Práticas Interacionais em Rede Salvador - 10 e 11 de outubro de 2012 O DESENVOLVIMENTO DA LEITURA CRÍTICA E O PAPEL DO JORNAL ESCOLAR NO PROCESSO J. Péricles Diniz1 Resumo: Práticas de incentivo à leitura e de desenvolvimento do senso crítico com vistas ao exercício pleno da cidadania têm sido sugeridas, avaliadas e propostas por educadores e pesquisadores envolvidos com o tema. Questões que passam pelos processos de interpretação e atribuição de sentidos e significados entre autor/produtor e leitor/consumidor, em movimentos contínuos de afirmação e negação. Transpassado pelo desenvolvimento dos aportes tecnológicos que levaram o trânsito da informação do impresso ao digital, este universo tão caro ao educador quanto aos profissionais de comunicação transforma a si próprio e aos seus agentes no tempo e no espaço, em busca de alternativas e soluções criativas e emancipadoras. A iniciativa de edição compartilhada de jornal escolar certamente é uma delas. Palavras-chave: leitura, interpretação, novas tecnologias, jornal escolar. Abstract: Practices to encourage the development of reading and critical thinking with a view to the full exercise of citizenship have been suggested, evaluated and proposed by educators and researchers concerned with the issue. Questions that go through processes of interpretation and attribution of meanings between author/producer and reader/consumer, in continuous movements of affirmation and negation. Interwoven by the technological development that led the information traffic from printed to digital this universe, so important to the education and communication professionals, transforms itself and its agents in time and space in search of alternatives and emancipatory creative solutions. The initiative in shared editing of school newspaper certainly is one of them. Keywords: reading, interpreting, new technologies, school newspaper. O ato de leitura é idiossincrático e sua experiência intransferível, envolvendo esforço, atenção e concentração. Ler requer memória e o conhecimento de si, do outro e do mundo. A leitura implica em um diálogo entre o leitor e seus autores, cada qual com tempo e contexto próprios, perfazendo os vários significados históricos, políticos e estéticos que as gerações lhes atribuem. Assim sendo, é o leitor quem legitima o texto, conferindo-lhe atualidade e o (re)interpretando. No percurso desta trilha, ele estabelece normas e padrões de filtragem, cria umas, rompe e subverte outras, explicitando com isso o seu caráter potencial ao mesmo tempo conservador ou emancipador. 1 José Péricles Diniz é jornalista, coordenador do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), mestre em Educação e doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). E-mail: [email protected]. Trata-se de um jogo contínuo entre reafirmar e questionar, um movimento que estabelece as condições de diálogo com o texto a partir da construção de sentidos, vez que toda obra é essencialmente lacunar, ou seja, pontuada por vazios e negações, mas igualmente polissêmica, onde tais lacunas são preenchidas pelo leitor à medida em que lança mão de suas interpretações. Neste sentido, resulta bastante esclarecedora a afirmação de Paulo Freire (1993, p. 43) de que “a leitura de um texto é uma transação entre o sujeito leitor e o texto, como mediador do encontro do leitor com o autor do texto”. Leitura e interpretação de textos Partindo de pressuposições como a de que não é possível ler sem escrever e viceversa, ele advoga que “a compreensão do texto não se acha depositada, estática, imobilizada nas suas páginas à espera de que o leitor a desoculte” (FREIRE, 1993, p. 43), deixando claro que o ato de dar significado àquilo que está escrito é também uma experiência criativa e dialógica. E arrisca, neste sentido, o prognóstico de que seria através da experiência de recontar a estória, deixando sua imaginação, seus sentimentos, seus sonhos e seus desejos livres para criar que a criança terminaria por arriscar-se a produzir a inteligência mais complexa dos textos (FREIRE, 1993, p. 45). A palavra-chave em toda esta questão é significado. Para o aluno, aprender a ler precisa fazer sentido. Pois a leitura envolve necessariamente a interação entre autor e leitor, através de um roteiro de comunicação que sempre vai envolver problemas de decodificação, os ruídos ao pleno entendimento de significados. No ambiente escolar, por sua vez, cabe ao professor intermediar esta relação, tornando-a o mais fluida possível. Assim, tanto o material escrito quanto os conhecimentos prévios do leitor vão interagir para que ele chegue à compreensão. Portanto, se ler é produzir sentido, cada um fará de maneira individual, subjetiva, mas sempre influenciado – ou mesmo determinado – pelas relações políticas nela envolvidas. Interpretar envolve relação de poder, de apropriação e proximidade dos códigos considerados cultos, corretos, apropriados. Além disso, é preciso observar que para a sociedade contemporânea pensamento e linguagem operam através de esquemas sintáticos e semânticos amplamente dominados pela escrita. Este traço é tão marcante que a própria oralidade deve responder às expectativas da língua escrita. A partir de tal constatação, foi necessário inclusive resgatar e aprofundar termos como letramento, que pode ser definido como o uso social e cultural da língua escrita através dos seus variados formatos e possibilidades. O que certamente vai variar no tempo e no espaço em relação a conjunturas culturais, tecnológicas e políticas distintas. Do impresso ao digital A importância da leitura enquanto prática social pode ser igualmente mensurada sob o prisma do seu inevitável relacionamento com a tecnologia. Partindo da constatação de que os jovens estudantes de uma maneira geral costumam interessar-se mais pelos veículos das novas mídias (tevê, videogame, computador pessoal, tablets e celulares) do que pelo texto impresso, o uso das tecnologias eletrônicas em sala de aula como suportes para gerar interesse pela leitura da palavra escrita tem sido cada vez mais difundido e, sempre que possível, praticamente inevitável. Todavia, a rapidez com que o fenômeno de digitalização de textos se impõe a todo o processo produtivo cultural e acadêmico exige respostas igualmente ágeis às questões daí derivadas, desde as etapas da criação, em sua forma e conteúdo, estilo e linguagem, até a edição e distribuição, entre outros fatores que vão interferir até mesmo no modo de se ler. Sem esquecer discussões importantíssimas, como a propriedade intelectual, democratização do acesso e preservação de culturas e modos de fazer originais. Com a informatização, as etapas industriais de confecção de um livro ou jornal, por exemplo, foram enormemente agilizadas e barateadas, alterando os custos envolvidos na produção, embora este talvez não seja o ponto mais importante da equação. O que deve afetar de maneira mais significativa esta relação é mesmo o fato de não mais dependermos dos formatos impressos para ler um livro, uma revista ou um jornal. Agora, o fazemos com enorme facilidade através da tela de um computador, dos tablets, celulares ou qualquer um dos inúmeros aparelhos eletrônicos que têm sido desenvolvidos como plataformas digitais de leitura. Neste sentido, autores como André Belo (2002, p.18) avaliam que um texto apresentado por intermédio destes novos veículos vão ser lidos inevitavelmente de maneira diferente, uma vez que "desaparecem os gestos e as sensações do leitor associados ao manuseio do livro impresso e muda a sequência da leitura". Em lugar de uma ordem linear, que parte de uma capa para a folha de rosto, índices e páginas iniciais até o final, um produto digital não precisa seguir - e geralmente não o faz - nenhuma lógica formal entre as partes ou os capítulos, permitindo ao leitor elaborar e modificar trajetórias de leitura e navegação as mais diversas e originais. Tal característica, em certo sentido, está presente no formato do jornal impresso desde os seus primórdios, ao oferecer uma diagramação e uma paginação que permitem e até mesmo induzem o leitor a identificar os temas e assuntos que mais o interessam, separados em editorias e cadernos específicos, selecionando o conteúdo que deseja ler. Entre os veículos de comunicação tradicionais, apenas o impresso possui este nível de interatividade, já que até o advento da digitalização o rádio e a tevê limitavam-se a oferecer pacotes prontos de programação que deixavam ao ouvinte ou espectador somente a alternativa de mudar de canal ou desligar o aparelho. O máximo de ingerência possível acontecia por meio das pesquisas de audiência e opinião, cartas ou telefonemas com críticas e elogios à programação. No jornal impresso, mesmo sem interferir diretamente no conteúdo, o leitor sempre pode eleger por onde iniciar a leitura, o que deixar de lado, ao que dedicar mais atenção e o que apenas dar uma olhada. Exatamente como ocorre - evidentemente que de maneira bastante ampliada e dinamizada com os menus dos ambientes informáticos, onde a navegação requer uma edição crítica dos conteúdos disponibilizados. Neste sentido, o hábito da leitura do jornal pode, inclusive, facilitar a familiarização dos novos usuários aos sistemas de informática. Merece destaque, contudo, outras das características muito específicas do texto digital apontada pelo autor: Por outro lado, em vez de sublinhar e anotar a lápis ou caneta nas margens do texto impresso, o leitor pode intervir diretamente sobre um texto digital, adicionando-lhe comentários, alterando-o, copiando-o por meio de um simples comando para novos documentos, juntando-o, por exemplo, a outros textos sobre o mesmo assunto que foi arquivado no computador. Recurso extraordinário, a pesquisa por palavra permite ao leitor digital percorrer o interior de um livro em busca de uma mesma expressão a uma velocidade que nenhum leitor da era do impresso, por mais rápido que fosse, podia sequer imaginar (BELO, 2002, p.19). Aspecto relevante desta discussão diz respeito ao temor de a generalização dos computadores pessoais leve ao desestímulo à prática de leitura de livros, jornais e periódicos. À parte o registro de que tal vaticínio seja já recorrente, sobretudo quando da popularização do rádio e, depois, da televisão, é importante salientar que a rede mundial de informação configurada através da internet tem sido constantemente abastecida com um volume gigantesco de textos os mais diversos, multiplicando a possibilidade de leitura (inclusive podendo-se imprimir os arquivos digitalizados) de obras exclusivas, raras, esgotadas ou inacessíveis até então. Além disso, a facilidade em produzir, editar, publicar e até mesmo divulgar textos inéditos representa uma revolução em grande potencial para as práticas de leitura, tanto em relação à produção literária, técnica ou acadêmica, quando na divulgação de informação de interesse pessoal ou coletiva. Contudo, a característica mais facilmente verificável da disseminação das novas tecnologias sobre os saberes e fazeres contemporâneos, mormente a comunicação social de maneira geral e a educação mais especificamente, é a sua enorme capacidade de potencialização da informação, o que funciona tanto para as continuidades quanto para as rupturas. Tal potencialização alcança a chamada pós-modernidade, estabelecida para fins didáticos a partir do final dos anos 1960 e até pelo menos o início da década de 1990, num ambiente de crise econômica do capitalismo (que apenas se agrava com o fim do socialismo estatal) e com uma profunda revolução nos costumes, marcada por movimentos como o feminismo, a reafirmação de minorias étnicas, as lutas pelo estabelecimento de cidadania e direitos humanos e mesmo a ampliação da consciência ecológica. Tudo isso vem acompanhado pelo igualmente intenso impacto das tecnologias da informação: dos satélites à portabilidade digital. Ao analisar a condição de assombro como componente intelectual, para além da definição filosófica de origem do conhecimento, Nestor Canclini (2008, p. 15) afirma que “embora continue havendo inovações na arte e surpreendentes descobertas científicas, as maiores fontes de assombro, agora, provêm da diversidade do mundo presente na própria sociedade e daquilo que está distante ou é ignorado e que a conectividade aproxima”. Ele trata de um assombro contemporâneo “perante a multiplicação do heterogêneo” (CANCLINI, 2008, p.16), para advertir sobre o risco de se confundir a profusão das fontes de informação com a própria realidade, ou ainda a dispersão com o fim do poder. Escapa, ele próprio, das generalizações do tipo homogeneização do mundo ou, por outro lado, de uma subjetividade incondicional, a fim de buscar definir um entendimento do que seriam as audiências, os públicos dos dias atuais. E lembra que é a indústria quem está fundindo, recombinando e descobrindo novos usos às plataformas e linguagens disponíveis tanto para a comunicação quanto para as artes, o entretenimento, os negócios e a educação. Segundo ele, o processo tecnológico de convergência digital tem levado a novos hábitos culturais e de consumo de bens artísticos e de entretenimento. Não aposta, contudo, num estado de passividade irremediável, lembrando que “até mesmo o consumo da mídia aparentemente mais inativa implica em apropriação e reelaboração daquilo que se vê” (CANCLINI, 2008, p. 42-43). Adverte, também, que “conectividade não é sinônimo de interatividade” (CANCLINI, 2008, p. 52). As novas tecnologias proporcionam o surgimento de novos contextos, geradores de novas maneiras de ser, pensar, agir, sentir e atribuir valores, ou seja, novos padrões de comportamento. Este ambiente produz uma estrutura social, caracterizada pelas relações em rede, por uma economia informacional e global, transpassada pelo que Manuel Castells (1999, p. 6) define como cultura da virtualidade real, onde a “revolução da tecnologia, a reestruturação da economia e a crítica da cultura convergiram para uma redefinição histórica das relações de produção, poder e experiência em que se baseia a sociedade”. Com isso, um desenho social inédito começa a ser escrito a partir de uma re-acomodação estrutural nas relações de produção e de distribuição da riqueza. Trata-se de um ambiente de economia globalizada e interdependente, com flexibilidade organizacional, enfraquecimento sindical e relativização das conquistas históricas do estado de bem-estar social, com descentralização do capital, mas com perversa exclusão. “Essas transformações conduzem a uma modificação também substancial das formas sociais de espaço e tempo e ao aparecimento de uma nova cultura”, alerta Castells (1999, p.7). Como já foi lembrado, uma das marcas desta cultura é a digitalização, a partir da oferta interminável de informação digitalizada e que, assim, passa a não mais depender do suporte físico (o papel de livros e jornais, as telas das pinturas, os filmes fotográficos e fitas de vídeo etc) ou mesmo de uma plataforma, gênero ou linguagem específica (o impresso, a rádio, o cinema ou a tevê). Os chamados novos meios, além de multimídia e digital, são modulares, de estrutura fractal, intermediados por bancos de dados e memória cada vez mais interconectados. Bem como interativos, costumizados, personalizados, atualizados instantaneamente e hipertextuais. Hipertexto A propósito, Hercílio Quevedo (2002, p.75) define o hipertexto como “um fenômeno pós-moderno que alterou de maneira definitiva as relações até então existentes entre os indivíduos e a informação”. De fato, a leitura de um hipertexto remete à formulação de novos textos, utilizando-se para isso do próprio computador, que estaria assim formando uma geração de leitores que se relaciona com a tecnologia de maneira inédita, mais eficaz e totalmente diferente do que se fazia até então. Algumas das principais qualidades do hipertexto são a multimidialidade proporcionada pela convergência digital dos mais diversos suportes de armazenamento e processamento da informação; a interatividade que assegura não apenas uma navegação hipertextual ágil e aberta mas também a troca contínua de mensagens e a formação instantânea de fóruns de discussão; a customização que atende às preferências e lógicas de navegação do usuário; a atualização contínua e, sobretudo, a consolidação de uma memória ampliada, cumulativa e coletiva. Claro, muitas destas características não surgiram com a web, mas já estavam presentes no próprio formato de leitura baseado no códice, ao tempo em que os almanaques, enciclopédias e dicionários há muito oferecem informação de matizes os mais vários, diversificada e classificada, acessível e personalizável, com registro memorável, extenso e de certa forma tornado atual sempre que possível. O que faz a internet é potencializar e tornar praticamente ilimitada esta gama de informação produzida, recuperada, acessada e modificada continuamente no tempo, quando o texto é atualizado, e espaço, ao ser ampliado. Seguindo um modelo de funcionamento que tem referência com a própria dinâmica do pensamento humano, o hipertexto trabalha com a livre associação de ideias, seguindo um fluxo interminável que leva algo, a partir de um ponto qualquer, a outra coisa e assim por diante. Os limites a este tipo de navegação aberta são estabelecidos pelo conhecimento e a própria experiência de vida do usuário, ou seja, cada indivíduo e suas preferências e limitações é que vão determinar os caminhos a seguir e o ritmo e velocidade com que isso acontece. Tudo isso, logicamente, traz conseqüências à própria essência do conhecimento produzido, distribuído, compartilhado e consumido na rede mundial de computadores. Outra questão que parece claro é que o potencial das mídias digitais tem sido subutilizado, ou seja, ainda usamos as novas tecnologias com a mesma lógica que balizou as antigas, deixando de perceber possíveis modificações de ordem ética, estética e até mesmo política na própria essência de todo o processo. Seriam mudanças profundas no modo de produzir e difundir saber, de fazer pesquisa e distribuir seus benefícios. Mudanças nas bases geopolíticas da liberdade de expressão e no poder representativo. Para tanto, é necessário perceber antecipadamente se a discussão será sobre o grau de acesso e utilização das novas tecnologias ou, na verdade, sobre as intenções de quem detém poder sobre os seus usos. A questão, então, não seria sobre a linguagem ou o meio que vão determinar as formas de lidar com elas, mas sobre as intenções que construirão as relações nela implícitas. Quando, então, centramos a questão nos eixos da ética e da estética, certamente seremos remetidos a uma dimensão política. Porque a disposição em buscar uma nova ética e uma nova estética para a linguagem das novas mídias tem obrigatoriamente de partir de um posicionamento político em relação aos usos destes veículos: quem vai usar, como e para quê? Para mudar (ou manter) quais tipos de estruturas e relações sociais? Trata-se de entender que uma nova linguagem vai surgir da busca por uma nova forma de fazer, de usar a tecnologia digital. Para tanto, não funcionaria tentar utilizar os novos veículos digitais disponíveis com uma lógica gerada em um contexto que se vai ultrapassando, um contexto diríamos - analógico. Pois não se pode esperar que a informática transforme-se, por si só, em um instrumento de educação, por exemplo, vez que o trabalho com a máquina não deve automatizar os pensamentos. Antes pelo contrário, tais ferramentas têm o potencial para fornecer elementos como a originalidade e a criatividade tão necessários à construção do indivíduo enquanto sujeito de sua história. É a escola quem deve promover meios de fomento à leitura regular de revistas e periódicos de vários tipos, inclusive as fotonovelas e histórias em quadrinho, que podem não frequentar as listas de referências da maioria absoluta dos mestres e professores das redes formais, mas com toda certeza habitam as preferências de quase toda turma, desde o pré-escolar até a faculdade, em muitos casos. Propiciando o acesso a estas publicações sobretudo àqueles alunos que não podem tê-las em casa, os professores estarão motivando para a leitura – e consequentemente para o exercício da escrita - mostrando que ler é importante enquanto prática social, independentemente até de forma e conteúdo. Num tipo de sociedade tão marcada pela força do signo escrito, como a nossa, dominar a prática social da leitura é requisito básico de sobrevivência econômica, política e cultural, aí incluídas todas as incontáveis possibilidades abertas pelo acelerado processo de digitalização e convergência das mídias. Fenômeno que certamente levará a novas linguagens e novos arranjos cognitivos e políticos para as práticas da leitura e da escrita. Para a produção e distribuição da nossa riqueza (ou pobreza) intelectual, enfim. Tempo e espaço do educador Ao tratar do impacto das novas tecnologias para o redimensionamento do espaço e do tempo dos educadores em suas atividades docentes, Vani Moreira Kenski (1998) avalia a influências que estes novos instrumentos da informação exercem sobre a práxis pedagógica, estabelecendo, por exemplo, a criação de novos lugares além da escola (como nas salas de aula virtuais) e novas rotinas de aprendizagem (na educação a distância ou na educação continuada). Elas impõem novos ritmos e dimensões à tarefa de ensinar e de aprender, baseada em uma nova maneira de manipular informações, que passam a ser geradas e processadas em grandes quantidades, com uma constante da capacidade de armazenamento enormemente ampliada, com maior velocidade no acesso e circulação instantânea. As velozes transformações tecnológicas da atualidade impõem novos ritmos e dimensões à tarefa de ensinar e aprender. É preciso que se esteja em permanente estado de aprendizagem e de adaptação ao novo. Não existe mais a possibilidade de considerar-se alguém totalmente formado, independentemente do grau de escolarização alcançado. Além disso, múltiplas são as agências que apresentam informações e conhecimentos a que se pode ter acesso, sem a obrigatoriedade de deslocamentos físicos até as instituições tradicionais de ensino para aprender. Escolas virtuais oferecem vários tipos de ensinamentos on-line, além das inúmeras possibilidades de se estar informado, a partir das interações com todos os tipos de tecnologias mediáticas (KENSKI, 1998, p. 60). Tal situação gera um impacto temporal: a noção de tempo industrial (mecânico, regular, contínuo, progressivo) é substituído através das tecnologias eletrônicas (secretárias, agendas, correios, bancos etc) em maneiras inéditas de dispor e compreender o tempo, redimensionando a nossa percepção temporal e os nossos deslocamentos espaciais. A autora cita Pierre Lèvy (1993), quando classifica as formas de conhecimento humano como oral, escrita e digital, para tratar dos impactos no trabalho docente. Para ela, a utilização das novas tecnologias exige uma lógica igualmente nova, na qual não predomina apenas a apresentação linear e o desenvolvimento metodológico de conteúdos didáticos, mas sim a adoção de novos tipos de raciocínio não-excludentes, de outras relações entre áreas do conhecimento aparentemente distintas, de racionalidade somada à emoção e à intuição. Neste sentido mudam os procedimento didáticos e o professor passa a ser um orientador, enquanto que, para a dinâmica da sala de aula, a presença física não é mais requisito indispensável, sequer obrigatório. Esta nova dinâmica também privilegia o trabalho em equipe e incentiva a experimentação. A autora faz referência a Dianna Laurrillard (1995), identificando os novos papéis reservados a alunos e professores em quatro situações: do professor contador de histórias (que pode ser substituído por um vídeo, programa de rádio, teleconferência etc); do professor negociador (que discute o conteúdo apreendido em outros tipos de interação, como a leitura de livros e revistas, assistir a um vídeo etc); a dimensão do aluno pesquisador (que aprende por descoberta, enquanto o mestre ordena os conhecimentos apreendidos); e finalmente a do professor e alunos colaboradores (que usam em conjunto os recursos disponíveis para a busca e troca de informações). Recorre mais uma vez a Lèvy (1994) para argumentar que, neste último tipo de espaço social pode-se desenvolver a sala de aula como uma inteligência coletiva, onde ocorre uma permanente negociação para o estabelecimento e evolução de uma ordem das coisas. Ou seja, nada é fixo, embora não haja desordem ou relativismo absoluto. A ordem é um processo de re-equilibração a partir das trocas com o exterior, o que traz permanentemente mais ruído e mais complexidade. Seria a ordem no caos informacional. Com isso, a escola passaria a interagir com as demais instituições culturais para promover uma educação em sentido amplo. Mas o professor precisa ser um profissional familiarizado com as novas tecnologias da informação para fazer bom uso delas em sua prática docente. Porque mais importante que usar ou não a tecnologia é compreender suas possibilidades, pois então estará apto a entender sua lógica de movimentação entre os saberes no atual estágio da sociedade tecnológica. Kenski (1998) destaca, ainda, que uma queixa recorrente diz respeito à baixa qualidade didática dos pacotes de programas de conteúdo pedagógico distribuídos nas escolas dos diversos níveis de ensino, lembrando que eles não são elaborados por educadores. Para superar o problema, propõe incluir docentes na produção dos softwares e habilitar estes profissionais desde a sua formação a criar, operar e criticar estas novas tecnologias. Quanto às características destas novas salas de aula, advoga que elas garantem acesso instantâneo a outros locais de aprendizagem, como as bibliotecas, museus e centros de pesquisa, mas provocam também alterações na disposição do espaço físico, que deve ser reorganizado para permitir o manuseio das máquinas e também as discussões em equipe. Por fim, seria necessário alterar também a própria rotina escolar, como a carga horária dos professores, por exemplo, estimulando-os a práticas e atividades criativas dentro e fora da sala de aula. A propósito, Canclini (2008, p. 24) avalia de que forma este novo regime de trânsito da informação atinge o campo da educação: Mesmo a educação formal mais aberta à incorporação de meios audiovisuais e informáticos oferece só uma parte dos conhecimentos e ocupa parcialmente as horas de aprendizado. Os jovens adquirem nas telas extracurriculares uma formação mais ampla em que conhecimento e entretenimento se combinam. Também se aprende a ler e a ser espectador sendo telespectador e internauta (CANCLINI, 2008, p.24). Ele alerta que, apesar das novas formas de interatividade produzidas pela tecnologia, impõe-se uma espécie de ilusão, se simulacro de participação por parte do público em relação ao que produz e veicula a indústria do entretenimento. E especula que “existe um jogo complexo, em várias direções, entre ser cidadão e ser consumidor” (CANCLINI, 2008, p. 28). Então, os processos contemporâneos de aprendizado deveriam, igualmente, remeter a experiências concretas de formação da cidadania e de participação política e comunitária. Com relação especificamente ao estímulo à leitura e desenvolvimento de interpretação crítica por parte dos nossos estudantes, uma das experiências mais bem aceitas e com potencial para, se bem dirigidas, alcançar plenamente tais objetivos ou ainda ultrapassa-los - por exemplo, com a descoberta de lideranças intelectuais, artísticas, comunitárias e políticas - é a criação coletiva de um jornal escolar. O jornal escolar O objetivo fundamental de um programa de edição de jornal escolar é desenvolver nos estudantes uma maior capacidade de leitura e compreensão de textos, bem como uma interpretação crítica da realidade que o cerca, o que decerto favorecerá o seu processo de construção da plena cidadania. Neste sentido, tanto o jornal impresso quanto suas versões digital e/ou online guardam enorme potencial para ser utilizado de maneira efetiva como ferramenta pedagógica, inclusive no que diz respeito à formação de leitores críticos, criativos e habilitados a promover a contextualização dos conteúdos curriculares com a realidade concreta em que estão inseridos. Para tanto, é necessário avaliar em que medida o periódico realmente utilize todo o seu potencial como ferramenta na formação de consciência crítica entre seus leitores, sobretudo entre os estudantes contemplados por iniciativas do gênero. Em primeiro lugar, é preciso definir e deixar claro quais práticas pedagógicas estarão contempladas pelo programa e se elas têm como meta, além do incentivo à leitura e à produção de textos, incentivar a formação de pessoas mais conscientes ou mesmo tolerantes com opiniões diversas, mais críticas, criativas e aptas a relacionar eventos a contextos. Mais que isso, o jornal deve estar disposto, inclusive, a contribuir para o sucesso escolar dos alunos envolvidos na iniciativa. Para tanto, precisa avaliar quais foram os métodos, técnicas e práticas pedagógicas utilizados com melhores resultados; se o jornal pode ser usado com eficácia por turmas de todas as disciplinas do currículo escolar ou é mais adequado e eficiente como apoio didático apenas para algumas matérias específicas. Vários pesquisadores que se dedicam ao assunto têm sugerido que o trabalho com jornais pode ser ampliado se possível para todas as disciplinas das grades curriculares, desde o ensino fundamental até o superior. Algumas experiências desenvolvidas na área evidenciam, neste sentido, que todo o potencial oferecido pelo uso do jornal como instrumento pedagógico é bem mais eficazmente trabalhado através de um programa específico, estruturado de preferência (mas não exclusivamente) entre um veículo de comunicação social e as instituições escolares localizadas em seu raio de atuação ou influência. O que envolve não apenas a distribuição de exemplares diários ou cotas de encalhes, mas também e principalmente o necessário acompanhamento pedagógico, a realização de oficinas, palestras e o desenvolvimento de outros mecanismos de envolvimento e interação entre a comunidade escolar e o próprio jornal. Todavia, a maior parte dos programas desenvolvidos no Brasil não tem apresentado nenhuma inovação no sentido de explorar mais profundamente o vasto potencial criativo tanto do veículo em si quanto dos professores e estudantes, alvo final de suas ações. É importante ressaltar outra importante recomendação derivada do presente estudo, que é a criação de um suplemento dedicado à educação que não somente noticie e acompanhe os temas e debates, os eventos e realizações ligados à área educacional, mas inclua a publicação de artigos e demais material produzido por professores e estudantes. Tais iniciativas também deveriam incentivar entre professores, alunos e comunidade, a discussão sobre o papel e a responsabilidade da própria imprensa enquanto instituição formadora de opinião. Este é um debate cada vez mais necessário e que deve envolver não apenas o núcleo que integra o programa em si, seus assessores pedagógicos e os educadores que participam das atividades, mas sim procurar envolver amplamente jornal e escola, corpo redacional e comunidade acadêmica, jornalistas, professores, pais e alunos. Experiências deste tipo podem, inclusive, desaguar no estabelecimento de conselhos editoriais efetivamente participativos e empenhados em discutir e encaminhar um papel de responsabilidade social assumido na linha editorial e transcrito nas páginas do periódico. Sempre que consultados, professores das redes pública e privada têm demonstrado grande interesse na criação de um espaço regular – seja um jornal escolar, um suplemento específico, editoria, página ou coluna – exclusivamente dedicado à educação, sobretudo contemplando a publicação de material produzido por alunos e professores. Iniciativas do gênero devem buscar identificar e destacar as variantes que interferem e condicionam o processo, tais como: se os alunos a serem contemplados pelo programa já possuíam o hábito de leitura de jornais e com que frequência o exercia; se os professores da escola utilizavam o jornal como instrumento pedagógico, com que frequência e se com o objetivo de trabalhar aspectos meramente informativos ou também de conteúdo (análise crítica, contextualização, postura ética, influência ideológica etc); se os alunos conseguiam avaliar criticamente o conteúdo de uma reportagem ou artigo, ou seja, se tinham condições de interpretar uma notícia, identificando as várias abordagens possíveis de um texto noticioso, as manipulações editoriais de conteúdo e a distância que há entre o relato de um fato e o fato em si, bem como se logram comparar e distinguir uma mesma notícia editada de maneira distinta por jornais diferentes. Com isso, na hora de definir como funcionaria um possível veículo periódico escolar será preciso distingui-lo da noção de jornal educativo. Seria, acaso, um periódico feito por ou para alunos e/ou professores? Seu conteúdo seria produzido por educadores em forma de artigos e estudos ou bastaria registrar novidades e abordar questões ligadas à área? Seria, então, mais uma publicação científica ou acabaria sucumbindo aos ditames de mercado, da cultura de massa? São questões distintas e complexas, mas que apontam para o mesmo princípio que faz com que um veículo de comunicação - mesmo da grande imprensa - sinta-se comprometido em sua vocação pedagógica e busque ser participativo de fato, sem necessariamente render-se às demandas de mercado, criando alternativas que envolvam a comunidade acadêmica no exercício de produzir e distribuir informação. Todavia, é prudente lembrar que jornal não é livro didático e, portanto, antes de ser introduzido em sala de aula, requer professores preparados a trabalhar com este novo e versátil instrumento de auxílio pedagógico. Será preciso que eles compreendam a efetiva dimensão do jornal enquanto veículo processador e divulgador de informação. Somente assim serão capazes de estabelecer estratégias adequadas e, portanto, eficazes no sentido de despertar nos alunos o interesse pela edição e leitura de um periódico. A mera inserção de artigos, reportagens ou outros textos extraídos de jornais junto às apostilas ou nos livros didáticos não significa que se está utilizando plenamente este veículo como ferramenta didática de incentivo à leitura, pois então faltaria justamente o seu componente mais poderoso, que é a capacidade de contextualização. Entre as características específicas que podem ser apontadas na identificação do jornal como excelente ferramenta pedagógica estão o seu conteúdo diversificado e atualizado, sua natureza transdisciplinar e linguagem concisa (e portanto acessível) e direta (informativa e factual, o que incentiva a formulação de análises críticas da realidade), assim como a sua característica de documento, de registro histórico dos principais fatos de relevância social, nacionais e internacionais (e alguns outros nem tão importantes assim, do ponto de vista da coletividade). O veículo, em suas versões impressa e/ou eletrônica, também deve fazer bom uso de recursos para facilitar a leitura, como as manchetes e as fotos, legendas e infográficos, mapas e tabelas, links hipertextuais e material multimídia o mais diverso. Além disso, como é um formador de opinião por excelência, conduz inevitavelmente seus leitores ao debate e à prática da discussão crítica e da troca de idéias opostas, o que deve ser proposto e estimulado pelas próprias equipes de alunos/professores à frente da edição. A leitura de jornal ainda enriquece o vocabulário, amplia a compreensão de textos e reforça a capacidade de retenção de conhecimento, alarga a visão pessoal de mundo e estimula o interesse por temas atuais, reforçando o sentimento de cidadania. Novos temas podem ser abordados em sala de aula, de sexo e afetividade às relações internacionais, da política à economia, do esporte à ecologia. Os alunos têm, então, a oportunidade de irem descobrindo progressivamente como o mundo está organizado, de que forma ele funciona e - o mais importante - qual a melhor forma de agir nesta realidade que o cerca. Na medida em que conhece melhor a estrutura e funcionamento de um jornal, eles passam a identificar mais rapidamente as referências que despertam seu interesse na leitura, tornando-a mais efetiva, mais prazerosa, até. Os estudantes envolvidos neste tipo de iniciativa em geral passam a avaliar automaticamente a diagramação das páginas, ilustrações e elementos gráficos daquilo que lêem, relacionando os diversos sinais (símbolos, siglas, logomarcas etc) e os textos em suas diferentes formas e conteúdos (notícias, reportagens, artigos, editoriais, publicidade etc). Fazem isso em busca das notícias que mais lhes interessam, podendo até desprezar e ignorar outras completamente. Ou seja, eles editam sua leitura, fazem escolhas e adotam, portanto, uma postura crítica e ativa diante do conteúdo informativo colocado à sua frente. É deste tipo de atitude que se alimenta o princípio básico da cidadania. Trata-se, portanto, de um exercício efetivo de habilitar o aluno a se situar no trânsito caótico de informações do mundo contemporâneo. Neste sentido, deve ser conduzido a identificar, selecionar, organizar, combinar, classificar e ordenar as informações, enquanto a prática de edição (que é, essencialmente, escolha) o levaria ao desenvolvimento dos processos mentais de indução e dedução, construção de hipóteses, codificação e esquematização, conceituação e memorização. Em sala de aula, o jornal ajuda no desenvolvimento dos processos de aprendizagem ao exercitar as capacidades de atenção, observação, síntese, associação, comparação e análise, aprimorando o poder de argumentação e estimulando o gosto pela pesquisa. Antes de tornarse crítico, ele deve aprender a interpretar a realidade em que vive. Outra meta colocada aos programas deste tipo é incentivar o trabalho coletivo, superando as posturas excessivamente individualistas insinuadas por um sistema de ensino competitivo e voltado quase que exclusivamente para o sucesso no funil do vestibular. Além disso, há a possibilidade de familiarização com outro tipo de leitura, capaz de desenvolver conhecimentos úteis na formação de cidadania, como sobre a tramitação e a publicação de leis, decretos, processos de concorrências e licitações, a cobrança de tributos, os editais de concursos e empregos etc. De todo modo, o mais importante para tais programas é que estejam dispostos a estimular e criar condições efetivas para que estudantes e professores possam planejar e produzir seus próprios jornais escolares, que podem ter o formato impresso tradicional, ser veiculado pela internet e/ou como mural, não importa, mas que sejam frutos de uma disposição autêntica em produzir um instrumento de comunicação social legítimo e independente. Somente a lição e o exemplo de tal entendimento já é base sólida e ponto de partida para a construção de cidadania. Referências BELO, André. Livro e Leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. CANCLINI, Néstor García. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp, 1999. FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho D´Àgua, 1993. KENSKI, Vani Moreira. Novas tecnologias, o redimensionamento do espaço e do tempo e os impactos no trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v. 8, p. 58-71, mai/jun/jul/ago 1998. LAURILLARD, Dianna. Multimedia and the changing experience of the learner. British Journal of Educational Technology, v. 26, nº 3. Londres, 1995. LÉVY, Pierre. L’Intelligence collective: pour une anthropologie du cyberspace. 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