PORTAS POR TRÁS DAS PORTAS - II Congresso Internacional de

Propaganda
PORTAS POR TRÁS DAS PORTAS: SETE ABORDAGENS TEMÁTICAS A
PARTIR DO GRUPO THE DOORS
Nísio Teixeira - UFMG1
Introdução
In memoriam
Ray Manzarek (1939-2013)
Este trabalho quer explorar sete abordagens temáticas possíveis a partir e,
principalmente, em diálogo com a trajetória e obra de um grupo californiano de rock, o
The Doors. O texto é resultado de discussões anteriormente elaboradas para minicursos,
aulas, mesa-redonda e, especialmente, matérias publicadas, em 2001, na imprensa belohorizontina.
Anos 1960
Em ocasião anterior, defendemos o rock como um produto da indústria cultural,
fenômeno estético-musical e uma manifestação sócio-cultural (TEIXEIRA, 1999). Sua
natureza híbrida resulta da interação de uma poderosa indústria cultural, do advento da
urbanização, da mudança de comportamento, especialmente o juvenil e ainda de uma
provocação na estética musical em uma cultura que se mundializou e uma sociedade da
informação que se quer globalizada.
Certamente que existem origens distintas e remotas para cada um desses
fenômenos. Segundo autores como CHAPPLE e GAROFALO (1973), MUGGIATI
(1973), CORREA (1989) teríamos três vetores que se interrelacionam e explicam a
extraordinária evolução do rock no mercado fonográfico a partir dos anos 1950: o
gênero como reflexo de uma mudança comportamental, a explosão de pequenas
gravadoras e rádios independentes que produzem e divulgam em escala cada vez maior
o novo gênero, colocado, à época, em segundo plano pelas majors – antes o rhythm and
1
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blues era restrito aos guetos negros (alguns inclusive tornaram-se donos de rádios e
gravadoras) e o rockabilly à juventude pobre rural, destacando-se aqui também os
imigrantes irlandeses, os hillbillies (“caipiras”). Por fim, a proliferação dos aparelhos de
rádios, televisores e toca-discos, fechando um ciclo importante de indústria cultural nas
esferas da produção, circulação e consumo – inclusive privatizando-o: a audição
musical que até então era muito comum a partir das jukeboxes dos bares e cafés entra
para dentro das vitrolinhas e rádios de salas e quartos. Em 1940, 350 mil jukeboxes
existiam nos EUA e consumiam cerca de 44% do total de discos fabricados. Em menos
de 25 anos, sobe para 450 mil o número de toca-discos portáteis vendidos. Em 1966, o
número subiu para um milhão.
Todo um cenário, gradativa e seguramente estabeleceu nos anos 1960 a
convergência de vários pontos, cravando, se não um marco, certamente um momento
chave para se entender o processo, como bem apontou MERHEB (2012) em recente e
indispensável livro sobre o tema:
Conforme as mudanças se introjetavam no tecido social, criando
muito mais reformas de pensamento do que revolução, o rock se
firmava como um dos arcabouços dessa transformação. Cidadãos
comuns de pensamento mais liberal viam no rock um símbolo
romântico de libertação, uma via de escape para as pressões da vida
cotidiana. Pelo filtro da música, a classe média absorvia conceitos
mais arejados sobre comportamento e formas musicais mais ousadas
que os sucessos ouvidos no rádio (...) conglomerados e empresas de
publicidade perceberam também muito rapidamente que uma
mensagem de rebelião diluída em estratégias de marketing poderia
agregar resultados revigorantes para os negócios. Desde sua origem
o rock transitou entre os extremos de prosperar numa cultura
mercantilista convencional enquanto cultivava a ambição de implodir
o próprio sistema que possibilitava sua difusão (MERHEB, 2012,
p.14-15)
O autor é pródigo em estabelecer as diversas camadas e interrelações que
desenham a complexa cena da época, em especial as questões que envolvem o rock
britânico e o estadunidense no período analisado entre 1965 e 1969, ou, como também
prefere, entre o show eletrificado de Dylan em Newport e o trágico desfecho dos
Rolling Stones em Altman. No caso dos EUA, emergem ainda particularidades como a
produção realizada na costa leste com a da oeste e, nesta, por sua vez, as diferenças
entre o cenário de Los Angeles e o de São Francisco. Enfim, Merheb detalha as
ambivalências de uma produção cultural em uma época singular. Flower power,
liberdades variadas, psicodelia, ícones de uma geração exuberante. Mas também
violência, obscuridades, bad trips, Charles Mason e ícones mortos por overdose.
O grupo The Doors é precisamente um exemplo dessas forças paradoxais. Em
sua produção, em sua trajetória, e, em especial, a do seu vocalista, encontramos
exemplos destes movimentos. Light my fire, um dos sucessos da banda, expõe esta
dualidade não só ao funcionar como “pano de fundo” do contexto político explosivo da
época nas ruas ou no Vietnã, como também, ao som psicodélico do teclado de Ray
Manzarek e da batida latina de John Densmore, a letra se divide em uma primeira parte
que fala essencialmente de vida (escrita pelo guitarrista Robbie Krieger) e outra que fala
essencialmente de morte (escrita pelo vocalista Jim Morrison). Esta ambivalência será a
força motriz não só no principal hit do álbum de estreia da banda, como também dará a
tônica de todo o disco e da carreira do grupo.
O The Doors surgiu no verão californiano de 1965, na praia de Venice, Los
Angeles, durante encontro do tecladista Ray Manzarek com o ex-colega da UCLA, Jim
Morrison, que lhe cantou os primeiros versos de Moonlight Drive – um dentre tantos
poemas que produziu entre a adolescência, mas em especial a partir de 1964, quando
morou sozinho no sótão de um galpão abandonado (RIORDAN & PROCHNICKY,
1991). Após a morte de Jim Morrison a 3 de julho de 1971 em Paris, os Doors
remanescentes lançam um último álbum ano ano seguinte, antes de terminarem
oficialmente o grupo. Os três se reúnem novamente em 1978 para o lançamento de An
American Prayer, no qual musicam trechos de poemas de Morrison gravado pelo
próprio. Ainda com o grupo em atividade, coletâneas ao vivo e em estúdio foram
lançadas e, frequentemente, novos álbuns vêm sendo divulgados e vendidos, junto com
materiais diversos, especialmente pelo site oficial do grupo, o www.thedoors.com.
A banda e seu vocalista estão entre os ícones de uma arte popular está cada vez
mais reverenciada. Marca uma época em que jovens artistas morreram precocemente,
vitimados pelas drogas, impotentes diante de um mundo de contradições e
transformações: uma história repleta de exemplos às novas gerações. No caso de
Morrison, entendê-lo como bufão ou ícone, shaman ou showman parece ser um
primeiro interessante movimento de aproximação.
Xamanismo
Na dissertação Jim Morrison: the articulation of the shaman-poet in the poetic
tradition o autor Marcel de Lima Santos investigou como a vida e obra de Morrison o
definem como um “poeta-xamã”, que pertence a uma tradição milenar “e remonta
justamente ao tempo em que o homem primitivo percebia seu habitat de uma forma
mágica, em contraste com a percepção extremamente racional do mundo pelo atual e,
no entanto, igual, ser humano” (SANTOS, 1996, p.vi). Para Santos, a prática religiosa
do xamã pode soar estranha à boa parte do homem ocidental uma vez que sua prática
tende a uma experiência dos sentidos ao invés de uma sensação de fé (SANTOS in
TEIXEIRA, 2001b2, p.3).
Em seu trabalho, Marcel analisou letras e livros e dividiu o percurso em três
partes. Na primeira, identificou elementos dessa tradição xamanística na poesia de
Morrison, comparação que foi explicitada até pelo próprio vocalista em vários
momentos, o principal registrado em Dawn´s Highway, do álbum An American Prayer:
Eu, minha mãe e meu pai, avó e avô, estávamos dirigindo através do
deserto, no final da tarde, e um caminhão cheio de trabalhadores
indígenas tinha acabado de bater em outro carro ou apenas – eu não
sei o que aconteceu – mas havia índios espalhados ao longo de toda a
estrada, sangrando até a morte. Então o carro encostou e parou. Foi
a primeira vez que experimentei o medo. Eu devia ter uns quatro anos
– uma criança é como uma flor, sua cabeça fica flutuando na brisa,
cara. A reação que tenho agora, pensando sobre esse caso, olhando
atrás – é a de que as almas dos fantasmas daqueles índios mortos...
talvez um ou dois deles... estavam apenas correndo em torno,
assombrando e elas simplesmente mergulharam na minha alma. E
elas ainda estão lá.2 (MORRISON &THE DOORS, 1978).
Na segunda parte, analisou o caráter extático da poesia, ou seja, a tradição
poética não só como resultado de um processo racional, mas também proveniente
através de um fluxo de sentimentos de inspiração poética, como os descritos por
Nietzsche em suas ideias sobre Dioniso. Na terceira parte, o autor fez a articulação entre
os dois modos de se adquirir o conhecimento: a ciência e a magia.
2
Me and my mother and father, and a grandmother and a grandfather. were driving through the desert, at
dawn, and a truck load of Indian workers had either hit another car, or just — I don't know what happened
— but there were Indians scattered all over the highway, bleeding to death. So the car pulls up and stops.
That was the first time I tasted fear. I musta' been about four — like a child is like a flower, his head is
just floating in the breeze, man. The reaction I get now thinking about it, looking back — is that the souls
of the ghosts of those dead Indians... maybe one or two of 'em... were just running around freaking out,
and just leaped into my soul. And they're still there. Tradução nossa.
De acordo com Santos, Morrison não era um xamã per si. Em sua proposta,
Morrison queria justamente transformar o projeto Doors e os shows em espécies de
rituais de inspiração xamanística, mesmo em tempos de alto contraste com uma
sociedade em que a própria música havia se tornado mercadoria. Vários exemplos de
shows e depoimentos de membros que acompanharam o grupo sugerem esse caminho –
como o de Ray Manzarek, destacado por Santos em seu trabalho: “Ele não era um
performer, ele não era um entertainer, ele não era um showman: ele era um xamã; ele
era possuído. O cara era possuído por uma visão, por uma loucura, por uma urgência em
viver, por consumir o fogo para transformá-lo em arte”3 (MANZAREK4 apud
SANTOS, 1996, p.12). Não obstante isso, o tecladista e os outros membros do grupo
decidiram seguir em frente com o grupo por quase três anos após a morte do vocalista.
Para Santos, a busca de Morrison era, de fato, xamanística, ao ansiar por algo
que estava além de uma ingênua alienação da sociedade.
Ao contrário do espírito da época, o comportamento de Morrison não
era de atitude pacífica, mas de um confronto urgente, o que não
retirava o caráter de libertário de Morrison do contexto dos anos
1960. Infelizmente, Morrison foi vítima de sua própria armadilha.
Afinal, a ideia libertária dos anos 1960 também não vingou: a ideia
que ele sempre teve não era a de ser um sex symbol. Quis reconstruir
os mitos e acabou se transformando em outro mito (SANTOS in
TEIXEIRA, 2001b2, p.3)
Esse dilema se aproxima da abordagem do conceito de xamã na obra Dialética
do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer, livro em que o conceito de
indústria cultural irá ter uma de suas primeiras aparições e, nela, a ideia do xamanismo
como uma estratégia bem anterior e rudimentar à dominação da natureza. Rodrigo
Duarte, autor de Adornos – Nove Ensaios sobre o filósofo frankfurtiano e Teoria crítica
da indústria cultural, entre outros livros sobre o filósofo alemão, sugere uma
correlação:
O significado do xamã na obra dos autores é mostrar em que
medida a magia já era uma forma rudimentar na natureza por parte
do homem. No início, era uma atitude de defesa da pequenez do
homem face às forças muito maiores da natureza. Era uma espécie
de astúcia ainda inconsciente. A gente não pode fazer de certos fatos
um motivo para a resignação e o conformismo. É bem provável que
3
He was not a performer, he was not an entertainer, he was not a showman; he was a shaman; he was
possesed. The guy was possessed by a vision, by a madness, by a rage to live, by an all consuming fire to
make art. Tradução nossa.
4
FORBES, Gordon (dir.). The Doors: A tribute to Jim Morrison. Warner Home Video, 1981.
Jim Morrison seja um exemplo notável, ao lado de tantos outros
dentro da indústria cultural, de pessoas que têm essa
inconformidade com o sistema, que são criativas, que têm
referências literárias e filosóficas interessantes, mas na passagem
disso tudo no aspecto musical, já que é para ser rock, tem que caber
em uma forma muito tímida. Acho que o resultado final torna-se
pouco satisfatório para quem tem uma experiência maior. Vejo com
preocupação o alto nível de banalização da indústria cultural. Você
sente como é cada vez mais pobre em relação ao que era há dez,
vinte anos. Não é ainda o ideal, mas é possível ver uma abertura que
faça com que tal público tenha uma compreensão mais crítica do
sistema que levou a engendrar mitos como Morrison. Nesse aspecto
ainda não estou totalmente pessimista (DUARTE in TEIXEIRA,
2001b2, p.3)
Furor poeticus
Em uma tribo, os xamãs são capazes de se livrar do cotidiano terrestre e
mergulhar em outras dimensões de consciência através de um voo mágico, chamado
saivo. Ao contrário dos médiuns, os xamãs o fazem conscientemente: não incorporam
os espíritos, mas se movem em direção a eles. O xamã é também embalado por
substâncias que alteram o estado mental. Uma das mais tradicionais é o peyote, retirado
de um cacto mexicano. O pesquisador Humphrey Osmand escreveu um artigo em 1956
no qual descrevia os efeitos da mescalina, uma substância derivada diretamente do
peyote e criou o termo psicodelia, que reúne as palavras gregas psyche (alma) e delia
(revelação). Osmand mantinha correspondência com o escritor Aldous Huxley - que
mais tarde escreveria o seu próprio relato com a substância, The Doors of perception
(“As portas da percepção”), do qual Ray Manzarek e Jim Morrison retirariam as
palavras que batizariam o grupo. A expressão, por sua vez, é retirada de um trecho de O
Matrimônio do céu e do inferno, do poeta William Blake:
Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao
homem como de fato é, infinito. Pois o homem encerrou-se em si
mesmo, a ponto de ver tudo pelas estreitas fendas de sua
caverna.(BLAKE, 2000, p.37)5.
Para Coutinho, se o profeta Ezequiel aparecia para o poeta William Blake, o
poeta Allen Ginsberg teria afirmado que o próprio Blake, por sua vez, teria também
aparecido para ele e ditado algumas músicas. Na proposta de Santos, a ideia do furor
poeticus vê a poesia como uma linguagem secreta, baseada na sensibilidade e na
5
If the doors of perception were cleansed, everything would appear to man as it is, infinite. Far man has
closed himself up, till he sees all things thro’ narrow chinks of his cavern. Tradução de José Antônio
Arantes.
imaginação e nesta tradição estariam poetas como Blake, Walt Whitman, Edgar Allan
Poe, Emily Dickinson, Arthur Rimbaud, dentre outros – incluindo-se aí o próprio Jim
Morrison. “De fato, Morrison tem muito em comum com seus predecessores poéticos –
muito similarmente, ele permaneceu obcecado com o ‘atravessar rompendo para o outro
lado’ – para descobrir que possibilidades existem além do imediato e do material”
(MAGISTRALE6 apud SANTOS, 1996, p. 74). No caso de Blake, Mário Alves
Coutinho afirma que Blake aconselha não a resignação, mas a ação:
‘Aquele que deseja, mas não age, cultiva a peste’. Aqui a fala não é
somente dirigida ao desejo sexual, mas também ao desejo político e
religioso. Metafisicamente um poeta prometeico [o fogo do qual
Manzarek falou de Morrison anteriormente, perguntamos?], ele quase
sempre aconselha a ação, a tentativa, a quebra dos limites: ‘nenhum
pássaro voa muito alto, se voa com suas próprias asas’ e ‘nunca
saberás o que é suficiente, a não ser que saibas o que é mais do que
suficiente’ (COUTINHO in BLAKE, 2001, p.12)
No disco de estreia dos Doors esta e outras conexões ficam explícitas: as faixas
Break on Through – to the other side (atravessar rompendo para o outro lado) – cuja
música teve inspiração bossanovista em beat acelerado – e ainda – como admite John
Densmore no libreto do box set do grupo (THE DOORS, 1997), a canção End of the
night, que inclui outro verso de Blake: Some are Born to the sweet delight/Some are
Born to the Endless Night, versos que, na tradução de Coutinho ficam dessa forma:
Alguns nascem para o prazer/Alguns nascem para a Noite Infinita (BLAKE, 2001, p.
63). O título da canção também batiza a obra mais famosa do pensador francês LouisFerdinand Céline: Viagem aos confins da noite, outra referência notada no primeiro
verso da canção.
Intelectual, pintor e poeta, William Blake era um artista à frente de seu tempo e
sua obra exerceu influências diversas: do movimento surrealista à poesia beat. Dizia
conversar com os anjos, bater papo com o demônio, jantar com o profeta Ezequiel. O
poder imagético de suas gravuras reforça a dos poemas e se aproxima muito da
influência cinematográfica nos poemas de Morrison. Há quem associe a carreira e fim
trágico de Morrison a outra passagem de Blake: “o caminho do excesso leva ao palácio
da sabedoria”7.Coutinho também lembra a influência exercida do cientista e teólogo
6
MAGISTRALE, Tony. Wild Child: Jim Morrison’s poetic journeys. Journal of Popular Culture, v.
26: 3, 1992.
7
The road of excess leads to the palace of wisdom. Tradução nossa.
(para ficar com duas atribuições) de Emmanuel Swedenborg sobre Blake: os pais do
poeta teriam participado da igreja de Nova Jerusalém, criada por Swedenborg8.
Na vida, o excesso, a ruptura, o exílio. Na obra, o deslocamento, a imagem, a
fuga. Estes são alguns pontos de conexão localizáveis entre a carreira e produção de Jim
Morrison e o poeta francês Arthur Rimbaud, na concepção de Maurício Salles
Vasconcelos, autor de Rimbaud da America e outras iluminações – livro em que o autor
também associa o poeta francês à vida e obra da cantora e compositora Patti Smith.
Assim como Santos, Vasconcelos insere Morrison em uma tradição poética que
inclui nomes como Blake, o próprio Rimbaud, além dos autores do movimento beat
estadunidense: no lado da prosa, por exemplo, Jack Kerouac e seu On the road e, na
esfera poética, William Burroughs, Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. O
movimento beat surgiu em meados da década de 1940 nos EUA e se caracterizou pela
crítica árdua à sociedade tecnocrata – tratada no campo filosófico, por intelectuais como
Herbert Marcuse – e por uma produção poética que se caracterizava pela sonoridade e
pela imagem, sem a preocupação com rimas, fazendo elegias à liberdade e à celebração
da vida. Os antecessores do movimento, no escopo da própria literatura americana,
estão entre poetas e escritores como Walt Whitman, Dylan Thomas e Henry Thoreau.
Alguns biógrafos lembram que Morrison lia Rimbaud na Escola de Cinema da
Califórnia e também que On the road, de Kerouac, é um de seus livros de cabeceira.
SUGERMAN e HOPKINS (1994, p.23), contam que Morrison fugiu da lendária livraria
City Lights em São Francisco, núcleo embrionário da cultura beat – foi onde Allen
Ginsberg fez a famosa leitura de um de seus mais famosos poemas, Uivo, em 1955 –
quando avistou o ídolo Ferlinghetti no interior do recinto.
O direcionamento mais explícito das letras de Morrison para esse
diálogo com a literatura ocidental, e mais especificamente com
Rimbaud, torna favorável a inscrição do deslocamento, da fuga e da
força visual. A isso o letrista acrescenta outros, típicos de seu próprio
percurso no contexto contracultural, comportamental, da América dos
anos 1960. (VASCONCELOS in TEIXEIRA, 2001f, p.3)
Em seu livro, Fowlie (2005) aponta uma série de paralelos entre Rimbaud e
Morrison, como a curta trajetória artística, atitudes de rebeldia e sua seriedade, ausência
8
O escritor argentino Jorge Luis Borges dedicou uma de suas conferências na universidade de Belgrano a
Swedenborg, cuja doutrina, comenta Borges, prevê a manutenção do livre-arbítrio mesmo após a morte
do homem, bem como sua salvação pelo trabalho, pelas obras e, curiosamente, também por sua
inteligência. BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília: UnB, 2002.
do pai militar, a violência e o páthos, como temas. (FOWLIE, 2005, p. 32). O autor
avança para o detalhamento de alguns poemas de ambos, bem como letras dos Doors.
Aí Vasconcelos também lembra que o ritmo dos poemas, pontuado pelo fluxo de
“lentidão e velocidade” não por acaso são características próprias da imagem do lagarto,
que simboliza a um só tempo a preguiça e a celeridade – além de ser o animal que dá
nome ao poema e também à alcunha de Morrison: o Rei Lagarto (The Lizard King).
Para o autor, falar de Morrison como uma espécie de Rimbaud do Rock limita o espectro
de influência. O fato de Rimbaud e Morrison travarem contato com autores desregrados,
pulsionais, está relacionado ao fato de que Rimbaud não apenas leu seu tempo, mas o
escreveu. Em ambos não ocorre apenas a transfusão alquímica, altamente criativa do
repertório cultural de suas épocas. “Elas o escrevem dando forma, num risco integral (para usar
um adjetivo nietzschiano), a uma nova atuação ético-estética no que diz respeito ao lugar
reservado às palavras e às sonoridades.” (VASCONCELOS in TEIXEIRA, 2001f, p.3). A
conexão do auto-exílio de ambos também, para Vasconcelos, torna-se visível neste
momento e, o mais curioso, com um endereço extracontinental: Europa/França para
Morrison, África, para Rimbaud. Há talvez uma rápida alusão a esse ponto no verso
finalíssimo da canção Wild Child, quando Morrison pergunta: “você se lembra quando
estávamos na África?”9
Antonin Artaud, Bertolt Brecht, Living Theatre
Ele interpretou um revolucionário que morreu em uma banheira parisiense
devido a um ataque direto ao coração. Também descreveu experiências alucinógenas
com o peyote junto aos xamãs. Falamos do ator e teatrólogo Antonin Artaud, que viveu
o revolucionário Marat no filme Napóleon (FRA, 1926) de Abel Gance, e também autor
de livros como O teatro da crueldade e O teatro e seu duplo.
As ideias de Artaud ecoaram como uma bomba H nos anos 1960, especialmente
no estado sede do flower power estadunidense, a Califórnia, à época governada pelo
conservadorismo do ex-ator Ronald Reagan. Nos EUA, grupos como o The Living
Theatre adotaram as ideias de Artaud e, desde 1968, uma de suas peças mais famosas,
Paradise Now, recorria a conceitos artaudianos. Segundo a biografia de Hopkins e
Sugerman (1994) Jim havia sido adepto do Teatro da Crueldade em seus tempos de
colégio, quando leu Artaud pela primeira vez. Em 28 de fevereiro de 1969, Morrison
9
You remember when we were in Africa? Tradução nossa.
participou da última montagem de Paradise Now! quando o grupo esteve no campus da
Universidade da Califórnia do Sul. Durante cerca de quatro anos o grupo estava na
Europa. Tinha portanto, “se tornado internacional pela sua composição e conhecia os
argumentos para ultrapassar obstáculos de fronteira. Ocupavam os espectadores com
diálogo, molestando-os se necessário para conseguirem uma resposta, gritando as
palavras com angústria e frustração”. (HOPKINS e SUGERMAN, 1994, p. 192) Em
depoimento aos autores, o então representante do grupo, Mark Amatin, conta:
‘Estava a fazer o que pensava ser um trabalho missionário político e
espiritual’, diz Mark agora ‘e isto é que Jim quis descobrir. O seu
trabalho tinha sido uma experiência religiosa, mas tinha se tornado
uma diversão, e estava extremamente descontente. O Living Theatre
era constituído por espectadores que tinham ido ver a companhia e
não tinham conseguido ir-se embora, e Jim queria conhecer este
entusiasmo. Disse que queria incorporar uma mensagem política
naquilo que estava a fazer, mas não sabia como dirigi-la ou por onde
começar, sentiu que toda a gente estava à espera dele, pronta para
falar, pronta a obedecer cada palavra, e isso era de uma
responsabilidade tremenda, porque Jim não sabia o que dizer’
(HOPKINS e SUGERMAN, 1994, p. 191)
Certamente inspirado pelas ideias do Theatre – e, consequentemente, de Artaud
– Morrison promove, logo em seguida, o fatídico show em Miami, onde durante a
canção Five to One, provoca o público, acusa-o de ser “escravo”, de gostar de ter “a
cabeça atolada na merda”, simula uma masturbação, a polícia intervém e há o
pandemônio em meio ao qual Morrison foi acusado de exposição do membro sexual10.
Os Doors vivem em sequência sua estação no inferno, com shows cancelados
por todo o país e exterior e Morrison amargando um processo que seria uma das razões
de seu auto-exílio parisiense, onde, a três de julho, véspera da Independência nos EUA,
seria encontrado morto, numa banheira, pela namorada Pamela Courson. Causa mortis:
ataque cardíaco fulminante. Morrison tinha 27 anos.
Para a professora Vera Casanova, entusiasta das ideias e concepções de Artaud,
diz que acredita “mais no acaso, apesar do uso de drogas ter sido comum a Morrison e a
Artaud. Acredito que, se há convergência entre ambos é em função de uma determinada
lógica do êxtase, espécie de agonia do êxtase” (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g,
10
Dois anos depois, o Living Theatre vem ao Brasil e participa do V Festival de Inverno de Ouro Preto
para a montagem do espetáculo Herança de Caim. Precisamente no mês em que Morrison falece, o grupo
acaba sendo preso em Minas Gerais, acusado “de tráfico, consumo de tóxicos e posse de livros
subversivos”. REVISTA VEJA. Tóxicos – Teatro da vida. N. 149. !4 de julho de 1971, p. 28 e 29.
p.5). Segundo Casanova, os pontos nodais das ideias do teatrólogo, que influenciou
profundamente ao Living Theatre e Morrison estão todos ligados
ao corpo e à vida (o teatro é o duplo da vida!) e sobretudo às
rupturas de linguagem. O livro O Teatro e seu duplo, no entanto,
nunca deve ser lido como um guia ou tratado de onde se pode extrair
receitas para a renovação das artes cênicas. Em Artaud trata-se
sempre de denunciar o teatro digestivo, de entretenimento, ou aquele
absolutamente submisso ao texto, à ideia de autor. O sopro, o corpo
do ator como o do espectador, essa ‘ciência’ que deve possuir o ator
para conhecer com precisão os pontos do corpo para atingir, para
jogar o espectador no transe mágico. ‘O teatro é o estado, é o
lugar, o ponto onde podemos nos apropriar da anatomia do
homem e através dela curar e dominar a vida.’, é o que diz um
trecho de Aliéner L´acateur (1947) (CASANOVA in TEIXEIRA,
2001g, p.5).
À época dos Doors, nos anos 1960, tem-se, segundo Casanova, uma
explosão no mundo ocidental. Segundo ela, Artaud entraria aí como uma explosão do
teatro burguês, como também Brecht, Grotowski e W. Reich. “Havia muito mais coisa
do que uma influência. Havia um contexto com determinações que possibilitavam as
propostas revolucionárias. O impacto era da própria história que acontecia no Brasil e
no mundo. Artaud viveu também essa loucura da repressão e do fascismo em sua
época” (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5). Segundo a autora, muitos foram
influenciados pela proposta artaudiana, como Théatre de Soleil, Luca Ronconi, Victor
Garcia, Antunes Filho. E grupos teatrais como os de Peter Brook ou Charles Marowitz
reconheceram publicamente a importância de Artaud como um dos
fundadores do moderno teatro de vanguarda, ao chamarem o ‘Teatro
da Crueldade’ como experimental, ao tentar transcender as
limitações da linguagem, onde o silêncio ou o grito significam bem
mais do que possa se supor. Os anos 1960 descobrem também o poder
e o saber do corpo em cena. (...) Judith Molina, Julien Beck no Living
Theatre, dentre outros, leram Artaud e o aproveitaram, no que aquele
apresentava de ruptura do teatro convencional. A palavra falada –
centro do teatro convencional – passa ao segundo plano em proveito
do corpo, com impacto direto sobre o espectador, de acontecimento in
loco que podem ser absolutamente reais, mas também ficcionais,
quando está em jogo a improvisação do teatro da crueldade e o
envolvimento da plateia. (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5).
Além da influência notória de Artaud, os Doors também se inspiraram
explicitamente em Bertolt Brecht. Alabama song (Whisky Bar), é uma versão dos Doors
para a canção escrita após a I Guerra Mundial, em 1920, pelo dramaturgo. O original em
inglês da canção, intitulado simplesmente Alabama Song, foi retrabalhado por Bertolt
Brecht em parceria com o músico Kurt Weill (1900-1950) e é parte da opereta alemã
Ausfstieg und Fall der Stadt Mahagonny (Ascensão e queda da cidade de Mahagonny).
Segundo SUNDLING (1996) o grupo retirou a canção a partir de um álbum que o
tecladista Ray Manzarek tinha das canções de Brecht e Weill – o próprio tecladista, em
sua autobiografia (MANZAREK, 1998), atribui a ideia da versão à sua mulher, Dorothy
Fujikawa. Sundling cita os tradutores da versão inglesa da opereta alemã, Chester
Kallman e o poeta W. H. Auden: “tudo o que não pode ser convertido em dinheiro não
tem nenhum sentido, nenhum valor, nenhum efeito em Mahagonny”. Encenada na
Alemanha pré-nazista, funcionando também como crítica à América capitalista, a peça
causou polêmica, pois foi conduzida para fazer com que a plateia fosse parte daquela
autofagia capitalista.
Da mesma forma como na peça, Sundling observa como a canção dos Doors e,
mais genericamente, tanto a obra de Brecht como a do grupo californiano expõe como
uma moderna sociedade capitalista destrói a escolha humana (SUNDLING, 1996). Na
canção da peça, várias prostitutas cantam a necessidade de encontrar o próximo
“whiskey bar”, o próximo rapaz bonito (“pretty boy”), o próximo níquel (“little dollar”),
em uma peregrinação que mostra um mundo perdido em sua condição materialista. Na
versão dos Doors, o percurso é recantado por Morrison, que troca o rapaz pela garota e
omite o “little dollar”. Outra conexão lembrada pelo autor deste trecho se refere ao bar
Whisky-a-Go-Go (escrito assim mesmo, pois a lei não permitia o uso literal, portanto
correto, da palavra da célebre bebida escocesa nas fachadas de prédios), no qual os
Doors iniciaram a carreira e, certamente, tocaram a música. Não por acaso toda esta
temática se aproxima da Ópera do Malandro, em que Chico Buarque também utiliza
outra obra fruto da parceria Weill/Brecht, Die Moritat Von Mackie Messer, nas canções
de abertura e fechamento: O Malandro e O Malandro número 2.
Por fim, na conexão entre Brecht e Artaud, Casanova lembra que cada um a seu
modo se insurgiu contra o julgamento de Deus, ou seja, a sociedade burguesa, fascista,
hipócrita e perversa, que rotula, classifica e exclui, sendo incapaz de ouvir a voz como
um acontecimento de sentido. (CASANOVA in TEIXEIRA, 2001g, p.5).
Nietzsche
“Nietzsche matou Jim Morrison”, escreveu John Densmore em sua biografia
Riders of the storm (DENSMORE, 1991, p.3). A afirmação, como o próprio autor
reconhece no livro, é melodramática, mas abre as portas para outra conexão com a vida
e obra dos Doors: as ideias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Morrison tinha em
Nietzsche seu poeta e filósofo de cabeceira, principalmente através do livro O
Nascimento da tragédia, o primeiro escrito pelo pensador alemão. Há um curioso
registro no filme Feast of Friends, dirigido pelo amigo Paul Ferrara, onde o próprio
Morrison faz uma espécie de ode improvisada a Friedrich Nietzsche nos bastidores do
Saratoga Performing Arts Center (SPAC), realizado em 1º de setembro de 196811.
Nietzsche aponta que o nascimento da tragédia grega nasce da composição de duas
forças: a harmonia e o equilíbrio, vinculados à imagem do deus Apolo, e a impulsão, a
intuição e a espontaneidade, relacionadas ao deus Dionísio. Para Nietzsche, todo artista
deve aparecer como um ‘imitador’, seja como o artista apolíneo sonhador ou o artista
dionisíaco em êxtase ou, finalmente, como no caso da tragédia grega, o artista sonhador
e extático em um só.
Para o filósofo Olímpio José Pimenta a tragédia articula as duas coisas e faz uma
composição entre a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo. No caso grego, o coro
equivale à dimensão dionisíaca e o enredo à dimensão apolínea. É um momento
histórico onde “a Grécia arcaica, das epopeias, que representam harmonia e equilíbrio
encontra a balada e a dança, típicas do culto a Dionísio. (...) A convergência entre os
impulsos dionisíacos e apolíneos na tragédia é a marca da forma mais evoluída que a
humanidade já atingiu.”(PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8)
A tragédia se estenderia para além de uma forma de dramaturgia e alcançaria
uma profunda reflexão sobre a condição humana, pois os gregos estiveram entre as
primeiras civilizações a reconhecer o drama da existência.
Não temos imortalidade, nossos projetos são falíveis. Daqui a cem
anos todos aqueles que gostamos não estarão mais por aqui. O que
fazer? Sofrer com esperanças em uma imortalidade como sugere o
Cristianismo ou fazer a inveja dos deuses que me fizeram passar por
isso, celebrando a tragicidade de nossa condição? Essa é a questão
11
O texto que Morrison entoa é assim transcrito pelo comentário de Highway Star89 no youtube (outro
comentário, de cnedwick, também afirmou ser a primeira vez que o local, habituado apenas a concertos e
bales, abriu seu espaço a uma banda de rock): He threw his arms around the horse's neck and kissed him
everywhere i love my horse a crowd gathered his landlord appeared and took frederick back up to his
room on the second floor where he began to play the piano madly and sing madly like…..ooooooh.....i'm
crucified and inspected and resurrected and if you don't believe that i'll give you my latest philanthropic
sonata and the landlord's family was amazed so they sent for his friend Overbeck and he got there in
three days by coach and they took frederick to the asylum and his mother joined him and for the next
fifteen years they cried and cried and laughed and looked at the sun and everyone. Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=1RlrPV3cHag. Acesso em 07 de agosto de 2013.
apresentada por Nietzsche (...) Sofrimento é matéria-prima para
qualquer grande obra. Mas fazer a inveja dos deuses que me fizeram
passar por isso é um caminho áspero. Afinal, nada de grandioso é
obtido facilmente. Nossa época é muito cínica porque sugere o
contrário: se você quiser ficar numa boa, que tome um Prozac.
(PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8)
O mundo dionisíaco dribla a união entre homem e natureza – força primitiva
presente em todas as coisas. E aqui recuperamos o argumento apontado por Marcel de
Lima Santos do poeta-xamã, dionisíaco porque é um homem em conexão com o mundo
além da razão: o que fica escondido no poeta apolíneo deve tornar-se explícito no poetaxamã. De acordo com Pimenta, tanto Nietzsche como Morrison dentre uma série de
outros pensadores-artistas têm a percepção de que a vida vale para além da finitude.
“Morrison se pauta por essa assimilação. Ele está querendo também transformar a
experiência existencial em uma obra de arte. Tinha o instrumental poético, estudou
cinema, mas tentou reconhecer o trágico de nossa condição através mesmo do
rock´n´roll” (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8).
Para o professor, a estratégia de celebrar os desacertos inerentes à vida faz com
que o homem seja invejável aos olhos dos deuses. “Veja o caso de The End, por
exemplo. Na hora que canta o fim, se ultrapassa e se celebra essa tragicidade. Morrison
e os Doors falam da finitude, mas conferem à essa intervenção um caráter sublime”
(PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8)
A música, que foi utilizada em sequências seminais do filme Apocalypse Now,
de Francis Ford Coppola – contemporâneo de Morrison na Universidade de Cinema da
Califórnia – é, nas palavras do próprio letrista, “uma canção de adeus”, mas que mistura
imagens fortes, elementos de psicodelia e, obviamente, da tragédia edipiana - sua
inclusão na música motivou a expulsão do grupo durante show na casa Whisky-a-GoGo em 21 de agosto de 1966 (THE DOORS, 2013). Outro exemplo seria Break on
through (to the other side). “Entrar para rachar: para se ter uma elaboração da realidade,
há necessidade de uma reflexão, de ir além dela. Não se trata de uma busca puramente
hedonista: não é prazer imediato, o que se busca é conhecimento, é expansão da
consciência” (PIMENTA in TEIXEIRA, 2001d, p.8). Ainda assim, a proposta dos
Doors e Morrison foi derrotada.
Ele perdeu. Foi destruído, dilacerado pelo mercado. A fruição da
obra de arte dele depende da preparação de um auditório. Não é para
consumo rápido. O que aconteceu com o Nirvana é a retomada do
problema. Eles tinham uma banda de garagem, com uma proposta
interessante – vide a capa de Nevermind – mas aí rapidamente outras
forças entram em jogo e domesticam tudo. É o problema de se
contratar a cultura com a grana, tema também presente na Crítica ao
Filisteu, outro texto de Nietzsche. Apesar desse cenário torna-se
necessário cada vez mais e melhores blues. Em nosso dia-a-dia, por o
nosso serviço a serviço da proposta desses pensadores-artistas. A
vida só ganha dignidade se for celebrada artisticamente. (PIMENTA
in TEIXEIRA, 2001d, p.8)
Música
Jazz, blues, flamenco, música hindu e até mesmo bossa-nova. Vários gêneros
musicais estão presentes na obra dos Doors. O baterista John Densmore que, como o
colega Manzarek, estudava e tinha apreço por obras do jazz e blues, afirmou que Break
on through é uma Bossa Nova acelerada e que o grupo compôs a música na praia de
Venice, na Califórnia, imaginando estar em Copacabana. O músico e citarista Alberto
Marsicano, autor das compilações Rimbaud por ele mesmo e Jim Morrison por ele
mesmo, também aponta que: “enquanto no Brasil se discutia a admissão da guitarra na
música brasileira, os Doors incorporavam a Bossa-Nova às suas canções em Light my
fire e, como eles próprios admitem, Break on through. Quanto a Light my fire, basta
ouvirmos a versão de Jose Feliciano para percebermos a sintonia”. (MARSICANO in
TEIXEIRA, 2001h, p.8). Carlos Santana é outro nome que buscou tal influência – e
outro nome que os próprios Doors julgam também ter influenciado. “Eu acredito que
Santana estava em nosso show no Matrix aquela noite. Dei a ele algumas ideias”, disse
Robby Krieger no libreto do Box Set (THE DOORS, 1997, p. 39) sobre I can’t see your
face in my mind e a temporada do grupo na célebre casa de shows de São Francisco
entre 7 e 11 de março de 1967.12
Marsicano lembra que, se um dos grandes méritos do rock se concentra na
pulsação e no fluxo sonoros, muitas vezes as letras tornam-se meramente acessórias à
vibração da música. “O que não parece ser o caso de Morrison, um dos poucos grandes
monstros do rock que tiveram uma boa formação literária, além da musical. Você conta
nos dedos, citaria, por exemplo, Bob Dylan e John Lennon. Na maioria das vezes,
prevalece uma temática romântica sem profundidade” (MARSICANO in TEIXEIRA,
2001h, p.8). Por fim, ao contrário de muitas bandas da Califórnia, no caso dos Doors
todos os músicos da banda estudavam e seguiam sua formação como tal – e não
assumindo espontamente o papel de instrumentista, como anos depois o próprio punk
12
I think Carlos Santana may have been at the Matrix that night. Give him a few ideas! Tradução nossa.
vai apregoar. Os shows do grupo, especialmente os que aconteciam em espaços
fechados, não eram simplesmente música. Segundo o citarista, o grupo tinha um lado
cênico muito bem consolidado.
Marsicano13 também aponta influências wagnerianas nos espetáculos. “A ideia
de conduzir gradativamente a música e o show, como durante a execução de When the
music is over no qual se começa baixinho, passa por um suspense sustentado e culmina
em uma explosão, levando o público a uma espécie de orgasmo, é característica dos
shows do grupo”. (MARSICANO in TEIXEIRA, 2001h, p.8). A mesma estratégia
também está presente na referência hindu de canções como The End, inspirada em culto
ao deus Ghiva. “A música, na verdade, é uma releitura de um ragga denominado Bhin
Palasi e é resultado de outra forte influência do grupo: o guitarrista Robby Krieger é um
dos poucos que toca a guitarra como cítara.” Marsicano, que conheceu Krieger
pessoalmente durante uma estada em Los Angeles - “tivemos formação de cítara
segundo a Escola Kinnara – aponta outras particularidades sobre o guitarrista: “ele
aprendeu flamenco, toca sem palheta, e é um dos poucos que têm uma concepção de
que as cordas melhoram com o tempo, chegando a ficar cinco ou seis anos com as
mesmas cordas. É uma rara concepção para os dias de hoje”. (MARSICANO in
TEIXEIRA, 2001h, p.8). Krieger também estudou violão clássico e flamenco, o que fica
evidente em músicas como Spanish Caravan.
A influência do grupo repercutiu em vários outros. Nos anos 1970, Iggy Pop
chegou a fazer um show tributo em homenagem a Morisson em quem confessadamente
se inspirou. O mesmo fez Nico e John Cale do Velvet Underground (há uma versão de
Nico, que flertou com Morrison, para The End). David Bowie admitiu em entrevista que
uma música sua como Changes e especialmente o verso turn and face the strange
(“vire-se e encare o estranho”) foi obviamente “chupada do estilo Jim Morrison/Syd
Barret de escrever” (BOWIE in CUNHA, MIRANDA e TEIXEIRA, 1994). Nos anos
1980, a referência maior está nos álbuns do grupo Echo and the Bunnymen, que incluía
no repertório Soul kitchen e The End, além da versão People are strange” para o filme
Os Garotos Perdidos, ao lado do tecladista Ray Manzarek. No final dos anos 1990 um
13
O citarista recebia, via fax, no momento da entrevista uma cópia traduzida de Fernando Pessoa para o
poema Hino a Pan, do ocultista Aleister Crowley – que figura tanto na capa dos Sgt. Pepper´s Lonely
Hearts Club Band, dos Beatles, como na contracapa da coletânea 13, dos próprios Doors, lançada em
1970. Crowley também ficou conhecido no Brasil por ter inspirado Paulo Coelho e Raul Seixas na
proposição da Sociedade Alternativa. Um trecho do poema foi incluído na matéria.
disco tributo e a entrada da banda no Hall of fame do rock trouxe novos adeptos: Perry
Farrel, Ian Curtis, Eddie Vedder. No Brasil, o “rock bossa-nova” de Light my fire
ganhou diversas versões, como as de Maysa e do grupo Baobás nos anos 1970 e a de
Gato Jair e Marcelo Dolabela para uma fita demo da banda belo-horizontina Último
Número nos anos 1980 (Vem garota me incendiar). A capital mineira é também
conhecida em seu circuito de shows por possuir uma diversidade de bandas cover de
rock. E, no caso específico do Doors, bandas como Overdoors e Santa Matilde.
Cinema
O programa para esta tarde não é novo. Você já tem visto este
entretenimento várias vezes. Tem visto seu nascimento, vida e morte.
Você pode se recordar do resto. Você teve uma vida interessante ao
morrer? O suficiente para que um filme pudesse se basear nela?14
Retirado do álbum e de um de seus livros de poemas, An american prayer, os
versos acima ficam sintomáticos quando, após sua morte, a própria história de Morrison
tornou-se matéria-prima para um filme. Nos anos 1990, Oliver Stone apresentou uma
versão ao mesmo tempo fiel à época e à atmosfera mitológica criada em torno de
Morrison.
A situação torna-se ainda mais interessante quando se sabe que Morrison e o
tecladista Ray Manzarek – que produziu alguns filmes e clipes do grupo – além de fãs
de Godard, foram colegas da escola de cinema de Los Angeles (UCLA), que reunia
outros nomes importantes como Francis Ford Coppola. Mas, enquanto Stone foi lutar no
Vietnã, Dennis Jakob, amigo comum de Morrison e Coppola, mais tarde consultor
artístico deste para o épico Apocalypse Now, sugeriu a utilização da canção The End em
sequências iniciais e finais do filme – que usa justamente o Vietnã como metáfora para
várias guerras, da mesma forma que o grupo trabalhou a canção The Unknown Soldier –
embora, no palco, o recado fosse claro, com a performance de todo o grupo construindo
um pelotão de fuzilamento: Densmore no tambor bélico, Krieger na metralhadoraguitarra, Morrison como alvo que se vai ao chão, enquanto Manzarek levantava o punho
no clássico gesto dos Panteras Negras.
14
The program for this evening is not new. You have seen This entertainment through and through.
You've seen your birth, your life and death; you might recall all of the rest — (did you have a good world
when you died?) — enough to base a movie on? Tradução nossa.
Morrison chegou a morar um tempo com Jakob antes de mudar para o sótão de
um galpão abandonado, onde consolidou muitos de seus poemas – boa parte dos quais
seria posteriormente musicada pelo grupo. Em muitos deles a preocupação rimbaudiana
com a alquimia do verbo e o poder imagético da palavra, também herdado de Blake e
dos poetas beats. Morador de Los Angeles, como diria Umberto Eco, o pé esquerdo fica
no acelarador dos automóveis e o pé direito é um apêndice morto, o deslocamento
constante produz, por excelência, essa sensação de cenas sequenciais, travellings que
ecoam em vários de seus versos e músicas, como Cars hiss by my window ou
L.A.Woman. (TEIXEIRA, 2001c, p.8 e TEIXEIRA, 1995).
Inspirado pelas ideias de vanguarda no cinema da época, como Godard,
Morrison produziu para concluir seu curso o que dizia ser “menos que um filme e mais
um ensaio sobre o ato de filmar” e misturou cenas aparentemente desconexas como um
strip-tease de uma loura a nazistas em marcha. Depois, já famoso, chegou a abrir uma
produtora com dois amigos da Ucla, Paul Ferrara e Frank Lisciandro, com os quais
produziu roteiro e filme nos quais precisamente se enfatizava a estrada, a mobilidade, o
nomadismo como The Hitchhiker e HWY, respectivamente.
Em sua versão cinematográfica, The Doors – o filme (EUA/1991), de Oliver
Stone, ao mesmo tempo em que impressiona pela esmerada reconstrução da época
(especialmente pelas sequências ao vivo) pela referência a algumas ideias centrais do
grupo (como o xamanismo) e pelo elenco (Kilmer literalmente incorpora Morrison no
filme), o longa de Stone exagera numa vertente hedonista, necrófila e sombria do líder
do grupo, ao mesmo tempo em que suaviza a imagem da meiga, porém explosiva,
parceira de Jim, Pamela Courson (Meg Ryan). A sequência em que os Doors, no filme,
tocam Not to touch the Earth resume o filme: boas cenas de palco, xamanismo, mas
também, em montagem alternada, o contraponto com situações sórdidas inexistentes
“na vida real” do casal ou do grupo. Não que Morrison fosse propriamente um santo,
mas a imagem de rebelde sem causa não casa com a proposta do grupo e de seu
principal mentor que via nos shows e nos discos uma possibilidade da celebração
dionisíaca e da poesia se sobrepor à tietagem, à idolatria e à indústria cultural – que,
sabemos, acabou vencendo a parada: Morrison se afundou em seus próprios excessos.
Não sabemos se atingiu a sabedoria ou o Nirvana, mas alcançou uma das propostas do
grupo, quando de sua criação à beira da praia de Venice, Califórnia: “erguer monstros,
criar mitos”. (TEIXEIRA, 2001c, p.8 e TEIXEIRA, 2001a, p.8).
Considerações finais
O objetivo aqui foi o de apresentar um rol das influências e conexões possíveis a
partir da vida e obra do grupo The Doors, em especial o vocalista Jim Morrison, como o
xamanismo, a filosofia, a poesia, o teatro, a música, dentre outras. Destarte detectar
como a trajetória biográfico-artística do grupo traz elementos que podem motivar no
alunado a discussão e o aprofundamento de cada um dos sete temas propostos – aqui
sempre sob a forma de pistas, intenções, perspectivas de abordagem, enfim, algumas
portas temáticas para estudo, pesquisa e ensino que podem se abrir atrás do The Doors.
Referências
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Latino-Americana. Secretaria Municipal de Cultura/Câmara Mineira do Livro. Centro de
Cultura Belo Horizonte. Belo Horizonte, 18 de agosto de 2001. Organizador e debatedor ao lado
de Marcel de Lima Santos, da PUC-MG e José Antônio Orlando, FUMEC, com participação
espontânea (e imprevista) do poeta Paulo Leão (“eu sou semiótico! Eu sou semiótico!”)
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Escola Livre Comuna S.A. Belo Horizonte: março, 1999.
TEIXEIRA, Nísio. ‘Um rock no meio do caminho’ - subsídios para a implantação de um
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THE DOORS. Lyrics 1965-1971. London: Omnibus Press, 1992.
VASCONCELOS, Maurício Salles. Rimbaud da América e outras iluminações. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000.
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