Base Territorial da Mata Atlântica. Etno-ecologia da Argila Branca na Tribo Tupiguarani (Séculos XIV e XV) Renan Esaú Fernandes Santos Acadêmico de Licenciatura em Biologia das Faculdades Integradas Teresa D´Ávila, Lorena, SP e Bolsista PIBIC CNPq 2010/11. renanefs888Ggmail.com Paulo Sergio de Sena Biólogo e Doutor em Ciências Sociais – Antropologia. Docente de Ecologia Humana, Licenciatura em Biologia, Faculdades Integradas Teresa D´Ávila, Lorena, SP [email protected] RESUMO Registros arqueológicos do Sítio Arqueológico Caninhas, Canas, SP, revelaram que a Tribo Indígena Tupiguarani mostrou laços de pertencimento cognitivo entre o Homem com o seu ambiente de ocupação. Após os procedimentos de salvamento dos artefatos arqueológicos e trabalhos de design para estudos sobre a estrutura das cerâmicas, seguiram estudos de etnoecologia da tribo indígena, o que revelou três Conexões Etnoecológicas: Homem-Mineral, Homem-Homem e Homem-Sobrenatural. A novidade ficou por conta da função e do serviço ecossistêmico da Mata Atlântica que abriga o Sítio que se materializou a partir do manejo da Argila Branca abundante no solo da base territorial da então aldeia. Essa argila protagonizou o cenário onde os ceramistas Tupis puderam criar artefatos que entrelaçaram vínculos com o ecossistema, com o outro da tribo e com os deuses que dinamizam o mítico e o místico dos Guaranis. PALAVRAS CHAVES Etnoecologia; Tupiguarani; Argila Branca - Canas - Arqueologia - Mata Atlântica - Vale do Paraíba ABSTRACT Archeological records of the Caninhas Archaeological Site, Canas, SP revealed that the Indian Tribe Tupiguarani showed cognitive engagement between Man with his busy environment. After the procedures for the treatment of archaeological artifacts and works of design for studies on the structure of ceramics, studies ethnoecologics the Indian tribe, revealed three Ethnoecology Connections: Man-Mineral, Man-Man and Man-Supernatural. The news was on account of ecosystem service and function of the Atlantic Forest that houses the site that materialized from the management of White Argillaceous (White Clay) soil abundant in the territorial base of the Site. This argillaceous (clay) starred in the stage where the ceramic artifacts that Tupi could create links intertwined with the ecosystem, with others of the tribe and the gods that streamline the mythic and the mystic of the Guarani. KEYWORDS Ethnoecology; Tupiguarani; White Argillaceous; White Clay. 108 Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107- 120 INTRODUÇÃO As interfaces traçadas nessa pesquisa são resultados de uma experiência de leitura interdisciplinar de um objeto que envolve profissionais biólogos, arqueólogos e designers. Nesse sentido, em síntese, se propôs analisar os fragmentos cerâmicos do Sitio Arqueológico Caninhas sob a luz da etnobiologia, um estudo do conhecimento e das conceituações desenvolvidas por qualquer sociedade a respeito do mundo natural e das espécies; é o estudo do papel da natureza no sistema de crenças e de adaptação do homem a determinados ambientes, enfatizando as categorias e conceitos cognitivos utilizados pelos povos em estudo. (POSEY, 1987; DIEGUES & ARRUDA, 2001) Neste trabalho, o que se mostra são os fragmentos cerâmicos arqueológicos como documento etno-ecológico da ocupação territorial da Tribo Indígena Tupi Guarani, entre os Séculos XIV e XV, do Bioma Mata Atlântica e o uso dessa base territorial que é sustentado pelos estudos de RODRIGUES e AFONSO (2002) que consideraram a marca da ocupação das populações Guarani a forma como essas culturas utilizaram as condições ecológicas disponíveis. Fig. 01. Estado de São Paulo, localização do Município de Canas, SP (modificado) Fonte:http://www.moon.com/files/map-images/brz_02_vicinity-sao-paulo.jpg, 2011 Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107 - 120 109 A base territorial que serviu de cenário para este trabalho está localizada em Canas, uma cidade jovem do Estado de São Paulo, que compõe a história recente da Região do Vale do Paraíba Paulista que teve início com as entradas e bandeiras de caça, e preamento de indígenas para o trabalho escravo nas lavouras de cana de açúcar. Posteriormente, a Região serviu de trajeto para o escoamento da produção de metais preciosos extraídos da região das Minas Gerais, até o porto de Paraty, no Rio de Janeiro. (Figura 01) A cidade de Canas encontra-se no Norte do Vale Paraíba, a 198 Km da capital, com acesso no quilômetro 47 da Rodovia Presidente Dutra. O Sítio Arqueológico Caninhas trabalhado está localizado na extremidade Norte de um grande platô alongado e apresentando uma vegetação de pequeno porte (gramíneas), fica bem próximo de dois pequenos rios (Canas e Caninhas), a cerca de 2 Km do Rio Paraíba do Sul, e aproximadamente a 1 Km do centro administrativo do município, em perímetro urbano, nas coordenadas 23K0495194 UTM 7490041. (CHAABAN e SENA, 2010) (Figura 01) Em linhas gerais, após o processo de inventário, caracterização microestrutural (lixamento, polimento e microscopia óptica) e detalhamento virtual dos utensílios em formato 3D houve a identificação das conexões etnobiológicas entre a Tribo e os componentes bióticos e abióticos do ecossistema de Mata Atlântica, da época da citada ocupação indígena. Os utensílios cerâmicos apresentaram diferentes formas, texturas e usos. As conexões etnobiológicas puderam ser interfaciadas com o uso de Produtos e Serviços Ecossistêmicos do Bioma Mata Atlântica (ANDRADE e ROMEIRO, 2009), revelando a interação entre a Tribo Indígena e a Base Territorial ocupada. O trabalho está sob o referencial antrópico de RODRIGUES (2010), quanto aos conceitos de Produtos Ecossistêmicos que se caracterizam como aqueles produtos oferecidos pelos ecossistemas que são utilizados pelo ser humano para seu consumo ou para o comércio (madeira, frutos, peles, carne, sementes etc.); de Serviços Ambientais são aqueles úteis ao homem e oferecidos pelos ecossistemas (regulação de gases atmosféricos, belezas cênicas, conservação da biodiversidade, proteção de solos etc.); e de Etnoconservação e Conexões Etno-ecológicas de MARQUES (2001). Ainda como referencial teórico, o Serviço Ecossistema aqui envolvido é o cultural, que para ANDRADE e ROMEIRO (2009) inclui a diversidade cultural (culturas, valores religiosos e espirituais) sob influência da diversidade dos ecossistemas, também explorados por CHAABAN e SENA, 2010) na determinação das conexões etno-ecológicas da Tribo Tupi guarani com a base territorial de Mata Atlântica. Para esse trabalho, os objetivos traçados se figuraram como: 1.Criar ferramentas etnobiológicas para ler a ocupação e uso de Biomas; 2. Exercitar a leitura interdisciplinar do objeto Bioma da Mata Atlântica; 3. Subsidiar a compreensão da ação antrópica no Bioma da Mata Atlântica. O problema de pesquisa girou em torno do uso do ecossistema de Mata Atlân- 110 Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107- 120 tica pelos indígenas Tupi guaranis que viveram na Região entre os Séculos XIV e XV e a importância da Argila Branca para a cultura Tupi. A hipótese condutora dos trabalhos referenciou o uso do Bioma de Mata Atlântica na forma de serviços oferecidos pelo Bioma a partir dos produtos passíveis de serem explorados e geradores de relações intra tribo, bem como com o ambiente não antrópico. SERVIÇOS E PRODUTOS AMBIENTAIS Os ecossistemas são, pelo menos, a base material de toda a vida e das atividades humanas. Na perspectiva do Homo sapiens, os ecossistemas oferecem bens e serviços (Produtos) que concorrem para a qualidade de sua vida, isto é o bem estar da Espécie enquanto base biológica, territorial, econômica, ambiental e social. Assim, os recursos naturais como água, alimentos, madeira, ar, solo e os mecanismos biológicos que fazem a manutenção dos ecossistemas são considerados como esses bens e serviços ecossistêmicos oferecidos aos humanos. O documento da MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT (2003), considera os ecossistemas como sistemas formados por interações complexas, dinâmicas e contínuas que ocorrem entre seres vivos (fatores bióticos) e não vivos (fatores abióticos) em seus ambientes, nos quais o homem é considerado parte integrante. Quando se considera o ecossistema como um sistema complexo, o que se destaca são suas inúmeras características (ou propriedades), como exemplo, a variabilidade, a resiliência, a sensibilidade, a persistência, a confiabilidade, entre outras. ANDRADE e ROMEIRO (2009) (2009), acrescentaram ainda que as propriedades variabilidade (alterações nos estoques e fluxos) e resiliência (capacidade de recuperação ecossistêmica ao seu estado natural) são de importância ímpar para uma análise integrada das interconexões existentes entre os ecossistemas, o sistema econômico e o bem-estar humano. Recortando o conceito de dinâmica dos ecossistemas para este trabalho, no sentido de inserir o uso do ecossistema pelos Tupi-guaranis, é necessário compreender que as chamadas funções ecossistêmicas são o conjunto de ações que concorrem para a manutenção das interações entre os elementos estruturais de um ecossistema, as quais incluem a transferência de energia, a ciclagem de nutrientes, o controle climático e em particular o ciclo da água (DALY; FARLEY, 2004). Enfim, são os serviços ecossistêmicos, benefícios diretos e indiretos explorados pelo homem a partir dos ecossistemas. ANDRADE e ROMEIRO (2009) apresentaram as funções ecossistêmicas agrupadas em quatro categorias primárias, segundo DE GROOT et. al.(2002)., 1. funções de regulação (capacidade ecossistêmica de controle dos mecanismos ecológicos tidos como essenciais à sustentabilidade da vida, por meio dos ciclos biogeoquímicos, por exemplo).; Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107 - 120 111 2. funções de habitat (relacionadas com a conservação da biodiversidade e seus processos evolutivos).; 3. funções de produção (envolve a produtividade ecossistêmica em fornecer recursos alimentares para o consumo humano, a partir de processos como a fotossíntese, sequestro de nutrientes e até as terras cultivadas); e 4. funções de informação (manutenção da saúde humana, por meio de oportunidades reflexivas, experiências espirituais, desenvolvimento cognitivo, lazer e de programação visual estética). ETNO-ECOLO GIA E O SÍTIO ARQUEOLÓ GICO TUPIGURARANI CANINHAS A Etnobiologia é conhecida, não com essa terminologia, desde o final do Século XIX. Nesta fase inicial o tratamento das informações pertinentes era muito simples e utilitarista. Pelos idos da década de 1960 a etnobiologia se viu influenciada pela Antropologia; daí tornou-se um arcabouço teórico para a experimentação de um tipo de integração de conhecimentos e práticas que priorizavam discussões que interfaciavam as consequências ambientais e o desenvolvimento do conhecimento humano para manter a sobrevivência dos grupos humanos em suas bases territoriais ecossistêmicas. Mais recentemente, na perspectiva de uma ciência, pelo menos interdisciplinar, a etnobiologia trouxe à tona os estudos que envolveram os povos indígenas e seus conhecimentos tradicionais. Em meio a incontáveis experiências interdisciplinares, aparecem os vários segmentos, pedagogicamente estruturados, entre eles a Etno-ecologia. TOLEDO (1992) e NAZAREA (1999) tratam a Etnoecologia como é o estudo dos conhecimentos, estratégias, atitudes e ferramentas usadas pelos vários grupos sociais para produzir e reproduzir as necessidades e resoluções materiais de suas existências por meio de um manejo adequado dos recursos naturais de sua base territorial. Dentro desse quadro teórico-metodológico de estudo das relações sociedade-natureza que prioriza a cognição no comportamento humano é possível sistematizar os problemas relacionados com o manejo dos recursos naturais, da sustentabilidade e conservação, bem como dos elementos que dependem de discussão e definição do estado de direito de propriedade intelectual. MARQUES (2001, p.16) se diz satisfeito com o conceito de etno-ecologia à luz da teoria abrangente, de sua autoria, pois apesar de seguir a recursividade do pensamento complexo de Morin, é um conceito operacional, além de explicar bem os objetos de estudo. Assim, para esse autor, o conceito se enuncia: “... Étnoecologia é o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e compor- 112 Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107- 120 tamentos que intermediam as interações entre as populações humanas que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem, bem como os impactos ambientais dai decorrentes.” Tomando POSEY (1986), o que se tem é um tratamento da Etnobiologia como um estudo do conhecimento e dos vários conceitos que se desenvolveram em uma sociedade e que tem pertencimento à biologia, percepções quanto à natureza e sua vinculação com as crenças e capacidade de adaptação da vida humana em seus ambientes (base territorial). MARQUES (2001), citou VAYDA e RAPPAPORT (1968) que pensavam a Etnoecologia como uma temática referenciada pela Ecologia Cultural, que recorta a população, objeto de estudo, com o objetivo de mostrar as considerações que esta população tem sobre seu ambiente, bem como as formas com que o maneja. Para este trabalho é pertinente esse gradiente conceitual, que transita entre os conceitos biológicos, as crenças e o manejo dos recursos de um ecossistema percebido por um determinado povo. A Etnoarqueologia para HERNANDO GONZALO (1995) é uma ferramenta que pode gerar referenciais teóricos e metodológicos para a compreensão de uma dada cultura. Pode destacar possíveis elementos racionais presentes no momento da formatação de um determinado registro material. Desse modo é possível pensar em comportamentos ideológicos, sociais, tecnológicos, refletidos nas peças do registro. Entrelaçar os conhecimentos etnoecológicos de uma Tribo Indígena com o Sítio Arqueológico é contribuir com o Ministério da Cultura, uma vez que este órgão federal é responsável por identificar, conservar, explorar e restaurar todos os sítios arqueológicos brasileiros. Conforme o último levantamento feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1998, existem 12.517 sítios arqueológicos em todo o território nacional. Atualmente, esse número já ultrapassou 20 mil. Dessa totalidade estimada de 20 mil sítios arqueológicos em todo o país, somente 06 são tombados: Sambaqui do Pindaí, São Luís (MA); Parque Nacional da Serra da Capivara, São Raimundo Nonato (PI); Inscrições Pré-Históricas do Rio Ingá, Ingá (PR); Sambaqui da Barra do Rio Itapitangui, Cananéia (SP); Lapa da Cerca Grande, Matozinhos (MG); e a Ilha do Campeche, Florianópolis (SC). (VOGT, 2011) O Sítio Arqueológico de Caninhas, em Canas, SP é composto por estruturas funerárias, estruturas de combustão e diversos objetos de uso cotidiano de populações indígenas que habitaram o local. O Sítio é classificado na categoria unicomponencial (quando o sítio apresenta somente uma ocupação histórica, sem sobreposição de mais ocupações pré-históricas), de natureza pré-colonial. A tribo indígena que possivelmente ocupou o território foi a Tupi-guarani, ratificado por características encontradas nos utensílios como: cerâmicas com acordelamento, e pinturas geométricas na cor vermelha, branca e preta. Estudos indicam que provavelmente a ocupação se deu por quatro unidades ha- Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107 - 120 113 bitacionais, com vestígios materiais com predominância de cerâmica e lentes de carvão até 40 cm de profundidade. Na periferia das ocupações foram encontradas as estruturas de sepultamento, indicando padrões culturais de uso do território e, em diferentes áreas, sugerindo uma organização com diferenciação e hierarquização do espaço. As urnas funerárias estavam preenchidas por cerâmicas e não por corpos, esse procedimento pode indicar um possível ritual de oferendas, o conteúdo ainda não se encontrava compactado. A pintura nos fragmentos e nas tigelas recuperadas se encontrava em bom estado de conservação, indicando que a ocupação do território pela aldeia tenha ocorrido entre os séculos XIV e XVI. (BORNAL e QUEIROZ, 2005). O recurso natural mais relevante que se encontrou nesse Sítio Arqueológico foi a Argila Branca que são argilas com baixo teor de óxidos e hidróxidos de ferro, que podem ser usadas para a fabricação de cerâmicas brancas. A argila é um material mineral de textura terrosa (argilácea), com granulometria fina particulada na forma lamelar ou fibrosa, constituída essencialmente de argilo-minerais de silício e alumínio, podendo apresentar magnésio, ferro, potássio, quartzo, mica, pirita, hematita, matéria orgânica e outras impurezas. É um recurso mineral que resulta da hidratação de silicatos de alumínio, ferro e magnésio. Quando se expõe a argila à presença de água se desenvolve uma série de propriedades como a plasticidade, resistência mecânica, compactação entre outras que justificam sua grande variedade de aplicações tecnológicas. É pertinente acrescentar que sua estrutura laminada possibilita a absorção de moléculas de água. (MELO et al, 2002) Para compreender um pouco da dinâmica cotidiana dos povos indígenas que habitaram o referido Sítio Arqueológico, é importante recorrer aos autores RODRIGUES e AFONSO (2002) que apresentaram a ocupação da base territorial das aldeias Tupis sob a forma como esses utilizaram as condições ecológicas disponíveis. Para esses autores, os Guarani buscam os vales com clima quente e úmido, próprios das florestas tropicais e subtropicais. Daí, subiam os vales dos rios que se estendiam pelas encostas do planalto sul-brasileiro, chegando a altitudes próximas de 700 metros; o limitador ambiental eram as condições de calor e umidade. A exploração da base territorial apresentava uma dinâmica de mudanças, as aldeias não constituíam povoados fixos e permanentes, após alguns anos, os grupos tendiam a mudar-se para um novo local, motivados pelo desgaste do solo, pela diminuição das reservas de caça, pelas relações com um líder carismático ou a morte de um chefe. Apesar das possíveis razões para o deslocamento, as novas unidades de povoamento se constituíam em um que reproduziam das bases da organização social indígena (CUNHA, 1992). No entanto, o deslocamento das aldeias não era tão simples de aspecto, MAESTRI (1994) ratifica essa tese a partir da constatação de que uma comunidade Tupi-Guarani com três ou quatro centenas de membros necessitava de uma área de aproximadamente 45km. Esse espaço se traduzia em sua base territorial econômica de subsistência e de 114 Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107- 120 coleta de matérias-primas. Acrescenta o autor de que em algumas regiões mais ricas em recursos naturais, poucos quilômetros separavam uma aldeia da outra. RODRIGUES e AFONSO (2002) citando os trabalhos de KERN (1994) e SCATAMACCHIA e MOSCOSO (1989) mostrou que a busca da base territorial para a instalação da aldeia, se dava em clareiras no meio da floresta subtropical. Acrescentou também que essa estratégia tinha o objetivo de facilitar o acesso à água e a recursos complementares para a subsistência, como pesca, caça e agricultura em várzeas férteis dos rios. ISQURERDO (1992) afirmou que a subsistência do grupo social Guarani está centrado em seu mundo religioso. A relação do homem Tupi com suas entidades deusídicas o mantém como Eu coletivo, o que os reúne numa comunidade do tipo religiosa. Para que haja relações de sobrevivência da aldeia, estas devem estar alicerçadas nas crenças, crenças essas que se constituem nas forças que mais solidificam a solidariedade grupal da tribo. Nesse sentido, para esse autor, o Sagrado ocupa papel fundamental na vida do Guarani, se manifestando em suas ações cotidianas. Quanto às ações cotidianas dos Tupi, PROUS (1992) salientou que a produção de bens materiais seguia um padrão que se ajustava à divisão sexual e etária do trabalho. Os homens se ocupavam da caça e manejo dos campos para as plantações. As mulheres eram as responsáveis pela complementação das atividades agrícolas e da confecção dos artefatos de cerâmica. Dessa forma, traçar algumas características etnoecológicas do sítio arqueológico de uma antiga aldeia de Tupi-Guaraini, pode gerar um banco de conhecimentos tradicionais que auxilia na compreensão, mais facilmente, de como viveram os povos antepassados e como se utilizaram das funções e serviços ecossistêmicos da base territorial de ocupação para suprir suas necessidades. MATERIAL E MÉTODOS O sítio arqueológico Caninhas, objeto de estudo desse trabalho, foi identificado no município de Canas, próximo do centro administrativo do município, em perímetro urbano, nas coordenadas 23k0495194 UTM 7490041. Canas, município do Estado de São Paulo está a 198 km distante da Capital, às margens da Rodovia Presidente Dutra. Está localizado na extremidade Norte de um grande platô alongado com uma vegetação atual de pequeno porte com predominância de gramíneas. Esse platô dialoga com dois pequeno rios mais próximos - Canas e Caninhas - e a cerca de 2 km com o rio maior e mais importante da região, o Rio Paraíba do Sul. (Figura 02) As atividades de campo foram desenvolvidas a partir de visitas técnicas arqueológicas ao Sítio Arqueológico, com o acompanhamento dos profissionais de arqueologia responsáveis pelo salvamento do material, entre os anos de 2008 à 2010. Foram abertas as Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107 - 120 115 trincheiras, que permitiram a obtenção de informações sobre a área de solo escuro, que se apresentou de forma elíptica, com eixo e diâmetro simétricos, de aproximadamente 8,00m. Tal conformação sugere tratar-se de um provável fundo de cabanas. (BORNAL e QUEIROZ, 2005) (Figuras 3 e 4) Fig.2. Sítio Arqueológico de Caninhas – fisionomia atual Fig. 3. perfil estratigráfico do solo 116 Fig. 4. Abertura das trincheiras. Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107- 120 Após os trabalhos de campo, seguiram-se as etapas do Inventário: 1. higienização dos fragmentos; 2. repouso dos fragmentos sobre folhas de papel absorvente; 3. numeração dos artefatos; 4. separação e fichamento dos fragmentos. A partir dos estudos arqueológicos e de design das peças cerâmicas, se deu o estudo etnobiológico do uso dos serviços ecossístêmicos sob referência do Bioma da Mata Atlântica valeparaibana paulista. RESULTADOS E DISCUSSÃO O Sítio Arqueológico de Caninhas revelou a presença de estruturas funerárias, estruturas de combustão e diversos objetos de uso cotidiano da população indígena que habitou o local. Baseados nos tipos de utensílios e na decoração por grafismos geométricos pretos e brancos e com faixas vermelhas, referenciado por PROUS (2005), levantou-se a hipótese de que eram vestígios de uma população indígena Tupiguarani. Entre as múltiplas peças, destacam-se algumas com morfologias diferenciadas e outras que se assemelham a urnas funerárias, a que curiosamente estavam acondicionando diversas outras peças cerâmicas, sugerindo uma espécie de rito cerimonial. Em geral, os desenhos geométricos são delineados com a cor preta sobre fundos brancos ou vermelhos e são frequentes as faixas vermelhas circundando a peça. MACHADO et. al. (2008) relacionaram a cerâmica pintada Tupiguarani a uma função ritualista, o que parece muito pertinente, visto que ISQURERDO (1992) já ratificou a importância da religiosidade para os Guaranis. (Figura 5) (a) (b) Figura 5 (a) e (b) – Tigelas indígenas. Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107 - 120 117 Quanto ao uso do ecossistema, os Tupiguaranis exploraram o produto na forma de recurso mineral argila branca. O recurso mineral ecossistêmico Argila Branca se mostrou como um substrato importante para a vida cotidiana do povo Guarani que habitou a base territorial que contém o Sítio Arqueológico. Etnoecologicamente observou-se o desenvolvimento da conexão Homem-Mineral. Essa conexão, muito provavelmente, levou ao ensaio de muitas metodologias para queimar a peça a 950º C, 1250º C e 1450º C, dependendo do destino do utensílio cerâmico, como recomendado por MELO et al (2002). O uso da argila como conexão Homem-Mineral se desdobrou em Serviço Ecossistêmico do tipo Cultural que apoiou a expansão da conexão para Homem-Homem (uso de utensílios cotidianos) e Homem-Sobrenatural, quando afloram o uso da cerâmica para cerimoniais religiosos e funerários. O grande protagonista ecossistêmico foi a Argila Branca, um diferencial de extrema importância para a materialização das necessidades de subsistência cotidiana. Criar utensílios cerâmicos, que muito provavelmente era uma função feminina, já mostrava a importância da atividade e do recurso enquanto divisor de trabalhos masculinos e femininos, além disso, eram utensílios importantes para a feitura de alimentos, consumo e acondicionamento dos mesmos, incrementando e expandindo as conexões Homem-Homem, tão importante para a manutenção do grupo social. Essa mesma Argila Branca compôs o cenário das atividades ritualísticas e cerimoniais da relação entre a tribo e seus deuses, manejar a argila, confeccionar artefatos que se tornariam vasos sagrados otimizam o olhar mítico e místico que o povo Tupi tem em sua estrutura social, já tratado pro ISQURERDO (1992). A conexão etnoecológica HomemSobrenatural se desenhou nesse trabalho a partir da cerâmica funerária, que curiosamente não acondicionava restos mortais, mas outras cerâmicas, ratificando a importância da cerâmica, confeccionada com um recurso natural local, com um status passível de ser aceito como oferenda ou algo do gênero, pelos deuses condutores daquele povo indígena. CONCLUSÕES O uso ecossistêmico da Mata Atlântica pelos indígenas Tupiguaranis, durante os Séculos XIV e XV, no Vale do Paraíba paulista, revelou a importância da base territorial da Mata Atlântica para a expressão cultural da tribo. No entanto, o recurso natural Argila Branca se mostrou como a grande protagonista dessa história de vida Tupi na região estudada. Foi possível também ratificar que a base territorial escolhida por aqueles habitantes indígenas concordam com outros relatos presentes na literatura, isto é, os povos Tupi buscam os vales com clima quente e úmido das florestas tropicais e subtropicais, principalmente quando eram compostos por vales e rios nas encostas do sul e sudeste 118 Janus, Lorena, n. 11, Jan./Jun., 2010. p. 107- 120 do Brasil. As conexões etinoecológicas Homem-Mineral, Homem-Homem e Homem-sobrenatural demonstraram o quanto do ecossistema local está contido na cultura da tribo, principalmente com o impressionante uso da Argila Branca para a confecção de cerâmica. Esse comportamento social dos Tupiguaranis sob a referência das funções ambientais de um Vale na Mata Atlântica do Sudeste brasileiro, bem como o uso Cultural do serviço ambiental desse ecossistema fortalecem a tese de que há metodologias de uso dos recursos naturais de forma sustentável, ou pelo menos saudável, pois o que se registrou nesse presente estudo foi a exploração, a relação, a criação e a otimização dos laços de pertencimento cognitivo do Homem com o seu ambiente de ocupação. REFERÊNCIAS ANDRADE, D.C. e ROMEIRO, A.R. Serviços ecossistêmicos e sua importância para o sistema econômico e o bem-estar humano. Campinas, SP: IE/UNICAMP, n. 155, fev. 2009 BORNAL, W. G., QUEIROZ, C. M., Relatório das escavações do sítio Caninhas, p. 36, 2005. CHAABAN, I.C. e SENA, P.S. Relações Etnobiológicas, Etnoecológicas, Etnoarqueológicas entre o Grupo Social Artesão de Canas, SP e o Povo Indígena do Sítio Arqueológico de Caninhas, Canas, São Paulo. 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