidade de frutas libera entre 50 e 100 kcal. Uma porção comparável de verduras produz somente entre 10 e 20 kcal. Faz sentido, então, que, para o antigo Homo, adquirir mais matéria cinzenta significou procurar alimentos energeticamente mais densos. Os fósseis, também, indicam que a melhoria na qualidade dietética acompanhou o crescimento evolutivo do cérebro. Todos os australopitecos apresentavam características esqueléticas e dentais estruturadas para processar alimentos vegetais duros e de baixa qualidade. O australopiteco mais antigo e robusto - um ramo da outra ponta da árvore genealógica humana, que viveu lado a lado com membros de nosso próprio gênero - teve adaptações especialmente pronunciadas para triturar alimentos vegetais fibrosos, in- cluindo faces maciças em forma de prato, mandíbulas fortemente estruturadas; cristas sagitais, no alto do crânio, para a fixação de potentes músculos mastigatórios; e dentes molares enormes e fortemente esmaltados. (Isto não significa que os austrolopitecos nunca comiam carne. Eles certamente ingeriam este alimento, oca- sionalmente, tal como os chimpanzés de hoje.) Mas, membros mais antigos do gênero Homo, descendentes dos graciosos australopitecos, possuíam faces e molares menores, mandíbulas mais delicadas, e não apresentavam cristas sagitais - apesar de serem bem maiores, em termos de porte corporal total, que seus predecessores. Em conjunto, essas estruturas sugerem que o Homo ancestral consumia menos matéria vegetal e mais alimentação animal. Quanto ao que empurrou o Homo para uma qualidade dietética maior, necessária para o crescimento cerebral, a mudança ambiental parece ter sido, mais uma vez, o ponto de mutação evolucionário. A crescente aridez da paisagem africana limitou a quantidade e variedade de alimentos vegetais comestíveis, disponíveis aos hominídeos. Aqueles na mesma linha que deu origem aos robustos australopitecos enfrentaram morfologicamente esse problema, desenvolvendo especificidades anatômicas que permitiram a subsistência com alimentos de mastigação mais difícil, porém com maior disponibilidade. O Homo percorreu outro caminho. A disseminação de pastos também resultou em um aumento na abundância relativa de mamíferos de pasto, como o antílope e a gazela, criando oportunidades para os hominídeos capazes de explorá-los. O H. erectus o fez, desenvolvendo a primeira economia caça-e-coleta, em que animais de caça eram uma parte significativa da dieta e os recursos eram compartilhados entre os membros dos grupos de suprimento. Sinais dessa revolução comportamental são visíveis nos registros arqueológicos, que apontam um aumento de carcaças de animais em sítios de hominídeos durante esse período, junto com evidências de que as presas eram abatidas com utilização de utensílios de pedra. Essas mudanças na dieta e comportamento de coleta não tornaram nossos ancestrais exclusivamente carnívoros. Mas, a adição de pequenas porções de comida animal ao cardápio, combinada com a divisão dos recursos que é peculiar aos grupos de caça e coleta, teria significantemente aumentado a qualidade e estabilidade das dietas dos hominídeos. Uma melhor qualidade dietética, por si só, não explica por que os cérebros dos hominídeos cresceram, mas parece ter desempenhado um papel crítico na eclosão daquela mudança. Após um grande estímulo inicial no crescimento do cérebro, a dieta e a expansão desse órgão provavelmente interagiram em sinergia; cérebros maiores produziram comportamento social mais complexo, o que conduziu a outras estratégias em táticas de suprimento e a uma melhor alimentação que, por sua vez, fomentou a evolução adicional do cérebro. Um banquete itinerante A evolução do h. erectus na África, 1,8 milhão de anos atrás, marcou a terceira virada na evolução humana: o movimento inicial dos hominídeos para fora da África. Até recentemente, a localização e as idades dos sítios fósseis conhecidos sugeriam que os primeiros Homo permaneceram sedentários por poucas centenas de milhares de anos antes de se aventurarem a espalhar-se pelo resto do Velho Mundo. Estudos antigos indicaram que o aperfeiçoamento da tecnologia de ferramentas, cerca de 1,4 milhão de anos atrás - ou seja, o advento do machado de mão acheliano -, permitiu aos hominídeos deixar a África. Porém, o geocronologista Carl Swisher III, da Rutgers University, e colegas têm demonstrado que os primeiros sítios do H. erectus fora da África, situados na Indonésia e na República da Geórgia, datam de 1,8 milhão e 1,7 milhão de anos atrás, respectivamente. Parece que o surgimento do H. erectus e sua disseminação fora da África foram quase que simultâneos. O êxodo africano começou tão logo o H. erectus se desenvolveu, por volta de 1,8 milhão de anos, em parte, provavelmente, porque ele precisava de um espaço maior que seus predecessores de menor porte. O ímpeto por trás dessa nova maneira de errar pelo mundo, novamente, parece ter sido o alimento. O que um animal come é o que define a área que ele demanda para sobreviver. Animais carnívoros geralmente necessitam de muito mais território que os herbívoros de porte compatível, pois têm menos calorias totais disponíveis por unidade de área.Sendo o H. erectus mais encorpado e cada vez mais dependente de dieta animal, provavelmente precisaria de uma gleba maior que os australopitecos, menores e mais vegetarianos. Utilizando dados de primatas contemporâneos e de humanos caçadores-coletores como guia, Robertson, Susan Antón, da Rutgers University, e eu calculamos que a estrutura corporal maior do H. erectus, combinada com o aumento moderado de consumo de carne, demandaria de 8 a 10 vezes mais território se comparado ao espaço requerido pelo tardio australopiteco - suficiente para explicar a abrupta expansão de espécies fora da África. Ainda não sabemos exatamente a que distância, para além do continente, esta mudança teria levado o H. erectus, mas eles podem ter sido motivados e guiados a essas terras distantes por rebanhos de animais migratórios. Ao mudarem para latitudes nórdicas, os humanos encontraram novos desafios alimentares. Os neandertais, que viveram durante as últimas eras de gelo na Europa, estiveram entre os primeiros humanos a habitar a região ártica, e eles, quase que certamente, teriam necessitado de uma oferta calórica maior para viver sob aquelas circunstâncias. Pistas de quais teriam sido essas demandas de energia são fornecidas por dados de populações humanas tradicionais que habitam hoje as regiões árticas. As populações siberianas de criadores de rena, conhecidas como evenki - que estudei com Peter Katzmarzyk, da Queen's University, Ontário, e Victoria A. Galloway, da University of Toronto, ambas no Canadá - e as populações de inuits (esquimós) do Canadá Ártico apresentam índices de metabolismo em repouso 15% acima do observado em pessoas de porte similar vivendo em ambientes temperados. As atividades energeticamente mais dispendiosas associadas à vida em um clima nórdico elevaram a demanda calórica. Na verdade, enquanto um homem americano pesando 73 kg e levando uma vida urbana necessita de cerca de 2.600 kg por dia, um diminuto homem evenki pesando 57 kg, necessita de mais de 3 mil kcal/dia para se sustentar. Usando essas populações nórdicas modernas como referência, Mark Sorensen, da Northwestern University, e eu estimamos que os neandertais, provavelmente, teriam necessitado de cerca de 4 mil kcal/dia para sobreviver. Por terem sido capazes de preencher essas demandas, e pelo longo tempo que o fizeram, muito sobre suas habilidades como coletores é revelado (ver box). Dilemas Modernos Assim como as pressões para melhorar a qualidade alimentar influenciaram a evolução dos primeiros humanos, também esses fatores desempenharam um papel crucial nas expansões mais recentes do tamanho populacional. Inovações como cozimento, agricultura e mesmo aspectos da tecnologia alimentar moderna podem, todos, ser considerados táticas para elevar a qualidade da dieta humana. Cozinhar, por um lado, aumenta a energia disponível em alimentos vegetais selvagens (ver box da pág. 80). Com o advento da agricultura, os humanos começaram a manipular espécies de plantas marginais, visando maior produtividade, digestibilidade e conteúdo nutricional - tornando as plantas essencialmente mais próximas dos alimentos animais. Esse tipo de improviso continua hoje, com a manipulação genética de espécies para a produção de "melhores" frutas, vegetais e grãos. Da mesma forma, o desenvolvimento de suplementos nutricionais, que substituem refeições, é uma continuação da tendência iniciada por nossos ancestrais: obter o máximo de retorno nutricional, no menor volume e com o mínimo esforço físico. A estratégia evidentemente funcionou: os humanos estão aqui hoje, e em números recordes. O testamento mais contundente, porém, da importância de alimentos ricos em energia e nutrientes na evolução humana, talvez esteja na observação de que tantas preocupações com a saúde, que atormentam as sociedades em todo o planeta, tenham origem nos desvios da dinâmica energética estabelecida por nossos ancestrais. Para as crianças em populações rurais de regiões em desenvolvimento, dietas de baixa qualidade resultam em crescimento físico deficiente e altas taxas de mortalidade nos primeiros anos de vida. Nesses casos, os alimentos oferecidos às crianças após o desmame não são, em geral, nutritivos e energeticamente fortes o suficiente para suprir as extensas necessidades associadas a esse período. Apesar de essas crianças, ao nascerem, apresentarem altura e peso tipicamente similares às de crianças norte-americanas, por exemplo, são menores e mais leves por volta dos três anos, assemelhando-se, freqüentemente, aos pequenos 2 ou 3% das crianças norte-americanas da mesma idade e sexo. Estamos encarando o problema oposto no mundo industrial: os registros de obesidade na infância e na vida adulta estão crescendo, porque nosso desejo por alimentos ricos em energia - notadamente aqueles que incluem gordura e açúcar - tornaram-se muito disponíveis e relativamente baratos. Conforme estimativas recentes, mais da metade dos adultos norte-americanos estão acima do peso. A obesidade também apareceu em algumas re giões em desenvolvimento, onde, até há uma geração, era virtualmente desconhecida. Esse aparente paradoxo surgiu quando pessoas que cresceram malnutridas se mudaram das áreas rurais para lugares urbanos, onde o alimento tem disponibilidade imediata. A obesidade e outras doenças comuns do mundo moderno, de alguma forma, são extensões de um contexto que começou há milhões de anos. Nós somos vítimas de nosso próprio sucesso evolutivo, desenvolvendo uma dieta calórica concentrada, mas minimizando a quantidade de energia de manutenção despendida em atividade física. Não foram somente as mudanças na dieta que difundiram muitos dos nossos problemas de saúde, mas a interação entre trocas alimentares e mudanças no estilo de vida. Os problemas de saúde modernos são, com freqüência, retratados como o resultado da ingestão de alimentos "ruins", que são desvios da dieta humana natural - uma supersimplificação incorporada pelo debate atual sobre os méritos relativos de uma dieta superprotéica e rica em gorduras tipo-Atkins, ou uma alternativa pobre em gorduras, que enfatiza carboidratos complexos. Essa é uma visão fundamentalmente equivocada de se enfocar as necessidades nutricionais humanas. A nossa espécie não está apta a subsistir com uma dieta única e ideal. O que é singular nos seres humanos é a extraordinária variedade do que comemos. Fomos capazes de prosperar em quase todos os ecos- sistemas sobre a Terra, consumindo desde alimentos de origem animal, entre as populações do Ártico, até, basicamente, tubérculos e cereais, entre as populações dos Andes. Sem dúvida, um marco da evolução humana tem sido a diversidade de estratégias que desenvolvemos para criar dietas adequadas às nossas necessidades, e a sempre crescente eficiência com que extraímos energia e nutrientes do ambiente. O desafio que as sociedades enfrentam agora é o balanceamento entre as calorias que consumimos e as que queimamos. O Uso do Fogo A ingestão de mais alimentos de origem animal é uma forma de aumentar a densidade calórica e nutricional, uma mudança que parece ter sido crítica na evolução da raça humana. Mas poderiam nossos antepassados ter melhorado a qualidade alimentar de outra forma? Richard Wrangham, da Harvard University, e colegas recentemente pesquisaram a importância do cozimento na evolução humana. Eles demonstraram que cozinhar não só faz com que os vegetais fiquem mais macios e fáceis de se mastigar, como aumenta substancialmente o conteúdo energético disponível, particularmente em tubérculos feculosos como a batata e a mandioca. Quando crus, as féculas não são imediatamente quebradas pelas enzimas do corpo humano. Quando aquecidos, porém, esses carboidratos complexos tornam-se mais digestíveis e, portanto, liberam mais calorias. Os pesquisadores propuseram que o Homo erectus foi, provavelmente, o primeiro hominídeo a usar o fogo para cozinhar há, talvez, 1,8 milhão de anos. O cozimento de vegetais, especialmente tubérculos, permitiu a expansão do cérebro, argumentam Richard Wrangham, da Harvard University, e colaboradores Eles sustentam que aquele cozido antigo de vegetais (especialmente tubérculos) permitiu à espécie desenvolver dentes pequenos e cérebros maiores que seus antecessores. Além disso, as calorias extras permitiram ao H. erectus começar a caçar - uma atividade energeticamente dispendiosa - com maior freqüência. Sob uma perspectiva energética, essa é uma linha suficientemente lógica de raciocínio. O que fica difícil de aceitar nessa hipótese é a evidência arqueológica que a equipe de Wrangham utiliza para defendê-la. Os autores citam sítios do leste africano, Koobi Fora e Chesowanja, datados em torno de 1,6 e 1,4 milhão de anos, respectivamente, para indicar o controle do fogo pelo H. erectus. Esses locais, realmente, mostram evidências de fogueiras, mas se hominídeos foram os responsáveis por essas fogueiras é um assunto a ser debatido. A mais antiga e inequívoca manifestação do uso do fogo - fornos de pedra e ossos de animais queimados em sítios na Europa - datam somente de cerca de 200 mil anos. O cozimento foi claramente uma inovação que melhorou substancialmente a qualidade da alimentação humana. Mas ainda continua incerto quando essa prática apareceu. - W. R. L. Caçadores Neandertais Para reconstruir o que os primeiros humanos comeram, pesquisadores têm, tradicionalmente, estudado sinais característicos em dentes fossilizados e crânios, restos arqueológicos de atividades relacionadas à alimentação, e às dietas de humanos e macacos vivos. Mas, cada vez mais, os investigadores estão extraindo uma outra fonte de dados; a composição química de fósseis de ossos. Essa abordagem tem permitido descobertas especialmente intrigantes com relação aos neandertais. Michael Richards, atualmente na University of Bradford, Inglaterra, e colegas examinaram, recentemente, isótopos de carbono (13C) e nitrogênio (15N) em ossos de neandertais de 29 mil anos da Caverna Vindija, Croácia. As proporções relativas desses isótopos na parte protéica do osso humano, conhecida como colágeno, refletem diretamente a quantidade de proteína da dieta do indivíduo. Assim, pela comparação isotópica das "assinaturas" nos ossos dos neandertais com a de outros animais vivendo no mesmo ambiente, os autores puderam determinar se a massa protéica obtida pelos neandertais era proveniente de vegetais ou animais. As análises demonstram que os neandertais de Vindija apresentavam níveis de 15N comparáveis àqueles vistos em carnívoros do norte, como as raposas e os lobos, indicando que eles As refeições neandertais consistiam principalmente em carne, de acordo com obtiveram quase toda sua proteína dietética de alimentos de origem animal. análises químicas de ossos Um trabalho anterior sugeriu que a ineficiência no suprimento pode ter sido um fator do subseqüente fim dos neandertais. Mas Richard e colaboradores argumentam que, para consumir tanto alimento de origem animal, como eles aparentemente o fizeram, os neandertais devem ter sido caçadores exímios. Essas descobertas são parte de um corpo crescente de literatura, sugerindo que o comportamento de subsistência dos neandertais era mais complexo que o previamente imaginado (ver "Who Were the Neandertals?" de Kate Wong; SCIENTIFIC AMERICAN, Abril 2000). - W. R. L. A Diversidade das dietas A ariedade de estrtégias alimentares de sucesso, empregadas pelas populações que vivem tradicionalmente, proporcionam uma perspectiva importante no avanço dos debates sobre como regimes com índices altos de proteína e baixos de carboidrato, como a dieta de Atkins, comparam-se com os que destacam carboidratos complexos e restrição à gordura. Não é surpresa o fato de que esses dois esquemas produzem perda de massa, porque ambos ajudam as pessoas a diminuir o peso através do mesmo mecanismo básico: limitando as maiores fontes de calorias. Quando você cria um déficit de energia - ou seja, quando você consome menos calorias do que despende -, seu corpo começa a queimar seus estoques de gordura e você perde peso. Uma questão maior sobre as dietas saudáveis de manutenção ou de perda de peso é se elas criam padrões alimentares mantidos ao longo do tempo. Nesse ponto, parece que as dietas que limitam em excesso grandes categorias de alimentos (carboidratos, por exemplo) são muito mais difíceis de serem mantidas que as dietas que restringem moderadamente. No caso do regime tipo - Atkins, existe uma preocupação com as potenciais conseqüências, a longo prazo, da ingestão de alimentos provindos, em sua maior parte, de animais confinados, com tendência a conter mais gordura e mais colesterol "ruim". Em setembro, o National Academy of Science Institute of Medicin lançou novas diretrizes de dieta e exercício que captam bem as idéias apresentadas aqui. Não apenas o Instituto estabeleceu faixas maiores para a quantidade de carboidratos, gorduras e proteínas condizentes com uma dieta saudável - reconhecendo que existem várias formas de suprir as necessidades nutricionais -, como dobrou a quantidade recomendada de atividade física moderadamente intensa para uma hora por dia. Ao seguir essas informações e balanceando o que comemos com exercícios, podemos viver não só de uma forma parecida com os evenki da Sibéria e outras sociedades tradicionais, como também com os nossos ancestrais hominídeos. - W. R. L. Para conhecer mais Evolutionary Perspectives on Human Nutrition: The Influence of Brain and Body Size on Diet and Metabolism. William R. Leonard e Marcia L. Robertson in American Journal of Human Biology, Vol. 6, páginas 77- 88; Janeiro de 1994. Rethinking the Energetics of Bipedality. William R. Leonard e Marcia L. Robertson in Current Anthropology, Vol. 38, páginas 304 - 309;abril de 1997. Human Biology: An Evolutionary and Biocultural Approach. Editado por Sara Stinson, Barry Bogin, Rebecca Huss-Ashmore e Dennis O'Rourke. Wiley-Liss, 2000. Ecology, Health and Lifestyle Change among the Evenki Herders of Siberia. William R. Leonard, Victoria A. Galloway, Evgueni Ivakine, Ludmilla Osipova e Marina Kazakovtseva in Human Biology of Pastoral Populations. Editado por William R. Leonard and Michael H. Crawford. Cambridge University Press, 2002. An Ecomorphological Model of the Initial Hominid Dispersal from William R. Leonard é professor de antropologia na Northwestern University. Ele nasceu em Jamestown, N. Y. e recebeu seu Ph. D. em antropologia biológica na University of Michigan, Ann Arbor, em 1987. Autor de mais de 80 artigos de pesquisa sobre nutrição e energéticos entre as populações pré-histórias e contemporâneas, Leonard estudou grupos indígenas agricultores no Equador, Bolívia e Peru, e populações tradicionais de criadores de rebanhos nas regiões central e sul da Sibéria.