PORTAS POR TRÁS DAS PORTAS: SETE ABORDAGENS TEMÁTICAS A PARTIR DO GRUPO THE DOORS Nísio Teixeira - UFMG1 Introdução In memoriam Ray Manzarek (1939-2013) Este trabalho quer explorar sete abordagens temáticas possíveis a partir e, principalmente, em diálogo com a trajetória e obra de um grupo californiano de rock, o The Doors. O texto é resultado de discussões anteriormente elaboradas para minicursos, aulas, mesa-redonda e, especialmente, matérias publicadas, em 2001, na imprensa belohorizontina. Anos 1960 Em ocasião anterior, defendemos o rock como um produto da indústria cultural, fenômeno estético-musical e uma manifestação sócio-cultural (TEIXEIRA, 1999). Sua natureza híbrida resulta da interação de uma poderosa indústria cultural, do advento da urbanização, da mudança de comportamento, especialmente o juvenil e ainda de uma provocação na estética musical em uma cultura que se mundializou e uma sociedade da informação que se quer globalizada. Certamente que existem origens distintas e remotas para cada um desses fenômenos. Segundo autores como CHAPPLE e GAROFALO (1973), MUGGIATI (1973), CORREA (1989) teríamos três vetores que se interrelacionam e explicam a extraordinária evolução do rock no mercado fonográfico a partir dos anos 1950: o gênero como reflexo de uma mudança comportamental, a explosão de pequenas gravadoras e rádios independentes que produzem e divulgam em escala cada vez maior o novo gênero, colocado, à época, em segundo plano pelas majors – antes o rhythm and 1 [email protected] blues era restrito aos guetos negros (alguns inclusive tornaram-se donos de rádios e gravadoras) e o rockabilly à juventude pobre rural, destacando-se aqui também os imigrantes irlandeses, os hillbillies (“caipiras”). Por fim, a proliferação dos aparelhos de rádios, televisores e toca-discos, fechando um ciclo importante de indústria cultural nas esferas da produção, circulação e consumo – inclusive privatizando-o: a audição musical que até então era muito comum a partir das jukeboxes dos bares e cafés entra para dentro das vitrolinhas e rádios de salas e quartos. Em 1940, 350 mil jukeboxes existiam nos EUA e consumiam cerca de 44% do total de discos fabricados. Em menos de 25 anos, sobe para 450 mil o número de toca-discos portáteis vendidos. Em 1966, o número subiu para um milhão. Todo um cenário, gradativa e seguramente estabeleceu nos anos 1960 a convergência de vários pontos, cravando, se não um marco, certamente um momento chave para se entender o processo, como bem apontou MERHEB (2012) em recente e indispensável livro sobre o tema: Conforme as mudanças se introjetavam no tecido social, criando muito mais reformas de pensamento do que revolução, o rock se firmava como um dos arcabouços dessa transformação. Cidadãos comuns de pensamento mais liberal viam no rock um símbolo romântico de libertação, uma via de escape para as pressões da vida cotidiana. Pelo filtro da música, a classe média absorvia conceitos mais arejados sobre comportamento e formas musicais mais ousadas que os sucessos ouvidos no rádio (...) conglomerados e empresas de publicidade perceberam também muito rapidamente que uma mensagem de rebelião diluída em estratégias de marketing poderia agregar resultados revigorantes para os negócios. Desde sua origem o rock transitou entre os extremos de prosperar numa cultura mercantilista convencional enquanto cultivava a ambição de implodir o próprio sistema que possibilitava sua difusão (MERHEB, 2012, p.14-15) O autor é pródigo em estabelecer as diversas camadas e interrelações que desenham a complexa cena da época, em especial as questões que envolvem o rock britânico e o estadunidense no período analisado entre 1965 e 1969, ou, como também prefere, entre o show eletrificado de Dylan em Newport e o trágico desfecho dos Rolling Stones em Altman. No caso dos EUA, emergem ainda particularidades como a produção realizada na costa leste com a da oeste e, nesta, por sua vez, as diferenças entre o cenário de Los Angeles e o de São Francisco. Enfim, Merheb detalha as ambivalências de uma produção cultural em uma época singular. Flower power, liberdades variadas, psicodelia, ícones de uma geração exuberante. Mas também violência, obscuridades, bad trips, Charles Mason e ícones mortos por overdose. O grupo The Doors é precisamente um exemplo dessas forças paradoxais. Em sua produção, em sua trajetória, e, em especial, a do seu vocalista, encontramos exemplos destes movimentos. Light my fire, um dos sucessos da banda, expõe esta dualidade não só ao funcionar como “pano de fundo” do contexto político explosivo da época nas ruas ou no Vietnã, como também, ao som psicodélico do teclado de Ray Manzarek e da batida latina de John Densmore, a letra se divide em uma primeira parte que fala essencialmente de vida (escrita pelo guitarrista Robbie Krieger) e outra que fala essencialmente de morte (escrita pelo vocalista Jim Morrison). Esta ambivalência será a força motriz não só no principal hit do álbum de estreia da banda, como também dará a tônica de todo o disco e da carreira do grupo. O The Doors surgiu no verão californiano de 1965, na praia de Venice, Los Angeles, durante encontro do tecladista Ray Manzarek com o ex-colega da UCLA, Jim Morrison, que lhe cantou os primeiros versos de Moonlight Drive – um dentre tantos poemas que produziu entre a adolescência, mas em especial a partir de 1964, quando morou sozinho no sótão de um galpão abandonado (RIORDAN & PROCHNICKY, 1991). Após a morte de Jim Morrison a 3 de julho de 1971 em Paris, os Doors remanescentes lançam um último álbum ano ano seguinte, antes de terminarem oficialmente o grupo. Os três se reúnem novamente em 1978 para o lançamento de An American Prayer, no qual musicam trechos de poemas de Morrison gravado pelo próprio. Ainda com o grupo em atividade, coletâneas ao vivo e em estúdio foram lançadas e, frequentemente, novos álbuns vêm sendo divulgados e vendidos, junto com materiais diversos, especialmente pelo site oficial do grupo, o www.thedoors.com. A banda e seu vocalista estão entre os ícones de uma arte popular está cada vez mais reverenciada. Marca uma época em que jovens artistas morreram precocemente, vitimados pelas drogas, impotentes diante de um mundo de contradições e transformações: uma história repleta de exemplos às novas gerações. No caso de Morrison, entendê-lo como bufão ou ícone, shaman ou showman parece ser um primeiro interessante movimento de aproximação. Xamanismo Na dissertação Jim Morrison: the articulation of the shaman-poet in the poetic tradition o autor Marcel de Lima Santos investigou como a vida e obra de Morrison o definem como um “poeta-xamã”, que pertence a uma tradição milenar “e remonta justamente ao tempo em que o homem primitivo percebia seu habitat de uma forma mágica, em contraste com a percepção extremamente racional do mundo pelo atual e, no entanto, igual, ser humano” (SANTOS, 1996, p.vi). Para Santos, a prática religiosa do xamã pode soar estranha à boa parte do homem ocidental uma vez que sua prática tende a uma experiência dos sentidos ao invés de uma sensação de fé (SANTOS in TEIXEIRA, 2001b2, p.3). Em seu trabalho, Marcel analisou letras e livros e dividiu o percurso em três partes. Na primeira, identificou elementos dessa tradição xamanística na poesia de Morrison, comparação que foi explicitada até pelo próprio vocalista em vários momentos, o principal registrado em Dawn´s Highway, do álbum An American Prayer: Eu, minha mãe e meu pai, avó e avô, estávamos dirigindo através do deserto, no final da tarde, e um caminhão cheio de trabalhadores indígenas tinha acabado de bater em outro carro ou apenas – eu não sei o que aconteceu – mas havia índios espalhados ao longo de toda a estrada, sangrando até a morte. Então o carro encostou e parou. Foi a primeira vez que experimentei o medo. Eu devia ter uns quatro anos – uma criança é como uma flor, sua cabeça fica flutuando na brisa, cara. A reação que tenho agora, pensando sobre esse caso, olhando atrás – é a de que as almas dos fantasmas daqueles índios mortos... talvez um ou dois deles... estavam apenas correndo em torno, assombrando e elas simplesmente mergulharam na minha alma. E elas ainda estão lá.2 (MORRISON &THE DOORS, 1978). Na segunda parte, analisou o caráter extático da poesia, ou seja, a tradição poética não só como resultado de um processo racional, mas também proveniente através de um fluxo de sentimentos de inspiração poética, como os descritos por Nietzsche em suas ideias sobre Dioniso. Na terceira parte, o autor fez a articulação entre os dois modos de se adquirir o conhecimento: a ciência e a magia. 2 Me and my mother and father, and a grandmother and a grandfather. were driving through the desert, at dawn, and a truck load of Indian workers had either hit another car, or just — I don't know what happened — but there were Indians scattered all over the highway, bleeding to death. So the car pulls up and stops. That was the first time I tasted fear. I musta' been about four — like a child is like a flower, his head is just floating in the breeze, man. The reaction I get now thinking about it, looking back — is that the souls of the ghosts of those dead Indians... maybe one or two of 'em... were just running around freaking out, and just leaped into my soul. And they're still there. Tradução nossa. De acordo com Santos, Morrison não era um xamã per si. Em sua proposta, Morrison queria justamente transformar o projeto Doors e os shows em espécies de rituais de inspiração xamanística, mesmo em tempos de alto contraste com uma sociedade em que a própria música havia se tornado mercadoria. Vários exemplos de shows e depoimentos de membros que acompanharam o grupo sugerem esse caminho – como o de Ray Manzarek, destacado por Santos em seu trabalho: “Ele não era um performer, ele não era um entertainer, ele não era um showman: ele era um xamã; ele era possuído. O cara era possuído por uma visão, por uma loucura, por uma urgência em viver, por consumir o fogo para transformá-lo em arte”3 (MANZAREK4 apud SANTOS, 1996, p.12). Não obstante isso, o tecladista e os outros membros do grupo decidiram seguir em frente com o grupo por quase três anos após a morte do vocalista. Para Santos, a busca de Morrison era, de fato, xamanística, ao ansiar por algo que estava além de uma ingênua alienação da sociedade. Ao contrário do espírito da época, o comportamento de Morrison não era de atitude pacífica, mas de um confronto urgente, o que não retirava o caráter de libertário de Morrison do contexto dos anos 1960. Infelizmente, Morrison foi vítima de sua própria armadilha. Afinal, a ideia libertária dos anos 1960 também não vingou: a ideia que ele sempre teve não era a de ser um sex symbol. Quis reconstruir os mitos e acabou se transformando em outro mito (SANTOS in TEIXEIRA, 2001b2, p.3) Esse dilema se aproxima da abordagem do conceito de xamã na obra Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, livro em que o conceito de indústria cultural irá ter uma de suas primeiras aparições e, nela, a ideia do xamanismo como uma estratégia bem anterior e rudimentar à dominação da natureza. Rodrigo Duarte, autor de Adornos – Nove Ensaios sobre o filósofo frankfurtiano e Teoria crítica da indústria cultural, entre outros livros sobre o filósofo alemão, sugere uma correlação: O significado do xamã na obra dos autores é mostrar em que medida a magia já era uma forma rudimentar na natureza por parte do homem. No início, era uma atitude de defesa da pequenez do homem face às forças muito maiores da natureza. Era uma espécie de astúcia ainda inconsciente. A gente não pode fazer de certos fatos um motivo para a resignação e o conformismo. É bem provável que 3 He was not a performer, he was not an entertainer, he was not a showman; he was a shaman; he was possesed. The guy was possessed by a vision, by a madness, by a rage to live, by an all consuming fire to make art. Tradução nossa. 4 FORBES, Gordon (dir.). The Doors: A tribute to Jim Morrison. Warner Home Video, 1981. Jim Morrison seja um exemplo notável, ao lado de tantos outros dentro da indústria cultural, de pessoas que têm essa inconformidade com o sistema, que são criativas, que têm referências literárias e filosóficas interessantes, mas na passagem disso tudo no aspecto musical, já que é para ser rock, tem que caber em uma forma muito tímida. Acho que o resultado final torna-se pouco satisfatório para quem tem uma experiência maior. Vejo com preocupação o alto nível de banalização da indústria cultural. Você sente como é cada vez mais pobre em relação ao que era há dez, vinte anos. Não é ainda o ideal, mas é possível ver uma abertura que faça com que tal público tenha uma compreensão mais crítica do sistema que levou a engendrar mitos como Morrison. Nesse aspecto ainda não estou totalmente pessimista (DUARTE in TEIXEIRA, 2001b2, p.3) Furor poeticus Em uma tribo, os xamãs são capazes de se livrar do cotidiano terrestre e mergulhar em outras dimensões de consciência através de um voo mágico, chamado saivo. Ao contrário dos médiuns, os xamãs o fazem conscientemente: não incorporam os espíritos, mas se movem em direção a eles. O xamã é também embalado por substâncias que alteram o estado mental. Uma das mais tradicionais é o peyote, retirado de um cacto mexicano. O pesquisador Humphrey Osmand escreveu um artigo em 1956 no qual descrevia os efeitos da mescalina, uma substância derivada diretamente do peyote e criou o termo psicodelia, que reúne as palavras gregas psyche (alma) e delia (revelação). Osmand mantinha correspondência com o escritor Aldous Huxley - que mais tarde escreveria o seu próprio relato com a substância, The Doors of perception (“As portas da percepção”), do qual Ray Manzarek e Jim Morrison retirariam as palavras que batizariam o grupo. A expressão, por sua vez, é retirada de um trecho de O Matrimônio do céu e do inferno, do poeta William Blake: Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem como de fato é, infinito. Pois o homem encerrou-se em si mesmo, a ponto de ver tudo pelas estreitas fendas de sua caverna.(BLAKE, 2000, p.37)5. Para Coutinho, se o profeta Ezequiel aparecia para o poeta William Blake, o poeta Allen Ginsberg teria afirmado que o próprio Blake, por sua vez, teria também aparecido para ele e ditado algumas músicas. Na proposta de Santos, a ideia do furor poeticus vê a poesia como uma linguagem secreta, baseada na sensibilidade e na 5 If the doors of perception were cleansed, everything would appear to man as it is, infinite. Far man has closed himself up, till he sees all things thro’ narrow chinks of his cavern. Tradução de José Antônio Arantes. imaginação e nesta tradição estariam poetas como Blake, Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Emily Dickinson, Arthur Rimbaud, dentre outros – incluindo-se aí o próprio Jim Morrison. “De fato, Morrison tem muito em comum com seus predecessores poéticos – muito similarmente, ele permaneceu obcecado com o ‘atravessar rompendo para o outro lado’ – para descobrir que possibilidades existem além do imediato e do material” (MAGISTRALE6 apud SANTOS, 1996, p. 74). No caso de Blake, Mário Alves Coutinho afirma que Blake aconselha não a resignação, mas a ação: ‘Aquele que deseja, mas não age, cultiva a peste’. Aqui a fala não é somente dirigida ao desejo sexual, mas também ao desejo político e religioso. Metafisicamente um poeta prometeico [o fogo do qual Manzarek falou de Morrison anteriormente, perguntamos?], ele quase sempre aconselha a ação, a tentativa, a quebra dos limites: ‘nenhum pássaro voa muito alto, se voa com suas próprias asas’ e ‘nunca saberás o que é suficiente, a não ser que saibas o que é mais do que suficiente’ (COUTINHO in BLAKE, 2001, p.12) No disco de estreia dos Doors esta e outras conexões ficam explícitas: as faixas Break on Through – to the other side (atravessar rompendo para o outro lado) – cuja música teve inspiração bossanovista em beat acelerado – e ainda – como admite John Densmore no libreto do box set do grupo (THE DOORS, 1997), a canção End of the night, que inclui outro verso de Blake: Some are Born to the sweet delight/Some are Born to the Endless Night, versos que, na tradução de Coutinho ficam dessa forma: Alguns nascem para o prazer/Alguns nascem para a Noite Infinita (BLAKE, 2001, p. 63). O título da canção também batiza a obra mais famosa do pensador francês LouisFerdinand Céline: Viagem aos confins da noite, outra referência notada no primeiro verso da canção. Intelectual, pintor e poeta, William Blake era um artista à frente de seu tempo e sua obra exerceu influências diversas: do movimento surrealista à poesia beat. Dizia conversar com os anjos, bater papo com o demônio, jantar com o profeta Ezequiel. O poder imagético de suas gravuras reforça a dos poemas e se aproxima muito da influência cinematográfica nos poemas de Morrison. Há quem associe a carreira e fim trágico de Morrison a outra passagem de Blake: “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”7.Coutinho também lembra a influência exercida do cientista e teólogo 6 MAGISTRALE, Tony. Wild Child: Jim Morrison’s poetic journeys. Journal of Popular Culture, v. 26: 3, 1992. 7 The road of excess leads to the palace of wisdom. Tradução nossa. (para ficar com duas atribuições) de Emmanuel Swedenborg sobre Blake: os pais do poeta teriam participado da igreja de Nova Jerusalém, criada por Swedenborg8. Na vida, o excesso, a ruptura, o exílio. Na obra, o deslocamento, a imagem, a fuga. Estes são alguns pontos de conexão localizáveis entre a carreira e produção de Jim Morrison e o poeta francês Arthur Rimbaud, na concepção de Maurício Salles Vasconcelos, autor de Rimbaud da America e outras iluminações – livro em que o autor também associa o poeta francês à vida e obra da cantora e compositora Patti Smith. Assim como Santos, Vasconcelos insere Morrison em uma tradição poética que inclui nomes como Blake, o próprio Rimbaud, além dos autores do movimento beat estadunidense: no lado da prosa, por exemplo, Jack Kerouac e seu On the road e, na esfera poética, William Burroughs, Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. O movimento beat surgiu em meados da década de 1940 nos EUA e se caracterizou pela crítica árdua à sociedade tecnocrata – tratada no campo filosófico, por intelectuais como Herbert Marcuse – e por uma produção poética que se caracterizava pela sonoridade e pela imagem, sem a preocupação com rimas, fazendo elegias à liberdade e à celebração da vida. Os antecessores do movimento, no escopo da própria literatura americana, estão entre poetas e escritores como Walt Whitman, Dylan Thomas e Henry Thoreau. Alguns biógrafos lembram que Morrison lia Rimbaud na Escola de Cinema da Califórnia e também que On the road, de Kerouac, é um de seus livros de cabeceira. SUGERMAN e HOPKINS (1994, p.23), contam que Morrison fugiu da lendária livraria City Lights em São Francisco, núcleo embrionário da cultura beat – foi onde Allen Ginsberg fez a famosa leitura de um de seus mais famosos poemas, Uivo, em 1955 – quando avistou o ídolo Ferlinghetti no interior do recinto. O direcionamento mais explícito das letras de Morrison para esse diálogo com a literatura ocidental, e mais especificamente com Rimbaud, torna favorável a inscrição do deslocamento, da fuga e da força visual. A isso o letrista acrescenta outros, típicos de seu próprio percurso no contexto contracultural, comportamental, da América dos anos 1960. (VASCONCELOS in TEIXEIRA, 2001f, p.3) Em seu livro, Fowlie (2005) aponta uma série de paralelos entre Rimbaud e Morrison, como a curta trajetória artística, atitudes de rebeldia e sua seriedade, ausência 8 O escritor argentino Jorge Luis Borges dedicou uma de suas conferências na universidade de Belgrano a Swedenborg, cuja doutrina, comenta Borges, prevê a manutenção do livre-arbítrio mesmo após a morte do homem, bem como sua salvação pelo trabalho, pelas obras e, curiosamente, também por sua inteligência. BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília: UnB, 2002. do pai militar, a violência e o páthos, como temas. (FOWLIE, 2005, p. 32). O autor avança para o detalhamento de alguns poemas de ambos, bem como letras dos Doors. Aí Vasconcelos também lembra que o ritmo dos poemas, pontuado pelo fluxo de “lentidão e velocidade” não por acaso são características próprias da imagem do lagarto, que simboliza a um só tempo a preguiça e a celeridade – além de ser o animal que dá nome ao poema e também à alcunha de Morrison: o Rei Lagarto (The Lizard King). Para o autor, falar de Morrison como uma espécie de Rimbaud do Rock limita o espectro de influência. O fato de Rimbaud e Morrison travarem contato com autores desregrados, pulsionais, está relacionado ao fato de que Rimbaud não apenas leu seu tempo, mas o escreveu. Em ambos não ocorre apenas a transfusão alquímica, altamente criativa do repertório cultural de suas épocas. “Elas o escrevem dando forma, num risco integral (para usar um adjetivo nietzschiano), a uma nova atuação ético-estética no que diz respeito ao lugar reservado às palavras e às sonoridades.” (VASCONCELOS in TEIXEIRA, 2001f, p.3). A conexão do auto-exílio de ambos também, para Vasconcelos, torna-se visível neste momento e, o mais curioso, com um endereço extracontinental: Europa/França para Morrison, África, para Rimbaud. Há talvez uma rápida alusão a esse ponto no verso finalíssimo da canção Wild Child, quando Morrison pergunta: “você se lembra quando estávamos na África?”9 Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Living Theatre Ele interpretou um revolucionário que morreu em uma banheira parisiense devido a um ataque direto ao coração. Também descreveu experiências alucinógenas com o peyote junto aos xamãs. Falamos do ator e teatrólogo Antonin Artaud, que viveu o revolucionário Marat no filme Napóleon (FRA, 1926) de Abel Gance, e também autor de livros como O teatro da crueldade e O teatro e seu duplo. As ideias de Artaud ecoaram como uma bomba H nos anos 1960, especialmente no estado sede do flower power estadunidense, a Califórnia, à época governada pelo conservadorismo do ex-ator Ronald Reagan. Nos EUA, grupos como o The Living Theatre adotaram as ideias de Artaud e, desde 1968, uma de suas peças mais famosas, Paradise Now, recorria a conceitos artaudianos. Segundo a biografia de Hopkins e Sugerman (1994) Jim havia sido adepto do Teatro da Crueldade em seus tempos de colégio, quando leu Artaud pela primeira vez. Em 28 de fevereiro de 1969, Morrison 9 You remember when we were in Africa? Tradução nossa. participou da última montagem de Paradise Now! quando o grupo esteve no campus da Universidade da Califórnia do Sul. Durante cerca de quatro anos o grupo estava na Europa. Tinha portanto, “se tornado internacional pela sua composição e conhecia os argumentos para ultrapassar obstáculos de fronteira. Ocupavam os espectadores com diálogo, molestando-os se necessário para conseguirem uma resposta, gritando as palavras com angústria e frustração”. (HOPKINS e SUGERMAN, 1994, p. 192) Em depoimento aos autores, o então representante do grupo, Mark Amatin, conta: ‘Estava a fazer o que pensava ser um trabalho missionário político e espiritual’, diz Mark agora ‘e isto é que Jim quis descobrir. O seu trabalho tinha sido uma experiência religiosa, mas tinha se tornado uma diversão, e estava extremamente descontente. O Living Theatre era constituído por espectadores que tinham ido ver a companhia e não tinham conseguido ir-se embora, e Jim queria conhecer este entusiasmo. Disse que queria incorporar uma mensagem política naquilo que estava a fazer, mas não sabia como dirigi-la ou por onde começar, sentiu que toda a gente estava à espera dele, pronta para falar, pronta a obedecer cada palavra, e isso era de uma responsabilidade tremenda, porque Jim não sabia o que dizer’ (HOPKINS e SUGERMAN, 1994, p. 191) Certamente inspirado pelas ideias do Theatre – e, consequentemente, de Artaud – Morrison promove, logo em seguida, o fatídico show em Miami, onde durante a canção Five to One, provoca o público, acusa-o de ser “escravo”, de gostar de ter “a cabeça atolada na merda”, simula uma masturbação, a polícia intervém e há o pandemônio em meio ao qual Morrison foi acusado de exposição do membro sexual10. Os Doors vivem em sequência sua estação no inferno, com shows cancelados por todo o país e exterior e Morrison amargando um processo que seria uma das razões de seu auto-exílio parisiense, onde, a três de julho, véspera da Independência nos EUA, seria encontrado morto, numa banheira, pela namorada Pamela Courson. Causa mortis: ataque cardíaco fulminante. Morrison tinha 27 anos. Para a professora Vera Casanova, entusiasta das ideias e concepções de Artaud, diz que acredita “mais no acaso, apesar do uso de drogas ter sido comum a Morrison e a Artaud. Acredito que, se há convergência entre ambos é em função de uma determinada lógica do êxtase, espécie de agonia do êxtase” (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, 10 Dois anos depois, o Living Theatre vem ao Brasil e participa do V Festival de Inverno de Ouro Preto para a montagem do espetáculo Herança de Caim. Precisamente no mês em que Morrison falece, o grupo acaba sendo preso em Minas Gerais, acusado “de tráfico, consumo de tóxicos e posse de livros subversivos”. REVISTA VEJA. Tóxicos – Teatro da vida. N. 149. !4 de julho de 1971, p. 28 e 29. p.5). Segundo Casanova, os pontos nodais das ideias do teatrólogo, que influenciou profundamente ao Living Theatre e Morrison estão todos ligados ao corpo e à vida (o teatro é o duplo da vida!) e sobretudo às rupturas de linguagem. O livro O Teatro e seu duplo, no entanto, nunca deve ser lido como um guia ou tratado de onde se pode extrair receitas para a renovação das artes cênicas. Em Artaud trata-se sempre de denunciar o teatro digestivo, de entretenimento, ou aquele absolutamente submisso ao texto, à ideia de autor. O sopro, o corpo do ator como o do espectador, essa ‘ciência’ que deve possuir o ator para conhecer com precisão os pontos do corpo para atingir, para jogar o espectador no transe mágico. ‘O teatro é o estado, é o lugar, o ponto onde podemos nos apropriar da anatomia do homem e através dela curar e dominar a vida.’, é o que diz um trecho de Aliéner L´acateur (1947) (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5). À época dos Doors, nos anos 1960, tem-se, segundo Casanova, uma explosão no mundo ocidental. Segundo ela, Artaud entraria aí como uma explosão do teatro burguês, como também Brecht, Grotowski e W. Reich. “Havia muito mais coisa do que uma influência. Havia um contexto com determinações que possibilitavam as propostas revolucionárias. O impacto era da própria história que acontecia no Brasil e no mundo. Artaud viveu também essa loucura da repressão e do fascismo em sua época” (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5). Segundo a autora, muitos foram influenciados pela proposta artaudiana, como Théatre de Soleil, Luca Ronconi, Victor Garcia, Antunes Filho. E grupos teatrais como os de Peter Brook ou Charles Marowitz reconheceram publicamente a importância de Artaud como um dos fundadores do moderno teatro de vanguarda, ao chamarem o ‘Teatro da Crueldade’ como experimental, ao tentar transcender as limitações da linguagem, onde o silêncio ou o grito significam bem mais do que possa se supor. Os anos 1960 descobrem também o poder e o saber do corpo em cena. (...) Judith Molina, Julien Beck no Living Theatre, dentre outros, leram Artaud e o aproveitaram, no que aquele apresentava de ruptura do teatro convencional. A palavra falada – centro do teatro convencional – passa ao segundo plano em proveito do corpo, com impacto direto sobre o espectador, de acontecimento in loco que podem ser absolutamente reais, mas também ficcionais, quando está em jogo a improvisação do teatro da crueldade e o envolvimento da plateia. (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5). Além da influência notória de Artaud, os Doors também se inspiraram explicitamente em Bertolt Brecht. Alabama song (Whisky Bar), é uma versão dos Doors para a canção escrita após a I Guerra Mundial, em 1920, pelo dramaturgo. O original em inglês da canção, intitulado simplesmente Alabama Song, foi retrabalhado por Bertolt Brecht em parceria com o músico Kurt Weill (1900-1950) e é parte da opereta alemã Ausfstieg und Fall der Stadt Mahagonny (Ascensão e queda da cidade de Mahagonny). Segundo SUNDLING (1996) o grupo retirou a canção a partir de um álbum que o tecladista Ray Manzarek tinha das canções de Brecht e Weill – o próprio tecladista, em sua autobiografia (MANZAREK, 1998), atribui a ideia da versão à sua mulher, Dorothy Fujikawa. Sundling cita os tradutores da versão inglesa da opereta alemã, Chester Kallman e o poeta W. H. Auden: “tudo o que não pode ser convertido em dinheiro não tem nenhum sentido, nenhum valor, nenhum efeito em Mahagonny”. Encenada na Alemanha pré-nazista, funcionando também como crítica à América capitalista, a peça causou polêmica, pois foi conduzida para fazer com que a plateia fosse parte daquela autofagia capitalista. Da mesma forma como na peça, Sundling observa como a canção dos Doors e, mais genericamente, tanto a obra de Brecht como a do grupo californiano expõe como uma moderna sociedade capitalista destrói a escolha humana (SUNDLING, 1996). Na canção da peça, várias prostitutas cantam a necessidade de encontrar o próximo “whiskey bar”, o próximo rapaz bonito (“pretty boy”), o próximo níquel (“little dollar”), em uma peregrinação que mostra um mundo perdido em sua condição materialista. Na versão dos Doors, o percurso é recantado por Morrison, que troca o rapaz pela garota e omite o “little dollar”. Outra conexão lembrada pelo autor deste trecho se refere ao bar Whisky-a-Go-Go (escrito assim mesmo, pois a lei não permitia o uso literal, portanto correto, da palavra da célebre bebida escocesa nas fachadas de prédios), no qual os Doors iniciaram a carreira e, certamente, tocaram a música. Não por acaso toda esta temática se aproxima da Ópera do Malandro, em que Chico Buarque também utiliza outra obra fruto da parceria Weill/Brecht, Die Moritat Von Mackie Messer, nas canções de abertura e fechamento: O Malandro e O Malandro número 2. Por fim, na conexão entre Brecht e Artaud, Casanova lembra que cada um a seu modo se insurgiu contra o julgamento de Deus, ou seja, a sociedade burguesa, fascista, hipócrita e perversa, que rotula, classifica e exclui, sendo incapaz de ouvir a voz como um acontecimento de sentido. (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5). Nietzsche “Nietzsche matou Jim Morrison”, escreveu John Densmore em sua biografia Riders of the storm (DENSMORE, 1991, p.3). A afirmação, como o próprio autor reconhece no livro, é melodramática, mas abre as portas para outra conexão com a vida e obra dos Doors: as ideias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Morrison tinha em Nietzsche seu poeta e filósofo de cabeceira, principalmente através do livro O Nascimento da tragédia, o primeiro escrito pelo pensador alemão. Há um curioso registro no filme Feast of Friends, dirigido pelo amigo Paul Ferrara, onde o próprio Morrison faz uma espécie de ode improvisada a Friedrich Nietzsche nos bastidores do Saratoga Performing Arts Center (SPAC), realizado em 1º de setembro de 196811. Nietzsche aponta que o nascimento da tragédia grega nasce da composição de duas forças: a harmonia e o equilíbrio, vinculados à imagem do deus Apolo, e a impulsão, a intuição e a espontaneidade, relacionadas ao deus Dionísio. Para Nietzsche, todo artista deve aparecer como um ‘imitador’, seja como o artista apolíneo sonhador ou o artista dionisíaco em êxtase ou, finalmente, como no caso da tragédia grega, o artista sonhador e extático em um só. Para o filósofo Olímpio José Pimenta a tragédia articula as duas coisas e faz uma composição entre a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo. No caso grego, o coro equivale à dimensão dionisíaca e o enredo à dimensão apolínea. É um momento histórico onde “a Grécia arcaica, das epopeias, que representam harmonia e equilíbrio encontra a balada e a dança, típicas do culto a Dionísio. (...) A convergência entre os impulsos dionisíacos e apolíneos na tragédia é a marca da forma mais evoluída que a humanidade já atingiu.”(PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8) A tragédia se estenderia para além de uma forma de dramaturgia e alcançaria uma profunda reflexão sobre a condição humana, pois os gregos estiveram entre as primeiras civilizações a reconhecer o drama da existência. Não temos imortalidade, nossos projetos são falíveis. Daqui a cem anos todos aqueles que gostamos não estarão mais por aqui. O que fazer? Sofrer com esperanças em uma imortalidade como sugere o Cristianismo ou fazer a inveja dos deuses que me fizeram passar por isso, celebrando a tragicidade de nossa condição? Essa é a questão 11 O texto que Morrison entoa é assim transcrito pelo comentário de Highway Star89 no youtube (outro comentário, de cnedwick, também afirmou ser a primeira vez que o local, habituado apenas a concertos e bales, abriu seu espaço a uma banda de rock): He threw his arms around the horse's neck and kissed him everywhere i love my horse a crowd gathered his landlord appeared and took frederick back up to his room on the second floor where he began to play the piano madly and sing madly like…..ooooooh.....i'm crucified and inspected and resurrected and if you don't believe that i'll give you my latest philanthropic sonata and the landlord's family was amazed so they sent for his friend Overbeck and he got there in three days by coach and they took frederick to the asylum and his mother joined him and for the next fifteen years they cried and cried and laughed and looked at the sun and everyone. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=1RlrPV3cHag. Acesso em 07 de agosto de 2013. apresentada por Nietzsche (...) Sofrimento é matéria-prima para qualquer grande obra. Mas fazer a inveja dos deuses que me fizeram passar por isso é um caminho áspero. Afinal, nada de grandioso é obtido facilmente. Nossa época é muito cínica porque sugere o contrário: se você quiser ficar numa boa, que tome um Prozac. (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8) O mundo dionisíaco dribla a união entre homem e natureza – força primitiva presente em todas as coisas. E aqui recuperamos o argumento apontado por Marcel de Lima Santos do poeta-xamã, dionisíaco porque é um homem em conexão com o mundo além da razão: o que fica escondido no poeta apolíneo deve tornar-se explícito no poetaxamã. De acordo com Pimenta, tanto Nietzsche como Morrison dentre uma série de outros pensadores-artistas têm a percepção de que a vida vale para além da finitude. “Morrison se pauta por essa assimilação. Ele está querendo também transformar a experiência existencial em uma obra de arte. Tinha o instrumental poético, estudou cinema, mas tentou reconhecer o trágico de nossa condição através mesmo do rock´n´roll” (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8). Para o professor, a estratégia de celebrar os desacertos inerentes à vida faz com que o homem seja invejável aos olhos dos deuses. “Veja o caso de The End, por exemplo. Na hora que canta o fim, se ultrapassa e se celebra essa tragicidade. Morrison e os Doors falam da finitude, mas conferem à essa intervenção um caráter sublime” (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8) A música, que foi utilizada em sequências seminais do filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola – contemporâneo de Morrison na Universidade de Cinema da Califórnia – é, nas palavras do próprio letrista, “uma canção de adeus”, mas que mistura imagens fortes, elementos de psicodelia e, obviamente, da tragédia edipiana - sua inclusão na música motivou a expulsão do grupo durante show na casa Whisky-a-GoGo em 21 de agosto de 1966 (THE DOORS, 2013). Outro exemplo seria Break on through (to the other side). “Entrar para rachar: para se ter uma elaboração da realidade, há necessidade de uma reflexão, de ir além dela. Não se trata de uma busca puramente hedonista: não é prazer imediato, o que se busca é conhecimento, é expansão da consciência” (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8). Ainda assim, a proposta dos Doors e Morrison foi derrotada. Ele perdeu. Foi destruído, dilacerado pelo mercado. A fruição da obra de arte dele depende da preparação de um auditório. Não é para consumo rápido. O que aconteceu com o Nirvana é a retomada do problema. Eles tinham uma banda de garagem, com uma proposta interessante – vide a capa de Nevermind – mas aí rapidamente outras forças entram em jogo e domesticam tudo. É o problema de se contratar a cultura com a grana, tema também presente na Crítica ao Filisteu, outro texto de Nietzsche. Apesar desse cenário torna-se necessário cada vez mais e melhores blues. Em nosso dia-a-dia, por o nosso serviço a serviço da proposta desses pensadores-artistas. A vida só ganha dignidade se for celebrada artisticamente. (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8) Música Jazz, blues, flamenco, música hindu e até mesmo bossa-nova. Vários gêneros musicais estão presentes na obra dos Doors. O baterista John Densmore que, como o colega Manzarek, estudava e tinha apreço por obras do jazz e blues, afirmou que Break on through é uma Bossa Nova acelerada e que o grupo compôs a música na praia de Venice, na Califórnia, imaginando estar em Copacabana. O músico e citarista Alberto Marsicano, autor das compilações Rimbaud por ele mesmo e Jim Morrison por ele mesmo, também aponta que: “enquanto no Brasil se discutia a admissão da guitarra na música brasileira, os Doors incorporavam a Bossa-Nova às suas canções em Light my fire e, como eles próprios admitem, Break on through. Quanto a Light my fire, basta ouvirmos a versão de Jose Feliciano para percebermos a sintonia”. (MARSICANO in TEIXEIRA, 2001h, p.8). Carlos Santana é outro nome que buscou tal influência – e outro nome que os próprios Doors julgam também ter influenciado. “Eu acredito que Santana estava em nosso show no Matrix aquela noite. Dei a ele algumas ideias”, disse Robby Krieger no libreto do Box Set (THE DOORS, 1997, p. 39) sobre I can’t see your face in my mind e a temporada do grupo na célebre casa de shows de São Francisco entre 7 e 11 de março de 1967.12 Marsicano lembra que, se um dos grandes méritos do rock se concentra na pulsação e no fluxo sonoros, muitas vezes as letras tornam-se meramente acessórias à vibração da música. “O que não parece ser o caso de Morrison, um dos poucos grandes monstros do rock que tiveram uma boa formação literária, além da musical. Você conta nos dedos, citaria, por exemplo, Bob Dylan e John Lennon. Na maioria das vezes, prevalece uma temática romântica sem profundidade” (MARSICANO in TEIXEIRA, 2001h, p.8). Por fim, ao contrário de muitas bandas da Califórnia, no caso dos Doors todos os músicos da banda estudavam e seguiam sua formação como tal – e não assumindo espontamente o papel de instrumentista, como anos depois o próprio punk 12 I think Carlos Santana may have been at the Matrix that night. Give him a few ideas! Tradução nossa. vai apregoar. Os shows do grupo, especialmente os que aconteciam em espaços fechados, não eram simplesmente música. Segundo o citarista, o grupo tinha um lado cênico muito bem consolidado. Marsicano13 também aponta influências wagnerianas nos espetáculos. “A ideia de conduzir gradativamente a música e o show, como durante a execução de When the music is over no qual se começa baixinho, passa por um suspense sustentado e culmina em uma explosão, levando o público a uma espécie de orgasmo, é característica dos shows do grupo”. (MARSICANO in TEIXEIRA, 2001h, p.8). A mesma estratégia também está presente na referência hindu de canções como The End, inspirada em culto ao deus Ghiva. “A música, na verdade, é uma releitura de um ragga denominado Bhin Palasi e é resultado de outra forte influência do grupo: o guitarrista Robby Krieger é um dos poucos que toca a guitarra como cítara.” Marsicano, que conheceu Krieger pessoalmente durante uma estada em Los Angeles - “tivemos formação de cítara segundo a Escola Kinnara – aponta outras particularidades sobre o guitarrista: “ele aprendeu flamenco, toca sem palheta, e é um dos poucos que têm uma concepção de que as cordas melhoram com o tempo, chegando a ficar cinco ou seis anos com as mesmas cordas. É uma rara concepção para os dias de hoje”. (MARSICANO in TEIXEIRA, 2001h, p.8). Krieger também estudou violão clássico e flamenco, o que fica evidente em músicas como Spanish Caravan. A influência do grupo repercutiu em vários outros. Nos anos 1970, Iggy Pop chegou a fazer um show tributo em homenagem a Morisson em quem confessadamente se inspirou. O mesmo fez Nico e John Cale do Velvet Underground (há uma versão de Nico, que flertou com Morrison, para The End). David Bowie admitiu em entrevista que uma música sua como Changes e especialmente o verso turn and face the strange (“vire-se e encare o estranho”) foi obviamente “chupada do estilo Jim Morrison/Syd Barret de escrever” (BOWIE in CUNHA, MIRANDA e TEIXEIRA, 1994). Nos anos 1980, a referência maior está nos álbuns do grupo Echo and the Bunnymen, que incluía no repertório Soul kitchen e The End, além da versão People are strange” para o filme Os Garotos Perdidos, ao lado do tecladista Ray Manzarek. No final dos anos 1990 um 13 O citarista recebia, via fax, no momento da entrevista uma cópia traduzida de Fernando Pessoa para o poema Hino a Pan, do ocultista Aleister Crowley – que figura tanto na capa dos Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, como na contracapa da coletânea 13, dos próprios Doors, lançada em 1970. Crowley também ficou conhecido no Brasil por ter inspirado Paulo Coelho e Raul Seixas na proposição da Sociedade Alternativa. Um trecho do poema foi incluído na matéria. disco tributo e a entrada da banda no Hall of fame do rock trouxe novos adeptos: Perry Farrel, Ian Curtis, Eddie Vedder. No Brasil, o “rock bossa-nova” de Light my fire ganhou diversas versões, como as de Maysa e do grupo Baobás nos anos 1970 e a de Gato Jair e Marcelo Dolabela para uma fita demo da banda belo-horizontina Último Número nos anos 1980 (Vem garota me incendiar). A capital mineira é também conhecida em seu circuito de shows por possuir uma diversidade de bandas cover de rock. E, no caso específico do Doors, bandas como Overdoors e Santa Matilde. Cinema O programa para esta tarde não é novo. Você já tem visto este entretenimento várias vezes. Tem visto seu nascimento, vida e morte. Você pode se recordar do resto. Você teve uma vida interessante ao morrer? O suficiente para que um filme pudesse se basear nela?14 Retirado do álbum e de um de seus livros de poemas, An american prayer, os versos acima ficam sintomáticos quando, após sua morte, a própria história de Morrison tornou-se matéria-prima para um filme. Nos anos 1990, Oliver Stone apresentou uma versão ao mesmo tempo fiel à época e à atmosfera mitológica criada em torno de Morrison. A situação torna-se ainda mais interessante quando se sabe que Morrison e o tecladista Ray Manzarek – que produziu alguns filmes e clipes do grupo – além de fãs de Godard, foram colegas da escola de cinema de Los Angeles (UCLA), que reunia outros nomes importantes como Francis Ford Coppola. Mas, enquanto Stone foi lutar no Vietnã, Dennis Jakob, amigo comum de Morrison e Coppola, mais tarde consultor artístico deste para o épico Apocalypse Now, sugeriu a utilização da canção The End em sequências iniciais e finais do filme – que usa justamente o Vietnã como metáfora para várias guerras, da mesma forma que o grupo trabalhou a canção The Unknown Soldier – embora, no palco, o recado fosse claro, com a performance de todo o grupo construindo um pelotão de fuzilamento: Densmore no tambor bélico, Krieger na metralhadoraguitarra, Morrison como alvo que se vai ao chão, enquanto Manzarek levantava o punho no clássico gesto dos Panteras Negras. 14 The program for this evening is not new. You have seen This entertainment through and through. You've seen your birth, your life and death; you might recall all of the rest — (did you have a good world when you died?) — enough to base a movie on? Tradução nossa. Morrison chegou a morar um tempo com Jakob antes de mudar para o sótão de um galpão abandonado, onde consolidou muitos de seus poemas – boa parte dos quais seria posteriormente musicada pelo grupo. Em muitos deles a preocupação rimbaudiana com a alquimia do verbo e o poder imagético da palavra, também herdado de Blake e dos poetas beats. Morador de Los Angeles, como diria Umberto Eco, o pé esquerdo fica no acelarador dos automóveis e o pé direito é um apêndice morto, o deslocamento constante produz, por excelência, essa sensação de cenas sequenciais, travellings que ecoam em vários de seus versos e músicas, como Cars hiss by my window ou L.A.Woman. (TEIXEIRA, 2001c, p.8 e TEIXEIRA, 1995). Inspirado pelas ideias de vanguarda no cinema da época, como Godard, Morrison produziu para concluir seu curso o que dizia ser “menos que um filme e mais um ensaio sobre o ato de filmar” e misturou cenas aparentemente desconexas como um strip-tease de uma loura a nazistas em marcha. Depois, já famoso, chegou a abrir uma produtora com dois amigos da Ucla, Paul Ferrara e Frank Lisciandro, com os quais produziu roteiro e filme nos quais precisamente se enfatizava a estrada, a mobilidade, o nomadismo como The Hitchhiker e HWY, respectivamente. Em sua versão cinematográfica, The Doors – o filme (EUA/1991), de Oliver Stone, ao mesmo tempo em que impressiona pela esmerada reconstrução da época (especialmente pelas sequências ao vivo) pela referência a algumas ideias centrais do grupo (como o xamanismo) e pelo elenco (Kilmer literalmente incorpora Morrison no filme), o longa de Stone exagera numa vertente hedonista, necrófila e sombria do líder do grupo, ao mesmo tempo em que suaviza a imagem da meiga, porém explosiva, parceira de Jim, Pamela Courson (Meg Ryan). A sequência em que os Doors, no filme, tocam Not to touch the Earth resume o filme: boas cenas de palco, xamanismo, mas também, em montagem alternada, o contraponto com situações sórdidas inexistentes “na vida real” do casal ou do grupo. Não que Morrison fosse propriamente um santo, mas a imagem de rebelde sem causa não casa com a proposta do grupo e de seu principal mentor que via nos shows e nos discos uma possibilidade da celebração dionisíaca e da poesia se sobrepor à tietagem, à idolatria e à indústria cultural – que, sabemos, acabou vencendo a parada: Morrison se afundou em seus próprios excessos. Não sabemos se atingiu a sabedoria ou o Nirvana, mas alcançou uma das propostas do grupo, quando de sua criação à beira da praia de Venice, Califórnia: “erguer monstros, criar mitos”. (TEIXEIRA, 2001c, p.8 e TEIXEIRA, 2001a, p.8). Considerações finais O objetivo aqui foi o de apresentar um rol das influências e conexões possíveis a partir da vida e obra do grupo The Doors, em especial o vocalista Jim Morrison, como o xamanismo, a filosofia, a poesia, o teatro, a música, dentre outras. Destarte detectar como a trajetória biográfico-artística do grupo traz elementos que podem motivar no alunado a discussão e o aprofundamento de cada um dos sete temas propostos – aqui sempre sob a forma de pistas, intenções, perspectivas de abordagem, enfim, algumas portas temáticas para estudo, pesquisa e ensino que podem se abrir atrás do The Doors. Referências BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno & O livro de Thel. São Paulo: Iluminuras, 2000. Tradução de José Antônio Arantes. BLAKE, William & LAWRENCE, D.H. Tudo que vive é sagrado. Belo Horizonte: Crisálida, 2001. Seleção, tradução e ensaios de Mário Alves Coutinho. DENSMORE, John. Riders on the storm: my life with Jim Morrison and The Doors. 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