José Otacílio da Silva

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José Otacílio da Silva
ELEMENTOS DE SOCIOLOGIA GERAL
Marx / Durkheim / Weber / Bourdieu
Cascavel-PR /
Março -2004
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1- Uma Definição Sociologia
PARTE I:
A ORIGEM DA SOCIOLOGIA
Qualquer área do conhecimento que pretenda receber a
denominação de ciência há que definir o seu objeto de estudo específico
e estabelecer as possibilidades de utilizar métodos científicos nos
estudos desse objeto. Embora as linhas demarcatórias dos objetos de
estudos das diversas ciências sociais não sejam nitidamente delimitadas,
o propósito deste artigo é demonstrar qual é o objeto de estudo da
sociologia e, além disso, mostrar a possibilidade de usar o método
científico nos estudos da realidade social.
Florestan Fernandes, eminente sociólogo brasileiro, sugeriu
certa vez que a sociologia é a “ciência que estuda os fenômenos sociais”,
ou seja, o comportamento social que ocorre entre os membros de certos
organismos sociais – como o é o agrupamento de abelhas, de formigas,
de macacos ou de homens – na medida em que procuram, numa
conjugação de esforços, satisfazer necessidades individuais ou coletivas.
Os fenômenos sociais com que se ocupa a sociologia, em outros termos,
são as “atividades (ou comportamentos) cuja manifestação, generalidade
e repetição dependem, direta ou indiretamente, de condições internas ou
externas dos organismos”; que dependem do modo de eles existirem; das
dependências existentes entre eles no que concerne à adaptação ao
ambiente natural, à alimentação, à reprodução ou á proteção mútua; dos
laços invisíveis ou objetivos, que fazem da agregação e da associação
mecanismos necessários nos processos de vida (Fernandes, 1970, p. 19).
Fernandes reconhece que a psicologia e a biologia, por exemplo,
também se ocupam em estudar o que é social nos organismos.
Entretanto, o enfoque que a sociologia direciona aos fenômenos sociais é
diferente dos enfoques direcionados pela psicologia e pela biologia. No
entender de Fernandes, se a biologia e a psicologia se ocupam “com a
natureza, as variedades e as funções dos comportamentos sociais entre
os seres vivos”, não cabe à sociologia “estudar os organismos sociais
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como tais, nem as propriedades deles, que determinam ou condicionam
seus comportamentos sociais. Compete-lhe, especificamente, estudar os
comportamentos sociais em si mesmos, ou seja, como parte de uma rede
de interdependência e de interações sociais, características da espécie de
organismos considerados” (Fernandes, 1970, p. 20). Assim como o
biólogo e o psicólogo sabem que os processos biológicos e psicológicos
são condicionados pelas situações sociais de vida dos organismos, o
sociólogo reconhece que os processos sociais são variavelmente
regulados por elementos e mecanismos extra-sociais, de natureza
biológica, psicológica ou bio-psicológica. Apenas concentra sua atenção
nas propriedades dos aspectos sociais da vida, que são objeto de sua
especialidade (Fernandes, 1970, p. 20). O ponto de referência da
sociologia na descrição dos fenômenos sociais não é o organismo, sua
estrutura e mecanismo, mas a própria teia de interações e de relações
sociais. Enfim, é a própria “a ordem social, inerente às diversas
modalidades de manifestação organizada da vida, que oferece o ponto de
referência através do qual os fenômenos sociais devem ser descritos
sociologicamente” (Fernandes, 1970, p. 20).
No entendimento de Florestan Fernandes, há quatro níveis de
organização da vida: biótico, biossocial, psicossocial e sociocultural. A
ordem biótica se estabelece entre os aglomerados vegetais. Nesses
aglomerados, ocorre a “condição mais elementar da capacidade dos
organismos de estabelecer interação social com outros organismos da
mesma espécie ou de espécies diferentes”. Entre os indivíduos que
constituem um aglomerado vegetal ocorrem relações de
interdependências puramente bióticas, produzidas por fatores orgânicos
e por fatores inorgânicos. A ordem biosocial existe quando os
“organismos dispõem da capacidade, biologicamente condicionada, de
se locomoverem e de interagirem entre si”. Um exemplo de ordem
biossocial seriam as sociedades de insetos, como as de abelhas ou de
formigas. Nessas sociedades os fatores biológicos canalizam funções
sociais e os padrões de comportamentos sociais derivam de fatores
hereditários. A ordem psicossocial envolve “fatores orgânicos,
psicobiológico e fatores sociais” na determinação da maneira de se viver
em grupo e de se reagir apropriadamente à presença de outros
organismos da mesma espécie ou de espécies diferentes”. A organização
social dos primatas sub-humanos – chipanzés – seria um exemplo de
ordem psicobiológica. Na ordem sócio-cultural os “fatores orgânicos são
amplamente corrigidos e complementados por fatores supra-orgânicos”.
Trata-se, na verdade, da organização social humana. Aqui, “os
organismos se tornam capazes de produzir cultura, de transmiti-la, e de
criar, por meio dela, importantes transformações nos recursos
adaptativos condicionados biológica ou psicologicamente”. Homem,
único animal a fugir de suas limitações na luta pela vida (Fernandes,
1970, p. 22-23).
Nestas diversas ordens sociais, como diz Fernandes, “cabe à
sociologia estudar todas as espécies ou variedades de fatos sociais,
pertinentes às comunidades vegetais, às comunidades animais e às
comunidades humanas” (Fernandes, 1970, p. 29). A Sociologia, em
síntese, “é a ciência que tem por objeto estudar a interação social dos
seres vivos nos diferentes níveis de organização da vida” (Fernandes,
1980, p. 29)
O importante na discussão sobre o que é sociologia não é tanto
saber qual é o objeto de estudo dessa disciplina, mas a possibilidade ou
não de seu objeto ser estudado cientificamente, isto é, através dos
métodos científicos. Há um certo consenso entre os diversos sociólogos
de que sociologia é o “estudo científico do comportamento social ou da
ação social dos seres humanos” (Bain e Kolb, 1987, p. 1147). Assim, ao
invés de se indagar sobre o objeto da sociologia, sugere-se que se deve
indagar, em primeiro lugar, se a sociologia é uma disciplina
generalizadora ou uma disciplina histórica e, em seguida, se são
legítimos os métodos de investigação adotados pela sociologia. Discutir
se há possibilidade, ou não, de generalização na sociologia é discutir se
há regularidades, ou não, na ocorrência dos fenômenos sociais e,
portanto, se há ou não possibilidades de fazer previsão sobre a
ocorrência desses fenômenos. Discutir sobre a legitimidade dos métodos
é discutir se há ou não possibilidades de apreender os fenômenos sociais
tais como eles se manifestam na realidade objetiva.
Na discussão acerca da possibilidade de generalização nos
estudos sociológicos há duas correntes de pensamento: a corrente
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historicista formulada por Max Weber e a corrente positivista iniciada
por Auguste Comte. O historicismo considera que o fato social é um fato
único, isto é, manifesta-se de forma singular e que, portanto, inútil seria
tentar estabelecer leis gerais no pressuposto de haver repetição na
ocorrência desse fato. Para o historicismo, a generalização só pode ser
estabelecida nas ciências naturais – física, química – pois, ali, é mais
provável a repetição na ocorrência dos fatos naturais. Na sociologia e
nas ciências sociais em geral, que estão preocupadas em estudar a ação e
a interação social ou, mais amplamente, o comportamento humano, a
generalização não é possível, pois tais fatos sociais são de natureza
muito complexa, isto é, fatos constituídos de idéias, crenças,
sentimentos, motivos, etc., que variaria de indivíduo para indivíduo e no
mesmo indivíduo em contextos diferentes. A partir de Max Weber,
entretanto, “tem-se acentuado o uso de categorias gerais de
generalizações limitadas à compreensão de determinadas realidades
históricas” (Bain e Kolb, 1987, p. 1147). Ao contrário do historicismo, o
positivismo, no início, acredita não só que é possível, mas também
desejável estabelecer a generalização no estudo dos fatos sociais. Assim,
através da eliminação dos aspectos não observáveis diretamente no
comportamento, os positivistas, através de métodos estatísticos,
pretendem descobrir as leis gerais que regem os fenômenos sociais.
Outros sociólogos, mesmo sem negligenciar os aspectos não observáveis
diretamente da ação humana, avaliam que a sociologia, através de
métodos mais refinados, deve-se mover “em direção a uma faixa o mais
ampla possível de generalizações sistemáticas” (Bain e Kolb, 1987, p.
1148).
Saber se os métodos utilizados nos estudos sociológicos são
legítimos, ou não, implica saber se eles possibilitam ou não a verificação
das afirmações, descritivas ou generalizadoras, estabelecidas pelo
sociólogo. As afirmações que as ciências naturais estabelecem sobre os
fatos naturais são facilmente verificáveis, pois essas ciências podem
recorrer ao método experimental e a medições exatas. A sociologia,
impossibilitada de fazer experimentos diretos com os fatos sociais e
desprovida de instrumentos de medições exatas, necessariamente deve
recorrer a outros métodos e instrumentos de medição compatíveis com o
seu objeto de estudo. Quando não é possível usar método experimental,
a sociologia recorre a outros métodos alternativos para verificar suas
afirmações: método histórico, método comparativo, método do tipo
ideal, método dialético, etc. Quando não é possível a manipulação de
variáveis, a sociologia recorre à estatística para medir ou quantificar os
fenômenos analisados. Assim, dependendo do que se entende por
ciência, pode-se dizer que a sociologia tem legitimidade ao requerer o
estatuto de ciência, pois, além de possuir um objeto próprio de estudo,
possui métodos e técnicas de observação e de verificação de afirmações
que lhe conferem essa legitimidade científica.
A sociologia é a ciência que se ocupa com o estudo da ação
social ou com a interação social dos seres dos seres vivos,
particularmente, dos seres humanos e, para alcançar este objetivo,
recorre a diversos métodos e técnicas de verificação de suas hipóteses ou
de suas afirmações.
Questões para estudo:
1-Qual é o objetivo do texto?
2-Em termos de objeto de estudo é possível estabelecer alguma distinção
entre sociologia, psicologia e biologia?
3-Em seu entender, como Durkheim avalia a possibilidade de se
estabelecer generalizações nas ciências sociais?
4-Em seu entender, é legítima a pretensão da sociologia em ser uma
ciência?
5-Em sua opinião, como se poderia definir a sociologia?
Sugestões para leitura:
BAIN, Read e KOLB, William L. Sociologia. In: Dicionário de ciências
sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1987. (p. 1147-1149)
5
FERNANDES, Florestan. Conceito de sociologia. In. CARDOSO, F.H.
e IANNI, O. Homem e sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
(p. 25-34)
FERNANDES, Florestan. Elementos de sociologia teórica. São Paulo:
Nacional/USP, 1970. (p. 19-32)
CASTRO, Ana M. e DIAS, Edmundo. Sociologia. Rio de Janeiro:
Eldorado, 1981. (p.11-38).
TOURAINE, Alain. Em defesa da sociologia. Rio de Janeiro: Zahar,
1976. (p. 21-46)
ÁVILA, Fernando Bastos de. Introdução à sociologia. Rio de Janeiro:
Agir, 1981. (p. 13-40)
SOUTO, Cláudio e SOUTO, Solange. A explicação sociológica: uma
introdução à Sociologia. São Paulo: EPU, 1985. (p. 1-11).
2- A Sociologia no Século XVIII
Na literatura que trata da origem da sociologia é comum
encontrarmos referências a Auguste Comte (1798-1857) como o “pai”
ou o fundador da sociologia. De fato, foi Auguste Comte que, no século
XIX, não só criou o termo sociologia (Bierstedt, 1980, p. 19), mas foi
também o primeiro a elaborar uma teoria sociológica tratando das
relações sociais do homem em sua vida social. Entretanto, antes de
Comte, particularmente no século XVIII, muitos outros pensadores –
embora sem uma preocupação clara em estudar as interações e as
relações sociais que ocorrem na sociedade – já haviam tratado de temas
que viriam constituir-se objeto de estudo da sociologia. O objetivo do
presente texto é mostrar como se manifestou esse pensamento
sociológico que, já no século XVIII, trazia consigo idéias sobre a própria
sociedade; sobre as maneiras e costumes existentes nas sociedades
daquele século. Embora outros pensadores tivessem tratado de questões
sociológicas em suas obras – Voltaire, Diderot, Condorcet, Saint-Simon,
Vico, entre outros – por falta de espaço, discutiremos aqui apenas os
aspectos sociológicos do pensamento de Montesquieu e de Rousseau.
Montesquieu (1689-1755) – pensador que escreveu sua principal
obra, O espírito das leis, com um século de antecedência aos escritos de
Comte – é considerado por alguns estudiosos como um sociólogo, pois,
em sua explicação das sociedades humanas, não só exclui o sobrenatural
como supostas causas da ocorrência dos fenômenos sociais, como
também estuda as instituições sociais com métodos, isto é, através da
comparação. Em seu estudo sobre as causas da grandeza e da decadência
do Império Romano, por exemplo, Montesquieu considera que a causa
principal da decadência foi a centralização do governo – uma vez que
esta centralização destruiu as forças das províncias – e a transformação
da república em monarquia. Quer dizer, longe de Montesquieu indicar
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causas sobrenaturais como forças geradoras dos fenômenos sociais, ele
está indicando causas que foram geradas pelos próprios homens –
centralização do governo, mudança na forma de governo – como forças
motrizes da história, no caso, da decadência do Império Romano. Como
diz Montesquieu, “Não é a fortuna que governa o mundo, como vemos
pela história dos romanos (...) Há causas gerais, morais ou físicas que
operam em todas as monarquias, (que) as mantêm ou as derrubam. Tudo
o que acontece está sujeito a essas causas, e se determinada causa, como
o resultado acidental de uma batalha, arruinou um Estado, houve uma
causa geral que fez com que a sorte desse Estado dependesse de uma
única batalha. Numa palavra, o impulso principal determina todas as
ocorrências particulares”. Quer dizer, Montesquieu “busca causas gerais
para tornar a história inteligível e, portanto, formula também, perguntas
sociológicas”. Ele “se volta para o povo não como uma multidão de
indivíduos sob um governo, mas como uma comunidade distinguível das
outras pelas suas maneiras e instituições. Todas as instituições, políticas,
religiosas, domésticas, econômicas, e artísticas estão - aos seus olhos inseparavelmente relacionadas entre si” (Bierstedt, 1980, p. 27).
Em O espírito das leis, como sugere Bierstedt, dificilmente se
pode imaginar uma preocupação mais sociológica. Nesta obra
Montesquieu aponta o clima como o principal fator responsável pela
ocorrência dos fenômenos sociais. A seu ver, o clima exerce sua
influência sobre a escravidão, sobre as relações entre os sexos, sobre os
costumes morais de uma nação, etc. Numa palavra, Montesquieu
considerou que o clima exerce grande influência na determinação do
espírito das leis, ou seja, da cultura do povo. Como sugere Montesquieu,
”as pessoas são mais vigorosas nos climas frios. Nestes, a ação do
coração e a reação das extremidades das fibras realizam-se melhor; a
temperatura dos humores é mais elevada, o sangue movimenta-se mais
livremente em direção ao coração e, reciprocamente, o coração tem mais
força. Essa superioridade de força deve produzir vários efeitos; por
exemplo, uma maior opinião da segurança, isto é, mais franqueza, menor
desconfiança, menos política e artimanha. Em suma, isso deve produzir
temperamento muito diferente”. “Nos países frios – continua
Montesquieu – é pequena a sensibilidade ao prazer; nos países
temperados é maior; nos países quentes, esta sensibilidade é requintada.
Como os climas se distinguem pelos graus de latitude, poderíamos
distingui-los também, em certa medida, pelos graus de sensibilidade.
Freqüentei a ópera na Inglaterra e na Itália, tendo visto as mesmas obras
e os mesmos executantes; não obstante, a mesma música produz efeitos
tão diferentes nas duas nações: uma é tão fria e fleumática, a outra tão
animada e entusiasta, que chega a parecer inconcebível” (Bierstedt,
1980, p. 28).
A escravidão, longe de ser resultado do destino do indivíduo ou
de resultar de forças sobrenaturais, no entendimento de Montesquieu, ela
é uma resultante do clima. Segundo Mopntesquieu, “há países em que o
excesso de calor enerva o corpo e torna os homens tão indolentes e
desanimados que nada, exceto o medo do castigo, pode obrigá-los a
realizar qualquer trabalho: a escravidão é ali mais reconciliável com a
razão; e sendo o senhor tão preguiçoso em relação ao seu soberano
quanto seu escravo em relação a ele, isso contribui para uma escravidão
política, além da escravidão civil”. Mas, continua Montesquieu, “assim
como todos os homens nasceram iguais, a escravidão deve ser
considerada como antinatural, embora em alguns países seja baseada na
razão natural; e uma grande diferença deve ser estabelecida entre esses
países e aqueles nos quais até mesmo a razão natural a rejeita, como na
Europa, onde foi felizmente abolida” (Bierstedt, 1980, p. 29). O clima,
segundo Montesquieu, influi até mesmo nas relações sexuais. Nos
países quentes, o sexo feminino já se pode casar aos oito ou nove anos,
envelhecendo aos vinte. É natural que nesses países os homens deixam
uma mulher para tomar outra, e é por isso que os asiáticos permitem a
poligamia, ao passo que nos países europeus não a admitem. Isso por sua
vez tem conseqüência para a religião. Explica porque o Islamismo, que
aprova a poligamia foi admitido na Ásia e não na Europa. Da mesma
forma, diz Montesquieu, “há climas onde os impulsos da natureza têm
tanta força que a moral não tem quase nenhuma” (Bierstedt, 1980, p.
30).
Além do clima, Montesquieu considera, também, a natureza do
solo, a disponibilidade de água, a presença de portos, etc., como fatores
determinantes do comportamento humano. Neste sentido, Montesquieu
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afirma que “os moradores da ilha têm um maior anseio de liberdade do
que os do continente. As ilhas são comumente de pequenas proporções;
uma parte das pessoas não pode ser tão facilmente usada para oprimir
outra; o mar a separa dos grandes impérios; a tirania não pode manter-se
facilmente dentro de uma área limitada; os conquistadores são detidos
pelo mar; e os ilhéus, estando fora do alcance de seus exércitos,
preservam mais facilmente suas próprias leis” (bierstedt, 1980, p. 30).
Rousseau (1712-1778), em seu discurso que trata dos efeitos das
artes e das ciências sobre a moral, também já trazia para a discussão
teses verdadeiramente sociológicas. Naquele texto Rousseau propõe, por
exemplo, que “o fluxo diário das marés não é mais influenciado pela lua
do que a moral de um povo pelo progresso das artes e das ciências.
Quando sua luz se levantou acima do horizonte, a virtude fugiu e o
mesmo fenômeno foi constantemente observado em todas as épocas e
lugares”. Neste escrito, Rousseau demonstra, empiricamente e através da
comparação entre as realidades de diversos países, que, nos países da
Antiguidade onde as artes e as ciências mais se desenvolveram, suas
respectivas culturas sofreram profundas transformações. Enfim, a tese de
Rousseau neste artigo é clara: o aparecimento da ciência coincide com o
declínio da moral (Bierstedt, 1980, p. 33-34).
Em sua obra, Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens (Rousseau, 1999, p. 49-116), Rousseau
defende a tese de que há “dois tipos de desigualdade entre a espécie
humana: um que chamo de natural ou físico, por ser estabelecido pela
natureza e consistir na diferença de idade, saúde, força corporal, e as
qualidades da mente ou da alma; e o outro, que pode ser chamado de
desigualdade moral ou política porque depende de uma espécie de
convenção, estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento
dos homens. Esta última consiste nos diferentes privilégios que certos
homens desfrutam, em prejuízo de outros, como o de serem mais ricos,
mais honrados, mais poderosos e mesmo estarem em posição de exigir
obediência”. As pequenas desigualdades que existiam entre os homens
em estado de natureza foram, assim, ampliadas pelas desigualdades
produzidas pelas instituições sociais. As instituições sociais geradoras
das desigualdades surgiram, segundo Rousseau, a partir do momento em
que surgiu a propriedade privada. Neste sentido, como diz o próprio
Rousseau, “o primeiro homem que tendo cercado um pedaço de terra
imaginou-se dizendo ‘isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples
para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, horrores, infelicidades teriam sido evitadas se
ninguém tivesse ouvido esse impostor”. Mas o impostor foi ouvido por
todos e as desigualdades entre eles cada vez mais foram ampliadas. É
neste contexto de crescente desigualdade que ameaçava a segurança e a
vida de cada um e de todos, que alguém deve ter convencido a todos da
importância de fazerem um pacto social para que, juntos e associados,
pudessem promover a proteção mútua, e então, “todos correram ao
encontro de seus grilhões” (Rousseau, 1999, p. 100) e, com isso,
construíram a sociedade. A sociedade para Rousseau, portanto, não é
algo que sempre existiu e nem é algo que resulta de causas
sobrenaturais. Para o autor de O espírito das leis, a sociedade é obra dos
próprios homens: ela nasce e evolui conforme ocorre a atuação dos
próprios homens em suas relações sociais interativas.
Enfim, pode-se dizer que, embora a sociologia só tenha sido
institucionalizada como ciência no século XIX, os pensadores de séculos
anteriores já desenvolviam verdadeiras teses sociológicas.
Questões para estudo:
1-Por que Auguste Comte – pensador do século XIX – é tido por muitos
estudiosos como o fundador da sociologia?
2-Por que Montesquieu – pensador do século XVIII – poderia ser
considerado um sociólogo?
3-Quais fatores objetivos são considerados por Montesquieu como
causas dos fenômenos sociais?
4-Por que Rousseau, pensador do século XVIII, também poderia ser
considerado um sociólogo?
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Sugestões para leitura:
BIERSTEDT, Robert. O Pensamento Sociológico do Século XVIII. In.:
BOTTOMORE, T. e NISBET, Robert. História da análise
sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. (p. 19-64)
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultura, 1999.
(Vol. II, p. 49-116)
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
ÁVILA, Fernando Bastos de. Introdução à sociologia. Rio de Janeiro:
Agir, 1981. (p. 161-171).
3- Auguste Comte e a Sociologia
Auguste Comte pode ser considerado o fundador da sociologia
não só por ter sido o primeiro pensador a construir um conjunto de
conhecimentos sistematizados sobre a realidade social, mas também por
ter indicado os métodos com os quais se pudesse explicar a realidade
social e até mesmo por ter criado o termo sociologia (Bierstedt, 1980, p.
19). Devido à importância de Auguste Comte para a história da
sociologia, de modo sintético, pretendemos ressaltar, aqui, três aspectos
essenciais do pensamento sociológico de Auguste Comte: sua filosofia
da história, ou seja, a teoria dos três estados; sua definição de “física
social”, ou seja, de sociologia, e sua classificação das ciências.
Comte nasceu em Montpellier, na França, em janeiro de 1798 e
morreu em setembro de 1857. Em 1814, com idade de dezesseis anos,
Auguste Comte ingressou na Escola Politécnica de Paris, fato que teria
significativa influência na orientação posterior de seu pensamento Comte fala da Politécnica como a primeira comunidade verdadeiramente
científica, que deveria servir como modelo de toda educação superior.
Comte recebeu influência dos chamados ideólogos: Destutt de Tracy
(1754-1836); Cabanis (1757-1808); Valney (1757-1820); teve a
oportunidade de ler Adam Smith (1723-1790); Jean-Batiste Say (17671832); David Humes (1711-1776). Porém, o fator mais decisivo para a
sua formação foi o estudo do Esboço de um quadro histórico dos
progressos do espírito humano de Condorcet (1743-1794), ao qual se
referia mais tarde como “meu imediato predecessor”. A obra de
Condorcet traça um quadro do desenvolvimento da humanidade, no qual
os descobrimentos e invenções da ciência e da tecnologia desempenham
papel preponderante, fazendo o homem caminhar para uma era em que a
organização social e política seriam produto das luzes da razão. Essa
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idéia tornar-se-ia um dos pontos fundamentais da filosofia de Comte
(Giannotti, 1978, p. V-XVIII).
Em sua filosofia da história, Comte procura demonstrar que, em
seu processo evolutivo, as ciências e o espírito humano passam,
sucessivamente, por três estados distintos: estado teológico ou fictício,
estado metafísico ou abstrato, e estado científico ou positivo. Isto
significa dizer que, em sua evolução, “o espírito humano, por sua
natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas investigações,
três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e
mesmo radicalmente oposto: primeiro, o método teológico, em seguida o
método metafísico, finalmente o método positivo. O primeiro é o ponto
de partida da inteligência humana, o terceiro o seu fim” (Comte, 1978, p.
3-4).
O estado teológico se caracteriza pelo fato de o espírito humano
se direcionar para a busca das causas primeiras e finais dos fenômenos
que se manifestam na realidade e por ter agentes sobrenaturais como
produtores desses fenômenos. Quer dizer, neste estado de sua evolução,
o espírito humano manifesta, espontaneamente, uma predileção
característica por questões mais insolúveis e procura a “origem de todas
as coisas, as causas essenciais, quer primeiras, quer finais, dos diversos
fenômenos” e o modo fundamental como são produzidos. Neste
empreendimento, o espírito humano atribui a corpos exteriores, vida
essencialmente análoga à nossa, mas mais enérgica e mais potente. É o
estado da adoração dos astros, o estado do “politeísmo”. Por fim, a vida
atribuída aos objetos materiais é deles retirada para ser misteriosamente
transportada para seres fictícios diversos, habitualmente invisíveis, que
intervêm nos fenômenos exteriores e humanos (Comte, 1978, p. 44). A
perfeição do sistema teológico seria atingida quando as diversas
divindades são substituídas por uma única, isto é, quando o politeísmo se
transforma em monoteísmo.
No estado metafísico, os agentes sobrenaturais são substituídos
por “forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas)
inerentes aos diversos seres do mundo”. A perfeição do sistema
metafísico seria alcançada quando, em lugar de diferentes entidades
particulares, fosse concebida uma única entidade geral, a natureza,
considerada como fonte exclusiva de todos os fenômenos. No estado
metafísico - fase intermediária da passagem do estado teológico ao
estado positivo - as especulações dominantes nele conservam o mesmo
caráter essencial de tendência habitual aos conhecimentos absolutos. O
espírito humano continua tentando explicar a natureza íntima das coisas,
mas, ao invés de empregar para isso agentes sobrenaturais propriamente
ditos, ele os substitui progressivamente por entidades ou abstrações
personificadas. A imaginação e a argumentação ainda predominam sobre
a observação (Comte, 1978, p. 46-47).
No estado positivo, “o espírito, reconhecendo a impossibilidade
de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do
universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocuparse unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio
e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de
sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus
termos reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre
os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais...”. A perfeição
do sistema positivo, para “a qual este tende sem cessar, apesar de ser
muito provável que nunca deva atingi-la, seria poder representar todos
os diversos fenômenos observáveis como casos particulares de um único
fato geral, como a gravitação o explica” (Comte, 1978, p. 4). O espírito
humano na sua busca do conhecimento, “reconhece de agora em diante,
como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente
redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode
oferecer nenhum sentido real e inteligível. Os princípios que emprega
são apenas fatos verdadeiros, somente mais gerais ou abstratos do que
aqueles dos quais deve formar o elo”. Numa Palavra, de agora em diante
trata-se de substituir a busca das causas dos fenômenos pela simples
“pesquisa das leis, isto é, das relações constantes entre os fenômenos
observados. Quer se trate dos menores quer dos mais sublimes efeitos,
do choque ou da gravidade, do pensamento ou da moralidade, deles só
podemos conhecer as diversas ligações mútuas próprias à sua realização,
sem nunca penetrar no mistério de sua produção” (Comte, 1978, p. 4849).
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No entendimento de Comte, em sua época – ou seja, na primeira
metade do século XIX – os diversos fenômenos – astronômicos, físicos,
químicos, fisiológicos (Comte, 1978, p. 9) – já estavam sendo estudado
de modo positivista, ou seja, já se buscava, através da observação, as leis
que regem estes fenômenos, e não, através da especulação, as suas
causas primeiras ou finais. Entretanto, a seu ver, apenas os fenômenos
sociais não eram estudados de modo positivista, isto é, os diversos
pensadores sociais, ao invés observarem os fenômenos sociais para
descobrir as leis que os regem, continuavam buscando suas causas
primeiras e finais através da especulação filosófica. Como diz Comte, no
que concerne aos fenômenos sociais – “a despeito de sua insuficiência já
ser percebida por todos os bons espíritos, cansados de vãs contestações
intermináveis entre o direito divino e a soberania do povo” – são ainda
utilizados “os métodos teológicos e metafísicos” (Comte, 1978, p. 9).
Com este entendimento, Comte julgou oportuno e tratou de fundar a
ciência social por ele denominada física social ou sociologia (Comte,
1978, p. 3 e 9). Segundo Giannotti, um “aspecto fundamental da
sociologia comteana é a distinção entre a estática e a dinâmica sociais. A
primeira estudaria as condições constantes da sociedade; a segunda
investigaria as leis de seu progressivo desenvolvimento. A idéia
fundamental da estática é a ordem; a da dinâmica, o progresso. Para
Comte a dinâmica social subordina-se à estática, pois o progresso
provém da ordem e aperfeiçoa os elementos permanentes de qualquer
sociedade: religião, família, propriedade, linguagem, acordo entre poder
espiritual e temporal, etc.” (Giannotti, 1978, p. XIII).
Comte considera que, com a fundação da física social, completase o sistema das ciências naturais e, com isso, surge a necessidade de
sistematização das ciências. Como diz o próprio Comte, “posto que a
fundação da física social completa o sistema das ciências naturais, tornase possível e mesmo necessário resumir os diversos conhecimentos
adquiridos, que atingiram, então, um estado fixo e homogêneo, a fim de
coordená-los, apresentando-os como diferentes ramos de um mesmo
tronco, ao invés de continuar considerando-os apenas como vários
corpos isolados”. Trata-se, então, de considerar “cada ciência
fundamental em suas relações com o sistema positivo inteiro e no que
respeita ao espírito que a caracteriza, a saber, sob a dupla relação de seus
métodos essenciais e de seus resultados principais” (Comte, 1978, p.
10). Com esse critério, Comte classifica as ciências de acordo com a
maior ou menor simplicidade de seus respectivos objetos de estudo:
matemáticas, astronomia, física, química, biologia e sociologia. As
matemáticas possuem o maior grau de generalidade e estudam a
realidade mais simples e indeterminada. A astronomia acrescenta a força
ao puramente quantitativo, estudando as massas dotadas de força de
atração. A física soma a qualidade ao quantitativo e às forças, ocupandose do calor, da luz, etc., que seriam forças qualitativamente diferentes. A
química trata de matérias qualitativamente distintas. A biologia ocupa-se
dos fenômenos vitais, nos quais a matéria bruta é enriquecida pela
organização. Finalmente a sociologia estuda a sociedade onde os seres
vivos se unem por laços independentes de seus organismos. A sociologia
é vista por Comte como “o fim essencial de toda a filosofia positiva”.
Matemática, astronomia, física, química e biologia atingem o estado
positivo antes da sociologia, mas, permanecendo adstritas a parcelas do
real, não conseguem instaurar a filosofia positiva em sua plenitude. A
totalização do saber somente poderia ser alcançada através da
sociologia, na qual culminaria a formulação de um “sistema
verdadeiramente indivisível onde toda decomposição é radicalmente
artificial (...), tudo se relacionando com a humanidade, única concepção
completamente universal” (Giannotti, 1978, p. XIII).
Em suma, com a fundação da sociologia como ciência – ciência
que, através da observação, pretende descobrir as leis que regem os
fenômenos sociais – Comte esperava ter coroado o seu sistema
filosófico. Ao descobrir, gradativamente, as inquestionáveis leis que
regem os fenômenos sociais, a sociologia estaria contribuindo para a
criação do consenso sobre a realidade social e, com isto, as condições
necessárias para que a sociedade pudesse marchar em “ordem” rumo ao
“progresso”.
11
Questões para estudo:
1-Você concorda com aqueles que afirmam ser Auguste Comte o
fundador da sociologia? Por quê?
2-Qual é a idéia central da filosofia da história de Auguste Comte?
3-Na filosofia comteana, o que são os três estados de evolução do
espírito humano?
4-O que você entende por positivismo?
5-Qual é a importância da sociologia no sistema filosófico de Auguste
Comte?
Sugestões para leitura:
GIANNOTTI, José Arthur. Comte: vida e obra. In: COMTE, Auguste.
Curso de filosofia positiva / Discurso sobre o espírito positivista /
Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os
Pensadores) (p. V-XIII).
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito
positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo;
Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os
Pensadores, p. 1-94).
BOCK, Kenneth. Teorias do Progresso, Desenvolvimento e Evolução. In:
BOTTOMORE, T. e NISBET, R. História da análise sociológica. Rio
de Janeiro: Zahar, 1980. (p. 65-110)
12
Karl Marx
PARTE II:
A SOCIOLOGIA DE KARL MARX
Karl Marx nasceu em 5 de maio de 1818, em Treves, capital da
província alemã do Reno, e morreu a 14 de março de 1883, em Londres.
Seu pai era advogado e conselheiro de justiça. Sua mãe, apesar de
descendente de rabinos, não exerceu sobre o filho uma forte doutrinação,
habitual nas famílias israelitas, e não teve nenhuma influência intelectual
sobre o filho. Marx, em 1836, matriculou-se na universidade de Bonn e
defendeu, como tese de doutorado, o trabalho intitulado Diferença entre
a filosofia da natureza de Demócrito e Epícuro. Num primeiro momento
de sua formação intelectual Marx foi adepto da filosofia hegeliana.
Entretanto, mais adiante romperia com o idealismo hegeliano e, junto
com Friedrich Engels, formaria uma nova corrente de pensamento: o
materialismo histórico – como diria Marx, uma maneira de pensar que
viria a ser o fio condutor de seu pensamento nos estudos futuros. Como
colaborador sistemático da “Gazeta Renana” – órgão liberal publicado
em Colônia, Alemanha – teve a oportunidade de ocupar-se
intelectualmente com problemas propriamente políticos e sociais. Em
1844 publicou dois importantes artigos nos Anais Franco-Alemães:
Crítica da filosofia do direito de Hegel e A questão judaica. Neste
número único dos “Anais Franco-alemães”, Engels também publicou um
artigo intitulado Esboço de uma crítica da economia política. Nesta
ocasião, Marx teve contato com Engels e tiveram a oportunidade de
tornarem-se amigos e de escreverem, juntos, várias obras: A Sagrada
Família: critica de uma critica; A ideologia alemã; “Manifesto do
partido comunista”, etc. Além destas obras escritas em parceria com
Engels, Marx haveria de escrever outras isoladamente: A miséria da
filosofia; O 18 brumário de Luis Bonaparte, A luta de classes na
França, e O capital – dessa última obra, dois volumes foram publicados
ainda em vida e outros quatro volumes, postumamente. Engels, por sua
vez, isoladamente haveria de escrever A situação da classe trabalhadora
inglesa e a Origem da família, da propriedade privada e do Estado
(Giannotti, 1999, p. 5-21).
13
1- As Contradições e a Luta de Classes
Diante dos problemas sociais que afligiam a Europa do século
XVIII-XIX, Karl Marx, a exemplo de Auguste Comte, não se furtou à
tentativa de elaborar uma teoria sociológica que pudesse explicar a
estrutura e o funcionamento da sociedade, bem como o possível sentido
de sua evolução. De modo breve, procuraremos destacar aqui os
principais elementos que constituem a teoria sociológica de Karl Marx,
particularmente, a idéia de contradições e de luta de classes.
O cerne da teoria sociológica de Karl Marx pode ser encontrado
em seu Prefácio à ‘contribuição à crítica da economia política. Neste
prefácio, avaliando os resultados do primeiro trabalho que empreendeu
para “resolver as dúvidas que o assaltavam” – trabalho que tecia críticas
à filosofia hegeliana do direito – Marx havia chegado à conclusão de que
“tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do
espírito humano”, como supunha Hegel, “mas se baseiam, pelo
contrário, nas condições materiais de vida (...)”. Ao término deste
estudo, Marx chega a uma conclusão geral – conclusão que, na verdade,
não seria outra coisa senão a essência de sua teoria sociológica – e
considera que esta conclusão haveria de ser o “fio condutor”, ou seja, a
teoria que haveria de nortear seus estudos posteriores. O trecho é longo,
mas é importante que seja citado na íntegra:
“Na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de
produção que correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base
real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de
produção da vida material condiciona o processo da vida social,
política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que
determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que
determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se
chocam (entram em contradição) com as relações de produção
existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as
relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se
convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de
revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou
menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.
Quando se estudam estas revoluções, é preciso distinguir sempre entre
as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de
produção e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das
ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas em que os homens
adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. E, do
mesmo modo que não podemos julgar o indivíduo pelo que ele pensa de
si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela
sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta
consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Nenhuma
formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças
produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção
novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade
antiga as condições materiais para a sua existência. Por isso, a
humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar,
pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que esses objetivos só brotam
quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições
materiais para a sua realização. A grandes traços podemos designar
como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da
sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o moderno
burguês. As relações burguesas de produção são a última forma
14
antagônica do processo social de produção; antagônica não no sentido
de antagonismo individual, mas de um antagonismo que provém de
condições sociais de vida dos indivíduos. As forças produtivas, porém,
que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo
tempo, as condições materiais para a solução desse antagonismo. Com
essa formação social se encerra, portanto, a pré-história da sociedade
humana” (Marx e Engels, s/d, p. 301-302).
Nesta longa citação, vários aspectos importantes da teoria
sociológica de Karl Marx podem ser ressaltados: uma concepção de
sociedade; uma concepção de transformação social e uma concepção da
ação humana e das relações sociais como fator de conservação ou de
transformação social; enfim, uma visão de mundo que considera que,
dentro de certas condições, o homem faz a sua história.
A Sociedade, para Marx, é o conjunto daquilo que ele chama de
“estrutura econômica da sociedade”, ou seja, a infra-estrutura e
“superestrutura jurídica e política”. A infra-estrutura é composta não só
pelas forças materiais de produção – máquinas, ferramentas, divisão do
trabalho, enfim, tudo que contribui para incrementar a produção
econômica em uma determinada fase do desenvolvimento social – e
pelas relações de produção, isto é, pelas relações que se estabelecem
entre os agentes da produção econômica - também em uma determinada
fase do desenvolvimento social. A superestrutura é, na verdade, o
conjunto das consciências individuais ou de classes que constituem o
pensamento social de uma determinada fase do desenvolvimento social.
Essas consciências, como vimos acima, podem-se manifestar sob
“formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas”, em uma
palavra, sob formas “ideológicas”. Quer dizer, num sentido metafórico,
numa base material temos as ações sociais e as relações que os homens
estabelecem entre si e, acima, na superestrutura, temos as idéias ou
ideologias que pretendem expressar as relações que ocorrem na base
material.
A transformação da sociedade ocorreria conforme ocorrem, na
infra-estrutura da sociedade, as contradições entre as forças produtivas e
as relações de produção e conforme as mudanças que houvesse na
superestrutura. Quer dizer, no entendimento de Marx, são necessárias
duas condições para que possa ocorrer a transformação da sociedade.
Em primeiro lugar, é preciso que as relações de produção de uma dada
sociedade em um dado contexto histórico se tenham transformado em
obstáculos para que as forças produtivas continuem em
desenvolvimento; ou seja, é necessário que as forças produtivas tenham
entrado em contradição com as relações de produção acirrando,
objetivamente, a exploração e a dominação de uma classe social sobre a
outra. Em segundo lugar, é preciso que as classes sociais tenham
consciência desses conflitos e “lutem para resolve-los”. As classes cujos
interesses não são afetados pelas contradições que se estabelecem entre
forças produtivas e relações de produção não teriam motivações para
lutar por uma transformação social, quer dizer, para mudar as relações
de produção de modo que se pudesse solucionar a contradição e
tampouco teriam interesses em promover transformações nas idéias ou
ideologias que, naquele contexto, lhes são favoráveis. As classes cujos
interesses são afetados pelas contradições que se estabelecem entre as
forças produtivas e as relações de produção são as únicas que teriam
motivações para lutar por uma transformação social; as únicas que
teriam interesses em transformar não só as relações de produção que se
transformaram em entraves para o desenvolvimento das forças
produtivas, mas também em transformar as idéias e as ideologias que
contrariam os seus interesses de classe.
Todo este arcabouço teórico elaborado por Marx deriva de dois
conceitos básicos: o conceito de trabalho e o conceito de alienação. Na
verdade, é a categoria trabalho que permite que Marx compreenda a
ação humana como fator de criação não só do próprio homem, mas
também da sociedade e de seu processo de conservação ou de
transformação. Como diz Bottomore, o conceito de trabalho humano é o
conceito mais fundamental da obra de Marx: “Marx transforma a
concepção de Hegel de trabalho espiritual, introduzindo a noção
totalmente diferente de trabalho que se encontra nas obras dos
economistas políticos – o trabalho no processo de produção material,
trabalho como fonte de riqueza”. Entretanto, em seus estudos a noção de
trabalho não se limita à produção material, mas a “uma noção mais
15
ampla do trabalho, como atividade humana, na qual a produção material
e a intelectual caminham juntas. O homem não só produz os meios de
sua existência física como também cria, ao mesmo tempo, num processo
único, toda uma forma de sociedade” (Bottomore, 1980, p. 167-168).
Como a noção de trabalho, a noção de alienação é um processo que
ocorre tanto na esfera intelectual como na esfera da produção material.
“O trabalho alienado é o trabalho imposto por alguns homens a outros,
trabalho forçado, oposto à livre atividade criadora. Além disso, é um
tipo de trabalho no qual aquilo que é produzido pelo trabalhador fica
sendo propriedade de outros, os donos do sistema de produção”
(Bottomore, 1980, p. 168).
Em resumo, através das noções de trabalho e de alienação, Marx
pôde fundar uma sociologia que visa dar conta da explicação tanto do
funcionamento da sociedade como do processo de sua transformação.
Através do trabalho, os homens transformam a natureza e transformam a
si mesmos. O trabalho alienado – ao gerar não só as contradições entre
as forças produtivas e as relações de produção, mas também o
antagonismo entre os proprietários dos meios de produção e os nãoproprietários desses meios; entre os exploradores e dominadores e os
explorados e dominados – constitui a força motriz do funcionamento e
do desenvolvimento social.
Questões para estudo:
1-Qual é o cerne da teoria sociológica de Karl Marx, que pode ser
encontrado em seu Prefácio à contribuição à crítica da economia
política?
2-O que você entende pelas seguintes teses de Karl Marx:
a-“O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida
social, política e espiritual em geral?”
b-“Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo
contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência?”
c-“Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de
produção existentes (...) com as relações de propriedade dentro das
quais se desenvolveram até ali?”
Sugestões para leitura:
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo:
Hucitec, 1987.
GOZZI, Gustavo. Práxis. In: BOBBIO, Norberto. Dicionário de ciência
política. Brasília-DF: Editora Universidade de Brasília, 1991.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
MARX, Karl, Prefácio à Contribuição à crítica da economia política. In:
MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: AlfaOmega, s/d. (Vol. 1, p. 300-310).
BOTTOMORE, Tom. Marxismo e sociologia. In.: BOTTOMORE, Tom.
e NISBET, Robert. História da análise sociológica. Rio de Janeiro:
Zahar, 1980. (p.166-197).
16
2- O Materialismo Histórico
O objetivo do texto é, num primeiro momento, mostrar o que é o
método dialético em suas características essenciais e, num segundo
momento, depois de tratar da origem do termo dialética, trazer à tona as
contribuições que tanto Hegel como Marx e Engels trouxeram para o
desenvolvimento do método dialético.
O termo dialética surgiu na Antigüidade grega referindo-se à
“arte do diálogo”, quer dizer, arte de defender uma proposição
diferenciando, através de definições rigorosas, os termos implicados em
uma proposição. Definir os termos envolvidos nas discussões seria
condição necessária não só para garantir a inteligibilidade da
conversação, mas também para a resolução das contradições emergentes
no diálogo. Com o tempo, a noção de dialética ganhou outra conotação:
a noção de dialética passou a significar um método de explicar não só a
evolução das idéias, mas também a evolução do mundo em que vivemos.
Quer dizer, a dialética passou a significar uma maneira de compreender
como ocorrem as relações entre os diversos conceitos e entre os diversos
fenômenos que ocorrem na realidade social, mas também uma maneira
de compreender como ocorre o processo de transformação do
pensamento e da própria realidade social.
Pode-se dizer que o método dialético se resume em três
princípios básicos: tudo se transforma; tudo se relaciona e luta dos
contrários. O primeiro princípio significa que nada que existe no mundo
é estático; que tanto os fenômenos que ocorrem no mundo objetivo
quanto o próprio pensamento, está em constante transformação e que,
portanto, não existe uma verdade absoluta, eterna. A idéia de que tudo se
relaciona sugere que os fenômenos que existiram e existem ao longo do
tempo e do espaço estão estreitamente relacionados por laços de
dependência recíproca. Por fim, a idéia de luta dos contrários recomenda
pensar a transformação do pensamento e da própria realidade objetiva
como uma decorrência das contradições que se estabelecem entre as
partes constituintes do todo em observação.
Heráclito, Parmênides, Aristóteles - entre tantos outros
pensadores da Antiguidade clássica - foram os primeiros a sugerir aquilo
que viria a ser um dos princípios centrais do método dialético: a idéia de
que “tudo se transforma”. Heráclito – pensador grego que viveu entre
540-480 a.C. – ao sugerir que tudo está em constante transformação,
sugeriu, também, que essa transformação é uma decorrência dos
conflitos ou das contradições que existem na natureza das coisas.
Parmênides – século VI-V a.C. – entendia que o que estava em constante
transformação era apenas a aparência, ou seja, as formas do fenômeno,
mas que a sua essência era imutável, eterna. Aristóteles – 384-322 a.C. –
propunha que as coisas existentes no mundo passam tanto por mudanças
quantitativas quanto por mudanças qualitativas. Em sua avaliação, cada
coisa é portadora de potencialidades específicas e são essas
potencialidades que geram o movimento, isto é, a transformação de cada
coisa.
Hegel (1770-1831), também aceitando a idéia de que “tudo se
transforma”, procurou estudar a evolução do pensamento partindo do
pressuposto de que a força motriz que promove a sua transformação é as
contradições que se manifestam nas relações que se estabelecem entre os
conceitos e proposições constituintes do pensamento. Essas contradições
que se manifestam em nível de pensamento, no entender de Hegel,
manifestam-se também na realidade objetiva, quer dizer, as contradições
dos elementos constituintes da realidade social expressariam as
contradições que se manifestam no pensamento. Com essa compreensão,
ao analisar a realidade social de sua época, Hegel aventou que o trabalho
intelectual é a atividade que impulsiona o desenvolvimento humano, isto
é, que promove o desenvolvimento da consciência do sujeito levando-o
ao conhecimento daquilo que ele denomina idéia absoluta. Em outras
palavras, para Hegel é o trabalho intelectual que, através da razão e da
lógica, resolve as contradições existentes no mundo das idéias,
possibilitando, com isso, não só a evolução do conhecimento rumo à
descoberta da verdade absoluta, mas também a própria transformação
dessa realidade social.
17
Em outras palavras, Hegel considera que, ao processar as
contradições que se estabelecem entre as diversas proposições e
categorias do pensamento e ao indicar o sentido da superação dessas
contradições, o trabalho intelectual não estaria fazendo outra coisa senão
fazendo avançar o conhecimento rumo à verdade, à “idéia absoluta” e,
ao mesmo tempo, expressando as contradições que se manifestam entre
os fenômenos da realidade social e até mesmo o sentido em que essas
contradições objetivas seriam superadas. Nesse sentido, a transformação
- tanto a transformação do pensamento como a da realidade social - seria
um processo onde determinados aspectos de uma determinada realidade
seriam negados e superados por outros; onde os aspectos essenciais
dessa mesma realidade seriam conservados e onde, no conjunto do
processo, surgiria uma nova realidade elevada a um nível superior de
desenvolvimento. Por exemplo, ao trabalhar as contradições que se
manifestam entre os interesses individuais e entre estes e os interesses
coletivos, o pensamento - num sucessivo processo de tese, antítese e
síntese - não só promoveria o desenvolvimento das concepções de
Estado, mas também expressaria as contradições que aparecem na
realidade política e até mesmo o sentido em que o Estado real deveria
transformar-se.
O método dialético desenvolvido por Hegel foi considerado por
muitos como “idealista”. Isto significa dizer que, na avaliação de seus
críticos, Hegel havia submetido a transformação da realidade material à
transformação das idéias. Em outras palavras, na avaliação dos críticos,
na dialética hegeliana, as contradições que se manifestam no
pensamento e na realidade seriam resolvidas pelo trabalho intelectual em
nível de pensamento e, conforme esta resolução, processar-se-ia a
transformação da realidade social. Assim, os críticos consideravam que
Hegel estava equivocado em ter a transformação social como numa
dependência da transformação das idéias; em considerar que a realidade
social de uma determinada época não seria outra coisa senão a
encarnação da idéia-síntese daquela época.
Karl Marx (1818-1883) – e, em certa medida, os neo-hegelianos,
Stinner, Bauer, Feuerbach, etc. – avaliou que a dialética hegeliana estava
de “cabeça para baixo” e que, portanto, necessário seria pô-la sobre seus
pés. Na avaliação de Marx, Hegel estava correto em considerar o
trabalho como fonte geradora da transformação, mas se equivocou ao
considerar apenas o trabalho intelectual, “o trabalho abstrato do espírito”
como agente da transformação do pensamento e da realidade social.
Enfatizando apenas o trabalho intelectual, Hegel pôde enfatizar as
contradições que se manifestam no nível das idéias e os mecanismos que
possibilitariam a sua superação, mas perdeu de vista as contradições que
estão presentes no mundo material, no mundo do trabalho físico, e os
mecanismos que possibilitariam a superação dessas contradições. Assim,
no lugar da dialética idealista hegeliana, Marx propõe uma nova maneira
de analisar a sociedade e a transformação social: a “dialética
materialista” ou “materialismo histórico”.
A dialética materialista ou o materialismo histórico absorve os
três princípios básicos do método dialético, mas, ao contrário de Hegel,
considera que a transformação social decorre não das contradições que
se manifestam em nível do pensamento, mas das contradições que se
manifestam em nível da própria realidade social. Como vimos, a idéia de
que “tudo se transforma” já estava presente no pensamento do mundo
antigo e inclusive no pensamento hegeliano. No entender de Marx, todos
os fenômenos que se encontram não só mundo das idéias, mas também
no mundo material, ou seja, todos os fenômenos que se encontram em
nível da “superestrutura” – conjunto das ideologias políticas, jurídicas,
ou religiosas, etc. – como em nível da “infra-estrutura” da sociedade –
“forças produtivas” e “relações de produção” – estão em constante
processo de transformação. Por exemplo, o trabalho, a propriedade, o
Estado, etc., bem como os conceitos elaborados para definir estes
objetos, não são realidades estáticas, mas estão em constante evolução.
Além disso, para o materialismo histórico, esses fenômenos que
integraram ou integram a infraestrutura e a superestrutura, estão “interrelacionados”, isto é, mantêm em si relações de determinações
recíprocas. Assim, por exemplo, a transformação do trabalho, da
propriedade, etc., exerce influências na transformação do Estado, bem
como a transformação deste exerce influências na transformação
daqueles. Nesse processo de relações recíprocas, transforma-se não só a
natureza desses fenômenos da realidade social, mas também os
18
conceitos e proposições que a eles se referem. Por fim, segundo o
materialismo histórico, essas transformações ocorrem conforme surgem
e são resolvidas as “contradições” entre os elementos constituintes da
infraestrutura – forças produtivas e relações de produção – e não
conforme são resolvidas as contradições que se manifestam ao nível de
superestrutura, ou seja, em nível das idéias como supunha Hegel e, em
certo sentido, os neo-hegelianos.
Em síntese, tanto a dialética idealista hegeliana quanto à
dialética materialista ou “materialismo histórico” elaborado por Marx e
Engels, sugere caminhos que se deve percorrer para a compreensão do
mundo social em processo de transformação. Entretanto, enquanto Hegel
considera que, na compreensão da sociedade, deve-se partir das
contradições que se manifestam em nível das idéias, Marx e Engels
sugerem que, neste processo do conhecimento, deve-se partir das
contradições que ocorrem na base material da sociedade. Enquanto
Hegel tem o trabalho intelectual, a lógica e a razão, como agentes da
transformação social, para Marx e Engels, são os homens em seu
relacionamento com a natureza e com seus semelhantes que, dentro de
“certas condições”, promovem o desenvolvimento social. Em outras
palavras, para Marx, é através do trabalho físico, realizado pelos homens
com o intuito de satisfazer suas necessidades históricas, que os homens
entram numa relação dialética com o mundo e, nesse processo,
transformam não só as idéias que possuem acerca do mundo, mas
também o próprio mundo e a si mesmos.
Questões para estudo:
1-Em linhas gerais, o que você entende por dialética?
2-Quais são os princípios básicos do método dialético?
3-Em que consiste o método dialético desenvolvido por Hegel?
4-Como Marx avalia a dialética hegeliana?
5-Quais diferenças existem entre a dialética materialista ou materialismo
histórico e a dialética hegeliana?
Sugestões para leitura:
MARX, Karl. Para a crítica da economia política / Do capital/ O
rendimento e suas fontes. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
MARX, Karl e Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo:
Hucitec, 1987.
GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1957.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
VÁSQUEZ, Adolfo Sanches. Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977.
CHEPTULIN, Alexandre. A Dialética Materialista. São Paulo: AlfaOmega, 1982.
PRADO JUNIOR, Caio. Introdução à lógica dialética. São Paulo:
Brasiliense, 1979.
19
3- A Formação do Capital e do Trabalho Assalariado
O objetivo de Marx em seu texto – A acumulação primitiva – é
analisar a origem do modo de produção capitalista. Trata-se de explicar
como surgiu, de um lado, o trabalhador assalariado e, de outro lado, os
capitalistas, em síntese, como ocorreu o processo de acumulação do
capital nos primórdios do capitalismo. Em outras palavras, em seu texto
A acumulação primitiva Marx considera que - como todos os fenômenos
sociais, políticos, econômicos e culturais - o sistema capitalista de
produção surge em determinado contexto histórico e evolui conforme a
evolução desse contexto. Com base neste pressuposto, Marx procura,
então, demonstrar as condições em que foi possível o surgimento do
capitalismo. Para Marx, o modo capitalista de produção teve suas
origens ao longo do processo em que os trabalhadores livres – servos,
artesãos e camponeses – foram transformados em trabalhadores
assalariados e os seus instrumentos de trabalho em capital.
Marx considera que o “sistema capitalista de produção
pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos
meios pelos quais realizam o trabalho”. Quer dizer, o capitalismo só
pode existir a partir do momento em que os artesãos, ao perderem a
posse de seus meios de trabalho, deixam de produzir para atender às suas
necessidades imediatas e, vendendo sua força de trabalho por um salário,
se vêem obrigados a produzir um excedente para re-investimento na
produção e a comprar, no mercado, os bens de que necessitam para
sobreviver. Quer dizer, é com a separação do trabalhador de seus meios
de produção que nascem os autênticos agentes da produção capitalista:
de um lado, os trabalhadores assalariados que foram desapropriados de
seus meios de produção e que, portanto, só conseguem sobreviver se
conseguirem vender sua força de trabalho por um salário e, de outro
lado, os capitalistas, isto é, aqueles que se apropriaram dos meios de
produção dos trabalhadores independentes e que vivem empenhados em
ampliar suas riquezas através da compra do trabalho alheio.
Na avaliação de Marx, na Inglaterra do século XIV e XV –
berço do capitalismo – ainda não estavam dadas as condições para a
existência do sistema capitalista de produção. O que caracterizava a
Inglaterra desse período eram as decadentes relações feudais de
produção – senhores feudais e servos – ao lado de uma grande massa de
artesãos e camponeses independentes, isto é, de trabalhadores que eram
proprietários de seus próprios meios de produção – terras, instrumentos
de trabalho e matéria-prima – e que produziam para a subsistência de
sua própria família sem depender, portanto, da venda de seu trabalho
para sobreviver e tampouco da compra do trabalho alheio.
O prelúdio da revolução que criou a base do modo capitalista de
produção – na avaliação de Marx – ocorreu a partir de finais do século
XV e inícios do século XVI. É nesse período que os servos
remanescentes, os camponeses e os artesãos independentes,
desapropriados de seus meios de produção, foram expulsos do campo e
passaram a constituir uma grande massa de ociosos em busca de trabalho
nas embrionárias indústrias têxteis na Europa, particularmente, na
Inglaterra. Neste processo, os senhores feudais, colocando término às
relações de vassalagem e apropriando-se das terras ocupadas pelos
camponeses e artesãos para ampliar sua propriedade territorial e dedicarse à produção de matéria-prima têxtil, desapropriaram estes
trabalhadores de seus meios de produção e os enxotaram para os centros
urbanos. Este processo de desapropriação e de expulsão do homem do
campo foi reforçado não só com aquilo que Marx denominou de
“limpeza de propriedades”, mas também pela ação da reforma religiosa.
No primeiro caso, a expulsão do homem do campo foi efetivada pela
derrubada das habitações dos servos, camponeses e artesãos que
relutavam em abandonar seus meios de produção. Neste caso, ao
derrubar as moradas dos trabalhadores, os senhores feudais os forçavam
a migrarem para os centros urbanos em busca de trabalho. No segundo
caso, a expulsão do homem do campo se completou com a supressão dos
conventos católicos pelos protestantes: expulsos das dependências da
igreja, os trabalhadores não tiveram outra alternativa senão engrossar as
20
fileiras de desempregados nos centros urbanos. Neste complexo
processo de desapropriação e de expulsão do homem do campo,
nasceram os trabalhadores assalariados: trabalhadores que, não sendo
mais proprietários de seus meios de produção, são obrigados a vender
sua força de trabalho aos nascentes capitalistas de modo a obter um
salário para a compra de seus meios de subsistência.
A expropriação e a expulsão de parte cada vez mais significativa
da população rural geraram pelo menos quatro condições básicas sem as
quais o capitalista não teria entrado em cena e tampouco o sistema
capitalista teria desenvolvido. Quer dizer, o processo de expropriação e
de expulsão do homem do campo não só liberou ao nascente capitalista
os trabalhadores de que necessitava para movimentar suas máquinas,
mas também lhe transferiu a posse dos meios de produção e a
possibilidade de comandar a produção dos meios de subsistência desses
trabalhadores bem como a possibilidade de se apropriar dos produtos
produzidos pelos trabalhadores. Mais do que isso, a expropriação dos
meios de produção e a expulsão do homem do campo geraram o
mercado consumidor para os produtos que foram apropriados pelo
capitalista. Em síntese, com a expropriação e expulsão do homem do
campo, tanto os trabalhadores quanto seus meios de produção e seus
meios de subsistência transformaram-se em mercadorias.
Este mesmo processo de expropriação e de expulsão da
população rural deu origem não só ao mercado consumidor, mas
também ao próprio capitalista. No campo, com a intenção de obter mais
proveito de sua propriedade territorial na produção do linho e da lã de
que a nascente indústria têxtil necessitava, o senhor feudal promoveu a
dissolução das relações de vassalagem. Num primeiro momento,
transformou parte dos servos em colonos a quem fornecia os
instrumentos de trabalho e, em seguida, estabeleceu o regime de parceria
– regime em que o parceiro fornecia parte do capital necessário para a
produção e onde o produto do trabalho agrícola era proporcionalmente
dividido com o senhor feudal. Rapidamente, porém, os parceiros são
substituídos pelos arrendatários, isto é, por agentes da produção agrícola
que “procuram expandir o seu capital empregando os trabalhadores
assalariados (servos e camponeses expropriados de seus meios de
produção) e que entrega uma parte do produto excedente em dinheiro ou
em produtos (ao senhor feudal) como renda da terra”. Dessa forma, no
campo, as relações feudais de produção – relação entre senhor feudal e
servo – foram transformadas em relações capitalistas de produção –
relação capital e trabalho assalariado, quer dizer, de um lado, o
arrendatário ou o proprietário dos meios de produção agrícola e, de outro
lado, os trabalhadores assalariados agrícolas destituídos de seus meios
de produção.
Na cidade, o mesmo processo de expropriação e de expulsão do
homem do campo que transformou os trabalhadores, seus meios de
produção e seus meios de subsistência em mercadorias e que criou o
capitalista agrário, criou também as bases para o surgimento do
capitalista industrial. Marx considera que os primeiros rudimentos da
indústria moderna foram criados por antigos mestres das corporações
medievais, artesãos independentes e até mesmo por determinados recémassalariados que resolveram investir suas economias na compra de
instrumentos de trabalho e contratar mão-de-obra assalariada para
executar a atividade produtiva. Porém, em sua avaliação, foi o capital
usurário e o capital comercial que instigou o desenvolvimento do
capitalista industrial. Os agiotas e os comerciantes – agentes que
acumulavam riquezas através do empréstimo de dinheiro a juros e
através das trocas dos produtos artesanais – vendo a possibilidade de
ampliar os seus ganhos também através da produção, não hesitaram em
transformar a acumulação primitiva de riquezas que possuíam, em
capital, isto é, em instrumentos de trabalho – máquinas, ferramentas e
matéria-prima – e compra da própria força de trabalho.
Este processo de criação do capital industrial através da capital
acumulado pelos agiotas e pelos comerciantes - no entendimento de
Marx - foi fortemente impulsionado com a ajuda do poder Estatal. O
Estado inglês, ao instituir o sistema comercial que garantia privilégios
aos monopólios comerciais; ao instituir o sistema de dívidas públicas
que facilitava o enriquecimento dos agiotas e ao instituir os sistemas
tributários e protecionistas que favoreciam as manufaturas recém-criadas
pelo agiota e pelo comerciante em detrimento da já cambiante atividade
artesã ou campesina, contribuiu para a acumulação de um capital inicial,
21
de peso, para o investimento na indústria nascente. Em outras palavras, o
capital usurário e o capital comercial protegidos pelo Estado instigaram
o crescimento da indústria capitalista. Com o crescimento das atividades
industriais acelerou-se o processo de dissolução da sociedade feudal e,
ao mesmo tempo, a consolidação da sociedade capitalista, isto é,
acelerou-se o processo em que os trabalhadores foram destituídos de
seus meios de produção e de seus meios de subsistência e foram
transformados em trabalhadores assalariados, em mercadorias. Nas
palavras irônicas de Marx, “com tão imenso custo estabeleceu-se as
‘eternas leis naturais’ do modo capitalista de produção; completou-se o
processo de dissociação entre os trabalhadores e suas condições de
trabalho; os meios sociais de produção e de subsistência se
transformaram em capital num pólo e, no outro oposto, a massa da
população se converteu em assalariados livres, em ‘pobres que
trabalham’. Essa obra-prima da indústria moderna”.
Questões para estudo:
1-Em linhas gerais, como, no entendimento de Marx, surgiu o modo
capitalista de produção?
2-Em seu entendimento, o que Marx quis dizer com esta afirmação: “O
sistema capitalista de produção pressupõe a dissociação entre o
trabalhador e os seus meios de produção”.
2-Como a expropriação e expulsão do homem do campo contribuíram
para o nascimento do capitalismo na Inglaterra?
3-No processo de surgimento do capitalismo na Inglaterra, quais foram
os agentes sociais que se transformaram em capitalistas?
4-O Estado inglês teve alguma influência no nascimento do capitalismo
na Inglaterra?
Sugestões para leitura:
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1980.
(livro 1, vol. 2, p. 828-894).
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
HUNT. E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva
crítica. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1987. (p. 218-276).
22
4- O Conceito de Mais-Valia
Com o conceito de mais-valia, Karl Marx tinha em vista explicar
não só a origem do lucro que os capitalistas obtêm no processo da
produção econômica, mas também o próprio funcionamento do modo
capitalista de produção.
Na avaliação de Marx, os mercantilistas, e até mesmo David
Ricardo e Stuart Mill – entre outros teóricos da economia política
clássica - se equivocaram na tentativa de explicar a fonte do lucro dos
capitalistas. No entender dos mercantilistas, a fonte geradora do lucro
seria a troca das mercadorias, quer dizer, o lucro do capitalista seria o
resultado da venda das mercadorias por um preço acima de seu valor, ou
seja, de seus custos de produção. Para David Ricardo, o lucro teria sua
origem não na troca das mercadorias, mas na produtividade do trabalho.
Quer dizer, no entender de Ricardo, o lucro do capitalista nada mais
seria senão o excedente da produção gerado pelo trabalho social. Isto é,
na opinião de Ricardo, o lucro resultaria da organização racional da
produção econômica promovida pelo capitalista: a organização
proporcionaria uma produção maior do que o necessário para o sustento
imediato dos trabalhadores. Stuart Mill, seguindo uma linha semelhante
de raciocínio, diria que “a causa do lucro deriva do fato de o trabalho
produzir mais do que o necessário para o seu sustento”. Stuart Mill
queria dizer, com isto, que o lucro surge do fato de o capital
proporcionar uma produção de mercadorias em tempo menor do que
tempo gasto no consumo destas mercadorias. Quer dizer, no entender de
Mill, não haveria lucro quando um determinado tempo de trabalho
produzisse uma determinada quantidade de mercadorias que seria
consumida naquele mesmo tempo. Nesse caso, não haveria um
excedente na produção, não haveria lucro. O lucro existiria quando um
determinado tempo de trabalho produzisse uma quantidade de
mercadorias que excedia à quantidade de mercadoria consumida naquele
mesmo tempo. Nesse caso, haveria o excedente de produção, haveria o
lucro. No entender de Marx, estas explicações – embora tratem de
aspectos da magnitude do lucro – não tocam em sua verdadeira fonte.
Para Marx, a fonte do lucro é a extração da mais-valia, isto é, a
apropriação, pelo capitalista, dos produtos que o trabalhador produz
além do necessário para o seu sustento.
A extração da mais-valia, no entender de Marx, não é algo
inerente ao processo de trabalho, mas, ao contrário, somente em
determinado contexto histórico é que surgem as condições para que uns
se apropriem do produto do trabalho de outros. Somente no momento
em que “a diferenciação e variedade de produtos naturais impõem uma
certa divisão do trabalho; multiplica as necessidades e aptidões,
instrumentos e métodos de trabalho”, gerando, com isso, um excedente
econômico, é que aparecem as condições para que uns possam
sobreviver com o produto do trabalho de outros. Entretanto, além dessas
condições propícias para a geração do excedente econômico, é
necessário que o trabalhador seja coagido a produzir além do que ele
necessita para sobreviver. A natureza pode explicar porque o trabalhador
deve trabalhar para garantir sua sobrevivência, mas não por que ele deva
produzir além daquilo que ele necessita para sobreviver. É o capital que,
ao se apropriar dos meios de produção do trabalhador livre – artesãos e
camponeses – obriga-o a ser “produtivo”, isto é, o obriga a produzir
além do que necessita para sobreviver; obriga-o a produzir a mais-valia.
Em síntese, somente dentro de certas condições e sob a coerção daqueles
que se tornaram proprietários dos meios de produção, é que surge o
excedente econômico; é que há a extração da mais-valia – excedente da
produção que, em parte, deve ser investido na produção como condição
necessária para a existência e funcionamento do modo capitalista de
produção.
Marx mostra, em seus escritos, que a extração da mais-valia não
é possível no “processo de trabalho” do trabalhador livre, mas tão
somente no “processo de produção capitalista”. A noção de “processo de
trabalho” se refere ao trabalho do artesão e do camponês que, sendo
proprietários de seus próprios meios de produção, executam suas
atividades sobre a matéria-prima para transformá-la em produtos
23
necessários para a satisfação de suas necessidades e de sua família,
portanto, sem a preocupação de produzir um excedente de produção.
Além disso, Marx destaca que o processo de trabalho do artesão é um
processo onde o trabalhador tem o controle sobre os diversos fatores e
etapas que o constitui e onde, no final do processo, o produto de seu
trabalho lhe pertence. Já a noção de “processo de produção capitalista”
se refere a mecanismos bastante distintos do “processo de trabalho”. No
processo de produção capitalista, os trabalhadores não são mais
proprietários dos meios de produção e não mais trabalham para
satisfazer suas necessidades, mas para gerar um excedente de produção;
um processo onde os trabalhadores não possuem mais o controle sobre
suas atividades nem sobre o processo produtivo como um todo, pois é o
capitalista quem determina as condições para gerar o excedente que
tanto almeja; um processo onde, no final, o produto do trabalho não mais
pertence ao trabalhador; enfim, um processo onde o trabalhador se
transformou numa peça do mecanismo de produção e onde o seu
trabalho só é considerado produtivo na medida que cria o excedente, ou
seja, a mais-valia a ser apropriada pelo capitalista.
Marx considera que há duas formas básicas de extração de
maisvalia: “mais-valia absoluta” e “mais-valia relativa”. No processo de
extração da “mais-valia absoluta”, a parte excedente da produção a ser
apropriado pelo capitalista deriva do “prolongamento da jornada de
trabalho do trabalhador” para além do tempo de trabalho que ele gastaria
para produzir o equivalente ao que necessita para o seu sustento. No
processo de extração da “mais-valia relativa”, a parte excedente da
produção a ser apropriado pelo capitalista deriva da “intensificação do
trabalho”, isto é, da organização do processo produtivo, portanto, da
intensificação do ritmo das operações inerentes à produção.
Numa comparação entre o “processo de trabalho” desenvolvido
pelo artesão ou pelo camponês e o “processo de produção capitalista”
efetuado pelo trabalhador que se transformou numa engrenagem do
sistema, torna-se fácil observar a distinção que Marx quis fazer entre
“mais-valia absoluta” e “mais-valia relativa”. No processo de trabalho
desenvolvido pelo artesão, por exemplo, os produtos produzidos por ele
em um determinado tempo lhe pertenciam, pois os meios de produção -
ferramentas e matérias-primas – também lhe pertenciam. Se um artesão
trabalhava, por exemplo, três horas por dia tosquiando a ovelha, fazendo
o fio de lã, tecendo e cozendo blusas, as blusas que ele conseguia
produzir nesse período lhe pertenciam. Se, por exemplo, nas três horas
de trabalho o artesão conseguia produzir três blusas, as três blusas eram
para satisfazer as suas necessidades imediatas ou de sua família. Quer
dizer, neste caso, as três horas de trabalho do artesão foram consumidas
em seu proveito resultando em três blusas que iriam suprir as
necessidades de sua família.
No processo de produção capitalista, a posse do produto do
trabalho muda de mãos: através de extração de “mais-valia absoluta” e
de “mais-valia relativa”, o capitalista detém um excedente de produção e
este excedente é apropriado por ele. Como vimos anteriormente, o
capitalista extrai “mais-valia absoluta” prolongando a jornada de
trabalho do trabalhador. Agora, como é proprietário dos meios de
produção e como comprou a força de trabalho do artesão transformandoo em assalariado, o capitalista exige que ele trabalhe dez horas por dia e
não mais apenas três horas, de modo que ele produza dez blusas e não
apenas as três blusas que ele necessita para satisfazer suas necessidades.
Quer dizer, ao prolongar a jornada de trabalho do trabalhador, o
capitalista conseguiu fazer com que o trabalhador produzisse blusas
suficientes para lhe pagar um salário equivalente ao que ele necessita
para sobrevir – três blusas – de modo a restar-lhe, ainda, um excedente
de sete blusas para apropriar-se delas. É verdade que parte deste
excedente seria gasto em outros custos de produção, mas o restante seria
o lucro do capitalista.
A extração da “mais-valia relativa” é outro mecanismo utilizado
pelo capitalista para ampliar o excedente da produção a ser apropriado
por ele. Como já se observou acima, essa maneira de extrair mais-valia
consiste em intensificar a jornada de trabalho de modo a gerar uma
maior produtividade, isto é, de modo a ampliar o excedente da produção.
Quer dizer, mantendo o tempo de trabalho em dez horas, mas
intensificando o ritmo de trabalho através da eliminação das lacunas de
tempo ocioso existentes na produção, o capitalista consegue fazer com
que o trabalhador amplie a produtividade de seu trabalho: ao invés de
24
produzir dez blusas em dez horas, o trabalhador produziria, por exemplo,
doze blusas. Isto significa dizer que o capitalista continuaria pagando as
três blusas para o trabalhador, mas agora se apropriaria de nove e não
apenas de sete blusas que seriam o excedente no processo produtivo
normal.
Enfim, é dos produtos produzidos pelo trabalhador que sai não
só o seu salário, mas também os recursos necessários para cobrir outros
custos de produção e, inclusive, o lucro do capitalista. Extração de maisvalia absoluta e de mais-valia relativa: eis aí a origem do lucro que os
mercantilistas, Ricardo e Mill, tiveram tanta dificuldade em explicar.
Questões para estudo:
1-Qual é a importância da noção de mais-valia na teoria sociológica de
Karl Marx?
2-O que é mais-valia?
3-Em que condições pode ocorrer a extração da mais-valia?
4-Na terminologia de Marx, o que distingue “processo de trabalho” e
“processo de produção capitalista”?
5-O que diferencia mais-valia absoluta e mais-valia relativa?
Sugestões para leitura:
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
(livro I, v.2, p. 582-594).
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
HUNT. E. K. História do pensamento econômico; uma perspectiva
crítica. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1987. (p. 218-276).
25
5- A noção de Alienação
A noção de alienação constitui uma das noções centrais do
pensamento de Karl Marx. Em seus escritos, Marx utiliza a noção de
alienação para analisar as relações que os homens estabelecem com o
mundo em que vivem, particularmente, para analisar as relações que se
estabelecem entre os agentes do modo de produção capitalista, isto é, as
relações entre o capital e o trabalho. Partindo da crítica dirigida à noção
de alienação elaborada por Hegel, Marx propõe que o processo de
alienação não é outra coisa senão o processo em que o homem, ao perder
a posse de seus meios de produção e do produto de seu trabalho, acaba
se subordinando ao mecanismo de produção que tornou estranho, alheio.
A noção de alienação elaborada por Hegel é diametralmente
oposta á noção elaborada por Marx. A alienação, para Hegel, é um
processo inerente ao processo do pensamento que visa compreender a
realidade. No processo de conhecimento da realidade, o indivíduo se
aliena, na medida que sua consciência, ou seja, na medida que a
consciência cognoscente ingênua vê os fenômenos como que
independentes uns dos outros. Quer dizer, no entender de Hegel, seria
alienado o espírito que não compreende que tudo que ocorre na realidade
social se inter-relaciona; que o interesse particular, por exemplo, se
encontra necessariamente vinculado ao interesse coletivo, etc. Uma
consciência não alienada seria aquela que, além de ter a capacidade de
compreender que tudo se transforma, consegue compreender a interrelação entre os diversos fenômenos que compõem a totalidade social
concreta e - mais do que isso - consegue elaborar as sínteses das
contradições que se manifestam nas relações estabelecidas entre os
diversos fenômenos entre si e entre eles e o todo social. No entender de
Hegel, a compreensão da totalidade do social só seria acessível ao
conhecimento filosófico, isto é, à consciência cognoscente que, em seu
trabalho intelectual, utilizasse o método dialético – tese, antítese e
síntese – para compreender o mundo na sua totalidade concreta. Assim,
só a consciência filosófica não seria alienada diante da realidade social,
pois só ela conseguiria compreender a totalidade concreta.
No entender de Marx, a alienação ou a desalienação não é uma
decorrência necessária do trabalho intelectual como supunha Hegel, mas
sim do trabalho físico e mental com que o homem se relaciona com o
mundo em que vive. Na avaliação de Marx, é através do trabalho que o
homem se relaciona com a natureza e com seus semelhantes; que ele
desenvolve seus sentidos, sua intuição e sua consciência e, assim, toma
consciência do mundo em que vive, atua no processo de sua
transformação. Quer dizer, para Marx, é através do trabalho que o
homem se relaciona integralmente com a natureza e com seus
semelhantes e é, nessa práxis, que ele adquire a consciência plena do
mundo em que vive e, ao mesmo tempo, atua no processo de
transformação não só do mundo em que vive, mas também no processo
de transformação de sua própria consciência. Assim, conforme o
trabalho que realiza para a satisfação de suas necessidades e de seus
semelhantes, o homem pode adquirir a consciência dos aspectos que
envolvem sua vida social e ter o domínio sobre suas atividades ou, ao
contrário, alienar-se, isto é, tornar-se alheio e submetido ao mundo que
cria.
O trabalho desenvolvido pelo artesão na Idade Média - muito
mais que o trabalho desenvolvido pelo trabalhador assalariado do mundo
moderno - permitia ao trabalhador compreender os diversos aspectos da
totalidade da vida social que o cerca e, ao mesmo tempo, controlar as
atividades que executa. Quer dizer, o artesão, por ser proprietário de
seus meios de produção, conhece a totalidade das relações que
estabelece com a comunidade; por ser proprietário de seus meios de
produção e porque produz para a satisfação de suas necessidades e de
sua família e não para o mercado, controla o seu processo de trabalho.
Isto significa dizer que, no processo de seu trabalho, é o artesão que
decide sobre o que vai produzir, quanto vai produzir, como vai produzir
e em quais momentos executará as diversas etapas da produção. Mais do
que isso, o artesão sabe que o produto de seu trabalho – no final de seu
processo de trabalho - lhe pertencerá e, mesmo que tenha produzido para
26
efetuar uma troca por espécie com a vizinhança, saberia a qual
necessidade o produto de seu trabalho iria satisfazer.
É com o advento do trabalhador assalariado e do capital, ou seja,
com o advento do modo capitalista de produção, que o trabalhador entra
no processo de alienação. O capitalista, ao apropriar os meios de
produção do trabalhador, do artesão e do camponês independente,
promove profundas alterações nas relações que os homens estabelecem
com a natureza e com seus semelhantes. Ao perder a posse de seus
meios de produção, o artesão se transforma em trabalhador assalariado e
não decide mais o que vai produzir, como, quanto e quando vai produzir,
e tampouco sabe mais a que necessidades o produto de seu trabalho vai
atender. Quer dizer, com o advento do capitalismo, não é mais o
trabalhador que controla a produção e a distribuição do produto de seu
trabalho. O processo produtivo, agora, longe de ser controlado pelo
trabalhador, é controlado pelas forças cegas do mercado ou pela
necessidade de lucro do capitalista. O capitalista, na sua busca do lucro,
não só transforma a força de trabalho numa mercadoria geradora de
lucro, como também transforma o produto de seu trabalho em mais
capital, isto é, em uma força exterior que se voltará contra o próprio
trabalhador impondo-lhe os mecanismos da produção e a perda do
controle da distribuição da riqueza, portanto, destituindo-o da
oportunidade de manter relações conscientes com a natureza e com seus
semelhantes.
Em linhas gerais, pode-se dizer que esse processo de alienação
do trabalhador se manifesta em pelo menos três formas distintas:
alienação em relação ao processo de produção, em relação à posse do
produto do trabalho e em relação às relações sociais.
A alienação no processo produtivo significa que, ao perder a
posse de seus meios de produção e ao tornar-se assalariado, o
trabalhador perde o controle sobre o processo de produção e, com essa
perda, a possibilidade de “desenvolver livremente suas energias físicas e
mentais”. Uma vez que o trabalho passa a ser imposto unicamente pelas
forças das circunstâncias externas, “o trabalho deixa de ser um fim em si
mesmo para se tornar um meio para atingir um fim”, isto é, para
produzir lucro e não mais para atender necessidades humanas. Não tendo
mais sentido, o trabalho só interessa ao trabalhador na medida que este é
coagido a trabalhar, na medida em que “uma compulsão física ou de
outra ordem” se exerce sobre ele. Caso contrário, o homem foge do
trabalho como o diabo foge da cruz; pensa em aposentar tão logo assina
o primeiro contrato de trabalho.
Quanto ao produto do trabalho, o trabalhador se torna alienado,
pois, ao perder a posse do produto de seu trabalho para o capitalista, ele
perde a noção da finalidade do resultado de sua produção. Quer dizer,
uma vez que, no modo capitalista de produção, a produção tem em vista
a busca do lucro no mercado, o trabalhador não se encontra mais seguro
de que o esforço que despende na realização de seu trabalho se destina à
satisfação de necessidades humanas. Aliás, além de ser destinado ao
mercado e não necessariamente à satisfação direta de necessidades
humanas, o produto do trabalho apropriado pelo capitalista tende a
voltar-se contra ele próprio; transformar-se em um novo capital que
exigirá que o trabalhador continue produzindo para o mercado e não
para a satisfação de necessidades humanas.
A alienação se manifesta não só no processo de produção
econômica e no processo de apropriação do produto do trabalho pelo
capitalista, mas também nas demais relações sociais em que os homens
se encontram envolvidos. A transformação do trabalhador e do produto
de seu trabalho em mercadoria, isto é, em objetos que são comprados e
vendidos no mercado, ao dar origem e fomentar o desenvolvimento do
mercado, instigou, ao mesmo tempo, a criação do dinheiro como
instrumento de equivalência para a efetivação da troca. O dinheiro, por
um lado, criou a possibilidade de as mercadorias – homens e coisas –
adquirirem características que elas não têm e, por outro lado,
transformou as relações pessoais e afetivas que existiam entre os homens
em relações de mercado. Quer dizer, com a transformação do produto do
trabalho e do próprio trabalhador em mercadoria e com a criação do
dinheiro como equivalente para a troca, o homem feio e covarde pode
obter a beleza e a valentia; a solidariedade e a estima que existiam nas
relações sociais se transformaram em relações de conveniência, etc.
O processo de alienação desencadeado com a apropriação, pelo
capitalista, dos meios de produção e do produto do trabalho do
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trabalhador, vale notar, afetou não só a vida dos trabalhadores, mas
também a própria maneira de viver dos capitalistas. Isto significa dizer
que o produto do trabalho do trabalhador - ao se transformar em
mercadoria, em capital gerador de mais mercadoria – transformou-se
numa força objetiva exterior que se impõe aos indivíduos em geral. Se
“a criatura se volta contra o seu criador”, ou seja, se o capital – produto
do trabalho do trabalhador acumulado pelo capitalista – se volta
particularmente contra o próprio trabalhador, ele exige, também, que o
capitalista se despoje de seus sentimentos, de seus prazeres e de suas
paixões para entregar-se à imperante necessidade de acumulação. Como
diz Marx, embora a alienação pese mais sobre os trabalhadores, o
capitalista também é escravo do capital: a propriedade privada
transforma todos em “estúpidos e parciais”. A desalienação do homem
só seria possível com a abolição da propriedade privada dos meios de
produção, portanto, com a instauração de uma nova forma de relações de
produção onde, livre da dominação e da exploração na produção
econômica, o homem pudesse fazer do trabalho intelectual e manual, o
instrumento de sua relação consciente com a natureza e com seus
semelhantes, um instrumento de sua libertação.
Questões para estudo:
1-Em linhas gerais, o que você entende por alienação?
2-No entendimento de Hegel, o que é alienação?
3-Por que o artesão da Idade Média não era tão alienado como o é o
trabalhador assalariado do modo capitalista de produção?
4-Como o homem se torna alienado no processo de produção
econômica?
5-Como o homem se aliena ao perder a posse do produto de seu
trabalho?
6-Como o homem se torna alienado em suas relações sociais?
7-No entendimento de Marx, como seria possível a desalienação do
homem?
Sugestões para leitura:
MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos e outros escritos.
São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
(livro I, vol. 2, p. 659-673).
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
(livro 1, vol. 2, p.828-882).
MARX, Karl e Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo:
Hucitec, 1987.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
LANG, Kurt. Alienação. In: Dicionário de ciências sociais. Rio de
Janeiro: FGV, 1987. (p. 38-39)
28
6-Divisão do Trabalho, Propriedade
e Transformação Social
Com base nos princípios do materialismo histórico, em seu texto
Barbárie e Civilização, Engels tem o objetivo de mostrar como as
sociedades evoluíram desde a barbárie até a civilização. Entendendo que
as instituições sociais não são estáticas e que tampouco resultam das
idéias que se formulam sobre elas, em suas análises, Engels, a exemplo
de Marx, parte do princípio de que o nascimento e o perecimento de tais
instituições sociais ocorrem conforme as contradições que se
estabelecem na própria base material da sociedade. Assim, ele revela
que foi o surgimento e a evolução da divisão do trabalho social e da
propriedade dos meios de produção que deu origem às contradições
sociais enquanto elementos capazes de gerar, de conservar ou de
transformar as instituições sociais. Segundo Engels foi a evolução das
contradições econômicas da sociedade gentílica – sociedades primitivas
cujos membros se associavam espontaneamente conforme os laços
consangüíneos – que destruiu as suas instituições sociais e promoveram
o desenvolvimento das instituições modernas da chamada civilização.
Nos primórdios da humanidade, isto é, nas sociedades gentílicas,
não havia divisão social do trabalho e, portanto, não havia propriedade
privada dos meios de produção, classes sociais, Estado. Nestas
sociedades, se alguma divisão do trabalho existia, era a divisão sexual do
trabalho: o homem cuidava da caça, da pesca da guerra e produzia os
instrumentos necessários enquanto a mulher cuidava da casa, do preparo
dos alimentos, da vestimenta etc. Em virtude da importância primordial
do trabalho doméstico em relação ao trabalho do homem selvagem, a
mulher dominava a extensa família matriarcal onde inclusive os homens
da tribo eram submetidos ao seu domínio. Os meios de produção –
canoas para a pesca, os instrumentos de trabalho, inclusive a casa onde
os membros da tribo se abrigavam coletivamente – eram propriedades
coletivas e não particulares. Os produtos do trabalho – a caça, a pesca, a
colheita, etc. – eram obtidos coletivamente para o consumo coletivo da
tribo. Porque não havia propriedade privada dos meios de produção e do
produto do trabalho, não havia classes sociais em lutas umas com as
outras e, portanto, não havia o Estado enquanto instrumento de uma
classe para a opressão da outra.
Esta espontânea organização social começa a desintegrar-se com
o surgimento e evolução da divisão do trabalho. A primeira grande
divisão do trabalho ocorreu na etapa do desenvolvimento da humanidade
denominada por Engels de “fase inferior da barbárie”. Ao lado da caça,
da pesca e da coleta de frutos selvagens, os homens descobriram que
determinados animais poderiam ser domesticados. Com isso, ao lado do
selvagem, surgiam os pastores que se dedicavam à criação de animais.
Com esta divisão do trabalho surge também a propriedade do produto do
trabalho: os animais domesticados se tornaram propriedade da tribo que
os criava. Com a propriedade, aparecem os primeiros ensaios de troca
entre as tribos selvagem e as tribos pastoris. Com o tempo, o rebanho
coletivo se tornou privado e as trocas ocasionais começaram a ocorrer
também no interior da tribo entre os seus próprios membros. Também a
terra que entre algumas tribos servia à agricultura coletiva, com o tempo
transformou-se em propriedade das gens – famílias menores que
constituíam uma determinada tribo – e, mais adiante, em propriedade
pessoal. Paralelamente ao desenvolvimento do pastoreio e da
agricultura, descobriu-se o metal – estanho, bronze – e com eles a
fundição e os teares. Este desenvolvimento do pastoreio, da agricultura e
das demais atividades que surgiam no interior da sociedade, não foi
outra coisa senão o desenvolvimento das forças produtivas que se
tornaram cada vez mais produtivas e cada vez mais exigente de mais
trabalho, ou seja, de mais mão-de-obra. Daí, as intermináveis guerras
existentes entre as tribos primitivas: guerras que tinham por objetivo
obter os prisioneiros escravos para suprirem a necessidade de mais
trabalho. Em suma, a primeira grande divisão social do trabalho
revolucionou a sociedade gentílica: fez surgir não só a escravatura e as
classes sociais – senhores e escravos – inexistentes no interior da
sociedade gentílica, mas também transformou a extensa família gentílica
29
em família monogâmica. Nesta transformação, o homem passou a
exercer a atividade social mais importante da comunidade – a criação de
animais – e a ser proprietário do produto de seu trabalho. Com isso, o
poder matriarcal cedeu lugar ao poder patriarcal.
Na fase superior da barbárie – fase da descoberta do ferro e do
impulso que ele exerceu sobre o desenvolvimento das forças produtivas
- ocorreu a segunda grande divisão social do trabalho: a separação do
artesanato da agricultura. A descoberta do ferro permitiu não só a
ampliação da produção agrícola, mas também o surgimento e
desenvolvimento de uma variada gama de atividades artesanais que - até
então desenvolvidas pelos próprios agricultores - se tornaram atividades
independentes. Ao impulsionar as atividades agrícolas e artesanais, o
ferro contribuiu para o crescimento da riqueza das comunidades, mas, ao
mesmo tempo, contribuiu para criar novas necessidades para os homens
e, com elas, a necessidade de mais força de trabalho para a produção dos
produtos necessários para a satisfação daquelas necessidades. Daí,
também, uma necessidade maior de mais escravos. Além disso, com as
diversas atividades artesanais emergindo no seio da sociedade, a
produção para a troca se intensificou e, com ela, a ampliação da riqueza
de uns e da pobreza de outros. A comunidade cada vez mais se dividia
em ricos e pobres, exploradores e explorados, opressores e oprimidos.
Com o fim da propriedade comum da terra, com o fim do trabalho
comum característico da sociedade gentílica e com o advento da divisão
social do trabalho e das diversas oportunidades de trabalho artesanal, os
membros integrantes das diversas tribos se dispersaram no espaço e,
assim, acabaram se concentrando em uma mesma região, mas, desta vez,
não mais em decorrência dos laços consangüíneos que não mais existiam
entre eles, mas por interesses econômicos.
A densidade populacional, os conflitos internos e a necessidade
de proteção contra eventuais inimigos externos exigiam cada vez mais a
união interna dos membros das diversas tribos errantes que agora
exerciam as mais diversas atividades em uma mesma região. Neste
processo, surge então a confederação de tribos, o território comum, a
figura do chefe militar. É neste contexto que surge também a assembléia
do povo e, com ela, a democracia militar: o povo se reunia em
assembléia para opinar, particularmente, sobre a necessidade e sobre as
formas de defender o território dos bárbaros sedentos por atacar as
cidades prósperas ou para decidir formas de ataques aos vizinhos para a
conquista de novos territórios. Paralelamente a isso, a intervenção do
chefe militar nos conflitos internos redundou na ampliação de seu poder
político, e as eleições habituais no mesmo chefe militar acabaram
transformando o seu poder em poder hereditário. Enfim, a divisão do
trabalho arrancou os órgãos da sociedade gentílica e deu origem a uma
organização militar para o saque e opressão dos vizinhos: os órgãos
criados para atender à vontade do povo transformaram-se em órgãos
para reprimir o próprio povo.
No entender de Engels, com a terceira grande divisão do
trabalho social – o surgimento do comércio e da figura do comerciante –
entramos no limiar da civilização. O comerciante não participa, mas
dirige a produção, estimula a produção para a troca e com ela surgem as
crises comerciais periódicas. Para facilitar as trocas, este intermediário
entre o produtor e o consumidor inventa o dinheiro metal, um
instrumento mágico que se transforma em todas as coisas. Com o
dinheiro aparece a instituição do empréstimo, da usura. Com o dinheiro
tudo se transforma em mercadoria: a terra passa a ser vendida ou
penhorada e, como as mercadorias, os próprios homens passam a ter um
valor de comércio. Com o dinheiro e com as dívidas que daí decorrem,
acentua-se o contraste entre a riqueza e a pobreza: a riqueza, cada vez
mais se centraliza em poucas mãos e a pobreza se alastra pela sociedade.
Com o dinheiro, a legislação se volta contra o devedor submetendo-o
cada vez mais ao credor. Agora os homens livres se dividem em classes
sociais conforme a riqueza.
Enfim, a sociedade gentílica se torna impotente diante do avanço
da divisão do trabalho. Para que ela pudesse subsistir, seus membros
deveriam ter permanecido num mesmo território. Mas, por força da
divisão do trabalho e da propriedade privada dos meios de produção, as
famílias gentílicas se dispersaram no espaço. A vida sedentária se
movimentou e tornou-se cada vez mais difícil os membros da grande
família se reunirem para discutir as questões comuns. A democracia se
transformou em aristocracia. A luta de classes se tornou aberta. Se antes
30
a opinião pública era a única coerção que se exercia sobre os indivíduos,
agora se fez necessário um terceiro poder “acima” das classes: o Estado
surge em decorrência das lutas de classes que se tornavam cada vez mais
acirradas. O Estado, portanto, não se impõe de fora para dentro, não é
um ideal moral, não é a realização da razão como supunha Hegel. Ele é
um produto da sociedade; uma decorrência das lutas de classes. O
Estado – tendo como características, uma divisão territorial onde os
direitos e deveres se impõem a todos, independente da tribo, uma força
pública (homens armados que não se identificam com o povo, cárceres,
etc.); a necessidade de impostos para sustentar a força pública e a
necessidade de funcionários para recolher tais impostos – é um
instrumento de uma classe para oprimir a outra (exceção quando ocorre
um equilíbrio de forças entre as classes).
O Estado não tem existido eternamente. Na história da
humanidade houve sociedades sem divisão do trabalho, sem propriedade
privada, sem Estado. Houve épocas em que a produção e o consumo
eram coletivos. Os homens eram senhores de seus instrumentos de
trabalho e de seus produtos. Foi com a divisão do trabalho que ocorreu o
fim da produção em comum, que a propriedade se tornou individual e
surgiu a produção mercantil onde a intervenção do comerciante separou
o produtor de seu produto e ambos - produtores e comerciantes - foram
dominados pelo comércio. Pode-se dizer que a civilização pôs em
movimento as mais vis paixões humanas: a ambição tornou-se a força
motriz dos indivíduos.
Questões para estudo:
1-Quais são as características básicas da sociedade gentílica?
2-Que transformações básicas ocorreram na sociedade gentílica com o
processo de divisão do trabalho?
3-Em seu entendimento, há alguma relação básica entre a evolução da
divisão do trabalho e o surgimento do Estado?
Sugestões para leitura:
ENGELS, Friedrich. Barbárie e civilização. in: ENGELS, F. A origem
da família, da propriedade privada e do estado. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984. (p. 177-201).
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In.:
LASKI, Harold. O manifesto comunista de Marx e Engels. 2a. ed., Rio
de Janeiro: Zahar, 1978. (p.79–124).
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
31
7- O Comunismo como Necessidade Histórica
O Manifesto do Partido Comunista, a pedido do Comitê Central
da Liga Comunista fundada em 1847, foi escrito por Marx e Engels em
1848 não só para servir como um programa de partido, mas também para
mostrar aos trabalhadores quais eram, realmente, as idéias comunistas
tão caluniadas e difamadas pela imprensa e autoridades burguesas da
época. Utilizando o materialismo histórico como método de análise,
Marx e Engels procuraram mostrar, no Manifesto, que o ideal comunista
– longe de ser um ideal fantasioso dos comunistas – é uma necessidade
que resulta das contradições do capitalismo e que a sociedade comunista
é uma decorrência necessária das lutas de classes que se travam entre
burgueses e proletários. Quer dizer, para Marx e Engels, assim como a
sociedade burguesa foi uma decorrência necessária das lutas de classes
travadas entre a burguesia e a nobreza feudal, a sociedade comunista é
uma decorrência necessária da luta de classes que se desenvolve entre
proletários e burgueses.
Na demonstração destas proposições, Marx e Engels partem da
constatação de que “a história de toda sociedade tem sido a história das
lutas de classes”. Quer dizer, para os autores, cada formação social é
constituída por classes sociais que, em virtude de seus interesses
divergentes e antagônicos, mantêm entre si permanente relações de
conflito: A história de vencedores e vencidos não é outra coisa senão a
história do desenvolvimento da humanidade. No mundo antigo,
destacam-se as lutas entre patrícios, guerreiros, plebeus e escravos; na
sociedade feudal, as lutas entre senhores, vassalos, mestres,
companheiros, aprendizes e servos; etc. Na sociedade burguesa, as
relações sociais não ocorrem de maneira diferente. A sociedade
burguesa - surgida no processo de desenvolvimento das lutas de classes
da sociedade feudal - não aboliu as classes sociais, mas ao invés disso,
fez surgir novas classes simplificando os antagonismos: de um lado, os
burgueses proprietários dos meios de produção e, de outro lado, os
proletários - trabalhadores assalariados que perderam a posse dos meios
de produção e que, portanto, são obrigados a vender sua força de
trabalho para sobreviver.
A burguesia surgiu como classe no processo de desenvolvimento
do modo de produção feudal. Com o desenvolvimento dos meios de
produção e troca, os comerciantes, e até mesmo os servos e os artesãos
existentes na sociedade feudal, com a posse de algum excedente
econômico, passaram a desenvolver suas atividades econômicas através
da compra do trabalho alheio, transformando-se em burgueses. Nesse
processo de transformação, alguns servos e artesãos deixaram de
produzir para a satisfação direta das necessidades humanas e - ao
transformarem-se em capitalistas, ou seja, em proprietários dos meios de
produção e compradores de força de trabalho – destinaram a produção
ao mercado; num primeiro momento, apenas ao mercado interno. Com a
descoberta dos mercados da Índia, da China, com a colonização da
América, a produção e troca tiveram que se intensificar e, com isso, as
manufaturas se transformaram em fábricas com máquinas mais
sofisticadas. Com o mercado em crescimento e com a descoberta do
vapor para o incremento da produção, surgiram as indústrias modernas e
com ela a classe burguesa, ou seja, a burguesia. Enfim, a burguesia é o
resultado do desenvolvimento dos meios de produção e de troca. De
classe oprimida nos primórdios das manufaturas a burguesia se
transformou em associação armada nas comunas (cidades nascentes) e,
com o seu desenvolvimento, conquistaram o poder político e, com isso,
constituiu-se em um “comitê para gerir os negócios comuns de toda a
burguesia”.
Na visão de Marx e Engels, a burguesia foi uma classe
revolucionária. Ela transformou as relações feudais, patriarcais, idílicas
em relações de mercado. Os sentimentos religiosos foram transformados
em cálculos egoístas, a dignidade pessoal em valor de troca, a liberdade
em liberdade de comércio. Com a atuação da burguesia, a exploração
encoberta pelas ilusões religiosas se converteu em exploração direta,
aberta, única, brutal. Na busca do lucro, a burguesia teve que
revolucionar os meios de produção, as relações de produção e as
32
relações sociais existentes na sociedade feudal, e assim o fez. O mercado
em expansão levou a burguesia a conquistar o globo e a construir um
mundo à sua imagem. Criou necessidades novas nos países mais
longínquos e retirou as bases nacionais de suas indústrias. A autosuficiência destes países se transformou em dependência material e
intelectual. Enfim, a burguesia arrastou as nações para a civilização;
criou um novo mundo conforme seus interesses. Submeteu o campo à
cidade; suprimiu a dispersão da população, dos meios de produção, da
propriedade concentrando-os num mesmo local e em poucas mãos. Em
conseqüência, a burguesia promoveu a centralização política: as
províncias com laços federativos, que tinham suas leis, governos, tarifas,
interesses próprios, se transformaram em uma só nação. A burguesia
criou forças produtivas poderosas: subordinou as forças da natureza ao
homem; criou a maquinaria; implantou o uso da química na indústria e
na agricultura; criaram-se as vias férreas, os telégrafos, etc. Como diz
Marx, com a atuação da burguesia, “tudo que era sólido se evaporou no
ar; tudo que era sagrado foi profanado”. Enfim, os meios de produção e
de troca burgueses surgiram das contradições inerentes ao modo de
produção feudal. O desenvolvimento dos meios de produção feudal
entrou em contradições com as relações feudais de produção e estas
relações feudais – relações pessoais entre senhores feudais e servos tiveram que ser abolidas e foram abolidas pela burguesia. No lugar das
relações feudais, a burguesia implantou não só a livre concorrência, mas
também as relações impessoais entre os proprietários dos meios de
produção e os trabalhadores assalariados.
Marx e Engels constataram que um movimento semelhante
ocorria diante de seus olhos. Assim como a sociedade burguesa nasceu
do processo de decomposição da sociedade feudal, uma nova sociedade
haveria de nascer do processo de decomposição da sociedade burguesa.
A burguesia, ao criar as suas relações de produção e de troca,
assemelhou-se ao feiticeiro, que perdeu o controle sobre o produto de
suas palavras mágicas. Isto significa dizer que a história da indústria e
do comércio que nasceu com a burguesia tem sido a história da
contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações
de produção. Esta contradição, por um lado, se manifesta nas crises de
superprodução – crise que não existia na sociedade feudal, pois a
produção era destinada para a satisfação das necessidades e não para o
mercado – e a conseqüente necessidade de destruir parte das forças
produtivas e dos produtos, numa tentativa de amenizar a crise. As crises
e as tentativas de amenizá-las constituem uma demonstração de que o
nível de desenvolvimento das forças produtivas não mais favorece as
condições de propriedade burguesa, isto é, não é mais compatível com as
relações entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção,
entre capitalista assalariado. Aliás, destruir as forças produtivas para
sanar a crise seria preparar terreno para crises mais profundas. Por outro
lado, esta contradição se manifesta, também, na luta que se desenvolve
entre a burguesia e o proletariado. Com seus métodos de exploração e de
dominação, a burguesia deixou o proletariado em condições degradantes
de existência – condições que o leva a rebelar-se contra as relações
burguesas de produção, ou seja, contra as relações entre capital e
trabalho assalariado. Daí a afirmação de Marx e de Engels de que “as
armas com que a burguesia combateu o feudalismo (a criação da
propriedade privada dos meios de produção e do trabalho assalariado)
voltam-se contra ela própria”.
Os proletários que nasceram no momento em que os artesãos,
servos e camponeses da antiga sociedade feudal perderam a posse de
seus meios de produção, hão de transformar-se – por força das próprias
contradições do modo de produção da nova sociedade capitalista – numa
nova classe revolucionária. Ao perderem a posse de seus meios de
produção, os artesãos transformaram-se em trabalhadores assalariados, e
aqueles que se apossaram destes meios de produção, transformaram-se
em burgueses. Com isso, o trabalhador perdeu também a posse do
produto de seu trabalho e, para sobreviver, viu-se obrigado a vender sua
força de trabalho submetendo-se à exploração e à dominação burguesa.
É essa nova situação de explorados e de dominados que, segundo Marx e
Engels, poderá levar os trabalhadores a se rebelarem contra a burguesia.
No início, a luta do trabalhador contra as suas condições
degradantes de sobrevivência é individual: ele procura, isoladamente,
melhorar suas condições de vida. Sem êxito, altera suas estratégias de
luta: reúne-se com os demais trabalhadores da fábrica ou de uma mesma
33
localidade para, juntos, lutarem pelo mesmo objetivo. Nestas lutas,
combatem não os condicionantes de seu sofrimento – os seus
exploradores e dominadores – mas as máquinas e as mercadorias que
elas produzem. Ingenuamente, às vezes, aliam-se a seus exploradores –
os burgueses – nas lutas destes contra a nobreza. Entretanto, nestas lutas
individuais e alianças enganosas, o proletariado vai formando sua
consciência de classe e, num momento seguinte, já vê a importância de
criar seus sindicatos. O desenvolvimento dos meios de comunicação
favorece o seu contato com os demais trabalhadores dispersos nas
pequenas fábricas e, além disso, as próprias alianças enganosas com os
inimigos favorecem a sua politização. Mais do que isto, com o
desenvolvimento do capitalismo, os proletários crescem em número,
fortalecem-se e, a despeito da “classe perigosa” (miseráveis) que se
vende facilmente à reação, a despeito da competição que em algum
momento existe entre eles próprios, conseguem tomar consciência da
verdadeira causa de sua exploração e dominação, bem como a dar conta
de quem são os seus exploradores e dominadores. Descobrem que as
suas condições de existências começaram a deteriorar-se no momento
em que seus meios de produção se tornaram propriedade privada da
burguesia. Neste momento, o proletariado já possui uma consciência de
classe desenvolvida, constitui-se em partido político e estabelece, como
seu objetivo primordial, colocar um fim na instituição da propriedade
privada dos meios de produção. Isto significa dizer que a guerra civil
oculta, que sempre existiu entre proletários e burgueses, pode explodir
numa revolução aberta contra a burguesia. De posse do poder político, o
proletariado vitorioso, num longo e árduo processo, pode transformar a
propriedade privada dos meios de produção em propriedade coletiva e
pôr fim à exploração e dominação do homem pelo homem. Neste estágio
de desenvolvimento da humanidade, “o livre desenvolvimento de cada
um é a condição do livre desenvolvimento de todos”.
Questões para estudo:
1-Que relações podem ser estabelecidas entre luta de classes e
transformação social?
2-Na terminologia de Marx, o que significa burguesia e proletariado?
3-No entendimento de Marx, como nasceu e se desenvolveu a
burguesia?
4-Por que a burguesia, em suas origens, pode ser considerada uma classe
revolucionária?
5-Comente esta afirmação: “As contradições que se estabelecem entre
forças produtivas e relações de produção, bem como as lutas que se
desenvolvem entre burgueses e proletários, podem redundar na
transformação do capitalismo”.
6-No entendimento de Marx, como surgiram os trabalhadores
assalariados (proletários) e como eles se desenvolvem como classe
social?
7-No entendimento de Marx, por que a abolição da propriedade privada
é o fim último do proletariado em sua luta contra a burguesia?
Sugestões para leitura:
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In.:
LASKI, Harold. O Manifesto Comunista de Marx e Engels. 2a ed., Rio
de Janeiro: Zahar, 1978. (p.79.–124).
ENGELS, Friedrich. Barbárie e Civilização. in: ENGELS, F. A origem
da família, da propriedade privada e do estado. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984. (p. 177-201).
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
34
8- A Participação Política na Comuna de Paris
A Comuna de Paris – guerra civil travada entre o proletariado
parisiense e o governo de Francês no ano de 1871 – foi, para Marx, um
modelo de revolução que tem por objetivo libertar os trabalhadores do
jugo das classes dominantes. De fato, como veremos a seguir, no
decorrer dessa guerra civil, o proletariado parisiense conseguiu assumir
o poder político de Paris e num breve período de tempo em que esteve
no comando da cidade – de 18 de março a 28 de maio de 1871, dia em
que “os últimos combatentes da Comuna sucumbiam ante a
superioridade de forças do inimigo nas encostas de Beleville” (Engels,
1984, p. 18) – promoveu uma profunda revolução na organização social
e política da cidade. Quais medidas foram adotadas pela Comuna de
Paris no sentido de promover uma efetiva participação dos trabalhadores
nos processos de tomadas de decisões políticas? Trataremos desta
questão a seguir, mas, antes, vejamos o como Marx entende o poder
político, ou seja, o Estado.
O Estado é – no olhar de Marx e Engels – desde o seu
nascimento, um instrumento utilizado pelas classes dominantes para
defender os seus interesses em detrimento dos interesses das classes
dominadas. O Estado, enquanto “grupo armado” separado da sociedade,
não existia nem poderia existir na sociedade gentílica justamente porque,
nessa sociedade, não existia divisão social do trabalho, nem propriedade
privada dos meios de produção e nem as classes sociais com seus
interesses antagônicos. Ali, onde os interesses eram coletivos, ao invés
de um “grupo armado” separado da sociedade, o próprio “povo em
armas” se defendia de eventuais ataques externos. Como um “grupo
armado” destacado da sociedade o Estado surge no final da “fase
superior da barbárie”, portanto, nos umbrais da civilização, no momento
em que a sociedade gentílica, em processo de deterioração, já se
encontra constituída por classes sociais: homens livres e escravos; ricos
e pobres. Nesse momento, um “grupo armado” separado da sociedade se
faz necessário não só para defender, de eventuais ataques externos, os
interesses econômicos das corporações produtoras e comerciais do
antigo Mediterrâneo, mas também para conter, “em forma de polícia”, os
conflitos internos cada vez mais acirrados entre as classes sociais
(Engels, 1984, p. 131). Esse vínculo do nascente Estado com as classes
economicamente dominantes se consolida nas constituições de Sólon
(594 a C.) e de Clístenes (504 a.C.) – constituições que, a despeito de
garantirem a “assembléia do povo”, mantiveram a “força armada
separada da massa do povo”; legitimaram a existência da propriedade
privada; dividiram os cidadãos conforme seus níveis de riqueza e, além
de criarem novos cargos públicos, permitiram que apenas os membros
das classes mais abastadas ocupassem os principais cargos públicos.
O vínculo existente entre o Estado com as classes sociais pode
ser observado, particularmente, nos escritos em que Marx e Engels
tratam do processo de centralização do poder político no mundo
moderno. Marx considera que o processo de centralização do poder
estatal iniciado pela monarquia absoluta em finais da Idade Média e
concluído pela burguesia no mundo moderno, não significou outra coisa
senão um processo de aperfeiçoamento do instrumento de dominação da
classe burguesa sobre a classe proletária. Nesse sentido, diz Marx em A
guerra civil na França: “o poder estatal centralizado com seus órgãos
onipotentes – o exército permanente, a polícia, a burocracia, o clero e a
magistratura – órgãos criados segundo um plano de divisão sistemática e
hierárquica do trabalho – procede dos tempos da monarquia absoluta e
serviu à nascente sociedade burguesa como uma arma poderosa em suas
lutas contra o feudalismo”. Para por em execução o seu projeto de
sociedade, a burguesia – através da Revolução Francesa do século XVIII
– teve que centralizar o poder estatal removendo todo o tipo de entulhos
medievais que constituíam obstáculos ao seu domínio: os direitos
senhoriais, os privilégios locais, os monopólios municipais e
corporativos, os códigos provinciais” (Marx, 1986, p. 70).
Considerando que o Estado, ou seja, esse poder estatal
centralizado com seus órgãos onipotentes – o exército permanente, a
35
polícia, a burocracia, o clero e a magistratura – separado da sociedade, é
um instrumento de dominação do capital sobre o trabalho e que,
portanto, longe representar os interesses da sociedade, ele representa os
interesses exclusivos do capital, Marx e Engels – e Lênin entre tantos
outros marxistas – avaliam que os trabalhadores devem participar dos
canais de participação política que encontram à sua disposição, ou seja,
devem participar da democracia burguesa representativa – partidos
políticos; sufrágio universal, etc. – apenas como estratégias para
conseguirem sua emancipação política e, com ela, a possibilidade de
uma efetiva participação nas decisões coletivas. Marx elogia a luta do
proletariado francês, em meados do século XIX, pela Republica não por
considerá-la um fim em si mesmo, mas por considerá-la como um
instrumento de emancipação política. O proletariado, diz Marx, “ao
impor a República ao governo provisório e através do governo
provisório, a toda a França, apareceu imediatamente em primeiro plano,
como partido independente, mas, ao mesmo tempo, lançou um desafio a
toda a França burguesa. O que o proletariado conquistava era o terreno
para lutar pela sua emancipação revolucionária, mas não, de modo
algum, a própria emancipação” (Marx, 1986a, p. 58). Quer dizer, para
Marx, a república burguesa, ou seja, a democracia representativa
instituída pela burguesia é importante para o proletariado, pois, a seu
ver, “os ‘revolucionários’, os ‘subversivos’, florescem muito melhor
pelos meios legais que pelos ilegais e pela subversão”: na legalidade eles
ganham “músculos rijos, faces coradas e respiram a eterna juventude”
(Marx, 1986a, p. 46).
Entretanto, mesmo considerando que o Estado, ainda que em sua
forma de república democrática onde os trabalhadores têm o partido e o
sufrágio universal como meios legais de participação política, não é
senão “uma máquina de opressão de uma classe sobre a outra” (Marx,
1986, p. 29), Marx e Engels consideram que os trabalhadores só terão a
possibilidade de participar efetivamente das decisões políticas, apenas a
partir do momento em que, emancipando-se politicamente, conquistarem
o poder político e, com ele promoveram um processo de reorganização
da sociedade. Quer dizer, a efetiva participação dos trabalhadores nos
processos de tomadas de decisões políticas ocorreria, a partir do
momento em que eles, assumindo o poder político, criassem os
mecanismos para que o Estado, isto é, “o exército, a polícia, a
burocracia, esses instrumento de opressão de que se tinham servido
todos os governos até então (...) e que (...) todo novo governo acolhera
como preciosos instrumentos de dominação” (Engels, apud Lênin, 1986,
p. 95), fosse destruído pela luta revolucionário do proletariado e, em seu
lugar, fosse instituída uma livre associação dos trabalhadores: uma
associação “onde não existirão as classes nem os seus antagonismos; e
desde então, não haverá mais poder político propriamente dito, pois o
poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo existente
na sociedade civil” (Marx, in: Lênin, 1986, p. 29); uma associação onde,
no lugar de uma corporação parlamentar, haveria “uma corporação
laboriosa, ao mesmo tempo, legislativa e executiva”; uma associação
onde “em lugar de resolver, de três em três ou de seis em seis anos, qual
o membro da classe dominante deverá ‘representar’ o povo no
parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em
comunas para recrutar, ao seu serviço, operários, contramestres, guardalivros, da mesma forma que o sufrágio individual serve a qualquer
industrial, na sua procura de operários ou contra-mestres” (Marx, In:
Lênin, 1986, p. 56).
Esse processo de destruição do Estado, portanto, de construção
de uma “livre associação” onde os trabalhadores pudessem participar
diretamente das decisões coletivas, teve o seu exemplo histórico na
Comuna de Paris. Como diz o Manifesto do comitê central da revolução,
a Comuna de Paris foi uma revolução onde “os proletários de Paris, em
meio aos fracassos e às traições das classes dominantes, compreenderam
que chegou o momento de salvar a situação, tomando em suas mãos a
direção dos negócios públicos. Compreenderam que é seu dever
imperioso e seu direito incontestável tornar-se donos de seus próprios
destinos, tomando o poder” (Marx, 1986, p. 69).
As medidas tomadas pelos trabalhadores durante as poucas
semanas em que estiveram de posse do poder político – segundo as
análises de Marx e Engels – indicam a intenção de o proletariado
parisiense, gradativamente, “quebrar” os órgãos de repressão da
máquina estatal e, ao mesmo tempo, criar as condições para que, em
36
lugar de eleger representantes, eles pudessem participar diretamente das
decisões acerca dos assuntos coletivos. Além de tomar as primeiras
providências para “expropriar os expropriadores”, isto é, para
transformar a propriedade privada dos meios de produção em
propriedade coletiva, como diz Marx, “desde o primeiro momento, a
Comuna teve que reconhecer que a classe operária ao chegar ao poder
não podia continuar governando com a velha máquina do Estado; que
não podia perder de novo a sua dominação recém-conquistada: a classe
operária devia, de um lado, abandonar toda a velha máquina repressiva
até então utilizada contra ela e, de outro lado, prevenir-se contra os seus
próprios mandatários e funcionários” (Marx, 1986, pp. 27-28).
Assim, logo de início, as primeiras medidas tomadas pela
Comuna trataram de afetar o Estado diretamente naquilo que mais o
caracteriza como instrumento de opressão: o “grupo armado” separado
da sociedade e a burocracia: se, por um lado, “o primeiro decreto da
Comuna foi no sentido de suprimir o exército permanente e substituí-lo
pelo povo armado” (Marx, 1986, p. 72), por outro lado, ela também não
deixou de tomar medidas que afetassem, com eficiência, a organização
burocrática do Estado. Quer dizer, a Comuna foi “composta de
conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos
distritos da cidade, responsáveis e substituíveis a qualquer momento. A
Comuna devia ser, não um órgão parlamentar, mas uma corporação de
trabalho, executiva e legislativa ao mesmo tempo. Em vez de continuar
sendo um instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente
despojada de suas atribuições políticas e, convertida num instrumento da
Comuna, responsável perante ela, e demissível a qualquer momento”. O
mesmo foi feito em relação aos funcionários dos demais ramos da
administração: “a partir dos membros da Comuna, todos que
desempenhavam cargos públicos deviam receber salários de operários.
Os cargos públicos deixaram de ser propriedade privada dos ‘testas de
ferro’ do governo central. Nas mãos da Comuna concentrou-se não só a
administração municipal, mas toda a iniciativa exercida até então pelo
Estado” (Marx, 1986, pp. 70-73). O mesmo devia ocorrer com os
funcionários da justiça. Como diz Marx, “os funcionários judiciais
deviam perder aquela fingida independência que só servira para disfarçar
sua abjeta submissão aos sucessivos governos, aos quais iam prestando
sucessivamente, e violando também sucessivamente, o juramento de
fidelidade. Assim, como os demais funcionários públicos, os
magistrados e juízes deviam ser funcionários eletivos, responsáveis e
demissíveis” (Marx, 1986, p. 73).
A Comuna de Paris, conforme o entendimento de Marx, “havia
de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França”. O
regime comunal “uma vez estabelecido em Paris e nos centros
secundários”, “o antigo governo centralizado teria que ceder lugar
também nas províncias ao autogoverno dos produtores. No breve esboço
de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver
(pode-se observar), claramente, a Comuna devia ser a forma política
inclusive das menores aldeias do país e que nos distritos rurais o exército
permanente devia ser substituído por uma milícia popular, com um
tempo de serviço extraordinariamente curto. As comunas rurais de cada
distrito administrariam seus assuntos coletivos por meio de uma
assembléia de delegados na capital do distrito correspondente e, essas
assembléias, por sua vez, enviariam deputados à delegação nacional em
Paris, entendendo-se que todos os delegados seriam substituídos a
qualquer momento e comprometidos com um mandato imperativo
(instruções formais) de seus eleitores” (Marx, 1986, p. 73). Lênin diria
que “a Comuna deixava de ser um Estado, pois que não tinha mais a
oprimir a maioria da população, mas sim uma minoria (os exploradores);
quebrara a máquina de Estado burguesa, (pois ela) já não era uma força
especial de opressão: era o próprio povo que entrava em cena” (Lênin,
1986, p. 82).
Questões para estudo:
1-Em linhas gerais, o que foi a Comuna de Paris?
2-No entendimento de Marx, o que é o Estado?
3-Em que condições se tornou possível o surgimento do Estado?
4-Por que, no entendimento de Marx e Engels, os trabalhadores devem
participar da democracia representativa burguesa?
37
5-Segundo Marx e Engels, em que condições participariam,
efetivamente, das decisões políticas?
6-Quais medidas foram tomadas pelos trabalhadores durante a Comuna
de Paris no sentido de permitir-lhes uma efetiva participação nas
decisões políticas?
7-Você concorda com esta avaliação de Lênin: “A Comuna de Paris
deixava de ser um Estado”? Explique.
Sugestões para leitura:
MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Global, 1986. (p.5197).
MARX, Karl. As lutas de classes na França (1848-1850). São Paulo:
Global, 1986a.
LÊNIN, V. I. O Estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1986.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do
Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989. (27-105)
9- A Formação da Consciência e a Ação Social
A questão central a discutir aqui se refere à formação da
consciência. Trata-se de averiguar como, no entender de Marx, ocorre o
processo de formação da consciência que os indivíduos possuem acerca
do mundo social. Marx explica o processo de formação da consciência
pela relação que os indivíduos estabelecem com o seu “ser social”, isto
é, com a situação em que se encontram no processo da produção
econômica.
A idéia de que a consciência do indivíduo se forma na sua
relação com o ser social está presente em diversos textos escritos por
Marx. No Prefácio à contribuição à crítica da economia política, por
exemplo, Marx sugere que "não é a consciência do homem que
determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina
a sua consciência" (Marx, Prefácio..., p. 301). Ao propor que é o ser
social que determina a consciência, Marx pretendia desmistificar a
filosofia Hegeliana que concebia uma evolução autônoma da
consciência. Quer dizer, na avaliação de Marx, Hegel entendia a
formação da consciência do indivíduo como um processo em que as
idéias e representações extraídas do mundo real por meio de abstrações,
transformavam-se em "sujeitos autônomos”, isto é, em idéias e
representações desvinculadas do mundo real que lhes deu origem e que
“se encarnam nas instituições e pessoas reais" (Marx e Engels, s/d, p.
89). É justamente contra estas posturas que Marx - também em suas
teses sobre Feuerbach - sugeria que "é o ser social que determina a
consciência" (Marx e Engels, 1977, p. 188). Quer dizer, ao contrário de
Hegel, para Marx a consciência do indivíduo se forma e se transforma
conforme as experiências que ele passa no processo da produção
econômica.
38
Com a idéia de que o ser social determina a consciência que os
homens têm do mundo social, Marx não só indicou o substrato social a
partir do qual emanam evoluem as idéias e representações que formam a
consciência dos indivíduos, mas também pôde mostrar a fonte das idéias
e representações divergentes e antagônicas que surgem no interior de
uma mesma sociedade. Para Marx, a formação de consciências acerca do
mundo social, distintas e antagônicas, é uma decorrência das diferentes
situações em que se encontram os indivíduos no processo da produção
econômica. Quer dizer, na avaliação de Marx, a consciência que os
indivíduos possuem sobre o mundo social varia conforme as experiências
distintas por que passam nas situações em que se encontram. São essas
experiências distintas que geram classes sociais distintas em uma mesma
sociedade.
O conceito de classe social não foi sistematicamente elaborado
por Marx. Entretanto, espaçadamente em seus textos, podem-se
encontrar elementos que permitem traçar os contornos desses
agrupamentos sociais com suas respectivas consciências de classe. No
último capítulo de O capital - capítulo não concluído pelo autor - Marx
deixa transparecer os critérios que ele estabeleceria para elaborar a
distinção entre classes sociais. Neste início de capítulo não acabado,
depois de fazer menção às "classes médias e intermediárias", Marx via
não só uma tendência de extinção dessas classes, mas também uma
tendência de a sociedade se restringir cada vez mais em apenas duas
classes distintas: proprietários e não-proprietários dos meios de
produção. Nas palavras de Marx, "vimos ser uma tendência constante e
lei do desenvolvimento do modo de produção capitalista, separar cada
vez mais do trabalho os meios de produção dispersos, ou seja, converter
o trabalho em trabalho assalariado e os meios de produção em capital”.
No Manifesto..., em nota de rodapé, Engels deixa explícito os critérios
utilizados por Marx para definir as distintas situações dos indivíduos na
produção econômica: "por burguesia – diz Engels naquela nota entende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de
produção social que empregam o trabalho assalariado. Por proletários, a
classe dos assalariados modernos que, não tendo os meios de produção,
são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver" (Marx e
Engels, 1978, p. 93). Quer dizer, para Marx e Engels, proletários e
burgueses têm consciência de classe divergentes e antagônicas, porque
passam por experiências diferentes na produção econômica. Os
proprietários dos meios de produção teriam uma consciência de classe
mais conservadora por que se encontram em uma situação de
privilegiados, situação de dominadores e de exploradores. Os
proletários, ao contrário, seriam portadores de uma consciência de classe
revolucionária, pois a experiência da exploração e da dominação a que
são submetidos na produção econômica os leva a querer mudanças em
seu ser social, ou seja, na situação de explorados e dominados em que se
encontram.
Mas como, no entender de Marx, as idéias e representações
decorrentes das situações dos indivíduos no processo de produção
econômica são por eles incorporadas formando a consciência de classe?
Para uns, a relação que Marx estabelece entre ser social e consciência é
uma relação mecânica, automática, um determinismo econômico; para
outros, ao contrário, é uma práxis, uma relação dialética entre ser social
e consciência.
É possível que estas interpretações ambíguas sejam decorrentes
do fato de alguns leitores de Marx se apoiarem em suas afirmações
isoladas sem considerar o conjunto da obra do autor, como é possível,
também, que elas decorrem das próprias ambigüidades de algumas
afirmações de Marx. Por exemplo, a afirmação de que o "ser social que
determina a consciência dos homens", vista isoladamente, não explicita
que tipo de relação se estabelece entre ser e consciência e, por isso,
deixa margens para interpretações diferentes. Aquela afirmação tanto
pode subentender que entre ser social e consciência há uma relação
direta, mecânica, automática, como se pode sugerir que, entre estes
elementos, se estabelece uma relação recíproca, dialética. No primeiro
caso, teoria do reflexo; no segundo caso, teoria da práxis.
A teoria do reflexo consiste numa das interpretações da obra
Marx que concebe as relações entre ser social e consciência como
relações mecânicas, automáticas. Para esta interpretação, as
representações que os indivíduos possuem acerca do mundo social
emanam diretamente de seu ser social, de suas situações nas relações de
39
produção e, passivamente, são por eles incorporadas. Nesta perspectiva,
por exemplo, estando determinados indivíduos em situações semelhantes
de explorados e ou de dominados no processo produtivo, necessária e
inevitavelmente as suas idéias e representações deveriam expressar estas
situações por eles vividas e experimentadas. É uma teoria que não
considera a complexidade da relação sujeito e objeto no processo do
conhecimento e que, portanto, não contempla o "lado ativo" do sujeito;
uma teoria que contempla o homem como produto, mas não como
produtor da história.
A teoria da práxis, longe de considerar que as idéias e as
representações se constituem numa relação mecânica com o ser social,
como um "reflexo" das situações de vida dos indivíduos, considera que
entre estes dois pólos, entre o ser social e consciência, há uma relação
complexa de determinações recíprocas. É esta, por exemplo, a leitura de
Antony Giddens. Giddens entende que Marx não postula uma concepção
"materialista filosófica determinista". Pelo contrário, a leitura de
Giddens sugere que, em Marx, "a consciência humana é condicionada
pela relação dialética entre sujeito e objeto, na qual o homem dá forma
ao mundo em que vive, sendo, por outro lado, por ele formado também"
(Giddens, 1984, p. 11). O próprio Marx, em A ideologia alemã, por
exemplo, enfatiza que "a produção de idéias, de representações, da
consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade
material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da
vida real (...) Os homens são os produtores de suas idéias, de suas
representações, etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham
condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças
produtivas e pelo intercâmbio que lhe corresponde (...)" (Giddens, 1984,
pp. 36-37). O que se pode concluir dessas afirmações é que, para Marx,
as idéias e as representações emanam do ser social, das condições de
existência dos indivíduos, mas são incorporadas por eles não através de
uma relação mecânica e, sim, através de uma relação dialética, de uma
práxis que se estabelece entre o sujeito e o objeto, entre a consciência e o
ser social.
É nessa relação dialética entre o sujeito e o seu ser social que
surge a possibilidade de formação dos agrupamentos sociais, ou melhor,
das "classes sociais" enquanto conjunto de indivíduos que, por estarem
em situações semelhantes no processo de produção econômica, tendem a
possuir idéias e representações semelhantes, mas, ao mesmo tempo,
divergentes e antagônicas em relação às idéias e representações daqueles
que se encontram, também, em situações antagônicas. No início, as
situações semelhantes são apenas potencialmente geradoras de idéias e
representações semelhantes. É no desenrolar da práxis daqueles que se
encontram numa mesma situação no processo produtivo que surge a
possibilidade de emergirem as idéias e representações semelhantes ou,
nos termos de Marx, a consciência de classe. Neste sentido, o
proletariado, por exemplo, passa por diversos estágios de
desenvolvimento onde os obstáculos que se interpõem à formação de sua
consciência são superados. No momento em que são lançados numa
mesma situação no processo produtivo, diz Marx, os trabalhadores ainda
constituem uma massa incoerentemente disseminada por todo o país.
Nesta etapa, mesmo encontrando-se em situações comuns, a
concorrência entre eles, a cooptação que os leva aos braços do inimigo, a
própria dispersão em que se encontram no espaço nacional, etc., não
permitem que os seus interesses e representações comuns se sobressaiam
aos seus olhos. Os interesses e as representações comuns só se tornam
conscientes para os trabalhadores com o desenvolvimento industrial.
Com o desenvolvimento da industria, os trabalhadores crescem em
número, concentram-se cada vez mais; suas condições de existência se
igualam, pois as máquinas aniquilam suas condições de trabalho; os
trabalhadores formam sindicatos corporativistas, etc., e, nesse processo,
tomam consciência de seus interesses e representações comuns,
formando, portanto, uma classe instituída em forma de partido político"
(Marx e Engels, 1978, p. 100-102), quer dizer, uma classe com idéias e
representações comuns; uma classe com consciência de classe.
40
Questões para estudo:
1-O que você entende pela seguinte proposição de Marx: “Não é a
consciência do Homem que determina o seu ser, mas, ao contrário, o
seu ser social é que determina a sua consciência”.
2-Com base na idéia de que “o ser social determina a consciência”, o
que diferenciaria a consciência dos burgueses e a consciência dos
proletários?
3-O que você entende por teoria da práxis?
Sugestões para leitura:
MARX, K. e ENGELS, F. A sagrada família. São Paulo: Martins Fontes,
s/d.
MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. In.: LASKI,
Harold, O manifesto comunista de Marx e Engels. 2a ed., Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa Omega, s/d.
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. 6a ed., São Paulo: Hucitec,
1987.
MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1980.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989.
10- A Transformação Social
Trata-se de mostrar, aqui, como Marx explica o processo de
transformação social. O homem, na avaliação de Marx, é um sujeito ativo
no processo de transformação da sociedade ou a sociedade evolui
independentemente na vontade humana? A concepção de Marx a respeito
desta questão também está relacionada com a crítica que ele dirige à
filosofia hegeliana. Enquanto Hegel concebe a transformação social como
uma decorrência da evolução das contradições que ocorrem em nível das
idéias, ou seja, do espírito absoluto, para Marx, o processo de
transformação social deriva das contradições que ocorrem na própria base
material da sociedade e da luta de classes que nela se desenvolve. Quer
dizer, como se verá a seguir, para Marx o homem faz a sua história, mas a
faz dentro de certas condições.
Assim como há duas interpretações diferentes do pensamento de
Marx acerca da formação da consciência do indivíduo, há também duas
interpretações distintas acerca de sua explicação da transformação
social. Conforme se coloca, por exemplo, em defesa da teoria do reflexo
ou em defesa da teoria da práxis – enquanto teorias de formação da
consciência - se coloca em questão duas concepções diferentes de
transformação social. De um lado, uma concepção que limita as ações do
sujeito às determinações estruturais e que, portanto, associa o processo
de transformação social ao processo de desenvolvimento econômico e,
de outro lado, uma concepção que faz do sujeito um agente da
transformação social. Se, aparentemente, é possível fazer ambas as
leituras nos textos de Marx, parece que o mais correto seria qualificar a
sua concepção de transformação social no segundo sentido, ou seja,
como uma teoria da práxis, como uma concepção que contempla uma
relação dialética entre infra-estrutura e superestrutura, entre ser e
consciência, enfim, uma relação onde o homem é considerado como
41
sujeito ativo no processo transformação: um sujeito que, dentro de certas
circunstâncias, influi na transformação social. Quer dizer, neste último
caso, a transformação social ocorreria na medida em que as contradições
que se manifestam na base material da sociedade dessem origem a
determinadas formas de consciência e, conforme essa consciência, os
homens, ou melhor, as classes sociais lutassem entre si pela conservação
e ou pela transformação do mundo social.
Na crítica que faz aos Princípios de filosofia do direito – obra
escrita por Hegel – Marx havia chegado à conclusão de que o processo de
transformação social não é outra coisa senão o processo de
desenvolvimento das forças produtivas e o seu inter-relacionamento com as
relações de produção e as formas ideológicas. O trecho é longo, mas vale a
pena citá-lo na íntegra: Naquele trabalho, diz Marx: “O resultado geral a
que cheguei e que - uma vez obtido - serviu de fio condutor para os meus
estudos, pode resumir-se assim: na produção social de sua vida os homens
contraem determinadas relações necessárias e independentes de suas
vontades, relações de produção que correspondem a uma determinada fase
de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas
relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base
sobre a qual se levantam as superestruturas jurídicas e políticas e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. Ao chegar a
uma fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade
se chocam com as relações de produção existente, ou, o que não é senão a
sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se
desenvolveram até ali. De forma de desenvolvimento das forças
produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas, e se abre,
assim, uma época de revolução social” (Marx, Prefácio..., p. 301). É, pois,
nestes termos que Marx entende o processo de transformação social e que,
através deles, analisa os diversos tipos de sociedades.
Essa concepção de transformação social postulada por Marx foi
demonstrada, com muita clareza, em suas análises sobre o
desenvolvimento do capitalismo. Da mesma forma que o desenvolvimento
dos modos de produção anteriores, o desenvolvimento do "modo
capitalista de produção" se caracteriza pelas contradições que se
estabelecem entre forças produtivas e relações de produção. No
capitalismo - como nos outros modos de produção - o desenvolvimento das
forças produtivas provoca simultaneamente dois fenômenos interrelacionados: de um lado a contradição entre a produção e o consumo e, de
outro lado, a contradição ou antagonismo entre os interesses das classes
sociais.
No capitalismo, a contradição entre a produção e o consumo é
fruto do longo processo através do qual os capitalistas procuram atender
às suas imperantes necessidades de lucro. Para atingir estes propósitos,
os capitalistas, por um lado, promovem o desenvolvimento das forças
produtivas investindo em tecnologia em geral e, por outro lado,
promovem a exploração da força de trabalho através da extração da
mais-valia absoluta e da mais-valia relativa. Destas atitudes dos
capitalistas resultam um acréscimo extraordinário na produção e uma
queda gradativa do mercado consumidor, quer dizer, uma crise de
superprodução. Se os salários, necessários para o mercado consumidor,
não podem subir - pois isto significaria um acréscimo do capital variável
e, portanto, uma "queda da taxa de lucro" – a saída dos capitalistas é a
redução da produção via cancelamento dos investimentos, demissão dos
trabalhadores, etc. O resultado destas atitudes é a redução ainda maior
do mercado consumidor e, enfim, o reinício de um ciclo descendente
onde, no final, a crise se instaura com maior vigor, até que o sistema
ganhe novas forças e se restabeleça ou, então, sucumba (Marx, 1980,
Vol. 4, p. 239-305).
Ao longo do desenvolvimento das forças produtivas, além da
contradição que se estabelece entre a produção e o consumo, as
contradições ou antagonismos de classes também se instauram. Quer
dizer, os capitalistas, ao procurarem atender às suas necessidades de
lucro, não apenas provocam o acirramento da contradição entre a
produção e o consumo, mas também a degradação de uma classe social
que, alienada no processo produtivo, desenvolve interesses antagônicos
aos seus. Nesse sentido, diz Marx, "a burguesia forjou não apenas as
armas que representam a sua morte; produziu também os homens que
manejarão estas armas – o operariado moderno – os proletários" (Marx e
Engels, 1978, p. 99). Na sua busca de lucro, os capitalistas não só
destituem os proletários de seus meios de produção, mas também
42
ultrajam as suas condições de existência explorando a sua força de
trabalho e eliminando o seu poder de decisão sobre o processo de
produção e de distribuição. Se, no início, esses trabalhadores, por serem
em número pequeno e disperso, não têm consciência de suas condições
degradantes de existência, ao longo do processo crescem em número,
concentram-se no espaço e, em sua práxis política, adquirem consciência
de suas situações comuns de explorados e dominados, bem como
adquirem consciência das situações comuns - de exploradores e de
dominadores - de seus adversários. Enfim, simultânea e intimamente
ligado ao desenvolvimento das forças produtivas desenvolve-se, por um
lado, a classe dos capitalistas e, de outro lado, a classe proletária. De um
lado, uma classe que quer manter as suas condições privilegiadas de
existência, de outro lado, uma classe que pretende promover mudanças
profundas em suas condições degradantes de existência; uma classe que
pretende libertar-se de seus grilhões.
O desfecho dessas contradições – contradições entre forças
produtivas e relações de produção e antagonismo de classes – vai
depender das circunstâncias históricas. Objetivamente, as contradições
entre forças produtivas e relações de produção podem aprofundar-se
gerando uma grande crise de superprodução, sem que, necessariamente,
resulte dessa super-crise uma transformação profunda nas relações de
produção. Essa transformação profunda nas relações de produção só
ocorreria no contexto em que, paralelamente ao desenvolvimento dessas
crises cíclicas do capitalismo, a classe dominada – no caso, o
proletariado - interessada em mudar as relações de produção, tivesse
desenvolvido sua consciência de classe, isto é, tivesse descoberto as
verdadeiras causas da crise, as verdadeiras causas da sua situação de
explorada e de dominada, bem como tivesse conhecido quem são os seus
algozes – os proprietários dos meios de produção e tivesse, enfim, se
constituído em um forte partido de classe.
Em outras palavras, uma transformação radical da sociedade só
aconteceria no contexto em que, ao lado da crise de superprodução, a
classe dominada e explorada tivesse uma consciência de classe
desenvolvida. Neste contexto de condições objetivas e subjetivas
adequadas, a classe dominada – o proletariado – teria interesses em
promover mudanças significativas nas relações de produção capitalistas
que emperram o desenvolvimento das forças produtivas e, então, através
de sua atuação como classe organizada, desencadearia a revolução
social. Através do uso da força, o proletariado conquistaria o poder
político e – destituindo os proprietários de seus meios de produção –
promoveria as devidas mudanças nas relações de produção, ou seja, a
devida transformação da propriedade privada dos meios de produção em
propriedade coletiva e a gradual transformação do homem capitalista em
homem comunista, do homem egoísta, em homem coletivista. Esse
processo de transição do capitalismo para o comunismo foi denominado
por Marx por “socialismo” ou “ditadura do proletariado”. O comunismo
seria a etapa seguinte do processo de transformação da sociedade, onde,
não havendo mais a propriedade dos meios de produção, não haveria
mais as classes sociais e, portanto, nem mesmo o Estado - enquanto
instrumento de dominação de uma classe sobre a outra – teria mais razão
de existir.
Em síntese, pode-se dizer que, para Marx, a transformação
social consiste em um processo impulsionado pelas contradições que se
estabelecem entre forças produtivas e relações de produção. No início do
desenvolvimento do modo capitalista de produção, as relações de
propriedade possibilitam o desenvolvimento das forças produtivas, mas,
no decorrer do processo, as próprias relações de propriedade tornam-se
um estorvo ao seu contínuo desenvolvimento. No bojo desse mesmo
processo, desenvolvem-se as classes sociais com interesses antagônicos
e que lutam entre si para conservar ou para transformar a sociedade
existente. Conforme o desenrolar dessas lutas, ocorreria, então, a
transformação da sociedade.
Questões para estudo:
1-Em linhas gerais, como Marx entende o processo de transformação
social?
2-Em linhas gerais, como Marx analisa o processo de desenvolvimento
do capitalismo?
43
Sugestões para leitura:
ENGELS, Friedrich. Barbárie e civilização. In: ENGELS, F. A origem
da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984. (p. 177-201)
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In.:
LASKI, Harold. O Manifesto Comunista de Marx e Engels. 2a ed., Rio
de Janeiro: Zahar, 1978. (p.79 –124)
MARX, Karl. e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 6a ed., São Paulo:
Hucitec, 1987.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
GIDDENS, Antony. Capitalismo e a moderna teoria social. Lisboa:
Presença, 1989.
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