Sociedade - uma realidade complexa

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Capítulo 9
Sociedade: uma realidade complexa
Aproveitamos o embalo da discussão sobre o conceito de “relação” para discutir o que seja uma
sociedade. Vamos nos concentrar, nesta anâlise, no que seja uma sociedade global”, isto é, uma
formação social que, nomalmente, é considerada como autônoma, independente, com
características políticas e culturais próprias, como veremos a seguir. Nesta nossa caminhada
estamos como que partindo, aparentemente, de extremos, isto é, da consciência, do serhumano,
chegando agora ao outro extremo, a sociedade. Mas insistimos que isto é apenas aparente. O que
pretendemos é sugerir que é possível, através do conceito de relação,visualizar um possível
centro, ou um denominador comum, que consiga estabelecer uma síntese dialética. Nosso
esforço, até aqui, foi tentar demonstrar que não é possível compreender o ser humano, nem o
grupo (comunidade), fora da relação. Argumentamos agoraque é também o conceito de relação
que nos poderá ajudar no entendimento do que seja uma sociedade global. É por isso que no
quadro geral do capitulo 1 esse conceito foi colocado no centro de nossa caminhada (Ver
capitulo 1,0 Quadro 1).
Muitos poderão ser levados a pensar que essa discussão teria mais a ver com a Sociologia.
Espero que fique claro, contudo, que o que pretendemos é construir uma Psicologia Social e
mostrar que há um campo de estudo específico, que supera os aparentes extremos de uma
Psicologia e de uma Sociologia; tal Psicologia Social é construída a partir do potencial teórico
do conceito de relação, como central para a compreensão desse objeto-domínio.
O que seria, então, uma sociedade? Estamos, novamente, diante de algo “misterioso” e não será
possível jamais entender o que seja uma sociedade em sua totalidade. Mas podemos penetrar
aos poucos nesta realidade complexa.
Já mostnmos, no capítulo anterior, e pensamos terpodidojustificar,
que a matéria-prima de um grupo são as relações. Podemos dizer o mesmo de uma sociedade, O
que define uma sociedade não é o espaço físico,
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ou geográ&o. Evidentemente, para que haja uma sociedade é preciso que haja um espaço físico.
Mas não vai ser ele o elemento que irá defini-la:
muitas sociedades diferentesjá se sucederam num mesmo espaço físico. Também não é um
determinado tipo de pessoas, de populaçào. Quanto mais investigarmos, mais constataremos que
são as relações que se dão entre as diversas pessoas e os diversos grupos de pessoas que vão
gerar situações de vida social que irão identificar e singularizar uma sociedade global. Mesmo a
cultura, como procuraremos demonstrar posteriormente (capitulo 13) são relações sociais que se
instituiram. Mas vamos devagar:
Analisemos qualquer grupo social mais amplo. Veremos que alise verificam diferentes
tipos de relações: amizade, colaboração, conflito, dominação. Algumas dessas relações
podem ir desaparecendo aos poucos, outras se modificam e outras, ainda, se fixam, se
estabilizam até certo ponto, pois uma relação nunca chega a cristalizar-se totalmente, a
absolutizar-se; deixaria de ser ‘relação”, pois de “relação”vem “relativo” e o relativo é o
contrário do absoluto. Tais relações que vão se corporificando podem dar-se, conforme
ocaso, apenas em alguns grupos de uma sociedade global. Mas através do potencial de
influência de tal grupo sobre os demais grupos, tais relações vão se generalizando e,
eventualmente, tornando-se hegemónicas; passam, pode-se dizer, a serrelações de toda
uma sociedade. Pode-se constatar, também, que em algumas sociedades mais
tradicionais essas relações são mais fixas, estáveis; em outras, são mais tluidas e se
modificam rapidamente. Mas, e é isso que nos interessa aqui, qual a origem dessas
relações?
Antes de responder à pergunta acima, uma nota importante. E preciso deixar claro que
há várias concepções do que é uma sociedade. Iremos discutir ao menos duas, que são
as mais comuns: a primeira, que assumimos e seguimos aqui, é a de que uma sociedade
se define a partir de suas relações; essa é a concepção histórica, dialética, critica. A
segunda assume a sociedade como algo já pronto, construido; não se pergunta pelas
razões de uma sociedade ter chegado ao que é; em geral, define-se a partir do que diz a
Constituição de um país. Esse é o enfoque positivista, flincionalista, ou sistêmico, que
vê as sociedades como sistemas fechados, estáticos. Vamos darum exemplo. Alguns
livros de OSPB (Organização Social e Política Brasileira) definem o Brasil como sendo
uma república federativa, constituída por tantos estados, governada por tais poderes
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etc. Errado? Não. Mas esta definição só diz “o que está aí”, “como ftinciona”. Não se pergunta
por que tal sociedade chegou a ser como é.Já outros livros, escritos dentro de uma teoria
histórica e critica, dizem que o Brasil é um modo de produção capitalista (e alguns acrescentam
até “dependente”, para mostrar sua relação com outros países do mundo). O que acrescenta esta
segunda visão à primeira? Além de dizer tudo o que a primeira diz, acrescenta ainda a
explicação de por que o Brasil é uma república. Como assim? Pois agora vem avantagem de se
definir sociedade a partir das relações e onde está a origem dessas relações. Vejamos:
Não é dificil constatar que as relações entre pessoas e grupos, numa sociedade, nem sempre são
tranqüilas e pacificas. Muitasvezes, diria até na maioria das vezes, são de tensào, pois as pessoas
e os grupos são diferentes e há sempre idéias diferentes. Essa é nossa condição humana:
somos diferentes, pensamos diferentemente. Agora, não é sempre possível, nem suportável a
longo prazo, que as coisas continuem eternamente em conflito. Em geral, tenta-se chegar a
alguma solução, a um acordo. Estabelece-se uma negociação e decide-se que as coisas, então,
serão de detenninada maneira. O que acabou de ser criado? E o que se costuma chamar de
“superestrutura” (desculpe o termo). Mas superestrutura é tudo aquilo que é gerado, criado,
constituído, negociado, às vezes por acordos pacíficos, outras através de conflitos sangrentos e
que se transforma numa espécie de regulamentação, legislação, escrita ou tÁcita. Veja você:
todas as normas, leis, tradições, lendas, mitos, legitimações, decisões, acordos, negociações etc,
são fruto das tensões que existiram, ou existem, entre as pessoas e grupos. Dessas tensões
brotarn, por assim dizer, alternativas, novas sugestões, criações, novas idéias, ideais,
expectativas, que formam aquela dimensão legitimadora, sacralizadora, justificadora e
motivadora de uma sociedade. Quando tais idéias e ideais se materializam, até certo ponto,
temos o que se costuma chamar de “instituições”. Nenhuma instituição caiu do céu pronta, ou é
fruto degeração espontânea. Elas têm sua origem nas tensões existentes entre os membros e
grupos de determinada sociedade. Resumindo: é das relações de tensão existentes dentro de uma
sociedade que nascem as instituições que têm como função a continuidade e legitimação dessa
sociedade. Uma dessas instituições é o Direito (a Constituição), que também é fruto dessas
tensões.
Dentro desse referencial é possível, agora, compreender por que
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uma teoria histórica, que diz que o Brasil é uma formação social capitalista, diz mais do que uma teoria
que diz que o Brasil é uma república. Todo governo e todo regime são instituições. Determinados tipos de
governos ou regimes passam a se “institucionalizar” como resultado de negociações entre diferentes
grupos sociais. Veja ocaso do Brasil. Os grandes proprietários de terras, plantadores de café e criadores de
gado, não estavanl mais satisfeitos como império, com seus impostos e certos privilégios. Começaram a
surgir tensões na sociedade. Favorecidos pelos ventos liberais que sopravam por todo mundo, diferentes
grupos sociais acharam que era tempo de mudar as instituições políticas e substftuir o império por uma
república. Foi o que se fez. E a Constituição Republicana que foi escrita como resultado dessas tensões,
reflete as idéias e valores destes novosgrupos. Concluindo, então: se eu digo que o Brasil é uma república.
não estou errado, mas digo apenas o que está aí. Agora, se digo que o Brasil é uma formação social
capitalista, digo que o Brasil é uma república e ao mesmo tempo mostro por que é uma república, pois se
originou das tensões sociais existentes em determinada época histórica; em outras palavras, são as tensões
sociais que vão determinar se um pais se torna república, parlamentarismo, monarquia, ou qualquer outro
regime, dependendo de quem tem mais força e poder nessas relações de tensão. E sao as relações sociais
de tensão existentes nesses países que vão propiciar também a emergência de possíveis mudanças.
Uma questão interessante é questionar em que pontos, ou a partir de que razões, estas tensões se criam.
Há aqui muita discussão. O assim chamado materialismo histórico defende que são as tensões que se dão
nas relações de produção, na economia, e que essas seriam as relações mais importantes e até
determinantes. Que dizer disso? Dentro dessa discussão, é meu parecer que se é certo que “sem comer
ninguém vive” e que uma sociedade, para se reproduzir, necessita de determinadas condições materiais,
nem por isso essas relações que se dão na produção necessitam ser sempre as determinantes; pode-se se
dar ocaso em que relações que se dão na política, até mesmo no campo religioso, sejam as preponderantes
em determinado momento histórico e influenciem até mesmo na mudança das relações económicas. Se as
relações econômicas sao necessárias, nem sempre são suficientes, O que acontece, na maioria das vezes, é
que há sempre um complexo de relações que se organizam ao redor de determinado problema e que
relações de um tipo único, como
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as econômicas, politicas ou religiosas, nunca sobrevêm isoladas umas das outras.
Uma sociedade vista a partir das relações é, portanto, algo complexo e dinámico, algo
em continua ebulição. Para que se mantenha detenninada estabilidade é necessário que
os que detém o poder nessa sociedade, isto é, os que têm mais peso e recursos nessas
relações, criem sempre mais instituições, ou reforcem as que já existem.
As instituições que foram e vão sendo criadas na ‘superestrutura” de uma sociedade são
de diferentes tipos. Podemos distinguir ao menos entre dois grandes grupos: o primeiro
é formado por instituições que usam a força, a coerção, a repressão, até mesmo o
emprego de armas. Exemplo dessas instituições são os exércitos, os diferentes tipos de
policias (militar, civil etc.), os vigilantes, os tribunais onde se condenam e punem os
que supostamente não cumprem as leis instituídas, as prisões, enfim, todas as que
empregam medidas de coerção baseadas na coação e na força.
Mas essas instituições não são as mais importantes; a elas se recorre apenas em último
caso, quando não há outro recurso. As mais importantes são as chamadas de
ideológicas, que empregam a persuasão, os mecanismos de manipulação, legitimação
etc. E estas são inúmeras. Por exemplo, a família. Cada sociedade institui um
determinado tipo de família, cuja função é reproduzir os valores e as práticas centrais
dessa sociedade. Sabe-se da importância dos primeiros anos na construção da
subjetividade das pessoas. Isso não quer dizer que as flimifias sejam todas homogêneas,
de modo algum. Existem famílias que não concordam com os valores, normas, práticas,
às vezes nem mesmo com o regime político dominante da sociedade em que estão
inseridas. Elas podem ser contraditórias dentro dessa sociedade. A contradição que está
presente nas relações básicas de um modo de produção, no nosso caso as relações de
dominação e de exploração, reproduz-se também nas instiftições que são criadas a partir
dessas tensões. Mas, como norma geral, a família tende a reproduzir as relações centrais
de uma sociedade.
Outras instituições encarregadas de legiümar,justificar, reproduzir, sacramentar as
relações que se tornaram dominantes são as escolas, as igrejas, os meios de
comunicação social, as instituições esportivas, as cívicas e, de um modo geral, as
entidades assistenciais. Cada uma dessas instituições teve, ou tem, seu momento
importante em determinadas cir72
cunstáncias. Houve um tempo em que a Igreja Católica exercia grande influência na sociedade brasileira e
era como que a insfituição legitimadon dos padrões e comportamentos sociais. Aos poucos foi sendo
substituida por outras instituições. Isto não quer dizer que ainda hoje em alguns países determinadas
igrejas não exerçam uma influência preponderante no conjunto da sociedade, ou ao menos sobre
determinados grupos mais ligados a elas. Igualmente, houve o tempo áureo das escolas. Em situações de
crise, ou de governos fortes, as instituições cívicas passam a ter papel preponderante na manutenção da
coesão das sociedades. E assim por diante (49).
Há uma instituição, contudo, que nos dias de hoje exerce um papel de extrema importÂncia: são os meios
de comunicação social. Numa épocade profundo desenvolvimento das tecnologias, principalmente as da
informação e comunicação, essa instituição está assumindo papel cada vez maior. Vamos dedicar a ela
um capítulo especial, tal a sua importância (ver capítulo 11).
Numa análise mais cuidadosa, vamos dar-nos conta de um fato curioso: são principalmente as instituições
ideológicas que ocupam este espaço privilegiado entre o que, supostamente, possa ser considerado como
individual ou social, poisjávimos que essa dicotomia não se sustenta dentro de nossa perspectiva. Mas são
realidades que podem ser percebidas “nas mentes e na mídia”, na feliz expressão de Moscovici. E é este,
especificamente, no nosso ponto de vista, o campo de uma Psicologia Social que queira superar os
extremos do psicologismo e do sociologismo. Nos capítulos que seguem, portanto, vamos
selecionaralgumas dessas dimensões sociais que poderiam ser consideradas “intermediárias”, formando
uma ciência do “entre” (ver nota 1). Selecionamos aspectos que, pode-se dizer, perpassam toda uma
sociedade. Selecionamos e analisamos, entre dezenas de outras, quatro delas: a própria ideologia, a
comunicação, as relações de poder e a cultura. Não foi fácil fazer esta escolha. Mas o tamanho que
planejamos para esta publicação nos obrigou a isso.
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