Lindolfo Alves do Amaral Filho - A idade de Cristo

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A idade de Cristo, a idade da rua: Grupo Imbuaça – 33 anos
Lindolfo Alves do Amaral Filho
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – UFBA
Matrizes Estéticas na Cena Contemporânea
Orientadora: Profa. Dra. Eliene Benício
Resumo: Este trabalho pretende ser mais uma reflexão de um longo percurso. O objetivo é
fazer uma breve análise da caminhada do Grupo Imbuaça, que teve início na cidade de
Aracaju/SE, em 28 de agosto de 1977. Expondo aspectos estéticos, dramatúrgicos e
pesquisa de linguagem. Alguns fatos ocorridos na sua trajetória serão narrados,
enriquecendo com os exemplos de quem deu voz, colorido e brilho ao trabalho ímpar de um
dos mais antigos coletivos de teatro de rua do Brasil.
Palavras-chave: Teatro de Rua, Dramaturgia, Literatura de Cordel.
Este trabalho pretende ser mais uma reflexão de um longo percurso. O objetivo é
fazer uma breve análise da caminhada do Grupo Imbuaça, que teve início em 28 de agosto
de 1977, expondo aspectos estéticos, dramatúrgicos e pesquisa de linguagem. Alguns fatos
ocorridos na sua trajetória serão narrados, enriquecendo com os exemplos de quem deu
voz, colorido e brilho ao trabalho ímpar de um dos mais antigos coletivos de teatro de rua do
Brasil.
Muitos pesquisadores já se debruçaram sobre a história do Imbuaça, dentre eles
destacam-se Eliene Benício (O Teatro de Rua no Nordeste Brasileiro/1988); Roseane Trota
(O Teatro de Grupo no Brasil – 1993); Narciso Telles (A Preparação do ator de Rua – 2007).
Há também uma grande quantidade de monografias e artigos publicados sobre o grupo,
porém este texto é de quem vivenciou e vivencia o seu dia-a-dia, trabalhando na construção
e manutenção dessa prática de rua.
São 33 anos de atividades e a celebração é cotidiana, pois em um país onde a
descontinuidade é a marca, resistir ao modismo é romper barreiras, é alimentar as raízes em
um processo de fluxo e refluxo (“a fonte que nunca seca” de Chico Cesar e Vanessa da Mata
é uma bela metáfora para compreender o sentido desse ato), é dizer que o teatro não é um
simples comércio ou uma “bodega” qualquer. Manteve-se a coerência por meio da base
construída na década de 70, pois “a história é um carro alegre, cheio de gente contente que
atropela indiferente todo aquele que a negue”. E muito mais.
O disco de Chico Buarque, “Caros amigos”, tocava na radiola; o ABC paulista
com suas greves, dava os primeiros passos para a reconstrução do Estado de Direito; o
Serviço Nacional de Teatro negava o prêmio ao melhor texto “A Patética”,do Concurso de
Dramaturgia; os estudantes iniciavam a luta pela reabertura da UNE – União Nacional dos
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Estudantes. Nesse contexto surgiu o Festival de Arte de São Cristóvão/SE em 1972, com o
objetivo de comemorar os cento e cinquenta anos de Independência do Brasil, foi uma das
grandes contradições nesse mar de exemplos dos fatos que ocorreram naquele período. É
na arte que também o homem se encontra consigo mesmo, reflete seu mundo como também
tudo que está em seu entorno. E o sabor da luta por novos horizontes floresce. Essa
contradição capitaneada pela Universidade Federal de Sergipe terminou contribuindo com o
surgimento de muitos grupos artísticos e, por que não dizer, com o movimento das artes no
menor estado da região Nordeste. Diversos grupos de outras as regiões brasileiras vieram
para a bela cidade de São Cristóvão, deixando as suas contribuições. O Imbuaça é um
exemplo de fruto brotado nessa época.
Uma volta no tempo: o ano é 1977, o mês é julho e três professores vieram do
Recife para ministrar oficinas de Interpretação, Corpo e Direção. Gilson Oliveira, José
Francisco e Lúcio Lombarde desembarcaram em Aracaju, com o patrocínio do Serviço
Nacional de Teatro e da Secretaria de Estado da Educação (período que ainda não havia
Ministério da Cultura no país, bem como instituições culturais nas esferas estadual e
municipal, mas se produzia muito). Após a conclusão das oficinas, trinta e seis jovens
resolveram criar um grupo de teatro e o primeiro passo foi estudar a conjuntura política. Essa
ação está relacionada ao Movimento Estudantil, já que alguns atores estudavam na
Universidade Federal de Sergipe e participavam ME. O segundo passo foi conhecer as
manifestações populares e alguns dramaturgos nordestinos. O primeiro texto estudado foi
“João Farrapo”, do potiguar Meira Pires, e o objetivo era a sua montagem. Nesse período
acontecia o VI Festival de Arte de São Cristóvão, que tinha na sua programação a presença
do Teatro Livre da Bahia, com o espetáculo de teatro de rua “Felismina engole brasa”. O
impacto foi tão grande que todos decidiram seguir o mesmo caminho.
Nesse período ninguém tinha noção do alcance de tal ação. Olhando hoje e
observando a quantidade de pesquisadores que vem estudando esse fenômeno no mundo
inteiro, é possível tercer conceitos, bases filosóficas, estudos sobre a estética e ocupação do
espaço físico etc. No trabalho organizado por Narciso Telles e Ana Carneiro“ Teatro de Rua
– Olhares e perspectivas” (publicado no Rio de Janeiro, pela editora e-papers, em 2005), o
artigo de André Luiz Antunes Netto Carreira, faz um estudo sobre o conceito de Teatro de
Rua, procurando contribuir com uma série de elementos, favorecendo assim a reflexão sobre
essa prática artística. Voltando ao artigo de André Carreira, sobre o dilema conceitual o que
é Teatro de Rua, ele aponta que:
Para estudar o teatro de rua é necessário reconhecer o espaço urbano como
âmbito teatral e a rua como espaço fragmentário multifuncional. Para isso o
primeiro passo é analisar o espaço urbano como lugar do espetacular.
(CARREIRA, 2005, p. 27).
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Em se tratando de um espaço aberto e tão diferente de uma região para outra,
assim como as práticas artísticas, fica difícil determinar o que é certo ou errado, no campo
conceitual. Por outro lado é necessário compreender o Teatro de Rua a partir do paradigma
da etnocenologia. Portanto, diante da diversidade torna-se impossível precisar essa
definição.
Para contextualizar o modo de ver o teatro de rua na década de 1970, convém
observar o artigo publicado no Jornal “O Movimento”, que fez um registro de uma das
apresentações do TLB – Teatro Livre da Bahia, ocorrida na cidade de Salvador.
“junho de 77, domingo, quatro da tarde, Largo da Lapinha. Ali se travaram
importantes batalhas com a participação popular pela independência da
Bahia. Estátua de Maria Quitéria assiste, meia assustada, a troupe do TLB
invadir a praça. Chegam em dois fusquinhas, os atores passam pelas casas
chamando o pessoal. Dois deles passam pela igreja e chamam a garotada,
que participa da festa junina. É colocado no meio da praça uma placa: Teatro
Livre da Bahia apresenta Felismina engole brasa”.
“O músico começa a tocar e o povo se junta ao redor. Os atores espalham as
roupas pelo chão e começam a se maquiar, o pessoal vai chegando com cara
de quem acha aquilo tudo muito estranho. “Parece até carnaval”, diz um
deles. A essa altura umas duzentas pessoas estão por ali. O grupo já
maquiado e vestido canta e dança uma música junina. Tocador pede outra e
entra um samba de roda e o pessoal bota a mão nas cadeiras, depois no
cabelo e remexe. A estudante do Colégio Anísio Teixeira rí de boca
escancarada. O velho careca olha com cara de quem nunca viu aquilo na
vida. Os atores começam o espetáculo. O apresentador abre a boca e grita.
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“Senhoras e senhores, vai começar...”. (Rogério Menezes)
A descontração do público é também a do grupo. A ação dramática despojada
sem elementos grandiosos pois grandioso é o ato de ocupar as ruas em um difícil período da
história do país. O relato demonstra as dificuldades que o grupo enfrentava. Não havia
estrutura sofisticada para divulgar e realizar o espetáculo. Tudo era executado coletivamente
e de forma simples. A música dialoga com o calendário cultural e, consequentemente, com o
público, já que o mês é de total celebração aos santos juninos. Essa foi a maneira
encontrada pelo TLB para construir sua trajetória e influenciar o surgimento de outros
coletivos nessa mesma perspectiva: utilizar a Cultura Popular como base para construção
dos espetáculos de rua. O folheto popular (mais conhecido como Literatura de Cordel) foi a
grande fonte dramatúrgica. O espetáculo era constituído, na sua maioria, de três folhetos
adaptados por João Augusto e Benvindo Siqueira.
A música tinha uma função importante no espetáculo: abria a roda. Em outras
palavras, convocava o público para a cena. As pessoas aproximavam-se com o olhar
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Jornal O Movimento, publicou duas reportagens sobre o Teatro Baiano. A primeira na edição nº 110 (8 de
agosto de 1977) e a segunda na edição nº 111 (15 de agosto de 1977), páginas 16 e 17. A estrutura da
reportagem nos dois exemplares é a mesma: um relato das atividades dos grupos de Salvador e depoimentos de
três pessoas ligadas aos grupos, em formato de box.
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curioso. Milton Nascimento e Fernando Brant, anos depois (1981), deu voz e canção para
esse ato:
... com a roupa encharcada, a alma repleta de chão
todo artista tem de ir aonde o povo está
se foi assim, assim será
cantando me desfaço e não me canso de viver
nem de cantar (“Nos bailes da vida”, do disco Cançador de Mim)
Esse foi o caminho encontrado pelo TLB: ir aonde o povo está, fazendo o que
preconiza a melodia. A música com a sua força hipnótica atravessava a cena (os textos
eram intercalados por músicas do cancioneiro popular). A estrutura concebida do Cordel
(sextilha) também remete a uma sonoridade, quase um contra canto aos intremeios
musicais. Não se está falando de uma ação nova, enquanto estrutura cênica, pois a ideia de
entremez acompanha a história do teatro desde a sua origem.
A descrição do jornalista está intimamente relacionada ao formato concebido para
o primeiro espetáculo do Grupo Imbuaça (este nome é uma homenagem ao embolador
Mané Imbuaça, assassinado em Aracaju no mês de janeiro de 1978), cuja estreia ocorreu no
primeiro domingo de fevereiro de 1978. Talvez a única diferença entre os dois coletivos
esteja na ação inicial. O Imbuaça sempre fez opção em realizar um cortejo com cantos e
danças, para chamar à atenção do público. Esse ato está vinculado às danças dramáticas
existentes em quase todo o país. Em Sergipe, é comum ainda hoje Guerreiros, Reisados,
Cheganças, dentre outros grupos, apresentando-se nas festas religiosas e folclóricas.
Portanto o desejo do grupo era de criar uma empatia com o público através do cortejo tão
presente nas manifestações populares.
Benvindo Siqueira contribuiu muito para a construção do grupo sergipano. Ele
ministrou uma oficina de teatro de rua em Aracaju (outubro/77 a janeiro/78) e Antonio do
Amaral, um dos fundadores do Imbuaça, trouxe os ensinamentos: a ocupação do espaço da
roda através da triangulação; o deslocamento na cena; espaços mínimos e múltiplos; a
estrutura de adaptação do folheto: a narrativa irrompe o diálogo, situando o público na ação.
Às vezes, o clima é de um contador de histórias, que em suas pausas respiratórias faz surgir
a ação dramática aqui e agora. O deslocamento do conflito sai do passado para atuar no
presente, diante do público, estabelecendo a magia do teatro.
Essa estrutura ainda hoje mantem-se viva uma vez que o primeiro espetáculo faz
parte do repertório do Imbuaça. Inicialmente, “Teatro chamado Cordel” foi concebido com
dois textos: “O Marido que passou o cadeado na boca da mulher” (folheto de Cuica de Santo
Amaro, adaptado por João Augusto) e “O Matuto com o balaio de maxixi” (folheto de José
Pacheco, adaptado por Antonio do Amaral), intercalados por cantos e danças. Tudo
concebido de forma despojada, a exemplo do TLB, que encerrou suas atividades em 1980,
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após a morte do seu grande líder e mentor, intelectual João Augusto (25 de novembro de
1979).
Outros elementos oriundos das danças dramáticas foram se incorporando ao
trabalho do grupo à partir da entrada, em 1982, do saudoso ator Mariano Antonio (falecido
em um acidente de trânsito no dia 24 de junho de 1995). Ele já vinha pesquisando as
manifestações populares, tinha formação em dança e dentro do Imbuaça procurou se
dedicar a preparação corporal dos atores e, consequentemente, as coreografias dos
espetáculos. Ainda hoje, observa-se que a música e a dança folclórica fazem parte dos
espetáculos do grupo, sem a preocupação de copiar o popular, mas de conceber uma
releitura desses signos como elementos da cena. A identificação do público sergipano é
imediata. Esse ato terminou criando uma identidade para o Imbuaça. Não é mais um grupo
de teatro de rua no cenário brasileiro. É um grupo cuja sua pesquisa de linguagem está
alicerçada na Cultura Popular, ocupando a rua sem a preocupação estética de ser um mega
espetáculo. Tal fato vai na direção contrária dos projetos interculturais captaneados pelos
diretores Eugenio Barba, Peter Brook, Ariane Mnouchkine que têm “o interesse cada vez
mais aguçado pelo teatro alheio ao fluxo cultural tradicional” (Carlson, 1997, p. 503)
Nesse sentido o teatro de rua brasileiro vive o dilema de manter-se vivo diante da
sua cultura e da relação de horizontalidade com o seu público ou de copiar os modelos,
principalmente europeus, que dialogam com o espaço urbano elevando as ações dramáticas
para verticalidade. Essa constatação teve início na segunda metade da década de oitenta,
quando da visita dos grupos italianos Tascábile de Bérgamo e Teatro Potlach de Fara
Sabina. Naquela ocasião, todos os grupos brasileiros ocupavam o mesmo espaço cênico, ou
seja, o mesmo plano. “Tá na Rua” e “Dia-a-Dia”, do Rio de Janeiro, “Galpão”, de Belo
Horizonte e “Imbuaça” de Aracaju (esses grupos participaram do Encontro de Teatro de Rua,
que ocorreu em 1987, no Rio de Janeiro, com os dois grupos italianos citados). Os
espetáculos eram simples, não havia recursos tecnológicos de som e luz. Não se deve negar
a poluição sonora que cresceu muito, os avanços das ciências e do conhecimento. Porém, o
que se está evocando nesse espaço é a ruptura com a tradição, o negar a origem e a
consequente “nova” forma de ocupação da rua que leva a outro paradigma: o espetáculo
deixou de ser uma ação de diálogo direto com o público para se tornar um grande evento.
A intenção de ocupar a rua com o teatro pressupõe uma ação em um espaço
democrático. Todos têm livre acesso, não só o povo. O que está posto em cena poderá ter
infinitas interpretações, proporcionalmente ao número de pessoas que o assiste. Esse é o
teatro da diversidade, de intenções e possibilidades. Na rua tudo é possível: desde a
dramaturgia fechada à interferência de uma pessoa da plateia que rompe a cena
espontaneamente. Como negar esse ato?
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Fazer teatro de rua ao longo de trinta e três anos ininterruptos é, portanto, mais
que um ato de resistência, é o nadar contra a corrente dos interessados pela vitrine da
moda, é acreditar que nesse país ainda é possível sonhar. Nesse sentido o olhar retoma a
origem do teatro, mas compreendendo que o espaço foi transformado ao longo da história. A
rua é de convivência e dispersão. É da manifestação pública e de ações restritas (às vezes
fecham os espaços para realização de eventos particulares). É do grito e do silêncio noturno.
É do marginal e dos que passam indiferentes aos acontecimentos. É da vida com todo o seu
simbolismo. Enfim, ainda é possível...
Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder.
(da letra de Chico Buarque e Rui Guerra)
Referências Bibliográficas
BOAL, Augusto. Técnicas Latino – Americanas de Teatro Popular. São Paulo, Ed. HUCITEC,
1979.
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro. São Paulo, id. UNESP, 1977.
CRUCIANI, Fabrizio e FALLETTI, Clelia. Teatro de Rua. São Paulo, ed. HUCITEC, 1998.
TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana. TEATRO DE RUA Olhares e perspectivas. Rio de
Janeiro, e-papers, 2005.
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