SÉRIOT, Patrick. Voloshinov e a filosofia da linguagem. Trad. de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. 126f. Anderson Silva* Publicado em 2015 pela Parábola Editorial, em meio a múltiplas vozes que vêm questionando o problema da autoria dos escritos do chamado Círculo bakhtiniano, chega ao público brasileiro a tradução em português da obra Voloshinov1 e a filosofia da linguagem, de Patrick Sériot. Este trabalho recente vem corroborar para o entendimento dos leitores brasileiros a respeito da questão do engendramento de um dos mais conhecidos trabalhos do Círculo. No início desse volume, há uma parte explicativa intitulada Sobre a transcrição da língua russa nesta tradução (p. 7), na qual o tradutor justifica a transliteração usada por Sériot para auxiliar na pesquisa das referências bibliográficas indicadas. A tradução dessa obra em português ficou aos cuidados de Marcos Bagno, apontando um cuidado da editora com o engendramento desse livro a partir de um respeitado profissional conhecedor da língua francesa e, ao mesmo tempo, um linguista e estudioso especialistas nos estudos da linguagem. Esse tradutor ressalta que duas obras de referência no campo das ciências da linguagem, no século passado, foram alvo de discussões a respeito da autoria de sua própria constituição. Uma delas é a obra de Ferdinand de Saussure, Curso de linguística geral, publicada em 1916. A segunda obra de referência que gerou polêmica é Marxismo e filosofia da linguagem2, doravante MFL, escrito por Voloshinov (um dos mais célebres membros do Círculo bakhtiniano) e publicada em 1929, em Leningrado. Fato a ressaltar foi justamente o interesse do tradutor em publicar, no Brasil, a partir da leitura do original da versão francesa e o prefácio, assinado por Sériot, da nova tradução de MFL feita em 2010 por Patrick Sériot e Inna Tylkowski-Aggeva. Logo no prefácio, apreende-se o tom dado por Sériot numa síntese do título escolhido: O Círculo de Bakhtin, precursor de análise do discurso? Grande mal-entendido. O 1 A obra original em francês e a tradução em português mantiveram a transliteração russa do sobrenome de Voloshinov, onde se lê sh, na obra está somente a letra s com um circunflexo (^) invertido em cima. Nesta resenha, por questão de não encontrarmos essa fonte específica no programa Word, resolvemos manter o sobrenome Voloshinov como é mais usualmente conhecido em diversas publicações. 2 Nota-se que entre as primeiras edições no Brasil, o nome de Bakhtin aparece em destaque e o de Volochinov entre parênteses na capa da obra. Vide: BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV, V.N.). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 9. ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999. Para aprofundamento, recomenda-se também a leitura de: CASTRO, G. O marxismo e a ideologia em Bakhtin. In: PAULA, L. de; STAFUZZA; G. (Org.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p. 175-202. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p 1 autor acaba engendrando em uma espécie de pergunta retórica, negando que o chamado Círculo tenha sido precursor de uma nova análise discurso, asseverando ser um malentendido. Entre as primeiras afirmações, o autor ratifica aspectos negativos das ciências humanas, dos quais destacamos os falsos consensos e verdades de maneiras categóricas sem apresentação de provas. Outra informação encontrada é a de que, tanto no Brasil quanto na França, a recepção dos textos dos intelectuais russos chegou por meio de uma espécie de “filtro de esquerda”. Destaca-se nesta parte também a leitura, muitas vezes submetida a distorções, de traduções que também influenciaram o entendimento e propagação de ideias distorcidas sobre os escritos dos intelectuais russos, ressaltando a necessidade de uma tradução mais adequada possível. Com relação a divisão metodológica da obra, o título principal que engloba as 04 partes é denominado Voloshinov, a filosofia do entimema e a dupla natureza do signo: (1) Ler em contexto; (2) A grande síntese e questão do marxismo; (3) Vossler, ou o aliado sem saber; (4) Voloshinov leitor de Saussure, ou um diálogo...de surdos. Ademais, há uma conclusão que mostra uma posição equilibrada, numa espécie de um meio termo que vai contra um excesso de honra ou uma indignidade sobre a polêmica da autoria dos escritos bakhtinianos. No primeiro capítulo, Ler em contexto (p. 21-68), vê-se os argumentos sobre os motivos de retraduzir MFL, obra de notório reconhecimento no Ocidente com diversas traduções, mas que ainda mantém sua gênese envolta em uma complexa trama enunciativa. Destaca-se nesta parte, os dados históricos que revelam que foi em 1973 que Roman Jakobson fez publicar nos Estados Unidos uma tradução em inglês, cuja versão aparece com o nome de Valentin Voloshinov. No entanto, em 1977, uma tradução francesa a pedido de Jérôme Lindon e Pierre Bourdieu trouxe como autor o nome de Mikhail Bakhtin e, entre parênteses, Voloshinov. A partir de então, começa uma espécie de mistério, cuja a publicação de Sériot tenta dissipar. Desse modo, essa nova tradução procura, depois de mais de três décadas, afastar-se da primeira, feita por Marina Yaguello, e aproximar-se mais da publicação original de Leningrado, de 1929. Além de discorrer a respeito desse assunto, há também discussões a respeito da mistificação em torno do “Círculo de Bakhtin”, bem como uma investigação sobre a paternidade desse grupo, no qual o autor diz se enveredar por zonas de sombra de uma história turva. O capítulo 2 apresenta A grande síntese e questão do marxismo (p. 69-92). Nesse ponto, Sériot assevera que alguns contemporâneos de Voloshinov, ao fazer as primeiras resenhas a respeito de MFL, acabam recriminando-o por não ter mencionado os trabalhos de Marr (linguista russo de notoriedade na época), asseverando que sua obra era a primeira a relacionar os problemas da filosofia da linguagem a partir de um ponto de vista marxista. Ademais, neste capítulo, vê-se também a exploração de questões sobre a qual o livro, de título marxista, veio à tona no Ocidente por meio de Jakobson; bem como a exploração da recepção russa pós-soviética da obra. Sériot também discorre a respeito de diversos temas-chave como: grupo, meio, sociedade, hierarquia e o sujeito falante; segundo seu ponto de vista, aprofunda sobre um tema que para ele é um grande mal-entendido: a ideologia como semiótica. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p 2 O capítulo 3 traz em seu título um nome ainda pouco conhecido entre os acadêmicos e especialistas que trabalham com a teoria/análise dialógica do discurso (ADD): Vossler, ou o aliado sem saber (p. 93-106). Entre as ideias defendidas neste segmento, está a mudança de paradigma ocasionada no início do século XX com a crise do positivismo, no qual Voloshinov não é seu iniciador, mas inscreve-se nessa mudança de perspectiva por meio de seus escritos. Aqui, há um aprofundamento na ideia de que Voloshinov apresenta sua obra como um corte radical na história das ideias linguísticas, mas que na realidade o teórico se apoia pesadamente nos trabalhos de Karl Vossler, da Escola de Munique. A partir dos sistemas de valores criados por Vossler, numa assimilação pelo viés sociológico, acaba por influenciar diretamente a posição de Voloshinov em MFL, como também a constituição de Estética da Criação Verbal, de Bakhtin. Destaca-se também neste capítulo a discussão que Sériot faz sobre forma, conteúdo e a respeito de uma teoria do vínculo. No último capítulo, configura-se uma discussão sintetizada no título Voloshinov leitor de Saussure, ou um diálogo...de surdos (p.107-118). Nas ideias desenvolvidas por Sériot, vê-se uma crítica quando Voloshinov apresenta uma prática dialógica, mas na realidade faz uma prática monológica em que as ideias de outros autores não são ouvidas. Ademais, vê-se uma forte crítica também ao trabalho de Voloshinov no que concerne a um posicionamento contrário contra a linguística desenvolvida por Saussure. Ressaltamos também nessa discussão de Sériot, a questão a respeito da fala do autor e a fala de outrem, além da interpretação ontológica da epistemologia. Destacamos que o princípio de ser crítico está na capacidade de poder observar todos os lados ou parte deles, com isso a leitura desse livro (SÉRIOT, 2015) vem corroborar para o entendimento da trama enunciativa que se faz presente na composição dos escritos que fazem parte do Círculo bakhtiniano3. Além de todo o reconhecimento que recebeu entre os acadêmicos, duas obras específicas ganharam o conhecimento entre os docentes do nível básico no final do século XX, fazendo parte de documentos oficiais, referência de concurso para professores, prova de mérito e parte de muitos livros didáticos. Com isso, vê-se a importância que tais trabalhos possuem atualmente na educação brasileira, no que se refere ao ensino e aprendizagem de línguas. Por outro lado, muitas outras obras do Círculo chegaram as mãos dos acadêmicos mais especializados por meio de diversas traduções, o que permitiu um aumento de pesquisas com base na 3 A discussão a respeito da questão da autoria em torno das obras do Círculo já é conhecida desde o final do século XX. Em uma investigação mais ampla, conseguimos visualizar essa discussão nas reflexões feitas por Souza (1999) sobre os textos disputados e também no capítulo 3 – A filosofia da linguagem na obra de Faraco (2009). Além disso, encontra-se excelentes publicações em português a respeito do assunto, como exemplo o artigo de Vasilev (2006) e Zandwais (2009). Para mais detalhes, vide: FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009; SOUZA, G. T. Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 1999; VASILEV, N. L. A história da questão sobre a autoria dos “ textos disputados” em estudos russos sobre Bakhtin (M. M. Bakhtin e seus co-autores). In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO; G. Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, p.290-304; ZANDWAIS, A. Bakhtin/Voloshinov: condições de produção de Marxismo e filosofia da linguagem. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Editora Contexto, 2009, p. 97-116. INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p 3 Análise Dialógica do Discurso. No entanto, a partir do século XXI, essa notoriedade chamou atenção de alguns pesquisadores europeus que resolveram atacar de maneira dura a questão da suposta autoria de Bakhtin4 em algumas das principais obras do Círculo, o que criou uma celeuma, desencadeando produções acadêmicas como resposta para rebater a maneira, até mesmo grosseira, como foi publicada para desmerecer a contribuição das ideias do Círculo5 para o estudo da linguagem. * Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP) 4 Com relação a isso, a obra original que deu o estopim dessa discussão é BRONCKART, Jen-Paul; BOTA, Cristian. Bakhtine démasqué: histoire d´um menteur, d´une escroquerie et d´um délirecollectif. Genève: Droz, 2011. No Brasil, a versão traduzida por ser encontrada em: BRONCKART, J-P.; BOTA, C. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012. Entre os escritos no Brasil que discute a questão de MFL atribuído a Bakhtin é o Capítulo 10 –O marxismo e a filosofia da linguagem – do livro de Clark e Holquist. Vide: CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 233-256. 5 Recomenda-se a leitura da edição especial, volume 9, publicado em 2014 da Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. Neste número, vê-se um aprofundamento sobre a questão de autor/autoria nos escritos do Círculo, que foram objeto de reflexão de diversas autoridades e especialistas internacionais sobre o tema, entre eles: Pampa Olga Arán, IúriPavlovith Medviédev (filho de Pavel Medviédev), AleksándrovnaMedviédeva e Frédéric François. Para mais detalhes, vide o endereço eletrônico do periódico: http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/issue/view/1255/showToc INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p 4