A chacina da Candelária

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A chacina da Candelária
A
matança de oito menores na Candelária, ocorrida em 23 de julho próximo
passado, abalou sobremaneira as emoções e estimulou a indignação de todos os
que tiveram espaço na mídia para externar seus sentimentos e opiniões:
artistas, escritores, cientistas sociais, políticos, líderes religiosos etc. Impressionante
foi o consenso, parecendo uma só voz clamando por justiça. Do outro lado, como
sempre, a resposta uníssona dos responsáveis pela segurança pública — e até do
próprio governador — prometendo eficácia nas investigações e a prisão dos
matadores, como se isso bastasse — e, talvez, quem sabe, até baste — para saciar a
opinião pública. Mas que opinião pública? Será a refletida em jornais e algures? Será
que tanta concordância entre os notórios e as autoridades públicas ao manterem o
foco nos matadores traduz a real dimensão da indignação genérica da população? Ou
tudo isto não passa de opinião da imprensa e de alguns famosos?
A par da brutalidade do ato, resultado, sem dúvida, da anarquia social que se
vivencia no Brasil no tocante à violência e ao crime; a par da constatação de que a
Região Metropolitana do Rio de Janeiro apresenta-se como a melhor síntese da
insegurança pública brasileira, há de se discutir essa questão racionalmente, a fim de
aprofundá-la tanto quanto sua gravidade o exige. Não é mais caso de "filosofar" em
razão do fato ocorrido, como se ele fosse isolado, único, sem precedentes, e muito
menos responder a isto somente cobrando soluções punitivas para os criminosos. Toda
essa reação emocional pode provocar uma outra chacina, a moral, caso os
emocionados acabem fabricando culpados para responder às pressões da imprensa. E,
até agora, é o que parece acontecer...
A Chacina da Candelária não é um mero problema policial ou judicial. É social e, por
via de conseqüência, político. Em primeiro lugar, há a realidade inconteste da presença
de milhares de menores nas ruas já "socialmente chacinados" pela indiferença do
Estado e da sociedade. A esses menores, muitos na tenra idade, nada lhes é
efetivamente destinado. O poder público não dá a mínima para essas crianças no
cotidiano de suas miseráveis vidas. Na verdade, nem sabe quantas são, bem como
esta imensa população de crianças e jovens não recebe qualquer atenção relevante por
parte da sociedade. Entretanto, devem-se ressaltar as ações isoladas de alguns
altruístas geralmente aclamados pela imprensa (os mitos da “salvação”), porém sem
qualquer efeito global no sentido da solução do problema.
Neste ponto, é imperioso constatar que entre os menores abandonados há inúmeros
que já ingressaram no crime; ainda há os que cresceram bastante, com todas as
características de maioridade, mas sem registro de nascimento que possa prová-la. Ou
seja, são literalmente criminosos sob o aspecto jurídico-penal: assaltantes, traficantes,
ladrões de carros, de residências etc., mas permanecem hipocritamente denominados
como “menores infratores”. Esses jovens são tão ou mais perigosos que os adultos:
usam armas de fogo, matam com frieza e circulam livremente entre adultos e crianças,
formando um perigoso elo entre estas e bandidos calejados. Esses adolescentes estão
misturados aos menores carentes porque, na verdade, já antes ocuparam essa mesma
condição aviltante de marginalizados. Desta maneira, o menor criminoso mistura-se ao
carente e com este é confundido, o que permite ao primeiro gozar da impunidade e
alcançar apreciável desenvoltura no mundo do crime. Ora, na verdade eles são não
mais que frutos podres caídos da árvore da impunidade. Em minoria, não são vítimas
da sociedade, não sendo demais lembrar que marginal e marginalizado são condições
sociais distintas. Igualá-los é generalizar a exceção representada pelo marginal.
Num país decente há de prevalecer o império da lei para que se possa garantir a
convivência pacífica entre os cidadãos. Caso contrário é o caos, a anarquia, a bagunça,
a desordem pública, incompatíveis com a paz social. Daí ser função-síntese do Estado
o exercício da segurança pública. Afinal, ao poder público, que detém (ou deveria
deter) o monopólio do uso da força, compete coibir os antivalores e riscos à segurança.
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Isto é feito por meio de instituições que compõem um específico sistema: Polícia,
Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública, Sistema Carcerário, demais de outras
estruturas e meios legais. É através desse complexo instrumental funcionando que o
Estado faz prevalecer o império da lei inibindo a impunidade, respeitados, é óbvio, os
direitos e garantias individuais, sendo certo que o interesse coletivo é tão relevante
que os direitos e garantias individuais não lhe podem superar em valor. Isto é o que
chamamos de ordem pública.
Contudo, para que esses mecanismos coercitivos do Estado não exacerbem é
imprescindível que o poder público privilegie a utilização de seus melhores
instrumentais de promoção social, de modo a garantir qualidade de vida para ricos e
pobres, adultos ou crianças. A antecipada eficácia da promoção social evita a tomada
de posição no campo do controle social, pois naturalmente prevalecerá a ordem
pública. Mas quando a promoção social falha — é sem dúvida o que ocorre no Estado
do Rio —, emerge o clamor por ação repressiva dos subsistemas de controle social que
se integram ao sistema de segurança pública; e quando ambos (promoção e controle
sociais) falham, predomina a desordem pública.
A chacina da Candelária é puro efeito da desordem pública decorrente da inércia dos
responsáveis por tirar as crianças das ruas (carentes e infratoras). Por isso, não
devemos restringir as críticas a chacinadores, sejam ou não policiais, isto já é sabido,
é lugar-comum, não são poucas as matanças coletivas no Rio de Janeiro a
confirmarem o risco de se viver aqui. Por outro lado, o conceito de chacina deve,
também, considerar o somatório de crimes de morte que não tenham sido cometidos
na mesma hora e no mesmo lugar, mas num período de tempo adrede considerado,
geralmente um mês, para fins estatísticos. O que se pretende afirmar é que a
população do Rio de Janeiro está assolada por algo muito mais grave. A chacina da
Candelária é apenas uma dentre muitas outras conseqüências da omissão estatal.
Há, sem embargo, a matança generalizada de pessoas (anônimas, criminosas ou
não) diariamente no Rio de Janeiro. E não importa se os matadores são policiais, expoliciais ou bandidos. Não importa quem mata quem. Afinal, o conceito de homicídio é
um só, e ampliar o preconceito em relação a policiais, como a imprensa vem fazendo,
é risco ainda maior, pois significa, em outras palavras, uma tentativa de justificar a
prática de crimes por bandidos — que é predominante —, como se isto fosse normal e
decorrente apenas da "crise social". E é assim que toda a imprensa se comporta: dá as
primeiras páginas e maiores espaços a crimes praticados por policiais, ao mesmo
tempo em que destina espaços menores e no miolo dos jornais os crimes – em maior
número – praticados por bandidos. É a regra geral, que vale para rádio e tevê.
Também não adianta criticar toda a polícia devido à ação episódica e isolada de
pequenos grupos de policiais desviados. Mas a verdade é que isto é feito por
autoridades públicas para dissimular seus próprios equívocos. E a imprensa,
imediatista, preconceituosa e mercenária, não se aprofunda e engole a isca. Assim,
prendem-se todos à superfície do problema; nada é investigado, e a imprensa divulga
apenas o foco da luz que lhe é espertamente jorrada por essas incompetentes
autoridades públicas. E tome emoção e indignação, enquanto outras chacinas já estão
ocorrendo, pois toda essa "opinião publicada" parece realmente não refletir a realidade
maior: a revolta.
A questão crucial das matanças — a chacina da Candelária é apenas mais uma —
encerra-se num só conceito social, que tanto pode ser considerado efeito como causa:
a revolta da população com a insegurança pública! Eis o foco desta nossa reflexão.
Para começar, é bom lembrar que o conceito social de revolta não se prende a leis e
regras ou a outros fatores de legalidade ou moralidade. Outra característica da revolta
é sua internalização preliminar, de caráter individual, o que lhe empresta significado
perigosíssimo. O revoltado, mesmo não externando comportamento visível, mantém
consolidadas suas atitudes em relação à situação revoltante, que fica latente até a
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explosão. Quando a explosão é individual, é fácil controlar e aplicar a punição. Mas
quando é coletiva, dependendo dos fatores envolvidos, a revolta provoca até
revoluções, mudanças de regimes e outros fenômenos sociais incontroláveis. Repito:
não interessa ao sublevado a legalidade ou a moralidade. Daí os linchamentos, as
chacinas, as turbas etc. Em nome da revolta, o povo mata e morre, descontrola-se e
busca seus objetivos sem qualquer preocupação com punição. E o policial passa a ser
influenciado por discursos do tipo: “Tem que matar!” E muitos matam, mesmo!
Há uma inconteste revolta no seio da sociedade, assim como o ambiente de revolta
nas polícias civil e militar é máximo. A sociedade não agüenta mais a violência e seus
efeitos diretos: assaltos, assassinatos, seqüestros, furtos de automóveis, roubos de
bancos, de cargas, tráfico de drogas etc. Idosos e crianças são constantemente
atacados por bandidos. Mas as numerosas vítimas não são famosas. Por isso são
ignoradas pela imprensa. A elas não é dada nenhuma chance de se manifestarem
publicamente. Não fazem parte da "opinião publicada".
Há revolta, sim! E para a população, incluindo-se a polícia, não mais importa se os
criminosos são adultos ou crianças, pois estas últimas têm sido as principais vítimas —
até fatais — da arrogância dos criminosos, principalmente dos menores infratores. As
crianças não podem mais ir à escola com segurança. São roubadas com violência; seus
tênis, relógios e mochilas são arrancados e, às vezes, elas são deixadas nuas nas ruas,
sem falar nas sérias ameaças à própria vida de muitas crianças cuja "culpa" é não
serem carentes nem abandonadas.
Essas crianças não querem mais ir ao colégio; elas têm medo, doentio e
insuperável. Também os idosos estão assustados: seus pertences são brutalmente
arrancados por criminosos, menores ou não. Eis por que estão todos revoltados:
idosos, crianças, pais, filhos, amigos e parentes que formam o grupo designado
socialmente como população (os “sem-mídia”). Do outro lado, tem-se uma polícia
vencida pela impunidade oficial, desestimulada pelas autoridades públicas, execrada
pela mídia e pressionada pela população — a real opinião pública — para agir com
rigor contra a marginalidade. E também a polícia está revoltada.
Mas os discursos dos notórios na imprensa insistem em "justificar" tudo isso
simplificando o crime em função da "crise social", das "injustiças sociais", da "fome",
da "miséria" etc. Insistem em contrastar riqueza e pobreza como se fosse crime ou
falta grave não ter sido marginalizado pela sorte. Hoje, a impressão que se tem é a de
que possuir uma bicicleta, um relógio digital, uma mochila bonita ou um belo par de
tênis significa crime da sociedade sadia contra os socialmente excluídos. Mas, que
pensam os parentes das vítimas? E os comerciantes assaltados, seqüestrados e mortos
pelos bandidos que se inserem em anonimato entre os excluídos? Que pensam os
amigos e parentes dos vitimados?... Ora, impunidade é via de mão dupla. Estão todos
assustados, com temor generalizado de andar nas ruas, nos ônibus etc. Os cidadãos
não sabem mais que fazer: a solução não lhes pertence. Casas e edifícios estão a mais
e mais gradeados. Os cidadãos do Estado do Rio de Janeiro estão literalmente presos e
os bandidos, soltos. Só lhes resta a revolta. Como?...
Fazer, mandar fazer, pagar para fazer justiça pelas próprias mãos em cobranças
diretas contra o crime são comportamentos corriqueiros entre cidadãos revoltados e
policiais indignados. Tudo, porém, é também conseqüência da impunidade. Afinal de
contas, impunidade não é privilégio só de marginais: e, se de um lado a "crise social"
serve para "justificar" o crime, do outro a revolta tem-se demonstrado suficiente para
"explicar" as reações restritas à punição ou à exaltação dos matadores. De resto, nada
importa, o que interessa aos meios de comunicação é apresentar um vilão em oposição
a um herói (ou vice-versa, tanto faz) para noticiar a existência do fato e do autor ao
modo sensacionalista deles. Todavia, essas manifestações críticas ou jubilosas
divulgadas pela mídia não resolvem o problema: a certeza da impunidade atende a
ambos os lados.
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Chacinadores são criminosos bárbaros? Ora, são sim, não há dúvida!... Mas, e
daí?... Quem são os chacinadores? São os que ceifaram a vida dos menores da
Candelária, somente? Mas, que vida? O que eles viviam antes da morte era vida? Não!
Eles já estavam "chacinados" pelo Estado e pela sociedade. E hoje, por culpa do poder
público, nem as crianças não abandonadas têm oportunidade de vida segura e digna.
O que se vê é a anarquia! É a revolta de ambos os lados — sociedade sadia e
sociedade doente —, com o Estado falido e falhando como mediador das relações
sociais. E a revolta não mais se incomoda com discursos vazios e “opiniões
publicadas”; não liga mais para a indignação de "donos da verdade" só porque são
famosos.
A matança da Candelária não é problema isolado. Enquanto não houver o
predomínio da lei em oposição ao proselitismo político, em ações sistemáticas e
realistas contra os criminosos em geral, a impunidade prevalecerá, e com ela a revolta
e outras chacinas*. Mas, se o crime for combatido com o máximo rigor, ao mesmo
tempo em que o poder público retirar das ruas as crianças carentes e as infratoras,
não haverá mais chacinas.
* No mesmo mês (30/31 ago 93), eclodiu a chacina de Vigário Geral em reação ao
covarde assassinato de quatro policiais civis da 39ª DP e quatro policiais-militares do
9º BPM dias antes.
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