UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO - CCE-FAED MESTRADO EM EDUCAÇÃO E CULTURA LINHA DE PESQUISA: ARTE E PRODUÇÃO CULTURAL MARIA LUCILA HORN MITO DE ARTISTA O DISCURSO DA CULTURA Dissertação apresentada ao Centro de Ciências da Educação - CCE-FAED como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação e Cultura. Orientador: Dr. Antônio Carlos Vargas Sant Anna FLORIANÓPOLIS, SC 2006 À minha filha, meu amor, Anna Luzia. À memória do artista-herói José Leonilson. ii AGRADECIMENTOS A minha mãe, Maria Ilma, que me ensinou a querer; Ao Professor Antônio Vargas pela orientação e seriedade do seu trabalho; À Professora Maria Teresa Santos Cunha pelo incentivo e prazer pelo conhecimento que proporcionou em sua disciplina; A professora Kátia Maheirie, por suas indicações de aprofundamento; Ao amigo e professor José Cláudio Morelli Matos, pelo apoio acadêmico; À artista plástica e minha grande amiga Lu Renata, pelas conversas sobre arte; Ao amigo Orlando Ferretti pelos ensinamentos metodológicos e pela amizade; e um agradecimento muito especial à equipe do Projeto Leonilson , por terem me recebido de forma tão generosa e aberto as portas daquela aconchegante casa na Vila Mariana, em São Paulo, para que eu pudesse adentrar ao universo do Artista. iii RESUMO O foco desta dissertação é identificar o mito heróico como ponto de referência na construção da identidade artística, tendo no estudo da mitologia heróica a chave para clarificar as questões da identidade. Recorrendo ao termo mito , no sentido adotado pelos autores integrantes do Círculo de Eranos, ou seja, como uma ferramenta para clarificar a construção da identidade artística; apresenta-se uma revisão de autores que tratam o mito como uma verdade cultural de suma importância para a compreensão da sociedade. Em seguida desenvolve-se a noção do mito heróico como diretriz reveladora da identidade do artista. Desenvolve-se ainda, um estudo de caso tendo como referência o artista brasileiro Leonilson, sua biografia, suas falas e os discursos da crítica e da mídia, encontrando no discurso contemporâneo acerca da figura do artista a expectativa comumente manifestada a respeito do seu papel na cultura através da mitologia heróica. PALAVRAS-CHAVE: Mito. Artista. Herói. iv ABSTRACT The aim of this inquiry is to identify the heroic myth as a point of reference in the construction of the artistic identity. The heroic mythology is here taken as a key to clarify the questions related to identity. It is possible by making use of the term myth , in the sense adopted by authors, members of the Circle of Eranos, that is to say, as a tool to clarify the construction of artistic identity. It is presented a review of authors that considers the myth as a cultural truth, with great importance to the comprehension of society. After that, a study of case is developed, about the brazilian artist Leonilson, his talks and the texts of critics and the media. In this way is expected to find in the contemporary discourse about the figure of artist, the currently manifested expectance concerning his role on culture through heroic mythology. KEYWORDS: Myth. Artist. Hero. v SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................................8 CAPÍTULO I - A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA MITOLOGIA PARA A COMPREENSÃO DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE..........10 1.1. Conceitos Fundamentais ... . .10 1.2. A Hermenêutica Simbólica ................................................................................. ...28 CAPÍTULO II - CAMINHO PARA A MITOLOGIA ARTÍSTICA ......................... 35 2.1. O artista a partir do mito do Herói. 2.2 - Contemporaneidade do mito e crise de interpretação na arte. ..... 35 ...............36 2.3 - O mito do herói..................................................................................................... 44 CAPÍTULO III - MITO DE ARTISTA ........................................................................ 52 3.1. Concepções de artista.......................................................................................... ...52 3.2. Leonilsom - Mito de herói e mito de artisa.............................................................59 3.3. Pequena Biografia do Artista Leonilson..................................................................60 3.4. Trajetória do Herói............................................................................................... ..60 3.5. Juventude do artista ............................................................................................... 66 3.6. Retorno e morte do herói ....................................................................................... 88 CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 97 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 101 ANEXOS..........................................................................................................................107 vi INTRODUÇÃO Esta dissertação tem como foco o pensamento da hermenêutica simbólica, usado como ferramenta para o estudo das questões da identidade artística nos discursos da cultura, onde busca-se a fundamentação necessária para compreender a construção do mito do artista. O objetivo é lançar um olhar, à luz da hermenêutica simbólica, como uma possibilidade de compreensão da construção da identidade artística, a partir do pensamento de alguns dos seus representantes, demonstrando a importância do estudo da mitologia no que se refere aos temas da arte e identidade. A pesquisa procurou o entendimento da abordagem da hermenêutica simbólica, centrada na visão desenvolvida a partir da Escola de Eranos, para tanto desenvolveu-se no primeiro capítulo uma argumentação que visa esclarecer o significado de um vocabulário básico referente ao imaginário, a partir da obra de Gilbert Durand (1993). Esta argumentação apresenta diferentes graus em que se organizam as imagens de que a consciência dispõe para representar o que não pode apresentar-se de forma direta, além de analisar os argumentos de pensadores e teóricos da hermenêutica simbólica, que defendem uma forma de pensar o mito como verdade. A partir desta visão buscou-se desenvolver um argumento a respeito da importância do estudo da mitologia para a compreensão do processo de construção da identidade artística. O segundo capítulo traça um caminho para a mitologia artística, buscando o entendimento da trajetória do artista a partir do mito do herói, de forma que haverá de ser um fundamento para o que se diz adiante, bem como as características do herói da mitologia grega desenvolvidas por Junito Brandão (Brandão, 1995). Isto implica, como conseqüência, em realizar uma análise no que se refere a contemporaneidade do mito e a crise de interpretação na arte. O terceiro capítulo trata especificamente da mitologia artística, abordando as concepções de artista, as ligações entre o mito do herói e o mito do artista, analisando alguns pontos que considera-se de maior importância, a saber: a juventude do artista, a descoberta do talento e iniciação, o artista como divino criador e o virtuosismo do artista, inerente ao seu ofício. 8 Para completar esta argumentação, se apresenta um estudo de caso, no andamento desta argumentação, onde se trata da construção do mito do artista na trajetória do artista plástico brasileiro José Leonilson. A partir de relatos, reportagens, textos da crítica e falas do próprio artista buscou-se esclarecer a trajetória do herói: origem, infância, juventude, retorno e morte do herói. 9 CAPÍTULO I - A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA MITOLOGIA PARA A COMPREENSÃO DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ARTÍSTICA. 1.1. Conceitos fundamentais: Antes de tratar propriamente da mitologia, é preciso esclarecer o significado de um vocabulário básico referente ao imaginário. Gilbert Durand1 apresenta os diferentes graus em que se organizam as imagens de que a consciência dispõe para representar aquilo que não pode apresentar-se de forma direta ao entendimento. O símbolo define-se como pertencente à categoria do signo. Mas a maior parte dos signos são apenas subterfúgios de economia, que remetem para um significado que poderia estar presente ou ser verificado .2 A diferença entre o uso que aqui está sendo feito dos termos símbolo e signo é que enquanto os signos são representações de objetos perceptíveis, ostensíveis, até mesmo palpáveis, o símbolo por sua vez, não tem um referente assim tão definido. O simbólico guarda para si uma referência a algo que, sem ele, não teria sentido, não teria como ser apreendido. Torna-se, então, de suma importância entender que signo e símbolo possuem características diferenciadas. No signo tem-se um sinal, uma sigla, uma palavra que substitui de forma econômica - dirse-ia parcimoniosa - uma extensa definição conceitual, sendo que, segundo Durand, os signos podem ser escolhidos arbitrariamente. Contudo, há casos em que o signo é obrigado a perder o seu arbitrário teórico: quando remete para abstrações, especialmente para qualidades espirituais ou do domínio moral dificilmente apresentadas em carne e osso .3 Neste caso precisa-se recorrer a signos complexos, exemplos são as alegorias: uma tradução de uma idéia difícil de compreender de maneira simples. Podemos, portanto, pelo menos em teoria, distinguir dois tipos de signos: os signos arbitrários puramente indicativos, que remetem para uma realidade significada, se não presente pelo menos sempre apresentável, e os signos alegóricos, que remetem para 1 DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993. Ibid., p 8. 3 Ibid., p 9. 2 10 uma realidade significada dificilmente apresentável. Estes últimos signos são obrigados a figurar concretamente uma parte da realidade que significam. 4 A distinção entre signo arbitrário e alegoria não viabiliza a compreensão suficiente da imaginação simbólica. O símbolo, em relação ao signo, é muito menos arbitrário e muito menos convencionado, porque sua referência é proveniente de uma rede mais profunda de relações. A partir da caracterização de Durand5 pode-se dizer que o símbolo pode ser classificado da seguinte maneira: um signo que remete para o indizível e invisível significado e, deste modo, sendo obrigado a encarar concretamente esta inadequação que lhe escapa. Tudo isto através de um jogo de redundâncias míticas, rituais, iconografias, que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação, não podendo desta forma ser objetivo, arbitrário ou racional. Neste trabalho está se tratando do mito como uma construção simbólica cultural, porém nunca como uma história inventada para aquele que a está vivenciando. Nesta perspectiva encontra-se em Victor Jabouville6 O mito como a arte, a linguagem, o conhecimento, é forma que cria significado. Nesta perspectiva, o mito pode apenas ser uma história verdadeira . A perspectiva histórica é relevante para os propósitos deste estudo. Ao rever a tradição de investigação acerca do conteúdo cultural e simbólico do mito, Jabouville menciona diversos estudiosos, trazendo à cena em primeiro lugar um comentário acerca de Cassirer, que considera o mito como uma nãoperfeita distinção entre símbolo e objeto do símbolo: o mito surge espiritualmente sobre o mundo das coisas materiais. Ou seja, o objeto portador do conteúdo simbólico não remete a outro distinto dele, mas sim a si mesmo. É por isso é que esta distinção entre símbolo e objeto não pode ser perfeita. É nesta mesma linha de pensamento que pode-se tecer considerações a outros autores apontados por Jabouville. Entre estes, Carl Jung que, seguindo os passos deixados por Freud, não perde de vista a mitologia, desenvolvendo uma série de pesquisas relevantes neste assunto, tendo como ponto de destaque dos seus estudos a teoria dos arquétipos . Os arquétipos seriam os herdeiros do mais antigo passado, isto é, os traços, tornados hereditários, das primeiras experiências existenciais do homem perante a natureza, perante os outros homens e perante si próprio. Mais tarde, denotando uma perspectiva estruturalista, os arquétipos são encarados como modos do comportamento universal típico, que correspondem a formas de conduta biológica, a princípio reguladores ou, 4 DURAND, op. Cit, p 8-9. Ibid, p. 7 a 18. 6 JABOUVILLE, Victor. Iniciação à ciência dos mitos. Ed. Inquerito Universidade: Lisboa, 1994. P. 73. 5 11 ainda, a formas a priori da experiência. Assim, os arquétipos são necessariamente inconscientes, formas dinâmicas que se impõem às imagens particulares. Mas o arquétipo não é uma imagem; é um impulso que dá origem a imagens. O símbolo é a explicação de um arquétipo desconhecido. 7 Jung pressupõe a existência da dimensão inconsciente da mente, e há em seu pensamento uma argumentação no sentido de comparar o homem moderno com o primitivo. Nestas análises chega ele à conclusão de que o homem tem a tendência de construir símbolos, sendo que, para Jung, é através do sonho que estes se expressam através de imagens e associações análogas a idéias, mitos e ritos primitivos, onde a mitologia seria a força materializadora. Estamos de tal modo habituados à natureza aparentemente racional do nosso mundo que dificilmente podemos imaginar que nos aconteça alguma coisa impossível de ser explicada pelo senso comum .8 Por outro lado, esta inexplicabilidade revelar-se-ia, como descreve Jung, no comportamento de caráter mítico. Para Jung9, o símbolo é sempre mais do que seu significado imediato e óbvio. Os símbolos são produtos naturais e espontâneos da atividade subconsciente. Desta forma não há como tomar um pensamento mais ou menos racional com uma intenção deliberada, e tentar darlhe uma forma simbólica. Para Jung os símbolos aparecem não apenas em sonhos, mas também em tantas outras situações: pensamentos, sentimentos, atos humanos, além de imagens coletivas, como nos esclarece usando como exemplo as interpretações das imagens religiosas: [...] o crente lhes atribui origem divina e as considera revelações feitas ao homem. O cético garante que foram inventadas. Ambos estão errados. É verdade, como diz o cético, que símbolos e conceitos religiosos foram durante séculos objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são efetivamente representações coletivas que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias.10 Desta maneira, ao contrário do que muitos pensam, o mito - foco de interesse desta discussão - não é uma mentira, mas sim, uma narrativa que, através de uma linguagem simbólica, 7 JABOUVILLE, op cit, p.79-80. JUNG. Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1964. P.45. 9 Ibid, p.55. 10 Ibid, p.55. 8 12 fala sobre elementos básicos de uma cultura11, pondo em correlação os elementos primários e contraditórios de nossa experiência da vida, organizando e configurando sentido. Na duração temporal das culturas e das vidas individuais dos seres humanos - denominada pelo termo história - é o mito que de alguma forma distribui os papéis de cada um e permite decidir o que configura um momento histórico, a alma de uma época, de um século, de uma época de vida. Sem as estruturas míticas, não existe inteligência histórica possível. Segundo Ortiz-Osés12, a experiência Mítica é uma experiência do numinoso, onde o mito recobre o contexto do inconsciente coletivo, ou seja, o mito articula estruturas simbólicas do imaginário coletivo, delineando as configurações fundamentais do sentido da realidade vivida e convivida, relatando a relação do homem ante seus limites ou destino, confrontando a vida com ela própria e também com a morte. Para este autor, o mito narra, através da linguagem simbólica, a participação real do homem no mundo e no cosmos. Assim o mito expressa, através da linguagem simbólica, o mundo e a realidade humana, além de ser uma representação sempre aceita coletivamente, nunca se referindo a um único indivíduo. A princípio toda produção simbólica e toda arte possuía função ritual e religiosa, mas o conteúdo coletivo vivenciado, que fundamenta a simbologia religiosa primitiva, vai progressivamente dando lugar ao conteúdo vivenciado individual. Ao pensar especificamente sobre essa área de conhecimento - a arte está se pensando esta como integrante deste campo do simbólico, hoje imerso em um mundo intelectualizado e racional. É importante ser ressaltado que embora haja uma tendência cultural e histórica a reafirmar o comportamento lógico e racional de um determinado modelo de racionalidade - ainda assim é possível detectar em diversos comportamentos complexos do ser humano contemporâneo, elementos de caráter mítico, e, portanto, simbólico. E fundamentalmente, a arte seria um dos melhores exemplos. 11 Ao pensar a respeito de "elementos básicos de uma cultura" vamos nos respaldar em Durand (1993) em suas conclusões sobre a função da imaginação simbólica, como na análise de Garagalza (1990), que esclarece que o símbolo (o mito, os esquemas e arquétipos), estão circunscritos no contexto da cultura que os interpreta, construindo uma ponte entre a universalidade da natureza humana e a diversidade de suas derivações culturais, psicobiológicas e sociais. 12 ORTIZ-OSÉS, Andrés. Hermenéutica simbólica. In: KÉRENYI, Karl et al. Arquétipos y símbolos colectivos: circulo de Eranos I. Barcelona: Anthropos, 1994. P 298-299. 13 A respeito da oposição Mithos/logos, Koneski13 , argumenta que estamos habituados a pensar que o logos é o especificamente humano do homem, pois por muito tempo na história do conhecimento humano foi dado acreditar que só a razão podia dizer a realidade à nossa volta. O mito, o irreal, a fantasia estava no âmbito da irracionalidade e não poderia ser fonte de conhecimento .14 A cultura ocidental é marcada pelo aparecimento da filosofia e do pensamento racional, mas antes do nascimento da filosofia, os gregos, como ainda hoje muitas culturas nãoocidentais, viam e explicavam o mundo através dos mitos. Em seu livro A Imaginação 15 Simbólica , Gilbert Durand fala da herança ocidental que levou à vitória do iconoclastismo para a qual nossa sociedade foi conduzida. Tecendo uma crítica, se pode afirmar, seguindo Durand, que a depreciação dos símbolos decorre da forte manifestação da ciência de fundo cartesiano. No panorama intelectual moderno, a partir do racionalismo de Bacon e Descartes, as reduções a evidências analíticas pretendem ser o método universal. Durand faz uma crítica dirigida à busca da verdade desapegada de outras dimensões do ser humano, esvaziada de conteúdo simbólico, uma crítica à abstração total do conhecimento, herança do pensamento filosófico do ocidente. Em Platão o pensamento era ainda carregado de mitologia: Platão, conservador em matéria de arte, pensa que os artistas excluem qualquer visão pessimista em prol da celebração da divindade ou da virtude .16 Já em Aristóteles a carga mitológica é menor: Podemos, pois, dizer que Aristóteles modifica a teoria da arte, simples imitação da natureza : seria antes a arte que recriaria a beleza do objeto natural. Mais: a beleza é a qualidade moral mais elevada enquanto propriedade da razão divina, primeira essência eterna. O intelectualismo de Aristóteles raia, pois, o misticismo17. Antes de Platão e de Aristóteles, Sócrates já havia iniciado a repulsão ao pensamento mítico, Aristóteles limita ainda mais esta carga, e na Escolástica cristã (fruto do pensamento aristotélico) realmente começa o pensamento lógico-racional, ou seja, um modelo de método positivo para a ciência. No Renascimento, novamente vê-se se erigir a autoridade da razão na 13 KONESKI, Anita Prado. A arte nas aventuras da interpretação. Revista NUPEART/UDESC. Núcleo pedagógico de educação e arte. Florianópolis, SC,UDESC, v.1, n. 1., set. 2002. 14 Ibid, p. 10. 15 DURANT,op. Cit, p. 20 a 35. 16 CHALUMEAU. Jean Luc. As teorias da arte. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.P. 26 17 Ibid, p. 27. 14 busca do conhecimento científico, mas foi Descartes quem formulou o pensamento para as novas exigências do mundo, onde o homem aparece dicotimizado. Neste momento Descartes inicia sua tentativa de renovar a filosofia na conformidade com as exigências da Ciência, dando origem ao que Durand denomina Filosofia Ocidental, em um sentido já estrito. Agora o obscuro dualismo aristotélico apresenta-se explícito e conscientemente formalista: as duas substâncias (res cogitans e res estensa) são vistas como duas formas ou modalidades do ser, separadas entre si e incomunicáveis. (Tradução nossa)18 Durand situa como causa final desta relação objetiva redutora do ser, a liquidação no significante de tudo o que era sentido figurado. Onde a imagem é reduzida a signo pragmático, eliminando pouco a pouco a função essencial da imagem simbólica e transformando a arte em puro ornamento. Assim, com a redução do campo simbólico a partir do dogmatismo teológico , do conceitualismo metafísico e da semiologia positivista , acaba-se por extinguir o poder humano de relação com a transcendência. No fim de um processo assim descrito, a imagem, antes carregada de conteúdo simbólico, corre o risco de ser compreendida unicamente por meio de regras de sintaxe. O formalismo racionalista destituiria o símbolo de seu conteúdo. A revalorização do imaginário conduz até a superação desta dicotomia e a linguagem, concebida como estrutura simbólica, compreende as funções do imaginário que pode, segundo Durand, restaurar o equilíbrio individual e coletivo. Especialmente em quatro setores do pensamento simbólico, que levam ao entendimento das dominações e relações culturais: Primeiro, e na sua determinação imediata, na sua espontaneidade, o símbolo surge como restabelecedor do equilíbrio vital comprometido pela inteligência da morte; depois, pedagogicamente, o símbolo é utilizado para o restabelecimento do equilíbrio psicossocial; em seguida, se examinarmos o problema da simbólica em geral, através da coerência das hermenêuticas, apercebemo-nos de que a simbólica estabelece, através da negação da assimilação racista da espécie humana a uma pura animalidade, ainda que racional, um equilíbrio antropológico que constitui o humanismo ou o ecumenismo da alma humana. Por fim, [...] o símbolo erige finalmente, face à entropia positiva do universo, o domínio do valor supremo e equilibra o universo que passa, por um Ser que não passa, ao qual pertence à eterna infância, a eterna aurora, e desemboca então numa teofania. 19 18 GARAGALZA, Luis. La interpretación de los símbolos. Barcelona: Editorial Anthropos, 1990. P. 35 Es en este momento cuando Descartes comienza su intento de renovar la filosofía en conformidad con las exigencias de la Ciencia, dando origen a lo que Durand denomina como la Filosofía Occidental, en un sentido ya estricto. Ahora el larvado dualismo aristotélico se hace explícito y conscientemente formalista: las dos sustancias (res cogitans y res extensa) son vistas como dos formas o modalidades del ser separadas entre sí e incomunicadas. 19 DURANT, op. cit,., p. 97 15 À parte estas considerações, poder-se-ia acrescentar, ainda, que o símbolo encontra-se comprometido com a existência humana, como eufemização da morte e compreensão da finitude humana. As mitologias construídas acerca da morte, e da imortalidade da alma, procuram substituir o impacto do aniquilamento da consciência, por um conceito de passagem, de transposição de um estado para outro. O símbolo é entendido e identificado aqui nesta sua função, como um índice das limitações da própria razão categórica que historicamente tenta substituí-lo. Assim, pois, [...] longe de ser incompatível com o instinto de vida, o famoso "instinto de morte" que Freud revelava em certas análises é simplesmente o fato de que a morte é negada, é eufemizada ao extremo numa vida eterna, no seio das pulsões e das resignações que inclinam as imagens para a representação da morte. O próprio fato de desejar e de imaginar a morte como um repouso, um sono, eufemiza-a e destrói-a.20 O desejo da vida, o impulso de perpetuar a experiência com o mundo, e de afirmar a identidade do indivíduo, recorre ao caráter simbólico do mito para projetar-se para além do fato árido e inexorável da brevidade da vida. A imaginação simbólica aparece, também, como aprendizado regulador das relações humanas, como valor ecumênico e equilibrador do universo. O ensinamento necessário para um indivíduo sentir-se integrante de um grupo social envolve uma série de comportamentos, de habilidades, de valores, que precisam ser de algum modo adquiridos e compartilhados. Como a relação de interação entre os indivíduos nem sempre é estabelecida com base em regras explícitas e estabelecidas de maneira expressa, é de se esperar que muitas práticas adquiram um forte caráter simbólico. Por isso, é justo afirmar, em acordo com as teses de Durand, que nas sociedades - umas com maior intensidade, outras com menor - o simbólico é um fator que mantém o equilíbrio das relações psico-sociais. 20 DURANT, op cit.,p. 101. 16 Ao relacionar a imaginação simbólica com fatores reequilibrantes da sociedade, Durand21, traz uma reflexão a respeito de uma pedagogia centrada na dinâmica dos símbolos como urgente para um tempo de aceleração técnica, onde os reequilíbrios não se dão por si sós. Assim, propondo que a função da imaginação é o equilíbrio biológico, psíquico e sociológico, que leva ao encontro da possibilidade de argumentar a favor da importância do símbolo na instituição do imaginário de uma sociedade. Seria como estabelecer uma dialética entre desestrutura e reestruturação, buscando na posição de Durand, a imaginação simbólica em seus quatro setores fundamentais: equilíbrio vital; equilíbrio psicossocial; equilíbrio antropológico; valor supremo. Encontra-se em Baczko22, uma coerente argumentação neste sentido sendo que, para este autor, a função do símbolo na relação com o imaginário não é apenas instituir uma classificação, mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos. O símbolo opera no sentido de indicar as possibilidades de êxito sócio-cultural de tais comportamentos. É assim que o imaginário social se assenta em um simbolismo que é simultaneamente obra e instrumento. A construção do símbolo e dos sistemas de símbolos, que se revelam fortemente estruturados e dotados de notável estabilidade, bem como as relações entre imaginário e símbolo, constituem problemas tanto para os psicólogos como para os sociólogos do conhecimento. O símbolo parece ser o intermediário entre o sinal e o signo: concreto como o primeiro; inscrito numa constelação de relações como o segundo. O signo objetiva mais do que o símbolo pode fazê-lo, e cada signo está inscrito numa rede de signos, só adquirindo o seu significado em relação a eles. Em contrapartida, o símbolo designa, tanto como o objeto, as reações do sujeito perante este objeto; os sistemas de símbolos não têm a coerência própria às totalidades dos signos. O processo de significação por meio da projeção é, neles, menos controlado; as aposições entre domínios são muito menos precisas do que nas linguagens.23 Para Durand, assim como para Baczko, o símbolo não representa, ele é, não existindo separação entre símbolo e simbolizante, pois o símbolo não pode ser definido em sua totalidade: ele caracteriza-se por uma vivência e está ligado à imaginação ecumenista. O símbolo é um produto da imaginação coletiva, e seu conteúdo não se refere exatamente ao indivíduo, ou a um 21 DURANT, op cit. BACZKO, B. Imaginação social. In: Enciclopédia Inaldi. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985. 23 Ibid, p. 311. 22 17 objeto distinto dele. O símbolo representa-se a si mesmo no conjunto de vivências e sentimentos de uma sociedade. Conforme Castoriadis24, toda necessidade que se torna necessidade social, somente se dá pela elaboração cultural, de forma que não existe um modo de explicar uma elaboração cultural por meio de uma interpretação racionalista , já que, não conhecemos considerações puramente utilitárias ou racionais , a respeito de uma cultura. O mundo moderno apresenta-se, superficialmente, como aquele que impeliu, que tende a impelir a racionalização ao seu extremo e que, por isso, permite-se desprezar - ou olhar com uma curiosidade respeitosa - os estranhos costumes, invenções e representações imaginárias das sociedades precedentes. Mas, paradoxalmente, apesar de, ou melhor, por causa desta racionalização extrema, a vida do mundo moderno depende do imaginário tanto como qualquer das culturas arcaicas ou históricas.25 Com este entendimento, a partir da psicologia e das ciências humanas em geral, a época atual busca a reconciliação com o simbólico; e é no mito que se encontra a forma que cria significado, como em muitas culturas é o mito que possibilita a renovação e reatualização dos tempos primordiais, dando acesso a um plano superior da realidade mediante rituais religiosos. É possível detectar no pensamento mítico uma constante antropológica, complementar ao pensamento racional, que aponta na direção de demonstrar indícios de que o pensamento mítico está em operação em muitas das manifestações culturais contemporâneas. Uma delas, talvez a mais manifesta, é a arte. Em convivência com a reconhecida tendência à secularização, que desmitologiza os símbolos religiosos, morais ou épicos e os equipara a pura ilusão , existiria uma outra, responsável pela produção de novos mitos ou, mais exatamente, novas formas simbólicas dos temas míticos tradicionais. O pensamento racional e científico não seria, portanto, um desmascarador de mitos e substituto do pensamento mítico, mas pode ser capaz de reconhecer sua atualidade. Enquanto a astronomia, com suas descobertas, esvaziou os céus, antes povoados de deuses, a sociologia e a psicologia descobriram forças que se impõem ao pensamento e à vontade humana, e portanto, atuam e se manifestam de modo autônomo. 24 25 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Ibid, p. 187-188. 18 Se uma das características fundamentais do pensamento mítico é efetivamente a aceitação acrítica das narrativas e explicações que ele produz, será então extremamente difícil que uma sociedade reconheça seus próprios mitos como tais. Isso significaria considerá-los de um ponto de vista crítico, de forma que eles passariam a ser vistos como mera ficção ou, se aceitos como verdadeiros, tornar-se-iam valores morais, religiosos ou éticos. Em qualquer caso, existe uma resistência individual e social a desmascarar o mito e a considerá-lo em seu caráter de linguagem simbólica. Entre os autores que tratam o mito como verdade cultural, e nos quais buscou-se a fundamentação para esse trabalho, encontra-se Joseph Campbell, Carl G. Jung, Joseph L. Henderson, V. Jabouville, Gilbert Durand e Mircea Eliade que esclarece: Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.e., como fábula , invenção , ficção , eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma história verdadeira e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo.26 Desta forma, pode-se dizer, a partir do pensamento de Eliade, que o mito está ligado a uma história sagrada, a um tempo especial diferente do tempo cronometrado. O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido em um tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio .27 A vivência mítica seria a narrativa de acontecimentos do princípio. Campbell28, afirma que o material do mito é o material da nossa vida. Considerando-se, neste ponto de vista, o distanciamento dos indivíduos da condição primeira como um problema. Parece que a narração mitológica envolve basicamente acontecimentos supostos, relativos a épocas primordiais, ocorridos antes do surgimento dos homens (história dos deuses) ou com os primeiros homens (história ancestral), o verdadeiro objeto do mito, contudo, não são os deuses nem os ancestrais, mas a apresentação de um conjunto de ocorrências fabulosas com que se procura dar sentido ao mundo. 26 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 1986. P.7. Ibid, p.7. 28 CAMPBELL, Joseph. As transformações do mito através do tempo. São Paulo: Palas Athena, 1992. P. 7 a 28. 27 19 O mito aparece e funciona como mediação simbólica entre o sagrado e o profano, condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres. Sob sua forma principal, o mito é cosmogônico ou escatológico, tendo o homem como ponto de interseção entre o estado primordial da realidade e sua transformação última, dentro do ciclo permanente de nascimento e morte: origem e fim do mundo. As semelhanças com a religião mostram que o mito se refere, ao menos em seus níveis mais profundos, a temas e interesses que transcendem a experiência imediata, o senso comum e a razão: Deus, a origem, o bem e o mal, o comportamento ético e a escatologia (destino último do mundo e da humanidade). Crê-se no mito, sem necessidade ou possibilidade de demonstração, pois se rejeitado ou questionado, o mito se converte em fábula ou ficção. Eliade, fala da função dos mitos, sendo que para este autor a função mestra do mito é a de fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as ações humanas significativas. Porém a narrativa mítica fala de um acontecimento exemplar que revela uma estrutura do real inacessível à apreensão empírico-racional. Para este autor o mito oferece modelos que envolvem a polaridade, a coincidentia oppositorum, a androgenia divina e humana e a renovação. Assim, a cosmogonia fornece o modelo, sempre que se trata de fazer alguma coisa, muitas vezes alguma coisa de vivo , de animado - na ordem biológica, psicológica ou espiritual - [...] mas também alguma coisa de inanimado em aparência, uma casa, um barco, um Estado - lembremos, neste caso, o modelo cosmogônico da construção das casas, dos palácios, das cidades. 29 Em Campbell, na sua obra As Transformações do Mito Através do Tempo, há um caminho cronológico do princípio, ou seja, das transformações primordiais que fizeram do homem um animal diferente dos demais, e que faz dele um ser ligado à mitologia. 29 ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Lisboa: Edições Cosmos, 1977. P.143. 20 Este caminho se faz a partir do Homo Habilis (o homem construtor de instrumentos), que segundo Campbell se distingue do macaco arborícola, não no aumento do tamanho do cérebro, mas pelo fato de caminhar sem a ajuda dos braços, deixando-os livres para manipulações. Chegase ao segundo grau do desenvolvimento humano, o Homo Erectus, com capacidade cerebral de novecentos centímetros cúbicos. Em relação a esta etapa do desenvolvimento, Campbell apresenta como referência um instrumento desta época, instrumento que segundo ele mostra o nascimento do que poderia-se chamar de preocupação com a vida espiritual. Há dois tipos de seres humanos. Há o ser humano animal, prático, e o ser humano suscetível de deixar-se seduzir pela beleza divinamente supérflua. Eis a diferença. É este o primeiro gérmen de uma preocupação e de uma necessidade espiritual, às quais os animais são inteiramente alheios. Como seu tamanho é exagerado para qualquer finalidade prática, sugeriu-se que esse utensílio tenha sido utilizado em alguma espécie de ritual. Há aqui, pois, uma leve sugestão da probabilidade ou, ao menos, da possibilidade de algum tipo de ação ritual, talvez associada à carne ou ao alimento a ser consumido.30 Chegando ao Homo Sapiens neanderthalensis, Campbell refere-se à capacidade craniana, o que acarretaria uma transformação da consciência, e é neste período que aparecem os primeiros indícios de pensamento mitológico. Manifestando-se em dois aspectos: um que diz respeito aos sepultamentos humanos e outro à adoração de crânios de ursos em cavernas. Segundo o tema mítico básico das culturas caçadoras, a morte do animal é um sacrifício autoconsentido. Ele aceita ser morto. Isso pode ser encontrado em todos os mitos. É com um sentimento de compreensão e gratidão que o animal marcha para a morte, numa cerimônia que lhe permitirá regressar à fonte materna a fim de renascer no ano seguinte.31 O que é apresentado então ao leitor, é uma reflexão a respeito de como o homem contemporâneo adquire seu alimento. De maneiras diferentes e com atitudes diferentes, aquele homem primitivo agradecia ao animal por se entregar e ele. Agradece à sua noção de divindade por propiciar o alimento. Na próxima etapa está o Homo Sapiens tardio, ou homem de CroMagnon (30.000 a 40.000 a.C.). 30 31 CAMPBELL, op cit., p.12. Ibid, p.16. 21 Teria sido ele o autor das belas obras de arte encontradas nas cavernas, as Vênus paleolíticas. Onde se faz a relação com o milagre do corpo feminino e de onde se pode acreditar na possibilidade de que, a partir do reconhecimento do ritmo dos corpos femininos, se tenha chegado ao cálculo matemático e a astronômico. Campbell cita a Vênus de Lespugne, para argumentar que não se trata de composições naturalistas, e sim estéticas. Campbell tinha esta noção sobre o desenvolvimento da nossa espécie. Hoje, no entanto, sabemos que os neanderthais não são da mesma espécie que os sapiens-sapiens. Seu material genético era diferente. Porém, cabe ressaltar que são corretos os fatos atribuídos por Campbell aos neanderthais, tais como prática de enterramento e manifestação de pensamento simbólico. Estes não são antepassados nossos, mas os sapiens-sapiens - nossos antepassados - que conviveram com os neanderthais também possuíam as mesmas características e realizavam as mesmas práticas de enterramento. As hipóteses sobre esta discussão, apoiadas na teoria evolucionista sustentam que os sapiens-sapiens sobreviveram como espécie justamente porque possuíam um aparelho simbólico mais complexo - o que permitiu o desenvolvimento de uma linguagem mais elaborada que a dos neanderthais. Feitas estas considerações, pode-se dizer que o autor se remete às grandes cavernastemplos do homem destas sociedades e ao fato de que provavelmente ninguém poderia habitá-las, pois eram locais do rito. Estas estariam relacionadas a cultos masculinos de passagem, pelos quais o menino se tornava homem e que é muito possível a ação xamânica neste período. No decorrer da sua argumentação, Campbell faz relações entre manifestações do homem e objetos artísticos, levantando o pensamento mitológico presente, ou seja, a relação mãe e filho, o milagre do corpo feminino, as diferenças entre homem e mulher e as funções sociais, os ciclos do corpo feminino, os ciclos anuais de mudanças dos animais, as estações do ano, a vida e a morte, que assumem aqui valores simbólicos. Toda concepção do solo sagrado dos homens, a caverna dos homens, é continuada nas cabanas cerimoniais, associadas ao renascimento. Penetra-se pela portinhola estreita como por uma vulva, ingressa-se no corpo da mãe e ali dentro tudo é mágico. Quando, hoje, entramos numa catedral, estamos num campo mágico. E os homens que ali estão não são este ou aquele indivíduo: todos eles estão desempenhando um papel. São as experiências da energia da natureza que flui através deles. 32 32 CAMPBELL, op cit., p. 23-24. 22 Fica evidente a relação da mitologia com a vida, e que o princípio é o mesmo. O nascimento da mitologia e as transformações primordiais do homem se confundem. Desde a primeira fase do amadurecimento, a passagem da infância à maturidade, até a fase do casamento, onde o indivíduo torna-se membro de um ser duplo, assim como o aspecto divino e o humano, o bem e o mal: tudo é matéria da mitologia, e onde estes valores assumem representações de valor simbólico-metafórico. Neste sentido, Campbell discorre sobre as origens do homem e do mito, sempre trazendo exemplos de mito, arte e representações simbólicas, como faz no tratar - entre tantas outras - da imagem de Tétis (uma deusa) e Peleu (o marido humano), providenciado a ela por Zeus, e que tem na narrativa mitológica o fato de que, no momento em que ele foi tomá-la como esposa, ela se transformou sucessivamente em serpente, leão, fogo e água, e por fim ele a conquistou. A serpente se desfaz de sua pele para voltar a nascer, assim como a lua espalha sua sombra para também renascer. Por conseguinte, a serpente, tal como a lua, é um símbolo de percepção lunar. (...) O leão está associado ao sol. É o animal solar. O sol não traz consigo uma sombra; está permanentemente desligado do âmbito do tempo, do nascimento e da morte, sendo, pois, vida absoluta. São ambos uma mesma energia, uma desligada, a outra comprometida. E a deusa é a personificação materna das duas energias.33 Para Campbell, no mundo (como na arte) as duas energias o bem e o mal - estão juntas, a dimensão mítica está acima do bem e do mal, e é somente na dimensão ética que esta dicotomia se apresenta, posto que no ocidente a religião acentua a separação do bem e do mal. Portanto, para pensar a mitologia há que se ajustar as imagens ao que se entende do universo, porque sua função é colocar-se em harmonia com o universo tal como se conhece, e não como ele era conhecido no Oriente Próximo no ano 2.000 a.C. Neste sentido, se manifesta em outros teóricos a importância do estudo da mitologia para a compreensão da sociedade onde vivemos, e é buscando a importância da mitologia no sentido mais amplo, na interpretação da psique humana, que Jung levanta o que chama de resíduos arcaicos , ou seja, arquétipos de imagens primordiais. Esses arquétipos são dotados de iniciativa própria e também de uma energia específica própria. Os arquétipos criam mitos, 33 CAMPBELL, op cit., p. 26-27. 23 religiões, filosofias que influenciam e caracterizam nações e épocas inteiras .34 Os mitos de natureza coletiva-religiosa são interpretados, por este autor, como uma espécie de terapia mental generalizada para os males e ansiedades que afligem a humanidade. Um exemplo de mito universal é o mito do herói, que refere-se sempre a um homem ou um homem-deus poderoso que vence o mal e alerta para o entendimento da mitologia na compreensão de fatos coletivos dentro da história da atual civilização. A energia dos arquétipos pode ser concentrada (através de ritos e outros apelos à emoção das massas) com o objetivo de levar as pessoas a ações coletivas. Os nazistas sabiam disto e utilizavam diversas versões de mitos teutônicos para arregimentar o povo para a sua causa.35 Mostrando este exemplo, Jung refere-se a Hitler como a representação do mito do herói, compreendendo que nesta narrativa existe uma identificação do indivíduo com o herói. Assim, diz que com olhos de crente pode-se entender como um homem comum ou uma sociedade inteira podem se sustentar na crença de qualidades sobre-humanas, libertando-se da sua impotência e da sua miséria. Neste caso a própria era cristã tem se sustentado na figura do homem-deus com raízes no mito de Osíris e Hórus, do antigo Egito. O homem contemporâneo busca sua forma nele próprio, sem precisar de cânticos, batuques, mitos, mas não consegue perceber que, apesar de toda a sua racionalização e eficiência, continua possuído por forças fora do seu controle, seus deuses e demônios não desapareceram, apenas tem novos nomes, dando origem, segundo Jung, a uma enorme coleção de neuroses. Para Castoriadis36, mais do que em qualquer outra sociedade, o caráter "arbitrário", não natural, não funcional da definição social das necessidades, causa uma dominação do imaginário, onde o homem passa a se constituir por um conjunto de traços parciais escolhidos arbitrariamente. Este processo funciona na tentativa de fazer uma metáfora do homem-autônomo com a indústria, estabelecendo relações de controle a partir de um imaginário inventado, afastando o homem das relações simbólicas fundamentais, diferentemente do que faziam as 34 JUNG. Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1964. P.79. Ibid, p.79 36 CASTORIADIS, op cit., p. 187 a 193. 35 24 sociedades arcaicas, que conservavam a duplicidade das relações. Nem por isso dependemos menos das relações imaginárias. A vida do homem, mesmo em tempos contemporâneos, consiste em antagonismos: vida e morte, bem e mal, felicidade e sofrimento, isto é, a vida é uma batalha entre opostos. E a mitologia é esclarecedora do sentido da inescapabilidade deste quadro. O homem sempre especulou a esse respeito, bem como sobre a existência de um ser supremo e da vida após a morte, mas hoje julga que pode prescindir destas idéias. Na verdade o homem contemporâneo tem fundamentalmente a necessidade de comprovações da autenticidade de uma informação, no entanto a mitologia, o símbolo, os arquétipos tratam de coisas invisíveis. Há um sentido de recriação nos símbolos e mitos: para Henderson, em Os Mitos Antigos e o Homem Moderno, podemos não conseguir fazer relação dos mitos com os acontecimentos atuais, no entanto, as conexões existem e os símbolos que as representam não perderam importância tanto para o indivíduo, no esforço de encontrar e afirmar sua personalidade, quanto para a sociedade em geral, na sua necessidade de estabelecer sua identidade coletiva. O interesse deste estudo está centrado no que pode-se chamar de símbolos culturais, aqueles que foram empregados para expressar verdades eternas que, mesmo tendo passado por inúmeras transformações e por um longo processo de elaborações mais ou menos conscientes, tornaram-se imagens coletivas aceitas pelas sociedades civilizadas , guardando muito de sua numinosidade original. Para Geertz37, sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativa, sem cultura não haveria homens. Portanto, para pensar a respeito da construção da identidade, é necessário pensar em cultura, pois, as comunidades humanas são essencialmente diferentes de todas as sociedades animais, o homem necessita viver dentro de uma cultura. Os padrões de comportamento dos animais inferiores, pelo menos numa extensão, lhes são dados com a sua estrutura física; fontes genéticas de informação ordenam suas ações com margens muito mais estreitas de variação, tanto mais estreitas e mais completas quanto mais inferior o animal. Quanto ao homem. O que lhe é dado de forma inata são capacidades de resposta extremamente gerais, as quais, embora tornem possível uma maior plasticidade, complexidade e, poucas ocasiões onde tudo trabalha 37 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. P. 57-58. 25 como deve, uma efetividade de comportamento, deixam-no muito menos regulado com precisão.38 O homem necessita, segundo Geertz, de mecanismos de controle para encontrar seus apoios no mundo através de fontes simbólicas, como programas culturais para ordenar seu comportamento. O conceito de cultura se opõe ao conceito de natureza. Trata-se de um processo complexo onde ocorre toda uma rede de relações de sociabilidade e regulação feita e pensada por homens situados em um tempo e lugar na história. Este estudo considera cultura, a partir de Geertz39, que denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida . No que se refere à construção de identidade, esta investigação propõe traçar um caminho de reconhecimento do artista como sujeito herói que singulariza de forma própria um ideário do homem da modernidade, atuando em espaços sociais, onde o discurso atua como construção histórica. O imaginário cultural ocidental, como via de uma identidade civilizatória, enquanto jogo de projeção e identificação dos indivíduos com esta sociedade se estabelece pela razão. O universo significativo de modelos coletivos, projetados pelo homem moderno, constitui-se como discurso de objetos e signos do consenso habitual. Pensamos que se o símbolo, ou a mitologia, são rejeitados por parecerem absurdos em termos racionais, nossa sociedade sofre uma grande perda em suas relações culturais, ou seja, este estudo parte da tese de que a mitologia pode levar a uma melhor compreensão da relação com a sociedade, e ser esclarecedora no que se refere à questão da identidade. Klix Freitas40, citando Vygotsky, em psicologia da Arte, argumenta que a arte não é adorno da vida. A imaginação criadora reveste-se de ubiqüidade e o imaginar é uma capacidade tipicamente humana, cujo significado inclui imagem, ação e magia. A arte enquanto linguagem 38 GEERTZ, op cit., p. 57-58. Ibid, p. 103. 40 KLIX FREITAS, Neli. Identidade e ensino de artes visuais: interações. Revisto Ibero Americana de Educação. Disponível em: http://www.rieoei.org/opinion32.htm Acesso em 24 de agosto de 2005. 39 26 possibilita a regulação psíquica da atividade humana, na medida em que contém o sentido como elemento da cultura, exprimindo a experiência vivida nas relações sociais. Com a primazia da razão perdeu-se a experiência simbólica ligada ao mito e ao coletivo, restando a experiência significante e a elaboração intelectual de um imaginário cultural, que está aparentemente sob controle de intenções, interesses ou ideologias. [...] o homem, autônomo, igual entre outros, com direitos de escolha, sentimentos e emoções íntimos e particulares típico do ocidente moderno recebe o nome de indivíduo : categoria específica, apropriada à constituição de uma sociedade especial e a reflexão dela sobre si mesma [...]. É o correlativo lógico de massa , das multidões de seres anônimos e sem face que se cruzam nos turbilhões das megalópoles modernas.41 É de conhecimento geral a importância do processo de consolidação da identidade do ser humano, pois é ela que dá ao homem o sentido de individualidade, que lhe permite estabelecer vínculos fortes e saudáveis com o outro e com os grupos. Neste sentido, entendemos que, como propõe Vargas42, embora hoje a postura heróica não seja defendida pela maioria dos estudiosos da arte, a falta desta aparece em muitas críticas de forma subliminar apontando de forma negativa a carência de um sentido maior, e sinalizando tanto a rebeldia como a violência como apenas mais uma estratégia de inserção mercadológica. Em cada época e lugar a história da arte permite ver o artista colocando ênfase em determinadas características míticas. Chega-se, assim, à questão fundamental: o simbolismo e a mitologia, interpretados sob uma tal proposta de leitura, e para tanto se espera fundamentar tal leitura na hermenêutica. A hermenêutica será neste caso abordada enquanto ferramenta (teoria) no campo da reflexão antropológica, para auxiliar na compreensão de determinados fenômenos da construção da identidade artística, onde o discurso a respeito do artista construi-se a partir do rompimento da idéia de indivíduo igual, pois é no diferente, no extraordinário que a identidade artística se constrói. O homem moderno, ainda que não ritualize conscientemente as façanhas históricas vividas pelos seus ancestrais e apenas as aceita como um simples fato histórico que ocorreu num momento determinado, resultando em grande medida em um ser histórico e cultural e marcado pela trágica consciência do tempo irreversível, também vive 41 RODRIGUES, José Carlos. Antropologia e comunicação: princípios radicais. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. P. 185. 42 VARGAS, Antônio. O papel do mito na aceitação da arte. Disponível em: http://www.corpos.org/anpap/2004/textos/chtca/antonio_carlos_v.pdf. Acesso em 08 de agosto de 2005. 27 experiências ritualísticas. Embora o homem educado pelos moldes ocidentais, veja na ciência e na epistemologia, as estruturas que fundamentaram sua realidade e organizaram o mundo, orientando-lhe para o caminho do conhecimento , quando vai ao teatro ou a uma exposição de pinturas, o homem participa de um ritual cujo início se faz quando o ator entra no palco para o ensaio, e o pintor entra em seu estúdio e ambos refazem e recriam as ações que outros artistas antes deles refizeram de outros também anteriores.43 Vamos acompanhar, a seguir, a proposição de Vargas44, que sobrepõe o pensamento da hermenêutica simbólica ao discurso do artista, com ênfase no pensamento da mitocrítica de G. Durand, com as mitologias artísticas de Ernst Kris e Otto Kurz, autores que analisam em diferentes culturas e épocas os relatos que fazem referência a artistas, e percebem que estes coincidem. 1.2. A Hermenêutica Simbólica Este trabalho intenta voltar-se principalmente para a Hermenêutica Símbólica45, onde se destaca a grande contribuição do Círculo de Eranos, que segundo Ortiz-Osés46, nasceu em um momento de eclosão política e cultural na Europa Central, tendo como fundadora a mística Olga Fröbe-Kaptein, como padrinho o fenomenólogo das religiões Rudolf Otto e como inspirador C. G. Jung. Na apresentação que faz em Arquétipos y Símbolos colectivos: Circulo de Eranos I47, Ortiz-Osés destaca o caráter interdisciplinar que configura o Círculo de Eranos, sendo este aspecto fundamental para a elaboração Simbólica que em Eranos se faz através das conferências anuais, entre os anos de 1933 e 1988 em finais de agosto em Ascona (Suíça), e onde se destacam como principais nomes: C. G. Jung, K. Kérenyi, E. Neumann, G. Scholem, J. 43 VARGAS, op cit., p. 2. VARGAS, Antônio. Antropologia simbólica: hermenêutica do mito do artista nas artes plásticas In: BULHÕES, Maria Amélia (org). As questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS, 1997. P. 55 a 67. 45 A palavra hermenêutica faz relação com o deus grego Hermes (intermediário entre o divino e o terreno). 46 ORTIZ-OSÉS, Andrés. El simbolismo y la escuela de Eranos. Anthropos Barcelona, España, n. 153, 1994, p. 23. 47 KÉRENYI, Karl et. al. Arqétipos e símbolos colectivos. Barcelona:Antropos, 1994. P. 9 a 16. 44 28 Hilman, W. Otto, H. Zimmer, M. Eliade, A. Portmann, H. Corbin, H. Read, M. L. von Franz, J. Campbell. G. Durand. A partir da inspiração junguiana, os Eranistas desenvolvem uma arquetipologia da cultura , ou seja, o inconsciente psicológico de Jung, passa a ser o inconsciente cultural, onde os arquétipos aparecem como matrizes para a compreensão dos padrões e estruturas que conduzem a vida das pessoas. O principal labor eranosiano, de fato, radica na elaboração de pattern ou pauta da experiência humana do sentido da vida. Por outro lado, a escola junguiana de Zurique estuda essas pautas em relação à conduta psicológica, em Eranos elaboram-se as pautas culturais da compreensão do mundo em uma pesquisa multidisciplinar de caráter filosófico-científico. Por isso, as noções tipicamente junguianas de inconsciente coletivo e arquétipo se deslizam de uma abordagem psicológica à uma reelaboração mais aberta e cultural. (Tradução nossa) 48 Na Escola de Eranos a linguagem Junguiana é fundamental, ao passo que está na base da relação que os eranistas fazem entre Oriente e Ocidente. Para Garagalza49, a linguagem Junguiana alcança uma conjunção não repressiva do simbólico-mítico (inconsciente) com o terminológicocientífico (consciente) sem reduzir um ao outro, mas propondo um diálogo entre estes dois opostos, que na cultura atual permanecem separados, negando-se mutuamente, mas reclamando comunicação. O próprio Jung coloca que as colaborações de Eranos não estão somente ligadas às idéias do ocidente, mas também com tesouros da mente oriental, achando pontos de contato entre o pensamento oriental e ocidental. No entanto, podemos apresentar o projeto de Eranos como uma tentativa de questionar o caráter absoluto do fundamento da cultura ocidental, na qual implica renunciar à convicção de sua superioridade e aceitá-la como interpretação possível entre outras interpretações, isto é, como uma tentativa de reinterpretar a cultura ocidental desde a compreensão de alteridades, rompendo ou relativizando ao menos, seu pré-conceito etnocêntrico (Ocicentrismo) para abri-la a uma perspectiva mais universal. Trata-se de 48 KÉRENYI, op cit., p. 10. La principal labor eranosiana, en efecto, radica en la elaboración de pattern o pauta de la experiencia humana del sentido de la vida. Pero mientras que la escuela jungiana de Zurich estudia esas pautas a nivel de conducta psicológica, en Eranos se elaboran las pautas culturales de la comprensión del mundo en una investigación multidisciplinar de carácter filosófico-científico. Por ello las nociones típicamente jungianas de inconsciente colectivo y arquetipo se deslizan de un planteamiento psicológico a un replanteamiento más abierto y cultural. 49 GARAGALZA, Luis. Filosofía e historia en la escuela de Eranos. Anthropos, Barcelona, España, n. 153, 1994, p. 153. 29 descobrir o outro do Ocidente como algo que, ao invés de lhe parecer alheio, constitui seu próprio solo (sobre o qual e contra o qual o Ocidente se levanta, deixando-o oculto, para observar a perspectiva que este oferece quando é contemplado desde o fundo, desde o outro lado, desde fora-dentro. (Tradução nossa) 50 Desta forma, por aproximação entre a cultura oriental e os conceitos filosóficos ocidentais é que se dá o rumo da hermenêutica simbólica, questionando o caráter absoluto da filosofia ocidental, o que implica em abdicar da superioridade da razão e relativizar o etnocentrismo, abrindo uma perspectiva mais universal. Se a verdade se manifesta através do contato simbólico, a interpretação se faz através da vivência simbólica. Para esta corrente o mito não é uma mentira e sim um discurso, uma estrutura narrativa que a cultura conserva e transmite. Enquanto estrutura é portadora de verdades fundamentais para o bem estar social e psíquico da cultura. Nesta concepção tradicional o conhecimento do homem começa pelo conhecimento dos deuses e de suas lutas (pólemos), ou seja, pela mitologia como relato de uma história sagrada, atemporal e exemplar, sobre a qual se modela por repetição qualquer acontecimento histórico, seja individual ou de uma coletividade. [...] Para o homem moderno a figura mítica de Hermes representa, segundo Durand e Jung, a única possibilidade de ter a experiência do pensamento mais antigo como atividade autônoma da que se é objeto , a única possibilidade de recuperar o primitivo pensamento simbólico como objeto de percepção interna, como revelação de algo que se manifesta (fenômeno) e evidencia-se em acontecimentos imediatos. (Tradução nossa)51 50 GARAGALZA, op cit., p. 153. Podemos presentar, pues, el proyecto de Eranos como un intento de cuestionar el carácter absoluto del fundamento de la cultura occidental, lo cual implica renunciar a la convicción de su superioridad y aceptarla como interpretación posible entre otras interpretaciones, e.d., como un intento de reinterpretar la cultura occidental desde la comprensión de sus otredades, rompiendo así, o relativizando al menos, su prejuicio etnocéntrico (Occicentrismo) para abrirla a una perspectiva más universal. Se trata de descubrir lo "otro" de Occidente como algo que, en vez de serle ajeno, constituye su propio suelo sobre el cual y contra el cual Occidente se levanta, dejándolo así oculto, para observar la perspectiva que éste ofrece cuando es contemplado desde el fondo, desde el otro lado, desde fuera-dentro. 51 GARAGALZA, Luis. La gnosis de Eranos: G. Duand. In: VERJAT, El retorno de Hermes: hermenéutica y ciencias humanas. Barcelona: Editorial Anthropos, 1989. p. 137. En esta concepción tradicional el conocimiento del hombre comienza por el conocimiento de los dioses y de sus luchas (pólemos), es decir, por la mitología como relato de una historia sagrada, atemporal y ejemplar sobre la cual se modela por repetición cualquier acontecimiento histórico, sea individual o de una colectividad. [...]Para el hombre moderno la figura mítica de Hermes representa, según Durand y Jung, la única posibilidad de tener la experiencia del pensamiento más antiguo como actividad autónoma de la que se es objeto , la única posibilidad de recuperar el primitivo pensamiento simbólico como objeto de percepción interna, como revelación de algo que se manifiesta (fenómeno) y se evidencia en su facticidad inmediata. 30 Para a análise do objeto artístico, Gilbert Durand criou nos anos 70, a mitocrítica a partir da psicocrítica desenvolvida por Charles Mauron em 1949. Gilbert Durand52 entende o Imaginário como o conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do homo sapiens . De sua coleta de imagens, ele retira uma série de conjuntos constituídos em torno de núcleos organizadores (constelações e arquétipos). Não se atendo às propostas da moderna ciência ocidental baseada no racionalismo cartesiano e no positivismo de Comte, desenvolveu uma orientação epistemológica que surge na perspectiva de se constituir numa abordagem científica que leve em conta o elemento espiritual e coletivo na concretude da realidade imediata. A favor da interdisciplinaridade, Durand opõe-se ao dualismo filosófico que coloca em extremos o materialismo e o subjetivismo. Através dos estudos que desenvolveu, Durand ratifica a retórica da imagem simbólica e reafirma a dimensão dos arquétipos e a força diretiva dos mitos, pois como ele mesmo já afirmou, o imaginário não é uma simples abstração, uma vez que segue regras estruturais da hermenêutica. Para Durand, o mito é visto como o último fundamento teoricamente possível de explicação humana - da operacionalização do conceito de mito. Durand vê o mito como um arranjamento de símbolos e arquétipos que se apresenta através de mitemas53 - discurso este relativo ao ser, onde está investida uma crença que propõe realidades instaurativas. Segundo este autor, o imaginário é a referência última de toda a produção humana através de sua manifestação discursiva - o mito - o pensamento humano move-se segundo quadros míticos. Ou seja, para este autor em todas as épocas ou sociedades existem mitos subjacentes que orientam e modelam a vida humana. O propósito do trabalho do filósofo é justamente desvelar os grandes mitos diretivos, isto é, aqueles responsáveis pela dinâmica social ou pelas produções individuais representativas do imaginário cultural, no tempo e no espaço. Quando um mito diretivo manifesta-se através da redundância, é identificado como mitemas obsessivos - aqueles que se repetem de forma recorrente, através da organização de símbolos (que embora nunca seja um dado a priori, já que apontam para múltiplos sentidos. 52 Este filósofo e antropólogo nasceu em 1º de maio de 1921 em Chambéry, na França. Recebeu forte influência de mestres como: Bachelard, Jung, Lévi-Strauss, entre outros. Graduou-se em Filosofia (1947); doutorou-se em Letras (1959). Fundou (1967) e presidiu o Centro de Pesquisas sobre o Imaginário; dentre vários títulos e ocupações, é professor catedrático na Universidade de Grenoble. 53 Narrativa puramente ficcional. Cada mitema é o portador de uma mesma verdade relativa à totalidade do mito, seria dizer que cada fragmento e cada parte contém em si a totalidade do objeto. 31 Através da repetição é possível sua classificação, pois neste caso aponta para um único sentido), onde a arte não é o fim, o fim é o herói. A mitocrítica refere-se a um ensaio metodológico em que foram selecionadas as metáforas obsessivas (grupos de imagens que se repetem) e que procura interpretá-las mediante o Mito Pessoal do autor. Os mitemas constitutivos da narrativa mítica se repetem e, por isso mesmo, tornam-se cada vez mais significativos. Um mitema pode ser um motivo, um tema, um objeto, um cenário mítico, um emblema, uma situação dramática. Em nosso estudo os mitemas se referem à trajetória do artista herói, buscando desvelar um nível de compreensão maior que se alinha com os grandes mitos clássicos. A partir de Durand, podemos estabelecer três momentos para a identificação dos mitemas e do mito diretivo do texto cultural : i) um levantamento dos elementos que se repetem de forma obsessiva e significativa na narrativa e que são as sincronias míticas; ii) um exame do contexto em que aparecem, das situações e da combinatória das situações; iii) a apreensão das diferentes lições do mito (diacronia) e das correlações de uma tal lição, de um tal mito, com as de outros mitos de uma época ou um espaço cultural determinados. Portanto, o mito vai se definindo a partir da organização de símbolos e de um quorum de mitemas, pois o mitema é a menor unidade com significado de natureza estrutural. Para Durand, os mitemas podem se manifestar - e semanticamente atuar - primeiro de modo patente, segundo repetido de forma explícita e de conteúdo homólogo ou de modo latente ou, finalmente, repetido de forma implícita pela intencionalidade. A mitocrítica está centrada na análise dos mitos de textos culturais; pois que todo mito pessoal é um mito coletivo vivido no horizonte de um ideário. Segundo Vargas (1996), a Mitocrítica de Gilbert Durand, dentre as obras teóricas vinculadas à Escola de Eranos, é a que maior interesse desperta, quando o objetivo é a interpretação da obra de arte, posto que, nas obras de Durand encontra-se uma análise onde, para compreender o mito, é preciso reconstruir suas estruturas, acrescentando outro nível de leitura à análise cultural idealizada pelo etnólogo LéviStraus. 32 Desta forma sua análise estrutural se diferencia da proposta formulada pelo etnólogo francês basicamente pelo acréscimo de um terceiro nível de leitura além do sincrônico e do diacrônico: o nível arquetípico ou simbólico que ademais de considerar as redundâncias ou repetições reagrupa os símbolos em constelações por suas convergências. Durand apresenta uma organização simbólica do imaginário composta de duas grandes regiões ou regimes de imagens: o Diurno e o Noturno. O primeiro composto pelas estruturas esquizomorfas ou heróicas (idealização, diairetismo, geometrismo e antítese) relacionado com o reflexo dominante postural e constitutivo dos símbolos teriomorfos, catamorfos, diairéticos, ascencionais e espetaculares. O segundo composto por dois grupos de estruturas: as sintéticas (coincidentia oppositorum, dramatização, historização, e progressismo parcial ou total) relacionadas com o reflexo copulativo e constitutiva do simbolismo cíclico, e as estruturas místicas (redobramento, viscosidade, realismo sensorial e guliverização) relacionadas com o reflexo digestivo e constitutivas dos símbolos de inversão e intimidade.54 Durand busca a identificação de um conjunto significativo de mitemas e redundâncias que facilitam a identificação do mito oculto, que fornece ao leitor a chave do sentido simbólico da obra literária. Este método desenvolvido por Durand (a mitocrítica) volta-se para a obra literária, sendo um método de identificação e análise do mito oculto, no qual o mitema é a menor unidade com significado. O método de Durand analisa a obra artística como portadora de um discurso mítico, sendo que tal discurso se caracteriza por três aspectos relevantes: a equivocidade de seus termos (sempre inadequados), a redundância diacrônica e sincrônica e os seus aspectos fundadores. A obra de arte, o sistema filosófico, o sistema religioso e podemos agregar o sistema das instituições sociais constituem paradigmas de alta freqüência simbólica. Ou seja, as figuras que acarretam e que os constituem podem ser recolhidas como diria Ricoeur-, interpretadas , traduzidas (e também às vezes traídas) sem que se esgote o sentido. Resumindo, podia-se dizer, chamando míticas a essas altas construções do imaginário, que é a mitologia que resulta ser o aperfeiçoamento exemplar da gênese do símbolo. (Tradução nossa)55 54 VARGAS. Antônio. Antropologia simbólica: hermenêutica do mito do artista nas artes plásticas. (1996) In: www.arte.unb.br/anpap/vargas.htm Acesso em 20 de julho 2005. 55 DURAND, Gilbert. De la mitocrítica al mitoanálisis. Barcelona: Ed. Anthropos, 1993. P.25-26 La obra de arte, el sistema filosófico, el sistema religioso y podemos añadir el sistema de las instituciones sociales, constituyen unos paradigmas de alta frecuencia simbólica. Las figuras que acarrean y que los constituyen pueden ser recogidas - como diría Ricoeur -, interpretadas , traducidas ( ¡e incluso a veces traicionadas!) sin que se agote el sentido. Resumiéndome podría decir, llamando míticas a estas altas construcciones del imaginario, que es la mitología la que resulta ser el perfeccionamiento ejemplar del génesis del símbolo. 33 Para Durand é na cultura que se encontram as generalizações simbólicas (míticas), generalizações que as culturas potencializam e atualizam. São estas atualizações que constituem os códigos privilegiados e específicos do homem, porém não são eles o fator dominante de suas representações. O problema maior desta análise, no entanto, radica no fato de que o conceito de estilo utilizado por Durand, ainda que este não o reconheça explicitamente, separa a temática do tratamento técnico desta. Como conseqüência as pulsões subjetivas, isto é, as estruturas do imaginário do autor, adquirem um papel tão predominante na construção do resultado plástico que desconsideram excessivamente as influências de ordem ideológica do meio social, conduzindo a uma interpretação na qual o significado simbólico das temáticas, mais que constituir-se como resultado das tensões entre o autor e o meio, é fruto de questões internas de ordem psicológica, reduzindo assim o estilo a uma solução técnica de ordem estrutural despossuída de seu conteúdo ideológico e coletivo. Isto, no entanto, não diminui a importância ou valor da hermenêutica durandiana, apenas revela a dificuldade de formulação e aplicação de uma metodologia idêntica para distintas linguagens artísticas. Evidencia a necessidade de adaptações de ordem metodológica, pois, no que se refere às artes plásticas, a mitocrítica ainda encontra-se em vias de construção.56 Vargas57, propõe uma adaptação da hermenêutica de Durand (mitocrítica) para as artes plásticas, pautando-se no mito do artista e no modo como Durand critica o reduto existencialista que existe na psicocrítica de Mauron, apontando o mito como o âmbito para solucionar esta dificuldade. Ao fazer a adaptação da mitocrítica para as artes plásticas Vargas, ressalta a possibilidade do uso do mito do artista como categoria de análise, [...] pois se a estrutura narrativa da obra literária possibilita a identificação de um conjunto significativo de mitemas e redundâncias facilitando assim a identificação do mito oculto que fornece ao leitor as chaves do sentido simbólico, a estrutura não narrativa das artes plásticas dificulta enormemente esta tarefa. Neste sentido se pode afirmar que a obra plástica atua como mitema autônomo, cuja sincronicidade, mesmo em conjunto com outras da mesma série, se nega a uma diacronia dominante.58 Assim, por meio da utilização deste aparelho teórico, na tentativa de ressaltar o aspecto mítico como relevante para entender a obra de arte, o círculo conceitual se completa. Entende-se, finalmente, em que sentido o mito é veículo do simbólico. 56 VARGAS, Antonio. Antropologia simbólica: hermenêutica do mito do artista nas artes plásticas. In: http://www.arte.unb.br/anpap/vargas.htm Acesso em 15 de janeiro de 2006. 57 VARGAS, 1997, p. 61. 58 Ibid, p.61. 34 CAPITULO II - CAMINHO PARA A MITOLOGIA ARTÍSTICA 2.1. O artista a partir do mito do Herói. Culturalmente o artista possui as mesmas características mitológicas do herói. Estas características indicam o conteúdo que a cultura valoriza e correlaciona como propriedade artística. O artista também vai construir sua identidade artística a partir do que a cultura determina que é arte. A partir de Vargas, pode-se dizer que o artista não constrói sua identidade artística do nada, mas o faz a partir de um processo de identificação com valores artísticos percebidos em obras e autores que são reconhecidos como tais, tanto pelo coletivo em que o jovem artista encontra-se inserido como por coletivos em que deseja inserir-se. Isto significa que é preciso ter em conta quando se fala de identidade artística, que o conceito de artista que o próprio artista possui está carregado de um sentido simbólico que apenas a compreensão do mito oculto neste sentido pode desvelar. A identidade do artista não é, então, gerada na solidão da individualidade ou do imaginário do artista, mas resulta de um processo de apreensão do caráter simbólico dos valores (arquétipos) que se apresentam a ele, no fluxo de sua vida psíquica e social. Ainda: Não se afirma com isto que a compreensão do mito de artista que o artista recria em sua identidade artística explica o sentido da obra, pois isto também seria um reducionismo do sentido simbólico da obra de arte. O que se afirma é que a compreensão do mito oculto na concepção de artista de um autor também nos auxilia a compreender o sentido da obra, ou para utilizar a terminologia durandiana, nos ajuda a compreender o trajeto antropológico do símbolo, pois as tensões constitutivas do sentido entre o estilo e os regimes de imagens se harmonizam no mito artístico, pois por ser mito harmoniza os contrários. 59 59 VARGAS, 1997, p. 61-62. 35 Para a hermenêutica, no mito não há linha histórica, isso também acontece no processo de construção da identidade artística. A experiência artística é transtemporal e mitológica, sendo que a experiência mítica não tem delimitação histórica. O mito do artista une o artista atual a outros artistas de outras épocas. Torna-se necessário considerar que, mesmo sendo uma experiência transtemporal, a construção da identidade se dá no contexto histórico, para Vargas60 não há dúvidas entre os que estudam os processos de construção da identidade artística sobre a importância do mercado enquanto espaço no qual se dá o jogo de aceite e rejeição das práticas artísticas. 2.2 - Contemporaneidade do mito e crise de interpretação na arte. O mito no cotidiano do homem contemporâneo é tratado por Jabouville61, que escreve que homens e mulheres, vivendo no mundo contemporâneo, são também herdeiros do hermetismo, da alquimia, da psicologia das profundezas. Moral, religião, filosofia, poesia, pintura, lógica, ciência, em tudo o mito - como produto do imaginário - pode servir de estrutura básica . A cultura atual apresenta a tendência de desmistificar, comportamento, aliás, que é próprio de uma sociedade que traz na sua herança recente o racionalismo, o positivismo, a tecnologia. Porém contraditoriamente, verifica-se que a sociedade não perde a oportunidade de tentar criar e afirmar uma mitologia que se pensa adequada a sua realidade. Realidade cultural extremamente rica, o mito participa em naturezas várias, subentende funções diversas e pode apresentar-se sob uma infinidade de materializações e de aspectos, constituindo uma linguagem particular do homem. O conceito de mito é tão vasto que nele se pode incluir praticamente toda expressão cultural humana - é o tudo ou tão restrito que se limita a um corpus específico e limitado, a um momento pontual e singular. É nada e é tudo. Se para o homem comum, ele pode apresentar-se com um conteúdo deturpado, a verdade é que, ao longo dos séculos, o MITO tem servido de ponto de partida, de meio, de objetivo ou de resposta para atitudes da humanidade.62 60 VARGAS, Antônio. Apontamentos para o estudo da identidade artística. Urdimento. Revista de estudos sobre teatro na América Latina, Florianópolis, SC, Universidade do Estado de Santa Catarina, 2006. 61 JABOUVILLE, Victor. Iniciação a ciência dos mitos. Lisboa: Inquérito, 1994. P. 14. 62 Ibid, p. 15-16. 36 É um fato, inegável, que vive-se em uma sociedade em que o mito está também presente, porém o que há em comum em os mitos atuais e a os mitos dos deuses e heróis do passado, onde encontra-se esta semelhança? Neste sentido, em Jabouville63 há a idéia de que a palavra mito está na história das culturas em uma dimensão que ultrapassa limites geográficos da sua origem, porém com a manutenção de semelhanças de estrutura e conteúdo. Este trabalho não tem a intenção de fazer uma análise destes pontos de semelhança entre os mitos existentes em tantas culturas e épocas, mas antes, apropriar-se deste aspecto de universalidade e atualidade do mito, posto que o enfoque desta pesquisa está na mitologia artística, que traz uma resposta mítica para a questão da construção da identidade artística, tanto do ponto de vista do artista, como do ponto de vista da cultura. De forma geral o mito sempre esteve presente na expressão literária, na música, nos palcos, nas artes plásticas, enfim na arte. O foco deste trabalho está nas artes plásticas (na figura do artista) que, como afirma Jabouville64, serviu para ilustrar a mitologia e criou sua própria mitologia. O que se está propondo é uma pesquisa voltada para a mitologia da construção da identidade cultural do artista voltando-se, desta forma, para o mito como fator cultural, ou seja, o mito cultural narra as atividades de heróis que, tal como Prometeu, melhoraram as condições de vida do homem. Busca-se no mito do artista o mito do herói, um mito que traz consigo uma narrativa heróica e, para tanto, toma-se emprestados alguns princípios do mito levantados por Jabouville65. O mito é uma narrativa (com ação e personagens memoráveis), cujo autor não é identificável (porque pertence ao patrimônio cultural coletivo), que tem como tema o fundo lendário, étnico e imaginário (com base na tradição) e que, ao ser geralmente aceite, se integra num sistema na maior parte dos casos, religioso e, muitas vezes sob forma literária (oral ou escrita), agrupa-se e constitui-se em mitologia. 63 JABOUVILLE, op cit., p. 18. Ibid, p. 19-20. 65 Ibid, p. 36-37. 64 37 Estes aspectos serviriam de compreensão do mito antigo, porém a extensão e renovação do conceito permitiriam a integração do mito no cotidiano do homem contemporâneo. Muitas são as correntes e teorias que discutem o mito, neste estudo opta-se, por razões de método, pela corrente simbolista, que entre as teorias da segunda metade do século XX, é aquela que encara o mito como uma maneira diferente de exprimir o pensamento, a cultura e o modo de encarar o mundo. A psicanálise tem grande importância neste processo de interpretação, posto que a partir das teorias de Freud (1856-1936) e sua relação com a cultura Grega, este fio não mais se desfez, seja através de seus seguidores, discípulos ou dissidentes. Neste sentido já foi mencionada no primeiro capítulo a figura de C. G. Jung e sua teoria dos arquétipos . Levi-Strauss tem também relações com a psicanálise e no capítulo IV de Mito e Significado o autor faz uma análise dos processos e pesquisas antropológicas, e de materiais recolhidos sobre os mitos, levantando alguns problemas pertinentes. A primeira questão a ser considerada é a forma de organização dos mitos recolhidos, alguns como histórias desconexas e outros com seqüência e coerência lógica. Nesta direção, o autor apresenta a hipótese de que o estado desconexo é o arcaico, e que os mitos foram reunidos e postos em ordem por alguns nativos sacerdotes e filósofos, que nem sempre aparecem em toda parte, mas apenas em determinado tipo de sociedade .66 Um segundo problema levantado é de natureza mais prática, e diz respeito ao fato de que, no passado, fins do século XIX e início do XX, a maior parte do material mitológico recolhido vinha de pesquisas antropológicas, ou seja, eram recolhidos por pessoas externas àquela determinada sociedade, seguindo assim uma mesma organização. Assim, é extremamente importante verificar se há diferenças (e se houver, que tipo de diferenças) entre as tradições recolhidas do exterior e as coligidas do interior como se tivessem sido recolhidas do exterior .67 Onde estamos diante da mitologia e onde estamos diante de uma história contada: eis o maior problema, para o qual o autor levanta alguns aspectos que devem ser considerados. 66 67 LEVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1989. P. 56 Ibid, p. 57. 38 O primeiro aspecto é a estrutura básica e a relação com o conteúdo, que pode variar mantendo a propriedade de um mito. O segundo aspecto é que os mitos, apesar de poderem ser considerados histórias, são extremamente repetitivos, têm lugar em ambientes diferentes, dizem respeito a pessoas diferentes e se passam em períodos históricos diferentes. Desta maneira o que o autor propõe é que: [...] a oposição simplificada entre Mitologia e História que estamos habituados a fazer não se encontra bem definida, e que há um nível intermediário. A mitologia é estática: encontramos os mesmos elementos mitológicos combinados de infinitas maneiras, mas num sistema fechado, contrapondo-se à história, que, evidentemente, é um sistema aberto.68 Levi-Strauss69, ao concluir sua argumentação, leva a pensar que para a sociedade atual a história desempenharia a mesma função da mitologia para as sociedades sem escrita, ou seja, assegurar algumas certezas, estabelecer um sentido. Micela70, em Antropologia e Psicanálise, faz uma relação entre o pensamento estrutural de Levi-Strauss e a teoria do inconsciente de Freud, concluindo que para Levi-Strauss, o inconsciente é vazio, limitando-se à imposição de leis estruturais, que esgotam toda a sua realidade e a elementos inarticulados que provêm de outra parte - impulsos, emoções, representações, recordações. O método estrutural construído por Levi-Strauss em antropologia permitiu formalizar, no nível da análise científica, a concepção de uma rede de relações ocultas por trás das relações e dos fenômenos sociais diretamente visíveis. Esse método se propôs a analisar as relações supra-estruturais que entrecruzam as relações de ordem material. Assim, poder-se-ia dizer que em Levi-Strauss encontra-se a dominância do símbolo sobre o social. Esta forma estruturalista, que pode ser a maneira de encontrar ordem em uma aparente desordem, é parte do seu pensamento antropológico. Quando se volta para o problema da mitologia utiliza esta relação, ou seja, tenta buscar regras que se repetem, estruturas de significado. 68 LEVI-STRAUSS, op cit., p. 61. Ibid, p. 62 a 64. 70 MICELA, Rosamaria. Antropologia e psicanálise - uma introdução à produção simbólica, ao imaginário, à subjetividade. São Paulo: Brasiliense, 1984. P. 58 a 65. 69 39 As histórias de carácter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação fantasiosa da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única não se esperaria encontrar a mesma criação num lugar complemente diferente. O meu problema era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente - e era tudo.71 Assim, o autor escreve que na desordem é impossível conceber um significado, destacando que deve haver uma certa ordem no universo ou que o universo não é um caos. Houve de fato um divórcio entre o pensamento científico e o mundo dos sentidos, dos símbolos, das coisas, das imagens, mas estamos no momento de superar ou de inverter esta separação, pois sempre haverá um fosso entre as respostas que a ciência pode dar e as novas perguntas que aparecerão, ou seja, a ciência nunca poderá dar todas as respostas. Seria possível dizer, a partir de Jabouville72, que o mito surge como módulos da história: O pensamento humano move-se dentro de quadros míticos e, inconscientemente ou não, eles estão presentes nas manifestações do imaginário. Na realidade existencial das culturas e da vida dos homens, é o mito que distribui o papel da história de uma época, de um século, de uma idade de vida . A questão que se apresenta a esta altura da discussão, é a questão do mito que está presente no cotidiano, mais especificamente na construção da identidade cultural a partir da mitologia heróica. Para tanto supõe-se que a estrutura do mito pode ser melhor entendida a partir do contato com as mitologias primitivas, presentes em todas as religiões mediterrâneas e asiáticas, porém grande parte destes mitos foram re-contados, enriquecidos, modificados, o que faz com que seja bem mais rico o estudo dos mitos de povos primitivos que não desempenharam papel importante na história do ocidente. O homem das sociedades arcaicas vive o mito através dos rituais, e se o mito lhe oferece uma explicação do mundo e do seu próprio modo de existir no mundo, ao rememorar o mito e reatualizá-lo, ele é capaz de reviver a façanha dos deuses, dos heróis ou dos seus ancestrais. Ou 71 72 LEVI-STRAUSS, op cit., p.23-24. JABOUVILLE, op cit., p. 79. 40 seja, os mitos revelam, além origem das coisas, também o modo como encontrá-las e como fazêlas reviver num movimento de eterno retorno.73 Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, contemporânea . De certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao viver os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo sagrado , ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável.74 O mito é constantemente revivido e recriado, e o que aqui interessa não é a realidade histórica, mas a figura messiânica do herói, responsável pela recriação do mundo, que mesmo sem uma destruição apocalíptica visível, restaura simbolicamente o que foi destruído. Eliade fala deste fim do mundo na arte moderna , referindo-se a história da arte moderna. Em alguns casos, trata-se de um verdadeiro aniquilamento do Universo artístico estabelecido. [...]mais que uma destruição, é uma regressão ao caos, a uma espécie de massa confusa primordial. [...] Ele precisava reduzir a nada as ruínas e os escombros acumulados pelas revoluções plásticas precedentes; precisava chegar a uma modalidade germinal da matéria, a fim de poder recomeçar a história da arte a partir do zero.75 O essencial não está ligado ao mundo real, mas a uma história ; em suma, os mitos recordam continuamente eventos grandiosos que tiveram lugar em tempos primordiais que são, em parte recuperáveis . Não se trata de uma recriação estereotipada, mas de variações que se afastam sensivelmente do seu protótipo. Esta suposta imitação dos gestos paradigmáticos dos heróis eleva o homem. Isso surge ainda mais claramente quando temos em mente que, nas sociedades arcaicas, a recitação das tradições mitológicas é apanágio de alguns poucos indivíduos [...]. Em todo caso aquele que recita os mitos deve ter dado provas de sua vocação e ter sido instruído pelos velhos mestres.76 Os mitos estão presentes no mundo contemporâneo, porém, nem todos os seus traços estão evidentes para todas as pessoas. Pode-se dizer que os mitos sobrevivem sempre, apesar de 73 ELIADE, op cit., p. 17-18. Ibid, p. 21. 75 Ibid, p. 25. 76 Ibid, p. 128. 74 41 estarem camuflados sob uma aparente vida real. Segundo Eliade77, alguns comportamentos míticos ainda sobrevivem sob nossos olhos . O autor não está falando da sobrevivência de uma mentalidade arcaica, mas de aspectos e funções do pensamento mítico, que fazem parte da matéria que constitui o ser humano. Entre os aspectos das mitologias arcaicas presentes nas mitologias modernas, Eliade tece uma argumentação consistente a respeito da renovação de características do pensamento mítico que faz do mito algo sempre contemporâneo, além da mitificação imposta às coletividades através da mass media78. Esta contemporaneidade do mito está muito próxima de todos nós, para Eliade79, comportamentos míticos poderiam ser reconhecidos na obsessão do sucesso - característica da sociedade moderna - traduzindo um desejo de transcender os limites da condição humana, no culto aos bens de consumo ou ainda nos chamados mitos da elite, estes ligados a criação artística e a sua repercussão cultural. A respeito da mitologia nas artes plásticas, o autor argumenta que o mito do artista maldito já está obsoleto, ao contrário disso, pede-se que o artista molde-se à imagem mítica, que seja estranho, irredutível e que produza algo de novo . É o triunfo absoluto da revolução permanente na arte . Neste sentido, Eliade80, assinala em primeiro lugar a função redentora da dificuldade e nos leva a pensar a respeito da crise presente no universo da arte. Certamente, todas as experiências revolucionárias autênticas da arte moderna refletem certos aspectos da crise espiritual ou, simplesmente, da crise do conhecimento e da criação artística [...] É um novo mundo que está sendo reconstruído a partir de ruínas e de enigmas, um mundo quase privado, que se gostaria de manter para si mesmo e para alguns iniciados. Mas é tal o prestígio da dificuldade e da incompreensibilidade, que o público, por sua vez, é rapidamente conquistado e proclama sua total adesão às descobertas da elite.81 Adiante ele acrescenta que toda a crise da arte estabelecida a partir do cubismo, dadaísmo e surrealismo assinala a não disposição de criadores autênticos em se instalar sobre os escombros. Eliade ainda adverte que a redução dos Universos Artísticos ao estado primordial da matéria 77 ELIADE, op cit., p. 156. Ver em ELIADE, op cit., p. 159. 79 Ibid, p. 160. 80 Ibid, p. 162. 81 Ibid, p. 162-163. 78 42 prima é apenas uma fase de um processo mais complexo, como nas concepções cíclicas das sociedades arcaicas e tradicionais, o caos , a regressão de todas as formas à indistinção da matéria prima, são seguidos por uma nova criação, equiparável a cosmogonia .82 A mitologia é, desta forma, construtora de sentido, não há identificação de obra de arte sem mitologia, pois a cultura mítica está em todas as sociedades. E sendo assim, a mitologia heróica-artística aparece também nos discursos da arte contemporânea, enquanto relato de experiências simbólicas, às vezes carregado de mais ou menos mitologia. Mas mesmo as características mitológicas muitas vezes não são reconhecidas, por falta de ferramentas para analogias, uma vez que as qualidades estéticas têm fundo mitológico, mas os simbolizantes não têm padrão, diferentemente das imagens simbólicas. O agravante na crise contemporânea de interpretação das artes plásticas é o fato de que muitas vezes o próprio especialista não encontra qualidades artísticas nos objetos do circuito das artes, estas qualidades que pretende-se buscar no discurso do leitor da cultura. Está também implicado nesta crise o mercado de arte, que muitas vezes constrói no discurso uma experiência que não é vivenciada pelo artista e muito menos pelo público. A crise seria a divergência entre vivência, objeto e discurso. Vargas83 cita Donald Kuspit (1992), que em uma palestra no VI Encontro Internacional de Arte Contemporâneo de Madrid, diz que a excelência da arte é a excelência artística. Para ele, a arte é mais do que apenas forma, mas precisa da excelência formal. Para além desta crítica em relação ao privilégio que nessa época deu ao conteúdo, Kuspit também critica os heroísmos artísticos que fazem alusão a artistas personalistas (preocupações internas) e artistas reeducadores (preocupações externas), dizendo que estas críticas são prejudiciais à sociedade. Kuspit propõe a transformação dos dois mundos (interno e externo) - o que não deixa de ser a proposição de uma mitologia. 82 ELIADE, op cit., p. 163. VARGAS, Antônio. Do valor da prática a prática de valor. Ponto de Vista. Florianópolis, SC, n. 6/7, Editora da UFSC, 2004/2005. P. 4. 83 43 2.3 - O mito do herói Para Campbell84, o herói tem na ação um objetivo maior (o bem do outro ou a elevação da humanidade), destacando dois tipos de proezas heróicas. A primeira é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante uma batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem .85 Esta mitologia heróica é a base da mitologia artística. Aquela onde o herói é alguém que sente que algo está faltando nas suas experiências normais. Ele parte, assim, para novas aventuras que ultrapassam o de costume para recuperar algo ou descobrir uma verdade. Como base para o mito do herói utilizar-se-á o estudo de Brandão, que toma como ponto de partida a mitologia grega e busca discutir a origem, as características e particularmente as funções e os serviços que os heróis prestavam em vida e post mortem. O autor argumenta em favor da idéia do herói como figura sobre humana, mas não divina, esclarecendo que este pode ter procedência mítica ou histórica, defendendo que o herói é simplesmente um arquétipo, que nasceu para muitas de nossas deficiências psíquicas.[...] de forma que todos os heróis, descontados fatores locais, sociais e culturais, tem um mesmo perfil e se encaixam num modelo exemplar .86 As características de herói, levantadas por Brandão, coincidem com as levantadas por Campbell, Eliade e W. Otto, e entre estas está a da origem divina, sendo que, segundo Brandão87, na mitologia grega existe uma polêmica em torno da origem divina ou humana do herói. Esta polêmica se apoiava nos sacrifícios que eram oferecidos aos deuses (origem divina) e aos heróis (origem humana), e no rito com que eram executados, porém apresenta uma nova argumentação no sentido de verificar a contemporaneidade do mito heróico, em cujo contexto não deve-se mais defender a origem humana, divina ou mista dos heróis. A respeito da origem do herói, Brandão 84 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. P. 131. Ibid, p. 131. 86 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petropolis RJ: Vozes, 1995. P. 20. Vol. III. 87 Ibid, p. 17 a 20. 85 44 diz que este descendia de ancestrais eminentes ou de pais da alta nobreza ou, ainda, é filho de um rei. Sobretudo ele seria o herói: um ser que nasceu para servir . Não seria mais simples dizer que o herói, seja ele de procedência mítica ou histórica, seja ele de ontem ou de hoje, é simplesmente um arquétipo, que nasceu para suprir muitas das nossas deficiências psíquicas? De outra maneira, como se poderia explicar a similitude estrutural de heróis de tantas culturas primitivas que, comprovadamente, nenhum contato mútuo e direto mantiveram entre si? Da babilônia às tribos africanas; dos índios norte-americanos aos gregos; dos gauleses aos incas peruanos, todos os heróis, descontados fatores locais, sociais e culturais, têm um mesmo perfil e se encaixam num modelo exemplar.88 Neste sentido encontra-se em Eliade89, a respeito deste modelo mítico, a apresentação de uma dupla revelação. Segundo este autor, se por um lado existe a polaridade de personalidades divinas, destinadas a tais versões, estas se reconciliam-se em um illud tempus escatológico, e por outro lado, também há no modelo mítico a coincidentia oppositorum90 na sua estrutura profunda. A partir destes pensamentos, nos defrontamos com um modelo heróico , porém pode-se supor que, se a figura do herói sempre esteve presente em muitas culturas e tempos diferentes, desta forma nem todos os heróis reúnem as mesmas características. Como coloca Campbell91, o herói evolui à medida que a cultura evolui . Existindo heróis típicos de algumas sociedades, que diferem umas das outras, o herói do oriente é diferente do herói na cultura atual, existindo um ponto de contato no feito típico do herói de todas as culturas: partida, realizações e retorno. Neste caminho Campbell chega a uma seqüência de ações heróicas que podem ser detectadas em histórias heróicas de várias partes do mundo. Outra característica levantada por Brandão92 é o nascimento traumático na narrativa de vida da história heróica. Segundo ele, via de regra, os heróis têm um nascimento complicado, como Perseu, Teseu, Héracles entre outros, ou ainda, um nascimento irregular, fruto de um incesto ou de dupla paternidade , acrescenta ainda que muitos heróis são expostos às forças de predestinações e, de qualquer forma, por ser um herói, a criança já vem ao mundo com duas 88 BRANDÃO, op cit., p 20. ELIADE, op cit., 137 a 155. 90 A coincidencia oppositorum revela alternada ou concorrentemente características opostas, como benévola e terrível ou criadora e destrutora, reunindo os contrários. 91 CAMPBELL, 1990, p. 144. 92 BRANDÃO, op cit., p. 22-23. 89 45 virtudes inerentes à sua condição e natureza: a honorabilidade social e a excelência , a superioridade em relação aos demais mortais. Neste sentido, tem-se este início de trajetória heróica marcada por traumas de nascimento e situação de heroísmo involuntário do recém nascido em prol da vida do rei ou do bem estar da cidade. O herói está predestinado ao heroísmo, pois já lhe são inerentes as qualidades do ser que veio ao mundo para servir, porém sua trajetória de conquistas apenas pode iniciar a partir da sua formação. Ainda em Brandão93, seu itinerário vai estar atrelado com a educação que o mesmo recebe, o que significa que o futuro benfeitor da humanidade vai desprender-se das garras paternas e ausentar-se do lar, por um período mais ou menos longo, em busca de sua formação iniciática . Campbell94 denomina esse primeiro estágio da jornada mitológica como o chamado a aventura , o que significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida . Se o herói atende ao chamado a aventura , este inicia suas aventuras e proezas comuns até chegar a prodígios sobrenaturais, terá seus mestres e passará por provações e ritos de passagem. Esta trajetória faz o contato limiar entre o herói e o não herói, mas neste sentido o herói é auxiliado para sobreviver à sucessão de provas a que é submetido. O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos, e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno em toda parte, o que o sustenta em sua passagem sobre-humana .95 Neste caminho de caracterização geral do herói, tem-se como ponto importante: a busca por sua formação iniciática. Como já foi citado, para Campbell96, o herói vai ao encontro de algo que lhe falta e, ao mesmo tempo, em busca de algo maior que ele mesmo, neste sentido, para que o futuro herói cumpra sua destinação, ele precisa de uma iniciação, uma educação que lhe prepare para o retorno. 93 BRANDÃO, op cit., p.23. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997. P. 66. 95 Ibid, p. 102. 96 CAMPBELL, 1990. 94 46 Brandão97, diz que, tanto no oriente quanto no ocidente, o mito do herói segue o mesmo modelo de unidade: separação do mundo, iniciação, regresso à vida, para que todos possam usufruir suas energias benéficas. Neste percurso iniciático, o herói pode passar por transformações, entre as quais Brandão98 destaca alguns dos ritos mais freqüentes, a saber: o corte do cabelo, a mudança de nome, o mergulho ritual no mar, a passagem pela água e pelo fogo, a penetração num labirinto, o androgenismo, o travestismo, a hierogamia . O autor esclarece que muitos destes ritos e provações seguem costumes específicos de algumas iniciações arcaicas de puberdade, as iniciações tribais e, na época clássica, a organização social e religiosa, além da classe de idades ateniense. Passasse à análise resumida de alguns destes aspectos levantados por Brandão: O corte de cabelo - o corte de cabelo ou de uma mecha, aparece como forma sacrifical e constitui rito de luto, assim como rito de passagem de idade ou de estado. Às vésperas do casamento, as jovens ofereciam uma mecha de cabelo a um herói ou heroína. O sentido do ato de cortar o cabelo é separar-se do profano do mundo e ligar-se ao divino, ao sagrado, buscando iniciar uma nova vida. Mudança de nome - com função ritual de passagem, de separação (separar-se do mundo o nome (secreto, religioso) separa o nominado de seu mundo anterior, profano, impuro, para integrá-lo no sagrado, o que explica a mudança de nome entre os religiosos atuais 99 ) ou de agregação (juntar-se ao mundo) a mudança de nome em culturas primitivas podia ocorrer tantas vezes quantas fossem as etapas de crescimento e desenvolvimento iniciático. Androginismo - o androginismo, como o homossexualismo masculino, são temas comuns no mito dos heróis, mas se manifesta de maneira atenuada, através do travestismo (por se travestir acaba-se por mudar de sexo com um ato de metamorfose, ambiguidade sexual que acaba difinindo-se, ou ainda uma forma de disfarçar-se), da mudança de sexo e do rito do hieròs gámos. O androginismo puro é pouco exemplificado na mitologia clássica. Para Brandão100 a síntese e coroamento, não apenas da vida heróica, mas ainda e, sobretudo de um androginismo atenuado e 97 BRANDÃO, op cit., p. 25. Ibid, p. 27 a 29. 99 Ibid, p. 31. 100 Ibid, p. 37. 98 47 simbólico é o hieròs gamós101, as núpcias sagradas do herói . O casamento representaria o encontro da metade perdida, re-unindo e restaurando a antiga perfeição. O que talvez explique a importância que se dá no mito ao hieròs gamós e às lutas travadas pelo herói para realiza-lo. A respeito do mito do androginismo divino, em Eliade102, há a argumentação no sentido de que o mito da androgenia divina seria uma fórmula arcaica da bi-unidade, ou da coincidentia oppositorum, dado que todos os atributos coexistem na divindade, é de se esperar que nela coincidam igualmente, sob uma forma mais ou menos manifesta. A androginia heróica envolve, entre outros aspectos, a necessidade de reintegrar a totalização perdida, envolve lutas, batalhas do herói na busca desta metade vital. Da mesma forma, para Brandão103 o par masculino e feminino é apenas um dos aspectos de uma multiplicidade de opostos. É necessário que sua interpenetração novamente se consume e o androginismo explícito, atenuado, alusivo, simbólico, não importa o nome ou o grau , está intimamente correlacionado com o travestismo e o hieròs gamós como rito de passagem. Trata-se de uma típica situação iniciática, em que o menino passa a adolescente e este se completa no casamento (união do masculino e do feminino). Outro aspecto do herói encontrado em Brandão104, é a sua ligação com a agonística, ou, uma estreita ligação com as lutas . Sendo o herói uma espécie de guerreiro, sobre a mitologia do 101 Hieros Gamos nada tem a ver diretamente com erotismo - é um ato espiritual, onde as relações sexuais são o ato através do qual o homem e a mulher experimentavam o divino. Os antigos acreditavam que o masculino era espiritualmente incompleto antes de ter conhecimento carnal do sagrado feminino. A união física é o único meio segundo o qual o homem se pode tornar espiritualmente completo e chegar a atingir o conhecimento divino. Em comunhão com uma mulher o homem pode atingir um instante de êxtase no qual sua mente fica totalmente vazia e ele é capaz de chegar ao divino. Este é também o nome dado ao ritual feito por povos agrícolas da Antigüidade para trazer fertilidade às lavouras e agradecer a colheita. De origem grega, a palavra significa: casamento sagrado. Sacerdotes e sacerdotisas personificavam os deuses e se relacionavam sexualmente após as festividades, que incluíam procissões, oferendas, ritos de purificação e comunhão alimentar entre os participantes. Esta situação do casamento sagrado foi metáfora posteriormente bem aproveitada pelos formuladores do monoteísmo, de fato, a noção de hieros gamos pode relacionar-se efetivamente com a prática sexual propositadamente direcionada de uma profissional do culto - sexual, neste caso - e o seu deus. De uma forma genérica, a efetivação dessa relação não seria mais que a manutenção desse casamento, e sim o ritual pleno, revivido e potencializado, entre o deus cultuado e seu crente. 102 ELIADE, 1977. 103 BRANDÃO, op cit., p. 41. 104 Ibid, op cit., p. 41 a 52. 48 herói guerreiro, Brandão105, escreve que se torna supérflua qualquer exemplificação. Basta abrir a Ilíada e a Odisséia de Homero e contemplar o desfile gigantesco de Aquiles, Pátroclo, Agamêmnon, Menelau, Ulisses, Ajax, Diomedes, Heitor, Páris, Enéas. No entanto, o autor faz refletir a respeito das características destas lutas ou combates, levantando a idéia do Herói como um solitário, lembrando que na Grécia a conexão entre culto agonístico e culto heróico era tão séria que os grandes atletas gregos foram heroicizados, assim como os jogos Pan-Helênicos eram considerados acontecimentos centrais da vida religiosa nacional. O guerreiro é o herói , figura que traz consigo a força física, com a sabedoria da guerra e espiritual, com poderes de adivinhação e cura. Neste sentido o autor propõe que o herói participa das lutas através da: Agonística - caracterizado por lutas e disputas atléticas. Pois bem, a agonística é como que um prolongamento das lutas dos heróis nos campos de batalha, porque também no agón os contendores usam de vários recursos bélicos e, em dependência do certame, expõem, muitas vezes, a vida, embora, em tese, a agonística não vise a eliminar o adversário.106 Cabe esclarecer que o culto agonístico não é exclusivamente heróico, mas é uma das formas mais características do culto heróico, de forma que os grandes e mais célebres atletas foram heroicizados. Brandão107, traz clarificações no que tange à origem da agonística, sendo que esta pode estar ligada ao culto dos mortos, a disputa pelo amor de uma jovem, a soberania de um reino ou ainda ao poder cosmogônico. Mântrica - prática ligada às formas divinatórias, a oráculos, a incubação (mensagens através dos sonhos) e cleromancia (adivinhação). Iátrica - é a arte de curar. Através da ligação ente a Mântrica e a Iátrica, o herói é também médico e segundo Brandão108 é impossível separar Mântrica e Iátrica O herói é, em princípio, a idealização (forte, alto, bonito, destemido, triunfante), porém como já foi dito, no herói há a união de atributos contrários, a coincidência dos contrários. Então 105 BRANDÃO, op cit, p. 43 Ibid, p. 44. 107 Ibid, p. 46-47. 108 Ibid, p. 49. 106 49 [...] um herói aparece igualmente e com muita freqüência sob forma anormalmente gigantesca ou baixinho; pode ter um aspecto teriomormo e andrógino; apresentar-se como fálico; sexualmente anormal ou impotente; pode ser aleijado, caolho, ou cego; estar sugeito à violência sanguinária, à loucura , ao adultério, ao incesto e, em resumo, a uma contínua transgressão do métron, vale dizer, dos limites impostos pelos deuses aos seres mortais.109 Assim, o herói é um ser ambivalente, com faculdades para o bem, tanto quanto para a maldição. O modelo mítico do herói traz a figura da ambivalência quase monstruosa e imoral, mas que vai estabelecer um retorno em benfeitorias em favor do todo. O herói é um personagem que traz consigo características especiais, figura idealizada e ambivalente, cheia de atributos contraditórios, podendo o herói apresentar a faculdade de ser tanto uma fonte quase inesgotável de bons serviços quanto de maldição, sobretudo quando ofendido nesta vida ou depois da morte. Em Brandão110, tem-se algumas argumentações a cerca deste lado negro dos heróis, o autor levanta, a princípio, as características de animais, algumas vezes adquiridas através da metamorfose. Nem totalmente homem, nem inteiramente animal, em seguida Brandão discorre a respeito dos muitos heróis com deformidades físicas ou anomalias. Entre as principais destacam-se a policefalia, a acefalia, a gibocidade, a gagueira, a coxeadura, as cicatrizes e a cegueira. Porém, há uma característica mais séria nesta monstruosidade do herói: trata-se da sua conduta social, ética e moral, passando pelo descomedimento sexual, envolvendo o rapto de mulheres, o estupro, o incesto, o adultério, além de outra presença constante no mito heróico, o homossexualismo. Outra atividade brutal, característica dos heróis, é a de matar, sendo poucos os heróis que não tenham cometido pelo menos um homicídio, na maior parte das vezes de parentes. Encontra-se ainda aspectos do herói que revelam a arte da astúcia e da ladroagem. Estão, pois, presentes no herói os opostos, inúmeras qualidades e serviços em favor da comunidade, mas também fraudes e monstruosidades contidos no complexio oppositorum que faz parte da trajetória heróica. A características de herói levantadas até este ponto, a partir de Brandão111 são: origem divina, nascimento traumático, formação iniciática, a agonística, a mântrica, a iátrica, modelo, monstruosidade, descomedimento sexual, violência 109 110 agressividade e amoralidade. Qual será o BRANDÃO, op. cit. p. 53 Ibid., p. 54 a 63. 50 fim do herói? Qual seu destino final? A morte do herói constitui o último grau iniciático do herói. A morte do herói é traumática, solitária ou violenta, mas é ela que lhe confere a condição sobrehumana: a imortalidade. Apesar da imortalidade do herói, a morte é o ponto de clímax da sua história, pois o herói goza de uma condição sobre humana, o que equivale a dizer que o herói tem uma pós-existência; a morte do herói transforma-o em daemon, num intermediário entre os homens e os deuses .112 A partir destas características pode-se dizer que o herói é uma figura fora do comum (diferente, especial) e no discurso da arte encontramos relatos de fatos que sinalizam as características do herói. A narrativa não é um fato histórico, mas sim um fato simbólico (nem sempre real). A lógica formal cartesiana não explica o que o discurso mítico explica. Os fatos objetivos da história narrada podem não ser verdadeiros, mas as características destacadas o são. Há com freqüência, nos discursos ou relatos sobre a história de vida dos artistas estas características do heroísmo, e apesar desta mitologia heróica, que serve de base para as mitologias artísticas ser basicamente masculina, encontraremos o mesmo discurso na sustentação das biografias artísticas de mulheres. 111 112 BRANDÃO, 1995. Ibid, p. 65 51 CAPITULO III - MITO DE ARTISTA 3.1. Concepções de artista Para relacionar o mito heróico e a mitologia artística utilizou-se os estudos de Neumann (1992) e de Kris e Kurz (1982). Neumann (1992), em seu estudo psicanalítico, relaciona artista e gênio, colocando o artista como uma figura diferenciada, extraordinária: aquele que faz coisas geniais . O autor traz ao debate idéias de uma história psicológica da criatividade, a partir das concepções de artista em pensamentos de diferentes épocas. A partir de Hesíodo e Piménides, o autor fala da tradição que traz a arte como um serviço ligado ao sagrado, como vocação divina. Neste contexto o artista surge como um escolhido, um eleito através do qual a arte poética se manifesta como um milagre, algo que não é manifesto pela aprendizagem. Arte e divino são aqui inseparáveis. Existia uma tendência a relacionar loucura e genialidade, verificada antes do século XIX. Porém a mitologia heróica e artística aparece em diferentes lugares e épocas, modificando particularidades. Neumann113, esclarece que é preciso ter cuidado no que se refere a ligação entre gênio e loucura, pois esta visão nem sempre se dá neste paralelo, o artista pode assumir um estado de êxtase divino, o que não se trata de uma enfermidade mental. Em sua argumentação o autor traz como exemplo a posição de Platão que, partidário do poder divino na formação dos poetas, não se baseou na imagem da enfermidade mental, mas sim na antiga adoração dos estados de êxtase114. Esta forma de inconsciência do artista, ou seja, a forma como o artista passa a ser um meio para a atividade do divino concede autoridade de mediador vidente e diminui a sua responsabilidade perante o conteúdo de sua mensagem, que pode expressar o proibido, o 113 NEUMANN, Eckhard. Mitos de artista, estudio psicohistórico sobre la creatividad. Madrid: Tecnos, 1992. p. 16 Êxtase - Etim: Grego ektasis, descaminho do espírito. 1. Na concepção mística pode ser considerado um estado caracterizado pelo sentimento de comunicar-se total e diretamente com o Transcendental e o Absoluto, unindo-se com este Ser de maneira íntima e inefável. 2. Na fenomenologia pode ser relacionado como uma atitude intencional da consciência que visa a um para além de si. (Russ, Dicionário de Filosofia. 1994:104) 114 52 esperado ou o inesperado, o indesejável, que são descarregados dos ombros do profeta , sem que este se veja obrigado a calar-se para resguardar seu próprio destino. Não é a intenção aqui, refazer toda a trajetória histórica do pensamento a respeito da figura do artista nesta concepção psicológica, mas cabe destacar alguns momentos deste percurso. A respeito do conceito original de sacerdote ou profeta, vale destacar que este conceito está ligado à idéia de criatividade em comparação com o criador, mas difere do culto moderno do artista, onde a visão de adoração e inspiração divina vai dando lugar gradualmente ao culto a personalidade. Segundo Neumann115, no Renascimento há um equilíbrio entre ciência e talento, determinada pela pretensão de personalidade do artista, o que, partir do século XVI vai colocar a personalidade e talento do artista como característica principal. O artista sempre foi figura diferenciada, mas a partir deste momento passa a ser uma personalidade individual, ou um herói cultural. Este caminho é fruto de uma construção histórica da concepção de artista, não deve-se pensar na Idade Média como uma época sem individualismo, onde a obra fazia sombra ao artista, para Neumann116 esta concepção está ligada a uma visão ingênua ligada à lenda moderna de que, onde não há nomes, tampouco há personalidade. Para este autor, a falta de nomes não deve confundir-se com anonimato ou com a não valorização da personalidade do artista, posto que as grandes personalidades não são novidades do Renascimento. O que acontece é um desenvolvimento gradual de um culto à personalidade que, do século XVI ao XVIII alcança seus mais altos graus. Porém para Neumann, a mitologia da Inspiração não fica perdida na Idade Média, e passa a influenciar a idéia de talento nato dos princípios do século XVIII. Neste percurso Neumann destaca alguns pensadores mostrando, por exemplo, o reflexo da concepção de Dante e Bocaccio, para os quais os louvadores sacerdotais seriam os predecessores dos literatos (artistas), e estes teriam a tarefa de manter viva a memória dos reis e seus antepassados, na concepção de investidura de fama que o artista do humanismo proporcionava àquele que o tinha contratado. 115 116 NEUMANN, op.cit. p. 22 a 31. Ibid, p. 20 53 No Renascimento encontra-se a personificação da figura do artista, desenvolvida a partir da pretensão dos artistas do século XV e da busca de equilíbrio entre ciência e talento. O artista (das artes plásticas) não quer ser um artesão, mas estar ao lado dos literatos e cientistas. Segundo Neumann117, o primeiro artista a desfrutar de honra comparável à dos poetas, foi Giotto. Somente a partir do século XVI com o culto a Michelangelo é que Arte e Ciência se encontram no mesmo patamar, estando o talento em primeiro lugar. Que talento seria este? Quem é o criador do Renascimento? O que significaria ser um artista? O artista do renascimento vive a personificação do artista criador que como Leonardo desenvolve em seu Tratado sobre a Pintura, seria aquele que continua a obra que Deus começou. Neste ponto há um paralelo entre o artista e o divino, que difere de visões anteriores sobre o artista. Os paralelismos anunciam-se já na retórica dos tempos imperiais romanos: por isso, na visão de Dión (III, 18) os demiurgos divinos, assim como o artista, construíram o mundo como um mestre de obras, mas a arte divina serviu de um material mais nobre. Esta visão foi baseada na idéia de Platão exposta na República (X, 599 a), segundo a qual existe três tipos de mestre de obras, a saber: Deus como criador da idéia, o artesão como executor dessa idéia e em terceiro lugar o artista como imitador da aparência. Disso segue que em Platão não existe superioridade alguma na consideração artística com respeito ao status do escravo e do artesão. (Tradução nossa)118 Para Platão a obra de arte não passava de um simulacro, uma imitação da realidade ideal, ou seja, a teoria platônica coloca a prática da arte como aparência de segunda ordem e o artista como imitador. Esta é a concepção de artista que se estende à arte medieval e antecede o Renascimento. Os pintores e escultores gregos, ao contrário dos egípcios, não tiveram que ater-se à aprendizagem e repetição permanente de formas imutáveis fixadas com anterioridade, mas sim, ao tomar como referência o modelo natural, tiveram abertos a um progresso expressivo ilimitado. [...] Por um lado o artesão tornou-se artista genuíno, no significado mais essencial do termo, pois conquistou plena capacidade criativa e uma 117 NEUMANN, op.cit. p. 22. Ibid, p. 23. Los paralelismos se anuncian ya en la retórica de los tiempos imperiales romanos. Por ello en la visión de Dión (III, 18) los demiurgos divinos, al igual que el artista, han construído el mundo como maestros de obras, pero el arte divino se ha servido de un material más noble. Esta visión está basada en la idea de Platón expuesta en la República (X, 599 a) según la cual hay tres tipos de maestro de obras, a saber: Dios como creador de la idea, el artesano como ejecutor de esa idea y, en tercer lugar, el artista como imitador de la apariencia. Por esto se entiende que en Platón no hay ninguna superioridad en la consideración artística con respecto a los status del esclavo y del artesano. 118 54 total liberdade de expressão. Mas, por outro, por causa do indestrutível preconceito contra o trabalho manual mantido ao longo de toda a Antigüidade, o artista, ainda que acrescentando paulatinamente sua posição sócio-econômica, continua desprovido da dignidade intelectual de poetas, músicos ou filósofos.119 Se o artista grego passa de artífice a artista e ganha liberdade de criação, o mesmo não acontece na arte medieval, que retoma a cópia e a repetição de formas estabelecidas, com isso praticamente anulando a figura do artista, que ressurge, ao longo da Idade Média, ligado à atividade do monge, ou ao estatuto de artesão. Somente no Quattrocento a figura do artesão medieval vai ser substituída pela figura do artista renascentista. O que acontece no renascimento é a equiparação do artista ao poeta, um criador e não um imitador. Acontece uma espiritualização da figura do artista. Toma-se como exemplo o artista Léon-Battista Alberti120, que explanou suas idéias em tratados sobre pintura e sobre arquitetura. Para Chalumeau (1997, p. 33), Alberti contribuiu grandemente para forjar o mito do artista do Renascimento, verdadeiro mago conhecedor da natureza física e capaz de agir sobre esta. Alberti teve alguns predecessores e modelos e um deles foi Brunelleschi. De fato, após Brunelleschi, os príncipais arquitetos do Renascimento, Alberti, Filarete, Bramante, Miguel Ângelo, Barozzi ou Palladio, não apenas se erigem em teóricos da arquitetura, mas mostram um sumo cuidado por ajustar a realização à idéia através de minusiosos projetos que, em alguns casos, como o de Alberti, têm mais importância que sua eventual posta em prática.121 Vê-se na figura do artista Arberti o exemplo do artista como criador que estabelece relações entre o sensível, o talento e a ciência. Aquele que, como humano, continua a tarefa iniciada pelo criador, transformando e recriando a partir da natureza. Este caráter divino não faz referências ou comparações entre gênio e loucura, posto que o artista encontra-se com o status de um segundo Deus. 119 História geral da arte - a arte e o artista. Madrid: Ediciones del Prado, 1997. P. 49-51 Alberti (1404- 1472), foi teórico e ele próprio um artista, arquiteto. 121 História geral da arte - a arte e o artista , op.cit, p. 24 120 55 Não obstante, Neumann acrescenta, que em Vasari encontra-se um reforço dos momentos irracionais que corresponde a uma concepção maneirista de artista. Vasari observa a personalidade do artista e seus virtuosismos e obsessões. Sem dúvida, a teoria do conceito do inventio, tomada da retórica antiga, se une às aspirações de independência e originalidade, sem que pudesse superar as preferências renascentistas pelo intelecto. Na pintura onde o reconhecemos no pai de Rafael, Paolo, Pino, Dolce e Vasari apenas pode-se apreciar esse componente irracional. Em Vasari se alinha com o ideal do virtuoso. (Tradução nossa)122 O culto à personalidade do artista, desencadeado pelo humanismo, leva o artista a uma ascenção social, determinando a elevação da figura do artista, que vai encontrar uma exaltação da idéia de personalidade, de gênio, que no primeiro momento se confunde com loucura. A definitiva ascenção social do artista novo, acontecida em princípios do século XVI, é a conseqüência de dois fatores: O primeiro, estrutural, radica na situação histórica: centralidade cultural da Roma pontifícia e nascimento dos estados nacionais. O segundo, estético, determina a máxima elevação da figura o artista e a sublimação da atividade artística. Analisando o caso pelo viés do segundo fator, verifica-se uma grande influência do pensamento neoplatônico desenvolvido a partir de finais do Quattrocento. Ficino123, segundo Neumann124, faz uma interpretação mais cuidadosa dos termos crime e loucura , se comparado com os seus antecessores, que ressaltavam a fantasia entre iluminação divina e possessão demoníaca. A teoria da inspiração de Marsilio Ficino é a possibilidade de considerar o artista como deus, no sentido de que a criatividade artística está submetida a uma ação de inspiração para a qual o artista é possuído por uma força superior que determina sua atividade. Esta doutrina, que destruía completamente a concepção artesanal mas que também desbordava, amplamente, a visão de homens como Ghiberti e Alberti, foi muito discutida nos âmbitos culturais italianos, mas ganhou numerosos adeptos com grande 122 NEUMANN,op cit, p. 26 Sin duda, la teoría del concepto del inventio, tomada de la retórica antigua, se une a las aspiraciones de independencia y originalidad, sin que pudiera superar las preferencias renacentistas por el intelecto. En la pintura, donde lo reconocemos en el padre de Rafael, Paolo Pino, Dolce y Vasari, apenas se puede apreciar ese componente irracional. En Vasari se alínea con el ideal del virtuoso. 123 Marcílio Ficino, o principal filósofo da Academia Neoplatônica de Florença, recupera e propaga as doutrinas de Platão, estabelece a noção de inspiração na arte. 124 Ibid, p. 29. 56 celebridade. Com certeza, pressupunha a idéia do artista genial e do artista divino que deveriam compartilhar Miguel Ângelo, Dürer e tantos outros artistas. Porém, de modo mais geral, selava uma tipologia do artista totalmente nova que, em grande maneira, permaneceu até nossos dias: artista como ser individualista, superior , diferente do resto da sociedade, e cujo trabalho criativo, além de não admitir nenhum tipo de interferência, é um fim em si mesmo.125 Ressalvas devem ser feitas no que se refere à figura do artista nesta trajetória, posto que, embora se destaque como figura diferenciada, este passou por diversas mitologias . A partir desta concepção de artista, cada mitologia, cada período, preserva as características do herói, destacando mais ou menos algumas de suas características heróicas. Segundo Neumann (1992, p. 48), em nome da natureza o herói pode elevar-se sobre os limites para seguir as grandes imagens egoístas, cujos campos de aplicação são conhecidos somente pela realização daquele que recebe este poder. O herói contrasta com a impotência do homem comum e encarna a grandeza individual. No herói são adorados seu êxito e seu poder, pois é através dele que as vontades de muitos realizam-se. Como o herói na imagem desejada do burguês insiste com as normas impostas na civilização por um pouco de liberdade e tenta marcar o rumo da história com seu forte eu, o herói caracteriza ao mesmo tempo fracasso das tendências socialmente emancipatórias e o mais alto cultivo do individualismo. Somente no herói, no indivíduo que a todos supera, se realiza a liberdade que o homem comum tenta conseguir em vão. Em contraposição à habitual impotência do homem, este encarna a imagem compensada da grandeza individual. Já que a mudança de mundo somente pode ser pensada individualmente, permanece reprimida a possibilidade da acumulação de forças e vontade de muitos e a imagem da inalcançável unicidade do herói oferece um subterfúgio para o menosprezo das capacidades individuais. (Tradução nossa) 126 Para Neumann o culto ao herói, ou adoração aos ídolos, culmina na celebração de uma estética totalitária do herói com gestos arrogantes, livre e todo poderoso, e esta por sua vez 125 História Geral da Arte - a arte e o artista. op. cit, . p. 62 NEUMANN, op. cit, p 48 Como el héroe en la imagen deseada del burgués porfía con las normas impuestas en la civilización por un poco de libertad e intenta marcar el rumbo de la historia con su fuerte yo, el héroe caracteriza al mismo tiempo el fracaso de las tendencias socialmente emancipatorias y el más alto cultivo del individualismo. Sólo en el héroe, en el individuo que a todos supera, se realiza la libertad que el hombre común intenta lograr en vano. En contraposición a la habitual impotencia del hombre, éste encarna la imagen compensada de la grandeza individual. Ya que el cambio del mundo sólo puede ser pensado individualmente, permanece reprimida la posibilidad de la acumulación de fuerzas y voluntades de muchos y la imagen de la inalcanzable unicidad del héroe ofrece la coartada para el menosprecio de las capacidades individuales. 126 57 degenera anunciando a necessidade fascista de poder e de individuação da massa de homens comuns. Esta-se tratando do artista ocidental pós-renascimento e, neste sentido, em Ernest Kris e Otto Kurz (1982), há uma análise de cunho histórico e sociológico que importa para o entendimento da identidade do artista na cultura atual. Kris e Kurz, tratam do enigma do artista como um problema sociológico, posto que a situação histórica e o construto cultural que propõe as predestinações para a criação artística tem efeitos sobre a figura do artista. Neste sentido os autores levantam duas possibilidades: por um lado, o modo como a sociedade reage ao artista é parcialmente determinado pelas suas características e dons pessoais, e, por outro, que essa reação tem necessariamente um efeito sobre o artista 127 . Cabe destacar que para o entendimento da identidade do artista dentro de uma concepção histórica, estas perspectivas demonstram-se úteis, levando a pensar sobre a forma como o artista foi visto pela sociedade em diferentes épocas. Levando, fundamentalmente, a uma idéia de artista. A tese proposta por Kris e Kurz está pautada na idéia de que, a partir do momento em que o artista faz seu aparecimento na história, certos preconceitos foram ligados tanto a sua obra como a sua pessoa, influenciando até hoje a idéia difundida de artista. Será importante, neste sentido, deixar claro que o costume de ligar obra de arte a um artista, sua vida e carreira, não é universal, não sendo encontrado em todas as culturas nem em todas as épocas. Os relatos ocidentais não coincidem com os relatos do oriente ou de outras culturas não ocidentais, portanto, deixa-se claro que a figura do artista que interessa aqui, em princípio, é a do artista do ocidente, demonstrando que existe uma uniformidade dos relatos ocidentais que se referem ao artista. As origens do artista do ocidente estão na Grécia, onde aparecem, segundo Kris e Kurz128, os primeiros arautos da fama que o artista teria no futuro. Nas referências da literatura dos períodos arcaico e clássico, tem-se as primeiras biografias de artistas. Que a fama de um artista possa assim sobreviver a todas as suas produções é, por si só, uma afirmação surpreendente da influência poderosa das biografias gregas 129 . A imagem de artista que encontramos nessas biografias trata exclusivamente de uma aquisição da cultura grega pois, 127 KRIS. Ernst; KURZ, Otto. Lenda, mito e magia na imagem do artista Editorial Presença, 1988. P. 15 128 Ibid, p. 18. 129 Ibid, p. 19. uma experiência histórica. Lisboa: 58 mesmo os romanos só conheciam os nomes dos artistas gregos. Já na Alta Idade Média, os casos de fama do artista ainda remetem para a Antiguidade. Somente na Baixa Idade Média a figura do artista se destaca na cena histórica e ganha estatuto de entidade independente. Até os dias atuais, as histórias e biografias de artistas aparecem aliadas ao velho modelo: o inovador revolucionário surge lado a lado com o chefe de uma academia, e o artista universalmente reconhecido como gênio ou como cavalheiro vai a par com figuras solitárias e não reconhecidas . Para Kris e Kurz130, tal diversidade de origens sociais está presente entre os artistas do século XIX, em um mundo que acolhia o conceito de gênio à margem da sociedade. 3.2. LEONILSON - Mito de herói e mito de artista. Com o intuito de entender em que medida os artistas atuais podem ser considerados heróis e, ao mesmo tempo, sublinhar possíveis conexões com o passado remoto na construção do mito de artista, esta pesquisa volta-se à análise de alguns textos retirados de revistas, livros, artigos de jornais, catálogos e trabalhos acadêmicos a respeito de Leonilson (nosso estudo de caso), que circulam e/ou circularam entre o público interessado pelas artes de um modo geral e, ao mesmo tempo, cria-se um diálogo com os estudos a respeito da mitologia artística. Esta análise vem destacar o tratamento dado a algumas questões abordadas neste estudo e que partem dos estudiosos integrantes da Escola de Eranos e pesquisadores posteriores que mantém esta mesma linha de pesquisa. O capítulo abordará também a fala do próprio artista, a partir de uma entrevista concedida por ele a Lisette Lagnado entre os dias 30 de outubro e 10 de dezembro de 1992. É importante lembrar que, conforme já foi afirmado no segundo capítulo, se está propondo um olhar voltado para a mitologia como construção da identidade cultural do artista e para isso se pretende buscar no mito do artista o mito do herói, como uma narrativa com ação de 130 KRIS e KURZ, op.cit, p. 19 59 personagens memoráveis que torna-se aceita e se integra ao sistema através da forma literária, oral ou escrita, constituindo-se como uma mitologia. 3.3. Pequena Biografia do Artista Leonilson José Leonilson Bezerra Dias, nasceu em Fortaleza em 1957, mas mudou-se para São Paulo ainda criança. Freqüentou a escola Panamericana de Arte e o curso de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado, saindo deste sem terminá-lo. É considerado um dos grandes expoentes da Arte Contemporânea Brasileira, fazendo parte do grupo de artistas que, na década de 80, revoluciona o cenário da arte brasileira, retomando o prazer da pintura. Participa em 1985 da Bienal de São Paulo. No início da década de 90 firma-se como destaque no cenário da arte brasileira com uma obra que expressa dramas e angústias do homem contemporâneo, pautada em uma poética individual. Leonilson faleceu jovem em São Paulo, em 1993, vítima da AIDS. Em 1998 foi homenageado na Bienal de São Paulo com uma sala especial. 3.4. Trajetória do Herói. Verifica-se, regularmente, nas biografias dos artistas, a repetição de alguns temas, com alguma variação de um relato para outro. Estes relatos tratam de peculiaridades da vida do artista e da sua carreira. Em Kris e Kurz131, encontrou-se dois exemplos básicos que aparecem com freqüência nas biografias: O talento evidente deste a infância, e capacidade de imitar e transformar a natureza. 131 KRIS e KURZ, op.cit, p. 21. 60 De forma geral, existe muito interesse pela infância das grandes personalidades. No caso da figura do artista, pode-se sobrepor as interpretações a respeito dos relatos sobre a vida dos heróis a estas informações sobre a vida inicial do artista. Residiria nesta face inicial, a chave para encontrar a figura excepcional do futuro artista. Para Kris e Kurz132, este interesse parece nascer da aspiração da sociedade em encontrar uma via de acesso a uma figura excepcional ou dotada, o que faz com que praticamente tudo o que é descrito acerca da infância e juventude de alguém que tem direito uma biografia, tenha qualquer relação com a esfera na qual se distinguiu posteriormente. No caso de Leonilson, com a escolha da profissão e com a primeira demonstração de suas capacidades. Estas tradições conduzem a um duplo papel na figura do artista: o do aprendiz e o do inovador, ambos levando a descoberta do talento. O que é sublinhado é que o talento do artista já procurava expressão na infância, se revelou cedo, e atraiu a atenção dos outros. É este motivo que constitui repetidas vezes o ponto central de inúmeras variações do tema. O fato de não encontrarmos este tema nas histórias antigas relacionadas com artistas parece estar intimamente ligado com a sua posição social na Antigüidade133. Retomando as características do herói citadas anteriormente, a partir de Brandão134, temse a Origem do herói. Uma das etapas da trajetória do herói, relevante para esta abordagem, é a sua origem e seu nascimento, sendo que o herói é, sobretudo, um ser predestinado e que nasce para servir. Na maioria das vezes o nascimento dos heróis é complicado, mas seja assim ou não essa criança vem ao mundo com as virtudes que a caracterizam como herói: predisposições que a fazem diferente e superior ao resto dos mortais. Por isso a mitologia do artista mostra que o talento é manifesto em sua infância. Esta característica pode ser observada em Leonilson a partir dos relatos sobre ele. Em um texto intitulado José encontrado na página do Projeto Leonilson, Ricardo Resende escreve a respeito da precocidade do artista: José Leonilson, ou simplesmente Zé, Léo ou Leó, dependendo do grau de familiaridade daqueles que conviveram com ele, nasceu em Fortaleza e mudou-se para São Paulo 132 KRIS e KURZ, op.cit, p. 26. Ibid, p. 35 134 BRANDÃO, op. cit. 133 61 ainda pequeno. Logo cedo começou seu interesse pela arte. Passou pela escola Panamericana e depois entrou no curso de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado, saindo sem terminá-lo para se tornar um dos grandes expoentes da arte brasileira contemporânea.135 Leonilson não necessitou de formação acadêmica para ser um expoente, pois já estava determinado a ser um artista por sua precocidade e talento. Tal como o talento do artista foi reconhecido precocemente, a criança artista é reconhecida por uma marca especial. O herói artista é iniciado, e neste processo precisa vencer obstáculos. Esta tradição biográfica corresponde à idéia do artista como uma criança-prodígio que traz com ela características do herói. A característica biográfica que trata do talento do artista, bem mais racionalista, dificilmente se sustenta em relação às histórias de vida do artista. Pode-se dizer, pois, que o mito do artista não se dá a partir da obra, mas de relatos sobre o próprio artista, ou seja, da construção de uma imagem típica do artista através das anedotas sobre a vida de vários artistas. Para nós o herói destas anedotas representa o artista típico - a imagem do artista que o historiador tinha em mente. Saber se, num ou outro caso particular, são verdadeiras, torna-se por isso irrelevante. O único fator significativo é que essa anedota é recorrente, que a freqüência com que é contada serve para justificar a conclusão de que ela representa a imagem típica do artista.136 Desta forma a vida do artista é o material essencial da crítica e do reconhecimento de Leonilson, como quando Rosa argumenta que, existe um efeito de discrição e mesmo de fragilidade que aparece nesse primeiro contato dos olhos com a poesia que Leonilson nos oferece e que se intensifica para se tornar experiência trágica na medida em que a obra-vida do artista nos toca 137 . A vida do artista nos toca. 135 RESENDE, Ricardo. José. Disponível em: http://www.projetoleonilson.com.br/textos.php?pid=7 acesso em 3 de agosto de 2005. 136 KRIS e KURZ, op. cit, 23 137 ROSA, Victor da. Distâncias entre dois pontos - (anotações para Leonilson). Disponível em: www.literaturamenor.blogger.com.br. Originalmente publicado no Caderno10, do jornal A Notícia, no dia 06 de outubro de 2006. 62 A partir de Kris e Kurz138, pode-se dizer que entre as características heróicas da vida do artista encontramos: i) A relação do herói com a casa paterna, a origem do herói é descrita de uma forma especial. O homem que é elevado a herói renega o pai verdadeiro e o substitui por um mais ilustre. ii) A ascensão social do artista remonta ao tema dos obstáculos que o herói tem de ultrapassar de uma posição social pobre e servil para alcançar seu progresso triunfal, contra todas as adversidades do destino. iii) Pode-se ainda destacar outro tema da mitologia, o de que por vezes os animais atuam como guardiões ou protetores dos heróis. Estas características estão presentes em antigas e recentes biografias, porém, o fato de alguém ser considerado uma criançaprodígio já é, em si, a expressão de um milagre concedido, a expressão de um evento dotado de conteúdo mitológico. No Ensaio O Pescador de palavras , Lisette Lagnado acrescenta algumas influências que determinam a trajetória do artista: Cada peça foi rigorosamente construída como uma carta para um diário íntimo. Discípulo de um ideal romântico malogrado, Leonilson foi movido pela compulsão de registrar sua interioridade a fim de dedicá-la aos objetos de desejo. Esse legado, enunciado por um eu cuja expiação é incessante, reavalia a subjetividade após as experiências conceituais. Isto é, desgastada pela reflexão sobre o destino da arte, que teve a metalinguagem como ápice, a obra volta-se neste momento para o questionamento do destino do sujeito.139 Ao analisar este trecho do ensaio de Lagnado, poderia-se dizer que está evidente o caráter de predestinação do artista, ou seu legado em relação à arte. Pois o artista era movido pela compulsão de registrar sua interioridade, além de cumprir um papel fundamental na relação entre arte e sujeito. Através dos relatos biográficos dos artistas encontrou-se, como definem Kris e Kurz140, as células primitivas da biografia e poderia-se dizer que isto vale para qualquer biografia, mas em nesse estudo o foco está pautado na imagem do artista Leonilson. A história construiu e transmitiu essa imagem desde que teve origem a imagem do artista. Os historiadores aprenderam a reconhecer que a anedota, no seu sentido mais lato, raia o domínio do mito e da 138 KRIS e KURZ, op. cit, 40-41. LAGNADO, Lisette. São tantas as verdades. Leonilson. São Paulo: DBA Artes Gráficas, Melhoramentos, 1998. P. 27 140 KRIS e KURZ, op. cit, p. 23. 139 63 saga do qual recolhe uma riqueza de material imaginativo que transmite à História escrita .141 Desta forma, mesmo nas histórias atuais de artistas, como na história de Leonilson, encontrou-se os mesmos temas biográficos que, ao mesmo tempo, coincidem com a trajetória do herói. A missão e virtuosismo do artista vêm referendados pelo reconhecimento da crítica que enaltece seu trabalho em início de carreira. Um artista em início de carreira bem referendado por críticos e marchands de renome e de uma impressionante vitalidade que se derrama em seus desenhos, guaches e pinturas neo-expressionistas, cuja preocupação maior é tornar simples a própria arte.142 Lagnado escreve a respeito da relação da obra com a origem do artista, que o artista nasceu no âmbito de uma família católica na cidade de Fortaleza, trazendo na sua formação dois dados necessários para a leitura de sua obra: a cultura nordestina (com a literatura de cordel, o artesanato, as peças de cores vivas, as crenças populares) e a iconografia religiosa, ancorada em fortes valores morais. Esta ligação da obra com a vida e a forte relação da obra do artista com as origens trazem ainda uma dimensão de valor à obra e ao ser artista, pois o artista transforma o corriqueiro em preciosidade. Para Jacqueline Lichtenstein143, a arte por muito tempo teve que se contentar com biografias lendárias (Apeles, Zêuxis), relatos fabulosos (Narciso) e lugares de aparição mais ou menos míticos. A autora está reportando à condição social do artista na Antigüidade, onde o artista é antes de tudo um homem que trabalha com as mãos, em uma atividade que o afasta de qualquer possibilidade de contemplar idéias, portanto, uma atividade sem teoria. A proximidade com os deuses e heróis que o pintor estabelece por meio da obra não deixa de lhe proporcionar um certo brilho, até mesmo idéias novas. [...] A biografia torna-se relato, o relato, paradigma, até atingir uma idealidade indiferente a qualquer determinação histórica.144 141 KRIS e KURZ, op. cit, p. 23 ALBUQUERQUE, Nonato. Leonílson: a linguagem simples ganha maior importância na arte. Jornal DN, Fortaleza, Ceará, 01 de dez. 1984. 143 LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: o mito da pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004.(Vol. I). P. 17 a 24. 144 Ibid, p. 18 142 64 Pode-se dizer, segundo Lichtenstein, que é este conjunto de lugares-comuns que torna possível o campo específico da teoria da arte. É através da dimensão mítica que o artista se constrói e que é reconhecido enquanto tal. Há, portanto, uma espécie de anterioridade do relato mítico em relação à história real, factual, da criação de uma obra, uma anterioridade ideativa do topos 145 , que estimula, faz nascer e alimenta uma vocação, enquanto Leonilson apenas atualiza as categorias míticas que lhe preexistem. À primeira vista um leigo poderia classificar como banal a seqüência de pinturas sobre papel e as telas onde o nível artesanal salta aos olhos. Uma apreciação mais demorada revela, contudo, um artista que domina com facilidade várias técnicas a que não se propõe a dizer de uma forma convencional tudo aquilo que subtrai de seu interior.146 Em um artigo de Fernanda Ezabella para o Índice de Notícias Diversão e Arte da UOL , encontrou-se ainda algumas relações da sua infância com seu destino como artista. Leonilson nasceu em Fortaleza e cresceu no ateliê de costura da família, sendo seu pai dono de lojas de tecidos. Em São Paulo, estudou numa escola de freiras, onde tinha aulas de bordado.147 Dentro da mitologia existe uma tendência recorrente a mostrar a casa paterna como um lugar que não dá a idéia de um lar, mas onde o talento se acentua. Os relatos acima revelam que de forma idêntica a de um herói, a infância do artista acentuou seu talento, sendo que a obra plástica de Leonilson caracteriza-se pelo uso de tecidos, linhas, costuras, bordados, de forma que a referência à casa paterna está presente em toda a sua obra. Esta descoberta do talento do artista é um dos temas mitológicos presentes nas biografias dos artistas e está ligada à ação e destino desta figura. Poderia-se dizer que se trata de uma fórmula biográfica do artista, que valoriza as primeiras ações e realizações do talento e procura demonstrar que o gênio de um artista tenta expressar-se desde a infância. Neste caso, o que interessa não é o que aconteceu na vida deste ou daquele artista, mas a natureza da informação como peça típica de um fundo comum nas biografias. 145 Para a autora, o que se deve entender por topos é um lugar-comum, é uma proposição, uma fonte de argumento, que pode ser uma idéia, um relato mitológico, um lugar de origem. Uma rede que nunca deixou de ser reativada, reinterpretada e repetida pelos textos ou pelos protagonistas da história da arte. 146 ALBUQUERQUE, op. cit. 147 EZABELLA, Fernanda. Mostra traz trabalhos inéditos de Leonilson, morto há 10 anos. Disponível em: http://www.uol.com.br/diversão/reuters/ult26u13234.shl Acesso em 17 de agosto de 2005. 65 Em uma matéria da Revista Bravo-Online, por Gisele Kato, encontrou-se novamente referência à família do artista como ponto de partida para a descoberta e o desenvolvimento do talento artístico de Leonilson. Sua família era dona de uma loja de tecidos em Fortaleza. Os amigos contam que ele carregava para todo lado uma caixa de costura daquelas bem completas diz Resende. A caixa está na galeria, junto a bordados que o artista cearense aprendeu a fazer ainda menino, na escola. Leonilson, no entanto, transformou a habilidade em um meio de expressão bastante simbólico, chegando a definir as obras como orações .148 3.5. Juventude do artista O itinerário do herói estará atrelado com sua educação, de forma que o herói deverá seguir outros caminhos e desprender-se da casa paterna em busca de sua formação iniciática. O talento é inato, precoce, recebido como presente, pois não há antecedentes relacionados às artes em sua família, porém o herói artista passa por processos iniciáticos que o constituem como artista. Em cronologia feita por Regina Teixera de Barros há as primeiras indicações da iniciação do artista: 1977 - Ingressa no curso de licenciatura em Educação Artística na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde é aluno dos artistas Nelson Leirner, Júlio Plaza e Regina Silveira. Divide ateliê na Vila Previdência (São Paulo) com o artista Luiz Zerbini. Vê pela Primeira vez reproduções de obras de Eva Hesse. 1980 - Abandona a Faap. Frequenta a escola de artes Aster (1978-1981), onde reencontra os professores Julio Plaza e Regina Silveira, e tem aulas de aquarela com o professor convidado Dudi Maia Rosa.149 148 KATO, Gisele. Entre bordados e costuras. Disponível em: http://www.bravonline.com.br/noticias.php/id=557 Acesso em 24 de agosto de 2005. 149 BARROS, Regina Teixeira de. Cronologia. In: LAGNADO, Lisette. São tantas as verdades. Leonilson. São Paulo: DBAM, 1998. P. 199 66 Em entrevista a Lagnado, o artista relata suas escolhas e suas iniciações, algumas citadas acima na cronologia. Segue trecho da entrevista: - O surgimento dos bordados é contemporâneo da exposição do Bispo. Ela foi determinante para você? - A exposição do Bispo? Foi. Mas minha mãe bordando em casa diariamente também.150 Destaca-se, neste ponto da entrevista a valorização da origem, que pode ser entendida como heróica através da contextualização histórica e sociológica. Adiante esta informação é complementada com as referências a viagens citadas pelo artista. - A introdução da costura, mesclando vida pessoal e recurso estético, remete ao Bispo que costurava fragmentos de sua própria experiência. - Mas antes disso tudo, em 1987 talvez, fui para Nova York e via uma exposição sobre o design dos Shakers. Eles bordavam a história da igreja. Bordam tudo, os calendários, os livros das crianças. É uma coisa fabulosa.151 No decorrer da entrevista concedida a Lagnado, além das referências a viagens, o artista assinala várias questões do seu pensamento sobre a arte e a influência que outros artistas tiveram em seu processo, como é o caso de Eva Hesse, uma de suas referências, e do próprio Arthur Bispo do Rosário: Quando vi a exposição do Bispo no Museu de arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, fiquei fascinado. Mas ver uma exposição do Bispo é como ver uma exposição de Andy Warhol. Ele é um pop. Não consigo vê-lo como louco. Vejo o Bispo como uma pessoa normal, só que ele tinha uma história com ele que as pessoas não conseguem entender direito. [...] Às vezes fico apaixonado só por uma foto. Sei que é meio maluco, mas é legal. É por isso que eu brinco tanto a respeito da maluquice do Bispo, por que acho que tenho coisas muito parecidas.152 O herói é figura diferenciada: neste sentido Leonilson cita Bispo, fazendo referência às particularidades deste artista, levantando como ele próprio disse, suas extravagâncias, o que o diferencia de um grande número de artistas atrelados ao sistema oficial das artes. Pois o herói vai 150 151 LAGNADO, 1998, p. 85. Ibid, p. 85-86. 67 buscar algo que lhe falta, atendendo ao chamado do destino, para tanto passará por provações, ritos. O herói seguirá e ultrapassará seus mestres. A referência a Bispo do Rosário se faz bastante significativa por trazer outra característica heróica, a insanidade, posto que este artista, citado por Leonilson, era tido como louco. Como foi apresentado a partir da cronologia, Leonilson desiste da carreira acadêmica e segue outros caminhos. A irreverente leveza que acompanha as afirmações de Leonilson indica algo além do raciocínio simples e imediato. Como o discurso intelectual era, para ele, incompleto, construiu seu campo cognitivo a partir do empírico - uma ousadia que soprou como um vento profano .153 Leonílson é pré-destinado a ser artista. Ele não fez cursos normais para ser artista. Lembra-se apenas de ter tido um professor de desenho na adolescência e que ganha sempre aquarelas e tintas de presente na época do natal. Meu professor levava a gente para um porão e, as vezes, ficávamos horas e horas sem dizer ou fazer nada .154 Para Vargas, ser artista não se ensina, o que se ensina são as sintaxes, as gramáticas e as histórias e não os conteúdos, esses são impossíveis de serem ensinados. A revelação é um aumento do Ser, uma agregação, um marco que divide o observador em um antes e um depois do encontro com a obra. E é a relevância deste conteúdo, para o Ser e para o Mundo, juntamente com a qualidade da gramática utilizada para dizer isto ou aquilo, que irão determinar o reconhecimento da prática (de pintar, escrever, ou compor) como uma prática de valor. [...] Em outras palavras, reconhece como VERDADES e as verdades para a psique são sagradas porque revelam o mistério tornando compreensível a incompreensão do mundo.155 Nesse sentido atua a identificação da obra de arte e do artista enquanto figura diferenciada. Desta forma, Leonilson é declarado pela crítica como um artista de estilo próprio que fala do mundo, do dia a dia e que traz no acaso aparente o seu pensamento sobre o mundo. 152 LAGNADO, 1998, p. 86-87. Ibid, p. 79. 154 BATISTA, Doca. A brain storm de um artista. A gazeta, Vitória, Espírito Santo, 26 mar.1987. 155 VARGAS, 2004/2005, p. 20. 153 68 Seus trabalhos, verdadeiras assemblages , saem totalmente do convencional. Com características muito próprias, Leonilson, 32 anos, cearense radicado em São Paulo, consegue transmitir plasticamente movimentos intrínsecos ao seu dia a dia.156 O herói busca algo além, algo maior que ele mesmo e nesta formação iniciática vai percorrer o caminho que o levará ao retorno. Neste ponto, parece importante notar que em uma época em que o sistema da arte volta-se para o mercado, Leonilson busca um caminho pautado na experiência do ser. No trecho que segue observa-se que o artista Leonilson lança uma crítica ao já estabelecido, pois é também tarefa do herói lutar, muitas vezes solitariamente , pela transformação e pelo bem, ou elevação da humanidade. [...] em toda exposição do Centro Cultural, só tinha gente copiando Eva Hesse ou Beuys. Eva Hesse junto com Blinky Palermo, foram sempre meus ídolos das artes plásticas, pela sua atitude. Quando estou deprimido, eu pego um livro do palermo: é igual a um revitalizante. E Eva Hesse, eu choro às vezes quando vejo o livro dela. Mas uma vez fui numa exposição no Centro Cultural que mostrava umas bolas com rede e eu pensei: Meu Deus! Não é possível! Essa pessoa tem a mesma informação que eu! Que história é essa de ficar reproduzindo o trabalho dos outros? Se você fizer um trabalho exatamente igual, com a mesma intenção, acho legal. Tem gente que trabalha em cima do trabalho dos outros. Mas essa exposição foi apresentada como novidade. [...].157 Em Brandão (1990, p. 53), há a definição do herói como uma figura onde se encontrou atributos contrários, com faculdades tanto para o bem como para o mal. O herói não é moral. Esses aspectos vão acompanhar o percurso iniciático do artista, tanto no que se relata sobre as suas atitudes como em seus meios para atingir seus desejos de transformação. Em relação a sua crítica a respeito das exposições no Centro Cultural, Leonilson diz: [...] pensei: Vou fazer uma coisinha da história da arte para eles se situarem . Xeroquei Eva Hesse, xeroquei Palermo, Frida Kahlo, [Richard] Serra, [Donald] Judd, uns outros, separei todos e pus numa parede. O que eu queria dizer é o seguinte: quando eu comecei a pensar na minha exposição para o Centro Cultural, eu pintava; não fazia objetos. Diante do convite para expor no Centro Cultural, que é um lugar que tem fama de pós-alguma-coisa , neo-sei-lá-o-quê , pensei: Acho que vou fazer uma maldadezinha . Acontece que o negócio ficou forte para mim também. Fiquei possuído mesmo. Aquela era a sala de um possuído. Mas um possuído calmo. Eu não extravaso com violência, nem com uso do poder, mas acho que as coisas calminhas cutucam tanto 156 SILVEIRA. Mônica Silva da. A coincidência é mera semelhança. Jornal de Brasília, Brasília, DF, 13 jun. 1989, Caderno 2. 157 LAGNADO, 1998, p. 87-88. 69 quanto um tiro na testa. Uma poesia gay, para as pessoas, machuca muito. Eu fiz uma poesia de um menino que encontrei num avião, você imagina? E contei detalhes...158 Eis, pois, presentes no herói os opostos, com inúmeras qualidades voltadas para servir a comunidade, mas também fraudes e monstruosidades contidas no complexio oppositorum que faz parte da trajetória artística. Leonilson fez parte do sistema oficial da arte, posto que se assim não o fosse, não teria sido convidado para expor no referido Centro Cultural. Porém, a partir do próprio sistema lança uma crítica e brinca com o espaço oficial da arte e merece prestigio junto à crítica. Gozando de certa unanimidade positiva junto à crítica, participou de tudo que aconteceu de importante nos últimos anos: da mostra Geração 80 até a exposição Modernidade ; da Bienal de São Paulo à Bienal de Paris, da exposição Transvanguarda e Culturas Nacionais a recente Brasil Já .159 Ainda que aceito e aclamado pela crítica como o artista da geração 80, Leonilson se opõe aos valores de mercado e se impõe como artista, é chamado de Infante rebelde da geração 80 por João Candido Galvão, que se refere ao artista como um prodígio que se recusa a condições pré-determinadas e surpreende. E diz-se que Léo vai na contramão dos modismos. Quando as teorias da estação exigem obediência monástica aos gurus de plantão e a alguns colecionadores que decididos a direcionar a produção artística das gerações mais jovens, pregam o rigor cerebral e a celebração da morte da arte, ele ousa optar pelo coração. Quando a moda é a monumentalidade, ele torna-se cada vez mais intimista carregado de melancolia bem humorada.160 Leonilson é levantado por alguns críticos como um artista que faz resistência ao novo academismo da arte, tendo a liberdade de criação e a inovação em suas características de artista que traz uma esperança através de sua obra. Os caretas destroem a imagem, fazem da arte uma masturbação intelectual, querem construir um mundo a partir dos negros, cinzas e marrons. Leonílson faz de seu ofício 158 LAGNADO, 1998, p 88. SEBASTIÃO, Walter. Enigmas para fazer a história. Revista Dois, Belo Horizonte, 16 jun.1989. 160 GALVÃO, 1991. 159 70 um exercício de sedução, um jogo alegre de uma geração que, apesar de todos os pesares, ainda acredita na possibilidade de ser feliz.161 Outra questão relevante que se encontra na argumentação de Brandão162, onde há exemplos deste lado negro do herói, sendo uma destas características ou parte desta monstrualidade do herói, sua conduta social, ética e moral. É recorrente no mito heróico o homossexualismo. Fato que Leonilson cita como forma de chocar as pessoas. - Por que você disse que um encontro gay provoca o público? Que tipo de reação você queria provocar? - Acho que mostrar que gay também ama. É uma forma boba de dizer isso, mas, tirando Oscar Wilde, a gente nunca vê literatura gay. Aqui no Brasil não existe uma revista. É uma questão muito elitista, muito privada. Eu pensei que seria legal mostrar no Centro Cultural, por ser um lugar visitado por estudantes. Mas não que eu seja um defensor que sai com uma bandeira... - Me parece que uma provocação muito maior dentro do meio das artes plásticas, no qual não existe... - Sinceridade. Não existe sinceridade nenhuma. O problema é que as pessoas são mascaradas mesmo. Esse negócio de gay, de lésbica, é temido como se teme o diabo. Por sua formação católica [...] os pais têm mais medo que o filho seja gay do que ele seja bandido. Gay para a sociedade na qual a gente vive, é o último degrau.163 A marginalização faz parte da trajetória heróica. Ao mesmo tempo em que o herói artista agride a sociedade e o próprio meio artístico com suas atitudes estéticas, ele está em busca de um ideal que somente poderá ser alcançado através da sua arte. O herói tem um ideal maior, pois, sobretudo, o herói é um ser que nasceu para servir, para transformar a sociedade. Leonilson está dentro do sistema da arte contemporânea, fortemente ainda hoje, e deste caminho de aceitação enquanto artista, muitas histórias são contadas , ou seja, tem-se uma narrativa forte e muito bem fundamentada na relação de Léo com a vida e o mundo, sobre o amadurecimento deste artista e sua chegada a glória , que neste caso não significa a ascensão financeira, mas a aceitação plena do ser artista . 161 COSTA, Marcus da Lontra. Leonílson: a arte declara guerra à chatice. Correio, Brasília, DF, 13 jun. 1989 BRANDÃO, op. cit, 54 a 63. 163 LAGNADO, op cit, p. 103-104 162 71 O cotidiano, seus diários, ainda são matéria-prima mas, aos 34 anos, o rapaz revelado pelas coletivas que detonaram a geração 80 alia agora, ao propalado humor de sua pintura, dizeres e títulos contundentes, na mesma linha de grafismos que sempre inseriu em seus trabalhos.164 Foi mencionada anteriormente a visão de artista desenvolvida no Renascimento, através de narrativas de teóricos da arte, que levam a termo a idéia de que a arte é uma operação do intelecto, fundamentando-se em uma visão interior, na inspiração. A adulação do divino artista é um fio que se estende em todas as biografias desde o Cinquecento. [...] Este tornou-se o tema dominante da teoria da arte; encontramo-lo, sob uma ou outra forma, tão freqüentemente que já não podemos acompanhar as suas muitas transformações. O que os biógrafos tentam expor é mais bem descrito pelas próprias palavras do artista.165 O discurso expresso nesta passagem estabelece o contato com a crença no dom especial do artista, ou seja, na convicção de que o artista já nasceu artista e que este fato tem origem divina. Nas biografias de artista pode-se encontrar esta posição especial que refere-se a origem divina do gênio de artista e também acerca da divindade do seu nascimento. Aqui tem início a saga do herói e seus sucessivos acontecimentos. Como já foi destacado, este mito do artista não adquiriu uma fórmula fixa, mas está entrelaçado nas biografias. Segundo Vargas166, até o final da Idade Média o conceito predominante sobre o artista como criador apoiava suas raízes na Bíblia, onde Deus é comparado ao artista como forma de tornar compreensível a obra divina da criação. Com o Renascimento, o conceito se transforma e o artista passa a ser comparado à Deus. Sem dúvida atribuir divindade ao artista implica uma transformação no seu reconhecimento mas também produz uma alteração no seu comportamento.167 164 MACHADO, Alvaro. Leonilson mostra na São Paulo diversificação técnica e estilística. Folha de S. Paulo, São Paulo, SP, 15 out. 1991. 165 KRIS e KURZ, op. cit, p. 51. 166 VARGAS SANTA ANNA. Antônio Carlos. A liberdade de criação e a cultura popular. Porto Arte, Porto Alegre, RS, v. I, no I, Maio 1990, Instituto de Artes/UFRGS, 1990. 167 Ibid, p. 17-18 72 O artista-herói tem uma preocupação com o mundo, isso faz parte de seu trabalho e de suas obrigações com o mundo e a humanidade. Com facilidade encontrou-se referências à atenção que Leonilson tinha com o mundo que o cercava e sua preocupação com a humanidade. Leonilson parece mergulhar nas coisas simples, mas importantes, com que nos confrontamos diariamente, mas que por esse ou aquele motivo, não temos a sensibilidade de nos fixarmos. Leonilson, como artista, capta isso de uma forma delirante, quase infantil. A arte tem de ser fácil , resume ele como quem realmente aprendeu a lição de seus mestres.168 A sua obra causa prazer. Saindo do meu papel de pesquisadora por um instante, posso dizer que eu senti muito prazer ao entrar no sobrado que hoje abriga o Projeto Leonilson e me deparar com muitas obras do artista e encontrar nelas além de um imenso prazer, um pouco do artista e muito de mim. Sobre esta sensação intrínseca na obra do artista, Galvão fala: [...] cidadão do mundo, não tem preconceitos nem quanto a linguagem nem quanto a materiais.[...] Ele sugere sem mostrar, insinua sem declarar, oferece sem conceder. Despudoradamente, ele avança todos os sinais mas, como rapaz bem comportado, sabe esconder-se atrás do último véu.169 Na matéria Latino-americanos oferecem a esperança como contraponto de Rafael Cariello para a Folha de São Paulo - Ilustrada, do dia 22 de março de 2004, que trata da exposição MoMA no Museo que aconteceu em Nova Yorque, o autor cita a participação de Leonilson com uma obra onde sobre uma fronha aparecem cicatrizes, que se encontra com a obra melancólica de Frida Kahlo, entre outros verdadeiros gênios que através da sua obra oferecem a esperança com contraponto da melancolia. A matéria sugere que esses artistas não buscavam mudar o mundo com sua arte, mas que é exatamente esta - a arte - que se destaca e se aproxima da realidade do homem contemporâneo, suas angústias e suas buscas. Leonilson oferece esperança através da sua arte. 168 169 ALBUQUERQUE, op. cit. GALVÃO, 1991. 73 No texto Colocando dobradiças na Arte Contemporânea , Tadeu Chiarelli argumenta a respeito de um grupo de artistas contemporâneos brasileiros, oriundos da Geração 80, e que fazem sua arte diferenciando-se no que diz respeito aos processos da arte contemporânea internacional. [...] Maria Clara Fernandes, Jac Leirner, Mônica Nabor, Leda Catunda, José Leonilson... vão ligando um módulo ao outro, vão tramando, amarrando, costurando... Agindo mais no mundo e com o mundo do que propriamente sobre o mundo, esses artistas igualmente estão se apropriando de uma inteligência ou de uma racionalidade que é anterior a eles, e da qual não apenas se apropriam, mas a ela se integram. Suas produções incorporam à arte brasileira contemporânea justamente uma tradição artesanal não-erudita existente no país [...].170 Para Chiarelli, estes artistas, entre os quais está José Leonilson, se opõem, ou, colocam dobradiças entre a visualidade não erudita brasileira e algumas questões da arte contemporânea internacional. Poderia-se dizer que Leonilson faz uma aproximação da arte com o mundo real, ou ainda, uma mediação entre arte e público, a ligação entre dois mundos. No ensaio Para quem não comprou a verdade de Lisette Lagnado reafirma esta idéia de ligação entre dois mundos quando nos diz que: Leonilson deixa um testemunho cuja grandeza está relacionada ao prosaico: a obra, feita como orações como os símbolos de uma religião primitiva, liga o indivíduo a uma entidade superior. Não pode ser desprezado um outro fator relevante para a feitura dos bordados : a atitude de Leonilson encontra seu melhor eco na incorporação do design dos Shakers.171 170 CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999. P 123 LAGNADO, Lisette. Para quem não comprou a verdade. Disponível em: http://www.protoleonilson.com.br/textos.php Acesso em 17 de agosto de 2005. Nota da autora: O movimento dos Shakers é originário de Manchester Inglaterra, e começou em 1774 nos EUA com Ann Lee. Pregava uma vida comunitaria a partir de uma ordem de seres, mais anjos que humanos, cuja vida excluiria violência, guerra e ambição. 171 74 Como um Shaker, Leonilson assume a inflexão teológica do discurso do sacrifício: nos bordados há nitidamente uma busca de uma vida interior harmoniosa, com valores essenciais, destituída de qualquer tipo de excesso - seja moral ou estético. É claro que se algumas de suas frases parecem primitivas , os leitores não podem cair na sua ingenuidade ardilosa: Leonilson, enquanto artista, sabia muito bem o que estava fazendo e conhecia os embates críticos que sua obra apresentava - desde a discussão formal dos materiais até o tênue limite entre a ironia e o sublime na modernidade. Seu legado é valioso porque reavalia a noção de subjetividade após as experiências conceituais.172 Já para Fabio Cypriano, no texto A ditadura dos produtores culturais , onde discute as agendas dos institutos ligados a bancos, num sistema, segundo ele, perverso onde reinam a pressa, o descuido e o marketing, o artista Leonilson aparece como uma escolha do curador que se volta para o público leigo. No texto em questão se discute a mostra Onde está você, geração 80? onde Cypriano não tece a crítica ao artista mas ao sistema que não responde a questões importantes a respeito do sistema das artes e da própria arte. O jornalista e professor da PUC/SP está falando da crise de interpretação posta no mundo da arte, o que torna aceitável uma ditadura por parte dos produtores culturais. Repetir simplificações como a volta da pintura e a descoberta do prazer , ou herói romântico para caracterizar a obra de José Leonilson, morto de Aids em 1993, não me parecem suficientes. É preciso que as instituições percebam que não estão falando apenas com o público leigo, mas também para quem vive a arte todo dia e precisa de gás para continuar se expandindo.173 Estabelecendo uma crítica ao sistema, Cypriano traz a idéia de escolha por parte dos curadores e dos produtores, ou ainda de favorecimento deste ou daquele artista. Não é intenção deste estudo entrar neste momento no debate acerca do sistema perverso da arte contemporânea, mas notar que no texto anterior da Curadora Lisette Lagnado, esta escolha está pautada em uma espécie de missão do artista. Também Ricardo Resende, no texto José , reafirma a possibilidade de Leonilson melhorar o mundo através da sua arte. 172 LAGNADO, Para quem não comprou a verdade. op. cit. CYPRIANO, Fabio. A ditadura dos produtores culturais. In: http://pphp.uol.com.br/tropico Acesso em 24 de agosto de 2005. (O texto é versão da palestra realizada na ocasião da Mostra "Onde esta você, Geração 80?" no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro). 173 75 O artista tem o que dizer. Na sua obra, a partir da sua vida fala do mundo, fala da arte, fala de toda a humanidade. [...] Leonílson dispensa os rótulos e assegura serem seus trabalhos resultado de uma constante busca interior. é resultado de uma brain storm (tempestade de cabeça), porque eu busco minha razão de trabalhar no que vejo dentro de mim e no mundo que me responde a cada nova indagação, com uma coisa nova . 174 Ainda pensando a respeito das escolhas do artista refletidas em um acaso que é só aparente, e que está presente em toda sua obra, na plasticidade, na escolha dos títulos e em todo pensamento do artista que tem como missão falar do mundo em que vivemos todos, Silveira diz: Tudo no mundo tem duas faces . Essa constatação pessoal é ao mesmo tempo universal e marca constante da obra do arquicontemporâneo artista plástico Leonilson, [...] A arte de Leonilson surge intuitivamente. Ele não elabora, nem seleciona cores. Tudo acontece através de um aparente acaso, que está repleto de referenciais e situações extremamente reais.175 A sua produção tem circulado pelo Brasil e exterior, confirmando sua importância para a compreensão da arte brasileira e internacional no limiar do Século XXI, levando uma mensagem de amor pela vida em seus singelos desenhos, bordados e telas de aparência pobre ou simples, como o significado do nome José . Leo busca a felicidade, é um inconformado, faz uma obra cheia de verdadeiras tristezas , sem falsas alegrias , sem a hipocrisia que acomete parte da sociedade contemporânea. Leonilson pertence ao grupo seleto de artistas que não mente sobre a sua vida e desta forma fala sobre nós e sobre a felicidade possível. Obra e vida estão de fato juntas, esta afirmação aparece constantemente nos discursos sobre Leonilson e na fala do próprio artista. A arte está no artista e se manifesta, não é aprendida em procedimentos acadêmicos, ela preexiste na figura do artista, a arte tem uma anterioridade. 174 175 BATISTA, op. cit. SILVEIRA, op. cit. 76 Porque, segundo o artista, não há como mandar fazer isso ou aquilo. Você vai crescendo e a arte vai crescendo com você; você vai descobrindo o mundo e descortinando-o nos trabalhos que faz .176 Lagnado177, ao falar da trajetória deste artista, propõe uma análise pautada e centrada no sujeito da obra como figura pragmática, ou seja, o artista, e diz que, afinal, a tarefa de Leonilson implica um ativismo cultural que aponta para uma dimensão política do uso dos prazeres neste final de século , referindo-se ao século que acaba de findar. Aqui destaca-se a figura do artista como herói transformador, herói cultural no sentido dado por Neumann178, onde há a idéia de herói que contrasta com a impotência dos homens comuns, mas que ao mesmo tempo encarna toda a grandeza individual. Cabe lembrar que, como Neumann, Kris e Kurz (1988), salientam a idéia de modelos míticos, onde o artista aparece como herói castigado pela inveja dos deuses, como marginal ou como herói cultural. A agonística presente na trajetória heróica esta também refletida da figura do artista, na sua luta para melhorar o mundo, a sua batalha em favor da arte, na busca de levar a reflexão aos seus apreciadores o artista faz da arte seu instrumento de guerra. Com medo do comum, do normal, Leonílson faz do seu trabalho uma arma, não para agredir ou se defender, mas para libertar os sentimentos, as descobertas que faz a cada instante como constante caçador que é.179 O artista tem consciência de seu papel, fala sobre a vida, mas sabe que é o artista falando, e não um homem comum. Leonilson toma consciência de seu papel de artista e assume sua missão. Houve quem insinuasse que Leonilson teria ido buscar os ingredientes de seu divertido trabalho nas estórias em quadrinhos, observação que o artista repudia veementemente. O gibi que sempre detestou, funciona para ele como uma coisa expressamente didática e, didatismo é, ostensivamente, um dado do qual Leonilson prefere manter-se distante. Não admira, então, que tenha abandonado a Faculdade de Artes Plásticas no segundo ano para exercer plenamente sua liberdade de artista.180 176 BATISTA, op. cit. LAGNADO, 1998, p. 29. 178 NEUMANN, op. cit, p. 48. 179 BATISTA, op. cit. 180 HOLANDA, Ítala Márcia. Leonilson: brincando com o conceito de arte. Diário do Nordeste/ DN Fortaleza, Ceará, s/d ago.1984. 177 77 Leonilson assume esta espécie de missão do artista, mas é relevante notar o encontro do herói com outros heróis, servindo estes para a confirmação de seu legado. Nos textos pesquisados, se pode notar que os encontros são sublinhados, conferindo-lhes importância, negando a possibilidade de coincidência e, ao mesmo tempo salientando os acasos. Atente-se para o trecho da reportagem O artista redentor de Gisele Kato, editada na Revista Bravo, de agosto de 2003. [...] apresenta Bispo do Rosário como um grande artista, um dos maiores do cenário nacional. Uma espécie de redentor da História da Arte. Em torno dele, Agnaldo Farias escolheu 12 importantes nomes da produção contemporânea cuja obra prova justamente a atualidade das assemblages feitas na Colônia Juliano Moreira. [...] Isolado, Bispo do Rosário criou peças em suportes inovadores, apropriou-se dos mais variados objetos para tratá-los sob a ótica do colecionismo, da catalogação, da ordenação, como de certa forma, fazem e fizeram Nelson Leirner, Marepe, Leonilson [...] Em outra reportagem de Gisele Kato ela diz: Ele colecionava botões, pedrarias e revistas de moda. No início dos anos 80, assinou os figurinos do grupo de performances Asdrúbal Trouxe o Trombone. Mas na maior parte do tempo, suas criações, mesmo vestidos e saias, eram apresentadas por ele como comentários sobre a fugacidade da vida contemporânea, devendo ser vistas mais como telas feitas de pano do que como roupas em seu sentido mais prático.181 Nos dois trechos acima há a casualidade dos encontros entre os artistas, no caso de Leonilson, seu encontro com a moda e com a obra de Bispo do Rosário e outros artistas contemporâneos, mas guardando sua figura diferenciada, ou seja, sua originalidade, seu aprendizado diferenciado e seu domínio técnico ou, ainda, o que este artista traz de novo para o processo artístico. A referência às técnicas, ou domínio de variedades de técnicas inovadoras se faz recorrente nas falas da crítica sobre Leonilson, em textos que atuam na construção da idéia de artista como um inovador e exímio fazedor da arte que revela, como no texto: As técnicas se multiplicam, ao lado das pinturas, os bordados e aplicações em tecidos diversos, velam duas cruzes crísticas, um sagrado coração, uma chaga e uma escada, está intitulada A Confiança e 181 KATO, Entre bordados e costura, op. cit. 78 remetendo à luta de Jacó com o anjo. 182 Tem-se a idéia de um domínio técnico que traz à tona a formação do artista e algo que está muito além da técnica, ou seja, o homem. O novo, a novidade, o original e o processo de transformação pelo qual o artista passa, ou que ele leva a arte a passar, fazem parte do reconhecimento do herói artista. No caso de Leonilson temos, a esse respeito, diversas colocações nos textos estudados. Destacou-se alguns: Na década de 80 Leonilson faz parte da geração de artistas que revolucionou o meio artístico brasileiro com a retomada do prazer da pintura e firmou-se no cenário artístico ao participar da Bienal de São Paulo de 1985 com uma instalação. A sua pintura de cores fortes e inusitadas, destacou-se pelo figurativismo pop do início, cheio de humor e joviedade. [...] Mas é nos primeiros anos da década de 90, que o artista vai se firmar como um de nossos destaques no panorama cultural brasileiro com uma obra contundente, expondo como nem um outro, os dramas e as angústias do homem contemporâneo por meio de uma produção autobiográfica que tinha nos traços e cores delicadas dos desenhos e fragilidade dos bordados sobre tecidos como o voile, uma nova temporalidade para sua obra. 183 O novo é característica constante nos discursos sobre o artista, o herói é criador e traz à tona o que estava escondido, é seu papel revelar. Assim Leonilson se destaca no cenário da arte, como um artista que traz o novo, que modifica sem medo e que não se iguala ao que está estabelecido como padrão. Leonilson nos chega com boas surpresas. A surpresa de trazer um novo pensamento para o desenho, de fugir descaradamente do convencionalismo da pintura. Plenamente consciente de que o artista tem o poder nas mãos, Leonilson se permite a tudo.184 Resende também nos traz a idéia de inovação como fator de reconhecimento deste artista no meio artístico nacional, destacando que o bordado de linhas e palavras ou os textos autobiográficos que fazem parte de sua obra e que narram uma espécie de viagem tornam-se sua marca expressiva. Leonilson se faz presente pela proposição formal e pela atitude diante do fazer artístico. Sobre a mudança pela qual passa o artista, Ivo Mesquita acrescenta: Essa instalação representa uma grande mudança na obra de Leonilson. Foi quando ele saiu da tela e passou a utilizar o espaço. Também foi quando passou a usar uma 182 MACHADO, op. cit. RESENDE, José. op. cit. 184 Holanda, Leonilson: brincando com o conceito de arte, 1984. 183 79 narrativa com muitos elementos pessoais, de suas datas, das conversas com amigos , diz Ivo Mesquita, curador da exposição. Apesar de sua morte prematura, aos 36 anos, Leonilson é presença influente na arte contemporânea. Ele trouxe a questão da identidade, do contador de histórias, o que o tornou uma referência e uma vertente bastante atual afirma.185 Da mesma forma como Ivo Mesquita destaca na obra do artista as características inovadoras e suas contribuições para o legado da arte contemporânea, colocando Leonilson como uma vertente para a arte atual, encontrou-se outra referência neste mesmo sentido no texto de Adriano Pedrosa, quando este distingue a obra de Leonilson das obras dos mestres modernos, caracterizando a obra dos modernos como majestosas em contraposição a obra de Leonilson, tida como intimista e singela. Aqui o crítico estabelece uma relação com a dimensão física das obras, destacando que em Leonilson encontramos dimensões limitadas pelo tampo de uma mesa: Leo se posiciona com ceticismo em relação ao projeto abstracionista do modernismo tardio - nem figurativos abstratos, essas classificações não dão conta dos seus trabalhos. Sobretudo, entre Rothko dos anos quarenta e cinqüenta e Leonilson dos anos oitenta e noventa, há um divisor crucial: as desrazões do pensamento dos années soxiante e todas as mortes que então se anunciavam.186 No mesmo texto Adriano Pedrosa, propõe que em Leonilson há um artista que se volta à metáfora do ser, se volta ele próprio para a obra, se entrega à obra de forma autobiográfica anunciando a não morte do sujeito e da obra em uma dialética onde autor-obra-espectador, negam e revelam descobrimentos em uma cadeia infinita de metáforas. Leonilson, como artista que se destaca no cenário nacional e internacional da arte, recebe o título de inovador, original e transformador por parte da crítica em geral, tanto no sentido do domínio técnico como na sua forma de ser artista que concebe, elabora a idéia, é autor, é criador. 185 Folha de São Paulo - Caderno Ilustrada. 11 jun. 2003. PEDROSA. Adriano. Voilá mon coeur. Disponível em: http://www.protoleonilson.com.br/textos.php Acesso em 17 de agosto de 2005. 186 80 No material intitulado Leonilson: Rios de palavras , constante dos impressos do Núcleo de Educação da XXIV Bienal de São Paulo, estão presentes argumentações que buscam perceber como o artista se distanciou das influências externas, de forma que chega a uma experiência individual e original, propondo novos domínios técnicos. Em 1985, Frederico de Morais escreveu que cada vez mais pintor, Leonilson começa a criar estruturas complexas, superpondo tempos e espaços, diversificando seu vocabulário temático, manipulando técnicas pouco ortodoxas. Usa rolos e pincéis, faz uso de impressões, cria sutis efeitos de matéria e textura. Persiste um ar deliberadamente displicente, com o aproveitamento do branco do tecido e até de suas dobras. O colorido também mudou; ele estimula os contrastes, jogando amarelos e vermelhos vibrantes contra uns tons pardacentos, ocres, terras, tonalidades surdas, ou fica só nestas cores sujas, como se a tela fosse uma lona de caminhão, guardando as marcas da estrada e do tempo . Já em 1991, Casimiro Xavier de Mendonça escreve: Leonilson vem organizando uma espécie de cartilha secreta, um livro de iniciação, em que cada trabalho acrescenta um elemento novo ao perfil do próprio artista. Das telas gigantes e recortadas em formas irregulares, ele passou para os pequenos objetos que lembram relicários e peças religiosas. Pérolas, redes, veludos e lonas - os fragmentos de tecidos dados pelos amigos, tudo isto se transforma numa iconografia inconfundível .187 Neste contexto, dá-se destaque para o caráter de criação de uma linguagem própria, criada por meio de um repertório de elementos recorrentes na atitude e na criação da obra do artista. Em um momento em que a arte brasileira buscava estar em sintonia com a arte internacional, Leonilson busca e cria uma linguagem própria, uma iconografia inconfundível . O que faz dele, segundo os textos citados, um diferencial e uma referência para a arte contemporânea brasileira, rejeitando os modelos que o precedem. Tal como Kris e Kurz sustentam nas biografias que analisaram, há o momento em que o herói, frente à aprendizagem, tem a possibilidade de rejeitar seus mestres. Rejeitando o passado, Leonilson se torna o diferencial de uma geração, indo além da visão restrita e sedimentada de seu momento histórico. Leonilson trouxe para a arte dos 80 o traço existencial de uma geração pós-utópica que misturava uma subjetividade em crise aos novos processos de investigação formal. Sua pintura inicial, mediana, nada de particularmente interessante, foi se transformando em 187 XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo Educação. Leonilson: "Rios de Palavras". São Paulo: Fundação Bienal, 1998. 81 seus desenhos/costuras/poemas de alta dosagem poética, dando ao fazer artístico um lirismo singular.188 O diferente, o novo, o que se tornou referencia para os jovens artistas atuais, que poderiase dizer que às vezes se esquecem que é preciso romper com os mestres e inovar, trabalhou, segundo Galvão (1993), na contramão da história, aclamando seu diário íntimo e desvelando, provocando, seduzindo a partir de sua obra que exige nossa participação para ser. Por trabalhar na contramão dos modismos pregados pelos gurus de plantão, que exigem de seus seguidores rigor fanático e fidelidade absoluta, Leonilson continua como outsider em seu país. Mas um outsider sem medo de mergulhar nas profundezas de seu universo pungente, guiado só pelo coração. Por isso, seu trabalho exige a adesão de quem o vê, não concedendo espaço apenas para especulação científica. A emoção é coisa essencial.189 Dentro da história da vida de Leonilson percebe-se que ele fez a escolha e o ingresso à sua carreira a partir da academia, muito embora tenha abandonado a FAAP. Mas, ele não esteve fora das relações acadêmicas da época. Ele não foi um autodidata, o que torna possível encontrar referências a alguns mestres dentro de sua biografia, pois teve acesso aos bens culturais vigentes e ao meio das artes plásticas em todo o percurso da sua carreira. A respeito da trajetória de Leonilson como artista, Lagnado190, destaca que o público particamente desconhece a importância dos desenhos da fase inicial. A autora declara que na produção de desenhos o artista tinha a influência sensível de Klee, o lirismo de uma poesia delicada permeia o traço infantil das aquarelas coloridas de formatos muito reduzidos . Analisando o contexto inicial da carreira de Leonilson, Lagnado191, menciona esta fase, entre os anos de 1983 e 1988, como a busca do prazer de pintar . Neste momento cresce o interesse da crítica internacional sobre a arte brasileira e neste contexto Leonilson lançará sobre essa visualidade uma potência erótica. 188 OSORIO, Luiz Camilo. Visão restrita de uma geração. Segundo Caderno. O Globo, 26 de julho de 2004. GALVÃO, João Candido. Sem título. Catalogo da exposição Leonilson , na galeria São Paulo em São Paulo, 1993. 190 LAGNADO, 1998, p.29. 191 Ibid, p. 30-31. 189 82 Até 1986, aproximadamente, o traço do desenho consiste em envolver as formas com um contorno mais escuro, à maneira do grafitti norte-americano. De Keith Haring, Leonilson retoma, entre outros recursos gráficos, os círculos em espiral e o símbolo do infinito. [...] Em 1986, a partir da amizade com o artista alemão Albert Hein, Leonilson incorpora dados metafísicos : esculturas que arquitetam uma maquinaria do absurdo, mapas, globos, a esfera celeste, o fogo e a água. Filho de um comerciante de tecidos, Leonilson passou a infância entre os retalhos amontoados no quarto de costura da casa materna. Esse quarto de costura deve ser compreendido como um paradigma e não como mera explicação autobiográfica. Somam-se a esse universo de panejamentos uma coleção de brinquedos artesanais, a memória dos amplos parangolés de Hélio Oiticica e dos de Tecelagem de Eva Hesse (atar, entrelaçar), assim como um interesse pronunciado pelo feitio arrojado da altacostura.192 Somando-se às suas referências aos mestres (artistas antecessores, amigos e influências) está a sua bagagem a partir das viagens, consideradas nas biografias dos artistas como parte da sua iniciação. Contrariando um percurso desenvolvido pela maioria dos artistas brasileiros de expressão internacional, Leonilson, que nasceu em Fortaleza, mas desde os dois anos de idade reside em São Paulo, tem uma formação artística de aproximadamente quatro anos, pontilhadas por exposições em Madrid, Bolonha e Milão. Só depois de várias incursões pela Europa é que ele decidiu mostrar seu trabalho no Brasil.193 Ainda encontrou-se nos textos sobre o artista o destaque dado por críticos e jornalistas, até mesmo pelo próprio artista, a necessidade de ultrapassar seus mestres, característica do herói que após sua iniciação deve seguir seu caminho e destacar-se, isto já estava assim predestinado. Em entrevista o artista comenta sua passagem pelo curso de artes da FAAP: [...] ele diz que ali teve gratificantes contatos com professores que eram artistas modernos conceituais. Mas logo ele percebia que o que o professor ensina tem que ser ultrapassado, para se chegar a algo individual. Achei importante criar, dar vasão a minha inventividade. Foi daí que surgiu o que a crítica chamou de vanguarda com elementos novos, porque, na verdade, há muito a vanguarda vinha repetindo traços. 194 192 LAGNADO, 1998, p. 30-32. BESERRA, Concy. A arte e a vida na obra de Leonílson. Jornal O Povo, Fortaleza, Ceará, 3 dez. 1984. 194 Ibid. 193 83 O artista aposta na sua trajetória, o herói se entrega ao destino e a sua missão, e, no caso do nosso herói esta trajetória somente se concretiza a partir das viagens e da negação ao didatismo e a academia. Dentro de sua saudável inquietação, querendo ver coisas novas, Leonilson vende o seu carro e troca por uma passagem para a Europa. Foi lá, mais precisamente, na ponte Itália-Espanhaque Leonilson impôs consistência ao seu aprendizado de artista e se assumiu como tal.195 Tanto na cronologia da vida de Leonilson, como na fala do próprio artista, e nos estudos de Lagnado, as viagens são tratadas como material de representação e constituição do seu trajeto heróico: Há ainda outro fator constitutivo do olhar do artista. Durante uma viagem a Nova York, anterior à apresentação da obra de Bispo ao público, Leonilson visita uma exposição de design sobre Shakers - seita religiosa fundada sobre o otimismo - e realiza uma vigorosa ascese da produção dos Shakers, retomando seus princípios fundamentais.196 Lagnado197, argumenta sobre a influência dos Shakers na obra de Leonilson, esclarecendo que este grupo não se caracteriza como uma corrente ou movimento estético. Exatamente neste ponto devemos prestar atenção especial, posto que na trajetória do artista a obra como objeto estético não representa o ponto principal da evolução do discurso, de forma que encontramos na atitude do artista os pontos fundamentais do seu heroísmo. No caso de Leonilson várias características podem ser relacionadas aos Shakers como uma dupla iniciação: o desprendimento dos mestres iniciais a partir no não lugar e as intenções e princípios que o liga aos Shakers. É importante colocar, apesar de já ter sido citado anteriormente, que Leonilson, não considerou Bispo do Rosário um mestre (apesar de ser uma forte referência, tão forte quanto o costume de bordar a sua mãe), sendo que para ele, Bispo foi uma influência posterior ao seu contato com os Shakers. 195 HOLANDA, Leonilson: brincando com o conceito de arte. 1984. LAGNADO, 1998, p 34. 197 Ibid, p. 34 a 36. 196 84 Segundo Maffessoli198, pode-se dizer, de forma geral, que a tensão entre o lugar e o não lugar está na base de toda estruturação social. O autor argumenta que, se o território é o topos do mito , não é menos verdade que toda sociedade tem necessidade de um não lugar. A ordem estabelecida, qualquer que seja, só pode perdurar se alguma coisa ou alguém vem desestabilizála, vem lembrar que o desfuncionamento, o pecado, a infelicidade também fazem parte integrante da proposição do mundo .199 Em Lagnado (1998) encontrou-se a trajetória de Leonilson dividida em três momentos, após esta fase inicial do desenho lírico e da busca do prazer pela pintura, a segunda fase (198991), é onde o artista encontra no abandono e na inclinação para os valores românticos o ponto de firmeza para o seu trabalho, onde Leonilson articula uma linguagem própria. Em 1989 o artista expõe o que chama de anotações de viagem , onde estão presentes as influências dos Shakers. Analisando a partir da idéia de não lugar de Maffessoli, podería-se dizer que nas viagens o artista ganha sua identidade, pois segundo o autor200, a separação e a ligação, o religarse e o desligar-se, constituem uma estrutura antropológica da existência humana, fazendo com que se aspire a estabilidade das coisas, a permanência das relações, a continuidade das instituições, e, ao mesmo tempo, se busque a novidade do sentimento, se solape o que parece muito estabelecido, se procure o movimento. Essa ambigüidade da vida foi ocultada no discurso da modernidade, mas está presente no discurso que constrói a trajetória do herói, ou no percurso iniciático do artista. Pode-se perceber na obra de Leonilson as características desta iniciação não acadêmica, buscada fora desta estrutura posta e institucionalizada, mas que através da obra do artista volta para o lugar institucional. Em busca de uma sociedade melhor, os Shakers produziam os próprios tecidos [...] e objetos utilitários sem ornamentos supérfluos. [...] Os mapas, presença marcante na obra de Leonilson, foram também um traço forte na iconografia dos Shakers. A prática desse registro incluía a datação tanto das construções como dos objetos. Despojados de qualquer intenção decorativa [...] 198 MAFFESSOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001. P. 87. 199 Ibid, p. 87. 200 Ibid, p. 78 a 80. 85 O artista substitui o prazer das tintas pela sensualidade de cada tecido (o voile, o feltro e o veludo). Com a perfeição do bordado (o verso do pano tem o mesmo cuidado que a parte da frente), a devoção encontra uma justificativa na crença emprestada dos Shakers da vida eterna do espírito, segundo a qual a morte é passagem para um estágio superior.201 Essa crença está na atitude do artista perante a obra e a produção, de maneira não apenas formal, mas nos conflitos do artista em relação ao mundo. O artista passa pelo prazer passional, pela suspeita, pelo inconformismo, pelo desassossego, enfim pelo abandono. Esse estado de desassossego, o inconformismo, gera uma constatação: Leo não consegue mudar o mundo . Leo can`t change the world . A frase, reafirmada em português e em inglês, revela o quanto a impotência é inominável, a experiência do abismo intransponível; as luzes da utopia e do heroísmo parecem abandonar a fortuna do artista.202 As palavras e textos, ora bordados sobre tecidos ora apenas riscados sobre o papel que o artista insere em seus desenhos (ver anexos) informam a respeito da impotência e força da arte e do artista, ou da negação da arte pelo próprio artista, que se volta para o existencial, onde a duplicidade do ser que está implícita. Lichtenstein203, argumenta segundo a idéia de que, neste contexto, a dimensão mítica de um artista é precisamente o que ela tem de positivo, isto é, de produtivo para o fenômeno de domínio de imitação, transformação e emulação que suscita. Seja na crença do artista-deus que copia a natureza a ponto de criar uma ilusão de realidade, ou a do artista criador que transforma a natureza, melhorando o que Deus criou. O fato é que as crenças mitológicas na força ilusiva e transformadora do artista sobrevivem, permitindo satisfazer a fantasia do homem, não importa o lugar e período. A liberdade de criação do artista é relativa, uma vez que este sempre, consciente ou inconscientemente, busca satisfazer ao meio social que deseja inserir-se. É relativa porque deve ser aceito pelo meio social, para poder sentir-se artista .204 201 LAGNADO, 1998, p. 35-36 Ibid, p 42-43 203 LICHTENSTEIN, op. cit, p.19. 204 VARGAS SANTA ANNA, 1990, p. 20. 202 86 Neste ponto cabe destacar alguns exemplos mitológicos citados por Kris e Kurz205, relatando outras duas características da mitologia atribuída ao artista em relação às suas realizações: conseguir dar forma aos seres, e ser capaz de erguer edifícios que chegam ao céu ou rivalizam em tamanho e grandeza com a morada dos deuses . Ambas merecem castigo, e entre esses exemplos os autores citam o mais conhecido deles, a história da Torre de Babel, que chega a nós por diversas interpretações associadas à idéia de insulto à divindade que, por sua vez, deve ser apaziguada com um sacrifício humano. Está proposto que esta substituição de vítimas humanas por ofertas simbólicas sobrevive em histórias de arquitetos que puseram fim à própria vida quando terminaram suas obras. Prometeu, titã para os três grandes trágicos gregos e também Deus em Ésquilo, revela muito melhor que outros heróis a concepção ocidental da trágica forma de existência humana, cuja ação astuta e inventora e sua luta contra os perigos de sua existência estão, por outro lado, continuadamente obscurecida pela insuperabilidade de sua condição humana, a vulnerabilidade e a mortalidade. [...] O desejo do homem marginal, de tomar parte nas dádivas da mesa dos deuses, constitui a semente de um sentimento de culpa que acompanha a apropriação de faculdades divinas por parte dos homens. (Tradução nossa)206 Neumann207 argumenta a respeito da possibilidade de uma interpretação do sofrimento inadequado na vida cotidiana, sentimento dos que estão à margem da sociedade, e dos quais se exige algum tipo de compensação para estarem na sociedade. Tanto em Neumann (1992) como em Kris e Kurz (1988), encontrou-se referências a Prometeu208 e Hefesto, modelos míticos 205 KRIS e KURZ, op. cit, p. 79 a 83. NEUMANN, op. cit, p. 72 Prometeo, titán para los tres grandes trágicos griegos e incluso dios en Esquilo, revela mucho mejor que otros héroes la concepción occidental de la trágica forma de existencia humana, cuya acción astuta e inventiva y su lucha contra los peligros de su existencia están, sin embargo, contínuamente ensombrecidas por la insuperabilidad de su condición humana, la vulnerabilidad y la mortalidad. [...] El deseo del hombre marginal, de tomar parte en las dádivas de la mesa de los dioses, constituye la semilla de un sentimiento de culpa que acompaña a la apropiación de facultades divinas por parte de los hombres. 207 Ibid, p. 73. 208 A figura trágica e rebelde de Prometeu, símbolo da humanidade, constitui um dos mitos gregos mais presentes na cultura ocidental. Filho de Jápeto e Clímese - ou da Nereida Ásia ou ainda de Têmis, irmã de Cronos, segundo outras versões - Prometeu pertencia à estirpe dos titãs, descendentes de Urano e Gaia e inimigos dos deuses olímpicos. O poeta Hesíodo relatou, em Teogonia, como Prometeu roubou o fogo escondido no Olímpo para entrega-lo aos homens. Fez do limo da terra um homem e roubou uma fagulha do fogo divino, a fim de dar-lhe vida. Para castigá-lo Zeus enviou-lhe a bonita Pandora, portadora de uma caixa que, espalharia todos os males sobre a terra. Como prometeu resistiu aos encantos da mensageira, Zeus o acorrentou a um penhasco, onde uma águia devorava diariamente o seu fígado, que se reconstituía. A tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, apresenta-o como um rebelde contra a injustiça e onipotência divina, imagem apreciada pelos poetas românticos, que viram nele a encarnação da liberdade humana, que leva o homem a enfrentar como orgulho seu destino. 206 87 fundamentais nas concepções de artista como o herói castigado pela inveja dos deuses, o artista marginal, o artista como herói cultural. 3.6 Retorno e morte do herói Há no herói as buscas humanas pela felicidade, pelo prazer, pela busca da verdade com a coragem que o homem comum não tem no dia a dia. A obra é símbolo de uma busca para a humanidade. Costa209 diz que Leonílson trocou a ciência da pintura pelo prazer de pintar, levantando a busca da felicidade e o compromisso com o expectador como características deste artista precursor. O herói realiza muitas aventuras e viagens, mas retorna sempre para trazer à sua terra natal suas conquistas e suas respostas. O artista-herói também estabelece constantes retornos presenteando sua origem - sua terra natal com sua volta. A demora para chegar ao público brasileiro, entretanto, valeu a pena. [...] Apesar da pouca idade, 26 anos, Leonílson já percorreu na pintura e no desenho um longo caminho de experimentações que o fizeram chegar ao estilo figurativo de hoje. [...] A necessidade de voltar ao Brasil para definir melhor as suas formas , como diz, cortou a carreira promissora na Europa, mas devolveu à terra um artista que a crítica classifica como a mais autêntica expressão da transvanguarda brasileira .210 Mas, a artista também recebe críticas à sua carreira meteórica, da mesma forma que o herói tem suas punições e não é aceito por todos, apesar e uma grande aceitação do grupo onde está inserido. Na figura do artista, precisa-se ressaltar sua necessidade de aceitação, e neste sentido Olívio Tavares de Araújo faz a seguinte colocação: Leonilson pinta com óleo ou semelhantes sobre tela, fazendo uma figuração que está na moda e que ele trouxe de Paris (onde morou), antes mesmo da chegada oficial dos transvanguardistas na última Bienal. [...] talvez esteja inconscientemente preocupado em corresponder as expectativas que lhe estão garantindo o sucesso. Há mais de 209 Leonílson traz consigo e na sua obra o alicerce do humano, a busca da felicidade, o prazer. O universo colorido de um artista que aposta na alegria. José Jornal da semana inteira, Brasília, DF, 09 a 15 de nov. 1985. 210 88 fórmula (e portanto de risco de obsolescência) em seu trabalho do que no de Marcello Nische.211 O herói sofre uma espécie de castigo - o sofrimento - pois é mortal, mas conhece os segredos dos imortais. Assoma-se a isto, a idéia de abandono, que em Leonilson merece reconhecimento como garantia da personalidade contundente, digna de comparação a Zeus, o pai protetor da casa, dos bens, de todos os agrupamentos humanos, da justiça. Kris e Kurz (1988, p. 80-81) apresentam a imagem do artista denegrido e punido pela sua presunção, que é a contrapartida do artista heroicizado. Porém os autores advertem que não devese identificar o ato que paga com o castigo apenas com o de fazer figuras, pois o castigo que se sofre deve ser visto em um contexto mais vasto, que está ligado ao significado simbólico do fogo, sinal de poder criativo, realização cultural e onde as figuras de Prometeu (introdutor do fogo) e de Hefesto212 (demônio do fogo) estão intimamente ligadas. Ambos desafiam os deuses e são criadores de figuras humanas dotadas de movimento através do fogo. Outros tantos deuses e heróis estão presentes na base das narrativas míticas. Através dessas narrativas presentes no mito do herói e no mito do artista , se exprime uma crença, se impõe princípios, se garante a eficácia dos rituais e regras para a orientação do homem no mundo e se constrói as identidades. O mito do artista define o papel do artista através da sua constante re-atualização, porque o mito não se apresenta como um relato de acontecimentos ocorridos, mas como uma estrutura permanente que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro. O Mito de Prometeu abordado por Eckhard Neumann em Mitos de Artista dá partida a analogias entre o que o autor chama de ação criativo-cultural do herói, seu sofrimento como castigo dos deuses, e a freqüentemente desesperada situação social de muitos, assim como também, por exemplo, da maioria dos literatos na Alemanha do século XVIII. 211 ARAÚJO, Olívio Tavares de. Com vitalidade e prazer. Revista Istoé, São Paulo, março de 1985. Deus do fogo, artesão divino, que produzia muitos objetos e acessórios utilizados pelos deuses, inclusive os raios de Zeus. Segundo o poeta Hesíodo, foi gerado espontaneamente pela vingativa e ciumenta Hera, em represália à paixão de Zeus por Métis. Porém, ele é expulso do Olimpo pela mãe, pelo fato de ser coxo. Como artesão, pretendia Atena como mulher, mas ela o recusou por ser muito feio. É das suas fornalhas que saiu a primeira mulher mortal do mundo, Pandora, a quem os deuses infundiram vida. 212 89 Independentemente das diferentes reinterpretações feitas por diferentes culturas ao culto do artista gênio, seu sofrimento e santificação, esses dois pilares do heroísmo permanecem até nossos dias. Neste sentido, Lagnado define os últimos anos de vida de Leonilson - a etapa entre 1989 e 1991 - como o momento deste abandono que leva o artista ao encontro de valores românticos, que passam a ser o foco de seu trabalho. É nesta etapa que aparece com destaque o conflito com a sexualidade; e os dois últimos anos de vida, onde o artista volta-se para uma alegoria da doença que o vitimou. O solitário inconformado está confinado dentro da própria linguagem, de onde a voz ecoa como um longo lamento monocórdio 213 Entendemos que no herói encontramos atributos, ou modelos a serem seguidos que podem cumprir a dupla função de sublimar o desejo de superação de limites e impotência do homem comum, e por outro lado, como sugere Neumann, cultivar o individualismo que nesse sentido se sobrepõe às forças coletivas. Somente no herói, no indivíduo que a todos espera, se realiza a liberdade que o homem comum tenta conseguir em vão. Em contraposição à habitual impotência do homem, este encarna a imagem compensada da grandeza individual . (Tradução nossa)214 Ou seja, que os atributos globalizantes da personalidade do herói ou artista servem para confirmar sua grandeza individual e sua aceitação como artista. Outro mitologema importante esquematizado por Junito Brandão e Mircea Eliade é a Morte do herói: sua morte segue o mesmo caminho dramático e espetacular cunhado em vida. Se o herói tem um nascimento difícil e complicado, se toda a sua existência terrena é um desfile de viagens, de arrojo, de lutas, de sofrimentos, de desajustes, de incontinência e de descomedimentos, o último ato de seu drama, a morte, se constitui no ápice de seu (páthos) de sua prova final: A morte do herói ou é traumática e violenta ou surpreende em absoluta solidão . Afirma Brelich que ainda não se fez uma estatística, e é uma pena, mas acrescenta que a maioria dos heróis morre tragicamente. Ex: Antígona, Jocasta, Fedra, etc.215 Leonilson não se tornou mito apenas por ter morrido cedo (com 36 anos) e em circunstâncias particularmente dramáticas, mas a sua morte traz argumentos para o discurso 213 LAGNADO, 1998. p. 43. NEUMANN, op. cit, p. 48 Sólo en el héroe, en el individuo que a todos supera, se realiza la libertad que el hombre común intenta lograr en vano. En contraposición a la habitual impotencia del hombre, éste encarna la imagen compensada de la grandeza individual. 215 BRANDÃO, op. cit, p. 43 214 90 mítico e seu reconhecimento como artista. No caso de Leonilson a morte é anunciada, ele sabe que aqueles são seus últimos anos de vida. O sentimento de infinitude encontra-se intimamente ligado à frustração e à constatação de imperfeição no embate entre natureza e humanidade. Nos últimos dois anos de vida, a obra de Leonilson se volta para uma alegoria à doença, o que o leva ao retorno. Para Lagnado,216 [...] seria desqualificar as conquistas formais de Leonilson classificá-lo dentro da narrativa da militância gay, por mais que tenha declarado sua atração pelos rapazes, por mais que o temor da doença referindo-se a aids seja mencionado em diversos desenhos e bordados, por mais que tenha morrido em decorrência de aids. A experiência de vida de Leonilson que se mistura à obra do artista marcadas pela temporalidade, o provisório, o efêmero, o imaterial [...]217 misturando desejo e morte, aproxima-nos da narrativa final da morte do herói. Dado importante para que o herói inicie seu itinerário de conquistas e vitórias, é a educação que o mesmo recebe, o que significa que o futuro benfeitor da humanidade vai desprender-se das garras paternas e ausenta-se do lar, por um período mais ou menos longo, em busca de sua formação iniciática [...] A partida, a educação e, posteriormente, o regresso representam, consoante Campbell, o percurso comum da aventura mitológica do herói, sintetizada na fórmula dos ritos de iniciação separaçãoiniciação-retorno.218 Leonilson cumpriu a aventura heróica, sua etapa de separação da terra natal e do legado familiar, de iniciação com mestres e superação de limites. Nos seus momentos finais nos deparamos com o retorno à busca de uma unidade em uma obra carregada de autobiografia. Mesquita219, diz que a aids mudou o rumo da vida e marcou a produção do artista, conferindo-lhe uma terminologia própria e original, conferindo à sua arte uma dimensão narcísística. Narciso na arte é a imagem de um desejo, e, sobretudo de uma impossibilidade. Mas de uma impossibilidade que toma o corpo ou o rosto como refém para transfigurar-se no Jano bifrontal: amo e escravo, objeto e reflexo, ser e lugar de ser .220 216 LAGNADO, Lisette. Longing for the body , ontem e hoje. - Em obras: Trópico. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/print/2634.htm Acesso em 24 de agosto de 2005. 5 de 8 217 Ibid, p. 5 de 8. 218 BRANDÃO, op. cit, p. 23 219 MESQUITA, Ivo. Para o meu vizinho de sonhos. In: LAGNADO, Lisette. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: DBA Artes Gráficas, Melhoramentos, 1998. P.195 220 Ibid, p. 195-196 91 Na última entrevista que concedeu a Lisette Lagnado, o artista nega sua condição de artista, afirmando-se como um curioso e voltando-se ao reduto existencial. Como eu sou...? Acho que curioso . Tenho uma curiosidade quase infantil de descobrir... Eu penso: será que sou artista? Eu não penso que sou um artista. [...] Eu sou ambíguo, completamente. Os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma verdade diretamente, mas mostram uma visão aberta. [...] tenho um prazer quase de Eros. Minha relação com o trabalho pertence ao plano sentimental. Você vê, os trabalhos ficam aqui, eu fico na cama e olho para eles. Eles me fazem companhia. 221 O artista já não tinha mais força física, em função da AIDS, e precisava administrar as suas incertezas. Em suas últimas obras Leonilson passa a economizar nos bordados, nas pinturas. Sua obra intimista traz a escrita como recurso e demonstra uma preocupação maior com o sentimento do que com a estética, como afirma o artista em entrevista a Lisette Lagnado: É, esse silêncio é muito poderoso nos bordados. Agora estou gostando de fazer trabalhos que consistem em apenas dois panos costurados, só o tecido leve, sem nada. São panos estampados ou listados com uma seda no verso. Mas eles são vazios. É o que estou procurando .222 Leonilson não tinha mais nada a perder, sua morte era um destino previsível. Porém não teve medo de expor seus sentimentos e sua evidente intenção de se projetar em cada peça. Lê-se em uma obra: Leo não pode mudar o mundo porque os deuses não admitem qualquer competição com eles . Porém, Leo tem sua permanência indiscutível no cenário da arte brasileira. Essa permanência não pode estar desvinculada da proximidade que o artista consegue com o público através da sua obra, em poema publicado no folder da exposição Cartas al hombre realizada em Madri no ano de 1981, o artista escreve: Todas las cartas uma carta Todos los hombres um hombre solo . no sigo lineas sigo, si, el viento que sopla en mi cabeza y el sol en mi manos. Atravieso el abismo. Soy un hombre solo, 221 222 Entrevista de Leonilson. em: LAGNADO, 1998, p. 127-129. Ibid, p. 117 92 puerto donde nos olvidamos, puente donde nos reencontramos hombres solos? Pero hay un cosmos y otras dimensiones...223 O artista fala do individual e do coletivo, do eu e do outro, da obra como reconhecimento de pertencer ao mundo e onde o público busca também seu reconhecimento. A identidade com o público se dá a partir de uma atitude egoísta do artista que fala da sua própria vida e usa a alegria e a ironia para fugir do padrão. A coisa com que eu mais me preocupo é comigo mesmo, com o meu interior e, a simplicidade faz a gente chegar mais dentro da gente , argumenta o artista. Mas, se é através dessa atitude um pouco egoísta, talvez que ele atinge a simplicidade é, também, ela que funciona como pano de fundo para a arte que desenvolve sempre, cheia de próprias experiências. Experiências que acredita, não são exclusivamente suas mas, comuns ou similares a de outras pessoas [...].224 Segundo Kato225, o artista partiu de suas experiências pessoais, de sua herança familiar para chegar a um mapeamento das memórias coletivas de todos os lugares. Isso significa dizer que o âmbito pessoal se identifica com o coletivo e, ao entrar em contato com a obra o expectador, vive experiências que também poderiam ser suas. De fato ele elegeu suas obras como guardiãs legítimas de suas confidências, seus verdadeiros anjos da guarda tratados de maneira intimista tal um travesseiro .226 Os objetos de Leonilson tiveram e têm a dimensão de uma relíquia.227 Os objetos relíquias têm um poder especial. Falam não só através de seus sorrisos, seus trejeitos, seus olhos, mas também com suas palavras, capazes de reatar um diálogo com o infinito .228 Podemos 223 Leonílson. Sem título . In: Folder da Exposição Cartas al Hombre . Madri. Casa do Brasil, maio de 1981. HOLANDA, Márcia Ítala. Uma explosão. In: Jornal O Povo, Fortaleza, 21 de dezembro 1984. 225 KATO, Gisele. Revista Bravo, Ago. 2003. p. 74 226 Ibid, p. 74 227 Fascinado pelos parangolés de Oiticica, pelas construções complexas de Arthur bispo do Rosário e por suas próprias coleções de carrinhos, relógios e brinquedos, Leonilson demarcou sua obra com a dimensão da relíquia. E deu ao universo contemporâneo uma certa permissão para a inserção pessoal, do autobiográfico, do pequeno, do desimportante. O artista fez escola deixando sua potente e dedicada marca fincada na obra de um grande número dos mais instigantes artistas surgidos da geração 90 brasileira. (CANTON, Kátia. Revista Bravo - outubro de 2003. p 77) 228 ARIES, Philippe; DUBY, Georges (orgs). História da vida privada. São Paulo: Cia. da Letras, 1991. Vol. III.. P. 212 224 93 chamar de objetos relíquias , àqueles objetos que possuem a marca simbólica da pessoa que os utilizou, estes objetos carregam uma pequena história, também acontecimentos, uma lembrança, uma memória que é capaz de nos levar a uma viagem através do tempo. Nos últimos trabalhos de Leonilson, principalmente, existe certo cansaço no gesto. Tudo vai ficando menor e inacabado. O branco ao redor vai ganhando espaço, potência, e o desenho quase desaparece no meio de palavras não-ditas; figuras vão ficando pela metade, como o pequeno homem de O Templo (1993), que não tem os pés nem as mãos desenhadas; a letra do artista, por fim, às vezes caprichada, se torna garrancho [...]229 A obra de Leonilson está, assim, composta por objetos vividos e carregados de memória. Mas, seus objetos não são a única referência da sua permanência e reconhecimento. Os objetos são, na verdade, parte da narrativa de sua história, de sua trajetória heróica. A maioria dos críticos concorda que o conhecimento da trajetória pessoal dos artistas ajuda na compreensão de suas criações, mas entendem que essas devam ter valor como expressões autônomas. No caso de Leonilson, porém relacionar cada peça com uma espécie de cada capítulo de uma autobiografia é não só uma postura pertinente como fundamental.230 Leonilson, reconhecido como grande artista brasileiro, falecido jovem em São Paulo, em 1993, deixando uma obra autêntica que buscou a intensidade poética individual, foi homenageado na Bienal de São Paulo de 1998, com uma sala especial, a imagem de uma escultura foi motivo do emblema do evento e o detalhe de um desenho, a imagem do cartaz. Sua morte, em maio de 1993, será marcada também pela remontagem de uma de suas instalações na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em julho daquele ano. A morte de Leonilson, dessa maneira, como a de um herói romântico, foi sua última obra talvez o tensionamento maior com a própria vida. A doença, também adquirida pelo contágio, foi a medida de sua mortalidade: o fim radical do próprio corpo que já desaparecia aos poucos.231 229 ROSA, op. cit KATO, 2003, p. 74. 231 ROSA, op. cit 230 94 A morte de Leonilson não afastou sua obra do cenário da arte brasileira, ao contrário, esta obra é tida como um marco dos anos 90, tendo ainda no aniversário de 10 anos da sua morte, recebido diversas homenagens com exposições e publicações. Escrita a morte do sujeito e a do autor (algo que na produção artística só encontrará reflexos cabais nos anos oitenta), o que resta ao espírito amoroso? A resposta do Leonilson atravessa e leva consigo o coração - o ouro do artista é, afinal, amar bastante -, com toda a ambigüidade que lhe é tão cara. Em Voilà mon coeur, ele (autor-coraçãotrabalho) é oferecido não somente a seu proprietário, mas ao espectador também: eis meu coração , anuncia o título. Mas numa sutil dialética que convida e nega revelação e descobrimento, é só no verso do trabalho que, por aguda ironia do artista, repousa a informação: ele lhe pertence . Pequeno objeto de cristal e ouro, frágil e precioso, o espectador pode mesmo estilhaçá-lo, e aí residem os perigos do expor-se ao público. Aqui, o irracional espírito amoroso persiste e, ainda que por detrás de finos ardis, termina por se entregar. Entre a servidão voluntária e a perversa inocência, ele afirma: O que você quiser, o que você desejar, eu estarei aqui, pronto para servi-lo. Por fim, o coração, como todas as outras coisas no mundo, aponta para a morte. Esse pode ser o leitmotiv da obra, mas na cadeia infinita de metáforas, a morte é sempre o significante último.232 A morte do herói marca o fim de sua jornada heróica e, ao mesmo tempo, garante sua passagem para a permanência como referencial de artista que mudou as bases da história da arte brasileira propondo novos modos de pensar sobre a arte, uma nova visualidade, um olhar para mundos distintos. Filipe Chamovich, no texto intitulado O mito romântico de Leonilson 233 , faz algumas indagações sobre esta construção do mito que se faz entre verdades e mentiras a respeito da figura do artista, o que para nós é bem pouco relevante, pois esta narrativa está na base do reconhecimento do artista enquanto tal e na sua permanência. Está claro que algumas informações do discurso que se faz hoje a respeito de Leonilson, não são confirmadas pelos familiares e por aqueles que conviveram com o artista. Porém Leonilson não é mais o homem, é de fato o artista, ou seja, o herói. Leonilson uma vez me disse reconhecer sua obra como estando pronta para o mundo quando algum espectador lhe dizia que ela fora feita para si. A apropriação personalizada realizava o trânsito entre o artista e o público. Não era preciso conhecer o artista; o preciso era refazer um movimento reflexivo a partir da obra proposta.234 232 PEDROSA, op. cit. CHAMOVICH, Felipe. O mito romântico de Leonilson. Revista Margem,. São Paulo, SP, no 6, dez de 1997. 234 Ibid. 233 95 O próprio artista não via a necessidade da realidade biográfica, pois a obra é símbolo, que não se realiza na realidade de vida do homem/artista. Através da obra [...] ele vela a si mesmo, preenchendo o vazio dos últimos dias com entrevistas, com a elaboração de pequenos objetos e desenhos que vão adquirindo muito peso, o peso de uma existência que se esvai. Dessa invisibilidade que se instaura tanto pela abstração da morte, quanto pela sutileza do gesto gráfico que vai registrar não somente o visível, mas, principalmente, o vazio que estabelece uma única certeza: o fim da agonia com a morte.235 Leo teve e tem no seu reconhecimento como artista as marcas da trajetória heróica que está explícita e implicitamente colocada a partir do texto cultural, nas falas dos colunistas, jornalistas, dos críticos, dos amigos e do próprio artista. A obra foi sua arma e a história mitológica seu material de reconhecimento. 235 BORBA, Maria Salete. Fragmentos de uma poética agônica. Disponível em: http://www.museuvictormeirelles.org.br/umpontoeoutro/numero1/nenaborba.htm Acesso em 4 de novembro de 2006. 96 CONSIDERAÇÕES O mito é a apresentação de um conjunto de ocorrências fabulosas com que se procura dar sentido ao mundo, este aparece e funciona como mediação simbólica entre o sagrado e o profano, condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres. Sob sua forma principal, o mito é cosmogônico ou escatológico, tendo o homem como ponto de interseção entre o estado primordial da realidade e sua transformação última, dentro do ciclo permanente de nascimento e morte: origem e fim do mundo. As semelhanças com a religião mostram que o mito se refere, ao menos em seus níveis mais profundos, a temas e interesses que transcendem a experiência imediata, o senso comum e a razão: Deus, a origem, o bem e o mal, o comportamento ético e a escatologia (destino último do mundo e da humanidade). Crê-se no mito, sem necessidade ou possibilidade de demonstração, pois se rejeitado ou questionado, o mito se converte em fábula ou ficção. Os mitos constituem modelos exemplares de todas as ações humanas significativas, oferecendo modelos que envolvem a polaridade, a coincidentia oppositorum, a androgenia divina e humana e a renovação. A dimensão mítica está acima do bem e do mal, e somente na dimensão ética é que esta dicotomia se apresenta, O homem contemporâneo tem fundamentalmente a necessidade de comprovações da autenticidade de uma informação, no entanto a mitologia, o símbolo, os arquétipos tratam de coisas invisíveis de suma importância, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade em geral, no que se refere à identidade . Assim o inconsciente psicológico lançado por Jung, passa a ser o inconsciente cultural, onde os arquétipos aparecem como matrizes para a compreensão dos padrões e estruturas que conduzem nossas vidas, pois, em todas as épocas ou sociedades existem mitos subjacentes que orientam e modelam a vida humana. Um mito diretivo manifesta-se através da redundância, é identificado como mitemas obsessivos, onde, em nesse estudo, a arte não é o fim, o fim é o herói, pois o mito pessoal é um mito coletivo vivido no horizonte de um ideário. Culturalmente o artista possui as mesmas 97 características mitológicas do herói e sua identidade não é, então, gerada na solidão da individualidade ou no seu próprio imaginário. A identidade se constrói a partir da aceitação. O mito é uma narrativa, com ação e personagens memoráveis, cujo autor não é identificável, porque pertence ao patrimônio cultural coletivo que tem como tema o fundo lendário, étnico e imaginário com base na tradição. Ao ser aceito, o mito se integra num sistema na maior parte dos casos, religioso e, muitas vezes sob forma literária, agrupa-se e constitui-se em mitologia, onde o essencial não está ligado ao mundo real, mas a uma história exemplar com variações que se afastam sensivelmente do seu protótipo. Ao finalizar este estudo, pode-se afirmar, a partir da vivência, que o discurso heróico na imagem do artista é construído através da mitologia, e que este se dá na relação do discurso ou das narrativas a respeito da figura diferenciada do artista unindo indissociavelmente obra e autor, simbolizante e simbolizado. A história do artista, que não necessita de veracidade, mas de construção cultural, se sobrepõe a sua obra. Encontramos em Leonilson este herói, que se constituiu enquanto artista através de uma trajetória heróica e que nos toca intimamente através de sua aceitação ao chamado, pelo cumprimento da sua missão. A obra participa também desta construção de identidade, a obra é símbolo, é parte da missão cumprida pelo herói e que traz à luz verdades profundas, evidências de uma ação, um registro quase que arqueológico, material da vida e do gesto e do pensamento do artista. E no discurso da crítica, dos jornalistas, do público, do próprio artista, encontramos os fundamentos da mitologia heróica que nos leva à chave da construção da identidade artística. Os discursos do artista e sobre ele manifestam esforços psicológicos (heróicos), onde o original, o extraordinário nas suas ações e na obra de arte fala de coisas dos deuses e neste sentido o mito dá sentido à história do artista e à cultura da arte, fazendo reconhecer Leonilson como o artista típico. O mito não é consciente, mas uma necessidade inconsciente de encontrar no artista a figura diferenciada que se doa ao mundo, que melhora o mundo, que sofre pelo mundo, que domina a matéria e a modifica, que em sua infância já demonstrava que estava pré-destinado a ser artista, ou seja, a ser herói. Ao fragmentar os relatos em mitemas e mitologemas pudemos levantar as redundâncias destas características heróicas nos discursos e entender melhor este 98 fenômeno, que em sua totalidade nos escapa, podendo somente ser vivenciado nas nossas relações com a cultura, onde o artista é o outro que nos fornece elementos para nosso reconhecimento enquanto participantes deste sistema, para seu próprio reconhecimento e para o reconhecimento da arte. O artista é figura extraordinária, o artista é o herói. O estudo de caso pautado no discurso a respeito de Leonilson mostra um exemplo de narrativa heróica, pois o artista Leonilson, com certeza tem suas singularidades e características próprias em sua arte e, sua obra é no entendimento de caráter numinoso a encarnação da própria Arte , e as narrativas sobre sua vida, além do seu próprio discurso, são a expressão da construção do mito do artista. Porém, é necessário ter o entendimento de que encontra-se esse discurso em muitas histórias sobre muitos artistas, com maior ou menor intensidade, com mais ou menos mitemas e mitologemas heróicos, e para entender este fenômeno basta dar um pouco de atenção aos textos que abrem as exposições e mostras de artes plásticas contemporânea. Para esclarecer os pontos comuns entre as histórias de artista e o mito do herói, basta nos deter em alguns pontos específicos, tais como: A juventude do artista, a descoberta do talento e iniciação, o artista divino (criador), e o virtuosismo do artista e buscar nestes pontos reatualizados, o que neste estudo foi atualizado pelo discurso a respeito de Leonilson. Esta reatualização do mito buscada nos discursos respeito do artista, nos discursos da nossa cultura que demonstram que estas atualizações - as da cultura - constituem as senhas de acesso específicas do homem, jamais a causa de suas representações, já que estas estão definidas pela existência humana que se atualiza através de uma cultura. Nossos artistas são nossos heróis: é o que diz o discurso da cultura no sistema da arte, nos textos da crítica, dos artigos dos jornais, na fala dos curadores, na manifestação do público e nos depoimentos do próprio artista Leonilson. O foco no pensamento da hermenêutica simbólica, usado como ferramenta para o estudo das questões da identidade artística nos discursos da cultura serviu de fundamento para compreender a construção deste mito do artista e entender a argumentação e a construção de um imaginário da cultura artística. 99 Toda argumentação aqui desenvolvida, e de fato criando mais um discurso, apresenta diferentes graus em que se organizam as imagens de que a consciência dispõe para representar o que não pode apresentar-se de forma direta, além de levantar os argumentos de pensadores e teóricos da hermenêutica simbólica, que defendem uma forma de pensar o mito como verdade, demonstrando a importância do estudo da mitologia para a compreensão do processo de construção da identidade artística. Seguiu-se um caminho para a mitologia artística, buscando o entendimento da trajetória do artista a partir do mito do herói, de forma que houve a busca de um alicerce para nosso discurso nas características do herói da mitologia grega. A mitologia artística, as concepções de artista, as ligações entre o mito do herói e o mito do artista, a maior importância dada a alguns pontos como a juventude do artista, a descoberta do talento e iniciação, o artista como divino criador e o virtuosismo do artista, inerente ao seu ofício traçou o mito de artista em Leonilson. E para completar e finalizar esta argumentação é preciso dizer, que a construção do mito do artista na trajetória do artista plástico brasileiro José Leonilson, não é uma invenção, não é uma mentira, mas se constituiu na base sólida do discurso cultural vivido, através dos relatos, de reportagens, dos textos da crítica, das falas do próprio artista e da nossa vivência pessoal neste universo onde foram debatidas as questões para esclarecer a trajetória do herói, sua origem, infância, juventude, retorno e por fim a morte que lhe garante a permanência. 100 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Nonato. Leonílson: a linguagem simples ganha maior importância na arte. Jornal DN, Fortaleza, Ceará, 01 de dez. 1984. ARAÚJO, Olívio Tavares de. Com vitalidade e prazer. Revista Istoé, São Paulo, março de 1985. ARIES, Philippe; DUBY, Georges (orgs). História da vida privada. São Paulo: Cia. da Letras, 1991. Vol. III. BACZKO, B. Imaginação social. In: Enciclopédia Inaldi. 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Para o meu vizinho de sonhos, 1990. Bordado sobre feltro, 90,0 x 38,0 cm. 112 7. Se você sonha com nuvens, 1991. Bordado sobre voile, 46,0 x 36,0 cm. 113 8. Europa, 1988. Acrílica, grafite, bordado e botões sobre lona, 36,5 x 65,0 cm. 114 9. O dia do herói, 1990. Bordado sobre feltro, 104 x 156 cm. Neste próximo documento/imagem (p. 113), com o laudo técnico da obra O dia do herói , onde aparece um homem com flechas e pato na parte inferior e algumas palavras e frases espalhadas pelo campo, não é possível ler as inscrições nesta reprodução, e são elas as seguintes: Parte superior esquerda: MY SKIN, YOUR TOUUCH, I DREAMT (minha pele, seu toque, eu sonhei); Parte inferior esquerda: TENDERNESS IS DUST (a ternura é pó), OUVIDO DE PEDRA ; Parte inferior central: YES, NO (sim, não), PLEASE (por favor); Parte inferior direita: LOSS (perda), LONE (só), O PATO , O BOBO , O DIA DO HERÒI , OTÁRIO CARENTE . 115