Pulsional Revista de Psicanálise 56 56 Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 140/141, 56-62 Do modelo narrativo à escritura do fato clínico: o drama do paciente e o caso do analista Martha Wankler Hoppe narrativa do caso e sua escrituração seguem modelos prévios disponíveis e que identificam a intenção do pesquisador na transmissão do seu saber. Este estudo apresenta alguns modelos de narrativas existentes, tais como o modelo científico, o histórico, o hermenêutico e o literário, e traça um paralelo com o modelo freudiano. A autora aponta que pesquisador psicanalítico atinge a objetivação do caso com a sua construção na análise de supervisão e na interlocução com uma comunidade específica. Do drama revelado pelo paciente na análise transpõe-se o caso do analista, e a transmissão como narrativa de caso irá revelar seu lugar pessoal e teórico como investigador psicanalítico. Palavras-chave: Modelos de narrativa, narrativa de caso, caso psicanalítico, pesquisa psicanalítica. A he narrative of the case and its writing follow available pre models that identify the researcher’s intention during the transmission of his knowledge. This study presents some models of real narratives, as the scientific, the historical, the hermeneutic and the literary models and it makes parallel with the Freudian model. The author argues that the psychoanalytic researcher gets the objectiveness with his construction on the supervision and on interlocution with specific scientific community. The drama revealed by the pacient on analysis is transposed by the analyst’s case and the transmission on narrative of the case will reveal its teoric and personal place like psychoanalytic researcher. Key words: Models of narratives, narrative of the case, psychoanalytic case, psychoanalitic researche T Do modelo narrativo à escritura do fato clínico A o narrar um caso e torná-lo material escrito, o pesquisador assume a transmissão de um saber através de uma enunciação pública. Sob essa condição, sua intenção será posta para reconhecimento de uma comunidade ou pelo grupo, ao qual está inserido. Muitas são as formas e modelos de narrativa de caso, entretanto, quando tratamos da narrativa do caso psicanalítico, surge a questão do modelo que é operado na sua construção. Em que modelo de narrativa de caso o pesquisador psicanalítico está inserido? Em seu estudo sobre a linguagem de apresentação do caso, RudelicFernandez em Langage du cas: modèles et modalités analisa as diversas formas de narrativa de caso, em especial do caso freudiano, propondo sua transposição como modelo de caso psicanalítico. A partir desse ensaio convocamos o leitor a questionar o modelo de caso psicanalítico que dispomos na literatura e na clínica diária, para posicionar-se acerca de seu modelo narrativo. Observamos que a narrativa de caso segue uma organização específica e estável, onde marcam presença obrigatória o diagnóstico, a etiologia e a descrição dos sintomas. Das diversas modalidades de narrativa de caso disponíveis na literatura, Rudelic-Fernandez (1999) apresenta o modelo científico, o histórico, o hermenêutico e o literário. Classicamente, o modelo da metodologia científica apresenta uma visão objetiva da história do caso, como se esse corres- 57 pondesse a uma realidade passível de deciframento, verificação e reprodução. Neste modelo, o investigador sustenta uma ausência apresentando seu texto na terceira pessoa, omitindo diálogos e afirmando suas conclusões de maneira totalizante. O modelo histórico de caso segue o curso de conteúdos ordenados cronologicamente e analisados sob o aspecto de sua lógica temporal. No modelo hermenêutico, em contraposição aos anteriores, permanece a linguagem própria do caso, numa redescrição circunstancial, descontínua e pontual. O caso, no modelo hermenêutico, é criado pela interpretação psicanalítica. O modelo literário preserva o lugar do escrevente que investe sobre o caso, o impacto da linguagem sobre a realidade desenvolvendo uma nova história, a sua história. No caso freudiano, encontraremos todos estes modelos, em alguma intensidade e aspecto de seu desenrolar, porém, a marca do pensamento psicanalítico confere uma dimensão própria do caso psicanalítico. Ao apontar os elementos enunciativos do caso freudiano, Rudelic-Fernandez (1999) particulariza este modelo. O lugar enunciativo do narrador é ao mesmo tempo focalizado, deslocado e descentrado, num constante ir e vir de posições. Assim, a narrativa do caso tem seu início na discursividade corporal, da ação do sujeito que escreve e transmite sua posição diante de um fato investigado. A demarcação do lugar enunciativo será delimitada pela sua escrituração e a inclusão do outro, que recebe o re- 58 lato para leitura e reconhecimento do texto. Desta feita, é nodal a posição do sujeito que escreve em relação a uma alteridade, na enunciação dirigida ao outro, no ato de escrever. O trajeto de linguagem, na narração da cura, é outro elemento a ser observado. O método psicanalítico de transmissão de um conhecimento adquirido, sua investigação, pode ser caracterizado, pelo pluralismo metodológico de Feyerabend (1977), como uma estrutura que comporta o irracionalismo com razoabilidade. Freud utiliza-se de modalidades orais e escritas, de diálogos e narrativas, de história e ficção, de ficção e teoria, considerando a ficção como uma produção singular e reveladora. Atinge a objetivação, na narrativa do caso, de todo um percurso vivido na situação psicanalítica de tratamento. O fato clínico que o psicanalista busca conhecer é o da cura psicanalítica, e do processo que a torna possível. Para chegar ao seu objetivo, trilha o desconhecido caminho transferencial, em que o drama de um encontra o drama do outro. Na situação de tratamento psicanalítico, a experiência não fica restrita a um comunicado compartilhado, mais que isso, é um drama re-inscrito em consonância com a escuta do psicanalista. Este trabalho de reconhecimento e ressignificação numa nova experiência acontece no tempo do Inconsciente, e não é desvinculado do tempo do Préconsciente e do Consciente. Freud utilizou alguns termos para explicar este fato clínico – Nachträglich e Pulsional Revista de Psicanálise Nachträglichkeit, também conhecido através da noção de a posteriori ou après-coup (Freud, 1937; 1950). Conhecido o caminho das pedras, após a sessão psicanalítica, o psicanalista retorna a ele, porém, de forma a transformá-lo num saber sobre uma experiência, que será levada para reconhecimento público. O que forma o caso psicanalítico, seu produto, mantém a ambigüidade de sua origem no encontro do paciente com o analista e na nova possibilidade de significação, viabilizada por esse encontro. Ao apresentar a trajetória do caso, através da sua narrativa, o psicanalista revela aquilo que viu e pesquisou, o processo que o levou à aquisição do conhecimento, a escuta, a visão e o relato dos fatos. É a iluminação de um caminho pela descoberta de como e por onde seguir. Na retomada do drama, o psicanalista revela a sapiência trágica, definida em Nietzsche (1973) através da passagem da emoção dionísica à emoção filosófica. Como afirmação da vida, o drama do paciente ganha existência e novo sentido, no caso do psicanalista. A narrativa da experiência, entretanto, não surge aí onde está. É construída na análise de supervisão, como afirmou Fédida (1982), e posta à prova na interlocução com uma comunidade específica. A narrativa de um caso torna-se possível na medida em que é viabilizada a narração da cura por aquele que narra e aqueles destinados a garantir uma boa receptividade, na alteridade. Do modelo narrativo à escritura do fato clínico O DRAMA DE CAMILA Propomos a realização de uma construção de caso a partir do drama de Camila, uma menina de seis anos que carrega o medo do abandono. Ela nos convida a viajar através do mundo feminino e explorar seu imaginário nas relações primeiras com a mãe, o pai, a família e com seu mundo pulsional. Neste caso em especial, a paciente expressava-se através de representações teatrais, onde suas bonecas eram partes de si própria, relacionando-se. Os temores da menina acentuavam-se na ida à escola, momento em que verbalizava o medo de ser esquecida pelos pais. Mobilizados pela angústia da filha, eles empenharam-se em procurar atendimento. Durante os dois anos e sete meses de duração do tratamento, Camila foi atendida em duas sessões semanais, que foram relatadas e supervisionadas semanalmente. A primeira sessão foi compreendida em sua extensão ao final do tratamento, quando a paciente retomou seu conteúdo em um novo sentido. Por este motivo, esta primeira sessão será relatada com mais detalhes. Camila apresentou-se com roupas descuidadas, calças largas e tênis, sem demonstrar preocupação com sua aparência. De imediato, escolheu peças de ligue-ligue, unindo-as sucessivamente: “É uma ponte comprida. É uma cobra braba que morde e que tem cabeça vermelha. Ela põe a língua pra fora, bem vermelha. O nome dela é Colorida”. Para guardar a 59 cobra, diz que precisa cortá-la em pedaços. Na seqüência de seu jogo, pede para brincar de mercearia, e compra mantimentos dizendo que não tem dinheiro para pagar o que comprou. Aponta o jogo de futebol de botão: — Esse é prá guri. Logo, desenha uma menina com vestido de renda afirmando: “É minha irmã. Ela passeia na rua”. Dessa primeira sessão, passamos aos momentos mais intensos do tratamento, que revelaram o drama real de Camila. Ela vinha trazendo sua curiosidade sobre “fazer filho” e encenava com os fantoches cenas de copulação. Em uma sessão, traz duas bonecas, uma ursa Peposa, que chama de Sandra, e um bebê, do mesmo tamanho, que ela chama de Cátia. Pede que eu seja Cátia e ela assume Sandra, no brinquedo. Camila e Sandra, Cátia e eu, formamos o imaginário intersubjetivo, do registro do eu, na relação dual. Formam quatro, duas a duas, e são uma e outra, constituindo-se uma antecipação imaginária que carrega a alienação, pelo desconhecimento da verdade de seu ser (Lacan, 1998/1966). Ao assumir no brinquedo o que Camila solicita, por intermédio de Cátia, coloco-me nessa posição especular. Do outro lado, Camila com Sandra e através dela, preserva a imagem sem fissuras. É na fase do espelho que a criança, carregada por sua mãe, irá reconhecer sua imagem, antecipando imaginariamente a forma total de seu corpo (Chemama, 1995). Através desta escuta, retomamos a experiência com a paciente. 60 Enquanto brincamos, Camila narra esta história: “Sandra está na beira do rio pescando. Tinha uma vara de pescar bem bonita, cheia de flores, e Cátia queria uma vara igual a dela. A mãe de Cátia não pode dar-lhe uma igual, porque não existe mais para vender; Sandra havia comprado a última”. Esse é o seu drama. Ao sofrer a falta e investir sobre ela, Camila narra momentos de angústia de forma compulsiva. Por intermédio de Cátia, por mim interpretada no jogo, Camila expressa sua fúria e investe sobre Sandra, tentando arrancar-lhe a vara à força. Cátia caminha em direção à Sandra, com o objetivo de tomar-lhe aquilo que sente que lhe foi impossibilitado. É um ato que reivindica um direito, aqui, permeado de agressão. Cátia e Sandra brigam numa disputa intensa e frustrante. Camila comandava a cena: “Ela tenta, tenta e não consegue”. Neste momento, a paciente desata num riso, dizendo que é tudo muito engraçado. Como coadjuvante da cena, compartilhei um misto de raiva, frustração e humilhação, ao mesmo tempo que reconhecia o prazer de Camila no jogo. Neste momento, retomo a sua história, que revela um início de difícil entrosamento com a mãe. Esta não conseguiu amamentar e retomou o trabalho estafante de três turnos, no segundo mês, entregando a filha à sua irmã. Camila passava a maior parte de seu tempo presa em um carrinho ou cercado enquanto a tia trabalhava. Volto à cena onde a paciente, ao investir com o corpo sobre a outra possui- Pulsional Revista de Psicanálise dora daquilo que deseja, revela sua necessidade de apreensão e poder, mesclada ao prazer do ato. O que antes estava excessivamente imobilizado, aparece móvel e sem controle. Freud (1924) define o masoquismo primário erógeno como análogo ao sadismo primitivo. Ambos seriam gerados da amálgama entre o instinto de morte e Eros. Passando pelas fases evolutivas da libido, este masoquismo primitivo experimenta o medo de ser devorado, o desejo de ser maltratado e as fantasias masoquistas de castração. Na cena de Camila, este sofrimento é retomado na sua intensidade. Durante mais duas sessões, Camila repete o ato de investir sobre Sandra e tentar arrancar-lhe a vara de pescar. Mesmo não tendo sucesso, torna essa busca um fim em si mesma. Agora são outros desejos, investidos da mesma forma. Há uma bonequinha que a outra, Sandra, ganhara de sua mãe, e Cátia deseja para si. Vai até a loja e descobre que Sandra já havia levado a última. Cátia, então, briga intensamente com Sandra e sai ferida. Noutra cena, disputam um lugar próximo ao ar condicionado, para “experimentar o ventinho”, porém, somente Sandra é quem pode desfrutá-lo. Cátia deve investir com toda a sua fúria sobre Sandra e, neste movimento, tropeça no caminho, caindo e machucando-se. Primeiro é a cabeça que sofre o corte e necessita ser enfaixada. Esse momento fez lembrar uma frase de Camila ao iniciar o brinquedo de faz-de-conta: “Tu que inventa. Quem in- Do modelo narrativo à escritura do fato clínico venta, agüenta”. Inventar e agüentar brincadeiras foi nossa primeira experiência. Nessa, eu era sua “outra” que imitava tudo o que ela fazia. Penso que castiga a cabeça de Cátia, por inventar idéias e pensar desejos. Cátia ainda tem muito para revelar. Depois da cabeça, vêm os braços machucados, que contêm, que tentam arrancar da outra aquilo que deseja. Logo após, as pernas que insistem em dirigir-se contra Sandra. O corpo sofre, no peito e finalmente nos genitais. Camila encena a castração de Cátia, a vagina que sangra e que revela o que antes temia. Podemos pensar que chegamos ao fim do drama de Camila, um fim que abre a possibilidade de um começo diferenciado. Agora, Camila é uma menina, Cátia, que foi o bebê Sandra, que possuía tudo o que desejava. Sofreu em todo o seu corpo a angústia da castração e pode reinvesti-lo, uma vez que apropriou-se dele. Camila abandona as roupas largas que usava e começa a enfeitar-se, pedindo brincos para a mãe. Na sessão, traz um conto que revela um novo momento de sua existência, a lenda do rio Amazonas: “A lua se apaixona pelo sol e quer casar com ele. O deus Tupã proíbe, porque senão a terra vai derreter. Aí a lua chora muito e as lágrimas caem sobre a terra. As lágrimas da lua são doces e não podem se misturar com o mar que é salgado. Então, se forma o rio Amazonas”. Camila revela, simbolicamente na lenda, que sua existência é uma parte de outra. Desafiando o mar, o outro semelhante, projeta-se e diferencia-se 61 nesse, marcando uma existência própria, ao mesmo tempo que o reproduz. A experiência de cura, para Camila, compreendeu este constante ir e vir de posições, numa experiência de ser ela mesma e poder incluir o outro com os aspectos que mais temia. Ao finalizar seu tratamento, Camila retoma o drama inicial de sua história. Procura, no fundo de sua caixa de brinquedos, as peças do ligue-ligue que faziam parte da cobra montada no primeiro encontro, e que estava em pedaços. Em seguida, remonta essas peças, formando duas asas que segura juntas, fazendo o movimento de um vôo. Através dessa linguagem singular, Camila nos mostra que pode circular por seus medos, encontrar um novo sentido com a experiência de tratamento, e transformar para seu crescimento. Na medida em que Camila pôde instaurar sua verdade, recebeu um lugar. Esse foi construído a partir do seu imaginário com a inclusão do real e ressignificado numa nova experiência. Seu mundo pulsional pôde encontrar representabilidade por meio das cenas que “inventou” e vivenciou, na situação de tratamento psicanalítico. O processo revestiu-se de uma forma teatral e figurativa, finalizando na nominação simbólica de uma lenda, trazida pela paciente em um relato oral. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na escritura do fato clínico, o analista transpõe o drama do paciente para o caso a ser transmitido, o caso do ana- 62 lista. Como Camila, que alternava sua imagem em Sandra, Cátia e com a terapeuta, o caso a ser narrado reproduz essa ambigüidade. Falamos do paciente, através dele e com ele. Objetivamos uma experiência singular que só pode ser diferenciada com o nosso estilo literário, na medida em que revela a forma como damos sentido à experiência e sua história. Falamos de um processo e tentamos torná-lo legível e acessível ao leitor. A adoção de um modelo narrativo cede lugar à construção do caso do psicanalista, e a transmissão respeitará seu estilo que marca o lugar, pessoal e teórico do investigador. O que temos observado em nosso meio, são narrativas que partem de uma mesma realidade clínica, da descrição de fatos e ou história do caso, à aparição da patologia, seu desenvolvimento e resolução. No nosso entender, o modelo que retira o analista da experiência clínica, colocando-o no lugar do espectador, afasta-se da singularidade do caso psicanalítico. Ao buscar uma resposta sobre modelo narrativo de escritura de caso, encontramos sua verdade na própria experiência do psicanalista, na sua realidade intersubjetiva, que revela com Artigo recebido em outubro/2000 Revisão final recebida em novembro/2000 Pulsional Revista de Psicanálise propriedade seu saber por meio de uma situação de cura psicanalítica. Ao tornála pública, o analista encontra seu lugar, o lugar do corpo que se entrega à escrituração, da voz que dá alcance às suas palavras, da linguagem que revela uma mensagem. Esse é o modelo do drama do paciente que ganha existência na narrativa do caso do analista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. FÉDIDA, P. Nome, figura e memória. A linguagem na situação psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1992. FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. FREUD, S. El problema económico del masoquismo. In Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1924. v. XIX. ____ . Las orígenes del psicoanálisis. In Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1950. v. I. LACAN, J. (1966). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. In Ecce Homo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1973, pp. 73-78. RUDELIC-FERNANDEZ, D. Langage du cas: modèles et modalités. In FÉDIDa, P. e VILLA. F. (orgs.). Le cas en controverse. Paris: PUF, 1999, pp. 29-42.